interferência midiática nas sanções aplicadas pelo tribunal do júri e seus efeitos
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Monografia enviada ao XIII Concurso Nacional de Monografias do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.TRANSCRIPT
CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA CRIMINAL E
PENITENCIÁRIA
XIII CONCURSO NACIONAL DE MONOGRAFIAS DO CNPCP
LEKKERDING
INTERFERÊNCIA MIDIÁTICA NAS SANÇÕES APLICADAS
PELO TRIBUNAL DO JÚRI E SEUS EFEITOS
SÃO PAULO
MAIO 2010
RESUMO
Este artigo pretende analisar as conseqüências da interferência da imprensa nas sanções
aplicadas em Tribunais do Júri, e a extensão dos danos às famílias envolvidas nos casos de
julgamento. Através de estudo de casos semelhantes com abordagens diversas da mídia, visa
a presente peça mensurar a proporcionalidade das penas eivadas de influência demasiada e
manipulação de opinião pública pela imprensa, e seu impacto nas famílias submetidas a este
juízo de valor. Visa, também, propor soluções ao cerceamento do direito de ampla defesa
causado pelo viés de mídia e o grave risco de dano ao princípio do devido processo legal.
ABSTRACT
This article aims to examine the extent of consequences coming from the press interference
applied in jury courtrooms, as well as the extent of damages caused to the families involved in
such cases. Throughout the study of two similar cases with different approaches taken by the
press, this article intents to measure the proportions of sentences and penalties beset with too
much influence and manipulation of the press on public opinion, and its impact on families
subjected to this value judgments. The present piece also offers measures to prevent such
happenings to endangerment of the due process of law, caused by biased media.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................... 1
1 ORIGEM DAS SANÇÕES PENAIS ................................................................................................... 3
1.1 Proporcionalidade das penas à família ............................................................................................ 3
2 TRIBUNAL DO JÚRI ........................................................................................................................... 4
3 LIBERDADE DE IMPRENSA .............................................................................................................. 5
3.1 Responsabilidade de imprensa em coberturas policiais ................................................................... 6
3.2 Impacto da cobertura de imprensa em candidatos ao júri .............................................................. 7
3.3 Impacto da cobertura de imprensa nas famílias ............................................................................. 8
4 CASO PRÁTICO ................................................................................................................................ 10
4.1 Caso Isabella Nardoni ..................................................................................................................... 10
4.2 Caso Madeleine McCann ................................................................................................................ 14
4.3 Papel da imprensa e impacto da opinião pública nas famílias ...................................................... 17
4.4 Implicações ao devido processo legal e à justeza das sanções .................................................... 20
5 CONCLUSÃO .................................................................................................................................... 24
5.1 Viabilidade de seqüestro do júri ...................................................................................................... 27
5.2 Viabilidade de restrições à imprensa ............................................................................................ 28
5.3 A ausência do júri como elemento resolutivo ................................................................................ 29
5.4 Considerações finais ...................................................................................................................... 29
6 BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................................. 30
1
INTRODUÇÃO
Define-se o Direito Penal como complexo de normas de convivência a serem
observadas por todos os indivíduos. Estas normas protegem os bens considerados mais
preciosos pela sociedade, que merecem proteção especial, ou tutela diferenciada,
selecionando comportamentos humanos lesivos à existência dos mesmos e cominando as
devidas punições aos que desrespeitam, de alguma forma, seus desígnios. Segundo Capez1, o
Direito Penal, no exercício de suas funções, forma o juízo ético dos cidadãos, delineando-lhes
os valores essenciais para a convivência social. É possível inferir que a atividade processual
penal tem o intuito de restaurar a ordem social vigente.
A sociedade sempre acompanha os desdobramentos de processos penais que
envolvam o egrégio Tribunal do Júri, por serem estas lides de interesse público; o Júri só é
convocado em caso de violação ao maior bem social conhecido – a vida. Neste sentido, o
Poder Judiciário e a população, definição material do corpo social disciplinado, encontram seu
mediador principal na imprensa, responsável pela divulgação de informações concernentes.
Desta forma, é possível aferir que a sanção penal não tem apenas caráter punitivo,
mas também apaziguador: uma vez aplicada, define ao infrator o que não é tolerado por seus
pares, e dá aos mesmos a sensação de segurança, ao saber que a violação de seus bens
mais preciosos restará impune. Assim, tem a sanção penal a atribuição de “Justiça social”,
satisfazendo anseios dos envolvidos em sua provocação.
Porém, observando por outro escopo, a sanção penal, principalmente no instituto do
Tribunal do Júri, deve observar a proporcionalidade de sua aplicação, princípio presente na
Constituição Federal. Há que se considerar a relação custo-benefício social mencionada por
Capez, pois a sanção não se restringe, de fato, às partes envolvidas no processo penal:
estende-se às entidades familiares das mesmas, sujeitas ao escrutínio do público, além de
toda a provação sofrida durante o trâmite processual.
Recentemente, encontramos na imprensa o papel de “formadora de opinião”, o que
imbui a informação passada de impressões pessoais, contaminando a imparcialidade da
1 Na parte geral de seu curso de Direito Penal, Fernando Capez examina este ramo jurídico em aspecto formal e normativo, dando enfoque sociológco a algumas acepções das definições penais. Este artigo tem foco sociológico, portanto fulcra-se nas funções sociais descritas por Capez.
2
notícia e fomentando o caráter decisório da população acerca do destino dos envolvidos em
processos penais. Infelizmente, o assédio midiático não se restringe às partes no processo,
assim como os efeitos da sanção penal: antes mesmo da sentença, sofrem os envolvidos e
seus familiares com os excessos cometidos pela cobertura massiva da imprensa, que antes
mesmo de findo o processo penal, já tem seu veredito e repassa seu julgamento à população,
com caráter executório.
Os efeitos deste viés de imprensa em possíveis candidatos ao Júri são devastadores,
uma vez que, leigos, não podem ater-se aos fatos elencados no processo e nem formular um
parecer adequado, eis que seu juízo acerca do feito encontra-se eivado pelo senso comum da
imprensa, comprometendo a idoneidade de todo o julgamento.
Este artigo visa analisar, através do contraponto entre casos similares, a extensão do
dano causado pelo viés de imprensa no Tribunal do Júri aos infratores e suas famílias, bem
como a falta de proporcionalidade nas sanções penais deles derivadas, constituindo, de per si,
ameaça ao princípio do devido processo legal.
Pretende, também, estudar possíveis soluções para a situação, como o seqüestro de
júri, a restrição de informações à imprensa ou formas de punição e/ou indenização ao chamado
viés de informação, ou a remoção drástica do instituto do Tribunal do Júri do ordenamento
jurídico brasileiro, a fim de assegurar a supremacia do devido processo legal.
3
1 ORIGEM DAS SANÇÕES PENAIS
Em definição básica, o ordenamento jurídico nasce de acordo social para a
convivência pacífica, dotado de algumas condições para sua manutenção. O indivíduo é livre,
nos termos desta convenção. Aquele que viola os termos de acordo estabelece uma dívida
para com seus pares, que deve ser quitada de imediato, para assim restaurar a ordem. Desta
premissa de Thomas Hobbes, erguem-se todos os complexos normativos e suas respectivas
sanções, incluindo o Direito Penal.
Neste ramo jurídico, elencou o legislador as condições mais básicas do acordo social,
como o respeito à vida, à propriedade, à honra e tantos outros bens preciosos à Humanidade.
Estabeleceu, também, sanções à violação da integridade dos mesmos, como forma de punir
àqueles que causam distúrbios ao núcleo da sociedade e trazer alguma reparação aos que
foram direta ou indiretamente lesados pelos atos de dado indivíduos. A força motora da lei
penal não é a vingança, mas a restauração da harmonia.
As sanções penais, no entanto, não são estáticas: devem ser proporcionais ao ilícito
praticado e ter congruência com as circunstâncias agravantes ou atenuantes do fato. Não se
pode, por exemplo, levar o pleno rigor das punições de homicídio qualificado a pessoa incapaz,
cujo estado mental é debilitado; tal indivíduo pode não entender o ato que praticou, ou as
conseqüências do mesmo. Também não cabem multas leves a um serial killer, aquele que
mata por prazer.
Assim, estabeleceu o legislador não somente nossas condições básicas de
convivência e as penas à violação destas, mas quesitos quantitativos e qualitativos para suas
aplicações e cumprimentos, nos mais variados aspectos.
1.1 Proporcionalidade das penas à família
Ainda que tenha o legislador pensado na justeza de cumprimento das sanções pelo
indivíduo, não há previsão de compensação à família pelo tempo de execução penal. Para a
estudante de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Sábata R. Moraes
Rego, a sanção penal traz sérios problemas ao sistema familiar, e não encontra amparo
adequado no Estado. O isolamento social é estigma da família do detento, que na comunidade
em que se insere, cumpre pena juntamente ao indivíduo. Embora livres, encontram-se
4
encarcerados no preconceito da criminalidade, como se tivessem contribuído ou auxiliado de
alguma forma na execução do crime.
Além do isolamento, há que se atentar para o surgimento de mitos familiares
hereditários, derivados deste estigma. Os filhos do detento, envolvidos no mito da
criminalidade do pai ou da mãe cumprindo pena, tem chances altas de ingresso na
marginalidade, passando por processo e execução penal, assim como o ascendente. Tendem
a passar o mesmo espectro aos próprios filhos, perpetuando um círculo vicioso no sistema
penal brasileiro. Estes são riscos oriundos da sanção penal à família, principalmente se o
detento exercia função central no sistema familiar.
Ainda, segundo Sábata Moraes Rego, não há proporcionalidade das penas aplicadas para a
família, visto que não há amparo do Estado para a reorganização da mesma:
“Seria preciso uma reorganização no sistema familiar. De qualquer
forma, se a sentença é longa e a família perde contato com o
membro preso, é preciso um trabalho de luto. Acho que aqui o
sistema judiciário ainda tem uma visão muito simplista e individual
do crime. O sistema julga o crime sem considerar o que levou o
sujeito a cometê-lo.
Há que pensar em toda a construção social do crime, que tem a
ver com muito mais coisas do que o desejo do sujeito. Da mesma
forma, o Estado não vê como essa família toda, inclusive o
detento, foi levada à marginalidade, e não vê razão para prestar
auxílio.”
Cediça a falta de psicoterapeutas disponíveis para acompanhamento destas famílias, o
que dificulta bastante a reintegração do detento à sociedade após cumprimento da execução;
sem um tratamento adequado aos aspectos sociais deste instrumento jurídico, a sociedade
perde as chances de reintegração do indivíduo à sociedade.
2 TRIBUNAL DO JÚRI
Júri, da expressão latina “jurare”, significa julgamento.
As atividades deste Tribunal iniciaram-se na Inglaterra em 1215, contrapondo- se ao arbítrio
judicial uno. A idéia é a de que seja o cidadão julgado por seus iguais, que expressam o
5
pensamento da comunidade e, assim, possam apreciar melhor os fatos do crime e proferir um
veredito.
No Brasil, o júri foi instituído em 1822, ironicamente, para julgar os crimes de imprensa.
Na constituição imperial de 1824, o júri ganha atribuições para julgar todas as causas,
passando mais tarde a apreciar somente causas de âmbito criminal, quadro que prevalece até
hoje.
Ao júri, compete o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, conforme disposto em
artigo 74 do Código de Processo Penal. Assim, fica o Tribunal do Júri competente para julgar
as seguintes questões: homicídio doloso, simples, privilegiado ou qualificado, induzimento,
instigação ou auxílio a suicídio, infanticídio e aborto. Caso haja conexão entre crime doloso
contra a vida e outra espécie de crime, prevalece a competência do júri para julgamento.
Os jurados são alistados anualmente por Juiz Presidente do Júri, entre cidadãos de
notória idoneidade. Deve o juiz agir com critério na seleção das pessoas, buscando em vários
segmentos da comunidade aquelas que melhor os representem. Prestar serviços ao Júri é
obrigatório aos que, após alistados, sejam sorteados.
Após o veredito do júri, e sua valoração para os quesitos elencados na norma, profere
o juiz a sanção cabível; esta não pode ser maior ou menor que o juízo de valor dado pelo júri.
Não pode o juiz proferir sentença de multa quando o júri define a condenação máxima através
dos votos de veredito. Fica, então, o magistrado preso ao valor leigo.
Tal constatação infere grave falha estrutural no sistema penal, a ser abordada a seguir.
3 LIBERDADE DE IMPRENSA
A liberdade de imprensa, conceituada na Constituição Federal, é a completa liberdade
de manifestação de pensamento, expressão de atividade intelectual, artística, científica e/ou de
comunicação, independentemente de censura ou licença.
O blogueiro Daniel de Carvalho conceitua a liberdade de imprensa como “liberdade
para se difundir, com responsabilidade, tudo aquilo que se apurou sobre um assunto”. A
imprensa, então, o papel de informar à população os fatos, em inteiro teor. Entende-se ainda
que a imprensa tem direito de decisão sobre os caminhos que a levarão às informações
pretendidas.
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Não pode o Poder Judiciário negar acesso da mídia aos ritos do Tribunal, salvo nos casos
descritos na norma. Tamanha a relevância do papel da imprensa na sociedade, que já é
chamada de “O Quarto Poder”.
No entanto, a imprensa afasta cada vez mais seu caráter informativo, assumindo postura mais
opinativa e tomando para si a posição de formadora de opinião. Esta mudança acarreta o
chamado viés de informação, onde a notícia é repassada ao público sem a devida
imparcialidade, favorecendo ou denegrindo uma das partes envolvidas. O viés se dá pelas
palavras utilizadas, por edição de vídeos, imagens ou textos concernentes e pela não-
divulgação de certos elementos do caso.
3.1 Responsabilidade de imprensa em coberturas poli ciais
Nos noticiários de cunho policial, a prática do chamado jornalismo de opinião tornou-se
comum. Repórteres e apresentadores ganham fama e clamor público ao apresentarem suas
opiniões e julgamentos acerca dos fatos noticiados; costumam, também, utilizar essa influência
na população para incitar o clamor por medidas do Poder Público. Em crimes chamados
bárbaros, os chamados “jornalistas policiais” assumem uma face maniqueísta, associando o
infrator a crenças religiosas negativas e imputando-lhe características vilanescas típicas de
folhetins ficcionais.
A cobertura massiva de crimes bárbaros dá ao repórter a chance de ofertar seu
discurso inflamado e julgamento estabelecido ao espectador, tirando, de certa forma, a
capacidade da população de analisar os fatos e formar um parecer justo e imparcial acerca dos
mesmos.
A problemática desta conduta é que, desta forma, não age a imprensa com a devida
responsabilidade acerca da missão que lhe é atribuída: o dever de informar jaz nas mãos da
mídia, e se ela não desempenha suas funções corretamente, distribui apenas meias-verdades
entre a população, o que pode trazer sérias conseqüências aos envolvidos. O blogueiro Daniel
de Carvalho, colaborador e um dos principais tradutores da rede Global Voices, afirma que
responsabilidade e liberdade de imprensa deveriam andar de mãos dadas. Porém, na prática,
a responsabilidade de imprensa é esquecida, delegada aos bastidores.
Ao não agir com a devida responsabilidade sobre a divulgação dos fatos em inteiro
teor e com o máximo de imparcialidade possível, a imprensa distribui uma sentença paralela
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antes mesmo que se iniciem os trâmites judiciais que dão acesso ao devido processo legal.
Esta sentença traz atrelada uma sanção, que apesar de não ter validade no meio jurídico, é
imperativa no meio social.
3.2 Impacto da cobertura de imprensa em candidatos ao júri
Não é raro que suspeitos de crimes bárbaros sejam mortos em delegacias, ou em suas
casas, antes mesmo do início do inquérito policial; a população age mais rápido, para fazer
cumprir a decisão do apresentador, que muitas vezes insinua a morte de dado suspeito. Esta
sanção não se restringe ao indivíduo; estende-se a cônjuges, filhos, irmãos e pais,
classificados pelo jornalismo e chancelados pela população como “farinha do mesmo saco”.
Sobre o comportamento da imprensa, relata o blogueiro Daniel Carvalho, acerca da
ética da divulgação de informações e o assédio a agentes do Poder Judiciário:
No passado, os maiores grupos midiáticos do Brasil não foram
sempre cuidadosos ao marcar este ou aquele suspeito como
culpado de um crime. A polícia e as autoridades brasileiras foram
freqüentemente pressionadas a dar à mídia as informações e
afirmações desejadas por esta para fazer com que indivíduos sob
investigação parecessem culpados aos olhos do público mesmo
antes da conclusão das investigações. Se, ao final das
investigações oficiais, fosse revelado que o real culpado era outra
pessoa, os mesmos jornais raramente se preocuparam em corrigir
estes erros, rapidamente se voltando para o próximo gol da final
do campeonato, para o próximo escândalo político ou morte
terrível.
Ainda, é necessário cuidar da influência da imprensa sobre futuros jurados, que,
acompanhando notícias tendenciosas, podem não manter a parcialidade para a análise dos
fatos num Tribunal do Júri. Igor Quintanilha, bancário e portador dos quesitos necessários para
alistamento ao Júri, afirma:
“Não posso ficar imune ao viés de imprensa, pois acredito que
apesar da prática de isolar os jurados durante o julgamento, a
eficácia da decisão fica comprometida, porque durante boa parte
do processo os jurados ficam em contato com meios de
comunicação. Considerando a mídia como uma formadora de
opinião, acredito que todo caso que repercuta e cause comoção
social e, conseqüentemente, isso torna meu julgamento parcial.”
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O jurado, como leigo, não pode filtrar informações como os juristas, pois não está
preparado para tal feito. Desta forma, toda a exposição às notícias entre o período de inquérito
até o julgamento propriamente dito pode cercear o direito de defesa do réu; por mais que se
apresentem provas irrefutáveis de sua inocência, está o júri certo de sua culpa e convicto em
sua condenação, ambas derivadas do senso comum da imprensa.
Em plenário, antes mesmo de analisar os argumentos de Promotoria e defesa, ter
acesso às provas produzidas e proceder ao exame atento dos autos, está o júri certo da
condenação ou da absolvição daquele que jaz sob seu escrutínio, tornando os ritos do
processo praticamente nulos.
Desta forma, toda e qualquer sanção penal aplicada pelo juiz seria injusta, podendo
inclusive incorrer em erro de direito, derivado de júri eivado de vícios; restaria, então, o réu
impune, ou condenado apesar de provas irrefutáveis de sua inocência.
Uma questão mais preocupante: por não trabalhar com os fatos apurados, pode a
imprensa formular opinião pública errônea acerca do verdadeiro réu. É possível que, diante de
informações advindas de investigações preliminares, a imprensa inocente o verdadeiro réu, e
atribua ao mesmo características que tornem impossível à população a concepção de sua
culpa. Caso seja este réu levado a julgamento, o que seria improvável de ocorrer devido à forte
pressão popular nos investigadores e peritos, clamando uma investigação sobre “os
verdadeiros culpados” e forçando a mudança de foco dos inquéritos, há risco de absolvição,
ainda que esteja o júri diante de provas irrefutáveis; o veredito foi dado muito tempo antes, no
discurso do apresentador.
Não possui o Estado, além das normas processuais penais, qualquer aparato de
treinamento para prevenir ou evitar este comportamento dos jurados, apesar de estabelecida a
responsabilidade criminal dos jurados em casos de prevaricação. Mesmo que inconteste o tipo
penal, é necessário o esclarecimento dos jurados acerca de seu papel em plenário, no
exercício de seu dever e na responsabilidade a eles atribuída, o que, atualmente, inexiste.
3.3 Impacto da cobertura de imprensa nas famílias
Em ambas as situações, a família e os entes próximos são extremamente lesados:
pela pena injusta, sofrem com os elementos elencados por Sábata R. Moraes Rego, e sem a
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punição do réu, necessária para a restauração da ordem no seio da sociedade, restam todos à
mercê da população, que, privada de seu senso de justiça, procederá ao restabelecimento de
sua harmonia como bem lhe aprouver, em detrimento da integridade do réu e de sua família.
Não somente a família, mas entes próximos ao suspeito ou criminoso já estabelecido
nos termos da lei, sofrem com as sanções paralelas proferidas solenemente na mídia.
Hostilizados, isolados de seu mundo e da sociedade, sofrendo agressões físicas e morais em
aparições públicas, são enclausurados na marginalização produzida pela cobertura massiva e
tendenciosa da imprensa, além de perderem seus direitos à privacidade, seguidos por todo
lugar pelos mesmos que lhe impuseram pena tão pesada. Sem praticar crime algum, estas
pessoas são condenadas ao desprezo. E não estabelece o Poder Público nenhum tipo de
proteção às famílias dos suspeitos ou criminosos estabelecidos; jazem abandonados à própria
sorte, diante das vozes acusadoras da imprensa.
Há que se ressaltar a responsabilidade direta dos veículos midiáticos acerca de
qualquer mal que possa suceder, tanto ao indivíduo infrator quanto a seus entes queridos: não
fosse pelo discurso inflamando atribuindo certeza de culpa e intento maligno ao crime
cometido, a segurança e a integridade destas pessoas seria garantida.
Não obstante, está a família carregando a sanção consigo; reitera a autora que a
sociedade atribui toda a carga do fato lesivo à entidade familiar do réu. Em termos simplórios, o
processo penal transforma-se em evento maniqueísta, sendo as vítimas as entidades
angelicais, e os réus, seres demonizados. Culpa-se a dinâmica familiar por ser permissiva às
características vilanescas do réu, o que, para a população, caracteriza, de per si, sua
participação no ato ilícito e justifica a aplicação da sanção penal aos familiares; em não-
ocorrência disso, sente a sociedade a liberdade de aplicar o castigo que acredita mais
proveitoso, numa noção deturpada de justiça.
A família da vítima, glorificada, sente a pressão e o assédio popular, e revive a dor da
perda sempre que lembrada do feito. O apoio popular, no auge da comoção, garante um
“colchão” de conforto, que ameniza a perda e amortece os sentimentos característicos do luto;
mas à medida em que a necessidade de procurar a família da vítima para analisar todo e
qualquer aspecto diferenciado do caso ou mesmo da justeza de sanção aplicada ao réu é
intensificada pela mídia, impõe-se a esta entidade familiar a reconstituição não só de eventos
trágicos, mas suas impressões diante deles, trazendo à tona traumas imensuráveis, com os
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quais a família terá de lidar sozinha e cujas conseqüências para sua unidade e funcionamento
são terríveis.
Não possui o Estado um aparato terapêutico que possa trabalhar estes aspectos do
processo e da sanção penal; não pode, ainda, designar força policial para prevenir o assédio
popular a estas famílias em tempo integral.
4 CASO PRÁTICO
Procede o artigo ao estudo da opinião pública emitida em dois casos similares, que
atendem aos quesitos necessários para submissão ao Tribunal do Júri, desconsiderando a
territorialidade2. Ambos os casos possuem elementos de comoção social e extensa cobertura
midiática, exposição contínua das famílias à imprensa e assédio popular. Além disso,
enquadram situações semelhantes, bem como evidências e partes envolvidas; nestes casos,
também é forte o indício de viés de imprensa. O estudo destes casos tem por objetivo
comprovar a incongruência do princípio do devido processo legal no Tribunal do Júri com o
atual quadro midiático, e a ausência de proporcionalidade das penas tanto aos réus quanto às
suas famílias, mostrando também o ônus carregado pela família das vítimas neste contexto.
4.1 Caso Isabella Nardoni
Na noite de 29 de março de 2008, Isabella Nardoni é encontrada inconsciente no
gramado em frente ao seu prédio, em São Paulo. Ela chega a ser socorrida, mas morre a
caminho do hospital.
As primeiras informações sobre a morte da menina são divulgadas. A imprensa já
começa a tratar o pai, Alexandre Nardoni, e a madrasta, Anna Carolina Jatobá, como
suspeitos. Em depoimento prestado, ambos afirmam acreditar que havia um terceiro no
apartamento.
O delegado Calixto Calil Filho afirma trabalhar com a hipótese de homicídio, praticado
por alguém próximo ou de fora. Mas vê com reservas a versão apresentada por Nardoni, pois
nada foi roubado do apartamento.
2 O presente artigo reserva o direito de não analisar os referidos casos sob escopos formais da lei, atendo-se à matéria, ao âmbito sociológico e tendo como referência a população brasileira e sua postura diante destes casos.
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Em abril, a Justiça pede prisão temporária do casal Nardoni, após ouvir mais de 10
depoimentos, porém não divulga motivo; o juiz Maurício Fossen decreta sigilo ao caso. As
especulações midiáticas tem início. A mãe de Isabella, Ana Carolina Cunha de Oliveira, é
procurada incessantemente para dar declarações à imprensa.
Em abril de 2008, o promotor Francisco Cembranelli visita o prédio onde deu-se o
crime, e dá declarações onde classifica o depoimento de Alexandre Nardoni como fantasioso e
diz que o que pode provar é tudo que importa. A imprensa começa a dar mais importância para
a figura do promotor, ligando sua imagem à de Ana Carolina Cunha de Oliveira e clamando por
Justiça. São feitas as primeiras especulações vinculando Anna Carolina Jatobá a crueldades.
Dias depois, o promotor quebra o sigilo decretado pelo juiz Maurício Fossen e dá
detalhes, em programa de TV, das investigações. Ele descarta o depoimento do filho mais
velho do casal Nardoni e única testemunha ocular dos eventos acerca da morte da menina,
classificando-o como dispensável. A imprensa faz as primeiras reportagens chamando
Alexandre e Anna Carolina Jatobá de “réus”, e responsabiliza ambos pela morte de Isabella.
No dia 7 de abril, o juiz Maurício Fossen suspende o sigilo do inquérito, declarando que
tendo o Ministério Público divulgado abertamente informações à imprensa que estavam sob
sigilo, além de ter emitido opiniões valorativas de cunho exclusivamente pessoal sobre as
provas do processo teria deixado de existir fundamento jurídico para a ordem de sigilo. Nas
palavras de Maurício Fossen, “o comportamento adotado pelo Ministério Público no último dia
4 de abril, demonstrou que o sigilo das informações referentes a este inquérito policial não
constitui, para aquele órgão ministerial, formalidade imprescindível para o bom
desenvolvimento das investigações, daí porque nada mais justifica a manutenção desta
providência que havia determinada anteriormente por este juízo”.
O delegado Calixto Calil Filho determinou a devolução de sigilo ao inquérito, conforme
prerrogativa do artigo 20 do Código de Processo Penal. Em nota, Cembranelli afirmou que as
informações relativas ao caso são de domínio público e que "praticamente todos os fatos que
constam e são investigados no inquérito foram divulgados pela imprensa nacional, seja antes
ou depois da decretação do sigilo".
O casal Nardoni pede habeas corpus no mesmo dia em que a perícia revela a
extensão dos ferimentos de Isabella, afirmando que a menina foi espancada e asfixiada antes
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de ser atirada pela janela. Os peritos confirmam, no entanto, não haver sangue da menina no
carro de Alexandre, e nem na porta do apartamento.
O habeas corpus do casal é concedido, e o advogado de defesa Marco Polo Levorin
pede que não se transforme investigação em acusação. Apesar do apelo, os depoimentos
prestados por Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá na delegacia foram exibidos e
comentados por jornalistas em rede nacional, pela Rede Globo e pela TV Bandeirantes.
A polícia afirma a conclusão de “quase toda a investigação” e descarta a hipótese de
terceiro no apartamento, sem indicar suspeitos. A imprensa começa a entrevistar vizinhos e
outras pessoas com quem o casal Nardoni tinha contato, para traçar perfis psicológicos.
Pessoas descrevem o rosto de Alexandre como sendo o de um psicopata. O casal mantém
silêncio.
Veículos midiáticos oferecem reconstituições do crime em versões 3D para
espectadores, e oferecem detalhes das perícias, detalhando a morte da menina “com requintes
de crueldade”. O depoimento de Ana Carolina Cunha de Oliveira sobre sua vida com Alexandre
é divulgado, e nele, ela o descreve como violento.
Os laudos periciais são divulgados e apontam que Isabella morreu de asfixia. As
notícias são redigidas da forma mais detalhista possível, e descrevem pormenores
desagradáveis dos últimos instantes de Isabella. Divulgam também que Alexandre e Jatobá
foram indiciados por homicídio doloso com três agravantes: motivo fútil, meio cruel e
impossibilidade de defesa da vítima.
No dia 20 de abril, o casal Nardoni rompe o silêncio e concede entrevista ao programa
Fantástico. As imagens são dissecadas por experts em expressão corporal, que afirmam que o
casal mente e está se separando.
Enquanto os advogados dos Nardoni apontam erros policiais, a reconstituição do crime
é marcada para 27 de abril. Com duração de sete horas e 30 minutos, contou com a corbertura
– previamente proibida – da imprensa.
Em maio, o casal é denunciado pelo crime e detido. Ana Carolina Cunha de Oliveira dá
entrevista ao programa Fantástico, e desacredita o casal, gerando mais acusações inflamadas
da imprensa.
O síndico do prédio é ouvido, e afirma que Alexandre desceu “transtornado e
assustado” para socorrer a menina, seguido de Jatobá, que estava “desfigurada”. Disse ainda
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que um dos vizinhos conversou com o filho mais velho do casal na noite do crime, e que o
menino não acusou ninguém. Porém, a única parte do depoimento do síndico à qual foi dado
destaque midiático é a em que ele revela ter ouvido uma criança dizer “papai, papai, pára,
pára” na noite do crime.
Durante a cobertura do caso, o jornalista Ricardo Boechat acusou as emissoras
concorrentes da Rede Bandeirantes, as redes de TV Record e Globo, de copiarem imagens
exclusivas feitas pelo circuito interno de TV de um supermercado que mostravam Alexandre,
Anna, Isabella e os meio-irmãos, horas antes de sua morte. O jornalista relatou ainda que o
logotipo da Band, colocado no canto da tela, foi retirado por computação. Alegou não serem
seus direitos autorais respeitados.
No dia 10 de abril, o mesmo jornalista afirmou, em seu programa diário de rádio, que
algumas redações tinham recebido a informação de que a verdadeira assassina de Isabella
fora a madrasta, Anna Jatobá. A descoberta teria vindo de um telefonema ouvido pela polícia,
fato que posteriormente não seria confirmado.
As especulações e dossiês da imprensa continuam até o julgamento do casal. É
comum utilizar o nome dos Nardoni para designar crueldades, em outros crimes.
O casal foi a júri popular em 22 de março de 2010. A população esteve em peso no
fórum, com ânimos exasperados. O advogado de defesa Roberto Podval foi agredido, e o
promotor exaltado; houve quem o chamasse de santo. A imprensa foi vetada em plenário, mas
ainda assim, sua permanência junto aos populares na porta do fórum causou tumultos.
Após cinco dias de julgamento, o juiz Maurício Fossen pronunciou sentença. Pelo júri,
Anna Carolina Jatobá e Alexandre Nardoni foram condenados. A pena fixada pelo juiz foi de 31
anos, 1 mês e 10 dias em regime fechado para Alexandre, e 26 anos e 8 meses em regime
fechado para Anna Carolina. Por fraude processual, ambos foram sentenciados a cumprir 8
meses e 24 dias em regime semi-aberto.
A população soltou fogos de artifício diante do Tribunal após o pronunciamento, e
causou tumulto na saída de jurados, advogados, promotor e o próprio juiz. A imprensa divulgou
a notícia como “final feliz para Isabella”. Os Nardoni já apresentaram recursos, negados.
Recentemente, constituíram novo patrono. Apesar dos rumores de divórcio do casal,
continuam juntos e escrevem cartas mútuas regularmente
14
4.2 Caso Madeleine McCann
Em 3 de maio de 2007, no Algarve, foi noticiado o desaparecimento de Madeleine
McCann, em Algarve. O caso foi preliminarmente classificado assim; segundo os pais, seus
filhos estavam dormindo no hotel enquanto jantavam, retornando para um quarto com janelas
arrombadas e a filha ausente. Dias depois, foi divulgada a mudança da classificação:
seqüestro. A polícia portuguesa, apesar de preferir o silêncio e a discrição para preservar a
integridade da família e das investigações, suspeitava que o raptor era um homem, inglês.
A imprensa, então, começa a trabalhar com a hipótese de pedofilia e a construção da
imagem dos McCann. A polícia portuguesa já pensa na hipótese de morte de Madeleine. A
imprensa começa a questionar os métodos de investigação portugueses. A 11 de maio de
2007, as buscas por Madeleine mudam de status junto aos órgãos policiais; passam de
permanentes a preventivas. A imprensa divulga que a polícia portuguesa encerrou as buscas e
dá foco ao sofrimento de Gerry e Kate McCann.
Em 15 de maio, a polícia torna formalmente suspeito o britânico Robert Murat, cuja
residência era próxima ao local de onde Madeleine desapareceu. A imprensa fortalece a
hipótese de pedofilia, chegando a encaixar Murat no perfil concernente.A hipótese de Murat é,
porém, afastada por falta de provas.
Em 13 de junho, o jornal holandês De Telegraaf recebe uma carta anônima indicando o
local onde Madeleine pode estar enterrada. A notícia é divulgada com alarde pela imprensa, e
o endereço do local, "a norte do caminho, debaixo de arbustos e pedras numa zona a 15
quilómetros do lugar onde a menina foi vista pela última vez” visitado pela polícia e paparazzi.
Os McCann emitem nota censurando o jornal inglês pela falta de sensibilidade e por não
comunicarem as autoridades antes da publicação. A polícia descartou a pista do jornal 2 dias
depois, voltando esforços para o que seria o primeiro avistamento de Madeleine, no Marrocos;
a pista foi logo descartada por tratar-se comprovadamente de outra garota.
No fim de junho, o jornalista espanhol Antônio Toscano afirma que Madeleine foi
raptada por um homem de cerca de 50 anos, atuante numa grande rede de pedofilia na
Europa, com ramificações em todo o mundo, chamado simplesmente de “O Francês”. As
declarações do jornalista ganham força rapidamente e produzem novos avistamentos da
menina, agora acompanhada de um homem de meia-idade. As pistas são descartadas pela
15
polícia portuguesa. A imprensa continua dando ênfase ao sofrimento do casal McCann. À
mesma época, um casal é detido tentando extorquir os McCann.
Em julho, Robert Murat é interrogado novamente pela polícia portuguesa, desta vez
confrontado por novas evidências. A participação de Murat nas investigações é encerrada em
agosto, após buscas em sua casa. A polícia também ouve amigos do casal McCann.
Em agosto, a polícia belga lança alerta nacional e emite retrato falado de um homem
de meia-idade, baseada em dois testemunhos que afirmam reconhecer Madeleine em ocasiões
distintas. As reportagens sobre pedofilia aumentam, e Madeleine torna-se mártir da prática.
Apesar do relato belga, a polícia inglesa aponta fortes indícios de que a menina tenha
morrido em seu quarto de hotel; os cães farejadores encontraram vestígios de sangue no
quarto da menina, misturados a seu cheiro. A investigação portuguesa começa a concentrar
esforços em amigos dos McCann, sob fortes protestos. Kate McCann rompe o silêncio, falando
diretamente à imprensa, pela primeira vez, fazendo apelos pela volta da filha. No entanto, não
houve menção da mídia para a possibilidade de sua responsabilidade.
Enquanto a polícia concentra a investigação no casal McCann e amigos, tablóides
ingleses como The Sun noticiam mais avistamentos e divulgam que a polícia portuguesa tem
Robert Murat como principal suspeito. Nada é dito sobre as suspeitas dos McCann. O jornalista
espanhol Antonio Toscano volta a contatar a polícia portuguesa, que descarta seus préstimos
por acreditar que suas informações não sejam úteis ao caso.
Depois de tornadas públicas as suspeitas da polícia portuguesa em torno do casal
McCann, a família inicia uma fuga desenfreada da imprensa, postura contrária ao que vinham
praticando desde o desaparecimento de Madeleine. A imprensa britânica continua a defender a
hipótese de pedofilia. O silêncio é rompido em entrevista a veículo midiático português, o
Expresso. O casal ressalta sua inocência e anuncia uma série de medidas, apelando ao
público que os ajude a encontrar Madeleine. Após, voltam a fugir da imprensa.
O porta-voz da polícia portuguesa, Olegário Sousa, admite publicamente a
possibilidade da morte de Madeleine, diante de vestígios de sangue encontrados no chão e
nas cortinas do quarto da menina. Começam os ataques às técnicas de investigação da polícia
portuguesa e o relacionamento entre as autoridades e o casal McCann começa a deteriorar.
Jornais americanos e britânicos iniciam uma campanha de notícias infundadas a
respeito das amostras de sangue colhidas no quarto da menina McCann e o andamento das
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investigações portuguesas. Estas informações são rapidamente refutadas. Enquanto isso, mais
vestígios de sangue e fluidos são encontrados, desta vez no carro de amigos da família
McCann. O casal anuncia sua volta à Inglaterra em breve, por meio do blog de Gerry, e
começa a criticar o trabalho da polícia portuguesa.
Em setembro de 2007, os McCann são chamados a prestar depoimentos. Diante das
novas evidências – além dos vestígios de sangue, a polícia encontrou uma seringa no quarto
da menina – o casal McCann é tido pela polícia como argüido, termo português para suspeito
formal. Esta reviravolta do caso faz a imprensa crer que os resultados das análises de fluidos
encontrados foram positivas, sendo o DNA de Madeleine. O inquérito é então remetido ao
Ministério Público de Portugal, para instrução criminal, e o casal deixa o país.
A imprensa, então, permanece neutra, noticiando novas ocorrências ao caso; mas
sempre reiterando que Madeleine está desaparecida, apesar das investigações portuguesas.
Em outubro, o coordenador da polícia judiciária de Portimão, Gonçalo Amaral, é
demitido. Amaral escreveria, tempos depois, o livro polêmico que acusa abertamente os
McCann de assassinarem Madeleine.
Os jornais ingleses começam a especular a paternidade de Madeleine McCann. O
casal, então, dispara pedidos judiciais de indenizações e retratações, iniciando uma campanha
repressora à divulgação de informações que contrariem sua versão dos fatos.
Em janeiro de 2008, é divulgada a comprovação da presença do sangue de Madeleine
McCann no quarto e no carro, que estava em nome do casal. Em março, Kate e Gerry McCann
ganham 700 mil euros em indenizações de jornais ingleses, além de retratações públicas. O
casal volta a ser dito inocente pela imprensa, que afirma “não haver prova alguma” de sua
culpa.Pouco a pouco, as especulações acerca de rapto voltam a ser divulgadas. Novos
avistamentos de Madeleine surgem. Não se fala mais nas hipóteses da polícia portuguesa.
Em junho de 2008, a investigação portuguesa é oficialmente encerrada. Os McCann
pedem aos tribunais britânicos acesso à documentação portuguesa. Em julho, o Ministério
Público anuncia o arquivamento do caso, assim justificado:
I. Por despacho com data de hoje (21.07.2008) proferido pelos
dois magistrados do Ministério Público competentes para o caso,
foi determinado o arquivamento do inquérito relativo ao
desaparecimento da menor Madeleine McCann, por não se terem
obtido provas da prática de qualquer crime por parte dos argüidos.
17
II. Cessa assim a condição de argüido de Robert James Queriol
Evelegh Murat, Gerald Patrick McCann e Kate Marie Healy,
declarando-se extintas as medidas de coacção impostas aos
mesmos.
III. Poderão ter lugar a reclamação hierárquica, o pedido de
abertura de instrução ou a reabertura do inquérito, requeridos por
quem tiver legitimidade para tal.
IV. O inquérito poderá vir a ser reaberto por iniciativa do Ministério
Público ou a requerimento de algum interessado se surgirem
novos elementos de prova que originem diligências sérias,
pertinentes e conseqüentes.
V. Decorridos que sejam os prazos legais, o processo poderá ser
consultado por qualquer pessoa que nisso revele interesse
legítimo, respeitados que sejam o formalismo e limites impostos
por lei.
Com a nota, o Ministério Público divulgou o relatório final da polícia3 portuguesa, muito
pouco comentado.
Ainda em julho, Gonçalo Amaral lança o livro Maddie – A Verdade da Mentira,
acusando os McCann do assassinato de Madeleine. O casal ajuíza ação de danos morais
contra o ex-inspetor e deseja proibir a circulação do livro. Em setembro, o livro é retirado de
circulação. A lide entre os McCann e o inspetor arrasta-se até fevereiro de 2010, quando, em
audiência, Gonçalo Amaral anuncia ter elementos antes não investigados pela polícia.
Os McCann pedem reabertura do caso. A blogosfera volta a debater o assunto,
focando na inocência dos McCann. Relógios em sites de notícias portuguesas continuam
contando o tempo de desaparecimento de Madeleine, apesar das investigações policiais
apontarem para sua morte.
4.3 Papel da imprensa e impacto da opinião pública nas famílias
No caso McCann, milhares de famílias alheias à situação são expostas à mídia todos
os dias, por conta do imenso volume de avistamentos de Madeleine reportados ao redor do
mundo. A menina McCann possuía características comuns; exceto pela marca distinta no olho
3 O relatório, contendo os depoimentos dos arguidos e evidências apuradas, é inconclusivo. Consta, no entanto, relutância dos McCann a responder às questões da polícia.
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direito, nada pode destacá-la na multidão. Era uma criança loira, de olhos claros – e o mundo
tem milhões dessas.
É comum o isolamento destas famílias em suas vizinhanças, assim que se informa um
possível avistamento. Pais precisam esclarecer a procedência de seus filhos para que o mal-
estar se desfaça, expondo crianças ao escrutínio público.
Milhares de pessoas ainda oram pelo retorno em segurança da menina, glorificando a
Gery e Kate McCann como pais amorosos, ignorando evidências apuradas pela polícia
portuguesa. As expectativas de reabertura do caso tornam ainda mais forte o apoio público aos
McCann, considerados inocentes das circunstâncias que envolvem o desaparecimento de
Madeleine.
Apesar de expressarem, em comunicados de imprensa, o profundo pesar que lhes
atinge com a ausência de Madeleine, o casal aparenta tranqüilidade e até alegria nas imagens
do julgamento de Gonçalo Amaral, o inspetor da polícia portuguesa aponta Gerry e Kate como
suspeitos de matarem e ocultarem o corpo da menina McCann.
Para lidar com o assédio da imprensa, o casal tem uma equipe de segurança e de
assessoria, responsável por manter a mídia longe de si e de seus filhos e manifestar-se
publicamente a respeito de quaisquer novidades que surjam. Os McCann raramente falam
diretamente à imprensa, e têm na rotina a fuga constante dos paparazzi ingleses. Não
costumam conversar sobre a vida pessoal, ou sentimentos diante da perda de Madeleine;
limitam-se a apelar para que a devolvam e dissertar sobre sua fundação para encontrá-la.
As sucessivas indenizações ganhas em processos sobre difamação e as proibições de
divulgação de notícias que envolvam apontar culpa do casal nas circunstâncias do
desaparecimento de Madeleine McCann deram a Kate e Gerry ótimas condições de vida, que
se estendem aos irmãos de Madeleine. A fundação criada pelos McCann para encontrar a
menina continua a todo vapor, apesar de não obter resultados, mesmo contando com equipes
da Scotland Yard, CIA e Interpol, além da colaboração de outras agências de inteligência, entre
elas a Polícia Federal.
Com estas indenizações e proibições, os McCann engessam qualquer trabalho
investigativo contrário à tese de seqüestro de Madeleine, e alimentam a aura de pais amorosos
perante o público; desta forma, com a iminente reabertura do caso, a descoberta de elementos
novos pode ser gravemente comprometida. Mesmo que este fator fosse removido, é
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consolidado o senso de que os McCann jamais fariam algo de mal à filha; seria, portanto, um
júri tendencioso, quer seja composto por brasileiros, portugueses ou ingleses.
A sentença derivada de veredito de júri, neste caso, seria injusta à vítima, Madeleine,
que não obteve todos os esforços investigativos concernentes, à sua família – seus irmãos
seriam condenados a viver sob a égide dos possíveis algozes da menina – e à sociedade, que,
eivada de vícios causados pelo viés de imprensa na cobertura do caso, chancelaria a
impunidade do casal McCann, que não pôde ser devidamente investigado.
No caso Nardoni, os réus Alexandre e Anna Carolina Jatobá já foram condenados pelo
júri popular. As famílias sofrem bastante com o isolamento.
Os pais de Alexandre Nardoni são chamados de assassinos por onde passam. Sua
casa tornou-se ponto turístico, de forma mórbida; pessoas passam por sua fachada para atirar
ovos. Seu escritório de advocacia tributária, antes movimentado, sofre com a perda de clientes.
Pelo stress profissional e pessoal, Antônio Nardoni, pai de Alexandre, passou por
muitas doenças, precisando inclusive de intervenções cirúrgicas. Christiane Nardoni, irmã de
Alexandre, terminou a faculdade de Direito com muito custo, sentido o peso do julgamento de
colegas e professores. Muitos a abandonaram. E a mãe, Aparecida Nardoni, desenvolveu
vários quadros psicológicos de fobias.
Os pais de Anna Carolina Jatobá vivem reclusos. A mãe de Anna Carolina, Ana Lúcia
Jatobá, não deixa a residência de família sem estar coberta da cabeça aos pés, para preservar
a si e aos netos. Ela teme agressões públicas caso lhe descubram a identidade. A família
Jatobá enfrenta crise financeira.
Os dois filhos de Alexandre e Anna Carolina estão em terapia, e não compreendem o
que ocorreu com os pais. Questionam, ainda, tanto a volta dos pais quanto da irmã, Isabella.
Por ora, não se tem notícia de hostilidades envolvendo estas crianças na escola ou outros
grupos por eles freqüentados.
Ambas as famílias acreditam na inocência do casal. A defesa de Alexandre Nardoni e
Anna Carolina Jatobá é custeada pela família Nardoni, inteiramente.
A família de Ana Carolina Cunha de Oliveira, mãe de Isabella, sofre com o assédio da
imprensa. A busca por imagens ou declarações dela ou da avó da menina, Rosa Maria, é tão
intensa que forçou a mudança de endereço da família. À época do processo, Ana Carolina
Cunha de Oliveira não saía de casa. O apoio à mãe de Isabella foi grande, chegando a garantir
20
sua participação em missas ao lado do Padre Marcelo Rossi. Foram várias as declarações de
agradecimento ao apoio feitas por Ana Carolina Cunha de Oliveira.
4.4 Implicações ao devido processo legal e à justez a das sanções
Em ambos os casos, a imprensa teve papel decisivo para determinar em quem o
público depositaria apoio.
O caso McCann foi coberto com grande estardalhaço, tendo em seu bojo a bandeira
da pedofilia; a hipótese da morte de Madeleine não foi explorada pela imprensa, e pareceres
contrários eram rapidamente refutados. Os avistamentos de Madeleine sempre contém uma
figura masculina de 40 anos, e até mesmo um retrato falado foi produzido. Cabe ressaltar que
o rosto no retrato possui traços bem comuns, assim como são os da menina McCann.
Ao falar de Kate e Gerry McCann, a mídia utiliza o mesmo foco utilizado em Ana
Carolina de Oliveira: busca mostrar o sofrimento, a dor da perda, a valentia materna. Adjetivos
como “heroína” são comumente aplicados. Não se encontra registro de cobertura de aspectos
negativos das mães em questão.
Já os Nardoni foram apontados como culpados desde o começo; houve quem dissesse
que Alexandre Nardoni tinha traços físicos relacionados a psicopatas em rede nacional. O perfil
do casal Nardoni foi traçado de forma vil, mostrando os réus ao público como pessoas
desajustadas e problemáticas. Toda e qualquer ocorrência negativa na vida do casal foi trazida
à toda pela imprensa, para reforçar a tese de assassinato cruel, a sangue frio. Este era o
retrato de Alexandre e Anna Carolina, antes mesmo da conclusão das investigações
preliminares.
Este quadro foi visto por todos os candidatos a jurados. Sem ter acesso ao processo,
sem conhecer os detalhes, sem entender os fatos, já havia uma opinião formulada e repassada
ao público; e para piorar, esta opinião era transmitida como fática e certa, usando discursos
inflamados e imperativos para determinar o destino dos réus.
Grandes nomes do jornalismo brasileiro4 embasaram suas declarações de certeza da
culpa do casal Nardoni em afirmações feitas pela polícia e pelo promotor Francisco
Cembranelli, a saber:
4 As declarações que Ricardo Noblat afirma serem de Cembranelli foram refutadas pelo promotor. Noblat segue, até hoje, dizendo que o promotor mente ao negar a autoria destas palavras.
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“Foi o pai, Alexandre Nardoni, que jogou pela janela a filha Isabella
Nardoni, de 5 anos. A informação foi dada esta tarde pelo
promotor Francisco José Cembranelli em conversa reservada com
um grupo de jornalistas. No passado o promotor foi professor de
Alexandre. Refere-se a ele como “um vagabundo, que sempre
viveu às custas do pai, um playboy”.”“Foi o pai, Alexandre Nardoni,
que jogou pela janela a filha Isabella Nardoni, de 5 anos. A
informação foi dada esta tarde pelo promotor Francisco José
Cembranelli em conversa reservada com um grupo de jornalistas.
No passado o promotor foi professor de Alexandre. Refere-se a
ele como ‘um vagabundo, que sempre viveu às custas do pai, um
playboy’.”
O jornalista e escritor Guilherme Fiuza5, em seu blog mantido pelo portal da revista
Época, contou sua própria história, semelhante à dos Nardoni, e censurou os colegas pela
parcialidade e pelo assédio às famílias:
São situações sobre as quais é preciso encontrar a verdade. Se os
pais forem desgraçadamente culpados, precisam ser
exemplarmente punidos. Nada disso dá direito à sociedade de
invadir a vida de uma família com a sua curiosidade mórbida e a
sua estupidez. Se não é possível à coletividade imaginar na sua
própria pele o ardor da tragédia, já seria um belo avanço
civilizatório se ela entendesse, de uma vez por todas, que a vida
(dos outros) não é um Big Brother.
As vozes dissonantes da cobertura massiva da imprensa ao caso concentraram-se na internet,
entre blogs e redes sociais. A discordância atacava a postura de veículos midiáticos para
reportar ao público. Alguns chegaram a criticar a postura da própria promotoria:
“Neste samba do crioulo-doido que virou a investigação, a postura
do digno promotor assusta. Fosse eu o encarregado de desvendar
o caso – coisa que tenho dúvida se compete efetivamente ao MP
e não às áreas técnicas da polícia – não faria tanto alarde, nem
tanta questão de dar declarações de maneira reiterada e
impertinente. Já restou mais do que evidente a vontade de
Francisco Cembranelli de ter a imagem associada ao um crime
bárbaro para aparecer na mídia e ser lembrado pela participação
em um caso de imensa repercussão nacional. Transparece, ainda,
a vontade de que sejam, efetivamente, os pais os culpados pelo
5 Guilerme Fiuza foi acusado de matar o próprio filho, atirando-o pela janela, em 1990.
22
ocorrido, porque nessa hipótese o julgamento será espetacular,
com mais holofotes e exposição pública. Se tudo isso decorre de
mera vaidade ou se há no ar o cheiro de alguma vantagem
decorrente do episódio, é uma incógnita. Em todo caso, parece
desagradável que face a um crime tão bárbaro um ou outro sejam
satisfeitos.”
Guilherme Fiuza arrematou ironicamente a postura finalista das equipes de investigação:
“A delegada do caso Isabella informou que 70% do crime estão
esclarecidos. Notícia importante.
[…]
Mas, doutora delegada, e se nos últimos 30% aparecer um
personagem novo confessando o assassinato? Nesse caso,
doutora, seus atuais 70% serão iguais a zero. Jamais se viu, em
toda a história da investigação criminal, um caso 70% esclarecido.
Das duas, uma: ou a delegada é uma revolucionária, ou é uma
irresponsável.”
Com a movimentação crítica acerca da postura da imprensa e do Poder Público no
caso, muitos inferem que as investigações não foram propriamente conduzidas. Apesar destes
argumentos contrários, a corrente midiática majoritária venceu. Alexandre e Anna Carolina
foram condenados.
Há que se atentar, porém, às declarações da Promotoria e das equipes de
investigação dadas à imprensa; elas comprometeram inúmeros quesitos de defesa, sendo
direcionadas ao possível corpo de jurados que acompanhava o noticiário.
Afirmando, em fase preliminar, que estão as investigações perto do fim, a delegada
Renata Pontes deu ao público a certeza de ter todas as provas possíveis e imagináveis da
autoria do crime; ouvindo isso, o jurado não dará atenção a qualquer contradição apontada
pela defesa, tampouco se interessará nos quesitos faltantes para o término desta investigação,
mesmo que eles sejam essenciais para os trabalhos. Pode ainda desconsiderar qualquer
questionamento da defesa acerca do inquérito, tomando o réu por impertinente e arrogante – e
com isso desconsiderando ainda mais sua argumentação.
Somente esta declaração seria pretexto para desconstituir todo o trabalho de
investigação, por deflagrar violação grave ao princípio do devido processo legal, assim definido
por Capeletti e Garth:
23
“... A garantia do devido processo legal atribui ao processo um
perfil justo e équo, um processo regido por garantias mínimas de
meios e de resultado, com emprego de instrumental técnico-
processual adequado e conducente a uma tutela adequada e
efetiva.”
No caso Nardoni, a única testemunha ocular dos eventos que cercaram a morte de
Isabella não foi ouvida: Pietro, o filho mais velho do casal. A criança não foi entrevistada
durante o inquérito; seu testemunho foi vetado pelo promotor Francisco Cembranelli,
declarando que chamá-lo seria condenar a criança a um trauma irreparável na vida adulta. A
Promotoria esqueceu-se que o dano irreparável já estava consumado. Os dois filhos do casal
jazem, sem pai nem mãe, à mercê da opinião pública.
Caso fossem atendidos todos os quesitos necessários ao devido processo legal, teria a
delegada Renata Pontes procedido à oitiva dos filhos pequenos, ou teria a defesa assegurado
seus testemunhos em plenário, apesar dos protestos da Promotoria; o direito à produção de
provas é quesito componente do princípio constitucional em questão.
Fora isso, declarações como as feitas pela Promotoria – admissão de relação anterior
com o réu e opinião pessoal e negativa sobre a pessoa a que se lança denúncia com
investidura de poderes do Estado – constituem falha na tutela; se, entre promotor e réu há
querela anterior, não se pode garantir, de forma alguma, a objetividade necessária aos deveres
oriundos ao exercício dos poderes estatais envolvidos.
Pode-se afirmar que, com a cobertura massiva e tendenciosa da mídia, assistida pelas
declarações oblíquas da Promotoria e das equipes de investigação, não tiveram os Nardoni um
processo justo e équo perante seus pares, por não terem suas garantias de meio e resultado
atendidas em sentido amplíssimo; o que traz ao veredito encargos de vício e transforma sua
sanção em injusta, trazendo ônus aos réus e graves transtornos e fardos às suas famílias.
No caso McCann, o governo britânico interferiu, indiretamente, diversas vezes nos
trabalhos de investigação da polícia portuguesa, orientando a condução das mesmas. Além
disso, a boataria divulgada pelos tablóides ingleses e atribuída aos portugueses denegriu as
operações realizadas em Algarve.
A imprensa também noticiou as duras críticas feitas aos esforços portugueses em prol
de Madeleine McCann, em declarações depreciativas e por vezes desrespeitosas, cuja
24
intensidade é maior sempre que se levanta algum elemento indicativo da participação do casal
McCann no feito.
Não cabe a interferência britânica, pois além de serem países com sistemas jurídicos e
judiciários diferentes, a competência territorial estabelecida não permite que se apurem os
fatos sob a égide britânica. Tais intervenções constituem obstrução às investigações e
prejudicam o devido processo legal, por impedirem o emprego de técnica investigativa e
processual adequada e comprometerem a tutela efetiva do caso. Qualquer sanção aplicada,
quer aos McCann ou a terceiros – caso comprovado o seqüestro de Madeleine – restaria
injusta à sociedade; uma sentença proferida em território inglês pode ferir os princípios legais
e/ou morais portugueses, e vice-versa.
Como não houve uma conclusão própria ao caso e tendo iminente sua reabertura,
cabe acompanhar os futuros desdobramentos para saber se os conflitos que violam o chamado
due process serão dirimidos, permitindo a plena apuração dos fatos.
5 CONCLUSÃO
Diante dos argumentos expostos pelo presente artigo, conclui a autora que a atual
conduta da imprensa é incongruente com a existência do Tribunal do Júri e constitui grave
ameaça ao devido processo legal, bem como à sociedade: detectado o viés de imprensa em
determinado caso, pode a defesa pedir a nulidade de julgamento pelo motivo elencado supra.
Por mais que todo o aparato judicial esteja disponível ao réu, faltam-lhe quesitos vitais
para a regularidade processual prevista pelo texto constitucional: a plenitude de defesa,
prevista no inciso XXXVIII do Quinto, que dispõe sobre o próprio Tribunal do Júri, e a
imparcialidade, pressuposto de existência do contraditório – pois sendo parcial, pende o
julgamento a favorecer uma das partes sem dar à outra chances iguais de argüir e expor –
previsto no inciso LV do Quinto Constitucional. Ambos os quesitos figuram como componentes
do devido processo legal, que se comprometido, constitui ofensa grave à Carta Magna.
Insta ressaltar que as famílias dos réus, ou daqueles envolvidos em inquérito policial
passíveis de cobertura jornalística tendenciosa, sofrem penas tácitas de banimento do contexto
social em que se inserem. Tais sanções são legitimadas pelo Estado, que não toma
providências para garantir a proteção daqueles que se encontram lesados por sua atividade
25
jurisdicional – o que também caracteriza desobediência ao Quinto Constitucional, que em seu
inciso XLVII, proíbe expressamente as penas de banimento.
Os casos analisados dão a dimensão exata da construção de imagens e mitos feita
pela imprensa, e mostram como o juízo de valor é incutido emocionalmente na população.
Apelando para seus instintos mais básicos, crenças fortes e fatores sentimentais, os veículos
midiáticos repetem, à exaustão, as versões dos fatos que lhe são convenientes.
Sem um modelo contrário de informação, fica a opinião popular sujeita, e por vezes
submissa, aos ditames da imprensa. Os Nardoni foram anunciados como réus antes mesmo de
findo o inquérito, sendo esta alcunha particular ao processo, após feita a denúncia. A inocência
dos McCann foi professada globalmente, antes mesmo que a polícia portuguesa pudesse
apurar os fatos com clareza.
Os elementos de prova, em ambos os casos, são similares: vestígios de sangue,
parentes pequenos como testemunhas oculares, testemunhos desencontrados – e pouco
explorados, pois não foi permitido acesso ao inteiro teor, tanto pela mídia quanto pela polícia –
sistemas de vigilância que não captaram o exato momento do crime, mas dão ensejo a
cronologias.
A versão dos fatos apresentada pelos casais é similar: tanto os Nardoni quanto os
McCann afirmam que um terceiro trouxe mal a seus filhos. No entanto, um dos casais foi
escolhido pela imprensa como herói, inocente, e apresentado como tal; o outro, tio como vilão,
foi devidamente demonizado.
A exposição maniqueísta da mídia acompanhou o corpo de jurados por quase 2 anos,
no caso Nardoni, e por 3 anos completos, no caso McCann. Com uma visão consolidada e
pessoal sobre os personagens componentes destes eventos, não pode o leigo tomar decisão
clara, concisa e condizente com os princípios legais vigentes.
A situação exposta infere também a injustiça de toda e qualquer sanção penal
determinada por juiz que seja derivada de júri. Não há que mensurar a proporcionalidade de
decisão embasada em veredito tendencioso, pois ela inexiste: onerosa para o réu, sofrida para
a família, turbulenta para a vítima – e sua família – e prejudicial à sociedade, sua aplicação
constitui afronta às bases do Direito Penal e pode levar ao colapso do ordenamento jurídico
vigente. Qualquer punição derivada de Tribunal do Júri que esteja eivado de vícios advindos do
viés de imprensa é, por si só, um crime contra a própria sociedade.
26
Pela natureza do júri, o viés de imprensa é um quesito que merece muita atenção;
apelando às emoções e impressões dos jurados, tanto a Promotoria quanto a defesa
constroem suas argumentações. Se um terceiro faz este trabalho com o público antes,
formando uma opinião preliminar dos jurados, todo o trabalho em plenário resta comprometido;
idéias podem mudar, mas crenças, sentimentos e instintos são praticamente pétreos.
A imprensa, enquanto formadora de opinião, desempenha, sem autoridade outorgada
ou qualquer regulamento, o trabalho cabível aos representantes da defesa e/ou da Promotoria;
enquanto o faz, ergue barreiras quase intransponíveis para qualquer uma das partes no
processo penal. Conduzindo o público, a imprensa anula a função do Direito Penal descrita por
Capez: não é mais a norma a formadora de juízo ético dos cidadãos, mas sim a valoração ética
individual, repassada para o público. Também deixa de ser a lei a justa medida de punição,
cabendo ao indivíduo com discurso inflamado julgar, condenar e sentenciar em horário nobre,
confiando à população os procedimentos de execução.
Produz, a imprensa, uma situação anômica, onde subsiste um ordenamento jurídico
dentro do ordenamento jurídico do Estado, e que faz valer suas normas e punições pelas
brechas encontradas. De maneira tácita, sorrateira e quase imperceptível, a imprensa age
como os grandes traficantes, colocando sua norma e sua sanção acima das normas e sanções
previamente estabelecidas e acordadas pelo corpo social.
A sanção penal aplicada pelo Estado é, desta forma, injusta. Reitera a autora o que já
foi dito no presente artigo diversas vezes: as sanções penais derivadas de veredito do Tribunal
do Júri tornam-se injustas, por serem altamente influenciadas por terceiros e trazerem ao
sistema penal falhas estruturais graves, que não se restringem ao âmbito processual. Estas
falhas saem às ruas, sancionando todos os que cercam o ato ilícito julgado. São duplamente
graves as conseqüências às famílias, tanto dos réus quanto das vítimas, pois além de arcar
com os efeitos produzidos pela atividade jurisdicional, precisam conviver com as penas que
lhes são impostas moralmente, fisicamente e financeiramente, entre outros quesitos, advindas
do juízo de valor midiático, sem nenhum critério, e reproduzido pela população.
Este quadro, infelizmente, já está estabelecido; outro remédio aos que sofrem sob a
égide desta situação, não há. Não pode o Estado reformar todas as suas decisões que tiveram
destaque na imprensa. Também não pode submeter todos a novo julgamento, pois a história
se repetiria. Há que se pensar em evitar e/ou prevenir as presentes circunstâncias e tentar
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remediar a dor daqueles que já padecem delas. Segue o artigo ao exame de três medidas
preventivas.
5.1 Viabilidade de seqüestro do júri
Talvez fosse possível, quando do alistamento dos jurados, emitir notificações via
Correio alertando para a possibilidade de convocação dos mesmos e oferecendo cursos de
preparação do júri, a serem ministrados em universidades de Direito conveniadas que
possuam Juizados Especiais. Algo parecido com a notificação e preparação de mesários para
as eleições.
Cabe frisar e inferir, nas notificações, que juízos de valor anteriores ao júri devem ser
desconsiderados, sob pena de incorrer em prevaricação, disposta no artigo 319 do Código
Penal:
Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de
ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para
satisfazer interesse ou sentimento pessoal:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
A notificação também deve restringir o jurado listado ao sigilo, para não ferir os
princípios que regem o alistamento de júri, conforme artigo 325 do referido Codex:
Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e
que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato
não constitui crime mais grave.
(...)
§ 2o Se da ação ou omissão resulta dano à Administração Pública
ou a outrem:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.
O seqüestro físico dos jurados não seria viável, posto que resta inconstitucional a
restrição da liberdade de locomoção do indivíduo; mas talvez seja possível, embora custoso,
elaborar um sistema de notificações e cursos de preparação aos jurados, com a finalidade de
dar-lhes seqüestro moral.
Desta forma, estariam os jurados mais preparados para lidar com as informações
recebidas da imprensa, discernindo melhor os fatos das impressões pessoais e mais aptos,
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portanto, a proferir veredito justo, que permitisse ao magistrado o registro e aplicação de pena
livre de vícios.
Este sistema, porém, custaria bastante ao Poder Público, e não surtiria efeito em
tempo hábil; até reunir todos os elementos necessários, conseguir um acordo, colocar o
programa em funcionamento e conseguir turmas de jurados preparadas, passar-se-iam, no
mínimo, três anos. As atividades do Tribunal, porém, não podem ser suspensas até que tudo
esteja preparado.
E mesmo que o Poder Público empregue seus melhores esforços na consecução
deste programa, nada garante seu sucesso. As notificações e cursos preparatórios teriam a
função de educar a população listada para o exercício de suas funções enquanto parte do júri,
mas nada garante que estes ensinamentos sejam devidamente aproveitados e consigam
reduzir ou anular o impacto dos veículos midiáticos.
Sugere a autora que se proceda à promoção de um grupo de amostragem da medida,
a ser realizado em comarca pequena, de alcance midiático médio.
5.2 Viabilidade de restrições à imprensa
Não é possível estender quaisquer restrições à imprensa quanto à divulgação de
informações, havendo dispositivo constitucional pétreo garantindo o acesso. Mas é possível e
necessário que haja complexo normativo para regulamentar as ações da mesma, como há em
quaisquer outras carreiras e profissões em território nacional.
Também é possível, restando comprovada a materialidade da responsabilidade
midiática aos danos causados a vítimas, réus e suas respectivas famílias, aplicar multas de
caráter indenizatório sempre que restar comprovada a indução e/ou influência direta e
tendenciosa de dado veículo jornalístico e a pessoa que o representa junto a opinião pública,
em casos que eventualmente sejam competentes ao júri.
Caberia penalizar o programa de rádio, TV ou internet, e o jornal ou revista que nesta
conduta incorre, bem como os apresentadores, jornalistas ou escritores responsáveis. Não
seria a medida ilícita, de forma alguma; o viés de imprensa, como caracterizado neste artigo,
configura obstrução à Justiça, crime grave no Brasil.
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Em que pese a falta de regulamentação concernente, faça-se provimento que dê à
multa indenizatória as disposições necessárias, ou apresente-se ao Senado projeto de lei que
normatize a referida proposta.
Tal medida não só garantiria o devido processo legal, por refrear impulsos valorativos
da imprensa, mas também protegeria as famílias envolvidas do assédio da mídia, dando-lhes
harmonia e garantindo suas liberdades de locomoção, poupando-lhes constrangimento. Caso
sejam aplicadas as multas indenizatórias, o montante deve ser remetido à família mais
ofendida, de forma a remediar-lhe os transtornos comprovadamente e notoriamente sofridos.
Acredita a autora que seja a medida mais eficaz estudada, pois daria à imprensa mais
cautela ao apresentar conteúdo jornalístico policial somado a juízo de valor; reforçaria o
elemento de responsabilidade de imprensa e traria ao país melhoria significativa de veículos
midiáticos. Porém, dado o caráter lucrativo dessa espécie de jornalismo, há o risco de
emissoras quitarem as multas para manter o estilo no ar. Resta então aplicar multas e fixar
indenizações de valor alto, onde caiba ônus verdadeiro e risco de falência na continuidade da
infração.
5.3 A ausência do júri como elemento resolutivo
Não restando alternativa, sugere a autora da dissolução do instituto do Tribunal do Júri
no direito processual. Em que pese seu propósito, dadas as razões expostas pelo presente
artigo, há muito já não é cumprido.
Cabe, então, a dissolução do Júri, ou a alteração do instituto, de maneira a trazer um
corpo de magistrados jurados para discernir e proferir veredito em casos de extrema comoção
social que possam produzir viés de imprensa.
O magistrado é, acima de tudo, humano, e membro idôneo da sociedade. Pode muito
bem representar a comunidade, sendo, então, candidato plausível a servir como jurado. Não
obsta, portanto, o requisito legal à participação em júri.
Esta é a solução mais drástica possível, e também a que mais tem chances de
assegurar o devido processo legal e garantir a justeza de sanção penal aplicada. Implica,
porém, em alteração do Quinto Constitucional. Cabe ao legislador examinar a possibilidade de
remoção das competências do júri, ou da alteração do instituto.
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5.4 Considerações finais
Cabe ressaltar que somente medidas legislativas e processuais em relação aos
excessos midiáticos não garantem a proporcionalidade da sanção penal às famílias dos réus.
Torna-se necessária a criação de aparato suplementar, de ordem terapêutica, para garantir o
ajuste destas famílias à situação imposta.
Deve ter o juiz em mente que sua função não é somente repressiva; não basta punir
dado indivíduo, e esperar que a ordem esteja automaticamente restaurada.
Após a punição e satisfação do senso de justiça às vítimas, deve-se proceder à
reparação do dano causado a determinada entidade familiar, que pela justa atividade
jurisdicional, sofreu uma injustiça. Deve o Direito aparar as arestas oriundas de sua
provocação.
A Lei de Execuções Penais prevê a inserção da família no tratamento penal,
preparando o detento para o retorno à sociedade. Que se encontre, nesse princípio, fulcro
para promover o regresso da família, isolada, marginalizada e desamparada diante da sanção
aplicada a membro de seu seio, duro golpe em sua estrutura familiar.
Este cuidado deve ser observado principalmente em casos que envolvam o júri, pela
gravidade da situação. Perdeu-se uma vida, fato por si só lamentável. Não é necessário perder
outras vidas pelos excessos cometidos pela imprensa, fardo carregado pelo infrator e pela
família antes mesmo que haja conclusão dos trabalhos de investigação.
E cabe ao Estado nivelar a condição desigual em que se encontram estas famílias,
aliviando-lhes o sofrimento e auxiliando na longa e custosa recuperação após o afastamento
do ente querido e o isolamento social imposto.
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