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1 INSTITUTO DE PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL DO RIO DE JANEIRO IFEN EXISTÊNCIA E CORPOREIDADE: A Questão da Psicossomática na Abordagem Fenomenológico-Existencial Elizabeth da Costa Ribeiro Rio de Janeiro 2005

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INSTITUTO DE PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL

DO RIO DE JANEIRO

IFEN

EXISTÊNCIA E CORPOREIDADE:

A Questão da Psicossomática na Abordagem Fenomenológico-Existencial

Elizabeth da Costa Ribeiro

Rio de Janeiro

2005

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INSTITUTO DE PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL

DO RIO DE JANEIRO

IFEN

EXISTÊNCIA E CORPOREIDADE:

A Questão da Psicossomática na Abordagem Fenomenológico-Existencial

Trabalho de conclusão de Curso

apresentado como requisito parcial

para a obtenção do título de

Especialista em Psicologia Clínica

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ana Maria

Lopez Calvo de Feijoo

Rio de Janeiro

2005

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EXISTÊNCIA E CORPOREIDADE:

A Questão da Psicossomática na Abordagem Fenomenológico-Existencial

Elizabeth da Costa Ribeiro

Aprovada em_____ de _______________ de _______

Orientadora

__________________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

Banca Examinadora

_________________________________________________________________________

Prof. Dr. Roberto Novaes de Sá

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Um romance, um poema, um quadro, uma peça musical são

indivíduos, quer dizer, seres em que não se pode distinguir a

expressão do expresso, cujo sentido só é acessível por um

contato direto, e que irradiam sua significação sem

abandonar seu lugar temporal e espacial. É nesse sentido que

nosso corpo é comparável à obra de arte. Ele é um nó de

significações vivas e não a lei de um certo número de termos

co-variantes.

Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção.

p. 209

(...) as lágrimas nunca podem ser medidas. Quando se mede,

medem-se na melhor das hipóteses um líquido e suas gotas,

mas não lágrimas. As lágrimas só podem ser vistas

diretamente. Qual o lugar das lágrimas? São elas algo

somático ou algo psíquico? Nem uma coisa nem outra.

Heidegger, Seminários de Zollikon.

p. 108

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AGRADECIMENTOS

À minha cliente pela confiança que depositou em meu trabalho como psicoterapeuta e por

sua generosidade em ceder as sessões para o estudo de caso desenvolvido nessa

monografia.

À minha orientadora Ana Maria Feijoo por tudo que me transmite: perseverança, seriedade,

competência, mas mantendo o coração e a arte do contato com o outro.

À equipe do IFEN: Bernadete Lessa, Elaine Feijoo e Myriam Protasio, exemplos de

cuidado e dedicação na realização de um objetivo.

Ao professores e amigos de turma do IFEN pelos conhecimentos compartilhados nas aulas,

cujos momentos foram sempre prazerosos.

À minha irmã Eliane Ribeiro pela árdua tarefa de revisar os escritos.

Aos meus alunos da Universidade Gama Filho que me inspiram a buscar o conhecimento

de forma autêntica.

Ao Paulo por me apoiar em minha busca nos estudos, e que a cada dia descubro como um

grande companheiro.

Ao Allan e à Luana filhos queridos e amores incondicionais.

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RIBEIRO, Elizabeth da Costa. Existência e Corporeidade: A Questão da Psicossomática na

Abordagem Fenomenológico-Existencial. 72 p. Monografia de Especialização em

Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial do Rio de

Janeiro, 2005

RESUMO

A presente monografia se caracteriza como uma pesquisa bibliográfica na qual

também é apresentada uma pesquisa qualitativa, um estudo de caso, que tem como objetivo

destacar a questão da Psicossomática na perspectiva da Abordagem Fenomenológico-

Existencial. Aborda-se o problema da corporeidade e da interelação soma-psique, questões

próprias da psicossomática, nos principais filósofos que fornecem sustentação teórica a essa

Abordagem, são eles: Kierkegaard, Sartre, Merleau-Ponty, Heidegger, e ainda, o psiquiatra

Medard Boss com suas contribuições em Daseinsanalyse. É feita uma exposição das

principais teorias em Psicossomática, além, de se tratar das implicações do modelo

mecanicista, visando fazer um contraponto com a Abordagem aqui adotada.

palavras chaves: fenomenologia existencial, psicossomática

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ABSTRACT

The present monography comprises a bibliographical research in which it is also

presented a qualitative research, a case study, whose goal is to focus on the psychosomatic

question through the Phenomenological-Existential approach. The complexity of

corporality and the interrelation of soma-psyche, which are related intrinsically to the

psychosomatic area, are dealt with in the main philosophers framework: Kierkegaard,

Sartre, Merleau-Ponty, Heidegger, besides Medard Boss, with his contributions in the

psychiatry field of Daseinsanalyse. In addition to an exposition of the main theories, this

study presents the constraints of the mechanicist model so as to make a counterpoint to the

adopted approach.

key words: existential phenomenology, psychosomatic

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

1. O MODELO MECANICISTA E O DUALISMO CORPO/MENTE

2. TEORIAS EM PSICOSSOMÁTICA

3. A QUESTÃO DA CORPOREIDADE E DA PSICOSSOMÁTICA NA

PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL

3.1. KIERKEGAARD

3.2. SARTRE

3.3. MERLEAU-PONTY

3.4. HEIDEGGER

3.5 MEDARD BOSS

4. ESTUDO DE CASO

4.1. APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA

4.2. METODOLOGIA

4.2.1. Procedimento

4.2.2. Instrumento

4.2.3. Participante

4.3. DISCUSSÃO

CONSIDERAÇÕES FINAIS

BIBLIOGRAFIA

ANEXOS

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INTRODUÇÃO

A idéia de fazer uma pesquisa, desenvolvendo uma monografia sobre o tema da

psicossomática, fundamentada numa abordagem fenomenológico-existencial, foi inspirada

por uma práxis clínica e pelas aulas que ministro em um curso de especialização em

psicossomática.

Além desta motivação inicial, entendo que o tema se justifica pela carência de

trabalhos em psicossomática que se fundamentem nesta abordagem. Podemos afirmar que,

na literatura em português, há uma hegemonia de uma concepção psicanalítica e

neurofisiológica tratando desse tema.

A psicossomática surge como uma tentativa de entendimento dos fatores

psicológicos das doenças. Ao lado dos estudos da fisiologia, teríamos os estudos do campo

psi, na busca das causalidades psíquicas, propiciando uma interelação desses dois âmbitos

da realidade humana. Entretanto, a perspectiva fenomenológico-existencial, irá criticar esse

modelo que compreende a realidade humana cindida como instância objetiva (corpo) e

subjetiva (mente/sujeito), e também, a noção de busca de causas psíquicas para as doenças.

Para a abordagem fenomenológico-existencial o físico e o psíquico não devem ser tomados

como objetos de estudo a fim de se determinar seus princípios e funcionamento, antes,

referem-se a possibilidade própria do existir humano em sua abertura existencial. E, ainda,

o corpo não é tomado como um mero objeto físico, passível de medição, constituido de

orgãos e limitado pela epiderme. Para Heidegger, o corpo não é um objeto, mas uma

qualidade da existência humana que traduz-se como corporeidade. A corporeidade constitui

o existir do homem, assim como a temporalidade, a espacialidade, a finitude, o ser-junto-

as-coisas e o ser-com-os outros.

Assim, esse trabalho visa a estudar a questão da psicossomática e como a mesma é

abordada pelos principais representantes da fenomenologia-existencial, que são:

Kierkegaard, Sartre, Merleau-Ponty, Heidegger e Medard Boss. Sabemos que o pensamento

de cada um destes autores tem uma tecitura própria, entretanto, não tenho intenção de

estudar convergências e divergências entre suas concepções. Respeitando a originalidade de

suas reflexões, tenho como objetivo, trazer à luz o tema da psicossomática em cada um

deles, para que as suas contribuições venham embasar o estudo de um caso clínico.

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Dessa forma, no primeiro capítulo, apresento as concepções que sustentam o

paradigma mecanicista na ciência. No segundo capítulo, exponho, brevemente, as

principais teorias em psicossomática. No terceiro capítulo, trato das noções da

fenomenologia existencial a fim de contrapor com as visões apresentadas nos dois capítulos

anteriores, bem como fundamentar uma perspectiva em psicossomática. Faço, ainda, uma

exposição das principais idéias, referentes à psicossomática dos autores vinculados à

abordagem fenomenológico-existencial e, a maneira que estas surgem como crítica ao

modelo mecanicista aplicado ao homem. No quarto, capítulo apresento o estudo de caso e

sua discussão articulada com a concepção filosófico-teórica aqui adotada.

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1. O MODELO MECANICISTA E O DUALISMO MENTE/CORPO

Nossa forma de pensar, de ver o mundo, de viver é muito influenciada pelas

concepções de Descartes. Esse filósofo nos ensinou a pensar metodicamente e discriminar a

realidade por partes. Descartes funda as bases metodológicas do pensar técnico em curso

desde os gregos, e que nos dias de hoje, aparece em seu auge.

Contudo é necessário compreender que a proposta cartesiana surge das exigências

do contexto sócio-histórico de seu tempo. Inclusive, com Heidegger (1989), aprendemos

que é necessário saber o âmbito de surgimento de um paradigma para melhor analisá-lo. Na

época de Descartes, há uma urgência do homem em renunciar a receber a determinação de

sua existência através de verdades reveladas pelas escrituras religiosas. O homem deixa de

apoiar-se na fé e na tradição para fundamentar-se em sua própria razão. Com Descartes

surge a concepção de um cogito subjetivo, livre, soberano, apartado do mundo, que pensa a

realidade objetiva material, e que deve fazê-lo mediante um método próprio, sem a

interferência de dogmas ou verdades pré-estabelecidas.

Heidegger (1989) mostra que antes de Descartes, no pensamento grego e medieval,

não há a noção de objeto nem de objetividade. O grego entende o “ser como tal”, no sentido

da presença, que implica uma dialética tanto de ocultamento quanto de desocultamento. O

conceito de objeto nasce com Descartes em função do surgimento do sujeito racional

apartado do mundo. Assim, passa a ser desenvolvida a idéia de que o objeto deve ser

entendido mediante a mensuração feita por um sujeito racional. Esses são conceitos

modernos, os quais surgem pelo fato de Descartes opor o cogito, o sujeito que pensa, a uma

realidade objetiva, material. Com ele há uma mudança radical da posição do homem diante

dos entes. Heidegger (1989) aponta, ainda, que a mudança do paradigma escolástico para o

moderno, inspirada por Descartes, possibilitou que existamos hoje num mundo tecnológico,

visto que a essência da técnica está na perspectiva reducionista da realidade como

materialidade objetiva.

Focalizando agora o paradigma proposto por Descartes, (1983/a) entendemos que

para ele só há uma verdade em cada coisa e, esse filósofo, busca conhecer essa verdade,

paulatinamente, segundo o método que prescreve. Nessa busca, despreza tudo que venha da

literatura, da poesia, da história, por considerá-las como fontes duvidosas para suas metas

de conhecimento da verdade. Concebe a observação da realidade, aliada ao modelo

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matemático, a via para seu intento. Descartes (1983/a) propõe, no Discurso do Método,

quatro preceitos a serem severamente observados:

O primeiro, era jamais acolher alguma coisa como

verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal

(...) O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que

eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis para

melhor resolvê-las. O terceiro, o de conduzir por ordem

meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e

mais fáceis de conhecer (...) E o último, o de fazer em toda

parte enumerações tão complexas e revisões tão gerais que

eu tivesse a certeza de nada omitir. (p.37/38)

Com este filósofo a cisão mente x corpo aparece de maneira contundente. Ele opõe

o cogito (pensamento) a uma realidade extensa (material). E ainda, reduz a realidade a duas

coisas (res) distintas. Para ele, o pensamento é a única certeza, pois o pensamento que

duvida permanece o mesmo no ato de duvidar. A partir de suas meditações, Descartes

conclui que o pensamento, diferentemente das paixões, permanece como racionalidade e

não se altera. Assim, afirma que se o pensamento é a única certeza e, portanto, indubitável,

também deverá sê-lo a sua própria existência como ser pensante, já que é ele mesmo que

pensa. Dessa forma Descartes (1983/a) obteve duas certezas: a certeza do cogito e a certeza

da existência humana como racional cogito, ergo sum (penso, logo sou). Portanto, no

Discurso do Método, podemos constatar o dualismo e o racionalismo desta perspectiva.

E enfim, considerando que todos os mesmos pensamentos

que temos quando despertos nos podem também ocorrer

quando dormimos, sem que haja nenhum, nesse caso, que

seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas

que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais

verdadeiras que as ilusões de meus sonhos. Mas, logo em

seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que

tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava,

fosse alguma coisa. E notando que esta verdade: eu penso,

logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais

extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a

abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o

primeiro princípio da Filosofia que procurava. (Descartes,

1983/a, p.46)

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De acordo com Descartes (1983/a), o homem, por um lado, é uma res cogitans, uma

substância que pensa a si mesma e, por outro, uma res extensa, uma substância física. O

sujeito é um eu, uma alma, uma substância pensante cujo corpo faz parte da realidade

material, extensa. A filosofia cartesiana concebe o homem com duas substâncias distintas

em sua essência e independentes por princípio. Ou seja: o pensamento é dado por Deus e o

corpo é submetido às leis do movimento e da mecânica, da mesma maneira que todos os

objetos físicos que encontramos no mundo. Aqui, realidade extensa, material, torna-se o

âmbito próprio para a investigação científica, pois pode ser concretamente investigada,

explicada, prevista e controlada. O modelo mecanicista de investigação dá impulso às

chamadas ciências físicas, biológicas e ao modelo técnico. Isto é explicitado por Descartes

(1983/b) em sua obra Meditações e, especificamente, em sua sexta meditação na qual

afirma a distinção entre a alma e o corpo.

(...) há grande diferença entre espírito e corpo, pelo fato de

ser o corpo, por sua própria natureza, sempre divisível e o

espírito inteiramente indivisível. Pois, com efeito, quando

considero meu espírito, isto é, eu mesmo, na medida em que

sou apenas uma coisa que pensa, não posso aí distinguir

partes algumas, mas me concebo como uma coisa única e

inteira. (...) E as faculdades de querer, sentir, conceber, etc.,

não podem propriamente ser chamadas suas partes: pois o

mesmo espírito emprega-se todo em querer e também todo

em sentir, em conceber, etc. Mas ocorre exatamente o

contrário com as coisas corpóreas ou extensas: pois não há

uma sequer que eu não faça facilmente em pedaços por meu

pensamento, que meu espírito não divida mui facilmente em

muitas partes e, por conseguinte, que eu não reconheça ser

divisível. (p. 139)

Assim, as influências desse filósofo são decisivas para o modelo biomédico

emergente em seu tempo. A idéia de um corpo separado da alma, como mera materialidade,

impulsiona as pesquisas em fisiologia e anatomia, assim como uma abordagem do corpo,

da doença e da dor como fenômenos físicos que merecem intervenção direta e que são

passíveis de correção.

Descartes impulsiona o desenvolvimento de um modelo biomédico mecanicista, que

se baseia sobretudo na pesquisa em fisiologia experimental. O foco passa a ser a

anormalidade biológica, a taxionomia, os aspectos universais da patologia. A pessoa

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existente em sua historicidade deixa de ser vista, para, então, ser enfatizada a doença e a

descoberta de suas causas.

A clínica médica, enquanto clínica das doenças, expõe o corpo que deve ser

pesquisado e aberto na procura das causas físicas dos males e sofrimentos humanos. O que

antes era oculto na pessoa, agora, o olhar médico descobre, trata e cura. A pessoa

desaparece em sua complexidade existencial de sentidos e significados.

O materialismo predominante no modelo biomédico entende o corpo como um

conjunto físico de sistemas relacionados, relativamente independentes, sujeitos às leis da

física, e a psique, como um epifenômeno resultante de fatores bioquímicos. Neste modelo,

cada doença é observada como tendo padrões diferentes de desenvolvimento. O foco é a

doença, a qual precisa ser combatida para que haja saúde. O modelo biomédico é

pragmático. A dor, a queixa, o sintoma é a própria patologia. A doença não é percebida

como linguagem existencial. O modelo biomédico reduz o homem a uma entidade objetiva

constituída de partes.

Seguindo tal modelo de divisão mente x corpo, a psicologia surge como ciência,

baseando-se na metodologia mecanicista dos fatos registráveis. Nasce assim, a Psicologia

Experimental de Wundt, a Reflexologia de Pavlov, e o Behaviorismo de Watson. A

Psicanálise também sofrerá influências deste mesmo modelo aplicado a todas as dimensões

da vida humana, pois tenta explicar o homem como estrutura psíquica e dinâmica de forças.

Se por um lado, o modelo biomédico busca a causa das doenças em padrões

constituídos por lesões anatomo-fisiológicas, fica em aberto o problema da doença mental e

da psiquiatria emergente. Assim, pensa-se em causas orgânicas para as doenças mentais e

na descrição de uma sintomatologia, o que origina o desenvolvimento de uma

psicopatologia nos moldes biomédicos.

O corpo da ciência moderna, tomado como uma res extensa, uma coisa/objeto,

torna-se um ente impessoal desprovido de existencialidade, historicidade e temporalidade.

Assim como a doença torna-se uma entidade nosológica caracterizada por um conjunto pré-

determinado de sinais e sintomas, passíveis de serem rigorosamente avaliados.

Entendemos que na contemporaneidade o paradigma mecanicista aliado ao sistema

econômico capitalista irá produzir modelos tecnicistas de controle que irão nortear e

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dominar a perspectiva em saúde. Podemos caracterizar este modelo mecanicista com os

seguintes pontos:

Concepção de neutralidade e objetividade como soberanas na busca de

conhecimentos e no trato com as pessoas.

Prioridade de uma metodologia quantitativa.

Crença em explicações causais, sua determinação e generalização.

Visão do homem como constituído por gens e uma associação de células, sistemas,

órgãos e substâncias químicas.

Ênfase nos especialismos e na sua eficiência técnica para resolução e controle de

situações.

Tratamento de sintomas e sua eliminação, sendo esta a concepção de cura.

Autoridade e poder inquestionáveis do técnico-especialista.

Dependência da pessoa em relação às intervenções dos especialistas.

Negação das experiências singulares, da sensibilidade, da paixão e da finitude.

Segundo Feijoo (2002) a Psicologia fundamentada no positivismo de Comte e no

mecanicismo de Descartes baseia-se no racionalismo, determinismo, objetividade, certeza,

previsibilidade, superação, a fim de alcançar princípios universais e inquestionáveis.

Afirma, ainda, a autora que a psicologia científica vai considerar:

a angústia: como um mal a ser curado, a fim de cumprir a

promessa da ciência moderna de que o homem encontre a

felicidade eterna e o bem estar, extraindo da natureza todos

os bens que esta possa ceder ao homem;

a técnica: como instrumental que possibilita extrair todos os

recursos que o homem dispõe para maior produção. Cultura

da utilidade, do progresso, da perfeição;

o domínio do ter: ter vida e juventude eterna. Ter no sentido

de consumir, acumular. É o ter que garante o valor do

homem. Ter sucesso, ascenção profissional, estudos;

projeto de perfeição: (...) mundo competitivo onde o lema

é: ‘o mundo pertence aos melhores.’ Domínio da vontade: o

homem é o todo poderoso do universo. (...) Aquele que não

ascende está paralisado pela sua baixa estima, sentimentos de

inferioridade e pela inadequação às demandas do mundo.

(...);

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o potencial humano: o homem como recurso que deve dar

tudo de si para o crescimento de uma nação passa a ser visto

como potencial a ser desenvolvido. (p. 133/134)

Essa exposição serve para que possamos verificar como a visão mecanicista

influencia as teorias tradicionais em psicossomática, as quais serão abordadas no capítulo

seguinte, e como a fenomenologia existencial se baseia numa crítica a concepção

mecanicista propondo um outro olhar sobre a vida, o homem e a relação mente-corpo.

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2. TEORIAS EM PSICOSSOMÁTICA

Neste capítulo fazemos um trajeto histórico das principais vertentes teóricas em

psicossomática. Não é nosso objetivo aprofundar cada uma delas, mas apresentá-las a fim

de traçar um contraponto dessas visões com a visão adotada neste estudo.

Segundo Mello Filho (1992), o termo psicossomática foi criado em 1918 por

Heinroth que mais tarde, em 1928, cunha o termo somatopsíquica, cujo objetivo era

distingüir dois tipos de causalidade e suas diferentes destinações. Ainda para este autor a

psicossomática evoluiu em três fases: a primeira fase, a psicanalítica, que compreedeu a

origem inconsciente das doenças; a segunda fase, considerada behaviorista, que utilizou o

modelo quantitativo de pesquisa com seres humanos e animais enfatizando o estudo sobre o

estresse; e a terceira fase, considerada multidisciplinar, que privilegiou a atividade de

interação entre os vários profissionais de saúde, numa perspectiva de sociopsicossomática.

Psicossomática, em síntese, é uma ideologia sobre a saúde, o

adoecer, e sobre as práticas de saúde, é um campo de

pesquisas sobre estes fatos e, ao mesmo tempo, uma prática,

a prática de uma Medicina integral. (Mello Filho, 1992, p.19)

Já para Eksterman (1992), a Medicina Psicossomática é algo recente no âmbito

mundial e se ergue em função de três vertentes teóricas: a Psicogênica, a Psicologia Médica

e a Antropologia Médica. A primeira compreende certas doenças como sendo determinadas

pelo psiquismo e seu foco é a questão diagnóstica, ou seja, a patogenia. A segunda refere-se

à humanização da relação médico-paciente, e seu foco é a terapêutica ou a atuação clínica.

E a terceira vertente diz respeito à ação terapêutica voltada para a pessoa doente,

considerando sua biografia.

A Psicossomática é, portanto, uma nova visão da patologia e

da terapêutica, tornando possível o axioma antropológico do

objetivo médico. Em outras palavras, trouxe para o

pensamento médico-científico e para a prática assistencial o

mote clássico: tratar doentes e não doenças. (Ecksterman,

1992, p. 29)

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Cerchiari (2000) faz um estudo histórico e epistemológico da psicossomática, bem

como apresenta as principais contribuições: a freudiana, a da Escola de Chicago, a da

Escola de Paris, a da Escola de Boston, as explicações biológicas e neurofisiológicas e

outras concepções como as de Dejours, Sami-Ali e A. Dias. Passamos a fazer o trajeto

histórico apresentado por essa autora.

Em Freud (apud Cerchiari, 2002) não há uma preocupação em criar uma teoria

psicossomática, entretanto, há uma íntima relação entre suas teorias e uma concepção em

psicossomática. O conceito freudiano de “complacência somática” (na histeria, a escolha de

um órgão expressando simbolicamente o conflito inconsciente) é uma tentativa de articular

o somático e o psíquico.

Com Alexander e Dunbar (op. cit.), autores da chamada Escola de Chicago, se

consolida a psicossomática nos EUA. Para Alexander (op. cit.), certas situações de vida

geram síndromes psicossomáticas específicas, enquanto para Dunbar (op. cit.), os tipos de

personalidade ou padrões de conduta originam problemas psicossomáticos também

específicos.

No final dos anos de 1950 os estudiosos da Escola de Paris diferenciam-se dos

pesquisadores dos EUA. Autores como P. Marty, M’Uzan, M.Fain e C.David (op. cit.), a

partir de uma escuta analítica, descobriram que pacientes careciam de elaboração

simbólica, apresentavam precariedade onírica e imaginativa. Utilizam o conceito de

“pensamento operatório” para designar a forma de pensar e lidar com as emoções

características de pacientes psicossomáticos em virtude da impossibilidade de comunicação

entre o consciente e o inconsciente.

Nos anos de 1970, John Nemiah e Peter Sifneos (op. cit.), da Escola de Boston,

definem pacientes psicossomáticos como alexitímicos, ou seja, pacientes que revelam

dificuldades em expressar e descrever suas sensações e sentimentos, acarretando uma forma

de se comunicar confusa e improdutiva, além de uma precariedade imaginativa.

Autores que tomam uma abordagem biológica e neurofisiológica preocupam-se com

a questão do estresse. Chrousos e Gold (op. cit.) definem estresse como estado de

desarmonia ou de homeostase ameaçada. O endocrinologista Hans Selye (op. cit.) define

estresse como a resposta do organismo a uma situação que exige esforço de adaptação e

afirma que o estresse apresenta três fases: a de alarme, a de resistência e a de exaustão. Já o

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fisiologista Walter Cannon (op. cit.) observou em suas pesquisas que animais submetidos a

estímulos estressores se preparavam para a luta ou fuga apresentando alterações fisiológicas

e hormonais. E, ainda, Holmes e Rahe (op. cit.) desenvolveram uma escala de pontuação na

qual os eventos da vida podem ser classificados em função do esforço adaptativo. Em

função da classificação obtida, se evidencia a maior ou menor probabilidade da pessoa

desenvolver problemas psicossomáticos decorrentes do estresse.

Seguindo uma perspectiva psicanalítica em psicossomática Chistophe Dejours (op.

cit.) aborda a interrelação entre aquilo que denomina de corpo fisiológico e corpo erótico.

Para ele os problemas psicossomáticos decorrem de uma subversão libidinal e da

construção do corpo erótico ancorado nas funções bio-endócrinas.

Sami-Ali (op. cit.) faz uma análise crítica do modelo psicanalítico propondo um

modelo multidimensional em psicossomática. Afirma que a questão da psicossomática não

está em se considerar de um lado soma e de outro psique, mas considerar a relação original

existente antes e depois do nascimento. Para ele a organização espaço-temporal é o

parâmetro para a compreensão dos fenômenos psicossomáticos. Dentro dessa perspectiva, a

organização espaço-temporal a atividade onírica funcionaria como criadora de realidade. A

ausência da atividade onírica predispõe ao surgimento da chamada patologia de adaptação

ou dos problemas psicossomáticos.

A. Dias (op. cit.) propõe a utilização do termo “somatopsicose”. Esse autor parte

das concepções de Bion e afirma que no adoecer psicossomático ocorre uma hiper-

adaptação ao outro onde o sujeito se condena a uma tirania do outro sem espaço para suas

projeções. A pessoa se torna um grande introjetor.

Podemos constatar que as teorias apresentadas encontram-se vinculadas ao

paradigma que separa uma realidade objetiva (corpo) e uma realidade subjetiva (mente).

Partindo do princípio da causalidade, ou seja, de um determinismo psíquico ou de um

determinismo biológico buscam uma predisposição para as doenças.

Entendemos serem tentativas de compreensão do humano em seu adoecer de uma

forma ampliada, esforços em reunir soma e psique. Em função disso, contribuem para uma

relação mais humanizada com o paciente, já que ele deixa de ser um mero corpo-máquina

para se revelar também como sujeito em sua história pessoal.

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Essas concepções tentam unir o que sofreu uma disjunção, tentam rearticular soma e

psique, mas se mantêm num modelo de causalidade. Entretanto, do ponto de vista

fenomenológico-existencial, apoiado em Heidegger (2001), compreendemos que a raiz

desta cisão está na própria concepção de cientificidade e seu método. A ciência moderna,

estabalecendo a racionalidade da lógica matemática e a causalidade como princípios, vê na

discriminação, na separação e na atomização dos fenômenos, a via para o conhecimento da

realidade. Na busca de certezas dadas pelo cálculo e pela quantificação, perde a perspectiva

da complexidade dos fenômenos da vida.

O que Heidegger (2001) nos propõe é o questionamento desse método a fim de que

entendamos as raízes dessa dicotomia. Portanto, do ponto de vista fenomenológico-

existencial, tais teorizações ainda se mostram insuficientes, pois teorizam a partir de um

modelo mecanicista sem questioná-lo. Para Boss (1959), o problema reside na busca de

causas. Afirma ele:

Muitos médicos crêem poder determinar o caráter dito

‘psicossomático’ de um enfermo procurando inicialmente se

o paciente, ao lado dos sintomas somáticos, apresenta

fenômenos ‘nervosos’. (...) todas as estatísticas sobre a

porcentagem de nervosos ou neuróticos no seio de tal grupo

patológico são sem valor. Sem contar o erro suplementar de

confundir ‘psicossomático’ e ‘psicogênico’. (p.160)

Boss questiona a psicossomática em sua vertente tradicional a qual supõe que

algumas doenças físicas sejam manifestações de problemas psicológicos, e ainda, critica a

noção de causalidade para o entendimento da realidade humana. Para ele, tanto a saúde

quanto a doença, referem-se ao modo da abertura do existir, ou seja, ao modo como a

pessoa vive e lida com sua própria vida. Para este autor, deve-se contemplar o humano em

sua experiência de totalidade, na qual o corpo, como corporar existencial, está sempre

presente.

A seguir será apresentada a concepção em psicossomática, baseada numa filosofia

da existência, evidenciando, assim, sua diferença dos modelos de causalidade psíquica

expostos nesse capítulo, e denominados por Boss (1959) como modelos psicogênicos.

Veremos que essas teorias não pretendem ser novos modelos explicativos para o

adoecimento mas lançam um novo olhar sobre o sofrimento do homem.

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3. A QUESTÃO DA CORPOREIDADE E DA PSICOSSOMÁTICA NA

PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL

Filósofos como Kierkegaard, Sartre, Merleau-Ponty e Heidegger cada um a seu

modo, fazem críticas ao racionalismo, causalismo, determinismo e reducionismo aplicados

às ciências do homem. Declaradamente, os três últimos, seguindo a tradição

fenomenológica inaugurada por Husserl, procuram demonstrar como as ciências humanas

perdem sua autonomia neste mundo técnico e como podem ainda se recuperar e estar a

serviço de uma compreensão do homem no mundo contemporâneo. Suas propostas podem

ser resumidas pelo intento de resgate da questão do existir humano ou do mundo vivido que

se torna obscurecido pelo modelo científico-tecnológico de nossos dias. A verdade, no que

diz respeito ao existir humano, não pode estar estritamente condicionada a certezas

quantitativas. O viver humano não é previsível nem se enquadra numa lógica matemática,

porém, processa tanto na ambigüidade quanto no paradoxo. Sartre e Merleau-Ponty,

inspirados pela fenomenologia-transcendental de Husserl, fazem uma fenomenologia-

existencial, e Heidegger, também tendo como mestre Husserl, desenvolve uma

fenomenologia-hermenêutica.

Kierkegaard insurge-se contra o racionalismo e fala da singularidade do ser humano

e da angústia do existir. O homem não é passível de ser explicado tal como um objeto, e a

vida escapa a qualquer intento de racionalidade. É no movimento da vida que se revela o

existir humano. Segundo o filósofo, é nessa vivência, que é intransferível, que a pessoa se

dá conta de sua própria existência. Portanto, a promessa de se tentar resolver os conflitos da

existência, através de previsões matemáticas, está fadada ao fracasso. O modelo científico

não consegue dar conta das contradições que são próprias da vida.

A temática central de Sartre é a questão da liberdade humana. Este filósofo fala da

impossibilidade de determinação do homem e de seus atos, já que sua condição existencial

é de projeto que se constrói numa ação engajada no mundo. Em Sartre, há uma visão de

processo existencial, a pessoa nunca “é”, ela constantemente “está”.

Merleau-Ponty segue o caminho inaugurado por Husserl, que opõe a noção

racionalista de consciência como pura interioridade à concepção fenomenológica de

intencionalidade da consciência. Também concebe, assim como Husserl, um retorno ao

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mundo vivido, uma busca da experiência originária e total do homem. Entretanto, Merleau-

Ponty abandona a concepção husserliana de consciência transcendental e, por conseguinte,

a noção de intencionalidade deixa de ser exclusividade da consciência. Desenvolve uma

fenomenologia-existencial como um caminho para a descrição dos fenômenos da vida

humana e de seu cotidiano, para, assim, alcançar uma compreensão das situações, das

motivações humanas e dos seus sentidos existenciais. Concebe, ainda, a experiência

perceptiva e corporal, como sendo as experiências que abrem o mundo tal como vivido.

As idéias de Husserl também influenciam Heidegger radicalmente na elaboração de

sua própria fenomenologia, ou seja, a critica ao modelo positivista aplicado ao homem; o

reexame da metodologia cartesiana e a concepção de um modelo próprio para o fenômeno

humano distinto da abordagem das ciências físicas; a idéia de que o ser humano não pode

ser concebido tal como um objeto; o alerta para os equívocos do cientificismo e a idéia de

que o racionalismo e o empirismo não podem ser tomados como as únicas possibilidades de

acesso à realidade numa pretensão em serem os parâmetros absolutos para todas as

verdades.

Em Heidegger, o homem encontra-se sempre numa relação de referência e de

significação em meio aos entes em geral e aos co-existentes. Dessa forma, o homem revela-

se como ser-no-mundo situado de maneira dinâmica, na forma de projeto, que a princípio,

na cotidianidade, assume um modo inautêntico e impessoal, mas como é abertura e projeto

tem, também, a possibilidade de assumir a si mesmo na autenticidade. A existência humana

se configura numa totalidade dialética do ser e do não-ser, do assumir-se e do perder-se

num conformismo massificante. No modo autêntico o homem se assume como histórico-

temporal e finito, e no modo inautêntico tenta tranqüilizar-se e fugir de seu ser-para-o-fim.

Entretanto, a angústia existencial, que aparece na forma de clamor, convoca novamente o

homem a si mesmo. Heidegger concebe o homem numa circularidade e que, portanto, só

pode ser desvelado, considerando-se tal fenômeno da existencialidade. O homem em

Heidegger não é uma coisa (res), tal como Descartes afirma: por um lado uma coisa

pensante e por outro uma coisa extensa. O homem em Heidegger, existe, ou seja, é abertura

de sentido.

Já no âmbito da psicologia e psiquatria temos Medard Boss que, a princípio sendo

psicanalista e, posteriormente, estudando as idéias de Heidegger, irá criticar o dualismo da

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noção psicanalítica de representação psíquica e somatização, desenvolvendo a chamada

Daseinsanalyse.

Passamos a nos concentrar no estudo de cada pensador citado enfocando suas

contribuições para uma reflexão no âmbito da psicossomática.

3.1. KIERKEGAARD

Kierkegaard é considerado o precurssor do existencialismo, pois critica as

generalizações acerca do homem e afirma sua singularidade na ação e na experiência de

estar vivo. Além disso, sua filosofia é marcada por uma crítica às instituições religiosas de

sua época e à afirmação da possibilidade da experiência cristã. Afirma Kierkegaard (1984)

acerca da existência humana:

O homem é espírito. Mas o que é o espírito? É o eu. Mas,

nesse caso, o eu? O eu é uma relação que não se estabelece

com qualquer coisa de alheio a si, mas consigo própria. (...)

O eu não é a relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si

própria (...) (p.195)

Em O Desespero Humano, obra de 1849, o filósofo afirma que o homem é espírito,

mas aqui, espírito não é algo dado a priori como na tradição metafísica, é movimento,

paradoxo, tensão de contrários. Pelo fato de em sua existência, o homem viver neste

movimento paradoxal (que diz respeito a eternidade do homem, por ser ele espírito) é que

ele se desespera. O desespero é, então, uma “doença”, já que dela não pode o homem se

curar. E ainda, é uma “doença mortal” já que é um mal que termina pela morte. Com a

morte do humano-singular também morre o desespero, já que é próprio da existência

humana.

Convém mencionar a constatação interessante de Kierkegaard (1984) sobre o

trabalho do psicólogo. O filósofo posiciona-se numa perspectiva bem distinta da psicologia

de seu tempo, a qual era dominada pela visão experimental, que consistia no estudo com

animais em laboratório, cujo objetivo era o de inferir acerca do comportamento humano,

algo que Kierkeggard (1984) repudiava como tarefa da psicologia. Para ele a psicologia

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deveria tratar da singularidade existencial do homem. Desse modo, dentro dessa visão, o

psicólogo é aquele que é sabedor da peculiaridade da existência humana, e assim afirma:

Ele (o psicólogo) sabe o que é desespero, conhece-o, e

portanto não se contenta com a opinião de quem não se crê

ou crê desesperado. Não esqueçamos, com efeito, que em

certo sentido nem sempre o são aqueles que dizem sê-lo. É

fácil imitar o desespero, é fácil que sejam tomadas como

desespero todas as espécies de abatimento sem

consequências, de sofrimentos que passam sem chegar a sê-

lo. Contudo o psicólogo não cessa, mesmo em casos destes,

de encontrar as formas do desespero; é certo que vê tratar-se

de afetação – mas até esta imitação é desespero; tampouco se

deixa iludir por todos os abatimentos sem conseqüência –

mas a insignificância destes ainda é desespero! (Kiekegaard,

1984, p. 204)

Segundo Kierkegaard (1984), o desespero se personifica, ou seja, nos paradoxos: do

infinito e do finito, da possibilidade e da necessidade.

Todavia, na busca em solucionar o desespero, ocorre que o homem pode se

cristalizar em um de seus extremos. Ele pode desesperar da infinidade, por carência de

finito. O eu, dessa forma, perde-se na imaginação, evapora-se. O eu, também, pode

desesperar de finito, por carência de infinito. Assim, o eu, comprime-se e limita-se

demasiadamente.

Já no desesperar do possível por carência de necessidade, o eu carece de real e

perde-se no desejo, na nostalgia, na melancolia, na esperança, no receio e na angústia. E,

ainda, no desespero da necessidade por carência de possível, o homem se torna um fatalista,

um determinista.

Para Kierkegaard, viver a liberdade significa existir, sustentando a tensão desses

contrários, portanto, sustentar a condição do desespero existencial. Querer resolver isto

significa perder-se a si mesmo em sua liberdade, daí o adoecimento e as queixas

psicossomáticas como reveladoras da perda da liberdade. Como afirma Feijoo (2000, p.

58):

O encontro com o próprio eu implica no enfrentamento do

paradoxo, o qual se constitui em um absurdo para a razão,

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mas não para a paixão. Nesta, o que se vivencia é o incerto, o

irrevogável – o desespero.

Contudo, há ainda, aquele que ignora o desespero, vivendo sob o domínio do

instante e da sensualidade, e aquele, que é consciente de seu desespero e foge de tal

situação, não assumindo a si próprio, ou também, aquele que assume a si próprio e acredita

em sua superioridade e em seu poder de criar a si mesmo. Nosso filósofo chama este último

de desespero estóico no qual o homem se torna um empreendedor de si mesmo. Afirma

Kierkegaard (1984, p.233) que o homem assim desesperado “não faz mais do que construir

castelos no ar e bater-se sempre contra moinhos de vento. Que brilho têm todas estas

virtudes de fazedor de experiências!”

Cabe lembrar que Kierkegaard é um filósofo religioso, assim, não vê como saída

para o desespero a vontade pessoal, mas num lançar-se à eternidade que é Deus.

Em O Conceito de Angústia, obra de 1844, nosso filósofo afirma seu propósito de

tratar psicologicamente esse tema. Diferentemente do temor, a angústia “é a realidade da

liberdade como puro possível” (Kiekegaard, 1968, p.45). A angústia ocorre quando o

homem, em sua inocência e ignorância, vê-se diante do nada, projetando sua possibilidade

que se desvanece assim que ele tenta capturá-la. Há portanto, uma ambigüidade psicológica

na angústia que Kierkegaard (1968) afirma como “antipatia simpatizante” e “simpatia

antipatizante”, ou seja, aquilo que ao mesmo tempo se quer e não se quer. Feijoo (2000)

comenta a ambigüidade da angústia da seguinte forma:

(...) mostra o caráter da mobilização deste sentimento que, ao

mesmo tempo em que traz o desejo como devir, traz o temor

do amanhã, justamente o imprevisível. (...) A angústia,

sentimento que ocorre frente a possibilidade, caracteriza a

situação de liberdade. (p.66/67)

Kierkegaard (1968) declara não ser seu intuito discutir as relações entre alma e

corpo, mas numa linguagem própria de seu tempo, afirma, brevemente, que “o corpo é o

orgão da alma e, por isso, também o do espírito.” (p.138/139)

Entretanto, se o homem fica na imediaticidade do corpo, perde-se na não liberdade.

Este homem carece, pois, de interioridade. Para o filósofo a não-liberdade ou falta de

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interioridade se manifesta em queixas psicossomáticas como: sensibilidade excitada,

irritabilidade e hipocondria. E ainda como: preguiça, curiosidade, autopromoção,

arrogância, fragilização, vitimização, trabalho excessivo, superstição, incredulidade

A interioridade, contudo, não é uma instância abstrata, mas uma compreensão

concreta, tem a ver com a vivência própria e singular da pessoa. Sobre isso afirma

Kierkegaard (1968):

O conteúdo mais concreto de que a consciência pode dispor é

a consciência de si, do próprio indivíduo não a consciência

de um eu puro, porém a de um eu tão concreto como jamais

nenhum escritor, ainda o mais rico em palavras, ainda o mais

forte na descrição, conseguiu traçar, porém que todo e

qualquer homem pode achar em si próprio. Esta consciência

do eu não fica resumida a uma simples contemplação; quem

a supuser jamais entendeu, pois quando nos fitamos vemo-

nos em devir e, por isso, jamais ninguém pode ser um todo

acabado para a contemplação. Desse modo a consciência do

eu é uma atividade, que por sua vez, se mostra como

interioridade (...) (p.145)

Para o filósofo, toda carência de interioridade ou falta de liberdade se revela no

homem como atitudes paradoxais: “ação passiva” ou “passividade ativa”. Também

enumera alguns exemplos desses modos de ser ambígüos: incredulidade e superstição,

hipocrisia e escândalo, altivez e covardia.

Porém, mesmo que a interioridade não possa ser apreendida concretamente, nem

tampouco contemplada abstratamente, nosso filósofo aponta o que denomina de

“seriedade” como a vivência da interioridade. Aborda a seriedade como um modo original

de ser, mantida na responsabilidade da liberdade.

Sempre que a originalidade da seriedade seja conquistada e

mantida, existe sucessão e repetição, porém quando não há a

originalidade na repetição, não existe senão hábito. O

homem sério exatamente o é graças a originalidade com que

é repetido na repetição.” (Kierkegaard, 1968, p. 150)

Assim podemos afirmar que o filósofo, em seu estilo peculiar, se refere ao que

conhecemos como o modo impróprio ou inautêntico e o modo próprio ou autêntico. A

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seriedade que se repete diz respeito à autenticidade, enquanto que o hábito equivale à

inautenticidade.

Mesmo que em Kierkegaard não haja reflexões acerca da corporeidade ou da

psicossomática, podemos haurir de seu escritos, principalmente, de O Desespero Humano e

O Conceito de Angústia, obras nas quais nos detivemos, que as manifestações

psicossomáticas acometem o homem por este se ver frente às tensões da vida, às

vissicitudes do existir, ao desconhecimento de seu futuro e à sua vulnerabilidade. Daí a

importância do homem reconhecer-se em seus limites, mas também, em suas

possibilidades.

3.2. SARTRE

Seguindo a proposta fenomenológica, Sartre (1997) denomina como “em-si” a

realidade das coisas e dos objetos existentes no mundo, a realidade intemporal. Já a

realidade humana, o filósofo a define como “para-si”. O “para-si” corresponde ao mundo

propriamente humano, ao mundo vivido da temporalidade.

O “para-si” é “ser-lançado-no-mundo”. O homem é para este mundo e para as

pessoas, assim como o mundo e as pessoas são para ele. Portanto, o homem é um ser

“mundano” que está sempre travando relações no mundo. O homem como “ser-para-si” é

pura “contingência” e “projeto” que nunca se realiza completamente, ele é “abertura” e

“liberdade”. Assim, nossa situação é de estarmos suspensos no “nada”, ou ainda, de

anunciá-lo. Se o homem é aquele que como abertura e liberdade, age e transforma o mundo,

criando sentidos, desenvolvendo idéias e conceitos, se ele faz conhecer o que “é”, ou seja, o

“ser”, também prenuncia o “nada”. Decorre da eventualidade de nossa condição no mundo

a “náusea”, tal como vivida por Roquentin, personagem do romance de Sartre (s/d). Diante

dessa situação nos resta duas saídas: existir como projeto que escolhe engajadamente, o que

gera “angústia”, ou fugir pela “má-fé”, não assumindo a responsabilidade pelas próprias

ações.

Portanto, em Sartre (1997), o homem é um ser que, estando no mundo e vivendo

sempre em situação, ou seja, sob certas condições políticas, sociais, culturais, tem sempre a

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possibilidade de escolher novos caminhos e novas maneiras diferentes de lidar com a

realidade, construindo um “sentido de vida”. O homem tem a possibilidade de não se

encerrar no fatalismo de uma circunstância ou se deixar imobilizar por uma dada realidade,

é isto que o diferencia dos objetos e dos outros entes do mundo. O homem tem a

possibilidade de “transcender”, e aqui, o termo refere-se à possibilidade crítica e de criação

do homem. Compreender o homem em sua totalidade como ser-no-mundo, o qual se revela

na dor, na ansiedade, no medo, na tristeza, no contentamento, no prazer e que tem sempre a

possibilidade de transformar-se.

Após estes breves esclarecimentos, situando conceitos fundamentais do pensamento

sartreano, vamos nos deter na questão do corpo a qual o filósofo trata na terceira parte de

sua obra O Ser e o Nada cuja primeira publicação ocorreu em 1943.

Sartre (1997) aponta que o corpo tomado como objeto de estudo pela ciência e que

me é apresentado pelo médico não é o corpo tal como vivencio. A consciência e suas

sensações também não se dão a mim tal como para o especialista num laboratório. Daí o

filósofo afirmar que não existo como um corpo-matéria nem como uma consciência-

subjetiva, mas como ser-lançado-no-meio-do-mundo.

O filósofo nos faz refletir sobre o fato de distingüirmos inadequadamente as

abstrações científicas da experiência existencial de estarmos vivos no mundo. Assim o

especialista confunde a enfermidade e sua descrição com a pessoa viva e sua queixa, e por

conseguinte, tenta enquadrar a pessoa naquilo que estudou, muitas vezes, reduzindo-a a

uma doença.

Seguindo a proposta de Sartre (1997), ao invés de partirmos de estruturas tal como

consciência e corpo, considerando elementos dotados de leis próprias e suscetíveis de

serem assim conhecidos e definidos como em Descartes, devemos partir do fenômeno ser-

no-mundo.

O corpo, para o filósofo, toma uma dimensão ontológica descrita como “para-si”. O

corpo, enquanto “para-si”, traduz-se como minha própria vivência corporal no mundo. O

“para-si” é a corporeidade que experimento quando caminho, ao sentir o perfume de uma

flor, quando vejo um pôr de sol, na dor causada por uma lesão em minha pele.... Assim,

“existo meu corpo”.

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Entretanto Sartre (1997) também fala de uma outra dimensão ontológica do corpo

implicada à primeira o corpo enquanto “ser-para-o-outro”. O corpo, como “ser-para-o-

outro”, é o corpo que é observado e conhecido pelo outro. Sendo assim, descubro a outra

pessoa como alguém que me observa, e também, como alguém para quem sou objeto. Neste

sentido, existo para mim, como conhecido pelo outro.

Estas dimensões ontológicas do existir enquanto corporeidade se implicam, são

relativas uma à outra e caracterizam a realidade humana como relacional. O princípio que

rege a existência humana é a relação. O homem, enquanto ser-para-si, não é o fundamento

de sua própria existência. O “para-si” revela-se como relação com o mundo. Portanto, o

ser-para-si engloba, necessariamente, o-ser-para-o-outro.

Vamos nos deter, brevemente, na elucidação do conceito de “ser-para-si” e “ser-

para-o-outro”. Fazendo críticas ao modelos cartesianos, os fenomenólogos inauguram uma

nova noção de subjetividade. Subjetividade em Sartre (1997) não quer dizer pertencer a um

sujeito que se motiva por si mesmo. Esse filósofo faz críticas à noção de “conteúdos” da

consciência, assim como afirma que isto se dá devido a uma “ilusão substancialista”.

Somos seres-no-mundo, sendo assim, “todas as nossas determinações pessoais pressupõem

o mundo e surgem como relações com o mundo.” (Sartre, 1997, p. 398). Não existimos

como entidades isoladas ou abstratas. Na definição de nosso filósofo, somos “para-si” e,

concomitantemente, “para-o-outro”.

Assim, as coisas são sempre “coisas-que-existem-à-distância-de-mim”, ou seja,

minha relação com o mundo é intencional, mundo e homem se revelam neste “entre”. Não

podemos falar em “conhecimento puro”, mas em “conhecimento comprometido”. O

homem na concepção sartreana não é aquele indivíduo fechado em si mesmo, ao contrário,

é do mundo e para o mundo, assim como o mundo é para ele.

(...) o mundo desde o surgimento de meu Para-si, desvela-se

como indicação de atos a fazer, esses que remetem a outros

atos, esses a outros, e assim sucessivamente. (...) o mundo,

como correlato das possibilidades que sou, aparece, desde

meu surgimento, como o enorme esboço de todas as minhas

ações possíveis. A percepção se transcende naturalmente

rumo à ação, ou melhor, só pode desvelar-se em e por

projetos de ação. O mundo se desvela como ‘vazio sempre

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futuro’, pois somos sempre futuros para nós mesmos. (Sartre,

1997, p. 407)

Sobre a questão da dor, aponta Sartre (1997), que esta revela a íntima ligação do

homem com o mundo, como vinculação contingente ao mundo. Portanto, “a dor pura, como

simples vivido, não pode ser alcançada: pertenceria à espécie dos indefiníveis e

indescritíveis, que são o que são.” (p. 420). A dor, dessa forma, refere-se a algo que diz

respeito à existência do ser-no-mundo. Nunca a dor pode ser algo psíquico, diz o filósofo, a

dor, por conseguinte, refere-se à relação homem-mundo.

Já sobre o conceito de “ser-para-o-outro”, Sartre (1997) afirma que o outro,

enquanto corporeidade, se revela a mim como corpo em situação, visto que jamais

captamos o corpo do outro fora de um contexto, fora de uma situação total que o indique.

Se não fosse assim, estaríamos falando de um cadáver e não de um corpo vivo.

Um corpo é um corpo na medida que esta massa de carne

que ele é se define pela mesa que olha, a cadeira que segura,

a calçada onde anda etc.. (...) O corpo é a totalidade das

relações significantes com o mundo: nesse sentido, define-se

também por referência ao ar que respira, à água que bebe, à

carne que come. O corpo, com efeito, não poderia aparecer

sem manter relações significantes com a totalidade do que é.

(p. 433)

O outro, portanto, é ser-para-mim à medida que o capto em suas significações. Em

Sartre (1997), tais significações, não remetem a um psiquismo, as significações se referem

ao mundo e ao “como” das relações do homem com seu mundo. Assim, a respiração

ofegante, o rubor da face, os olhos cerrados, o corpo trêmulo e etc. , não expressam a raiva

mas, tais fenômenos são a própria raiva.

Para o filósofo, a anatomia é o estudo da exterioridade. A fisiologia tenta

reconstituir o ser vivente a partir de cadáveres.

Desde o início, a fisiologia acha-se condenada a não

compreender seja o que for da vida, posto que a concebe

como uma modalidade particular da morte, e vê a

divisibilidade ao infinito do cadáver como dado primeiro

desconhece a unidade sintética do ‘transcender rumo à, para

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o qual a divisibilidade ao infinito é puro e simples passado.

Sequer o estudo da vida no ser vivente, sequer as

vivissecções, sequer o estudo da vida do protoplasma, sequer

a embriologia ou o estudo do ovo poderiam encontrar a vida:

o órgão que se observa está vivo, mas não está incorporado à

unidade sintética de uma vida, e sim é compreendido a partir

da anatomia, ou seja, a partir da morte. Portanto seria enorme

erro acreditar que o corpo do outro que a nós se revela

originariamente seja o corpo da anatomofisiologia. (Sartre,

1997, p. 439)

Afirma Sartre (1997) que a corporeidade do homem indica um “corpo-para-além-

de-si-mesmo” no espaço e no tempo, ou seja, é “corpo-mais-do-que-corpo” porque é dado

sempre em situação e, por isso, no transcender de sua facticidade. Como ele afirma, o corpo

jamais aparece sem arredores, e deve, portanto, ser determinado a partir desses arredores.

Assim, meu ser-no-mundo, só pelo fato de que realiza um

mundo, faz-se indicar a si mesmo como ser-no-meio-do-

mundo pelo mundo que realiza, e não poderia ser de outro

modo, porque não há outra maneira de entrar em contato

com o mundo a não ser sendo-do-mundo. Seria impossível

para mim realizar um mundo no qual eu não seja e que fosse

puro objeto de contemplação que o sobrevoasse. Mas, ao

contrário, é preciso que me perca no mundo para que o

mundo exista e eu posso transcender. Assim , dizer que

entrei no mundo, que ‘vim ao mundo’ ou que há um mundo,

ou que tenho um corpo, é uma só e mesma coisa. Nesse

sentido, meu corpo está por toda a parte no mundo: está tanto

lá adiante, no fato de que o poste luminoso esconde o arbusto

que cresce na calçada, quanto no fato de que mansarda, mais

longe, acha-se acima das janelas do sexto andar, ou no fato

de que o automóvel que passa ruma da direita para a

esquerda, detrás do caminhão, ou de que a mulher

atravessando a rua parece menor do que o homem sentado à

varanda do bar. Meu corpo, ao mesmo tempo, é co-extensivo

ao mundo, está expandido integralmente através das coisas e

concentrado nesse ponto único que todas elas indicam e que

eu sou sem poder conhecê-lo. (Sartre, 1997, p. 402)

Por outro lado, afirma Sartre (1997), que no ser-para-o-outro, este outro é captado a

princípio por mim como aquele para quem existo. O outro me observa e me conhece. No

entanto, numa concepção sartreana, o outro me apresenta a mim mesmo enquanto

corporeidade. Por intermédio das apreciações do outro, conheço meu corpo, adoto, muitas

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vezes, o ponto de vista do outro a respeito de meu próprio corpo. Por exemplo: sinto dor de

estômago e vivo meu próprio corpo dolorosamente. Então vou ao médico, e através de

exames, ele me informa sobre o problema da gastrite da qual estou sofrendo. O saber

objetivador do médico me retira da dor vivida para me apresentar uma enfermidade descrita

e classificada. O médico me ensina a meu respeito. Entretanto, este saber não é o saber

experenciado e vivido, mas um saber alienado, afirma o filósofo.

Sartre (1997) aponta que a cisão corpo/consciência ocorre pelo ponto de

partida que foi tomado: o corpo, como uma realidade exterior que deve ser investigado,

descobrindo-se suas leis, e em contrapartida, a consciência, que deve ser pesquisada em sua

interioridade, revelando-se o que lhe é próprio. Sartre, assim como Merleau-Ponty e

Heidegger, faz críticas a concepção dualista de Descartes e parte da noção de fenômeno

proposta por Husserl. Com esta noção, também desconstroi dicotomias tais como

interioridade e exterioridade, objetividade e subjetividade, corpo e alma, etc.. Assim, a

fenomenologia de Sartre visa uma aproximação com o fenômeno do existir.

3.3. MERLEAU-PONTY

A filosofia de Merleau-Ponty (1999) configura-se como uma crítica aos modelos

empirista e intelectualista. O empirismo considera o homem como um ente meramente

submetido às leis mecânicas da natureza e o intelectualismo concebe o homem como

pensamento que sobrevoa o mundo. Em Descartes (apud Merleau-Ponty, 1999, p. 109),

encontramos a seguinte afirmativa: “eu compreendo exclusivamente pela potência de julgar

que reside em meu espírito aquilo que acreditava ver com meus olhos.”

Em sua Fenomenologia da Percepção publicada em 1945, afirma o filósofo que na

tentativa de ficar imune às contradições da vida, o racionalismo e o empirismo criam um

mundo objetivo e a concepção de um sujeito racional neutro. O filósofo propõe, então, um

retorno àquele mundo considerado ilusório pela ciência, um retorno ao mundo vivido. Para

Merleau-Ponty (1999), a tarefa da filosofia é interrogar o mundo tal como lhe aparece,

questionar a experiência total do homem. Trata-se de recolocar o homem na ordem da

existência, noção esta que foi esquecida com a prevalência do pensamento positivista.

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Segundo o filósofo, precisamos reaprender a ver o mundo, originalmente. Entretanto, esse

retorno ao mundo da vida não diz respeito a um retorno a fases primitivas da vida humana,

mas uma contemplação da ambigüidade do existir que foi demovida pelo pensar técnico-

nivelador.

Segundo nosso filósofo, a experiência espacial, temporal e corporal antecede o

pensamento objetivo. “É preciso que reencontremos a origem do objeto no próprio coração

de nossa experiência.” (Merleau-Ponty, 1999, p. 109)

Merleau-Ponty, assim como Husserl, também se interessa pela questão do como o

homem conhece a realidade. Contudo, questiona o conceito de consciência

intencional/transcendental de Husserl e, influenciado pelas concepções dos psicólogos da

Gestalt, vai considerar o fenômeno perceptivo. Para Merleau-Ponty (1999), a percepção

revela-se como uma experiência primordial do homem, como experiência pré-reflexiva de

contato entre o homem e o que existe, ao contrário da tradição intelectualista/experimental

que concebe a percepção como um obstáculo ao conhecimento.

No empirismo, a percepção é tomada como uma função sensorial passível de ser

explicada por mecanismos psico-fisiológicos, enquanto, no racionalismo como um ato

autônomo do espírito. Segundo o filósofo aqui estudado, a percepção caracteriza-se por ser

uma experiência vivenciada, um arquétipo do encontro originário homem-mundo.

Merleau-Ponty (1999) assinala que na tradição filosófica cartesiana só se fala do

corpo, do universo, do espaço e do tempo em idéia. Assim, configura-se o pensamento

científico o qual faz com que percamos o contato com a experiência perceptiva.

Nosso filósofo desdobra a reflexão sobre a percepção para a questão do corpo. A

percepção é a experiência original do corpo com o mundo ao seu redor. O corpo não é um

espaço objetivado em contraposição a alma, mente ou inteligência. O corpo passa a ser

considerado como corporeidade, ou seja, é o elo vivo com a natureza, fonte de

conhecimentos e sentidos existenciais. Portanto, não se trata de um “eu penso” como uma

etapa para o conhecimento, trata-se de um conhecimento que se funda senso-corpoalmente.

Baseado em Merleau-Ponty, podemos afirmar que o corpo-sabe, o corpo-compreende e os

sentidos existenciais se manifestam corporalmente. Afirma ele (1999):

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A união entre a alma e o corpo não é selada por um decreto

arbitrário entre dois termos exteriores, um objeto, outro

sujeito. Ela se realiza a cada instante no movimento da

existência (Merleau-Ponty, 1999, p.131)

Na obra Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty (1999) dedica algumas

páginas ao fenômeno do membro fantasma que ocorre com pessoas que sofrem amputação.

Para ele, tal fenômeno não é efeito de uma causalidade objetiva ou física, tampouco,

psicológica, como uma crença ou recordação, mas diz respeito ao ser-no-mundo, o qual

sintetiza o físico e o psíquico.

Aquilo que em nós recusa a mutilação e a deficiência é um

eu engajado em um certo mundo físico e inter-humano, que

continua a estender-se para seu mundo a despeito de

deficiências ou de amputações (...) A recusa à deficiência é

apenas o avesso de nossa inerência a um mundo (...) Ter um

braço fantasma é permanecer aberto a todas as ações das

quais apenas o braço é capaz, é conservar o campo prático

que se tinha antes da mutilação. O corpo é o veículo do ser

no mundo, e ter um corpo, é para um ser vivo, juntar-se a um

meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-

se continuamente neles (p. 121/122)

Segundo o filósofo, o corpo que vive e está no mundo, é o “meu corpo”, e, portanto,

não pode ser reduzido a um mero objeto. Dessa forma, o homem existe e percebe o mundo

corporalmente.

Merleau-Ponty (1999) critica a concepção cartesiana de que tudo que existe pode

ser tomado como coisa (res) material (extensa) ou coisa (res) pensante (cogitan). Em

Descartes a dicotomia corpo/mente ocorre por se tratar ambos como coisas (res). Logo o

homem não é um fato psíquico unido a um fato orgânico, mas um vai e vem da existência

que ora se apreende como corporal ora como atos pessoais. Físico e psíquico se entrelaçam

numa relação de troca que se dá em um mundo.

O que nos permite a tornar a ligar o ‘fisiológico’ e o

‘psíquico’ um ao outro é o fato de que, reintegrados à

existência, eles não se distinguem mais como a ordem do em

si e a ordem do para si, e de que são ambos orientados para

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um pólo intencional ou para um mundo. (Merleau-Ponty,

1999, p.129)

Nosso filósofo afirma que o corpo não pode ser tomado como um objeto na medida

que meu corpo nunca está diante de mim, ele sempre está aqui para mim. Meu corpo,

portanto, não se oferece de fora para mim; por exemplo: quando sinto dor nas costas não

penso que as costas sejam a causa da dor, a dor vem das costas, minhas costas doem.

Além disso, Merleau-Ponty (1999) afirma que a psicologia clássica torna objeto, a

experiência do sujeito vivo. A psicologia opõe o psiquismo ao real, tratando o psiquismo

como objeto de estudo. Dessa forma, a experiência do corpo se degrada em representação

do corpo. O corpo deixa de ser um fenômeno, uma experiência e passa a ser um fato

psíquico, um modo de representação psíquica. O corpo, tomado mecanicamente, abafa a

experiência do corpo próprio e, consequentemente, a experiência do outro como existente.

Afirma Merleau-Ponty (1999, p. 195): “Meu corpo tem seu mundo ou compreende seu

mundo sem precisar passar por ‘representações’, sem subordinar-se a uma ‘função

simbólica’ ou ‘objetivante’.“

Esse filósofo tenta superar tal dicotomia, afirmando que existir significa ser um

corpo, que o viver sempre se dá corporalmente e que é no corpo que se dá a relação

homem-mundo. O corpo não é uma massa material, pois toda experiência humana é sempre

corporal. Assim, não podemos separar corpo e consciência. A filosofia de Merleau-Ponty

interroga a experiência vivida do homem encarnado, pois onde há corpo, há história vivida.

O corpo sintetiza minha história e minha relação com o mundo e antecede todo e qualquer

conhecimento intelectual. Daí a importância que o filósofo concede ao irrefletido como

fonte de conhecimento. O corpo não é mera representação de conteúdos da mente. O

homem não tem um corpo, mas é um corpo que percebe e é percebido.

Em Merleau-Ponty (1999), o corpo não é uma reunião de orgãos justapostos no

espaço. Tenho meu corpo como uma posse indivisa, sabendo da posição dos meus

membros por um esquema corporal. A espacialidade do corpo não é como a dos objetos,

uma “espacialidade de posição”, mas uma “espacialidade de situação”, ou seja, a

ancoragem do corpo ativo em um objeto, a situação do corpo em face de suas tarefas.

Assim, não é um “corpo objetivo” que movemos, mas um “corpo fenomenal”. O filósofo

recoloca o corpo em seu lugar original, como fonte e origem do conhecimento, afirmando

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que o corpo é o pivô do mundo, ou seja, o meio pelo qual temos um mundo. Vejamos o

exemplo dado pelo filósofo:

(...) o sujeito posto diante de sua tesoura, sua agulha e suas

tarefas familiares não precisa procurar suas mãos ou seus

dedos porque eles não são objetos a se encontrar no espaço

objetivo (...) mas potências já mobilizadas pela percepção da

tesoura ou da agulha, o termo central dos ‘fios intencionais’

que o ligam aos objetos dados. (Merleau-Ponty, 1999, p.

153)

De acordo com o filósofo, as explicações fisiológicas e psicológicas nivelam o

comportamento a uma explicação ou a outra e apagam o que ele denomina de “movimento

concreto” e “movimento abstrato”, os quais são duas maneiras de ser-no-mundo. E ainda,

para Merleau-Ponty (1999), a vida é sustentada por um “arco intencional” que projeta em

torno de nós nosso passado, nosso futuro, nosso meio humano, nossa situação física, nossa

situação ideológica, nossa situação moral e faz com que estejamos situados sob todos esses

aspectos. É esse arco intencional que faz, segundo o que está exposto na Fenomenologia da

Percepção, a unidade entre sensibilidade e motricidade.

O movimento, na perspectiva merleau-pontyana não é, então, o pensamento de um

movimento, o espaço corporal não é o espaço pensado ou representado. Cada movimento

determinado ocorre em um meio, sobre um fundo o qual é determinado pelo próprio

movimento. A apreensão de um hábito não se caracteriza por um ato associativo, mas por

uma apreensão de uma significação motora. O filósofo dá alguns exemplos, nos referimos

aqui a dois deles: a bengala de um deficiente visual não é para ele um objeto, ela não é

percebida por si mesma, mas sua extremidade transforma-se em zona sensível, torna-se

análoga a um olhar. Dirigir um automóvel significa instalar-se nele ou ainda fazê-lo

participar do caráter volumoso de meu corpo. Dessa forma, segundo Merleau-Ponty (1999,

p.212) o corpo é um “sistema de potências motoras ou de potências perceptivas (...) não é

objeto para um ‘eu penso’: ele é um conjunto de significações vividas que caminha para seu

equilíbrio.”

Na visão do filósofo existimos para nós mesmos pela experiência de nosso corpo e

pelo corpo assumimos o espaço, os objetos e instrumentos. À medida que a ciência se

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dirige para o espaço e a coisa percebida (os objetos), torna-se difícil descobrir a relação

entre sujeito encarnado e seu mundo. A visão científica não contempla a relação homem-

mundo porque entende um comércio: sujeito epistemológico que domina pela racionalidade

o mundo de objetos. A fenomenologia merleau-pontyana compreende a relação homem-

mundo como indissociável pois concebe o sujeito como sujeito encarnado no mundo.

No próprio instante em que vivo no mundo, em que me

dedico ao meus projetos, a minhas ocupações, a meus

amigos, a minhas recordações, posso fechar os olhos, estirar-

me, escutar meu sangue que pulsa em meus ouvidos, fundir-

me a um prazer ou a uma dor, encerrar-me nesta vida

anônima que subtende minha vida pessoal. Mas, justamente

porque pode fechar-se ao mundo, meu corpo é também

aquilo que me abre ao mundo e nele me põe em situação.

(Merleau-Ponty, 1999, p.227)

Portanto para Merleau-Ponty (1999) é por meu corpo, que tanto entendo o outro,

quanto percebo e compreendo as coisas.

3.4. HEIDEGGER

Durante quase uma década, Heidegger proferiu palestras, a convite de Medard Boss,

a psiquiatras na cidade de Zollikon. Nestes encontros, que foram transcritos e publicados

pela primeira vez em 1987, sob o título, Seminários de Zollikon, Heidegger discute, dentre

outras questões, o tema da relação entre psiquê e soma bem como a questão da

psicossomática como ciência.

Afirma Heidegger (2001, p.107) que “a questão do psicossomático é, em primeiro

lugar, uma questão de método.” A proposta inusitada do filósofo não se caracteriza por

pensar o psíquico e o somático, nem tampouco as possibilidades de integração ou

articulação destas duas dimensões. Porém fala da necessidade de um modo próprio de

aproximação do humano que possibilite vislumbrá-lo em sua complexidade e não como

soma e psique. Segundo ele, o modelo cartesiano aplicado ao homem divide, separa e

empobrece o homem em sua humanidade. Para Heidegger (1989) o homem não está no

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mundo da mesma maneira que as coisas estão. Por isso não pode ser investigado e

compreendido da mesma maneira que os objetos. O homem encontra-se lançado-no-mundo,

interrogando-se pelo seu sentido de vida, relacionando-se sempre com as coisas e com as

pessoas. Podemos entender, então, a insuficiência da metodologia cartesiana, objetivante,

aplicada ao homem. Num esforço de tornar o ser-homem objeto de estudo, este modelo

perde de vista o homem tal como se dá em sua existência no mundo.

Heidegger (2001) chama a nossa atenção para o fato de que o modelo quantitativo

transforma a questão da verdade, que o grego chama de alethéia e que se traduz como

desvelamento, em uma busca da certeza segura e indubitável, que para ser alcançada deve

ser investigada e registrada quantitativamente, eliminando tudo que for duvidoso, chegando

a um fundamento absoluto e inabalável. Com esta metodologia, tudo que não apresente o

caráter dos objetos passíveis de determinação matemática é eliminado como sendo incerto,

inverídico e não verdadeiro. Assim o homem, do alto de sua racionalidade e do método

científico, decide o que é verdadeiro ou não. Há, segundo Heidegger (2001), uma ditadura

racionalista que só deixa valer seu pensamento como um manipular de conceitos operativos

e representações de modelos. O filósofo faz críticas ao que chama de cegueira da ciência

positivista a qual não permite que o homem se revele em sua fenomenologia. E questiona:

“em que medida a ciência como tal tem a capacidade de dar base à nossa existência

humana?” (2001, p.112). Conforme a resposta do filósofo, tal modelo não dá conta da

existencialidade do homem. Por isso, contrapõe o método mecanicista ao fenomenológico,

ou seja, a objetivação científico-natural dos entes que existem no mundo em confronto com

o desvelamento dos entes em sua fenomenologia.

Segundo os pressupostos do filósofo, existe um abismo entre a metodologia

quantitativa aplicada nas ciências físicas e a compreensão do homem. As ciências naturais

não alcançam o ser-homem em sua totalidade mas apenas como objeto, como mais um ente

presente na natureza. O método das ciências naturais não pode se aplicar ao humano por ser

incompatível com a singularidade peculiar do ser-pessoa. Ocorre uma destruição do

humano em sua humanidade, já que o modelo científico de mensuração implica em um

tornar o homem um objeto que pode ser calculado, previsto, dominado.

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(...) o existir humano em seu fundamento essencial nunca é

apenas um objeto simplesmente presente num lugar

qualquer, e certamente não é um objeto encerrado em si. (...)

Todas as representações encapsuladas, objetivantes, de uma

psique, um sujeito, uma pessoa, um eu, uma consciência,

usadas até hoje na Psicologia e na Psicopatologia, devem

desaparecer na visão daseinsanalítica em favor de uma

compreensão completamente diferente. A constituição

fundamental do existir humano (...) se chamará ‘Da-sein’ ou

‘ser-no-mundo’. Entretanto este Da não significa, como

acontece comumente, um lugar no espaço próximo do

observador. O que o existir como Da-sein significa é um

manter aberto de um âmbito de poder-apreender as

significações daquilo que aparece e que se lhe fala a partir de

sua clareira. O Da-sein humano como âmbito de poder-

apreender nunca é um objeto simplesmente presente. Ao

contrário, ele não é de forma alguma e, em nenhuma

circunstância, algo passível de objetivação. (Heidegger,

2001, p.33)

Heidegger (1989) utiliza a palavra alemã Dasein para se referir ao ser humano.

Traduzida literalmente “Da” significa “aí” e “sein” quer dizer “ser”, portanto, “ser-aí”.

Assim, numa acepção heideggeriana, o homem é aquele ente que está presente no mundo

de forma peculiar. Ele é abertura de sentido, abertura para sua própria experiência de

existir, ele tem auto-consciência, ele temporaliza, tem noção de que vive mas não sabe o

que irá acontecer com ele, daí sua angústia existencial.

Por isso podemos entender melhor que, existencialmente, o fenômeno humano, em

sua totalidade, não pode ser apreendido estatisticamente. Mensurar o ser humano significa

descaracterizá-lo. Numa perspectiva existencial, o enfoque é no mundo vivido.

Do ponto de vista heideggeriano, a tentativa científica de mensuração de estados

emocionais já transgride o sentido da própria emoção. Uma emoção só pode ser

compreendida na abertura de seu instante. Assim, afirma Heidegger (2001):

(...) Na profundidade de uma tristeza, falta totalmente

qualquer ponto de apoio e ocasião para avaliá-la

quantitativamente ou até medi-la. Numa tristeza só é possível

mostrar como um homem é solicitado, e como sua relação

com o mundo e consigo é modificada. (p.109)

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Heidegger (2001) propõe uma “fenomenologia do encontro”. E lembremos que nos

Seminários de Zollikon, ele fala a psiquiatras treinados num modelo biomédico,

acostumados a procurar as doenças e suas causas e não a encontrar pessoas em suas dores

existenciais. A alternativa metodológica de Heidegger (2001) à visão pragmática do homem

acontece em um envolvimento significativo com a pessoa que é encontrada, ou seja, com a

pessoa em sua experiência aqui e agora. Nesta perspectiva, o ser humano não pode ser

entendido como um “em si” isolado ou compartimentalizado.

Heidegger (1989) toma o conceito de intencionalidade de Husserl (de que o homem

está sempre remetido ao seu contexto e às pessoas com quem vive e encontra) e desenvolve

o conceito de ser-com (Mitsein). O ser-com de Heidegger não se refere a um agrupamento

de pessoas, nem ao conceito psicológico de empatia. O ser-com é um modo fundamental

da pessoa-em-seu-mundo.

(...) torne-se presente a situação de que estamos num café e

cada um de nós está sozinho numa mesa separada. Não

estamos uns-com-os-outros então? Estamos sim, porém

numa forma totalmente diferente do ser-uns-com-os-outros

que executamos agora, aqui na nossa conversa em comum.

Aquele estar só no café é uma privação do ser-uns-com-os-

outros. Os existentes não tem nada a ver um com o outro e

estão uns-com-os-outros nessa forma no mesmo espaço.

Além disso, mesmo se eu agora me levantar e acompanhá-los

até a porta, nunca dois corpos movem-se apenas um ao lado

do outro em direção à porta. (Heidegger, 2001, p.138)

Isto quer dizer que as pessoas não são como coisas que podem estar dispostas lado a

lado, uma coisa junto a outra coisa. As pessoas estão sempre umas-com-as-outras, ou

mesmo, umas-contra-as-outras. Isto é, habitamos o mundo significativamente, construindo

valores com as outras pessoas, afetos, desafetos, esperanças, ressentimentos, etc..

Uma outra análise importante de nosso filósofo é a distinção que faz da questão do

corpo para os gregos. Diz ele que há no grego uma discriminação entre (soma) e

(forma/Gestalt). Homero usa “soma” referindo-se ao corpo material, físico, ao corpo

morto ou mesmo à massa humana e “forma” para se referir ao corpo vivo. Segundo

Heidegger (2001), a nossa representação moderna vem do latim corpus, que a partir da

escolástica e, posteriormente, com Descartes toma um sentido de corpo material animado.

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Baseando-se numa etimologia grega, Heidegger (2001) situa a diferença das

palavras corpo (Leib) e corpo material (Körper). O corpo de Descartes é o corpo material,

tornado máquina, animado por uma alma, mas que pode ser dissecado e analisado em suas

partes elementares. Já em Heidegger (2001), corpo é sempre um corporar (Leiben). O

corporar é sempre o modo-singular-de-ser-do-homem-no-mundo. Portanto, o fenômeno do

corporar opõe-se à mensurabilidade.

O corporar tem relação com o “si mesmo”, e para Heidegger (2001, p.114) “é o

horizonte do ser no qual eu permaneço.” Por exemplo: o engordar e o emagrecer podem ser

entendidos, racional e mecanicamente, como peso e volume de um corpo material. No

entanto, fenomenologicamente, a magreza ou a gordura dizem respeito à “minha magreza”

ou à “minha gordura”, uma ou outra tem um sentido ek-stático, ou seja, de um

desvelamento de minha própria maneira de ser-no-mundo. Um outro exemplo: atendi um

homem de 45 anos, vítima de um acidente que o tornou paraplégico. Depois de ter sido

submetido a uma série de cirurgias, sessões de fisioterapia e, após, decorridos três anos do

acidente, este cliente, queixava-se, constantemente, de dores por todo o corpo. No contato

realizado com seu médico e com sua fisioterapeuta, ambos afirmavam que não teriam

explicação para tais dores. Se entendermos esta pessoa como uma res extensa, um

corpo/máquina, diríamos que não há motivos para as dores. Entretanto, o ser humano habita

a ordem do vivido, do experenciado singularmente. Esta dimensão genuinamente humana, a

visão mecanicista não contempla, reduzindo o ser-homem.

Segundo Heidegger (2001), não estamos no mundo da mesma maneira que uma

cadeira numa sala. Não estamos simplesmente localizados num espaço e num tempo, à

maneira de um objeto. Quando apontamos para algo, não terminamos no limite de nossos

dedos, nos desdobramos intencionalmente até o objeto apontado.

Quando coço a minha cabeça, elaborando este texto, estou num relacionamento

significativo com minhas próprias questões, que vão surgindo na construção do texto. No

ato de elaborar o texto, transformo-me. Habito o mundo de maneira significativa, intíma e

indissociável. Os gestos não são meramente um conjunto de comportamentos previsíveis,

mas o meu corporar sensorial e intransferível.

Numa acepção heideggeriana o tempo não é simplesmente a passagem cronológica

e mecânica do calendário, que me diz que tenho tal idade, mas as minhas experiências de

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vida. Portanto, o homem está presente no mundo espacialmente, corporalmente e

temporalmente. Comenta Sá (2004):

Uma das dificuldades mais essenciais que deve ser superada

para o entendimento da corporeidade do Da-sein, é a

tendência da atitude natural, seja do senso comum ou

científica, de considerar o espaço físico como elemento mais

originário da realidade, a partir do qual podem ser

posicionados e instalados os demais entes (...) vemos que

mais originário que qualquer abertura espacial, enquanto

continente físico, é a abertura de sentido, já que espaço-

temporal, a partir da qual qualquer objetivação física de

tempo, espaço ou substância é possível. Essa abertura

originária de sentido é a própria ‘existência’ na acepção que

Heidegger atribui ao termo, e constitui o modo de ser desse

ente que nós mesmos somos, o homem. (p. 3)

O homem em Heidegger (2001) não é definido como uma coisa ou outra, ou mesmo

como um agrupamento de partes orgânicas ou instâncias, mas em seu sentido ek-stático e

aberto ao mundo. Definições compartimentalizadas do homem, em termos de um ser bio-

psico-social ou de estrutura psíquica por exemplo, comprometem o entendimento do

fenômeno do existir humano. E, ainda, a busca de nexos causais de forças psíquicas

inconscientes baseia-se numa metodologia reducionista. Afirma o filósofo em sua obra Ser

e Tempo:

A pessoa não é um ser substancial, nos moldes de uma coisa.

Além disso, o ser da pessoa não pode exaurir-se em ser um

sujeito de atos racionais, regidos por determinadas leis...

Atos são sempre algo não psíquico. Pertence à essência da

pessoa apenas existir no exercício de atos intencionais e,

portanto, a pessoa em sua essência não é objeto algum. Toda

objetivação psíquica, por conseguinte toda apreensão de um

ato como algo psíquico, equivale a uma despersonalização.

Em todo caso, uma pessoa só é, na medida em que executa

atos intencionais ligados pela unidade de um sentido. Ser

psíquico nada tem a ver, pois, com ser pessoa. (Heidegger,

1989, p.84)

A natureza das ciências físicas é a previsibilidade para a posse e dominação dos

processos naturais, como podemos constatar em Descartes, na parte final do Discurso do

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Método, na qual afirma que devemos nos tornar mestres e donos da natureza. O tema da

objetividade é o traço fundamental do método mecanicista, que para Heidegger (2001), não

pode ser aplicado ao homem.

Para o filósofo a metodologia das ciências físicas tem um limite. O não

entendimento deste limite recai no equívoco do cientificismo e dos discursos de poder

sobre o homem. Segundo Heidegger (2001), é necessário um olhar que possa compreender

o homem em sua complexidade e inteireza, não separando para depois agrupar, mas um

olhar que já de início contemple o ser-homem existencialmente-no-mundo.

As propostas fenomenológico-existenciais aqui tratadas tentam desconstruir as

dicotomias instauradas pelo modelo mecanicista. Estes filósofos vão criticar a concepção

metafísica que se baseia numa noção de estruturas estáveis na compreensão da realidade.

Desta forma poderemos ter a abertura para um paradigma que interprete a vida não a partir

de um modelo mecanicista do saber científico, mas de uma reflexão que contemple o

domínio do devir da existência.

3.5. MEDARD BOSS

Boss (1997), baseado em Heidegger, afirma que as premissas científicas distinguem

soma e psique, usando, unicamente, um critério empírico, ou seja, o critério o qual os

fenômenos somáticos são passíveis de mensurabilidade, enquanto que os fenômenos

psíquicos não o são. O psíquico, portanto, estaria fora dos critérios de cientificidade, visto

não poder sofrer mensuração. E ainda, estaria fora da realidade, já que para a ciência, só é

real aquilo que é mensurável.

Diante de tal pressuposto, alguns estudos irão tentar abordar os aspectos psíquicos,

seguindo os padrões científicos. Por exemplo: isso ocorre nos atuais estudos em

neurociências que compreendem o cérebro e sua atividade (mensurável) como a sede das

emoções e da vida psíquica (incomensurável). O cérebro seria a base, o substrato ou sede

das emoções. Por outro lado, Boss (1997, p. 18) afirma:

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Não raro encontramos em publicações: ‘ O luto não se mede,

mas as lágrimas decorrentes de ligações psicossomáticas

podem ser examinadas numericamente e sob diversos

aspectos.’ Fica claro, assim, que a partir do ‘simples critério

de distinção’ só resta fugir do próprio dado para o

pensamento inteiramente mágico: Lágrimas somáticas,

causadas por luto psíquico, em virtude de ligações psíquicas!

Assim, segundo o autor, de uma redução do fenômeno psíquico ao mensurável nas

teorias científicas, saltaríamos para uma concepção mágica desse fenômeno.

É claro que os fenômenos psíquicos e somáticos se diferenciam, não podem ser

tomados como iguais. Entretanto, tal distinção não se dá pelo método de acesso a eles como

concebido pela ciência nos moldes: somático/mensurável e psíquico/não mensurável. Boss,

(1997) baseado em Heidegger, afirma que psíquico e somático, em sua diferenciação e

identidade, devem ser compreendidos quando remetidos a sua realidade comum. Assim,

como só podemos perceber o verde e o vermelho em sua distinção e peculiaridade quando

sabemos que ambos se referem ao fenômeno da cor, da mesma forma, só podemos

compreender o psíquico e o somático referidos ao homem. Portanto, psíquico e somático

são modos diferentes pelos quais se dá o acontecimento da existência humana.

Segundo a abordagem feita por Heidegger (1989) em sua obra Ser e Tempo, o

homem não é algo simplesmente dado, tal como uma mesa ou um outro objeto qualquer. O

homem, por viver na abertura existencial ou clareira que se estende ao mundo, tem a

possibilidade de sentir, sofrer, refletir, questionar, descobrir, ou seja, dar sentido a si

mesmo, ao outro, às relações humanas, às coisas que o cercam, enfim, a vida.

Tomemos os exemplos dados por Boss (1997) a fim de elucidar o exposto

anteriormente. O fenômeno corpóreo das lágrimas de uma pessoa enlutada está

intimamente ligado ao fenômeno do sentimento de perda e de saudade, assim como, o rubor

da vergonha, aos atos destrutivos de uma pessoa com raiva, o corpo contraído e os olhos

arregalados, ao medo, etc. Entretanto, as lágrimas de um enlutado podem ser avaliadas em

seus aspectos químicos, mas não serão jamais as mesmas lágrimas de uma pessoa numa

situação de alegria, assim como, o rubor da vergonha não é o mesmo que ocorre na febre.

As lágrimas ou o rubor, assim avaliados, dizem respeito a algo inanimado, não humano.

Boss (1959), fazendo críticas ao modelo de causalidade psíquica e propondo sua

perspectiva Daseinsanalytica afirma:

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(...) um psiquismo nunca ‘causará’ uma tal perturbação (do

tubo digestivo) por via ‘psicogênica’. Se nós desejarmos

conhecer a verdadeira fonte das doenças psicossomáticas,

devemos procurar penetrar cada vez mais nesse modo

existencial do ‘poder se comportar em relação às coisas’ e

conseguir chegar a esse relacionamento no mundo que

contém o elemento patológico da ‘corporalidade’. (p. 137)

Boss (1959) afirma que o estrangulamento existencial revela-se na corporeidade

como sofrimento psicossomático. Por isso, para ele, não é necessário buscar uma causa

essencial. O adoecimento constitui o meio pelo qual uma certa maneira humana de existir

no mundo se realiza num gesto físico. O ser-doente é o modo específico de ser-no-mundo.

E a tarefa da clínica psicossomática numa abordagem fenomenológico-hermenêutica,

baseada em Heidegger e Boss, é interrogar o fenômeno do ser-doente, em seu modo de ser,

desvelando suas possibilidades.

Boss (1959) afirma que o espírito técnico fundamenta as teorias tradicionais em

psicossomática. O pensar técnico abstrai para entender e torna o mundo e a realidade da

vida objetos em si. Entretanto, do ponto de vista fenomenológico, esses objetos do

entendimento criados pela ciência não existem verdadeiramente, são especulações, criação

de uma abstração sobre a vida. Por exemplo: na doença, não só uma parte de nosso corpo

adoece, falar em doença dos rins ou do estômago é pura abstração, pois na doença, toda a

pessoa em sua existência é acometida pela dor do adoecer. Daí não podermos falar em

doenças e sim em doentes.

(...) não há doenças autônomas originárias de gênios ruins. O

estômago e as afecções estomacais, os pensamentos e a

encefalomalacia são somente abstrações irreais. Da mesma

forma, nós colocamos entre aspas a palavra ‘doença’ para

marcar seu caráter duvidoso. De fato, não há somente meu

braço, meu estômago, nossos instintos ou seus pensamentos;

e, olhando bem, nunca há outra coisa que ‘eu estou doente’

ou o ‘estar doente’ (Boss, 1959, p. 31)

O homem não é um objeto dentre outros objetos, um corpo físico composto de

elementos anatômicos reunidos numa justaposição. O homem não é nem um “objeto

morto” nem um “sujeito vivo”, estático. Boss (1959) afirma que, tanto o conceito de objeto

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quanto o conceito de pessoa, mascaram a natureza da existência humana. O homem é um

“aberto ao mundo”, que se coloca sempre fora de si mesmo no modo do devir, e por isso,

ele pode compreeender, perceber, emocionar-se...

Como lugar de atualização e como domínio do ‘Dasein’, o

corpo se constitui em condição necessária, mas em caso

algum, a condição suficiente da existência humana. Mesmo

porque, por eles mesmos, nossos orgãos sensoriais não

podem ver nada, nem ouvir, sentir, provar ou tocar. Da

mesma forma, nossas mãos não poderiam agarrar, nem

nossos pés esboçar o gesto de andar. Bem ao contrário, os

olhos e as orelhas, o nariz e a língua, as mãos e os pés podem

funcionar como orgãos, sensoriais e motores e cumprir seu

dever unicamente porque, através de sua ‘corporalidade’, o

homem já se encontra ‘aqui’ junto as coisas desse moundo.

(Boss, 1959, p. 33)

Boss (1959), baseado em Heidegger, afirma que as explicações biológicas a respeito

da questão do corpo, e mesmo aquelas que acrescentam uma dimensão animica, espiritual

ou existencial, ao invés de elucidarem a questão a encobrem. E mesmo as explicações que

definem o corpo como um organismo também não alcançam o essencial. Para nosso autor a

corporeidade do homem é da ordem de uma relação extática do Dasein com o mundo.

Se impaciente em rever um velho amigo corro ao seu

encontro, minha existência já se encontra a tal ponto junto

dele, que eu não tenho nenhuma consciência de meus pés,

obrigados entretanto, a suportar setenta quilos a cada passo.

Além disso, um trabalho manual interessante se realiza sem

nenhuma reflexão, sem prévia representação de minhas

mãos. Portanto, se essas partes do corpo, por natureza e

originalmente, não pertencessem à minha existência inteira e

não objetivável, se por esse fato, elas fossem somente

órgãos, no sentido de instrumentos ou de aparelhos com os

quais seria equipado, eu precisaria lhes prestar atenção antes

de me servir deles. (Boss, 1959, p. 34)

Na perspectiva Daseinsanalytica nunca o corpo é um mero objeto, por isso, não podemos

falar de um coração ou de um cérebro doente. No caso em que a bala de uma arma atinge o cérebro

de um homem, lesionando-o, não é um mero objeto-cérebro que foi atingido, mas toda a existência

desse homem é afetada. Essa peculiaridade da corporeidade humana pode parecer estranha para os

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especialistas treinados em pressupostos hiperconcretos. Como um cirurgião, tendo realizado

centenas de intervenções cirurgicas em corações e os vendo como máquinas que bombeiam sangue

para todo o corpo, poderia entender que numa cirurgia cardíaca toda a existência do paciente está

em jogo? Que o centro de seu existir é afetado?

A concepção da Daseinsanalyse acerca da corporeidade, diz respeito a experiência imediata

do homem no mundo, o seu “aí”. Distigui-se da concepção freudiana que concebe o seguinte

esquema: pulsão (inconsciente) relacionado ao corpo (zonas erógenas).

Entretanto, a perspectiva Daseisanalytica e a fenomenológico-existencial não são contra os

conhecimentos biomédicos, mas afirmam que essas visões não conseguem dar conta da experiência

singular que cada um de nós tem de seu próprio corpo. O sofrimento do corpo, já que não existimos

sem estarmos encarnados, está sempre remetido ao sofrimento existencial. Portanto é tarefa do

psicoterapeuta ter uma escuta para as angústias, frustrações e temores do existir humano.

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4. ESTUDO DE CASO

4.1. APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA

Existem raríssimos estudos, até o momento, sobre as questões da psicossomática

numa concepção fenomenológico-existencial. Tradicionalmente as pesquisas em

psicossomática se dão numa proposta psicanalítica, psicofisiológica, como o estudo do

estresse, ou mais recentemente, relacionadas às neurociências.

Mesmo que haja uma tentativa de unir soma e psique nas diversas teorias em

psicossomática, tal cisão se evidencia e se mostra paradigmática no modo destas teorias

conceberem a realidade e a vida. Tenta-se reunir os pedaços do que foi fragmentado e,

ainda, tenta-se relacionar corpo e mente baseado numa perspectiva de causas psíquicas para

problemas somáticos e vice e versa, o que resultou no termo somatopsíquico.

Portanto, baseado em estudos de fenomenologia-existencial, delineamos o seguinte

problema: como se encara tal cisão nesta perspectiva? O que se compreende como

fenômeno psicossomático? Quais as possibilidades de abordarmos a clínica psicossomática

à luz dos conceitos da fenomenologia existencial?

4.2. METODOLOGIA

4.2.1. Procedimento

A presente pesquisa tem um caráter exploratório, realizada através de um Estudo de

Caso que, segundo Gil (2002), consiste num tipo de delineamento de pesquisa em que se

tem a possibilidade de aprofundar e detalhar a questão proposta. Ainda baseado em Gil

(2002) o presente estudo de caso pode ser definido como instrumental, tendo como

propósito, conhecer e redefinir a questão da psicossomática. O caso apresentado torna-se

útil para esclarecer o que se compreende como o fenômeno psicossomático na concepção

fenomenológico-existencial.

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4.2.2. Instrumento

O instrumento utilizado consiste em um relato de caso (em anexo). Esse relato de

caso é fruto de um processo psicoterápico, que transcorria há um ano, e que até o

encerramento da presente monografia, ainda se encontrava em curso. O processo

psicoterapêutico se dava em encontros semanais de cinqüenta minutos. As sessões eram

gravadas e a cliente prontamente assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

(em anexo), documento no qual a cliente concede sua autorização para o uso do material

das sessões para estudo, assim como, o pesquisador compromete-se em manter sob sigilo a

identidade da cliente.

4.2.3. Participante

Uma mulher de 22 anos, situação sócio-econômica média e estudante do último ano

do curso de Direito. Faz estágio remunerado num orgão público, para o qual passou por

concurso. Tem uma irmã casada e formada em psicologia. Morava com os pais em um

bairro da zona norte do Rio de Janeiro, posteriormente, mudaram-se para um bairro da zona

sul da cidade. O pai é aposentado e trabalhou na área de segurança; a mãe sempre se

dedicou aos trabalhos domésticos. Nos aspectos morais a família se caracteriza como

tradicional. São católicos, e tanto a família quanto a cliente, seguem as orientações dessa

religião. A cliente sofre de doença de Crohn, um tipo de inflamação do tubo digestivo.

Busca psicoterapia por orientação de sua irmã e de sua médica, e ainda, por entender a

doença como um problema de ordem psicossomático. Acredita que desvendando sua vida

emocional terá sua saúde restabelecida.

4.3. DISCUSSÃO

Baseado em Kierkegaard, entendemos que a cliente não se percebe como um “eu”

aberto às possibilidades da existência. Vê-se a tentativa da cliente em solucionar o

desespero existencial pelo seu modo de se enredar e se cristalizar em polaridades: ora das

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certezas tidas como absolutas, ora das dúvidas consideradas como eternas. A cliente revela-

se extremamente racional e preocupada com o que é certo e com o que é errado. Vive

baseando-se em esquemas pré-determinados, em “deverias”. Letícia limita-se severamente

desvelando-se o desesperar de finito por carência de infinito.

Já o desespero da infinidade por carência de finito revela-se nas especulações,

antecipações, dúvidas, incertezas e temores da cliente em relação ao seu futuro; a cliente

perde-se no devaneio e na imaginação quanto ao porvir. Constantemente questiona-se:

“Ficarei sozinha? Poderei cuidar de mim mesma sem a ajuda de meus pais? Ficarei livre da

doença da qual fui acometida? Poderei ou não confiar nas pessoas?”

Em seus relatos, Letícia, diz que acreditava num curso previsível da vida, tinha

convicções em relação ao seu futuro, mas a doença lhe fez rever tais conceitos, o que

desvela, a questão do desespero da necessidade por carência de infinito.

A cliente também relata que gostaria que tudo em sua vida fosse diferente: gostaria

de ter uma vida normal, pais normais, saúde normal. A cliente carece de realidade, revela-

se o desesperar do possível por carência de necessidade.

O modo de ser da cliente mostra a dificuldade em sustentar o desespero que é

próprio da existência: busca de controle e de certezas, ideal de perfeição, e ainda,

sentimentos como os de irritabilidade e medo revelam um estado psicológico de não

liberdade.

A cliente também relata querer pensar somente em si mesma, acredita que assim

será feliz ficando livre da doença, pois acredita ser a doença provocada pelo fato de sempre

ter se reprimido e não ter respeitado sua própria vontade. Para Kierkegaard, a cliente

ignora, assim, seu desespero existencial e vive sob o signo do imediatismo.

Por um outro lado, Letícia afirma que se souber de todos os mecanismos psíquicos e

fatores inconscientes que se ocultam, poderá superar os problemas de saúde que lhe

aconteceram, pois acredita que suas causas são emocionais. A cliente acredita que pode

superar seu problema com seu esclarecimento e força de vontade. Kierkegaard chama a este

modo de ser diante da liberdade de desespero estóico.

Como relatado pela cliente, o fato de saber que sofria de uma doença alterou seu

modo de encarar a vida. As idéias de uma vida que transcorria normalmente, que estava sob

controle e que um futuro promissor só dependeria de seus esforços, foram abaladas.

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Entendemos que a doença de Crohn remete Letícia a angústia existencial e a lança diante da

incerteza do futuro e do amanhã como pura posibilidade. Letícia descobre o devir, mas o

teme.

Compreendemos ainda, a luz de Kierkegaard, a perda de liberdade e interioridade se

revelando em atitudes ambíguas: Letícia ora considera que vai superar seu problema por

seu esforço, ora se coloca como frágil e vítima de uma fatalidade; por um lado acredita que

uma crença religiosa ou esotérica pode ajudar, por outro se coloca descrente criticando a

extrema religiosidade da família. As queixas psicossomáticas também revelam falta de

interioridade: irritabilidade e o fato de relacionar algumas sensações físicas à manifestação

do Crohn. A cliente foca-se muito em seu corpo na tentativa de perceber qualquer alteração

que evidencie os sintomas da doença.

Do ponto de vista kierkegaardiano não pensamos as queixas psicossomáticas na

forma de um causalismo psíquico. As queixas psicossomáticas relacionam-se ao sofrimento

da cliente diante do devir, do desespero e da angústia. Portanto, a psicoterapia deve

encaminhar-se no sentido de sustentar a angústia existencial a fim de facilitar à cliente a

experiência da singularidade, da liberdade, da interioridade e da seriedade.

Tomando agora as concepções de Sartre e Merleau-Ponty sobre a corporeidade,

podemos dizer que a tarefa da psicoterapia será a de trabalhar o dar-se conta da cliente em

relação a sua corporeidade existencial, já que a cliente vem para a psicoterapia com uma

consciência alienada de seu próprio corpo, sua fala reproduz a fala da especialista. Além

disso, preocupa-se com o que deve ou não sentir, já que tanto a sua médica, quanto a sua

irmã, dizem que se não controlar suas emoções a doença irá se manifestar novamente.

Letícia vive em função do que dizem acerca de sua saúde. A cliente refere-se ao seu corpo e

à sua doença tal como a sua médica lhe apresenta. Descreve em detalhes todos os sintomas

e os possíveis sintomas referentes a doença de Crohn, mesmo aqueles que nunca sentiu,

mas teme sentí-los, pois sua médica falou-lhe deles e das estátisticas sobre sua ocorrência.

A cliente não se apropria de sua existência, teme e se coloca na mão daquele que ela supõe

saber mais sobre si mesma. Letícia não se dá conta de sua existência como lançada-no-

mundo e aprisiona-se naquilo que o saber técnico afirma sobre ela.

O pensar científico cala e emudece a paciente, retirando da experiência singular a

possibilidade de dar sentido e conceber uma verdade. O pensar técnico, calculante toma

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para si a noção de verdade como uma certeza inquestionável que derruba todas as outras

formas de apreensão da realidade. Portanto o psicoterapeuta deve trabalhar no sentido de

facilitar a experiência do corpo-próprio. O corpo que vive e que está no mundo refere-se a

uma vivência singular e não pode ser reduzido a um corpo-máquina ou a um objeto de

laboratório.

Entretanto, não estamos propondo que a cliente negue a ajuda da tecnologia médica

e de suas estatísticas e recursos, o que afirmamos, a luz das concepções de Sartre e

Merleau-Ponty, é que a psicoterapia deve ser um espaço diferenciado do saber objetivador

do médico. O psicólogo, a luz das concepções da filosofia da existência, não é mais um

especialista dentre tantos outros. A psicoterapia deve resgatar a possibilidade da escuta e da

fala numa relação dialogal entre psicólogo e cliente para que esta possa vivenciar suas

dores num espaço de liberdade, re-significando-as.

Tomemos agora o ponto devista de Heidegger e Boss. Para Heidegger o corporar (não o

corpo tornado máquina) não é passível de mensurabilidade. As dores do corpo referem-se as dores

existenciais da cliente, develam sua maneira de ser-no-mundo. Segundo a perspectiva

Daseinsanalytica há uma interdependência homem-mundo e baseado nisso, Boss, afirma que certas

regiões do tubo digestivo podem sofrer alterações patológicas à medida que sua corporeidade na

relação com o mundo (ingerir, digerir, se apropriar, integrar, conservar ou rejeitar) forem reprimidas

ou excluidas da esfera das relações com o mundo e com o outro. A cliente revela tal problemática

quando aborda sua relação com seus pais. Conta que sempre teve que “engolir” aquilo que seu pai

impunha, mas sofria demais com isto, se isolava, se entristecia e se via sem saídas. Acabava por

sentir medo e raiva de seu pai. Por um lado, medo por sentir-se atacada por seu pai e por outro,

raiva por sentir-se impotente diante dele. Baseado nos relatos da cliente podemos constatar que tais

atitudes aparecem em todas as suas relações no mundo. Com os amigos, o namorado, na faculdade,

seu modo revela-se tanto no medo quanto em atitudes agressivas e competitivas.

Boss também afirma que os problemas do tubo digestivo podem decorrer da vontade de

acumular e dominar acima das próprias forças, seja, em decorrência da própria ambição ou de

pressões do meio. Esse modo-de-ser da cliente revela-se quando afirma sua ferrenha vontade de sair

da sua situação familiar e constituir vida própria. Mas, ao mesmo tempo que mobiliza forças para

isto, não se sente capaz.

Para a perspectiva Daseinsanalytica, o homem privado ou limitado em seu “poder-ser” , ou

mesmo, sobrecarregado em suas relações com o mundo, adoece. Portanto, as regiões corporais não

se limitam a reagir às substâncias físico-químicas, mas são parte integrante na relação homem-

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mundo. Os problemas do tubo digestivo são entendidos aqui como a esfera corpórea do

relacionamento típico da cliente com as coisas e as pessoas a sua volta.

Neste sentido se dá a escolha do orgão. A região corporal adoecida refere-se a uma

dada relação com o mundo que foi desviada de sua realização. No caso aqui analisado, na

relação de ingestão, de apropriação e de digestão das coisas.

Baseaodo em Boss podemos abordar o caso aqui descrito como a realização

corporal de uma existência que ora está na raiva e numa atitude de confronto e auto-

suficiência, ora está no temor, e numa atitude de insegurança, isolamento e vitimização.

Entendemos que o medo e a raiva dominam a existência de Letícia. Daí sua excessiva

dependência de seus pais, além de se mostrar como um relacionamento tenso, confrontativo

e infeliz. Percebemos, ainda, que a medida que a vida exigia da cliente atos independentes

(o fato de completar 21 anos, profissionalização, trabalho, namoro) os sintomas foram

aparecendo. Numa concepção Daseinsanalytica seu problema na esfera corporal revela a

ambigüidade existencial de suas relações na vida que ora se dá num querer devorar e

engolir o mundo (raiva) ora se dá numa inapetência e recusa do mundo (medo).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Delineamos, anteriormente, as seguintes situações problema: Como se encara a

cisão mente-corpo na perspectiva da filosofia da existência? O que se compreeende como

fenômeno psicossomático? Quais as possibilidades de abordarmos a clínica psicossomática

à luz dos conceitos da fenomenologia-existencial? Pretendemos retomá-las neste ponto a

fim de concluirmos nosso trabalho.

Vimos que os filósofos estudados apontam para os equívocos das ciências na

tentativa de uma explicação racional e definitiva da realidade humana. O racionalismo, em

curso desde os gregos, chega ao seu auge com o mecanicismo de Descartes. A metodologia

cartesiana exclui, separa, dicotomiza, pois estes critérios, constituem as bases do método,

ou o modo de aproximação dos fenômenos. O racionalismo aliado ao empirismo de Locke,

Hume irão fornecer o caminho metodológico para o desenvolvimento das ciências técnicas,

inclusive para as ciências biológica e médica. Portanto, as ciências biológicas surgem como

o estudo da vida e da natureza física que através dos fatos registráveis, racionalizados,

abstraidos e generalizados deduzem as teorias. Da mesma premissa nasce a psicologia

como ciência que investiga a natureza subjetiva. A psicologia científica pretende estudar os

processos da consciência e seus déficits (emoção, pensamento, inteligência, memória,

aprendizagem, linguagem) utilizando-se do mesmo modelo científico. Assim como a

psicanálise, pretende investigar fatores inconscientes e suas repercurssões psicopatológicas.

A psicanálise dá o primeio impulso para as teorias em psicossomática que se desenvolvem

posteriormente. A psicossomática, em sua tradição, concebe causas psíquicas para

problemas físicos e seu objetivo é o de poder explicar as chamadas somatizações,

relacionando, assim, físico e psíquico.

Vimos que as teorias tradicionais em psicossomática se baseiam em uma concepção

de causalidade psíquica a qual a fenomenologia-existencial critica. A psicoterapia

fundamentada na filosofia da existência parte do homem em sua concretude, a pessoa em

situação, lançada-no-mundo, que exposta às contingências da vida, pode adoecer. Portanto

a análise existencial se dá pela reflexão da experiência humana no “aí” da existência em

suas afetações, sejam elas familiares, sócio-culturais, políticas, etc.

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No caso apresentado a análise se deu pela angústia do existir (Kierkegaard), pela

corporeidade existencial como fenômeno que pode ser experienciado de forma singular e

própria (Sartre e Merleau-Ponty) e pelo fenômeno da abertura da existência ou modo-de-ser

da cliente que se desvela em suas queixas (Heidegger e Boss).

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(original digitado)

_________________.O pensamento de Martin Heidegger e a clínica psicoterápica. In:

Revista do Departamento de Psicologia da UFF: Niterói, v.7, n.1, 1995.

SARTRE, J.P. A Naúsea. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d.

___________. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997.

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ANEXOS

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RELATO DE CASO

Letícia (nome fictício) procura psicoterapia por sugestão da irmã mais velha a qual é

graduada em Psicologia. Traz como queixa o fato de sofrer, acerca de três meses, de doença de

Crohn, e procura psicoterapia por acreditar que essa doença tem a ver com as emoções, ou seja,

uma “doença psicossomática.”

A cliente fala de maneira constante, intensa e enfática, usa palavras rebuscadas e

incomuns, gosta muito de ler, já que o curso de Direito faz esta exigência. Gesticula

bastante, mas o corpo se mantém, basicamente, numa mesma posição do início ao fim da

sessão, só alternando o cruzar das pernas. Se veste ao modo tradicional das advogadas

(terninho ou vestido fino abaixo do joelho e sapato social). Parece já ter incorporado um

estilo profissional, o que por muitas vezes, destoa de seu rosto de menina.

Segundo relato da cliente, assim como pesquisas realizadas em documentos

eletrônicos disponíveis na internet de organizações médicas que informam sobre o assunto1,

a doença de Crohn é um tipo de inflamação crônica de uma ou mais partes do tubo

digestivo, desde a boca, passando pelo esôfago, estômago, intestino delgado e grosso, até o

reto e o ânus. Segundo os especialistas desta área, as pesquisas tentam relacionar o

aparecimento da doença a fatores ambientais, alimentares, infecções, fumo, particularidades

da flora intestinal e do sistema imune, e ainda, fatores genéticos. Os sintomas mais

freqüentes são: diarréia, dor abdominal com cólica, náusea e vômitos, acompanhados de

febre moderada, sensação de distenção abdominal que piora com as refeições, perda de

peso, mal-estar geral e cansaço.

Letícia conta que passou por alguns médicos até chegar a este diagnóstico. Relata

que emagreceu tanto que chegou a pesar 38 kg. Atualmente a médica que a acompanha foi

a profissional que conseguiu diagnosticar a doença. Foi submetida a vários exames como:

radiografias contrastadas do intestino delgado, exames de sangue e colonoscopia (exame

que usa uma espécie de tubo introduzido no ânus para filmar o interior do intestino grosso).

Faz uso de medicamentos específicos como: ferro, cortisona e mesalazina (medicamento

específico para o controle de inflamação do trato digestivo). A cliente retrata a médica

como uma profissional competente, porém, uma pessoa fria que só se interessa pela doença,

1 www.abcdasaude.com.br acesso em 22/11/2004

www.abcd.org.br acesso em 22/11/2004

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pelos exames, pela dieta e pelos remédios. Segundo Letícia, sua médica afirma que ela terá

que fazer uso de medicamentos para o controle da doença por toda a vida, fato este que a

deixa assustada. A médica, ainda, entende a psicoterapia não só como um tratamento de

apoio para a cliente conviver com a doença, aceitar e colaborar com o tratamento, mas

também, para que possa controlar suas emoções a fim de não deflagrar os sintomas. Tal

orientação vê a doença do ponto de vista causalista/organicista e supõe a psicoterapia como

uma forma de ajustar o paciente às condições de seu adoecimento e ao tratamento prescrito.

Espera-se que o psicoterapeuta forneça orientação e suporte emocional a fim de o paciente

poder administrar suas emoções e se adaptar aos seus novos limites de vida e,

conseqüentemente, responder ao tratamento da melhor forma possível. É claro que todas

estas justificativas para uma psicoterapia, ao nosso ver, dizem respeito a um modelo

assistencialista, não correspondem à nossa perspectiva.

Letícia se queixa dos sintomas que chama de “minha doença”, dos medicamentos

que é obrigada a tomar (cerca de 10 comprimidos por dia) e dos efeitos colaterais, tais

como: corpo inchado e pesado.

Com o prosseguimento da psicoterapia a cliente desfoca dos sintomas físicos e fala

de sua família e da relação com seus pais. Conta que sempre teve problemas de diálogo

com seu pai por ser uma pessoa rude, de pouca conversa e que impõe as suas opiniões.

Relata sentir muita distância do pai por ser este uma pessoa preconceituosa e fechada para

novas perspectivas, tendo se tornado ainda mais desatualizado após sua aposentadoria,

restringindo-se a ficar em casa, vendo televisão. Fala de sua tristeza por ter um pai com

quem não pode conversar, se expressar abertamente e por, ainda, temer as reações dele.

Entretanto, acreditava que seu grande problema de relacionamento familiar fosse

com seu pai, mas se dá conta que o relacionamento com sua mãe talvez seja ainda mais

complicado. Em relação a seu pai, o sentimento mais forte é o de medo, e em relação a sua

mãe, o de pena. Conta que sua mãe demonstra muita carência e lastima-se pelo seu

casamento, pela falta de atenção recebida, pelas indisposições, como enxaquecas, e ainda,

pela irmã que tem problema cardíaco e pelo sobrinho que é transplantado renal.

Conseqüentemente, se vê, de alguma forma, obrigada a escutar suas reclamações, e também

por ela exigir constantemente a sua companhia, dizendo-se deprimida e pedindo que Letícia

tenha paciência com ela. Diz que muitas vezes se ocupa dos problemas de sua mãe,

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deixando, assim, de sair para ficar com ela. No entanto, em outras vezes, quando sai, acaba

se sentindo culpada. Relata sentir-se irritada e desgastada em sua relação com seus pais.

Gostaria de ter pais que lhe servissem de referência e com quem pudesse contar.

Diz muitas vezes pensar que namorar e sair com amigos são coisas supérfluas, pois

logo imagina sua mãe se queixando de enxaqueca e falando de seus problemas. Pensa

serem suas vontades sem importância diante dos problemas da mãe. Nestes momentos,

sente-se uma “menininha mimada”.

Quando está se aprontando pra sair se pergunta se não será melhor ficar em casa.

Quando quer comprar uma roupa, fica se martirizando se não será um gasto a toa, ou

mesmo um egoísmo, pois sua mãe se sacrifica tanto por ela, e o dinheiro disponível, na

maior parte das vezes, não dá para comprar para ela e para mãe.

A cliente fala de uma sensação de estar deixando de viver, pois não sente viver uma

vida normal como as garotas de sua idade. Conta que se vê muito “contida” e “certinha” e

que não tem coragem de arriscar coisas na vida como os jovens de sua idade, normalmente,

ariscariam: viajar com amigos, sair para festas e barzinhos e não ter hora para voltar, se

lançar num relacionamento afetivo, ou até mesmo, “ficar”. Diz pensar em fazer muitas

dessas coisas, mas quando chega na hora, volta atrás. Pensa sempre se vale a pena o risco, e

se valem a pena as mudanças que tudo isto causaria em sua vida. Acaba achando que é mais

seguro permanecer como está, afinal, tem tempo suficiente para estudar e tirar boas notas,

tem segurança e conforto em seu lar e não tem que se preparar para um namorado. Relata

sentir medo de novidades, preferindo as coisas conhecidas e seguras. Diante de tudo isto, a

cliente relata não só se sentir confusa, mas também dividida, não sabendo o que quer ou

mesmo quem é.

“Quero mudar, mas não consigo, eu não sei como. Eu quero sair ver gente

mas não depende só de mim. Os meus amigos moram longe, a gente combina algo que

não acontece. Tenho a galera do segundo grau que está muito dispersa e o pessoal da

faculdade que falo com uns três ou quatro. No meu aniversário consegui com muito

custo reunir a galera do segundo grau, mas isso não é sempre que dá. O meio que eu

vivo no trabalho são pessoas mais velhas que eu. Eu me sinto impotente, irritada. A

sensação que tenho é que está todo mundo vivendo e eu não. O tempo está se esvaindo.

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Vou ser uma velha de oitenta anos e não vou ter nada para contar. Às vezes, quando

fico pensando muito nessas coisas, fico achando que é pecado pensar em mim. Aí vem

minha mãe e diz que eu reclamo muito das coisas, que eu tenho família, que eu tenho

que ter calma porque tudo tem sua hora. Eu sei que sempre vai faltar alguma coisa.

Mas fico achando que para mim sempre falta o essencial.”

Letícia entende esse problema pelo qual passa como conseqüência do modo como

foi educada, ou seja, sempre muito vigiada, sem oportunidade de expressar seus

sentimentos e pensamentos, e, também, o fato deste tipo de educação ter propiciado sua

maneira tímida e contida. Diz que hoje sente muita raiva por estar doente e acredita que o

desequilíbrio de suas emoções chegaram a causar um problema físico. Diz que teme em ter

uma nova crise da doença, vive com medo dos sintomas se manifestarem novamente. Fala

com apreensão de não saber o que fazer ou como ser para isto não acontecer. Quando fica

irritada com alguma situação, pensa sempre na possibilidade de seu estado de humor poder

deflagrar uma nova crise de Crohn.

“O que devo sentir ou pensar para que a doença não se manifeste, quais são

os sentimentos negativos que devo evitar para não deflagrar a doença ?”

Letícia relata que nunca soube do que gostava nem do que tinha vontade de fazer. A

cliente refere-se a ela mesma, dizendo ter sido sempre uma “tábula rasa”, pois nunca foi ela

mesma e acha ter sido isto um dos fatores causadores da sua doença. Diz que nunca teve

opiniões formadas e tinha muito medo de desagradar as pessoas, principalmente, sua mãe.

Sente-se “misturada” com a mãe e, em determinados momentos, tem dúvidas sobre o que é

bom ou não. Diz que a mãe não sabe lidar com ela mesma e que isto a incomoda. Sofre

pelo fato de sua mãe ser como é, se fazendo de vítima das situações da vida. Diz que não

tem uma história própria e por isso deseja descobrir o presente e enterrar o passado.

Reclama da moral rígida da família e do rígido controle exercido sobre ela, dessa forma

sente-se estagnada e sufocada.

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“Quando estou no ônibus tenho que ligar para dizer que estou a caminho e

quando chego no estágio tenho que ligar para dizer que cheguei. Me lembro que

quando era criança e estava na escola sempre ficava apreensiva se minha mãe ia me

buscar ou não. É muito difícil me livrar disso tudo. Agora com essa doença me sinto

ainda mais dependente, só como a comida que minha mãe faz. Sinto que meus pais

não viram como eu cresci. Meu pai fez uma brincadeira, dizendo que eu ainda sou

uma menina sentada no meio fio da calçada.”

A cliente relata sentir-se confusa quanto o que sente em relação ao pai (raiva,

rejeição) ter a ver com seus próprios sentimentos ou ser fruto daquilo que sua mãe sempre

reclamou dele.

“A sensação que eu tenho é que sou uma marionete na mão dos outros.”

Por isso, diz que ultimamente vem tentado discriminar aquilo que quer fazer e

aquilo que os outros querem que ela faça. Sempre se pergunta o que quer realmente fazer.

“A vontade que eu tenho é não concordar com ninguém, interpelar sempre,

trilhar meu caminho.”

Diz que está cansada de escutar de sua mãe frases como: “é necessário relevar,

perdoar, não devemos discutir...” Relata que sempre se sentiu cerceada e agora então tem

vontade de falar, cansou de ser a “eterna boazinha”

“ Desde criança sou cerceada para falar as coisas e agora que estou falando,

as pessoas estão se surpreendendo com as minhas atitudes, pois às vezes sou tão

radical que elas não acreditam”

Letícia relata ficar sempre pensando se está fazendo as escolhas certas. Tem receio

de ser criticada pelos pais e da reação deles. Diz já ter tirado uma roupa que seu pai não

aprovou e pensa no fato de ter um namorado que não fosse do agrado dos pais. A cliente

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relata existir em seu interior uma contradição, pois ao mesmo tempo que sente uma

intensidade de emoções, sente-se também muito inexperiente. Sente-se desequilibrada, diz

que não se sente normal.

“Agora percebo que minha vida sempre foi um desequilíbrio total. Quando

nasci meu pai estava desempregado. Minha infância foi desequilibrada porque eu era

muito tímida, minha adolescência foi desequilibrada porque eu não vivia como os

outros jovens viviam. Me sinto confusa e ambígüa. Às vezes estou com minha auto-

estima lá em cima, às vezes me sinto pra baixo. Quando me sinto bem, é como se não

tivesse o direito de estar assim. Fico sempre na dúvida do que é prioritário pra mim.

Sou muito crítica, muito emotiva, muito intensa, às vezes me acho anormal. Acho que

é por isso que estou com esta doença.”

Diz que tudo isso se mistura à sua doença e também sofre com o fato de todo mês

ter de submeter-se aos mesmos exames, e ainda, sentir ansiedade devido a incerteza quanto

à aquisição dos medicamentos. (a cliente obtém um dos medicamentos junto a Secretaria de

Saúde do Estado, por ser muito caro)

Letícia relata que está saindo de uma batalha (a melhora em relação aos sintomas

físicos da doença) e entrando em outra (aprender a lidar com restrições alimentares e os

efeitos colaterais dos remédios). Sente que nunca estará livre por completo deste problema,

sente-se marcada e questiona: “Por que eu?”

Conta que sua médica avisou-lhe quanto ao fato do uso de remédios por toda a vida

(isto diz respeito a mesalazina, medicação específica para a inflamação do trato digestivo,

característica da doença de Crohn).

“Minha médica disse que eu não vou morrer de Crohn, mas vou morrer com

Crohn. A minha mãe disse que é só eu manter minha cabeça no lugar que tudo fica

bem. É muito fácil para elas falarem isso, que é só tomar um remedinho, que é só

saber conviver com a doença e que tenho que ser de um modo ou de outro, mas

ninguém está vivendo o que eu estou vivendo. Eu quero acreditar que existe a

possibilidade de eu me sustentar sem remédios mas acabo tendo medo. Gostaria de

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certezas, mas eu sempre tive tantas certezas e me vi de repente uma pessoa doente. O

que aconteceu comigo não foi algo que eu desejei para mim, não busquei isto, eu não

busquei ficar doente. Parece que eu estava dormindo e que agora eu acordei doente. O

que posso fazer para viver minha vida e não viver em função de uma doença?”

Letícia relata ter a sensação que seu corpo está tendo que lutar contra a

agressividade dos remédios. Conta que sua família sempre fala da importância de tomar os

medicamentos, mas ela diz que não quer tomá-los por toda a sua vida. Por isso, está

tomando florais, pois acredita que podem ajudar. Diz ainda se sentir irritada por não poder

usar suas roupas, em virtude de sentir-se inchada e de sua barriga estar grande. Além disso,

fica ansiosa para que seu corpo volte ao normal.

“De um lado todos dizendo que tenho que tomar os remédios e de outro eu

achando que tudo isto está me fazendo mal. As pessoas falam que é só tomar o

remédio, mas elas não sabem o desgaste que é, os efeitos colaterais, sinto tontura e

ânsia de vômito. Parece que tenho duas personalidades. Por um lado, quero parar de

tomar os remédios, e por outro, fico pensando que tudo o que sofri pode voltar pior.

Sinto uma segurança tomando os remédios porque penso que eles estão agindo dentro

de mim e não vão deixar eu ter aqueles sintomas novamente. Será que vou ter mesmo

que tomar estes remédios para o resto de minha vida para evitar que a doença se

manifeste? Quem sabe daqui a algum tempo chego para a minha médica e digo que

estou me sentindo bem e que não preciso mais dos remédios. Mas então ela vai dizer

que eu posso parar mas que ela não se responsabiliza”

Letícia se refere a um filme que viu recentemente. Este aborda a questão de duas

mulheres cinqüentonas, muito racionais e que em suas vidas não tiveram a coragem de se

entregar aos sentimentos e às paixões. Diz se identificar com as personagens do filme, pois

também se julga muito racional. Afirma se não fosse tão racional, tão ligada em perfeição e

certezas, talvez não estivesse doente. Sempre pensou que a felicidade fosse estar com a vida

perfeita. Diz que sempre teve a mania de querer tudo pronto e acabado, pois nunca gostou

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de se decepcionar. Diz que sempre teve muitas certezas, mas percebe hoje terem sido essas

certezas, idéias que lhe foram incutidas.

“A sensação que eu tenho é que eu sou muito pequena, aquela sensação

quando a gente olha pro céu e sente-se muito ínfima. Sinto que não sei como agir.

Como se eu quizesse mergulhar no mundo mas tenho medo de me jogar porque se não

der certo alguma coisa, como vou fazer para retomar o meu caminho? É como se eu

estivesse olhando para um céu imenso e quizesse me jogar. Me sinto muito

inexperiente em relação aos sentimentos, como vou me jogar se sou inexperiente?

Sinto raiva de mim em ser como sou. Não sei administrar minha raiva nem mesmo o

meu amor. Fiquei irritada com uma pessoa no trabalho que disse que eu era uma

princezinha. Eu não queria ser princezinha mas uma pessoa normal.”

A médica gastroenteriologista pressupõe a organicidade da doença, mas concebe

que os sintomas podem ser deflagrados por emoções bruscas. Além disso, entende a

psicoterapia como uma forma de fazer com que a cliente conviva com a doença e se adapte

ao tratamento. Por outro lado a cliente e seus familiares acreditam numa causalidade

emocional para seu problema físico, inclusive, a cliente refere-se sempre a fatores

inconscientes.

Letícia refere-se à sua doença como decorrência de “auto-rejeição”. Diz ter sido

sempre obrigada a negar o que sentia e não percebia o quanto isso lhe era danoso. Diz que

hoje sabe que guardar raiva lhe faz mal, mas em tom inseguro, questiona se não existem

outros tipos de sentimentos que podem estar lhe fazendo mal sem ela saber. Por isso, afirma

ter vontade de fazer um curso de psicanálise para entender o que está por detrás daquilo que

é manifesto. Baseada nestas concepções, a cliente tenta mudar algumas de suas atitudes.

“Ontem percebi como estou mais sincera comigo mesma. Antigamente se me

olhasse no espelho e não me sentisse bem, por mais angustiada que me sentisse, eu não

chorava, colocava aquilo pra dentro. Mas ontem chorei tudo que eu queria chorar.

Chorei de uma forma tão natural que me fez pensar depois por que será que venho a

tanto tempo me reprimindo, por que não deixo as coisas serem naturalmente. Aí

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minha mãe virou pra mim e disse: que bobeira, prá que você está chorando, isto vai te

fazer mal, vai te deixar mais doente. É engraçado como as pessoas dão opiniões na

vida dos outros e não sabem viver a própria vida. É necessário pra mim, chorar em

certos momentos. As pessoas não sabem lidar com as coisas que sinto. Por isso, às

vezes, me dá raiva por ser tão intensa e emotiva. Ninguém compreende. Me sinto um

peixe fora d’água.”

As sessões prosseguem e Letícia refere-se a um ex namorado que lhe ligou

chamando para sair. Pensou em ir a fim de se divertir. A mãe interviu dizendo que seria

uma besteira sair com ele, pois é uma pessoa que não lhe daria um futuro. A cliente fica na

dúvida e questiona se o importante é assegurar o futuro ou viver o presente.

“A sensação que tenho é que nunca vou ser capaz de dar conta de mim

mesma sozinha. Que eu vou sempre precisar de alguém por baixo pra me dar apoio.

Isso me dá uma insegurança muito grande. E isso é horrível porque começo a me

questionar: Ai, meu Deus, se eu viajar, será que vou dar conta de cuidar de mim

mesma e da minha alimentação que é tão rigorosa? Se meus pais morrerem será que

vou saber cuidar de mim mesma sozinha? Se eu ficar sozinha se eu não me casar, será

que vou conseguir ser feliz assim mesmo? Será que minha profissão não é uma escolha

que fiz pensando nos outros? Devo ficar pensando no amanhã ou tentar fazer as coisas

que dão prazer agora”

Fala da religiosidade extrema da família. Conta que durante a sua infância ia sempre

com sua mãe e a irmã para a casa de uns tios que tinham o hábito de rezar na hora da

refeição. Lembra que na ocasião disse à mãe que iria achar engraçado e rir. Conta que a

mãe se insurgiu contra ela dizendo pra não ousar fazer isso. Tem inveja de uma prima que é

considerada avuadinha e que colocou piercing. Seus tios dizem para essa filha seguir o

exemplo de Letícia, porque estuda e é séria. A cliente fala que a família não tem idéia do

incômodo causado por ser considerada tão “certinha”.

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“Estou numa fase em que eu quero liberdade. Não quero a aprovação de

ninguém, eu quero a minha aprovação. Mas é tão difícil para mim. Acho que não sei

fazer as minhas escolhas, preciso ter novos conceitos, mas não consigo... A sensação

que eu tenho é que quando faço alguma coisa que desagrada alguém, eu não fico

completamente feliz. Para eu ser feliz eu preciso da aprovação dos outros. Eu vejo que

isso nunca vai ser possível, porque eu vou sempre desagradar alguém.”

Numa certa sessão, Letícia conta que está namorando. Conta que um rapaz do

trabalho de sua irmã, olhando sua foto que fica na mesa dela, quis conhecê-la. A irmã da

cliente lhe falou do interesse de seu colega de trabalho em telefonar para marcar um

encontro e Letícia resolveu aceitar.

Saíram, e a cliente conta que foi uma noite muito agradável, pois o rapaz é

inteligente, educado e sabe conversar. Depois desta noite, se telefonam e passam a sair nos

finais de semana. A cliente tem muitas dúvidas quanto a este relacionamento. Ele tem 30

anos, teve um noivado que acabou, pois diz que a noiva não lhe dava a atenção que

gostaria. Letícia diz que está feliz em ter uma pessoa com quem possa sair e se divertir,

então, está investindo no relacionamento.

A cliente conta que depois de um mês de namoro tiveram um relacionamento

amoroso mais íntimo. Pensou que fosse ser uma situação mais difícil, pois nunca havia tido

relações sexuais com os dois namorados que teve anteriormente. Mas sentiu-se tranqüila.

O namoro passa a transcorrer em clima de romance. A cliente relata sua felicidade e

fala que, por enquanto, não pretende contar para seu pai, evitando, dessa forma, sua

interferência, bem como, seus palpites negativos. Somente sua mãe está sabendo do

namoro.

Numa dada sessão a cliente chega chorosa e descontente, pois aguardou o

telefonema do namorado no domingo pela manhã até a tarde em vão. Resolveu, então, ligar

para seu celular, tendo ele lhe dito que estava na praia com a irmã. O namorado só voltou a

ligar à noite. Letícia ficou com muita raiva e simulou para o namorado que iria sair e não

queria a sua compahia.

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“Até que ponto as pessoas merecem minha consideração. Eu tenho que me

posicionar, mas estou confusa em meus sentimentos. Minha irmã diz que tenho que

parar com isto, porque vou piorar minha doença.”

Letícia relata sentimentos como decepção, frustração, raiva, medo. Questiona por

que o namorado estaria fazendo isto. Fala chorando que seria incapaz de agir assim com

ele. Diz que sempre dá um retorno ao namorado. Liga quando chega, diz quando vai sair,

etc.. Questiona até que ponto vale a pena confiar nas pessoas, e até que ponto este namoro é

seguro. Diz que fica muito triste pois o namorado está agindo como se ela não fosse

importante. Fica magoada com o desprezo. Teme quanto ao que está por vir e como vai agir

em situações piores. Diz que não quer que o namorado peça permissão para sair, mas quer

que ele se faça presente.

A situação ainda se agravou quando soube que o namorado foi almoçar com uma

colega de trabalho com quem ela antipatiza e que tem declaradamente um interesse nele.

Diz que não sabe o que fazer, que atitude ter com ele. Se fala ou não tudo o que está

pensando e sentindo. Sente-se mal pelo fato de saber que ele almoçou com uma colega de

trabalho e não poder falar isto para ele, pois foi a irmã que lhe contou. Quer saber os

motivos que o levaram a fazer isto. Quer saber o porquê do desprezo. Quer lhe dizer para

ser honesto com ela. Diz que quer ter uma segurança, que quer dar mas também receber.

Quer as coisas em pratos limpos, mas não quer ser mal interpretada.

Relata que se sente como se estivesse numa bolha porque o pai, a mãe e a irmã

sempre falam para ela se controlar por causa da doença. Sente como se nunca fosse ficar

preparada para encarar a vida.

Sabe que só tem 22 anos e que tem muita coisa pela frente, mas pensa se acabar esse

relacionamento se terá coragem de começar tudo de novo.

“Será que relacionamento é isso? Sofrer. O que eu posso esperar das

pessoas? Só inconstância? Eu não suporto isto, é horrível. Tenho que aprender que

cada um é cada um.”

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Letícia passa a se sentir muito descontente na relação com o namorado. Reclama

que ele dá muita atenção para a própria família e que tenta sempre trazê-la para os seus

problemas familiares. Considera excessivo o modo como seu namorado se dedica aos pais,

sempre muito preocupado e se sentindo responsável por tudo. A cliente diz que não está

disposta a cuidar da família do namorado, mas não sabe como lhe dizer isto. Relata se sentir

rejeitada. Consegue falar algumas coisas que pensa para o namorado mas a relação acaba

terminando. Em sessões seguintes a cliente relata tristeza, decepção, raiva e rejeição em

função do namoro desfeito, entretanto, não demonstra querer refletir sobre a situação do

namoro e seu desfexo.

A cliente se muda com a família para um outro bairro próximo ao prédio em que

mora a irmã e seu marido. Relata que está morando num lugar mais agradável e que pode

caminhar nos finais de semana, atividade que aprecia fazer. Entretanto, queixa-se que está

tendo algumas sensações muito desagradáveis, principalmente, quando se encontra na rua

em horário de trabalho: sua frio, as pernas ficam trêmulas, sente também temor e medo,

então, tem vontade de voltar para casa. Tem receio de sentir-se mal, ter uma nova crise da

doença e preocupar sua mãe e sua irmã.

Relata que ultimamente vem se dando conta que sempre foi uma pessoa insegura,

temerosa e que o medo é um sentimento que a acompanha. Busca saídas através de regras e

certezas, de segurança profissional, de explicações teóricas para a vida, de explicações para

sua doença, de um namorado...

Passa a se dedicar mais aos estudos e à elaboração da monografia de final de curso.

Por ser considerada aluna excelente é convidada para a monitoria de uma Disciplina na

Universidade e passa a dar algumas aulas para seus colegas. Envolve-se com a elaboração

de aulas e dedica-se ainda mais aos estudos. Inscreve-se em um concuso da UNESCO e

ganha um prêmio de melhor redação cujo tema é a paz. Entretanto questiona:

“Como posso ganhar um prêmio pelo fato de ter escrito sobre a paz e sentir

que minha vida é um caos? Dentro de mim sinto um vulcão prestes a explodir.”

E refere-se a uma música popular intitulada “Louca Tempestade”, dizendo retratar o

que sente:

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“Eu quero uma lua plena

Eu quero sentir a noite

Eu quero olhar as luzes,

Que teus olhos não me têm deixado ver

Agora eu vou viver

Eu quero sair de manhã

Eu quero seguir a estrela

Eu quero sentir o vento

Pela pele um pensamento me fará

Uma louca tempestade...” 2

2 Composição Músical: Louca Tempestade de Totonho Villeroy e Bebeto Alves. Interprete: Ana Carolina. CD

Estampado. BMG/RCA, 2003.

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TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Você está sendo convidada à participar de um Estudo de Caso em Psicologia que

tem como objetivo estudar os problemas psicossomáticos sob a perspectiva da Abordagem

Fenomenológico-Existencial em Psicoterapia. Sua participação consistirá em sessões

individuais as quais serão gravadas e seus dados mantidos sob sigilo e sua identidade

preservada. Você poderá desistir a qualquer momento da pesquisa, bastando informar sua

decisão. Sua participação será voluntária sem direito a qualquer remuneração e todas as

despesas para a realização do estudo não serão de sua responsabilidade. Sua participação

para o Estudo de Caso não incorrerá em riscos ou prejuízos de qualquer natureza. Você

poderá solicitar informações durante todas as fases da pesquisa, inclusive após a publicação

da mesma.

Eu,_________________________________________________________________

identidade___________________ li e ouvi os esclarecimentos acima e compreendi seus

objetivos e procedimentos. Concordo em participar do Estudo de Caso.

_____________________________________________

assinatura da voluntária

Nome da pesquisadora: ___________________________

Identidade:__________________________

______________________________________________

Assinatura da pesquisadora