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A CONTEMPORANEIDADE DE/EM TWIN PEAKS (1990-1991): a junção entre o moderno e o pós-moderno no jogo (proto)transmidiático do seriado criado por David Lynch e
Mark Frost 1 CONTEMPORANEITY OF/IN TWIN PEAKS: the junction
between the modern and postmodern in the (proto)transmedia game of TV serial created by David
Lynch and Mark Frost
Rogério Ferraraz e Maria Ignês Carlos Magno 2
Resumo: O presente artigo tem como objeto de estudo o seriado Twin Peaks (EUA,
1990-1991), criado por David Lynch e Mark Frost, a fim de compreender como
Lynch levou para televisão várias características modernistas e pós-modernistas
em um mesmo programa narrativo ficcional, mas sem procurar estabelecer
relações dessa produção lynchiana com o que possa ser estritamente moderno ou
pós-moderno, porque uma das características de sua obra, em geral, está
exatamente na ausência de hierarquia entre esses movimentos. Assim, buscar-se-á
também apreender e demonstrar aspectos da contemporaneidade já presentes
naquela obra, (proto)transmidiática, que, de certa forma, antecipou a era da
internet e da cultura participativa dos fãs, típicas de nossos dias.
Palavras-Chave: Seriados de televisão. Contemporaneidade. Pós-moderno.
Abstract: This paper has as its object of study the series Twin Peaks (USA, 1990-
1991), created by David Lynch and Mark Frost, to understand how Lynch took to
television several features modernists and post-modernist in the same fictional
narrative program, but without seeking to establish relationships between that
Lynch's production with what could be strictly modern or postmodern, because one
of the characteristics of his work in general is the absence of hierarchy between
these movements. We will also try to understand and demonstrate aspects of
contemporaneity already present in that (proto) transmedia work, which, in a way,
anticipated the era of internet and colaborative fan's culture, typical of our days.
Keywords: TV Serials. Contemporaneity. Postmodern.
1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Cultura das Mídias do XXIII Encontro Anual da Compós, na
Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 de maio de 2014. 2 Rogério Ferraraz: Professor do PPGCOM da Universidade Anhembi Morumbi, Doutor em Comunicação e
Semiótica (PUC-SP), email: [email protected]. Maria Ignês Carlos Magno: Professora
do PPGCOM da Universidade Anhembi Morumbi, Doutora em Ciências da Comunicação (USP), email:
2
Cidade de sonhos: Mrs Dalloway e Nadja era só um dos subtítulos do capítulo
Complexidade urbana e enredo romanesco, de Steven JOHNSON (2009). Não se tratava do
filme de David Lynch, Cidades dos Sonhos (Mulholland Dr., EUA, 2001),, mas o título e o
texto nos remeteram ao filme, às discussões sobre as narrativas das cidades nos romances e
nos filmes e mais propriamente sobre as formas como a vida metropolitana eram descritas
por autores modernistas e pós-modernistas. Dos autores aos movimentos, nos vimos
enredados na discussão sobre a forma como, principalmente, os surrealistas estruturaram suas
narrativas na literatura, no cinema e por que não na televisão? Nessa discussão, o centro
passou a ser o seriado televisivo Twin Peaks (EUA, 1990-1991), de David Lynch e Mark
Frost, mais especificamente o universo lynchiano e a estrutura narrativa da série de TV.
Como o debate se ampliou para questão das narrativas transmídia, decidimos nos dedicar ao
estudo do seriado e propor uma análise, ou mesmo uma discussão, de como Lynch traz para a
televisão as características modernistas e pós-modernistas em um mesmo programa narrativo
ficcional, e tentar apreender também a contemporaneidade já presente na obra de Lynch,
nessa era da internet e de uma sociedade em que as experiências on line já fazem parte de
nossas vidas.
1. Do moderno ao pós-moderno
Quando Lynch e Frost lançaram Twin Peaks na TV aberta, causando, como já
demonstraram autores como Cássio Starling CARLOS (2006), Jean-Pierre ESQUENAZI
(2011), David LAVERY (1995), entre outros, uma revolução nas narrativas seriadas no início
dos anos de 19903, o pensamento teórico-acadêmico ainda andava as voltas com os acirrados
debates sobre o novo cenário histórico que emergia e com uma de suas mais polêmicas
temáticas: a discussão sobre os conceitos de modernidade e pós-modernidade nos mais
diferentes campos do conhecimento, como a literatura, as artes plásticas, as ciências sociais, a
música, a arquitetura, o cinema e a filosofia. Se a expressão “modernidade” era estudada,
entre outros aspectos, na sua ambiguidade, uma vez que podia, segundo Haroldo de
CAMPOS (1989, p. 65), ser tomada tanto de um ponto de vista diacrônico, historiográfico-
3 Além dos autores mencionados, vale ressaltar que a importância do seriado Twin Peaks para a história da
televisão norte-americana (e mundial) como marco de transformações estéticas e narrativas foi analisada no
artigo “O mundo estranho de Twin Peaks: um pequeno marco nos seriados de televisão” (FERRARAZ, 2007),
decorrente de paper apresentado no GT Mídia e Entretenimento do XVI Encontro da Compós, em junho de
2007.
3
evolutivo, como através de uma perspectiva sincrônica, aquela que corresponde a uma
poética situada, necessariamente engajada no fazer de uma determinada época, e que
constitui o seu presente em função de uma certa “escolha” ou construção do passado, a
expressão “pós-modernidade” também era buscada desde suas origens linguísticas e usos.
Os estudiosos voltavam ao contexto dos estudos literários hispano-americano, desde o
ano de 1934, e anglo-americano, a partir de 1940. O termo conheceu, a partir dos anos de
1960, uma difusão cada vez maior, primeiro nos EUA, sobretudo, segundo Michael
KÖHLER:
como termo da crítica literária, depois também como crítica da arte e da cultura. É
expressão de uma compreensão transformada da nossa época, e neste sentido opõe-
se ao conceito de Moderno na arte e àquele do que ‘pertence à idade moderna’ na
historiografia em geral. (KÖHLER, 1989, p. 09)
Das primeiras críticas ligadas à arquitetura modernista e o desejo de romper com
aquele estilo e substituir o que consideravam de excesso de cimento por uma nova forma de
pensar o espaço, que escritores e arquitetos nos anos de 1960 optaram pelo uso do termo pós-
moderno. No início dos anos de 1970, o conceito se cristalizou, conforme explica Steven
CONNOR, quando:
afirmações sobre a existência desse fenômeno social e cultural tão heterogêneo
começaram a ganhar força no interior e entre algumas disciplinas acadêmicas e
áreas culturais, na filosofia, na arquitetura, nos estudos sobre cinema e assuntos
literários. (CONNOR, 1989, p. 13)
Foi, no entanto, o texto de Jean-François Lyotard, A Condição Pós-Moderna, de 1979,
que inaugurou um espaço polêmico sobre a temática, principalmente, quando Jurgen
Habermas respondeu a ele dizendo que o pós-moderno corresponderia a uma forma de
neoconservadorismo. De acordo com Eduardo Campos COELHO, a discussão profunda e
acirrada entre franceses e alemães seguiu até:
Albrecht Wellmer, em 1985, distinguir entre um pós-modernismo conservador e um
pós-modernismo libertador e acaba por propor uma espécie de síntese não
necessariamente dialética entre o espírito da modernidade e o sentido afirmativo
pluralista da pós-modernidade. (COELHO, 1989, p. 05)
Os anos de 1980 fizeram, então, a passagem de um pós-moderno ligado a lances
específicos da cultura contemporânea para um debate chamado de pós-moderno filosófico. O
centro do debate estava na crítica da falência do projeto moderno constituído, segundo
Sébastien CHARLES,
4
com base em grandes narrativas, as metanarrativas (sociedade sem classes,
felicidade universal, realização do espírito, emancipação dos indivíduos) que não
funcionam mais e cujo esvaziamento gerou a crise de uma História concebida como
um caminho único e universal. (CHARLES, 2009, p. 19-20)
Embora a polêmica tenha contado com diferentes pensadores que orientaram os
debates referentes à pós-modernidade nos seus aspectos políticos, econômicos e sociais,
como Fredric Jameson e Jean Braudrillard, além do próprio Lyotard, muitos outros autores
participaram das polêmicas até o momento em que, conforme aponta COELHO (1989, p. 05),
as discussões e usos do conceito entraram numa “espécie de cansaço ou impaciência” por
volta de 1986, quando o próprio Lyotard passou a ter maior precaução no uso do termo no
texto A pós-modernidade explicada às crianças, para acabar por recusar o próprio vocábulo
em O inumano. A partir de 1989 propunha-se o abandono puro e simples da palavra em
função dos excessivos equívocos. Proposta de Guy Scarpetta que foi aceita por Omar
CALABRESE (2009), para quem havia pelo menos três acepções, assim resumidas: o pós-
moderno como retorno ao passado na modalidade paródia ou pastiche; o pós-moderno como
fim das grandes narrativas da história; o pós-moderno como revolta contra o Modernismo (e
seu funcionalismo e racionalismo). É claro que cada uma dessas acepções comportava uma
infinidade de outros debates, sendo um deles a necessidade de rever os excessos, as
contradições e as fragilidades conceituais da pós-modernidade, como, por exemplo, a do
desaparecimento das grandes narrativas que bastava aos pós-modernos para falarem da
liquidação do projeto moderno e que não levava em conta toda a complexidade da sociedade
contemporânea. Ou o da marca representativa da modernidade, ou seja, a cultura da novidade
e da mudança que perdeu seu atrativo inicial:
o culto que dedicaram os modernistas à arte praticamente não encontra mais
adeptos, a fórmula ‘fazer da sua vida uma obra de arte’ perdeu seu charme, os
combates vanguardistas de hoje empolgam somente os especialistas da arte
contemporânea. (CHARLES, 2009, p. 20)
Nesse quadro quase de combate entre defensores e opositores do conceito de pós-
modernidade, muitas vozes surgiram e se impuseram nos debates não pela oposição ou
alinhamento, mas porque entenderam a pós-modernidade numa outra perspectiva. Um deles
foi o crítico literário Ihab Hassan, cuja posição particular na discussão sobre a pós-
modernidade foi fundamental para a compreensão do conceito. Segundo CONNOR:
um dos problemas mais evidentes para quem quiser tentar extrair da obra de Hassan
uma definição do que o pós-modernismo poderia ser é a sua resoluta insistência em
5
que o ‘espírito pós-moderno está enrodilhado no grande corpo do modernismo’”.
(CONNOR, 1993, p. 93-94)
No “enrodilhado no grande corpo do modernismo”, na interseção entre moderno e o
pós-moderno, é que podemos pensar o conjunto das obras de David Lynch e, particularmente,
pensar a contemporaneidade de Twin Peaks no contexto da pós-modernidade.
Não se trata de pensar a produção de Lynch a partir de Hassan,4 nem de estabelecer
relações da produção lynchiana com o que possa ser estritamente moderno ou pós-moderno,
porque uma das características de sua obra está exatamente na ausência de hierarquia entre
esses movimentos, mas propor uma análise, ou mesmo uma discussão, de como Lynch traz
essas características para a televisão, e mais especificamente para uma rede aberta, a ABC,
em horário nobre, 21h.
2. O universo lynchiano
É claro que, à primeira vista, a explicação pode parecer simples, ligada ao fato da
formação de Lynch5, e de seu vasto conhecimento das vanguardas artísticas; quando
centramos o olhar para essas ligações, é claro que percebemos afinidades e influências entre
artistas que ele admirava e sua produção, não só artistas plásticos e literários.6 Ou, se vamos
4 Em 1982, Ihab Hassan reviu suas primeiras posições sobre modernismo-pósmodernismo. De acordo com
Steven CONNOR: “The Dismemberment of Orpheus contém um ‘Posfácio’ acrescentado na edição de 1982 que
faz um movimento diferente. Embora continue a afirmar não haver ruptura absoluta entre o modernismo e o
pós-modernismo, já que a ‘história é um palimpsesto e a cultura é permeável ao tempo passado, presente,
futuro’(TPL, 264), Hassan agora tem muito mais confiança para estabelecer os termos que permitam ver o pós-
modernismo como oposto ao modernismo, e não como reformulação dele. (CONNOR, 1993, p. 94)
5 Por volta dos 18 anos, David Lynch decidiu estudar pintura no Corcoran School of Art, em Washington DC, e
acabou dividindo um pequeno apartamento com seu amigo Jack Fisk, que posteriormente acabaria se tornando
um colaborador frequente nos primeiros trabalhos audiovisuais do diretor. Eles moraram por pouco tempo
juntos, pois Lynch mudou-se e foi estudar no Boston Museum School, onde ficou durante um ano. Decidiu
viajar, junto com Fisk, para a Europa, onde pretendiam permanecer por três anos estudando artes plásticas. Ele
tinha 19 anos na época. Lynch conseguira uma carta de recomendação de um professor de pintura do Boston
Museum School e iria estudar com o pintor Oskar Kokoschka. A viagem de Lynch e Fisk, no entanto, durou
apenas 15 dias. De volta aos EUA, Lynch trabalhou em casas de arte, em lojas de molduras, enfim, teve vários
empregos, mas não permanecia muito tempo em nenhum deles. Conseguiu, então, entrar para a Pennsylvania
Academy of Fine Arts, na Filadélfia, em 1965, seguindo conselho de Fisk. Dois anos depois, em 1967, inspirado
por artistas como Francis Bacon e Edward Hopper, Lynch concluiu o curso apresentando uma coleção de
pinturas em que as cores escuras e pesadas predominavam. Sua única decepção era que, infelizmente, seus
quadros, suas imagens não se movimentavam. Daí ao cinema foi um passo.
6 Lynch sempre declarou seu fascínio pelos cinemas de vanguarda, como deixou claro no documentário que
escreveu e narrou para o programa Arena, da rede BBC, em 1987, por ocasião do impacto causado por seu filme
Veludo azul (Blue Velvet, EUA, 1986), na Europa. No documentário, chamado David Lynch Presents Ruth,
6
aos estudos dos movimentos e de suas propostas, também observamos que Lynch, embora
tenha o surrealismo muito presente em sua obra7, escapa à total filiação a essa ou aquela
escola, tanto no tocante aos estilos como às ideias ou mesmo às ideologias que sustentavam
os diferentes movimentos da vanguarda. O que fica evidente na sua produção é a constante
experimentação, característica essencial da modernidade e das vanguardas artísticas.
Pensando nessa característica do movimento modernista em geral e das vanguardas em
especial, pensamos que Twin Peaks pode ser discutido como um exemplo de experimentação
artística em um dos meios de comunicação de massa ao qual “parece não existir um
modernismo pré-existente satisfatório.” (CONNOR, 1993. p. 109)
Aqui está um dos aspectos interessantes e talvez uma das entradas para entendermos
como e por que Twin Peaks revolucionou a forma de fazer programa para TV aberta. Ainda
na esteira de CONNOR:
a TV e o vídeo abrangem, tal como o filme, os dois mundos da cultura de massa da
cultura minoritária de vanguarda. Outro modo de dizê-lo é que o vídeo exemplifica
de maneira particularmente intensa a dicotomia pós-moderna entre estratégias
disruptivas de vanguarda e os processos mediante os quais essas estratégias são
absorvidas e neutralizadas. É a própria familiaridade da TV e a disseminação global
do conhecimento da TV, tanto na produção como no consumo, que fazem essa
questão da transgressão e incorporação ressurgir com tal persistência violenta.
(CONNOR, 1993, p. 129)
Mas, antes de continuarmos nessa discussão, vale resgatar um pouco o histórico e o
enredo do seriado. Em 1990, mesmo ano em que recebeu a Palma de Ouro no Festival de
Cinema de Cannes, por Coração selvagem (Wild at Heart, EUA, 1989), o cineasta David
Lynch criou, para a rede de televisão norte-americana ABC, o seriado Twin Peaks, em
parceria com Mark Frost, que já havia trabalhado na TV nos anos 80, colaborando no seriado
Hill Street Blues (1981-1987). Twin Peaks tornou-se logo um sucesso e uma mania nos
Estados Unidos. Uma pergunta se espalhou rapidamente entre os telespectadores norte-
americanos desde a noite de 08 de abril daquele ano, quando foi ao ar o episódio piloto:
Roses and Revolver (título inspirado no episódio “Ruth Roses and Revolvers” escrito por Man Ray para o filme-
coletânea Dreams that Money Can Buy, dirigido por Hans Richter, em 1947), Lynch citava alguns filmes que
marcaram sua formação artística e acadêmica, feitos por alguns dos mais importantes artistas do século, segundo
ele. Na lista de Lynch estavam Entreato (Entr’acte, França, 1924), de René Clair, Emak Bakia (Reino Unido,
1927), de Man Ray, Sangue de um poeta (Le sang d'un poète, França, 1932), de Jean Cocteau, o próprio Dreams
that Money Can Buy (EUA, 1947), entre outros.
7 As relações entre os trabalhos de Lynch e a estética surrealista foram bastante estudadas e analisadas por
Rogério FERRARAZ (1998; 2001) e apontadas por Eduardo Peñuela CAÑIZAL (2006), entre outros autores.
7
“Quem matou Laura Palmer?”. O seriado teve, em sua primeira temporada, oito episódios,
incluindo o piloto. O sucesso da primeira temporada fez com que o programa tivesse
continuação e os novos episódios começaram a ir ao ar a partir de 30 de setembro daquele
mesmo ano – até ser encerrado em 10 de junho de 1991, no 30º episódio, após perder público
e entrar em declínio de audiência.
A trama se passa na pequena cidade madeireira de Twin Peaks, próxima à fronteira
com o Canadá, onde é encontrada morta, envolta por um saco plástico, a garota mais popular
do lugar: a jovem Laura (Sheryl Lee, que também interpreta a prima de Laura, Maddy8). Um
agente especial do FBI, Dale Cooper (Kyle MacLachlan), é chamado para comandar as
investigações, junto com o xerife local, Harry Truman (Michael Ontkean). A partir daí, tem
início um verdadeiro desenrolar de fatos inusitados e sinistros e acontecimentos fantásticos,
que acabam mostrando que todos ali têm algo a esconder. Assim, para solucionar o
assassinato, o agente terá que descobrir o lado oculto e os segredos dos indivíduos de Twin
Peaks – e também os seus próprios, iniciando um mergulho em sua subconsciência e
inconsciência, marcado formalmente pelas suas gravações em fita cassete a uma suposta (e
desconhecida) Diane. Dale Cooper contará com métodos incomuns, num caso que envolverá
tanto personagens vivos quanto espíritos.
Para se compreender a riqueza de Twin Peaks, deve-se buscar subsídios em diversas
áreas, como, por exemplo, a História da Arte, a do Cinema e a da Televisão. Além disso, é
importante observar também como o seriado liga-se a outras obras de Lynch, o que o insere
num projeto criativo e complexo muito maior, que parece propor uma espécie de quebra-
cabeça audiovisual em que as peças vão sendo espalhadas aos poucos por diversas mídias
diferentes. Todo esse amalgama estético, artístico e narrativo foi um dos diferenciais que
fizeram do seriado objeto de culto e de reflexão e que acabou, inclusive, influenciando
programas posteriores, como Carnivàle (2003-2005), Lost (2004-2010), Bates Motel (2013-),
entre outros.
8 A entrada em cena de Madeleine “Maddy” Ferguson, prima de Laura – que já está morta –, vivida pela mesma
atriz, Sheryl Lee, faz lembrar tanto a reaparição da personagem Laura, interpretada por Gene Tierney, no filme
noir Laura (EUA, 1944), de Otto Preminger, quanto a entrada em cena de Judy, que antes usava o nome
Madeleine, vivida por Kim Novak, em Um corpo que cai (Vertigo, EUA, 1958), de Hitchcock. A escolha de
Lynch de usar o mesmo nome para sua personagem é uma espécie de homenagem a Hitchcock, um de seus
cineastas de referência – vale lembrar que Ferguson era também o sobrenome de Scottie, o personagem de
James Stewart, amante de Madeleine/Judy, no mesmo filme.
8
Twin Peaks é parte da construção de uma obra maior, lynchiana.9 Trata-se de um
conjunto de produções que estabelecem uma espécie de jogo, interno com as referências, e
externo, com a cultura participativa (dos fãs) e a chamada inteligência coletiva na sociedade
emergente. A importância do seriado para esse novo contexto da cultura midiática foi
apontada por Henry Jenkins em nota de rodapé de seu livro Cultura da convergência (2008),
denominada “Flashback de Twin Peaks”. Tratava-se, conforme Jenkins, do primeiro
fenômeno da TV ligado às possibilidades que a era da internet criava.
A construção de um universo próprio e particular é uma das características da
chamada obra de culto, que pode, sem dúvida, ser aplicada aos trabalhos de Lynch. Na
introdução do livro Full of Secrets: Critical Approaches to Twin Peaks (1995), que organizou
sobre o seriado, David Lavery recorre às colocações de Umberto Eco sobre o assunto. Uma
das regras, apontadas por Eco como um requisito para que uma obra se torne cultuada, é
justamente sua capacidade de:
proporcionar um mundo totalmente equipado para que seus fãs possam citar
personagens e episódios como se fossem aspectos do mundo sectário privativo dos
próprios fãs, um mundo sobre o qual se pode fazer testes e jogos de trivia para que
os adeptos dos segredos reconheçam, uns através dos outros, uma experiência
compartilhada. (ECO Apud LAVERY, 1995, p. 7 – tradução própria)
Twin Peaks talvez seja a peça central desse “mundo próprio” criado por David Lynch.
Ele e Mark Frost acabaram também alimentando a paixão dos fanáticos seguidores, lançando
um “guia turístico” chamado Welcome to Twin Peaks (LYNCH; FROST; WURMAN, 1991),
o livro O diário secreto de Laura Palmer (LYNCH, 1996), escrito por Jennifer Lynch, filha
do diretor, e Dale Cooper: minha vida, minhas gravações (FROST, 1991), as transcrições das
fitas cassete do agente Dale Cooper, escritas por Scott Frost, um dos roteiristas de Twin
Peaks. Essa estratégia, aliada ao fato de esse “mundo” ter sido exibido pela televisão, tornou
o seriado justamente objeto de culto: por muitos anos foi editada uma revista sobre o
programa, chamada Wrapped in Plastic – frase dita por Pete Martell (Jack Nance), no início
9 Se ficarmos apenas com os longas dirigidos por Lynch para o cinema, até a exibição de Twin Peaks na
televisão, temos: Eraserhead (EUA, 1977), O homem elefante (The Elephant Man, EUA, 1980), Duna (Dune,
EUA, 1984), Veludo azul (Blue Velvet, EUA, 1986) e Coração selvagem (Wild at Heart, EUA, 1990). Após a
exibição do seriado: Twin Peaks – Os últimos dias de Laura Palmer (Twin Peaks – Fire Walk with Me, EUA,
1992), A estrada perdida (Lost Highway, EUA, 1997), História real (The Straight Story, EUA, 1999), Cidade
dos sonhos (Mulholland Dr., EUA, 2001) e Império dos sonhos (Inland Empire, EUA, 2006). Vale ressaltar que
o longa Twin Peaks – Os últimos dias de Laura Palmer, filme posterior ao programa televisivo, conta com uma
trama que se passa antes dos acontecimentos do enredo vistos no seriado. Essa estratégia também compôs o
cardápio (proto)transmidiático do universo ficcional Twin Peaks.
9
do episódio piloto, quando ele liga para a delegacia para afirmar que encontrou o corpo de
uma garota morta envolta em um saco plástico, que vem a ser Laura Palmer; são feitas
convenções anuais de fãs de Twin Peaks, na cidade onde a obra foi gravada, em que atores,
roteiristas e diretores da série são convidados para dar conferências; até hoje, o seriado é
citado e/ou homenageado por vários programas televisivos, como o seriado Psych (2006-) e o
desenho animado Scooby-Doo! Mystery Incorporated (2010-), entre outros.
Essa forte relação que se criou entre o seriado e os fãs é justamente a questão central
daquela discussão iniciada por Henry Jenkins.10
Naquele texto, Jenkins relata como foi sua
introdução à internet e às comunidades de fãs através da alt.tv.twinpeaks, em 1991, e o que
representou o seriado tanto para a televisão aberta como para a entrada da sociedade e da
cultura na era da internet e os debates sobre as comunidades do conhecimento, uma nova
discussão que começava na época.11
Para Jenkins, porém, Twin Peaks não era importante apenas pela formação de grupos
de discussão e fãs que criavam listas e se articulavam para trocar informações pela rede. Para
o autor, o importante era o fato de a lista funcionar como um espaço onde as pessoas podiam,
juntas, colher as pistas e examinar as especulações sobre o gancho central da narrativa –
quem matou Laura Palmer? Importante também porque Twin Peaks era a obra perfeita para
uma comunidade baseada no computador, combinando a complexidade narrativa de um
mistério com os complexos relacionamentos de personagens de uma soap opera,12
e uma
10
Jenkins já havia discutido o caso de Twin Peaks em texto anterior, “‘Do You Enjoy Making the Rest of Us
Feel Stupid?’: alt.tv.twinpeaks, the Trickster Author, and Viewer Mastery”, publicado no livro Full of Secrets:
Critical Approaches to Twin Peaks (LAVERY, 1995).
11 Sobre este aspecto específico, do seriado Twin Peaks servir como uma espécie de embrião do que mais tarde
se configuraria como narrativas transmidiáticas, os autores deste paper escreveram o artigo “Para além dos
episódios, diários e fitas cassetes: a (proto)transmidiação em Twin Peaks, de David Lynch e Mark Frost”, para o
livro eletrônico (em preparação) Formação de Professores: pedagogia, psicologia e comunicação integrados
pela Narrativa Transmídia (título provisório), que deverá ser lançado ainda em 2014.
12 Expressão em inglês que designa esse tipo de narrativa seriada televisiva nos Estados Unidos, que se
aproxima um pouco do formato da telenovela. Curioso observar que dentro do universo ficcional de Twin Peaks,
os personagens também acompanhavam a trama de uma soap opera chamada Invitation to Love, que acabava
dialogando com os acontecimentos amorosos, sexuais e criminosos da própria cidade de Twin Peaks, em uma
espécie de construção metalinguística. Além disso, vale ressaltar que há uma recriação/homenagem no final da
primeira temporada de Twin Peaks, quando o agente Dale Cooper leva um tiro na porta de seu quarto no hotel:
trata-se de uma espécie de citação/homenagem ao final da terceira temporada da soap opera Dallas (EUA,
1978-1991), que apresentou um dos ganchos mais surpreendentes da televisão mundial, elevando o suspense ao
máximo com o protagonista da história, J.R. Ewing (Larry Hagman), levando um tiro na última cena (não se
sabe quem atirou, por qual motivo, o que acontece com J.R., se vive ou se morre, entre outras perguntas que
ficam no ar, até o início da quarta temporada).
10
estrutura serializada que deixava muita coisa não resolvida e sujeita a debates e,
principalmente, pela descoberta do que era trabalhar em grupo, com a força conjunta de
milhares de pessoas tentando desvendar o que viam na televisão.
Enquanto a comunidade on-line estava fascinada com a descoberta da força do
trabalho em grupo e com as possibilidades apresentadas pelo videocassete para o estudo
detalhado da trama, dois acontecimentos colocaram o seriado à prova, segundo Jenkins: de
um lado os críticos reclamavam que o seriado estava tão complicado a ponto de se tornar
incompreensível à medida que a temporada avançava; de outro, os fãs reclamavam que Twin
Peaks estava se tornando muito óbvio.
3. A contemporaneidade de/em Twin Peaks
Twin Peaks, portanto, ao mesmo tempo em que é parte de uma obra maior, lynchiana,
é também uma produção dos anos 1990, sendo, dessa forma, parte de um conjunto de
trabalhos que compunham a produção e as discussões sobre a chamada pós-modernidade ou
da modernidade tardia, como querem alguns teóricos, bem como parte da nova era da
internet e da emergência de uma sociedade em que as experiências on line e a realidade
virtual passaram a fazer parte de nossa vida e realidade. Nesse novo contexto, outros debates
e conceitos se impuseram para que pudéssemos nos entender na atual conjuntura.
De acordo com Vicente GOSCIOLA, apoiando-se em estudos de Hans Ulrich
Gumbrecht:
três conceitos podem nos auxiliar a compreender essa realidade. O conceito da
destemporalização que nos situa na diluição do passado presente e futuro; o de
destotalização que reconhece o fim das teorias que tentam individualmente explicar
tudo, da globalização e dos etnocentrismos presentes em qualquer tipo de análise; e
o de desreferencialização que nos explica a perda de referências, em que a
objetividade na representação do mundo exterior é abrandada. (GOSCIOLA, 2012,
p. 07)
Se acompanharmos o texto de Gosciola sobre a narrativa transmídia e os três
conceitos expostos e pensarmos em Twin Peaks dentro desses conceitos, podemos reconhecê-
los em vários aspectos e momentos do seriado.
Em Twin Peaks, embora não haja propriamente a diluição total dos tempos, eles
aparecem embaralhados. Lynch trabalha com a simultaneidade dos tempos históricos, os três
tempos (passado, presente e futuro) concomitantemente, reforçando uma vez mais uma
11
ligação com o surrealismo, pois essa era uma das características daquela estética
(ressignificada na contemporaneidade). Trata-se de uma forma de mostrar também que
mesmo sabendo que a história tem uma linearidade, pois tem começo, meio e fim (ainda mais
se tratando de uma narrativa seriada ancorada nos moldes da soap opera e dos seriados de
mistério), a linearidade é atravessada por outros tempos narrativos.
Já a destotalização pode ser percebida desde o enredo até as escolhas dramatúrgicas e
narrativas. Como resume FERRARAZ ao descrever o seriado:
Uma premissa intrigante, que serve como ponto de partida para um seriado marcado
por diversas tramas que se entrelaçam. Vários personagens centrais, cada um com
uma história pregressa secreta e repleta de passagens obscuras que, aos poucos, vai
sendo revelada. Acontecimentos estranhos, bizarros, que se sucedem, envolvendo
praticamente todos os personagens. Perguntas sem respostas; poucas certezas,
muitas dúvidas. (FERRARAZ, 2007, p. 1)
Twin Peaks trazia diversas tramas e personagens principais, o que favorecia os
desdobramentos da história em múltiplas narrativas complementares, oferecidas nas mais
diferentes mídias e telas. Essas relações com a narrativa transmídia e os conceitos de
Gumbrecht (Apud GOSCIOLA, 2012) são exemplos não só da contemporaneidade do
seriado, mas uma marca característica da obra de Lynch, uma obra aberta, em que as questões
podem ou não ser solucionadas, parte delas são e outras continuam em aberto.
Quanto à desreferencialização, quanto à perda de referências e de objetividade na
representação do mundo em Lynch não se relaciona não apenas à noção de falta de um
mundo concreto, ideia diretamente ligada às concepções de realidade virtual e comunidades
on line, mas é um dos universos sobre o qual Lynch constrói seus trabalhos. Lynch realiza
obras audiovisuais limítrofes, que se encontram nas fronteiras do ilusionismo e do
antiilusionismo, da narrativa clássica e das propostas de vanguarda, do cinema comercial e do
filme experimental. Ele tanto explora as convenções narrativas quanto promove uma
renovação da linguagem audiovisual.
Lynch também apresenta, em suas obras, experimentações com a fragmentação
da língua, de forma análoga ao que ele faz com a própria linguagem audiovisual. No
quadro So This Is Love (1992), observa-se a utilização das letras maiúsculas separadas
formando o título da obra, desenhadas como se fossem datilografadas em pequenos
papéis recortados. Um motivo linguístico recorrente em muitos quadros de Lynch, como
Ants In My House (1990) ou Red Headed Party Doll (1990), foi também utilizado em
12
obras audiovisuais, desde um de seus primeiros curtas, The Alphabet (1968), até, e
principalmente, em Twin Peaks e em Twin Peaks – Os últimos dias de Laura Palmer,
em que o espírito assassino BOB (Frank Silva), cujo nome original era Robertson,
insere as letras R, B, e T (RoBerTson) embaixo das unhas de suas vítimas, numa
macabra e narcísica forma de marcar a autoria de seus crimes.
Nas obras de Lynch, acontece um retorno ao passado, que aparece quase sempre
idealizado – mas uma idealização que parece falsa, envolvida em uma atmosfera quase
sempre sinistra, acabando por causar angústia e inquietação. Assim ocorre também no
seriado Twin Peaks. Lynch é fascinado pelos anos de 1950, e isso fica evidente em suas
obras. No entanto, a forma com que esse passado é inserido na diegese causa
estranhamento, pois os elementos típicos daquele tempo idealizado são utilizados fora
de seu contexto. As histórias, geralmente, passam-se no tempo presente, mas as
paisagens imagéticas e sonoras não condizem com ele, pois fazem alusão a uma época
passada.
Essa verdadeira obsessão de Lynch pelos anos 1950 não é negada por ele, como
mostra nessa entrevista a Ana Maria BAHIANA:
Sou louco pelos anos 50 e tudo o que se refere aos anos 50. Mas, para mim,
quando eu me refiro aos anos 50, tanto em imagem quanto em som, estou me
referindo na verdade a uma lembrança dos anos 50 (...) Uma coisa nostálgica.
(BAHIANA, 1996, p. 42)
Essa mistura de universos artísticos e estilísticos e de ícones de épocas distintas
– com destaque aos anos 50 na obra de Lynch –, numa visão ao mesmo tempo
nostálgica e crítica, pode ser vista, conforme vimos, como uma das características da
chamada arte pós-moderna.
É interessante observar a forma como o próprio Lynch, em junho de 1995,
quando começou a trabalhar no roteiro de A estrada perdida (Lost Highway, EUA,
1997), descreveu o que viria a ser o filme, evidenciando a mistura de gêneros e o jogo
com a questão temporal:
Um filme de horror noir do século 21.
Uma investigação gráfica sobre crises de identidade paralelas.
Um mundo onde o tempo está perigosamente fora de controle.
Um passeio aterrorizante pela estrada perdida.
David Lynch
Junho de 1995
(LYNCH, GIFFORD, 1997, p. 3 – tradução própria)
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A mistura de gêneros observada em A estrada perdida e descri ta pelo
próprio Lynch não é exclusiva dessa obra. Em praticamente todos os seus
filmes e particularmente em Twin Peaks , dada a natureza do programa
televisivo, Lynch trabalha com temas e características de gêneros variados,
adicionando, ainda, elementos intertextuais, como referências aos seus outros
trabalhos e citações a filmes de outros cineastas e a programas de TV.
A apresentação que Michael Atkinson faz de Veludo azul (mas que
poderia muito bem ser sobre Twin Peaks também) atenta para essa
complexidade das obras de David Lynch:
um fi lme de es túdio ho llywoodiano da década de 80 tão radical ,
vis ionár io e cabalí st i co quanto qualquer produção de vanguarda ;
um fi lme cu lt mister iosamente simból ico e sub terrâneo, que apesar
dis to conta com estrelas reconhecíveis e dist r ibuição ampla ; um
‘quadro de gênero’ com a ambiência de um temível e
hipere laborado pesadelo ; um ‘fi lm e de ar te ’ americano fei to pelo
único diretor conceituado de ‘fi lme de ar te’ de Hollywood.
(ATKINSON, 2002, p . 11)
É interessante observar que Veludo azul , com frequência, foi apontado
como exemplo de filme pós-moderno. Ao ponto de autores como Arthur
KROKER e Michael DORLAND afirmarem que “ Veludo azul é a imagem
cinemática perfeita para cultura pós -moderna” (KROKER; DORLAND, 1993,
p. 11 – tradução própria ), apontando ainda que: “Veludo azul é o mundo pós-
moderno. Aqui, apenas os predadores, como Frank [personagem de Dennis
Hopper], tem energia e podem fazer as coisas acontecerem.” (KROKER;
DORLAND, 1993, p. 11 – tradução própria) Não por acaso, Frank será
comparado ao assassino BOB (Frank Silva) de Twin Peaks por Chris Rodley,
no livro de entrevista que fez com Lynch em 1997 (LYNCH & RODLEY,
1997, p. 144).
Sobre essas personagens extremadas e complexas (muitas vezes
aproximando-se da fantasmagórica aparição do duplo, o doppelgänger) que
habitam o universo lynchiano ,13
vale ressaltar o que o próprio Lynch falou
13
O caso de BOB e Dale Cooper em Twin Peaks talvez seja o mais intrigante, pois eles são, respectivamente, o
vilão e o herói do programa. No entanto, são opostos que se completam. Nada mais pertinente que o seriado
terminar com o espírito de BOB se apossando do duplo de Cooper. No trigésimo e último episódio, dirigido por
14
sobre um de seus quadros. Na tela I See Myself (1992), o artista mostra duas
figuras de mesmo formato e cores diferentes, divididas por uma linha
diagonal, funcionando como uma espécie de fronteira especular entre elas.
Sobre essa tela, Lynch, respondendo a Chris Rodley, explica que:
[DL] . . . todos nós temos, pelo menos, do is lados. Uma das co isas
que eu ouvi é que a nossa viagem pela vida é ganhar uma mente
divina através do conhecimento e da experiênc ia entre opostos
combinados. E essa é a nossa vi agem. O mundo em que vivemos é
um mundo de opostos. E concil iar essas duas coisas opostas é o
truque.
[CR] Eles são opostos, no sent ido de que um é bom e o out ro é
mau?
[DL] Bem, tem que ser desse jei to . Eu não sei por que [ r isos] ( . . . )
Eles são opostos, você sabe , i sso é tudo. E, então, isso signi fica
que há algo no meio. E esse meio não é um ajus te , é , na verdade , o
poder de ambos. (LYNCH, RODLEY, 1999, p . 23 – t radução
própria )
As produções de Lynch, incluindo Twin Peaks , juntam o velho e o
novo, o ordinário e o extraordinário, o banal e o surreal , o narrativo e o
experimental, a emoção e a ironia crítica, o moderno e o pós -moderno, dando
a todos eles o mesmo grau de importância. Lynch não opta por um ou outro,
pois ele acredita que a força expressiva das coisas encontra -se na zona de
interseção, numa tensão (criativa) permanente. Afinal , na contemporaneidade
lynchiana , é no meio que está o poder.
Referências
BAHIANA, Ana Maria. A Luz da Lente: conversas com 12 cineastas contemporâneos. São Paulo: Globo,
1996.
Lynch e escrito por Mark Frost, Harley Peyton e Robert Engels (este último seria, posteriormente, autor, junto
com Lynch, do roteiro de Twin Peaks – Os últimos dias de Laura Palmer), Cooper entra no Black Lodge (uma
espécie de salão de um outro mundo habitado por personagens bizarros e atormentados que, possivelmente, são
espíritos), para tentar salvar sua namorada, Annie Blackburn (Heather Graham), levada para lá por Windom
Earle (Kenneth Welsh), inimigo do agente do FBI. Numa longa, bela e memorável sequência, Cooper entra e sai
de diversos quartos, atravessando as cortinas vermelhas que os separam e encontrando diversos personagens da
estória. Num desses momentos, o anão, ou o Man from Another Place (Michael J. Anderson) – que parece ser o
comandante daquele lugar – anuncia: “Doppelgänger!” Vê-se, então, surgir outro Cooper, o seu duplo, que passa
a perseguir o primeiro. É o doppelgänger que, ao final, sai do Black Lodge com Annie e é resgatado pelo xerife
Truman (Michael Ontkean), que não percebe tratar-se de um duplo.
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