instituto agronÔmico curso de pÓs-graduaÇÃo em … · de tese de doutorado o aprofundamento das...
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INSTITUTO AGRONMICO
CURSO DE PS-GRADUAO EM AGRICULTURA TROPICAL E SUB-TROPICAL
ESTRUTURAO GENTICA DO GERMOPLASMA DE MANDIOCA ATRAVS DE INFORMAES
COMPARATIVAS ENTRE ESTUDOS BIOLGICOS E ANTROPOLGICOS
JOO MANOEL SANSEVERINO VERGANI GALERA
Orientadora: PqC. Dra. Teresa Losada Valle
Dissertao submetida como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Agricultura Tropical e Subtropical rea de Concentrao em Gentica, Melhoramento Vegetal e Biotecnologia.
Campinas, SP Janeiro 2008
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Ficha elaborada pela bibliotecria do Ncleo de Informao e Documentao do Instituto Agronmico G635e Galera, Joo Manoel Sanseverino Vergani. Estruturao gentica do germoplasma de mandioca atravs de informaes comparativas entre estudos biolgicos e antropolgicos / Joo Manoel Sanseverino Vergani Galera Campinas, 2008. 84f. Orientadora: Teresa Losada Valle Dissertao (Mestrado) Agricultura Tropical e Subtropical Instituto Agronmico 1. Mandioca, 2. Gentica 3. Etnobotnica I. Valle, Teresa Losada
II. Ttulo CDD. 633.495
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Dedico cada palavra desse trabalho a meu
pai. Espero que, de onde estiver, ele possa
sentir o peso da minha imensa gratido.
Apesar da grande saudade, sinto-o vivo no
incentivo e apoio que sempre dedicou para
que trilhssemos o caminho da sabedoria e
da justia.
Pai, saiba que esse trabalho s o incio dos
resultados de toda sua dedicao.
Ofereo esse trabalho s naes indgenas e todo seu conhecimento agrcola.
Aos demais povos que formaram esse pas: europeus, africanos, asiticos.
E toda sua conseqente miscigenao cultural
que comps a fascinante nao brasileira.
Os nossos mortos morrem pela segunda vez quando ns os esquecemos
(George Rodenbach)
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AGRADECIMENTOS
- Em primeiro lugar e com todo o destaque que merece, agradeo PqC. Dra. Teresa
Losada Valle. Primeiramente pela idia e incentivo no desenvolvimento desse
projeto e, segundo, por sempre ter defendido a continuao do trabalho. Aps todos
os percalos, seguiu sempre acreditando na importncia da unio de reas do
conhecimento to distantes, mas, ao mesmo tempo, fundamentalmente
complementares em uma cultura como a mandioca. E, enfim, por toda dedicao
desprendida nesses trs anos em que trabalhamos juntos, ao longo dos quais
desenvolvemos uma relao de amizade. Seu profissionalismo e amor pelo trabalho
foram grandes incentivadores;
- minha famlia que sempre me apoiou em todas as etapas. Aos meus pais,
Terezinha e Waldyr, que investiram seus esforos na nossa formao. Aos meus
irmos, cunhados, sobrinhos, avs, tios, que mesmo distncia estavam sempre
presentes. Ao meu irmo Jos Diogo, que mora na saudade;
- Aos pesquisadores da Seo de Razes e Tubrculos, Hilrio de Miranda Filho e Dr.
Jos Carlos Feltran, pela ajuda e amizade;
- Dra. Elizabeth Ann Veasey, pela orientao durante a graduao e por quem
conheci a Dra. Teresa;
- Ao antroplogo Dr. Mauro Barbosa de Almeida, pela ajuda inicial durante a
elaborao do projeto;
- Dra. Gilda Santos Mhlen, cujos trabalhos e informaes foram essenciais para a
pesquisa;
- Aos funcionrios e funcionrias das bibliotecas e instituies onde realizei as
pesquisas, pela ateno e auxlio;
- Aos professores da rea de concentrao em Melhoramento Gentico Vegetal, pelos
conhecimentos adquiridos;
- Aos meus colegas da rea de concentrao em Melhoramento Vegetal da PG-IAC,
pelos anos de convivncia;
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- Aos funcionrios da Ps-Graduao do Instituto Agronmico, por toda ajuda ao
longo desses dois anos;
- s pesquisadoras Dra. Maria Imaculada Zucchi, Dra. Vera Quecini e Dra. Luciana
Aparecida Carlini Garcia, no s pelas caronas, mas principalmente pela amizade
durante o trajeto;
- Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo FAPESP, pelo
financiamento do projeto;
- Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CAPES, pela
bolsa de Mestrado;
- Aos meus amigos que estiveram presentes nesses anos, pelo companheirismo, apoio
nos dias difceis e, principalmente, pelos bons momentos que vivemos;
- E, finalmente, aos cronistas, viajantes, antroplogos e pesquisadores cujas obras
foram fundamentais para a realizao desse projeto.
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BIOGRAFIA
Joo Manoel Sanseverino Vergani Galera Nascido em Ponta Grossa, no Estado do Paran, em 12 de janeiro de 1982, caula de quatro filhos de Waldyr Vergani Galera, engenheiro agrnomo, e Maria Terezinha Sanseverino Vergani Galera, historiadora. Realizou o ensino fundamental e parte do ensino mdio no Colgio Neo Mster, em Ponta Grossa. No ano de 1998 mudou-se para Curitiba com o objetivo de completar o ensino mdio no Colgio Positivo. Foi aprovado para o curso de Engenharia Agronmica no vestibular de 2000 pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, ESALQ/USP, em Piracicaba, Estado de So Paulo. Durante a graduao realizou dois estgios no Departamento de Gentica: entre 2001 e 2002, no Laboratrio de Gentica Fisiolgica sob orientao do Prof. Dr. Carlos Alberto Labate, e de 2002 a 2004, no Laboratrio de Ecologia Evolutiva e Gentica Aplicada sob orientao da Profa. Dra. Elizabeth Ann Veasey. Com essa professora tambm realizou sua iniciao cientifica em um projeto financiado pela FAPESP (2003-2004) e um Estgio Supervisionado em Agricultura Urbana (2004). No ano de 2002 participou do Programa de treinamento para estagirios de nvel superior na EMBRAPA- Mandioca e Fruticultura Tropical, em Cruz das Almas-BA. Em 2003, desenvolveu um trabalho voluntrio no Lar Betel, em Piracicaba, e um projeto de resgate da histria oral desses idosos. Realizou trabalho de concluso de curso na Holanda, durante o primeiro semestre de 2004, em empresa produtora de plantas ornamentais. Graduou-se como engenheiro agrnomo no final 2004. No ano de 2005 foi bolsista do CNPq no programa PROBIO, desenvolvendo projeto de recursos genticos de mandioca na regio Centro-sul do Brasil, sob a orientao da PqC. Dra. Teresa Losada Valle, no Instituto Agronmico - IAC. Foi aprovado em primeiro lugar no processo de seleo do curso de mestrado em Agricultura Tropical e Subtropical do Instituto Agronmico para a rea de concentrao de Gentica, Melhoramento Vegetal e Biotecnologia, no binio 2006-2008, sendo bolsista da CAPES. Desenvolveu a dissertao de mestrado dentro do projeto Estudos comparativos de informaes etnobotnicas e biolgicas em mandioca (Manihot esculenta Crantz) visando uma possvel estruturao gentica da espcie financiado pela FAPESP, aprovada em 25 de maro de 2008. Ainda em 2008, ingressou no curso Antropologia de Iberoamrica na Universidad de Salamanca, na Espanha, sendo tema de tese de doutorado o aprofundamento das pesquisas sobre informaes antropolgicas como fonte de informaes para a biologia, em especial a gentica, usando a mandioca como modelo de estudos. Previso de termino: 2012.
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SUMRIO
NDICE DE FIGURAS ................................................................................................... ix
LISTA DE ANEXOS ....................................................................................................... x
RESUMO ........................................................................................................................ xi
ABSTRACT .................................................................................................................. xiii
1 INTRODUO ............................................................................................................. 1
2 REVISO DE LITERATURA ..................................................................................... 3
2.1 A Agricultura e a Domesticao de Plantas na Amrica ............................................ 3
2.2 A Mandioca ................................................................................................................ 7
2.3 Os Cronistas .............................................................................................................. 12
2.4 Diversidade Cultural e Diversidade Gentica .......................................................... 19
2.5 A Heterose ................................................................................................................ 23
3 MATERIAL E MTODOS ......................................................................................... 25
3.1 As Fontes de Dados .................................................................................................. 25
3.2 Compilao das Informaes.................................................................................... 29
4 RESULTADOS E DISCUSSO ................................................................................ 30
4.1 Mandiocas e Aipins Literatura Antropolgica....................................................... 31
4.2 Mandiocas e Aipins Seus Subprodutos .................................................................. 32
4.3 A Mandioca Doce ou Manicueira ............................................................................ 38
4.4 Diferenas de Variedades e Manejo ......................................................................... 40
4.5 Etimologia e Taxonomia .......................................................................................... 43
4.6 Complexo Milho/Mandioca e a Distribuio Geogrfica......................................... 46
4.7 O Critrio de Escolha ............................................................................................... 49
4.8 Estudos Biolgicos ................................................................................................... 54
4.8.1 Os glicosdeos cianognicos .................................................................................. 54
4.8.2 O sabor amargo ...................................................................................................... 55
4.8.3 Marcadores moleculares ........................................................................................ 56
4.9 Compilao das Informaes.................................................................................... 60
5 CONCLUSES ........................................................................................................... 61
6 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................................ 62
7 ANEXOS ..................................................................................................................... 73
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NDICE DE FIGURAS
Figura 1 - Representao de um cultivador de mandioca do perodo de Nazca no Peru .................................................................................................. 05
Figura 2 - Aquarela de Vicente do Rego Monteiro O Nascimento de Mani, de 1921 ...................................................................................................... 07
Figura 3 - Fabricao de farinha de mandioca, uma pintura de Johann Moritz Rugendas .............................................................................................. 11
Figura 4 - Iconografia presente na obra original de Hans Staden, de 1557, representando uma aldeia indgena em Ubatuba. ................................ 15
Figura 5 - Ilustrao de plantas de mandioca presente no livro Histria dos animais e rvores do Maranho, de Frei Cristvo de Lisboa, de 1624 a 1627 .......................................................................................... 16
Figura 6 - Cesta utilizada para a farinha de mandioca. Ilustrao de Jean Baptiste Debret. .................................................................................... 33
Figura 7 - Ilustrao de um tipiti feita por Jean Baptiste Debret. ......................... 33
Figura 8 - Ilustrao de uma planta de mandioca mansa feita por Jean Baptiste Debret. .................................................................................................. 36
Figura 9 - Mulheres na preparao do cauim, ilustrao de Theodore de Bry. ... 37
Figura 10 - Ilustraes botnicas das espcies Manihot aipi e M. utilissima descritas por Johann E. Pohl, em 1827 ................................................. 44
Figura 11 - Grfico de disperso de 623 variedades de mandioca de diferentes regies do Brasil ................................................................................... 59
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LISTA DE ANEXOS Anexo I - Mapa da distribuio do tipiti pela Amrica do Sul, de MTRAUX
(1928) ................................................................................................... 73
Anexo II - Mapa da distribuio das mandiocas bravas e mansas, de NORDENSKILD (1924) ................................................................... 74
Anexo III - Mapa da distribuio dos grupos de mandioca: bravas, mansas e doces ..................................................................................................... 75
Anexo IV - Mapa da distribuio dos grupos de mandioca e suas reas correspondentes .................................................................................... 76
Anexo V - Principais produtos derivados da mandioca ......................................... 77
Anexo VI - Dendrograma com 137 amostras de mandiocas do Vale do Ribeira .... 84
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GALERA, Joo Manoel Sanseverino Vergani. Estruturao gentica do germoplasma de mandioca atravs de informaes comparativas entre estudos biolgicos e antropolgicos. 2008. 84f. Dissertao (Mestrado em Gentica, Melhoramento Vegetal e Biotecnologia) Ps-Graduao IAC.
RESUMO
A mandioca vem sendo cultivada h milhares de anos pelos amerndios, os quais
desenvolveram diversas tcnicas de produo e processamento dessa planta to peculiar.
Tambm foram os responsveis pela criao de distintos grupos. Aps a chegada dos
portugueses ao Brasil, em 1500, diversos viajantes e cronistas percorreram o territrio
descrevendo os costumes amerndios, deixando, com isso, um cabedal de informaes.
Dentre os produtos agrcolas mais descritos nessas referncias est a mandioca, sendo
possvel, a partir delas, identificar seus agrupamentos definidos pelos indgenas.
Portanto, com o objetivo de identificar esses grupos genticos de mandioca, foi
realizada uma comparao entre a literatura de base antropolgica, com as recentes
pesquisas realizadas na rea da Biologia e Gentica. Nas descries dos cronistas foram
encontrados trs grupos de mandioca: bravas, mansas e doces. Porm, predominam as
descries sobre as duas primeiras. A principal diferena entre elas est no sabor: as
mandiocas bravas so amargas e de gosto desagradvel e as mansas tm sabor
caracterstico, adocicado e agradvel ao paladar. O modo de consumo conseqncia
do sabor, as amargas so consumidas sempre aps algum processamento. J as mansas
podem ser simplesmente cozidas, assadas, cruas, ou ento processadas. Outra diferena
est na preferncia alimentar dos agrupamentos humanos: alguns optavam pelas
mandiocas bravas, enquanto outros pelas mansas. Isso influenciou na distribuio
geogrfica bem definida de cada grupo. Usualmente as mandiocas bravas estavam
presentes em locais com baixa segurana alimentar, por apresentarem certas vantagens
em relao proteo contra o ataque de herbvoros. J as mandiocas mansas estavam
normalmente subordinadas ao milho e presentes em locais com maior diversidade
alimentar. O grupo das mandiocas doces situava-se na regio amaznica e era
denominada de manicueira, diferenciada pelos altos teores de gua e acares livres em
suas razes. Estudos mais recentes demonstraram que os teores de glicosdeos
cianognicos presente na polpa das razes esto associados ao seu sabor amargo e so
altamente txicos por liberarem o radical cianeto (CN-). Apesar de no existirem
diferenas morfolgicas entre os grupos, trabalhos envolvendo marcadores moleculares
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identificaram uma distino entre as bravas e mansas. Portanto, essas pesquisas
corroboram a existncia de grupos distintos de mandioca, que j eram estabelecidos
pelos amerndios, provavelmente devido a uma seleo diferenciada para cada um deles.
A partir desse trabalho tambm possvel inferir sobre a utilizao das bibliografias
antropolgicas como uma ferramenta que pode ser eficientemente empregada em
pesquisas de diversidade gentica.
Palavras-chave: Manihot esculenta, grupos genticos, etnobotnica, diversidade.
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GALERA, Joo Manoel Sanseverino Vergani. Genetic structure of the cassava germplasm by comparative information between biological and anthropological studies. 2008. 84f. Dissertao (Mestrado em Gentica, Melhoramento Vegetal e Biotecnologia) Ps-Graduao IAC.
ABSTRACT
Cassava has been grown for thousands of years by the Amerindians, who have
developed several techniques for both producing and processing such a peculiar crop.
They were also responsible for the creation of distinguished groups. After the arrival of
the Portuguese to Brazil, in 1500, various pilgrims and chroniclers traveled across the
territory describing the Amerindian behaviors, leaving an inventory of information.
Among the agricultural products most described on these references is the cassava,
making it possible to identify its groupings as defined by the natives. Therefore, with
the purpose of identifying these genetic groups of cassava, a comparison between
literature of anthropological basis and the recent researches carried on the fields of
Biology and Genetic was made. On the descriptions made by the chroniclers three
groups of cassava were found: bitter, cool and sweet. However, descriptions about the
first two kinds prevail. The main difference among them is the flavour: the bitter
cassavas are bitter and taste unpleasant and the cool have a distinctive, sugary and
pleasant taste. The way of consumption is an outcome of the flavour; the bitter type is
always consumed after processing of some sort. The cool types, though, can be simply
boiled, baked, raw or else processed. Another difference lies on the food preferences of
the human groupings: while some opted for the bitter cassavas, others chose the cool.
This has influenced the well defined geographic distribution of each group. The bitter
cassavas were usually found in places which had low food security, due to the fact that
they present certain advantages in relation to attacks of herbivores. The cool cassavas on
the other hand were usually dependent on the corn crops and found in places which
presented larger food diversity. The group of sweet cassavas was found in the Amazon
region and was identified as manicueira, differentiated by the high contents of free
water and sugars in its roots. More recent studies have demonstrated that the contents of
cyanogenic glycosides present in the pulp of the roots are associated with its bitter
flavour and are highly toxic due to the releasing of the cyanide radical (CN-). Although
there arent morphologic differences among the groups, works involving molecular
markers have established a distinction between the bitter and the cool types. Therefore,
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xiv
these researches testify the existence of distinct groups of cassava, which were already
stated by the Amerindians, probably due to a differentiated selection for each of them.
As of this work it is also possible to infer about the use of the anthropological
bibliographies as a tool which can efficiently be used in genetic diversity researches.
Key words: Manihot esculenta, genetic groups, ethnobotanic, diversity.
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1 INTRODUO
D-se nesta terra outra casta de mandioca, a que o gentio chama aipins, cujas
razes so da feio da mesma mandioca, a rama e a folha so da mesma maneira, sem
haver diferena, e planta-se de mistura com a mesma mandioca, e para se recolherem
estas razes as conhecem os ndios pela cor dos ramos, no que atinam poucos
Portugueses. (Gabriel Soares de Sousa, 1587. In Tratado Descritivo do Brasil
SOUSA, 1851).
Gabriel Soares de Sousa foi um dos primeiros cronistas da recm descoberta
terra brasileira a descrever os costumes agrcolas e alimentares da Bahia colonial. Em
seu trabalho Tratado descritivo do Brasil de 1587 esse senhor de engenho diferencia
os cultivares de mandioca existentes no Brasil em duas castas distintas: as mandiocas,
que possuem peonha, utilizadas para a produo de farinhas, tapioca, entre outros
produtos processados; e os aipins, consumidos assados, cozidos, ou na forma de bebidas
fermentadas. Assim, didaticamente, no sculo XVI j h uma documentao que nos
permite inferir sobre a existncia de dois grandes grupos de mandioca.
Assim como Gabriel Soares de Sousa, diversos viajantes, cronistas, naturalistas e
antroplogos estiveram em terras brasileiras descrevendo os usos e costumes dos povos
americanos. Nesta literatura h grande quantidade de informaes sobre as espcies
domesticadas na Amrica e que so importantes culturas comerciais atualmente. Esses
dados podem ser eficientemente utilizados para trabalhos enfocando diversos ramos das
cincias modernas, pois fornecem mais de quatrocentos anos de estudos e descries.
Portando, apresentam um aspecto dinmico e abrangente da utilizao dessas espcies
pelos diferentes grupos humanos existentes no Brasil. Essa literatura j considerada
valiosssima em estudos antropolgicos e est presente nas bibliografias utilizadas em
cursos de graduao e ps-graduao da rea de humanas. Atualmente, dados dessa
natureza tm sido utilizados em pesquisas multidisciplinares. Tambm podem ser
eficientemente empregadas em trabalhos dos diferentes ramos da Biologia,
principalmente nos seus segmentos mais atuais, como na complementao das
informaes em estudos que envolvam tcnicas de manipulao de DNA, aplicadas
Gentica e Melhoramento, Biodiversidade, Taxonomia, Filogenia e outras. Entretanto,
at agora, poucos estudos nessa rea utilizaram-se dessas ferramentas da antropologia.
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A cultura da mandioca desde o incio da colonizao j fascinou os navegadores
europeus pela sua importncia para os indgenas que ocupavam tanto o litoral, como as
terras baixas e quentes da Amrica do Sul. Aps Pero Vaz de Caminha, e sua famosa
carta, considerada o primeiro documento descritivo da terra recm descoberta, grandes
nomes da literatura de testemunho foram surgindo, tais como Pero de Magalhes
Gndavo, Auguste de Saint-Hilaire, Henry Koster, Prncipe Adalbert da Prssia, Johann
Baptist von Spix e Karl Friedrich Philipp von Martius, entre tantos outros que
destacaram a importncia da cultura da mandioca tanto na alimentao como na
mitologia dos ndios do Brasil. Nos seus escritos podemos encontrar descries
detalhadas das diferentes utilizaes da mandioca, dos mtodos de processamento e das
variedades cultivadas pelas inmeras populaes indgenas. Aliados a essas
informaes, h os dados atuais da Biologia e da Gentica, que tambm conduzem
diviso de grupos de mandioca que parece similar instituda pelos amerndios antes da
chegada dos europeus Amrica.
Como no possvel se obterem dados antigos da situao da mandioca
baseados em pesquisas biolgicas, a literatura antropolgica um material que pode
preencher essa lacuna de tempo e espao que a cincia moderna no alcanou. Esse
confronto de informaes da Antropologia com a Biologia permite, no s a elaborao
de cenrios mais abrangentes, como tambm possibilita analisar a convergncia dos
elementos interdisciplinares. Isso possvel e interessante para uma cultura como a da
mandioca, pois seu cultivo envolve uma diversidade no s gentica, mas
fundamentalmente cultural. Cada grupo indgena tinha suas prprias variedades, suas
tecnologias de processamento e suas mitologias sobre como se originou essa planta
singular.
Atualmente, a mandioca continua exercendo um papel fundamental na
alimentao da populao do Brasil. a espcie mais importante e profundamente
arraigada cultura camponesa, utilizada de forma estratgica em sistemas de agricultura
familiar para gerar trabalho, renda e segurana alimentar. Procede-se neste cenrio a
maior agregao de valor possvel, o agricultor planta, colhe, transforma em farinha e
muitas vezes ele mesmo vende ao consumidor. Esta situao de resistncia atravs da
auto-suficincia como forma de compensar a no insero ou insero parcial nos
mercados est presente em todo o pas. Paralelamente aos pequenos mercados locais e
regionais desenvolve-se um vigoroso agronegcio da mandioca com tecnologia agrcola
e um parque agroindustrial modernos que so referncia mundial. Este plo produtivo
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3
est localizado na divisa na fronteira entre os Estados do Paran, Mato Grosso do Sul e
So Paulo com ramificaes no Estado de Santa Catarina. Produz e processa cerca de
cinco a seis milhes de toneladas de razes por ano para a produo de fcula e farinha
de mandioca. O Brasil o segundo maior produtor mundial, respondendo com 10% da
produo, atrs da Nigria (FAO, 2006). Historicamente a produo no Brasil oscila
entre 20 a 25 milhes de toneladas por ano, sendo o quarto lugar em volume de
produo entre as culturas temporrias, aps a cana-de-acar, soja e milho. A
fabricao de lcool a partir de suas razes est sendo muito discutida e pode representar
um grande mercado para a cultura.
Em base ao anterior, o objetivo desse trabalho fazer uma anlise crtica e
comparativa entre a literatura pertencente ao domnio da Antropologia e a de cunho
biolgico, visando estabelecer uma possvel estruturao gentica que possa ser
utilizada no melhoramento da espcie.
2 REVISO DE LITERATURA
2.1 A Agricultura e a Domesticao de Plantas na Amrica
A pr-histria da botnica e da agricultura na Amrica , ipso-facto, a histria do homem americano;
um chos insondvel, um labiryntho tentador, mas sem sahida aps angustiosa e difficil entrada.
(Frederico Carlos Hoehne)1
Durante o perodo de transio entre o Pleistoceno e o Holoceno, por volta de 12
mil anos atrs, toda a Amrica do Sul estava povoada, desde o ponto mais setentrional
at a Terra do Fogo. Esses grupos humanos eram caadores-coletores e viviam
explorando de maneira equilibrada as mltiplas potencialidades dos diversos
ecossistemas (GUIDN, 1992). Ento, entre 10.000 e 5.000 anos atrs, ocorreu uma
notvel mudana no modo de vida das sociedades humanas de forma simultnea em
diferentes regies do globo que, independentemente, domesticaram uma multiplicidade
de plantas e animais (SMITH, 2001). Em diferentes lugares, humanos com capacidades
cognitivas modernas comearam a experimentar com plantas, a transferi-las do meio
selvagem para espaos semi-domsticos, a alterar progressivamente seu genoma por
1 Trecho retirado do livro: Botanica e agricultura no Brasil no sculo XVI de Frederico Carlos Hoehne (HOEHNE, 1937).
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meio de selees e hibridaes, iniciando o processo de produo de cultivares que
abririam caminho para a revoluo neoltica (FAUSTO, 2006). Uma das conseqncias
da alterao do modo de subsistncia caa-coleta para a agricultura foi a exploso
populacional2. Alm disso, houve o surgimento de novas tecnologias utilizadas no
processamento e produo dos alimentos (DIAMOND, 2002).
Na regio andina, a batata, o milho, o feijo, a mandioca (Figura 1), o algodo e
a pimenta vermelha so consideradas como as primeiras culturas fundadoras3 h pelo
menos 5.000 anos (DILLEHAY et al., 2007). VAVILOV (1951) considera que o Brasil,
apesar do enorme territrio com uma rica flora de mais de 40 mil espcies, forneceu ao
mundo um pequeno nmero de plantas cultivadas, das quais as mais importantes so:
mandioca, amendoim e abacaxi.
Para NEVES (2006) o surgimento da agricultura um processo co-evolutivo no
qual os seres humanos e as plantas desenvolveram uma dependncia mtua, sendo
impossvel a existncia de um sem a presena do outro. Pesquisas sobre a origem e
disperso da agricultura ao redor do mundo esto concentradas nos ambientes e
perodos nos quais as plantas foram primeiramente domesticadas de espcies selvagens.
Entretanto, menor nfase tem-se dado adoo de diferentes cultivares, seu uso e
desenvolvimento desiguais, assim como movimentao humana para locais onde no
havia cultivo, e todo o amplo contexto cultural em que esses fenmenos ocorreram
(DILLEHAY et al., 2007).
Quando os portugueses chegaram ao Brasil, os nativos viviam da caa e da
agricultura, e o fato de j cultivarem a mandioca em grande escala mostra que j no
eram totalmente nmades, justificado principalmente por essa espcie ser de ciclo
vegetativo longo (AMARAL, 1939). At pouco tempo atrs, havia uma tendncia de
considerar a agricultura na Amrica Tropical pouco desenvolvida e com pequenas reas
de cultivo utilizadas para complementar a nutrio fornecida pela caa e pesca4.
2 Segundo o autor, essa exploso populacional resultou de dois fatores separados que ocorreram devido ao incio da produo de alimentos: primeiramente, o modo de vida sedentrio que permitiu a diminuio dos intervalos entre os nascimentos, pois uma me que est em constante mudana s pode carregar uma criana; e em segundo lugar, h uma maior densidade de plantas prprias para consumo humano prximas do acampamento do que em um habitat selvagem (DIAMOND, 2002). Com o aumento populacional, consequentemente, h uma maior demanda por alimentos, incentivando o acrscimo da produo agrcola. 3 Os autores, DILLEHAY et al. (2007), utilizam o termo em ingls founder crop. 4 Isso pode ser percebido no trabalho de FREYRE (1933), que considera que a cultura americana ao tempo da descoberta era, na maior parte, a nmade, a da floresta, e ainda pouco agrcola. Ainda segundo ele, a lavoura era praticada por algumas tribos menos atrasadas, sendo um trabalho desdenhado pelos
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Entretanto, as novas descobertas relacionadas com as terras pretas de ndio5, indicam
um alto desenvolvimento agrcola e a existncia de grandes agrupamentos humanos no
momento do pr-contato (NEVES, 2006). Esse tipo de solo, presente na Amaznia,
considerado antrpico, por ser um resultado da ao humana e cujas principais
caractersticas so: a presena de grande quantidade de nutrientes, ricos em matria
orgnica estvel e altamente frtil (GLASER et al., 2001). As reas de terras pretas
cobrem mais ou menos 10% da Amaznia (rea correspondente ao tamanho da Frana)
e isso indica a existncia de grandes populaes pr-colombianas que praticaram a
agricultura por sculos e que, ao invs de destrurem o solo, acabaram por melhor-lo
(MANN, 2002). Esses amerndios viviam em complexos acampamentos regionais e
alteravam intensivamente a paisagem, com transformaes em larga escala da floresta
em terras agricultveis (WILLIS et al., 2004). Nesse contexto a mandioca era
intensamente cultivada por esses experientes agricultores. Os relatos e posteriores
descries do manejo da terra nas florestas tropicais da Amrica no pr-contato indicam
um sistema de cultivo utilizado at hoje e denominado de coivara: agricultura itinerante
de derrubada e queimada da mata (BOX & BOX-LASOCKI, 1982; BROCHADO,
1977; NEVES, 2006).
Figura 1 Representao de um cultivador de mandioca do perodo de Nazca no Peru (BOX & DOORMAN, 1982).
Nos lugares onde querem plantar, cortam primeiro as rvores e deixam-nas
secar de um a trs meses. Deitam-lhe fogo, ao depois queimam-nas e ento que
homens caadores, pescadores e guerreiros e entregue s mulheres, detentoras do conhecimento de sementes e razes. 5 Atualmente, essas terras pretas altamente frteis continuam sendo utilizadas por agricultores da regio sem a necessidade de adubao.
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plantam entre os troncos as razes de que precisam, a que chamam mandioca. (Hans
Staden, 1557. In Viagem ao Brasil STADEN, 2006).
O corte das rvores, com o objetivo de abrir uma clareira para o cultivo, era
realizado por meio de machados de pedra, normalmente durante os perodos mais secos
do ano. Aps essa derrubada, deixava-se secar por aproximadamente dois meses e ento
realizava-se a queimada antes que comeassem as estaes chuvosas. Plantava-se logo
no incio das primeiras chuvas. Aps alguns poucos anos o solo da roa, lavado pela
gua das chuvas, perdia a fertilidade ou era invadido por ervas daninhas e a sua
produo decaia, era ento abandonado e se abria uma nova roa mais distante
(BROCHADO, 1977). Segundo CAMARGO (2003), atravs dos escritos dos cronistas
que estiveram no Brasil em diferentes pocas e regies, percebe-se que as tcnicas de
cultivo descritas sofriam pequenas variaes, levando-nos a crer em uma quase
uniformidade na forma de lidar com a terra6. Entretanto, as recentes descobertas das
terras pretas de ndio sugerem que esse sistema de corte e queima descrito, e ainda
utilizado atualmente, , provavelmente, um manejo recente. Segundo MANN (2002), o
processo de queima, utilizado pelos amerndios, era incompleto e os carves restantes
eram agregados ao solo. Como o corte da floresta era realizado com machados de pedra
(antes da chegada dos europeus e da introduo de ferramentas de metal), o que
demandava muito tempo e trabalho, a movimentao para outras reas era impraticvel,
seno impossvel (MANN, 2002; NEVES, 2006). Portanto, os amerndios tinham que
permanecer na terra por um longo perodo de tempo e utilizam um sistema agrcola
diferenciado, provavelmente agroflorestal.
O conhecimento agrcola foi transmitido ao portugus no pelo homem
guerreiro, mas pela mulher indgena trabalhadora do campo. Do indgena se
aproveitou a colonizao agrria no Brasil o processo da coivara, que viria a
empolgar por completo a agricultura colonial (Gilberto Freyre, 1933. In Casa grande
& senzala - FREYRE, 1933).
6 Essas tcnicas de cultivo as quais o autor se refere seriam o corte e a queima da vegetao (coivara), amplamente utilizada em todo o territrio brasileiro na poca do descobrimento e descrita em grande parte da literatura dos cronistas. Seriam posteriormente assimiladas pelos portugueses e caboclos. Entretanto, apesar da uniformidade de uso dessa tcnica, havia tambm um manejo diferenciado para certos cultivares, grupos genticos e espcies de plantas.
-
7
2.2 A Mandioca
Se Ceres mereceu um lugar na mitologia da Grcia, com muito maior razo se devia esperar
a deificao de quem ensinou aos seus irmos o uso da mandioca.
(Robert Southey)7
A cultura da mandioca muito peculiar. Segundo LVI-STRAUSS (1987),
poucos povos transformaram uma planta to venenosa em alimento e a grande
habilidade em aproveitar esse vegetal demonstrada por seus vrios usos.
Sua origem ainda muito discutida e toda uma mitologia foi criada pelos
amerndios para explic-la (SCHMIDT, 1951). A lenda mais difundida do seu
surgimento, da ndia Mani (Figura 2) apresenta diferentes verses contendo a mesma
essncia. Assemelha-se muito referente ao milho, o que tudo indica ser uma decalcada
na outra (ALBUQUERQUE, 1969). Os jesutas da Companhia de Jesus consideravam
que a mandioca, sua cultura e utilizao, foram trazidas ao Brasil pelo apstolo So
Tom8, tornando-se posteriormente esse mito uma tradio entre os gentios (PITA,
1976; SOUTHEY, 1981).
Figura 2 Aquarela de Vicente do Rego Monteiro O Nascimento de Mani, de 1921. Museu de Arte Contempornea da Universidade de So Paulo MAC/USP.
7 Trecho retirado do livro: Histria do Brasil, de Robert Southey (SOUTHEY, 1981). 8 Dizem elles que S. Thom, a quem elles chamam Zom, passou por aqui, e sito lhes ficou dito por seus passados e que suas pisadas esto signaladas juncto de um rio. (Pe. Manoel da Nbrega, 1549-1560. In Cartas do Brasil NBREGA, 1988). O jesuta Manoel da Nbrega soube dos Tupinambs que uma pessoa de nome Zom (Sum) lhes havia ensinado o uso da mandioca. Os jesutas da Companhia de Jesus consideraram que esse homem seria o apstolo So Tom, que havia trazido ao Brasil as referidas razes.
-
8
H trs importantes questes a serem respondidas em relao origem da
mandioca: a) sua origem botnica, ou seja, as espcies selvagens das quais ela descende;
b) sua origem geogrfica; c) seu local de domesticao (ALLEM, 1999).
Apesar dos recentes avanos nos campos da arqueologia e da gentica, a origem
da mandioca ainda controversa (CAVALCANTE, 2005). Nos trpicos midos h uma
degradao rpida do material orgnico, portanto, s muito raramente e em condies
especiais que se conservam restos de alimentos e artefatos feitos de matria orgnica,
o que dificulta trabalhos arqueolgicos na regio. S possvel recuperar materiais de
pedra ou cermica (BROCHADO, 1977).
DE CANDOLLE (1959) considera definitivamente a mandioca como uma planta
americana, principalmente devido grande diversidade de variedades no continente e ao
seu cultivo ser anterior chegada dos europeus. Outra evidncia que o gnero
Manihot s encontrado na Amrica, o qual compreende aproximadamente 100
espcies distribudas no Novo Mundo, desde o Mxico at a Argentina, sendo que a
maioria est no norte da Amrica do Sul (~80 spp.) (OLSEN & SCHAAL, 2006;
PIPERNO & PEARSALL, 1998; ROGERS & APPAN, 1973).
A regio do Brasil-Paraguai foi descrita por VAVILOV (1951) como um centro
de origem de plantas cultivadas, dentre elas a mandioca, principalmente na regio semi-
rida desse centro devido a grande diversidade varietal dessa espcie na regio.
ROGERS (1965) sugere que a M. esculenta tornou-se primeiramente um
importante elemento na dieta dos habitantes das terras baixas tropicais na Mesoamrica
e posteriormente foi distribuda para as outras regies. Sua justificativa se baseia no
grande nmero de espcies na regio, principalmente a costa noroeste do Mxico, parte
da Guatemala, El Salvador e Nicargua. Entretanto, RENVOIZE (1972) considera que,
apesar de a mandioca estar presente nessa regio, as evidncias sugerem que a mandioca
amarga uma introduo relativamente recente. POPE et al. (2001), atravs de
pesquisas arqueolgicas nas terras baixas da Mesoamrica, no Mxico, encontraram um
gro de plen de Manihot de aproximadamente 5.800 anos atrs, provavelmente da
espcie domesticada. Os autores sugerem que houve um contato indireto dos
agricultores dessa regio (costa sul do Golfo do Mxico) com os que habitavam a regio
amaznica, onde a mandioca teria sido domesticada.
Quanto regio norte da Amrica do Sul, SAUER (1952) props as savanas da
Venezuela como o local mais provvel de origem dos cultivares de mandioca. Para
inferir essa hiptese o autor se baseou nas movimentaes humanas e em consideraes
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9
etnolgicas. Segundo RENVOIZE (1972), as evidncias arqueolgicas da mandioca
nessa regio so suficientes para indicar uma considervel antiguidade de seu cultivo, e
as datas apresentadas em trabalhos arqueolgicos atravs de avaliaes de radiocarbono
so mais antigas do que as do Centro Brasil-Paraguai.
Ainda discutida tambm a possibilidade de dois centros independentes de
domesticao: um no norte da Amrica do Sul, mais especificamente no interior da
Venezuela, onde teria se originado a mandioca brava; e um centro de domesticao das
mandiocas mansas no Mxico (BOX & BOX-LASOCKI, 1982). J PIPERNO &
PEARSALL (1998) tambm propem dois locais distintos, sendo um deles o norte da
Amrica do Sul (Venezuela, Guianas e norte do Brasil) e outro na regio central do
Brasil.
At os anos 80 havia uma tendncia em assumir que a mandioca no possua um
ancestral conhecido. Entretanto, em maro de 1982, uma populao selvagem,
indistinguvel morfologicamente da domesticada, foi encontrada no Estado de Gois
(ALLEM, 2002). Uma reviso recente das possveis espcies envolvidas na
ancestralidade da mandioca foi realizada por ALLEM (1999). O autor considera a M.
esculenta ssp. flabellifolia como o progenitor selvagem dos cultivares modernos, sendo,
desta maneira, o pool gnico primrio (GP1) da cultura. J a espcie M. pruinosa
considerada como a mais prxima espcie do GP1 da mandioca e dificilmente
separada morfologicamente de M. esculenta ssp. flabellifolia. OLSEN & SHAAL
(2006), em estudos com seqncias de marcadores moleculares, chegaram mesma
concluso de ALLEM (1999): a mandioca possui um simples genitor selvagem, a M.
esculenta ssp. flabellifolia, encontrada ao longo da fronteira meridional da Bacia
Amaznica, em uma regio de transio de vegetaes (Cerrado e Floresta Amaznica)
que incluem os Estados do Mato Grosso, Rondnia e Acre. Essa parece ser a idia mais
aceita atualmente.
Diferente do que ocorreu com os cereais, a mandioca no sofreu cruzamentos
artificiais no incio da sua domesticao pelos amerndios. Manivas9 foram selecionadas
de plantas produtivas e saborosas, e ento propagadas (BOX & BOX-LASOCKI, 1982).
Como a mandioca uma planta de propagao vegetativa, seus gentipos eram
multiplicados e conservados pelos agricultores at quando se mostrassem teis e
produtivos. Nova diversidade era inserida atravs da troca de cultivares entre os grupos
9 Maniva corresponde ao material de propagao vegetativa da mandioca. So pequenos segmentos do caule.
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10
humanos, ou de plantas provenientes de sementes germinadas espontaneamente nos
locais de cultivo (EMPERAIRE & PERONI, 2007).
Entre os ndios da Amrica, os pertencentes ao grupo lingstico Arawak eram
tradicionalmente agricultores, sendo os responsveis pela disseminao do cultivo da
mandioca aos demais grupos indgenas, principalmente aos Tupi-Guaranis. Teriam
ento transportado para as Antilhas tanto a planta da mandioca como as tcnicas de
produo e processamento das razes (CAVALCANTE, 2005; SCHMIDT, 1951). Para
qualquer lugar onde migravam, os amerndios levavam consigo propgulos de cultivares
dos seus locais de origem, sendo que a propagao vegetativa atravs de manivas
conservava o gentipo dos cultivares e servia como uma forte barreira de isolamento
reprodutivo (ROGERS, 1965).
Perguntam-se: quais seriam as vantagens da mandioca sobre as demais plantas
domesticadas pelos amerndios para se obter tamanha importncia alimentar para essas
populaes? FAUSTO (2006) fornece seis possveis respostas para essa questo: a) essa
planta cresce em quase qualquer tipo de solo; (b) suas variedades resistem bem s
variaes pluviomtricas; c) seu veneno pode ser uma importante defesa natural contra a
predao animal; d) alm de armazenada na farinha, ela pode ser estocada in natura (na
terra), servindo como reserva alimentar para povos nmades; (e) o modo de reproduo
vegetativo facilita a propagao pelos humanos; (f) a mandioca rica em carboidratos,
fornecendo uma excelente combinao carboidrato-protena com a carne da caa e
pesca. J AMARAL (1939) sugere que os povos indgenas agricultores lutavam
simultaneamente contra a desordenada riqueza do solo e a escassez de ferramentas, e
essas circunstncias determinaram forosamente os gneros de cultura, entre os quais
sobressaa a mandioca, mais rstica, menos sujeita a inimigos naturais e com mltiplas
utilidades. Para CAMARGO (1985) a mandioca uma planta tribal, pois cada
comunidade com o seu mandiocal possui uma fonte alimentar imediata e de reserva, j
quando havia excedente de produo, era ento consumido em festas ou armazenado
para outras pocas.
Algo que fascinou os antroplogos e outros observadores do cultivo da
mandioca pelos amerndios foi a tecnologia associada ao seu processamento (BOX &
BOX-LASOCKI, 1982). Principalmente os processos que possibilitavam transformar
um produto altamente venenoso, com rpida deteriorao e alto teor de gua, que so as
razes de mandioca, em um derivado incuo, de longa durabilidade, baixo teor de gua e
pronto para o consumo imediato, que a farinha. Assim, esse produto se tornou
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11
estratgico para as grandes migraes indgenas, as epopias dos bandeirantes e as
navegaes dos portugueses, dominando o paladar do colonizador na continuidade do
uso tornado indispensvel (CAMARGO, 2003; CASCUDO, 2004). Essa cultura, depois
de conhecida dos portugueses, passou a ser considerada por Portugal um elemento de
fundamental importncia para o desenvolvimento de suas atividades relacionadas no s
s conquistas de novas terras como ao desenvolvimento do trfico negreiro
(CAMARGO, 2003). Durante os sculos seguintes, a farinha de mandioca continuou
sendo o alimento fundamental do brasileiro e a tcnica do seu fabrico permanece, entre
grande parte da populao, quase que a mesma dos indgenas (FREYRE, 1933). J
durante o Brasil Imperial, a mandioca era uma das principais fontes de alimento do
trabalhador escravo e a riqueza do senhor rural baseada na produo de sua farinha
(Figura 3) (CAMARGO, 1985).
Figura 3 - Fabricao de farinha de mandioca, pintura de Johann Moritz Rugendas. Acervo Museu da Casa Brasileira, So Paulo (SILVA, 2005).
Para o antroplogo Luis da Cmara Cascudo, em sua obra Histria da
Alimentao no Brasil, de 1963: a farinha o primeiro conduto alimentar brasileiro
pela extenso e continuidade nacional, pois esse produto era a reserva, a proviso, o
recurso. (CASCUDO, 2004). Ainda hoje, a farinha de mandioca tem uma importncia
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12
estratgica dentro da economia domstica, nos intercmbios locais e no mercado de
regies com agricultura tradicional10 (EMPERAIRE et al., 2001).
A mandioca se espalhou rapidamente da Amrica do Sul para a frica durante a
colonizao. Chegou costa oeste da frica, no final do sculo XVI, pelo Golfo de
Benin e Rio Congo e na costa leste atravs das Ilhas de Runion, Madagascar e
Zanzibar, no final do sculo XVIII. Os portugueses aprenderam com os amerndios a
tcnica de plantio e de preparo da farinha, levando tais conhecimentos para a frica
(CAMARGO, 2003).
Variado era o uso da mandioca na culinria indgena; e muitos dos produtos
preparados outrora pelas mos avermelhadas da cunh, preparam-nos hoje as mos
brancas, pardas, pretas e morenas da brasileira de todas as origens e de todos os
sangues (Gilberto Freyre, 1933. In Casa grande & senzala FREYRE, 1933).
Inmeras informaes sobre a mandioca so encontradas na literatura dos
viajantes e cronistas que percorreram o territrio brasileiro durante todo o perodo
colonial. Essas descries apresentam diferentes vises sobre um mundo novo que se
abria aos olhos dos recm chegados.
2.3 Os Cronistas
[...] a melhor poro o Brasil; vastssima regio, felicssimo terreno em cuja superfcie tudo so frutos,
em cujo centro tudo so tesouros, em cujas montanhas e costas tudo so aroma,
tributando os seus campos o mais til alimento [...] (Sebastio da Rocha Pita)11
Associar campos distintos da cincia para inferir sobre determinado assunto
uma alternativa satisfatria para tornar o trabalho mais abrangente. Muitas informaes
esto dispersas em diferentes ramos da cincia e a sua compilao pode ser uma tima
ferramenta para a obteno de resultados mais completos. Porm, um pesquisador que
opta por um trabalho multidisciplinar deve estar a par das dificuldades que ingressar
em campos do conhecimento at ento desconhecidos. Envolver reas to distantes e, ao
mesmo tempo, to complementares como a Biologia e a Histria pode tambm ser uma
10 Agricultura tradicional (ou autctone) um termo muito utilizado e encontrado na literatura para designar um sistema agrcola cujas bases tcnicas reportam ao Brasil pr-colonial e que subsistem at a atualidade. So praticadas pelas populaes indgenas remanescentes ou populaes que assimilaram a tcnica transmitida culturalmente por seus antepassados, e que vo sendo adaptadas aos ecossistemas das regies onde so praticadas (FARALDO, 1999). 11 Trecho retirado do livro: Histria da Amrica portuguesa, de Sebastio da Rocha Pita (PITA, 1976).
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13
viagem fascinante. ROCHA (2005) relata a sua experincia como engenheiro agrnomo
envolvido em duas pesquisas em Geografia: uma sobre o Jardim Botnico de So Paulo
e outra sobre a histria do pau-brasil quanto extrao, comrcio, trfico, distribuio
geogrfica e conservao. Para tal, esse pesquisador utilizou dados histricos: arquivos
e acervos, relatos de viajantes e cronistas, iconografias. Segundo o autor:
Buscar informaes de uma rea especfica de pesquisa, como Fsica, Botnica
ou Geografia, nos registros histricos disponveis, acaba por ser uma tarefa difcil caso
o pesquisador no tenha formao acadmica em Histria. Mas uma tarefa que pode
ser realizada e certamente o resultado obtido ser superior ao que se alcanaria, caso
no se ousasse na ampliao das fronteiras da pesquisa fora da rea especfica, nas
interfaces existentes com a Histria (Yuri Tavares Rocha, 2005. In Fontes histricas e
pesquisas geogrficas: relatos de viajantes, iconografia e cartografia ROCHA, 2005).
Os relatos dos cronistas constituem fontes de informaes histricas que podem
ser utilizadas para obter informaes relevantes para diversas outras reas do
conhecimento, como as cincias biolgicas. Isso porque, segundo CAMARGO (2002),
nesses primeiros trabalhos empricos, encontra-se uma preocupao em reconhecer,
identificar, descrever e classificar sistematicamente as espcies vegetais e animais aqui
encontrados. Esse autor estabelece a contribuio dessa literatura em trabalhos
envolvendo aspectos geogrficos do territrio brasileiro, a partir das observaes sobre
o uso da terra, as culturas, o clima, as populaes e sua relao com o meio-ambiente. O
antroplogo Florestan Fernandes expe a consistncia do contedo do relato dos
cronistas para encontrar fundamentos importantes em trabalhos etnogrficos
(FERNANDES, 1949).
Outras referncias so encontradas utilizando relatos dos viajantes, cronistas e
naturalistas para trabalhos dos mais diversos campos do conhecimento: Geografia e
Biogeografia (CAMARGO, 2002; PAPAVERO & TEIXEIRA, 2001); Climatologia
(SANTANNA NETO, 2006); Paisagem (CRREA, 2006); Cartografia e Arqueologia
(MARTINS & BUARQUE, 2006); Sade (ALBUQUERQUE et al., 1999). Porm,
nenhum trabalho relacionado com gentica foi encontrado.
MARTINS & BUARQUE (2006) consideram que uma das dificuldades que
aparece durante o desenvolvimento de trabalhos envolvendo esse tipo de literatura se
caracteriza pelo distanciamento que se tem das fontes originais de pesquisa, preservadas
em bibliotecas da Europa. No Brasil, encontram-se reedies de boa qualidade, porm
muitas informaes podem ser perdidas nas tradues, redues e formataes de
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14
pgina, alm, claro, das transformaes lingsticas de termos indgenas e localizaes
geogrficas.
Esse material apresenta informaes valiosas quanto agricultura e s principais
culturas encontradas no pas nos primeiros anos de contato e durante quase todo o
perodo colonial. BROCHADO (1977) considera essas descries como o maior
conjunto de dados referentes alimentao na floresta tropical, reunindo informaes
que vo desde o incio do sculo XVI at a primeira metade do sculo XX. Esta
compilao apresenta uma viso profundamente dinmica e representa uma perspectiva
temporal de 400 anos de informaes sobre a Amrica Tropical.
A partir da descoberta do Brasil, sua singular natureza exerceu um fascnio e
despertou a curiosidade dos viajantes que aqui chegaram. Nos primeiros anos da nossa
colonizao, vieram para o Brasil, pelas mais variadas razes, aventureiros, degredados,
fazendeiros, comerciantes que, extasiados com as riquezas naturais dessa terra,
escreveram relatos que acabaram contribuindo para um melhor conhecimento de nossa
fauna e flora (CAMARGO, 2002). A mandioca est extensivamente registrada nas obras
desses cronistas (Figuras 4 e 5), que afirmam ser o alimento regular, obrigatrio e
indispensvel aos nativos e colonizadores europeus (CASCUDO, 2004).
Esses primeiros exploradores procuraram fazer anotaes, bem como se
interessaram em compreender o cultivo de algumas plantas, pelos nossos indgenas,
tais como a cultura do fumo, do milho, da mandioca, da batata-doce, do amendoim etc.,
como tambm sobre as plantas que forneciam matria-prima para a fabricao de
tinturas (tais como o jenipapo e urucum), de venenos (como o timb, usado na pesca) e
de bebidas alcolicas (como o cauim, produzido a partir da fermentao da
mandioca). (Jos Carlos Godoy Camargo, 2002. In A contribuio dos cronistas
coloniais e missionrios para o conhecimento do territrio brasileiro CAMARGO,
2002).
As informaes etnogrficas dos primeiro sculos de colonizao (sculos XVI e
XVII) podem ser separadas em trs conjuntos que se identificam tanto
cronologicamente, quanto pela natureza das descries realizadas: o primeiro
corresponde viso dos portugueses, desde a carta de Pero Vaz de Caminha e as
observaes dos jesutas da Companhia de Jesus; o segundo, quelas realizadas pelos
franceses presentes nas duas tentativas de implementao de colnias em territrio
brasileiro, entre o final do sculo XVI e incio do XVII; e, por ltimo, ao perodo do
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15
domnio holands no nordeste, marcado pela primeira tentativa de se tratar a natureza de
forma mais cientfica (SANTANNA NETO, 2006).
Figura 4 Iconografia presente na obra original de Hans Staden, de 1557, representando uma aldeia indgena em Ubatuba. Percebe-se ao fundo as mulheres trabalhando no cultivo da mandioca. J Hans Staden aparece rezando ao lado da cruz. No se sabe se essas ilustraes foram feitas pelo prprio autor ou por outrem a partir das suas descries (STADEN, 2006).
O primeiro documento descritivo do pas foi a carta de Pero Vaz de Caminha ao
rei Dom Manuel. Nesse manuscrito encontram-se informaes que seriam repetidas por
boa parte desses cronistas do sculo XVI (CORRA, 2006). Entretanto, nos primeiros
cinqenta anos aps o descobrimento, os portugueses ainda estavam fascinados pelo
Oriente e poucos especularam sobre o Novo Mundo, nem como objeto de conhecimento
ou reflexo, nem sequer ainda para explor-lo. S entre os anos de 1570 e 1576 que
Pero de Magalhes Gndavo escreve suas duas importantes obras (Tratado da Terra do
Brasil e Histria da Provncia de Santa Cruz) provavelmente como um incentivo
imigrao e aos investimentos portugueses (CUNHA, 1990).
Os relatos das experincias desses primeiros viajantes trazem informaes
empricas, com vises distintas baseadas em sua prpria cultura e maneira de interpretar
o mundo. Observaram a terra e seus habitantes a partir de ngulos fsicos diversos.
Alguns conviveram com os ndios, outros permaneceram o litoral, outros ento nem
viram muitas das coisas que relataram (CRREA, 2006).
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16
Para MELLO (2005) a maioria dos cronistas foi explorador, conquistador,
colono e missionrio, alguns de poucas letras que, sob a impresso dos fatos vividos,
criaram, no ato, s vezes, uma histria viva, em linguagem no erudita. Suas obras
eram geralmente escritas em condies extremas, sob a constante ameaa de ataques
indgenas, das doenas ou de ferozes onas que no poupavam conquistadores nem
conquistados.
Mesmo informaes como essas, baseadas nas experincias e observaes
pessoais, como de Gabriel Soares de Sousa, um senhor de engenho da Bahia, trazem
subsdios importantssimos sobre a agricultura e a diversidade de plantas utilizadas
pelos nativos das regies colonizadas (SOUSA, 1851).
Figura 5 Ilustrao de plantas de mandioca presente no livro Histria dos animais e rvores do Maranho, de Frei Cristvo de Lisboa, de 1624 a 1627 (LISBOA, 1967).
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J os relatos dos holandeses foram os primeiros trabalhos verdadeiramente
cientficos quanto histria natural do pas (CAMARGO, 2002). No sculo XVII,
fazendo parte da comitiva de Mauricio de Nassau, vieram diversos cientistas
(SANTANNA NETO, 2006); destacaram-se os mdicos e naturalistas Guilherme Piso
e Jorge Marcgrave (MARCGRAVE, 1942; PISO, 1948) que, entre os anos de 1637 e
1644, realizaram as primeiras viagens cientficas ao Novo Mundo. Dessas viagens
resultaram as imprescindveis obras: Histria Natural do Brasil (1648) e Histria
Natural e Mdica da ndia Ocidental (1658), que permaneceram por um longo perodo
como referncias importantes aos estudiosos da natureza (GESTEIRA, 2004). Nelas
podemos encontrar referncias s castas12 de mandioca, alm das diferenas de
utilizao e processamento realizados pelos amerndios.
At o final do sculo XVIII, nada de muito significativo apareceria nas cincias
naturais, a no ser estudos geogrficos gerais e trabalhos de demarcao e
reconhecimento do territrio. Entretanto, devido a mudanas polticas ocorridas na
Coroa Portuguesa no final do sculo XVIII, a Metrpole preocupou-se em enviar uma
expedio cientfica ao Brasil, para estudar mais profundamente as riquezas naturais, o
clima e os povos (CAMARGO, 2002). Com a abertura dos portos em 1810 e a
conseqente entrada de muitos estrangeiros no Brasil, a literatura de viagem toma novo
flego (SILVA, 2004). A geografia e as cincias naturais dominaram o campo das
investigaes no incio do sculo XIX. No Brasil, o vale do Amazonas tornou-se uma
regio de confluncia de naturalistas e viajantes desejosos de conhecer e descrever a
opulncia da fauna e da flora, alm da diversidade de povos humanos. Ingleses,
franceses e alemes tomam a dianteira desse movimento explorador, todos muito bem
acolhidos pelos governantes brasileiros.
Durante a segunda metade do sculo XIX, os movimentos investigativos de
carter cientfico, ao invs de enfraquecerem, aumentaram de intensidade. Alm de
estudos geogrficos realizados pelo governo brasileiro, a Botnica, a Zoologia, a
Geologia, a Etnografia e a Lingstica foram sendo analisados intensamente pelos
estudiosos do Brasil e de diversos outros pases. Vai-se, assim, desbravando
cientificamente um continente que fascinou os olhos estrangeiros, deixando-nos de
herana um cabedal precioso de informaes (SAMPAIO & TESCHAUER, 1955).
Delas podemos dispor para os mais variados objetivos, tanto para estudos de fauna e
12 O termo casta muito encontrado nesse tipo de literatura para expressar os diferentes cultivares, ou grupo de cultivares de mandioca encontrados no pas.
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flora, como para classificao e diversidade das espcies nativas descritas e ilustradas
com belas iconografias.
O termo cronistas utilizado para designar esses viajantes, missionrios e
naturalistas , segundo MELATTI (1983), muito comum entre os antroplogos
brasileiros para se referir a esses autores que, apesar de no serem cientistas sociais, seja
porque as Cincias Sociais ainda no existissem, deixaram trabalhos importantes para
essa rea. Somente na dcada de 1930 surgem as primeiras faculdades ligadas
Antropologia no Brasil13, com importantes nomes como: Roger Bastide, Emlio
Willems, Claude Lvi-Strauss, Herbert Baldus, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes,
Darcy Ribeiro, entre outros.
A partir da, aparecem trabalhos utilizando mtodos cientficos de pesquisa, com
descrio mais detalhada da rea analisada. Estes podem ser diretamente empregados
em estudos de diversidade, pois a relatam de maneira mais precisa: atravs de listas de
variedades encontradas nos diferentes agrupamentos; do mapeamento e localizao
geogrfica das espcies e cultivares; ou ento de descries mais objetivas sobre a
preferncia alimentar das populaes humanas estudadas. Como exemplos podem-se
citar: BALDUS (1970); BROCHADO (1977); CHERNELA (1987); CIACCARIA &
HEIDE (1972); CUNHA & ALMEIDA (2002); PEREIRA (1974); RIBEIRO (1995).
Portanto, os trabalhos dos cronistas, etngrafos, antroplogos e arquelogos, que
estudaram e continuam estudando os diversos grupos humanos existentes no Brasil,
constituem uma excelente ferramenta para complementar e preencher vcuos de
informaes existentes em outras reas da cincia. Principalmente relacionados
diversidade, seja ela cultural ou gentica, por ser um tema amplamente abordado nesses
trabalhos.
Desse modo, e num sentido bastante profundo para a cultura brasileira, o pas
que somos e a nao que acreditamos ser so tambm obras construdas pelo olhar
desse outro, do viajante estrangeiro, desse estranho, que encheu seus olhos de nossas
estranhezas e nos devolveu o olhar da compreenso e do entendimento que o seu tempo
e as ideologias que com ele iam permitiram (Carlos Vogt, 2006. In Viagem pelas
crnicas. Revista Com Cincia VOGT, 2006).
13 At esse perodo, os antroplogos que estiveram estudando os indgenas brasileiros eram estrangeiros, autodidatas, ou formados em universidades no exterior.
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2.4 Diversidade Cultural e Diversidade Gentica
J perdemos algumas desses tipos de maniva mas tem maniva chamada sogemon, iurirara, periquito maniva, aa, cucura maniva, pacova maniva,
arara maniva, tatu maniva, iraponga maniva, cachimbo e tucum. Tudo isso estava nos galhos daquele p de maniva to grande.
(Sr. Leopoldo Bar, Comunidade de Yab, Rio Negro).14
No perodo do pr-contato, os amerndios viviam em uma diversidade de tribos
com diferentes idiomas e cada qual mantinha suas tradies e costumes. Alguns grupos
eram caadores e coletores, outros viviam da pesca e de uma pequena agricultura,
enquanto outros j tinham uma agricultura bem desenvolvida. Dentro desse contexto
era cultivada a mandioca em maior ou menor escala. Essa grande variabilidade cultural
funcionou como um caldeiro de onde surgiu uma diversidade de cultivares. As
diferentes formas de utilizao e caractersticas preferidas por cada grupo humano
existentes no pas, desde longo perodo pr-colonial, foram responsveis pelo aumento
da variabilidade dessa espcie. Cada uma dessas etnias selecionou as variedades que
mais se adaptavam aos seus hbitos alimentares e culturais. Aliado a isso, a mandioca
era cultivada em todas as regies do Brasil, desde a Amaznia, quente e mida, at
reas de cerrado (com estaes bem definidas de seca e chuva), semi-rido (quente e
seco), subtropical mido com temperaturas amenas, regies de Mata Atlntica ao longo
do litoral etc., com uma conseqente diversidade de variedades adaptadas para cada um
desses biomas.
A diversidade gentica da mandioca considervel. Segundo MHLEN et al.
(2005), s em colees ex-situ contam-se mais de seis mil cultivares e o nmero muito
maior se considerar o patrimnio gentico disperso nas reas de agricultura indgena e
tradicional. Alm disso, essa cultura pode ser encontrada em diferentes contextos
ecolgicos e culturais: entre os indgenas amaznicos, do litoral, do interior; os
caboclos; os mestios; os colonos. Est presente na alimentao das populaes rurais e
urbanas (EMPERAIRE, 2004). Toda essa diversidade cultural influi na variabilidade de
cultivares de mandioca. Um levantamento nos Bancos de Germoplasma do Brasil
realizado em 2005 - atravs do Projeto de Conservao e Utilizao Sustentvel da
Diversidade Biolgica Brasileira (PROBIO) - localizou 1.437 acessos de mandioca nas
colees das regies Sul e Sudeste, enquanto que nas regies Norte e Nordeste esse
14 Trecho da histria contada por um integrante da comunidade de Yab, Rio Negro, sobre a origem mtica da mandioca e transcrita por EMPERAIRE (2001). Nesse mito, surgiu uma grande rvore, um p de mandioca, que tinha somente um tronco e seus galhos eram variados, cada um contendo um tipo distinto de mandioca.
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levantamento indicou a existncia de 2.871 acessos de mandioca e 57 de espcies
silvestres do gnero Manihot (MENDES et al., 2006). A diversidade de mandioca
classificada tradicionalmente pelos amerndios desde o perodo pr-colombiano em dois
grupos principais de acordo com o seu sabor, uso e grau de toxicidade: mandiocas
bravas e mansas (ELIAS et al., 2004).
Os agricultores tradicionais normalmente aplicam diferentes estratgias para
maximizar a utilizao dos recursos disponveis em sua rea. Para aproveitar as
caractersticas distintas de solo, microclima e sazonalidade, empregam diferentes
espcies e variedades de plantas que melhor se adaptam a cada situao (AMOROZO,
2002). A diversidade tambm est associada aos critrios do manejo de produo.
Muitos agricultores utilizam a combinao de variedades de mandioca com distintos
perodos de maturao e conservao, o que permite que as roas estejam
continuamente produzindo durante todo o ano e evita a escassez ou a superproduo em
um dado momento (EMPERAIRE et al., 2001). Um sistema de cultivo que utiliza
mltiplas espcies ou variedades permite uma maior estabilidade na produo.
AMOROZO (2002) cita o exemplo de uma roa de um nico agricultor, situada no
Municpio de Santo Antonio do Leverger, no Estado do Mato Grosso, em que foram
encontradas 19 espcies diferentes de plantas destinadas alimentao. Ainda nessa
rea foram levantadas cerca de 60 variedades de mandioca.
Diversos trabalhos envolvendo o levantamento e estudo de etnovariedades de
mandioca so encontrados na literatura (ELIAS et al., 2004; FARALDO et al., 2000;
MHLEN et al., 2000; PERONI, 1998; PERONI et al., 2007; VALLE et al., 2007).
Segundo MHLEN et al. (2000), os estudos dos sistemas agrcolas tradicionais, onde
h uma constante gerao e manuteno de variabilidade, so importantes para orientar
programas efetivos de conservao de germoplasma.
EMPERAIRE et al. (2001), estudando cinco famlias na comunidade de
Teperera15, situadas no Mdio Rio Negro, na Amaznia, verificaram a existncia de 28
a 40 cultivares por famlia. Do total das variedades encontradas (61), somente cinco
(8%) so comuns a todas as famlias; sendo que 14 delas (23%) so exclusivas de
somente uma famlia. Essas freqncias ilustram a especificidade de cada coleo
familiar e a existncia de um manejo individual na manuteno, renovao e difuso das
variedades. Outro trabalho realizado por EMPERAIRE & PERONI (2007) refora a
15 Essa comunidade situa-se entre Barcelos e Santa Isabel, e agrupa nove ncleos familiares de distintas origens tnicas: Takano, Desana, Pira-Tapuia, Tariano, Bar.
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importncia do critrio de escolha individual das variedades de mandioca. Eles
compararam duas regies do Brasil: o Rio Negro, no noroeste da Amaznia (grupos
indgenas); e o litoral do Estado de So Paulo (caiaras16). Seus resultados mostraram
uma alta variabilidade em ambos os locais, com um nmero mdio de variedades por
produtor entre 7 e 33. No caso do Rio Negro, 30 a 65% das variedades so mantidas por
apenas um produtor; valores equivalentes (37 a 53%) foram encontrados para os
caiaras de So Paulo.
Esses aspectos realam a importncia da manuteno da diversidade cultural
para, consequentemente, preservar a variabilidade gentica. Com os avanos da
agricultura moderna e a preferncia por novos cultivares mais produtivos, o sistema de
policultivo est sendo substitudo por monoculturas. Com isso, o conhecimento cultural
e as prticas tradicionais associadas com as etnovariedades esto em risco de serem
substitudas pela tecnologia atual (NAZAREA, 1998). Isso demonstra a importncia de
polticas de conservao baseadas na valorizao da conservao in-situ das variedades,
a qual asseguraria uma ampla e dinmica diversidade que no se obteria em colees ex-
situ (EMPERAIRE et al., 2001). NAZAREA (1998) sugere a conservao da
diversidade em duas frentes: um banco de genes e um banco de memria; pois,
enquanto acessos genticos esto sendo sistematicamente coletados e preservados em
Bancos de Germoplasma, pouca informao cultural includa na base de dados dessa
coleo. A partir da, diversos paralelos podem ser feitos entre as trajetrias da
variabilidade cultural e gentica (at mesmo, sua eroso). Portanto, a preservao dos
recursos genticos est intimamente ligada com a cultura, s preferncias alimentares e
tecnologia utilizada pelas sociedades que criaram toda essa diversidade; e essa
informao tambm deve ser preservada. Para EMPERAIRE (2004), a conservao da
diversidade no significa necessariamente se manter fora do mercado atual. Ambas as
dimenses podem ser compatveis especialmente se a importncia das populaes
tradicionais, que no s conservam as variedades, mas criam outras novas, for
reconhecida e integrada em polticas de conservao dos recursos genticos.
Algo fundamental para a sustentao dessa rica diversidade cultural existente em
nosso pas a valorizao da histria cultural de cada grupo humano. Depende das
novas geraes a manuteno desses sistemas tradicionais e, para isso, elas tm que se
sentir parte desse grupo e entenderem a importncia da continuao das tradies de
16 Os caiaras so considerados descendentes de amerndios, portugueses e africanos.
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seus antepassados. a que entra o papel das polticas pblicas para assegurar os
direitos amplos para toda diversidade, valorizando igualmente as distintas culturas
humanas.
Apesar da constante ameaa da perda da diversidade gentica de mandioca - seja
atravs da eroso cultural ou dos avanos do sistema de cultivo monocultural - novas
variedades surgem e so incorporadas pelos pequenos agricultores. Portanto, o sistema
de policultura tradicional no se trata simplesmente da reproduo de um conjunto de
variedades, mas sim de um processo dinmico tanto atravs da eliminao, ou da
incluso de novas variedades em um roado. Dois fatores so comumente relatados
como os influenciadores do aumento da heterogeneidade da mandioca nas roas dos
agricultores tradicionais: o intercmbio de variedades e a incorporao de novas plantas
propagadas por semente (EMPERAIRE et al., 2001; EMPERAIRE & PERONI, 2007;
PUJOL et al., 2002).
A movimentao das variedades de mandioca est ligada tanto s migraes dos
diferentes grupos humanos, como s redes de troca de cultivares. CHERNELA (1987)
registra o sistema de intercmbio de mandiocas entre os ndios Tukno, na bacia do
Uaups, baseado em alianas matrimoniais. Certas regras de exogamia, segundo as
quais o casamento s permitido entre membros de diferentes grupos lingsticos,
diversificam os canais de permuta; as mulheres so consideradas as principais
protagonistas nessa movimentao de cultivares. A circulao dessas plantas ,
portanto, baseada em redes sociais de diferentes alcances e composies (EMPERAIRE
& PERONI, 2007).
As constantes migraes das populaes humanas pelo territrio brasileiro
tambm foram responsveis pela disseminao do germoplasma de mandioca. VALLE
et al. (2007) compararam mandiocas de diferentes regies brasileiras utilizando-se de
caractersticas agronmicas (produtividade) e essas variedades no formaram grupos
distintos. Esse comportamento pode ser atribudo ampla distribuio da variabilidade
de mandioca, sendo consideradas as migraes humanas como possveis responsveis
pela miscelnea do germoplasma dessa planta no territrio brasileiro, no mantendo
assim uma ordenao regional. Entretanto, as variedades amaznicas e da regio
continental17 foram muito contrastantes, sobretudo com relao ao potencial
17 Corresponde regio do Brasil-Paraguai, aqui chamada de continental.
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cianognico. Isso pode ser atribudo no s s diferenas genticas induzidas por
condies edafoclimticas, mas tambm culturais.
Embora a mandioca seja propagada vegetativamente, em agroecossitemas
tradicionais h a freqente incorporao de plantas originadas de sementes que
germinaram aleatoriamente na rea de cultivo (ELIAS et al., 2004). A abertura de uma
roa em uma capoeira de quatro ou cinco anos pode ser a ocasio para o aparecimento
de novos gentipos de mandioca provenientes de semente. Essas plntulas emergem
sincronicamente do banco de sementes oriundas do ciclo de cultivo anterior, sendo que
o corte e a queima da vegetao auxiliam na quebra da dormncia dessas sementes
(PUJOL et al., 2002). Os cultivadores permitem o crescimento dessas plantas at a
colheita e, de acordo com suas caractersticas de produo, cor de polpa, qualidade
gustativa, entre outras, elas sero multiplicadas por via vegetativa ou abandonadas se
no houver interesse (EMPERAIRE et al., 2001). Plantas originadas de sementes levam
mais tempo para seu desenvolvimento, sendo normalmente menores e menos vigorosas
que seus parentais, e gentipos superiores aparecem com baixa freqncia (ALVES,
2002). Entretanto, alm de gerar variabilidade, plantas originadas de semente possuem
importantes vantagens agronmicas, principalmente por serem livres de patgenos
sistmicos, enquanto a propagao vegetativa responsvel pela disseminao dessas
doenas (PUJOL et al., 2002).
A biologia reprodutiva da mandioca favorece a reproduo cruzada: uma
espcie monica; suas flores pistiladas, situadas na base da inflorescncia, abrem-se
primeiro (protoginia); as flores estaminadas situam-se na poro superior da
inflorescncia e se abrem aps as pistiladas (ROGERS, 1965). Parece no haver
mecanismos que impeam a hibridao interespecfica e, por isso, parte da diversidade
da mandioca pode ser resultado da hibridao de cultivares de mandioca com outras
espcies de Manihot (PIPERNO & PEARSALL, 1998).
Uma ampla divergncia gentica entre populaes ou grupos de variedades,
pode resultar na existncia de grupos heterticos. Estes so extremamente importantes
em programas de melhoramento gentico para explorar os benefcios da heterose.
2.5 A Heterose
Heterose a expresso gentica das diferenas entre os hbridos e seus
respectivos parentais. Essa diferena pode manifestar-se de forma muito positiva, como
por exemplo, o aumento de produtividade. Assim, a tcnica para explorao do vigor de
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hbrido uma das maiores contribuies da gentica e melhoramento de plantas para a
agricultura mundial (PATERNIANI, 2001). Esse vigor de hbrido pode ser conceituado
como a superioridade mdia da populao F1 em relao mdia dos parentais e
depende da existncia de efeitos gnicos de dominncia e divergncia gentica entre os
genitores (FALCONER, 1981).
Uma das principais vantagens da utilizao dos hbridos consiste na associao
em um mesmo indivduo de caractersticas vantajosas que esto separados nos parentais,
permitindo assim a obteno de gentipos superiores em um curto espao de tempo
(PATERNIANI, 1974).
A heterose depende da divergncia gentica dos parentais. Essa divergncia
geralmente desconhecida e determinada diretamente atravs de cruzamentos entre as
variedades que se deseja testar. Quanto maior for a manifestao da heterose no
cruzamento entre dois parentais, maior ser o grau de divergncia gentica entre eles
(HALLAUER & MIRANDA, 1988). Portanto, para utilizar as vantagens da heterose em
uma espcie primeiramente devem-se identificar parentais contrastantes. Alm da forma
direta, outras evidncias podem ser indicativas de divergncia gentica, como:
diferentes origens geogrficas, distintos modos de utilizao, ou grupos submetidos
presso de seleo diferenciada. Segundo BORM (1998), indivduos de grupos
heterticos distintos seriam mais contrastantes entre si do que aqueles pertencentes ao
mesmo grupo. Portanto, quando so cruzados indivduos de diferentes grupos, aumenta
a probabilidade de se encontrarem parentais com heterose. Todavia, quando o nmero
de gentipos que se deseja testar muito elevado, o uso de cruzamentos diallicos
torna-se impraticvel. Pode-se, nessas situaes, considerar a diversidade fenotpica ou
gentica como um ndice de divergncia gentica (PEREIRA, 1989).
Tcnicas de biologia molecular vm sendo consideradas como mtodos rpidos
e eficientes para formao de agrupamentos. Este o primeiro passo para a
identificao de grupos heterticos. A vantagem das tcnicas de marcadores
moleculares que sua analise diretamente no nvel de DNA e, portanto, no sofre
efeitos ambientais, como em testes de campo (PATERNIANI, 2001).
Estudos de divergncia gentica entre indivduos ou populaes tm sido de
grande importncia em programas de melhoramento envolvendo hibridaes (VIDIGAL
et al., 1997). A maioria desses trabalhos realizados com heterose est concentrada na
cultura do milho, principalmente devida grande contribuio que essa tcnica trouxe
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ao melhoramento dessa gramnea e a ampla utilizao do milho hbrido (HALLAUER
& MIRANDA, 1988; PATERNIANI, 2001).
Com relao mandioca, poucos trabalhos foram realizados para identificar
genitores, ou ento, caractersticas divergentes de grupos heterticos que poderiam ser
utilizados em futuros programas de melhoramento (VIDIGAL et al., 1997). Indicaes
de agrupamentos em mandioca foram obtidas por PEREIRA (1989) com o estudo de
descritores botnicos em Bancos de Germoplasma de mandioca. VIDIGAL et al. (1997)
utilizaram dez caractersticas morfoagronmicas e duas relacionadas qualidade das
razes para estimar a divergncia gentica entre nove cultivares de mandioca. VALLE et
al. (2007) analisaram caractersticas agronmicas e o potencial cianognico de grupos
de variedades, pertencentes a diferentes macro-regies brasileiras, e encontraram
tendncias de diferenciao entre variedades de mandioca de origens amaznica e da
regio BrasilParaguai. As variedades da Amaznia foram aquelas que apresentaram
maior potencial cianognico, pois uma regio caracterstica de mandiocas bravas. J o
Brasil-Paraguai h uma predominncia de variedades mansas.
As divergncias nos teores de glicosdeos cianognicos nas variedades de
mandioca pode ser um indicativo de diferentes grupos heterticos. VALLE et al. (2004)
fizeram cruzamentos de variedades bravas e mansas para verificar o perfil cianognico
das prognies segregantes visando utilizar as primeiras no melhoramento de mandiocas
mansas. Esses autores concluram que: o potencial cianognico no impede a utilizao
de mandiocas bravas no melhoramento de variedades mansas; a segregao
transgressiva do carter permite o aparecimento de variedades com baixo teor de HCN
nos cruzamentos de mandiocas bravas; e vice-versa.
3 MATERIAL E MTODOS
3.1 As Fontes de Dados
Para se comparar a convergncia de informaes das cincias humanas e
biolgicas na estruturao de germoplasma de mandioca recorreu-se a trs fontes de
dados:
1) Acervos bibliogrficos: foram consultadas as bibliotecas acadmicas das
seguintes instituies: Instituto Agronmico IAC; Instituto de Filosofia e Cincias
Humanas IFCH/UNICAMP; Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz
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ESALQ/USP; Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas FFLCH/USP;
Instituto de Estudos Brasileiro IEB/USP; Faculdade de Economia, Administrao e
Contabilidade FEA/USP.
2) Internet (bibliotecas digitais e sites de busca): principalmente pesquisas no
Google acadmico, Google livros, Scielo e revistas cientficas digitais. O Google livros
se mostrou uma excelente ferramenta para obter livros completos, sobretudo aqueles
mais antigos, disponibilizados por bibliotecas da Europa e dos Estados Unidos. Assim
como diversos volumes da Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro,
contendo informaes valiosssimas, como as primeiras descries realizadas no pas
durante o sculo XVI. Atravs de palavras-chave como mandioca, Manihot, manioc,
mandioc, cassava, manddioca, macaxeira, aipim, aypi, alimentao indgena, ndios,
roa, roado, alm do nome dos principais cronistas e antroplogos, permitiu a
visualizao de centenas de acessos; dentre tantos, selecionaram-se os que continham as
informaes pertinentes ao objetivo deste trabalho. Buscaram-se tambm as referncias
em um processo de rede, onde uma informao bibliogrfica levava s demais.
3) Arquivos do acervo do Instituto Agronmico: foram utilizados tambm dados
obtidos em pesquisas com a cultura da mandioca, desenvolvidos por pesquisadores e
estagirios do Instituto Agronmico. Esses trabalhos referem-se ao germoplasma,
melhoramento, etnobotnica, biotecnologia e quantificao de glicosdeos cianognicos
dessa cultura.
As bibliografias encontradas foram ento divididas em dois grupos:
I) Informaes no mbito da Biologia: obtidas a partir de dados cientficos, com
conceituao moderna, realizados com germoplasma, recursos genticos,
melhoramento, etnobotnica, bioqumica e biotecnologia (marcadores moleculares),
tanto para estudos de diversidade gentica como taxonomia.
II) Informaes no mbito da Antropologia: provenientes de fontes histricas da
mais variada natureza: relatos de viajantes, cronistas, naturalistas, antroplogos. Essas
referncias abrangem mais de 400 anos de informaes documentais. Muitas delas
transcrevem as tradies orais dos amerndios, que era a forma de transmisso da
histria e cultura desses povos, e, com isso, essas informaes abrangem tambm fatos
dos sculos anteriores chegada dos portugueses ao Brasil.
Essas referncias foram subdivididas em cinco subgrupos descritos a seguir:
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a) Fontes gerais:
Constitudas por livros de Histria Geral e da Agricultura no Brasil, com
informaes abrangentes e generalistas. Proporcionam uma viso abarcante do
assunto. Muitas vezes se baseiam em outras fontes de informaes, como nas
descries dos cronistas. Consequentemente, podem ser utilizadas para indicar
outras referncias a serem consultadas. So exemplos os livros: Botnica e
agricultura no Brasil no sculo XVI, de Frederico Carlos Hoehne (1937);
Histria geral do Brasil, de Francisco Adolpho de Varnhagen (1854); Histria
geral da agricultura brasileira, de Luis Amaral (1939).
b) Relatos de viajantes e cronistas:
Podem ser apresentados na forma de dirios ou relatos pessoais sobre
esse continente ainda desconhecido. So ricas em descries das populaes e
dos lugares por onde esses autores passaram, principalmente em relao s
diferenas culturais encontradas em uma terra totalmente nova. Esses escritores
so normalmente estrangeiros, na maioria deles, franceses, ingleses e
holandeses, alm dos colonizadores portugueses. Entretanto, deve-se estar atento
para isolar as tendncias e influncias polticas, religiosas ou pessoais, das
informaes objetivas, que esses registros podem apresentar, assim como se
considerar a poca em que foram escritos. Esses autores quase sempre
descreveram a mandioca como uma cultura pitoresca, distinguindo os grupos de
mandiocas bravas e mansas como castas ou espcies distintas. Portanto,
possvel obter informaes valiosas sobre essa cultura a partir dessa literatura.
Neste grupo podemos citar: Viagem ao Brasil, 1557, de Hans Staden; Tratado
descritivo do Brasil, 1587, de Gabriel Soares de Sousa; Travels in Brazil, 1816,
de Henry Koster.
c) Descries de naturalistas:
As descries realizadas pelos naturalistas que vieram estudar a fauna e
flora brasileira tm um carter descritivo, objetivando as classificaes botnicas
e baseadas nos pressupostos da Histria Natural. Apesar do interesse direcionado
s riquezas naturais, no deixaram de descrever o ser humano encontrado e sua
relao com o meio. Constituem informaes valiosas quanto taxonomia e
botnica das plantas encontradas, tendo uma base cientfica fundamental. Esses
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cientistas tambm deixaram uma grande coleo de desenhos botnicos e
exsicatas, essenciais para estudos taxonmicos. Exemplos: Histria natural do
Brasil ilustrada, 1648, de Guilherme Piso; Histria natural do Brasil, 1648, de
Jorge Marcgrave.
d) Iconografias:
Traduzindo literalmente, a palavra iconografia significa escrita da
imagem. Encaixam-se nesse grupo as ilustraes de paisagens, amerndios,
animais e plantas. Os naturalistas se utilizavam da iconografia para registrar e
classificar as plantas que encontravam no pas. Trabalhos como Plantarum
Brasiliae (1831), de Johann Baptist Emanuel Pohl, contendo iconografias de
grande parte das espcies do gnero Manihot, i