introducao a educacao crista 1

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Introdução à Educação Cristã – Reflexões, Desafios e Pressupostos – “Sabemos que o tesouro da sã dou- trina é inestimável, e nada há para se temer mais do que o risco de perdê-lo” João Calvino. 1 “O genuíno propósito da doutrina é adequar nossa união a fim de desenvol- vermos o varão perfeito, à medida da plena maturidade (EF 4.14). Devemos, naturalmente, revelar indulgência para com aqueles que ainda não experimen- taram a Cristo, caso sejam eles incapa- zes de ingerir alimento sólido; mas se al- guém ainda não cresceu com o passar do tempo, o tal é inescusável se perma- necer perenemente infantil” - João Cal- vino. 2 “Ela [a doutrina] só será consistente com a piedade se nos estabelecer no temor e no culto divino, se edificar nossa fé, se nos exercitar na paciência e na humildade e em todos os deveres do amor” - João Calvino. 3 “Se porventura alguém tenha adqui- rido desde sua tenra juventude um sóli- do conhecimento das Escrituras, o mesmo deve considerar tal coisa como uma bênção especial da parte de Deus” – João Calvino. 4 INTRODUÇÃO: Nos Estados Unidos a história do início da Tipografia se confunde com a criação de uma escolinha conhecida hoje como Universidade de Harvard. 5 Os puritanos fo- 1 João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 1.19), p. 50. 2 João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 5.12), p. 141. 3 João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.3), p. 164-165. 4 João Calvino, As Pastorais, (2Tm 3.15), p. 261. 5 O maquinário tipográfico foi trazido da Inglaterra pelo pastor puritano José Glover ( 1638) para o colégio que ele, juntamente com outras pessoas, desejava fundar. Glover que já residia na Nova In- glaterra desde 1634-1635, voltara à Inglaterra para adquirir uma máquina tipográfica, papel, tinta e os acessórios necessários para a impressão. No entanto ele morreu durante a viagem de volta (talvez de

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Artigo sobre a relevância da Educação Cristã

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Introdução à Educação Cristã – Reflexões, Desafios e Pressupostos –

“Sabemos que o tesouro da sã dou-trina é inestimável, e nada há para se temer mais do que o risco de perdê-lo”

– João Calvino.1

“O genuíno propósito da doutrina é

adequar nossa união a fim de desenvol-vermos o varão perfeito, à medida da plena maturidade (EF 4.14). Devemos, naturalmente, revelar indulgência para com aqueles que ainda não experimen-taram a Cristo, caso sejam eles incapa-zes de ingerir alimento sólido; mas se al-guém ainda não cresceu com o passar do tempo, o tal é inescusável se perma-necer perenemente infantil” − João Cal-

vino.2

“Ela [a doutrina] só será consistente

com a piedade se nos estabelecer no temor e no culto divino, se edificar nossa fé, se nos exercitar na paciência e na humildade e em todos os deveres do

amor” − João Calvino.3

“Se porventura alguém tenha adqui-

rido desde sua tenra juventude um sóli-do conhecimento das Escrituras, o mesmo deve considerar tal coisa como uma bênção especial da parte de

Deus” – João Calvino.4

INTRODUÇÃO: Nos Estados Unidos a história do início da Tipografia se confunde com a criação de uma escolinha conhecida hoje como Universidade de Harvard.5 Os puritanos fo-

1João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 1.19), p. 50.

2João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 5.12), p. 141.

3João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.3), p. 164-165.

4João Calvino, As Pastorais, (2Tm 3.15), p. 261.

5 O maquinário tipográfico foi trazido da Inglaterra pelo pastor puritano José Glover (� 1638) para o

colégio que ele, juntamente com outras pessoas, desejava fundar. Glover que já residia na Nova In-glaterra desde 1634-1635, voltara à Inglaterra para adquirir uma máquina tipográfica, papel, tinta e os acessórios necessários para a impressão. No entanto ele morreu durante a viagem de volta (talvez de

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ram pioneiros em ambas as iniciativas. Apenas seis anos depois de sua chegada a Massachusetts, a Corte Geral da Colônia já havia votado 400 libras para a criação de uma escola ou faculdade (1636).6 O Colégio foi criado em 1636 na vila de New Town7 recebendo posteriormente este nome (Harvard) em homenagem (1638) ao pastor puritano John Harvard (1607-1638), que havia doado cerca de 800 libras (metade de suas propriedades) e uma biblioteca com 260 títulos perfazendo um total de cerca de 400 volumes.8 A escola recebeu outros donativos e o Estado completou o resto. A escola foi “mantida durante seus primeiros anos parcialmente pelo sacrifício de fazendeiros, que contribuíram em trigo para sustentar professores e alunos”.9 Seis anos depois temos a primeira turma formada. Em 1643 é publicado em Lon-dres um folheto intitulado: Os Primeiros Frutos da Nova Inglaterra. Aqui temos uma espécie de histórico da instituição, acompanhado dos seus estatutos e vida cotidia-na; ele é um apelo para aquisição de mais fundos. Este documento começa assim: “Depois que Deus nos conduziu sãos e salvos para Nova Inglaterra, e constru-ímos nossas casas e asseguramos o necessário para nossos meios de subsis-tência, edificamos locais convenientes para o culto de Deus e estabelece-mos nosso Governo Civil: Depois disso, uma das coisas que mais ambicioná-vamos era incentivar o Ensino e perpetuá-lo para a Posteridade;10 temendo deixar um Clero ignorante para as Igrejas, quando nossos atuais Ministros re-pousarem no Pó”.11 (Grifos meus). A ignorância era algo extremamente temido dentro do modelo educacional Re-formado-puritano.12 Para tanto o estudo era amplo, oferecendo uma visão abrangen-te de todos os ramos do saber, evitando a dicotomia entre o saber religioso e não-

varíola)(1638), contudo o seu projeto foi levado adiante por sua viúva e pelos homens que trouxera consigo com este fim, o serralheiro Stephen Daye (c. 1594-1668) e seus dois filhos, dos quais um era tipógrafo, Matthew Daye (c. 1619–?). 6 Cf. Perry Miller & Thomas H. Johnson, eds. The Puritans, Mineola, New York: Dover Publications,

(2 Volumes bounds as one), 1991, p. 700. Do mesmo modo, Frederick Eby, História da Educação Moderna, 5ª ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1978, p. 209. 7Depois (1638) chamada de Cambridge, também em homenagem ao Rev. John Harvard que estuda-

ra em Cambridge (Ver: Matthew Battles, A Conturbada História das Bibliotecas, São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2003, p. 87). 8“Aproximadamente três quartos dos livros eram obras de teologia, a maioria das quais con-sistia em comentários bíblicos e sermões puritanos. Cícero, Sêneca e Homero figuravam en-tre as opções clássicas, mas não havia outras obras literárias além dessas. Era, enfim, a cole-ção de um pastor puritano atuando numa colônia perdida nos confins do Novo Mundo. Mas os livros legitimaram a pequena escola, provendo-a dos fundamentos intelectuais de que uma faculdade necessita” (Matthew Battles, A Conturbada História das Bibliotecas, p. 87). 9Leland Ryken, Santos no Mundo, São José dos Campos, SP.: FIEL, 1992, p. 167.

10 “Entre os fundadores de Harvard estavam 100 diplomados, 70 dos quais tinham sido estu-

dantes nos colégios de Cambridge e 30 nos de Oxford” (Frederick Eby, História da Educação Moderna, p. 208). 11

Primeiros Frutos da Nova Inglaterra, (1643): In: Harold C. Syrett, org. Documentos Históricos dos Estados Unidos, São Paulo: Cultrix, 1980, p. 29. 12

Para Melanchton, por exemplo, a ignorância é a maior adversária da fé, devendo, por isso mesmo ser combatida (Cf. Franco Cambi, História da Pedagogia, São Paulo: Editora UNESP., 1999, p. 250-251).

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religioso, o espiritual e o natural.13 Como exemplo disso, vemos que “os estudantes ministeriais em Harvard não apenas aprendiam a ler a Bíblia na sua língua o-riginal e a expor teologia, mas também estudavam matemática, astronomia, física, botânica, química, filosofia, poesia, história e medicina”.14 A ênfase puritana foi marcante em todos os níveis educacionais podendo ser ava-liada tanto quantitativa como qualitativamente.15 Seguindo a tradição da obrigatorie-dade do ensino público, conforme enfatizada por Lutero e pelos calvinistas france-ses (1560)16 e holandeses (1618), 17 “em 1647, o Estado de Massachussets de-creta a obrigatoriedade de uma escola primária, sempre que uma povoa-ção agrupe mais de 50 lares”. 18 Por trás deste ardor pedagógico e social herdado da Reforma estava um firme fundamento teológico. Esta perspectiva amparava-se num conceito de Deus, do ho-mem e de qual o propósito do homem nesta vida.

a) Deus é reconhecido como o Criador e Senhor de todas as coisas, sendo o do-ador da vida e de tudo que temos,19 a Quem devemos, conhecer experiencial-mente, 20 amar, obedecer e cultuar.21 Resumindo: “O conhecimento de Deus é a genuína vida da alma....”; 22

b) O homem como “imagem e semelhança” de Deus deve ser respeitado, amado e ajudado. 23 Por mais indigno que ele possa nos parecer, devemos considerar: “A imagem de Deus nele é digna de dispormos a nós mesmos e nossas posses a ele”.24 Por isso, “Não temos de pensar continuamente nas maldades do homem, mas, antes, darmos conta de que ele é portador da imagem de Deus”.25 Esta perspectiva deverá nortear sempre a nossa consideração a respeito do ser humano.26

13

Ver: Leland Ryken, Santos no Mundo, São José dos Campos, SP.: FIEL, 1992, p. 174ss. 14

Leland Ryken, Santos no Mundo, p. 175. 15

Ver: Leland Ryken, Santos no Mundo, p. 168. 16

Vejam-se extratos do documento elaborado pelos protestantes reunidos em Orléans em 1560. O texto foi enviado ao Rei de França (Cf. Nicholas Hans, Educação Comparada, 2ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971, p. 194). 17

Ver: Leland Ryken, Santos no Mundo, p. 168. 18

Ver: Leland Ryken, Santos no Mundo, p. 168. 19“Deus (...) é a fonte de vida e de todas as bênçãos excelentes” (João Calvino, Exposição de

Hebreus, (Hb 7.25), p. 197). 20

Ver: Leland Ryken, Santos no Mundo, p. 168. 21

João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 6.5), p. 129; Catecismo de Genebra, Perg. 2. In: Catecismos de la Iglesia Reformada, Buenos Aires: La Aurora, 1962, p. 29; Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 4.9), p. 127; As Institutas, I.2.1-2 22

Ver: Leland Ryken, Santos no Mundo, p. 168. 23

Ver: Leland Ryken, Santos no Mundo, p. 168. 24

Ver: Leland Ryken, Santos no Mundo, p. 168. 25

João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 38. Ver também: João Calvino, A Verdadeira Vida Cris-

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A educação, portanto, visava preparar o ser humano para melhor servir a Deus na sociedade a fim de que Deus fosse glorificado. A educação Reformada-Puritana não tinha um fim em si mesma, antes, era caracterizada por um propósito específico con-forme definiu John Milton (1608-1674) em 1644 “O objetivo da aprendizagem é corrigir as ruínas de nossos primeiros pais, recuperando o conhecer a Deus corretamente, e a partir deste conhecimento, amá-Lo, imitá-Lo e ser como Ele, do modo mais aproximado possível, tornando nossas almas possuidoras de verdadeira virtude que, unida à graça celestial da fé, constrói a mais alta perfeição”.27 Na seqüência: “Chamo de uma educação completa e genero-sa aquela que capacita um homem para atuar justamente, habilidosamen-te, magnanimamente, em todos os ofícios, tanto privados como públicos, de paz e de guerra”.28 Deste modo a educação é vista não a partir do ensino, mas do aprendizado e, de modo especial do homem que resulta deste saber preparado para realizar a obra que Deus lhe confiou. O saber é para viver autenticamente em comu-nhão com Deus, refletindo isso no cumprimento de nossos deveres religiosos, famili-ares, políticos e sociais, agindo no mundo de forma coerente com a nossa nova na-tureza,29 objetivando em tudo a Glória de Deus. Para Calvino, a pergunta condena-tória de Tertuliano (c.160-c.220 A.D) à Filosofia não fazia sentido,30 o Cristianismo é

tã, p. 37; O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 8.7-9), p. 173-174; Instrução na Fé: Princípios para a Vida Cristã, Goiânia, GO.: Editora Logos, 2003, p. 27-28. 26

Ver: Leland Ryken, Santos no Mundo, p. 168. 27

John Milton, Milton’s Tractate on Education: A Fascimile Reprint From the Edition of 1673, Cam-bridge: The University Press, 1897, p. 3-4. Do mesmo modo, ver: Leland Ryken, Santos no Mundo, p. 173 e Ruy Afonso da C. Nunes, História da Educação no Século XVII, São Paulo: EPU/EDUSP, 1981, p. 46; Paolo Rossi, A Ciência e a Filosofia dos Modernos: aspectos da Revolução Científica, São Pau-lo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 61ss). No texto publicado em 1643 em Lon-dres, descrevendo o Colégio Harvard, há um detalhamento das “Regras e preceitos observados ao Colégio”. Na segunda regra, lemos: “Todo aluno é claramente instruído e seriamente instado a ponderar na principal finalidade da sua vida e dos seus estudos, a conhecer a Deus e Jesus Cristo, que é a vida eterna, João 17.3 e, portanto, a depositar Cristo no fundo, como a única base de todo conhecimento e Saber verdadeiros. E visto que só o Senhor dá a sabedoria, todos devem orar seriamente em segredo para buscá-la junto dele, Prov. 2.3” (In: Harold C. Syrett, org., Documentos Históricos dos Estados Unidos, p. 30). 28

John Milton, Milton’s Tractate on Education: A Fascimile Reprint From the Edition of 1673, Cam-bridge: The University Press, 1897, p. 8. Do mesmo modo: Frederick Eby, História da Educação Mo-derna, 5ª ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1978, p. 182. Quanto à visão de Milton a respeito da for-mação dos Ministros, ver R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1988, p. 188-189. 29

Calvino constata que “a doutrina será de pouca autoridade, a menos que sua força e majestade resplandeçam na vida do bispo como o reflexo de um espelho. Por isso ele diz que o mestre seja um padrão ao qual os discípulos possam seguir” [João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 2.7), p. 331]. 30 "Esta é a sabedoria profana que temerariamente pretende sondar a natureza e os decre-

tos de Deus. E as próprias heresias vão pedir seus petrechos à filosofia.... "Que tem a ver Atenas com Jerusalém? Ou a Academia com a Igreja? A nossa doutrina vem do pórtico de Salomão, que nos ensina a buscar o Senhor na simplicidade do coração. Que inventem, pois, se o quiserem, um cristianismo de tipo estóico, platônico e dialético! Quanto a nós, não temos necessidade de indagações depois da vinda de Cristo Jesus, nem de pesquisas depois do Evangelho. Nós possuímos a fé e nada mais desejamos crer. Pois começamos por crer que para além da fé nada existe que devamos crer"

(Tertuliano, Da

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uma cosmovisão que parte das Escrituras para o exame de todas as facetas da rea-lidade. “Para Calvino, nenhum tipo de ensino que levasse os homens a deixarem de se preocupar com qualquer coisa que afetasse de maneira profunda a vida humana, até mesmo em suas preocupações puramente humanas, poderia de forma alguma ser cristão”.31 A Teologia Reformada fornece-nos óculos cujas lentes têm o senso da soberania de Deus como perspectiva indispensável e necessária para ver, interpretar e atuar na realidade, fortalecendo, modificando ou transformando-a, conforme a necessida-de. Isso tudo, num esforço constante de atender ao chamado de Deus a viver dig-namente o Evangelho no mundo. Schaff comenta que “o senso da soberania de Deus fortaleceu os seus seguidores contra a tirania de senhores temporais, e os fez os campeões e promotores de liberdade civil e política na França, Ho-landa, Inglaterra, e Escócia”.32 O Calvinismo, com sua ênfase na centralidade das Escrituras, é mais do que um sistema teológico, é, sobretudo, uma maneira teocêntrica de ver, interpretar e atuar na história. O estudioso inglês Tawney (1880-1962), observa que “o Calvinismo foi uma força ativa e radical. Era um credo que buscava não meramente purifi-car o indivíduo, mas reconstruir a Igreja e o Estado, e renovar a sociedade permeando todos os setores da vida, tanto públicos como privados, com a influência da religião”.33

1. O SIGNIFICADO DA EDUCAÇÃO

A. O Homem como Ser Comunicativo: A linguagem é um meio de difusão da cultura e, ao mesmo tempo, de seu for-

talecimento. A linguagem carrega consigo significados e valores. Uma questão ex-tremamente difícil é o processo de resignificação da linguagem de uma cultura. Uso aqui a expressão em sentido bastante restrito: Como fazer as pessoas ouvirem e as-similarem determinadas palavras dentro de uma perspectiva diferente e, até mesmo conflitante, em relação aos significados aprendidos e dominantes?

Prescrição dos Hereges, VII: In: Alexander Roberts & James Donaldson, eds. Ante-Nicene Fathers, 2ª ed. Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1995, Vol. III, p. 246). 31

Ronald S. Wallace, Calvino, Genebra e a Reforma, p. 90-91. 32

Philip Schaff, History of the Christian Church, Vol. VIII, p. 562. Hans diz que o Calvinismo, ainda que de modo indireto, foi “responsável pelo desenvolvimento das idéias democráticas de au-togoverno. A mais poderosa e valiosa contribuição de Calvino à causa democrática não foi a sua teologia, mas sim a organização da sua Igreja, porque os consistórios, as assembléias provinciais e os sínodos nacionais constituíam um excelente treinamento básico para um ul-terior governo autônomo” (Nicholas Hans, Educação Comparada, p. 192). 33

R.H. Tawney, A Religião e o Surgimento do Capitalismo, São Paulo: Editora Perspectiva, 1971, p. 109.

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As Escrituras, especialmente o Novo Testamento, esbarram nesta questão repeti-das vezes: apresentar a mensagem cristã com termos já conhecidos, mas, ao mes-mo tempo, que ganharam um novo significado a partir da própria essencialidade do Evangelho. Assim, os escritores sagrados, inspirados por Deus, valeram-se, por ve-zes, de palavras amplamente conceituadas e assimiladas, porém, conferindo-lhes um sentido distinto, que, muitas vezes, só poderia ser compreendido a partir do Anti-go Testamento. Com freqüência é frustrante estudar as palavras do Novo Testamen-to sem a perspectiva teológica de seu conteúdo já estabelecido no Antigo Testamen-to. O Novo Testamento foi escrito em grego; contudo, a sua teologia encontra o seu fundamento na revelação veterotestamentária.

O apóstolo João foi quem mais de deparou com estas questões do conhecimento,

justamente por escrever no final do primeiro século, quando o Cristianismo havia se expandido e, ao mesmo tempo, novas heresias surgiam com um conteúdo sincréti-co.

Quando os pregadores cristãos empregaram, por exemplo, palavras tais como “i-greja”, “logos”, “justiça”, “conhecimento”, “novo nascimento”, "sabedoria”, entre ou-tras, era natural que os seus ouvintes prematuramente associassem estes termos aos conteúdos já conhecidos. Uma barreira a ser transposta era mostrar que o Cris-tianismo tinha uma mensagem diferente e, por isso mesmo, relevante para os seus ouvintes.

Retornemos ao nosso assunto.O Homem, “é a única criatura na terra capaz de colocar a comunicação em forma de símbolos sem nenhuma relação com seus referentes, além daquela que a mente humana lhe atribui. Além disso, transcendendo o tempo e o espaço, ele consegue passar informações a outros em lugares remotos ou àqueles que ainda vão nascer”.34 Portanto, "comunicar é uma maneira de compreensão mútua",35 sendo a comunicação fundamental para o desenvolvimento psíquico e social do ser humano. Comunicar, etimologicamente, significa, "tornar comum". Neste ato de comunicar, formamos uma comunidade, constituída por aqueles que sabem, que partilham do mesmo conhecimento; assim, a comunicação é uma quebra de isolamento individu-al, para que haja uma comunhão.36 “A ‘comunhão’ encontra-se em códigos partilhados mutuamente”,37 porque somente assim poderá o “código” ser “decodi-ficado”, estabelecendo-se deste modo a comunicação. Todo homem é uma ilha, até que resolva fazer parte do continente; isto ele faz por meio da comunicação. O filósofo John Locke (1632-1704) interpreta:

34

David J. Hesselgrave, A Comunicação Transcultural do Evangelho, São Paulo: Vida Nova, 1994, Vol. I, p. 23. 35

Rollo May, Poder e Inocência, Rio de Janeiro: Artenova, 1974, p. 57-58. 36

Vd. José Marques de Melo, Comunicação Pessoal: Teoria e Pesquisa, 6ª ed. Petrópolis, RJ.: Vo-zes, 1978, p. 14. 37

David J. Hesselgrave, A Comunicação Transcultural do Evangelho, p. 39.

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"Deus, tendo designado o homem como criatura sociável, não o fez

apenas com inclinação e necessidade para estabelecer camaradagem com os de sua própria espécie, mas o forneceu também com a lingua-gem, que passou a ser o instrumento mais notável e laço comum da soci-edade. O homem, portanto, teve por natureza seus órgãos de tal modo talhados para formar sons articulados, que denominamos palavras. (...) A-lém de sons articulados, portanto, foi mais tarde necessário que o homem pudesse ter a habilidade para usar esses sons como sinais de concepções internas, e fazê-los significar as marcas das idéias internas de sua própria mente, pelas quais elas serão conhecidas pelos outros, e os pensamentos das mentes dos homens serão mutuamente transmitidos”.38

A nossa comunicação reflete a compreensão que temos de nossa própria experi-ência. Comunico o que considero relevante dentro de propósitos específicos ou não, contudo, sempre dentro de objetivos visualizados. Pedagogicamente considerando, a comunicação consiste na passagem da alma de uma geração a outra, por meio da perpetuação de seus valores e da modelagem intencional do seu caráter. A comuni-cação visa transmitir o “sentido” do percebido por intermédio da linguagem. Por sua vez, a função principal da linguagem é a comunicação.39 Neste processo, dá-se a in-tegração social entre o passado, o presente e o futuro, visto que a nova geração é o meio de consolidação e transmissão destes valores. Neste sentido, a comunicação é sempre intencional. É a partir dessa intencionalidade comunicativa, que se produz a educação e a cultura.40 "A cultura é o resultado da comunicação entre os ho-mens, um vagaroso processo de construção, um resultado ganho com difi-culdade, que exige dezenas de milhares de anos".41 A educação pode ser vista, neste processo, como a modelagem dos indivíduos segundo a norma da comunida-de.42 A necessidade de comunicação nos conduz invariavelmente à educação como meio de perpetuação do saber.

38 John Locke, Ensaios Acerca do Entendimento Humano, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XIX), 1974, III.1. §§ 1-2, p. 227. Veja o comentário feito por Leibniz: G.W. Leibniz, Novos Ensai-os, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XIX), 1974, III.1, p. 167-168. 39

Cf. Battista Mondin, O Homem, quem é ele?, São Paulo: Paulinas, 1980, p. 144. 40

“Cultura”, tem o sentido aqui, de conjunto de valores, crenças e manifestações que caracterizam um povo. Deste modo, não existe povo “sem cultura”. Louis Luzbetak, assim definiu: “Cultura é uma maneira de pensar, sentir, crer. É o conhecimento do grupo armazenado para uso futuro” (Apud David J. Hesselgrave, A Comunicação Transcultural do Evangelho, p. 60). Ver também: Peter Burke, O Renascimento Italiano: Cultura e sociedade na Itália, São Paulo: Nova Alexandria, 1999, p. 10. 41

Rollo May, Poder e Inocência, p. 60. 42

Vd. W. Jaeger, Paidéia: A Formação do Homem Grego, 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 10.

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B. O Homem como Ser Educável:43

“É evidente que todo o homem nas-ce apto para adquirir conhecimento das coisas: primeiro, porque é imagem de Deus. Com efeito, a imagem, se é perfeita, apresenta necessariamente os traços de seu arquétipo, ou então não será uma imagem” – J. A. Comênio

(1592-1670).44

As palavras “Educação” e "Educar" provêm do latim “Educare”, palavra apa-rentada com ducere, "conduzir", "levar", e educere, "tirar de", "retirar", "criar". Educa-re tem o sentido de "criar", "alimentar", "ter cuidado com", "instruir".45 Parece-me que o termo latino é uma tradução do grego, paideu/w, "instruir", "educar", "formar", "en-sinar", "formar a inteligência, o coração e o espírito de".46 A nossa palavra “pedago-go” é transliterada do grego, paidagwgo/j e, “pedagogia”, igualmente, de pai-dagwgi/a.47 Na Grécia antiga, o pedagogo, (literalmente: "encarregado de meninos", "curador", "tutor") era o preceptor de criança; o escravo responsável por conduzir as crianças à escola;48 a idéia da palavra é de “estar junto com a criança”.49 Poste-riormente a palavra também passou a se referir à educação de adultos e ao treina-mento em geral.50 Estes termos gregos tinham uma conotação moral.51

43

Esta expressão é clássica, ainda que a tenha utilizado sem este conhecimento. João Amós Comé-nio escreveu: “Por isso, e não sem razão, alguém definiu o homem como um ‘animal educá-vel’, pois não pode tornar-se homem a não ser que se eduque” (J.A. Coménio, Didáctica Mag-na, 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1985), VI, p. 119). 44

J. A. Coménio, Didáctica Magna, V, p. 102-103. 45

Vejam-se: Francisco da S. Bueno, Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa, São Paulo: Saraiva, 1965, Vol. 3, p. 1061; Caldas Aulete, Dicionário Contemporâneo da Língua Por-tuguesa, 5ª ed. Rio de Janeiro: Delta, 1970, Vol. II, p. 1170; Antonio de Morais Silva, Grande Dicioná-rio da Língua Portuguesa, 10ª ed. Lisboa: Confluência, (1952), Vol. 4, p. 205; José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Lisboa: Confluência, 1952 (data inicial da publicação em fascículo), Vol. I, p. 808; J. Corominas, Diccionário Crítico Etimológico de la Lengua Castellana, Madrid: Editorial Gredos, (1954), Vol. 2, p. 217; Educação: In: A. Houaiss, ed. Enciclopédia Mirador Internacional, São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil, 1987, Vol. 7, p. 3609; Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 2ª ed., rev. aum. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 1708.

46 Laudelino Freire, Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: A Noite –

Editora, (1941-1942), Vol. III, p. 2029. 47

Pedagogia pode ser definida como “a ciência normativa da educação” (Pedagogia: In: André Lalande, Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 800a). 48

Cf. Isidro Pereira, Dicionário Grego-Português e Português-Grego, 7ª ed. Braga: Apostolado da Im-prensa, 1990, p. 421. 49

Vd. D. Fürst, Ensinar: In: Colin Brown, ed. ger. Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1982, Vol. II, p. 58. 50

Cf. D. Fürst, Ensinar: In: Colin Brown, ed. ger. Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Vol. II, p. 58. 51

Vd. Platão, A República, 7ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1993), Livro VI. 491e. p. 280-281. Sócrates (469-399), negava-se a ser reconhecido como “mestre” já que para ele, a virtude

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O homem é um ser educável. Ninguém consegue escapar à educação; ela está em toda parte, sendo intencional ou não, somos bombardeados com informações e valores que contribuem para nos dar uma nova cosmovisão e delinear o nosso com-portamento,52 conforme a assunção consciente ou inconsciente de valores e para-digmas que reforçam ou substituem os anteriormente aprendidos, manifestando-se em nossas atitudes e nova perspectiva da realidade que nos circunda. Werner Jae-ger (1888-1961) observa que "Todo povo que atinge um certo grau de de-senvolvimento sente-se naturalmente inclinado à prática da educação. Ela é o princípio por meio do qual a comunidade humana conserva e transmite a sua peculiaridade física e espiritual (...). A educação é uma função tão natural e universal da comunidade humana que, pela sua própria evidência, leva muito tempo a atingir a plena consciência daqueles que a recebem e praticam, sendo, por isso, relativamente tardio o seu pri-meiro vestígio na tradição literária".53

Assim, podemos definir operacionalmente a educação, como sendo um processo de transmissão de valores, decodificação, interiorização e trans-formação. A educação envolve o processo de "alimentar" (educare) e de "tirar" (e-ducere). Portanto, o "aprendiz" é sempre ativo no processo educativo, ainda que muitos sistemas tentem fazê-lo passivo. Na realidade, a atividade consciente pode e deve ser estimulada, no entanto, ainda que não seja adequadamente, o educando é sempre, de certa forma o seu educador, aquele que de modo eficiente ou não, faz a sua própria síntese, construindo o seu mundo simbólico valorativo, repleto de signifi-cados para si. A educação visa preparar o indivíduo para viver criativamente em sociedade, a qual, por sua vez, tem o seu modelo de homem ideal. Portanto, por trás de toda filo-sofia educacional existe uma “imagem-ideal”54 com todos os seus valores culturais, sociais, éticos e religiosos, para a qual a educação aponta de modo formal e infor-mal. Desta forma, seguindo Durkheim (1858-1917) podemos dizer que "a educa-ção consiste numa socialização metódica da nova geração"55 Portanto, a definição de Émile Durkheim (1858-1917), a respeito da Educação, a-plica-se corretamente aqui: "A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre as que ainda se não encontram amadurecidas para a vida social. Ela tem por objetivo suscitar e desenvolver na criança um certo número de condições físicas, intelectuais e morais que dela reclamam, seja a sociedade políti-

não poderia ser ensinada (Vd. Platão, Defesa de Sócrates, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, Vol. II), 1972, 33a-b. p. 24). 52

Vd. Carlos R. Brandão, O Que é Educação, 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 7ss. 53

Werner Jaeger, Paidéia: A Formação do Homem Grego, 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 3,17. 54

Cf. Thomas Ransom Giles, Filosofia da Educação, São Paulo: EPU., 1983, p. 59. 55

E. Durkheim, Sociologia, Educação e Moral, Porto: Rés-Editora, (1984), p. 17.

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ca, no seu conjunto, seja o meio especial a que ela se destina particular-mente".56

Contudo, cabe aqui uma observação: Neste processo educativo, intencional ou não, nada é literalmente repetido, visto que nada que é humano pode ser exausti-vamente calculado... E é por isso que o homem herda, transforma e constrói a sua cultura. A cultura mesmo sendo algo exterior, é, na realidade, uma exteriorização do indivíduo, repleta de valores que refletem aspectos da essência do homem e, obvi-amente, de sua percepção da realidade. “A cultura acha-se profundamente ra-dicada no que há de mais íntimo no ser humano e tem por isso a mais alta significação para a compreensão desse ser, sua formação e desenvolvimen-to”.57 E, como vimos no início destas anotações, a sociedade é um produto do ho-mem!. Educado... Mas, homem!... Ele constrói o mundo, projetando na realidade os seus próprios significados.58 Retomando a definição operacional supra, podemos observar que há ali alguns elementos que devem ser destacados:

a) Processo: Educação não é algo acabado, hermético, fechado. A educação ocorre dentro de um processo dinâmico que jamais termina.

b) Transmissão de Valores: Educar não é apenas transmitir um conteúdo

programático (por mais atualizado e edificante que ele seja), mas, também, experi-ências significativas, valores, interpretações. Creio ser importante ressaltar o fato de que esta troca é ambivalente e interagente: professor-aluno; aluno-professor e alu-no-aluno. A formação de um homem é feita pelo homem, não simplesmente por um programa. Mais do que grandes idéias, precisamos de homens dignos.

c) Interiorização: É a assimilação e acomodação de valores transmitidos e decodificados. Estes valores passam a fazer parte do nosso patrimônio cultural e moral.

56

E. Durkheim, Sociologia, Educação e Moral, p. 17. [Esta definição encontra-se também E. Dur-kheim, Educação e Sociologia, 5ª ed. São Paulo: Melhoramentos, São Paulo: (s.d.) p. 32]. Confir-mando esta conceituação como sendo uma perspectiva comum entre os educadores, escreveu Karl Mannheim (1896-1947): “A educação teve sempre como objeto a formação do homem. Sempre quis modelar a geração mais nova, de acordo com alguns ideais conscientes e in-conscientes, e sempre procurou controlar cada fator da personalidade e de formação” [Karl Mannheim, Sociologia do Conhecimento, Porto: Rés-Editora, (s.d.), Vol. 2, p. 55-56]. 57

Johannes Hessen, Filosofia dos Valores, 5ª ed. Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1980, p. 246. “A cultura organiza-se segundo as relações intrínsecas sobre o conhecimento do mundo, a vida e as experiências do espírito e as ordens práticas em que se realizam os ideais da nossa conduta. Nisto se expressa o complexo estrutural psíquico, o qual precisa-mente determina também a concepção filosófica do mundo” (Wilhelm Dilthey, A Essência da Filosofia. 3ª ed. Lisboa: Editorial Presença, (1984), p. 138). 58 "As origens de um universo simbólico têm raízes na constituição do homem. Se o homem

em sociedade é um construtor do mundo, isto se deve a ser constitucionalmente aberto pa-ra o mundo, o que já implica um conflito entre ordem e caos (...). O homem, ao se exteriori-zar, constrói o mundo no qual se exterioriza a si mesmo. No processo de exteriorização proje-ta na realidade seus próprios significados" (Peter L. Berger & Thomas Luckmann, A Construção Social da Realidade, 5ª ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1983, p. 141-142).

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d) Transformação: A verdade aprendida deve ser praticada em nossa vida. A

vida, como temos insistido, é em grande parte uma interpretação existencial do mundo.

Rui Barbosa (1840-1923), de outro modo, resumiu bem o sentido da educação: “Instruir é ensinar a observar, descobrir, refletir e produzir”.59 Portanto, a Educação tem uma função tradicionalista, que consiste na transmis-são de conhecimentos acumulados através dos séculos, e, também, deve ter uma função, digamos, revisionista-progressista, por meio da qual revisitamos o passado com novos questionamentos, repensando e reavaliando suas conclusões, estimu-lando novas investigações e pesquisas que se concretizarão em novas idéias e tec-nologias. Ambas as funções se completam num todo harmonioso.60 Ainda que de passagem, devemos dedicar algumas linhas à questão do “Currícu-lo” dentro do ensino formal:

C. A Educação e o Currículo: "Currículo" é uma transliteração do latim "curriculum" que é empregado tardi-amente, sendo derivado do verbo "currere", "correr". "Curriculum" tem o sentido pró-prio de "corrida", "carreira"; um sentido particular de "luta de carros", "corrida de car-ros", "lugar onde se corre", "hipódromo" e um sentido figurado de "campo", "atalho", "pequena carreira", "corte", "curso".61 A palavra currículo denota a compreensão de que ele não é um fim em si mesmo; é apenas um meio para atingir determinado fim. José do Prado Martins define currículo da seguinte forma:

59

Rui Barbosa, Ensinos Secundários: In: Campanhas Jornalísticas (1/4/1889), Rio de Janeiro: Livra-ria Castilho, 1921, p. 295. 60

Ver: Gene Edward Veith, Jr, De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 59-67. “Toda educação aponta para uma visão de futuro, e com ela analisa o presente, seja para repeti-lo ou para transformá-lo" (José Manuel Moran, Leituras dos Meios de Comunicação, São Paulo: Pancast, 1993, p. 12). 61

Cf. Currículo: In: António de Morais Silva, Grande Dicionário da Lingua Portuguesa, 10ª ed. Edição revista, corrigida, muito aumentada e actualizada, Lisboa: Editorial Confluência, (1955), Vol. 3, p. 773; Laudelino Freire, Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: A Noite-Editora, (1941-1942), Vol. II, p. 1676; Currículo: In: Adalberto Padro e Silva, ed. et. al. Dicionário Bra-sileiro da Língua Portuguesa, 4ª ed. São Paulo: Mirador Internacional/Melhoramentos, 1980, Vol. I, p. 523; Currículo: In: Cândido de Oliveira, Super. Geral, Dicionário Mor da Lingua Portuguesa, São Pau-lo: Livro'Mor Editôra Ltda. (1967), Vol. II, p. 700; Currículo: In: Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, p. 512; Curriculum: In: Ernesto Faria, organizador, Dicionário Escolar Latino-Português, 3ª ed. Rio de Janeiro: Cia. Nacional de Material de Ensino, 1962, p. 270; Antônio Gomes Pena & Marion M. dos Santos Pena, Curriculo: In: Antônio Houaiss, ed. Enciclopédia Mirador Internacional, Vol. 7, 3124.

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"A totalidade das experiências organizadas e supervisionadas pela es-cola e que são desenvolvidas sob sua responsabilidade; experiências essas selecionadas com o objetivo de promover o desenvolvimento integral da personalidade do educando, ao mesmo tempo em que visa satisfazer às necessidades da sociedade".62

Deste modo, é necessário que entendamos, que não existe currículo neutro; ele sempre estará ligado à determinada compreensão do mundo, a uma filosofia educa-cional com a sua própria percepção da realidade que determinará a sua prática. A concepção da “neutralidade” curricular denota uma percepção pouco ou nada “neu-tra” da realidade. A educação como ato político – estamos comprometidos com as necessidades da "pólis" –, deve ter um planejamento consciente: insisto, a neutralidade inexiste. 63 O planejamento é um ato moral que deve se coadunar com os objetivos propostos: os meios revelam meus fins! Estas definições trazem algumas questões – que em seu bojo contêm outras – , que se relacionam com o nosso tema: Qual o objetivo da Educação? Qual a concep-ção de homem que temos?, De quais recursos dispomos?, Que tipo de homem pre-tendemos "formar"? Como curiosidade, cito que em 1987, a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, fez a seguinte pergunta: "Qual será a opção do educador: reprodu-

62

José do Prado Martins, Administração Escolar: Uma Abordagem Crítica do Processo Administrativo em Educação, São Paulo: Atlas, 1991, p. 135. Outras definições: "Currículo, do ponto de vista pe-dagógico, é um conjunto estruturado de disciplinas e atividades, organizado com o objetivo de possibilitar seja alcançada certa meta, proposta e fixada em função de um planejamen-to educativo. Em perspectiva mais reduzida, indica a adequada estruturação dos conheci-mentos que integram determinado domínio do saber, de modo a facilitar seu aprendizado em tempo certo e nível eficaz" (Antônio Gomes Pena & Marion M. dos Santos Pena, Curriculo: In: Antônio Houaiss, ed. Enciclopédia Mirador Internacional, Vol. 7, p. 3124. "O currículo [...] é uma sé-rie de atividades que a geração mais velha planeja para a mais moça na esperança de que, através da execução dessas atividades, os moços se tornarão a espécie de homens e mulheres, considerados como a ideal pela sociedade de que deverão vir a ser membros. [...] O currículo escolar, portanto, é a herança social organizada para a sua rápida assimila-ção por mentes imaturas" (William F. Cunningham, Introdução à Educação, 2ª ed. Porto Ale-gre/Brasília: Editora Globo/INL., 1975, p. 244,247). Contraste-se aqui, as expressões, "mentes imatu-ras" com "geração mais velha". (Veja-se, também: James R. Gress, ed. Curriculum: An Introduction to the Field, Berkeley, California: McCutchan Publishing Corporation, 1978, p. 6ss.). 63

Vd. Antonia A. Lopes, Planejamento do Ensino numa Perspectiva Crítica da Educação: In: Ilma P.A. Veiga, Coordenadora, Repensando a Didática, Campinas, SP.: Papirus, 1988, p. 41-52; José Silvério B. Horta, Planejamento Educacional: In: Durmeval T. Mendes, (Coord.) Filosofia da Educação Brasi-leira, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 226-227; Walter E. Garcia, Planejamento e Edu-cação no Brasil: A Busca de Novos Caminhos: In: Acácia Z. Kuenzer, Maria Julieta C. Calazans & Walter E. Garcia, Planejamento e Educação no Brasil, São Paulo: Cortez/Autores Associados, (Cole-ção Polêmicas do Nosso Tempo, Vol. 37), 1990, p. 39. Uma opinião diferente encontramos em Phillip H. Coombs, Planejamento Educacional, p. 10, quando declara: "Planejamento educacional é ideologicamente neutro" (Vd. uma discussão mais am-pla deste ponto In: Hermisten M.P. Costa, A Propósito da Alteração do Currículo dos Seminários Presbiterianos: Reflexões Provisórias, São Paulo: 1996, 29p.).

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zir a atual sociedade ou lutar para transformá-la?"64 Em 1657, o pastor João A. Comênio (1592-1670), "Pai da Didática Moderna", es-creveu: "Prometemos uma organização das escolas, através da qual (...). Todos se formem com uma instrução não aparente, mas verdadeira, não super-ficial mas sólida; ou seja, que o homem, enquanto animal racional, se ha-bitue a deixar-se guiar, não pela razão dos outros, mas pela sua, e não apenas a ler livros e a entender, ou ainda a reter e a recitar de cor as opi-niões dos outros, mas a penetrar por si mesmo até ao âmago das próprias coisas e a tirar delas conhecimentos genuínos e utilidade. Quanto à solidez da moral e da piedade, deve dizer-se o mesmo."65 "A proa e a popa da nossa Didáctica será investigar e descobrir o método segundo o qual os professores ensinem menos e os estudantes aprendam mais; nas escolas, haja menos barulho, menos enfado, menos trabalho inú-til e mais sólido progresso; na Cristandade, haja menos trevas, menos con-fusão, menos dissídios, e mais luz, mais ordem, mais paz e mais tranqüilida-de".66

64

Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, Questionando a Avaliação: In: Avaliação, 1987, p. 5. 65

João Amós Coménio, Didáctica Magna, 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, [1985], XII, p. 163-164. Comênio (1592-1670) foi chamado de "Bacon da Pedagogia" e de "O Galileu da educação” (J. Mi-chelet, Nos fils, Paris, 1869, Apud Gabriel Compayré, Histoire Critique des Doctrines de L’Éducation en France Depuis le Seizième Siècle, 2ª ed. Paris: Librairie Hachette Et Cie. 1880, Vol. I, p. 249; J.-P. Piobetta, João Amos Comenius: In: Jean Château, et. al., Os Grandes Pedagogistas, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p. 131. Veja-se também, M.F. Sciacca, O Problema da Educação, São Paulo: Herder/EDUSP., 1966, p. 396). Um de seus princípios educacionais era: "ensinar tudo a todos" [Didáctica Magna, X.1. p. 145]. Ele foi o último bispo da Igreja dos Irmãos Boêmios. [Cf. Will S. Monroe, Comenius and the Beginnings of Educational Reform, London: William Heinemann, 1900, p. 61; Paul Kleinert, Comenius: In: Philip Schaff, ed. Religious Encyclopaedia: or Dictionary of Biblical, Historical, Doctrinal, and Practical Theology, Chicago: Funk Wagnalls, Publishers, 1887 (Revised Edi-tion), Vol. I, p. 517; John C. Osgood, Comenius: In: Harry S. Ashmore, Editor in Chief. Encyclopaedia Britannica, Chicago: Encyclopaedia Britannica, INC., 1962, Vol. 6, p. 100; Salomon Bluhm, Johann Amos Comenius: In: Lee C. Deighton, editor-in chief. The Encyclopedia of Education, (s. cidade): The Macmillan Company & The Free Press, 1971, Vol. II, p. 301; “Comenius,” In: Rev. John M’Clintock & James Strong, eds. Cyclopaedia of Biblical, Theological, and Ecclesiastical Literature, [CD-ROM], (Ri-o, Wi USA, 2000), Vo. 2, p. 128; Ruy Afonso da C. Nunes, História da Educação no Século XVII, p. 49]. Há evidências de que ele teria sido convidado por John Winthrop Jr. (1606-1676), a presidir o Harvard College (1642), cargo que de fato nunca ocupou. (Vd. Paul Kleinert, Comenius: In: Philip Schaff, ed. Religious Encyclopaedia: or Dictionary of Biblical, Historical, Doctrinal, and Practical The-ology, Vol. I, p. 518; Salomon Bluhm, Johann Amos Comenius: In: Lee C. Deighton, editor-in chief. The Encyclopedia of Education, (s. cidade): The Macmillan Company & The Free Press, 1971, Vol. II, p. 302; N. Abbagnano & A. Visalberghi, Historia de la Pedagogía, Novena reimpresión, México: Fondo de Cultura Económica, 1990, p. 303; Joaquim Ferreira Gomes, Introdução à Didáctica Magna: In: Jo-ão Amós Coménio, Didáctica Magna, p. 17; Inez Augusto Borges, Educação e Personalidade: a di-mensão sócio-histórica da educação cristã, São Paulo: Editora Mackenzie, 2002, p. 59. John C. Os-good, Comenius: In: Encyclopaedia Britannica, 1962, Vol. 6, p. 100). Maiores detalhes sobre a vida e o pensamento de Comênio podem ser encontradas in: Hermisten M. P. Costa, Raizes da Teologia Contemporânea, São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 112-117. 66

João Amós Coménio, Didáctica Magna, p. 44.

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"As escolas são oficinas da humanidade".67

Comênio tinha como um de seus princípios educacionais, “ensinar tudo a to-

dos",68 começando desde bem cedo, já que é mais difícil reeducar o homem na vida

67

João Amós Coménio, Didáctica Magna, p. 146. 68

João Amós Coménio, Didáctica Magna, X.1. p. 145. Como é notório na História, o advento da imprensa trouxe consigo, uma maior difusão da literatura impressa, bem como acarretou gradativamente, um aumento significativo da alfabetização. "Nos paí-ses reformados e nas nações católicas, nas cidades e nos campos, no Velho e no Novo Mundo, a familiaridade com a escrita progride, dotando as populações de competências culturais que antes constituíam apanágio de uma minoria", escreve Roger Chartier (Roger Chartier, As Práticas da Escrita: In: R. Chartier, org. História da Vida Privada, São Paulo: Companhia das Letras, 1991, Vol. 3, p. 116). O autor sustenta que foi com o pietismo que a prática da leitura se difundiu amplamente na Alemanha (Ibidem., p. 121-122). Mais à frente ele reconhece, que a leitura e posse de livros, se tornaram mais evidentes nos países protestantes. "À frente da Europa que pos-sui livros estão incontestavelmente as cidades dos países protestantes. Por exemplo, em três cidades da Alemanha renana e luterana – Tübingen, Speyer e Frankfurt –, os inventários com livros constituem em meados do século XVIII respectivamente 89%, 88% e 77% do total regis-trado. Assim, é grande a diferença em relação à França católica, seja na capital (na déca-da de 1750 apenas 22% dos inventários parisienses incluem livros), seja na província (nas no-vas cidades do oeste francês a porcentagem é de 36% em 1757-1758; em Lyon, de 35% na segunda metade do século). Ao contrário, a diferença é pequena com relação a outros pa-íses protestantes – mesmo que majoritariamente rurais como, por exemplo, os da América. “No final do século XVIII, 75% dos inventários no condado de Worcester, em Massachu-setts, 63% em Maryland, 63% na Virgínia assinalam a presença de livros – o que traduz um be-lo progresso em comparação com o século anterior, no qual a porcentagem das melhores regiões não passava de 40%. "Deste modo, a fronteira religiosa parece um fator decisivo no tocante à posse do livro. Nada o mostra melhor que a comparação das bibliotecas das duas comunidades numa mesma cidade. Em Metz, entre 1645-1672, 70% dos inventários dos protestantes incluem livros contra apenas 25% dos inventários católicos. E a distância é sempre muito acentuada, seja qual for a categoria profissional considerada: 75% dos nobres reformados têm livros, mas a-penas 22% dos católicos os possuem, e as porcentagens são de 86% e 29% nos meios jurídi-cos, 88% e 50% na área médica, 100% e 18% entre pequenos funcionários, 85% e 33% entre comerciantes, 52% e 17% entre artesãos, 73% e 5% entre 'burgueses', 25% e 9% entre traba-lhadores braçais e agrícolas. Mais numerosos como proprietários de livros, os protestantes também possuem mais livros: os reformados membros das profissões liberais têm em média, o triplo dos seus homólogos católicos; a situação é idêntica para comerciantes, artesãos ou pequenos funcionários; e entre os burgueses a diferença é ainda maior, com bibliotecas calvinistas dez vezes mais ricas que as dos católicos. "A essa diferença na posse do livro acrescentam-se outras que opõem a própria econo-mia das bibliotecas às práticas da leitura. Nos países luteranos, seja qual for o nível social de seu proprietário, todas são organizadas em torno do mesmo conjunto de livros religiosos" (Ibi-dem., p. 131-133). O autor mostra, com alguns testemunhos históricos –, que toda a cultura protestante estava vincu-lada à leitura da Bíblia (Veja-se, Ibidem., p. 133ss). (Ver também: José Andrés-Gallego, História da Gente Pouco Importante: América e Europa até 1789, Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 101-107). D.S. Schaff observou corretamente, que: "Para o protestante, a Bíblia é um livro popular, um livro tanto para o lar como para o santuário, tanto para a choupana como para o gabinete do erudito. Traduzida para a linguagem do leitor, ela será tão livre como o ar e a luz do sol. É o livro da vida, a mensagem do Evangelho. Como é franca a mensagem para todos os que a aceitem, assim o volume que contém a mensagem deve ser aberto a todos os que quei-ram ler" (D.S. Schaff, Nossa Crença e a de Nossos Pais, 2ª ed. São Paulo: Imprensa Metodista, 1964, p. 172-173).

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adulta.69 Portanto, todo currículo está comprometido, consciente ou não, com determinada

compreensão da realidade que, deste modo, determina metas a serem alcançadas.

D. Pressupostos: determinantes de nossa percepção e compor-tamento:

“O Cristianismo tem um conteúdo para ser acreditado e uma visão de mundo a ser adquirida” − Perry G.

Downs.70

Há uma relação indissolúvel entre comportamento e o que você crê. Quando sabemos no que cremos, as decisões tornam-se mais fáceis. No entanto, uma das questões difíceis de responder é: no que você crê? A resposta a esta questão reve-lará uma série de pressupostos – conceitos implícitos em sua fala –, muitos dos quais talvez jamais tenham ocorrido, pelo menos de forma teórica, ao entrevistado. É possível que sem percebermos o nosso pensamento revele uma série de inconsis-tências e, até mesmo, excludências. O fato é que nossos conceitos, explícitos ou não terminarão por se juntar a outros e, deste modo, sem consciência e mesmo con-sistência, vamos aos poucos formando uma maneira de ver o mundo71 e, conseguin-temente, de avaliá-lo. “De fato, escreve Cheung, se pensarmos profundamente o suficiente, perceberemos que cada proposição simples que falamos ou cada ação que realizamos pressupõe uma série de princípios últimos inter-relacionados pelos quais percebemos e respondemos à realidade. Essa é nossa cosmovisão”.72 Esta percepção determinará de forma intensa o nosso com-portamento na sociedade em que vivemos, tendo implicações em todas as esferas de nossa existência. A epistemologia antecede à lógica e esta, por mais coerente que seja, se partir de uma premissa equivocada nos conduzirá a conclusões erradas e, portanto, a uma ética com fundamentos duvidosos e inconsistentes. “Uma cos-movisão contém as respostas de uma dada pessoa às questões principais da vida, quase todas com significante conteúdo filosófico. É a infra-estrutura

69

“....Não há coisa mais difícil que voltar a educar bem um homem que foi mal educado. Na verdade, uma árvore, tal como cresce, alta ou baixa, com os ramos bem direitos ou tor-tos, assim permanece depois de adulta e não se deixa transformar. (...) Se se devem aplicar remédios às corruptelas do gênero humano, importa fazê-lo de modo especial por meio de uma educação sensata e prudente na juventude” (João Amós Coménio, Didáctica Magna, De-dicatória, 18-19, p. 65). 70

Perry G. Downs, Introdução à Educação Cristã: Ensino e Crescimento, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, p. 178. 71

Cf. Ronald H. Nash, Questões Últimas da Vida: uma introdução à Filosofia, São Paulo: Cultura Cris-tã, 2008, p. 8. Veja-se também: Franklin Ferreira & Alan Myatt, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 2007, especialmente, p. 8-10. 72

Vincent Cheung, Reflexões sobre as Questões Últimas da Vida, São Paulo: Arte Editorial, 2008, p. 61.

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conceitual, padrões ou arranjos das crenças dessa pessoa”.73 Ainda que não pretendamos ser exaustivos, podemos, inspirando-nos em Nash (1936-2006),74 dizer que a nossa cosmovisão é constituída por um conjunto de crenças que estabelecem essencialmente a sua distinção de outras cosmovisões a-inda que haja no cerne de cada cosmovisão diferenças importantes, porém, que não são excludentes. Vejamos algumas dessas crenças:

a) Deus: Ainda que o nome de Deus nem sempre apareça em nossas discus-sões, a fé em Deus envolvendo, obviamente, o conceito que temos Dele é ponto capital em qualquer cosmovisão. Deus existe? Ele se confunde com a matéria? Há um só Deus? Ele age? É soberano? É um ser pessoal? As res-postas que dermos a estas questões são cruciais para identificar a nossa cosmovisão.

b) Metafísica: A Metafísica trata da existência e da natureza e a qualidade da-

quilo que é conhecido. A nossa cosmovisão determinará um tipo de compre-ensão de questões tais como: Todos os homens têm a mesma essência? To-do evento deve ter uma causa? Há realidade além daquilo que podemos ver? Existe um mundo espiritual? Há um propósito para o universo? Qual a relação entre Deus e o universo?

c) Epistemologia: A Epistemologia é o estudo das questões relacionadas aos

problemas filosóficos do conhecimento. O seu objetivo é conhecer, interpretar e descrever filosoficamente, os princípios essenciais que conduzem ao conhe-cimento científico ou, em outras palavras, "estudar a gênese e a estrutura dos conhecimentos científicos".75 A Epistemologia trata de questões tais como: Como conhecemos alguma coisa? É possível um conhecimento certo a respeito de alguma coisa? Os sentidos nos dão um conhecimento certo a res-peito dos objetos sensíveis? Nossas percepções dos objetos sensíveis são i-dênticas a esses objetos? Qual a relação entre o intelecto e a matéria? Qual a relação entre a razão e a fé? Podemos conhecer algo sobre Deus? É o méto-do científico o melhor método para o conhecimento?

d) Ética: Lalande (1867-1963) interpretando determinada compreensão, define

ética como o "Conjunto das regras de conduta admitidas numa época ou por um grupo social".76 A Ética filosófica analisa a vida virtuosa no seu valor último, e a propriedade de certas ações e estilos de vida. Ela se refere à conduta humana, às normas e princípios a que todo o homem deve ajustar

73

Ronald H. Nash, Questões Últimas da Vida: uma introdução à Filosofia, p. 13. 74

Ronald H. Nash, Questões Últimas da Vida: uma introdução à Filosofia, p. 15ss. 75

Hilton F. Japiassu, Introdução ao Pensamento Epistemológico, 3ª ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1979, p. 38. Vejam-se descrições complementares In: Thomas R. Giles, In-trodução à Filosofia, São Paulo: EPU/EDUSP, 1979, p. 121; Franklin L. da Silva, Teoria do Conheci-mento: In: Marilena Chauí, et. al. Primeira Filosofia, 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, © 1984, p. 175; Jo-hannes Hessen, Teoria do Conhecimento, 7ª ed. Coimbra: Arménio Amado – Editor, 1976, p. 25. 76

Moral: In: André Lalande, Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 705.

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seu comportamento nas relações com seus semelhantes e consigo mesmo. O filósofo moral não é apenas um cientista teórico envolvido em especulações abstratas, ele é alguém comprometido com a realidade, buscando soluções para os problemas práticos que nos cercam e que deram origem à pesquisa. A sua preocupação também, não se limita à ação certa, mas, também, ao princí-pio que a justifica. Perguntas comuns a esta disciplina: É justo falsificar a de-claração de imposto de renda? O aborto é correto? E financiar instituições que em suas pesquisas contemplem a prática do aborto? É viável a pena de mor-te? A eutanásia? Há um padrão absoluto de moral ou ele é relativo à épocas, culturas e pessoas? A moralidade transcende ao lugar, época e cultura? Como distinguir o bem do mal?

e) Antropologia: O conceito que temos a respeito do homem revela aspectos de

nossa cosmovisão. O ser humano é apenas matéria? De que forma a morte determina o fim de nossa existência? Existe algum tipo de recompensa ou pu-nição após a morte? A alma é imortal? O homem é um ser livre ou determina-do por forças deterministas? Qual o propósito da vida?

f) História: “A Filosofia da história é a reflexão crítica acerca da ciência

histórica e inclui tanto elementos analíticos quanto especulativos”.77 Ela parte do princípio de que o homem é uma síntese entre o passado e o presen-te, tendo as suas decisões atuais relação direta com as suas experiências pre-téritas, daí algumas perguntas: O alvo da explicação histórica é predição, ou meramente entendimento? Visto que escrever a história envolve seleção de material pelo historiador, um documento histórico pode ser considerado objeti-vo? A História é linear78 ou cíclica?79 Existe alguma finalidade, ou um padrão que confira sentido à História?

Nash parece-nos correto em sua observação: “A obtenção de maior consci-ência de nossa cosmovisão pessoal é uma das coisas mais importantes que podemos fazer, e compreender a cosmovisão de outros é algo essencial pa-

77

N.L. Geisler & P.D. Feiberg, Introdução à Filosofia, São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 27. 78

"O importante princípio que devemos manter sempre vívido na mente é que a única ma-neira de entender a longa história da raça humana é dar-se conta de que ela é resultado da Queda. Essa é a única chave da história, de qualquer espécie de história, tanto da histó-ria secular como desta história mais puramente espiritual que temos na Bíblia. Não se pode entender a história da humanidade se não se leva em conta este grande princípio. A história é o registro do conflito entre Deus e Suas forças, de um lado, e o diabo e suas forças, de ou-tro; e o grande princípio determinante é de imensa importância, não só para entender-se a história passada, como também para entender-se o que está acontecendo no mundo hoje. É, igualmente, a única chave para compreender-se o futuro. Ao mesmo tempo, é a única maneira pela qual podemos compreender as nossas experiências pessoais" (D.M. Lloyd-Jones, O Combate Cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 72). "A histó-ria não saiu das mãos de Deus" (D. Martyn Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 64). 79 "O conceito grego da história como um processo cíclico trancava os homens num moi-

nho onde eles podiam lutar com todas as forças, mas nem deuses nem homens conseguiam avançar. O conceito cristão do julgamento indica que a história caminha rumo a um objeti-vo" (Leon Morris, A Doutrina do Julgamento na Bíblia: In: Russel P. Shedd & Alan Pieratt, eds. Imor-talidade, São Paulo: Vida Nova, 1992, p. 62).

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ra o entendimento que os torna distintos”.80 As nossas ênfases revelam não simplesmente os nossos pensamentos e valores como também, aspectos da realidade como os percebemos. Como sabemos, todos trabalham com os seus pressupostos, explícitos ou não, consistentes ou não, plenamente conscientes deles ou apenas parcialmente.81 Os pressupostos se constituem na janela (quadro de referência) por meio da qual vejo a realidade; o difícil é identificar a nossa janela, ainda que sem ela nada enxergue-mos.82 Assim, falar sobre a nossa cosmovisão,83 além de ser difícil verbalizá-la, é paradoxalmente desnecessário. Parece que há um pacto involuntário de silêncio o qual aponta para um suposto conhecimento comum: todos sabemos a nossa cos-movisão. Deste modo, só falamos, se falamos e quando falamos de nossa cosmovi-são, é para os outros, os estranhos, não iniciados em nossa forma de pensar. Sire resume bem isso: “Uma cosmovisão é composta de um conjunto de pressu-posições básicas, mais ou menos consistentes umas com as outras, mais ou menos verdadeiras. Em geral, não costumam ser questionadas por nós mesmos, raramente ou nunca são mencionadas por nossos amigos, e são apenas lembradas quando somos desafiados por um estrangeiro de outro universo ideológico”.84 O conhecimento, seja em que nível for, não ocorre num vácuo asséptico concei-tual quer seja religioso, quer filosófico, quer cultural.85 A nossa percepção e ação fundamentam-se em nossos pressupostos os quais sãos reforçados, transformados,

80

Ronald H. Nash, Questões Últimas da Vida: uma introdução à Filosofia, p. 14. 81 “Todas as pessoas têm seus pressupostos, e elas vão viver de modo mais coerente possível

com estes pressupostos, mas até do que elas mesmas possam se dar conta. Por pressupostos entendemos a estrutura básica de como a pessoa encara a vida, a sua cosmovisão básica, o filtro através do qual ela enxerga o mundo. Os pressupostos apóiam-se naquilo que a pes-soa considera verdade acerca do que existe. Os pressupostos das pessoas funcionam como um filtro, pelo qual passa tudo o que elas lançam ao mundo exterior. Os seus pressupostos fornecem ainda a base para seus valores e, em conseqüência disto, a base para suas deci-sões” (Francis A. Schaeffer, Como Viveremos?, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 11). 82 “Seria atenuar os fatos dizer que a cosmovisão ou visão de mundo é um tópico importan-te. Diria que compreender como são formadas as cosmovisões e como guiam ou limitam o pensamento é o passo essencial para entender tudo o mais. Compreender isso é algo como tentar ver o cristalino do próprio olho. Em geral, não vemos nossa própria cosmovisão, mas vemos tudo olhando por ela. Em outras palavras, é a janela pela qual percebemos o mundo e determinamos, quase sempre subconscientemente, o que é real e importante, ou irreal e sem importância” (Phillip E. Johnson no Prefácio à obra de Nancy Pearcey, A Verdade Absoluta: Libertando o Cristianismo de Seu Cativeiro Cultural, Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assem-bléias de Deus, 2006, p. 11). 83“Em essência, é um conjunto de pressuposições (hipóteses que podem ser verdadeiras,

parcialmente verdadeiras ou inteiramente falsas) que sustentamos (consciente ou inconsci-entemente, consistente ou inconsistentemente) sobre a formação básica do nosso mundo” (James W. Sire, O Universo ao Lado, São Paulo: Hagnos, 2004, p. 21). 84

James W. Sire, O Universo ao Lado, São Paulo: Hagnos, 2004, p. 21-22. 85

Nancy R. Pearcey & Charles B. Thaxton, A Alma da Ciência, São Paulo: Cultura Cristã, 2005, p. 9-12; 294.

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lapidados ou abandonados em prol de outros, conforme a nossa percepção dos “fa-tos”. A questão epistemológica antecede à práxis. Contudo, como nos aprofundar no campo intelectual se abandonamos as questões epistemológicas? As palavras de J.G. Machen (1881-1937) no início do século XX não se tornam ainda mais eloqüen-tes na atualidade?: “A igreja está hoje perecendo por falta de pensamento, não por excesso do mesmo”.86 A nossa chave epistemológica é a Escritura, portanto a nossa cosmovisão partin-do de uma perspectiva assim, nos conduzirá naturalmente de volta a Deus. A Edu-cação Cristã fundamentando-se nas Escrituras oferece-nos um escopo do que Deus deseja de nós e, nos fala de qual o propósito de nossa existência em todas as suas esferas.87

Maringá, 13 de dezembro de 2009. Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

86

J.G. Machen, Cristianismo y Cultura, Barcelona: Asociación Cultural de Estudios de la Literatura Reformada, 1974, p. 19). 87

“A cosmovisão cristã tem coisas importantes a dizer sobre a totalidade da vida humana” (Ronald H. Nash, Questões Últimas da Vida, p. 19).