introducao a educacao crista 7

19
Introdução à Educação Cristã (7) – Reflexões, Desafios e Pressupostos – 3) A UTILIDADE DA PALAVRA: “Aquele que não tenta ensinar com o intuito de beneficiar, não pode ensi- nar corretamente; por mais que faça boa apresentação, a doutrinação não será sã, a menos que cuide para que seja proveitosa a seus ouvintes” - João Calvino. 1 A Bíblia não foi registrada apenas para o nosso deleite espiritual; mas para que cumpramos os seus preceitos, dados pelo próprio Deus (Dt 29.29; Js 1.8; 2Tm 3.15,16; Tg 1.22); a Bíblia também não nos foi dada para satisfazer a nossa curiosi- dade pecaminosa (Dt 29.29), que em geral ocasiona especulações esdrúxulas e fac- ções; Ela foi-nos concedida para que conheçamos o Seu Autor e, O conhecendo O adoremos e, O adorando, mais O conheçamos (Os 6.3; 2Pe 3.18). 2 A Bíblia foi-nos confiada a fim de que, mediante a iluminação do Espírito Santo, 3 sejamos conduzi- dos a Jesus Cristo (Jo 5.39/Lc 24.27,44), sendo Ele mesmo Quem nos leva ao Pai (Jo 14.6-15; 1Tm 2.5; 1Pe 3.18) e nos dá vida abundante (Jo 10.10; Cl 3.4). Por isso, "ao estudarmos Deus, devemos procurar ser conduzidos a Ele. A revelação nos foi dada com esse propósito e devemos usá-la com essa finalidade". 4 Justamente devido a Escritura ser a Palavra procedente de Deus, plenamente inspirada, é que ela é "útil " (w)fe/limoj) = "proveitoso") (2Tm 3.16). Esta declaração de Paulo conduz-nos ao ponto da Sua praticidade, como temos analisado. Calvino (1509-1564), comentando este passo sagrado (1Tm 3.16), diz: "'A Escritura é proveitosa.' Segue-se daqui que é errôneo usá-la de forma inaproveitável. Ao dar-nos as Escrituras, o Senhor não pretendia satisfazer 1 João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.3), p. 165. 2 Vd. Calvino, As Institutas, I.5.10; Agostinho, Confissões, 9ª ed. Porto: Livraria Apostolado da Im- prensa, 1977, I.1.1. p. 27-28; J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, São Paulo: Mundo Cristão, 1980, especialmente, p. 26-35. 3 João Calvino observou que: “Só quando Deus irradia em nós a luz de seu Espírito é que a Pa- lavra logra produzir algum efeito. Daí a vocação interna, que só é eficaz no eleito e apropri- ada para ele, distingue-se da voz externa dos homens[João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 10.16), p. 374]. A vocação eficaz do eleito “não consiste somen- te na pregação da Palavra, senão também na iluminação do Espírito Santo” (J. Calvino, As Institutas, III.24.2). 4 J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, p. 15.

Upload: walderson-alves-pereira-junior

Post on 20-Feb-2016

219 views

Category:

Documents


5 download

DESCRIPTION

Artigo sobre Educação Cristã parte 7

TRANSCRIPT

Page 1: Introducao a Educacao Crista 7

Introdução à Educação Cristã (7) – Reflexões, Desafios e Pressupostos –

3) A UTILIDADE DA PALAVRA:

“Aquele que não tenta ensinar com o intuito de beneficiar, não pode ensi-nar corretamente; por mais que faça boa apresentação, a doutrinação não será sã, a menos que cuide para que seja proveitosa a seus ouvintes” − João

Calvino.1

A Bíblia não foi registrada apenas para o nosso deleite espiritual; mas para que cumpramos os seus preceitos, dados pelo próprio Deus (Dt 29.29; Js 1.8; 2Tm 3.15,16; Tg 1.22); a Bíblia também não nos foi dada para satisfazer a nossa curiosi-dade pecaminosa (Dt 29.29), que em geral ocasiona especulações esdrúxulas e fac-ções; Ela foi-nos concedida para que conheçamos o Seu Autor e, O conhecendo O adoremos e, O adorando, mais O conheçamos (Os 6.3; 2Pe 3.18).2A Bíblia foi-nos confiada a fim de que, mediante a iluminação do Espírito Santo,3 sejamos conduzi-dos a Jesus Cristo (Jo 5.39/Lc 24.27,44), sendo Ele mesmo Quem nos leva ao Pai (Jo 14.6-15; 1Tm 2.5; 1Pe 3.18) e nos dá vida abundante (Jo 10.10; Cl 3.4). Por isso, "ao estudarmos Deus, devemos procurar ser conduzidos a Ele. A revelação nos foi dada com esse propósito e devemos usá-la com essa finalidade".4 Justamente devido a Escritura ser a Palavra procedente de Deus, plenamente inspirada, é que ela é "útil" (w)fe/limoj) = "proveitoso") (2Tm 3.16). Esta declaração de Paulo conduz-nos ao ponto da Sua praticidade, como temos analisado. Calvino (1509-1564), comentando este passo sagrado (1Tm 3.16), diz: "'A Escritura é proveitosa.' Segue-se daqui que é errôneo usá-la de forma

inaproveitável. Ao dar-nos as Escrituras, o Senhor não pretendia satisfazer

1 João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.3), p. 165.

2Vd. Calvino, As Institutas, I.5.10; Agostinho, Confissões, 9ª ed. Porto: Livraria Apostolado da Im-

prensa, 1977, I.1.1. p. 27-28; J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, São Paulo: Mundo Cristão, 1980, especialmente, p. 26-35. 3João Calvino observou que: “Só quando Deus irradia em nós a luz de seu Espírito é que a Pa-

lavra logra produzir algum efeito. Daí a vocação interna, que só é eficaz no eleito e apropri-ada para ele, distingue-se da voz externa dos homens” [João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 10.16), p. 374]. A vocação eficaz do eleito “não consiste somen-te na pregação da Palavra, senão também na iluminação do Espírito Santo” (J. Calvino, As Institutas, III.24.2). 4J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, p. 15.

Page 2: Introducao a Educacao Crista 7

Introdução à Educação Cristã (7) – Rev. Hermisten – 12/04/10 – 2

nossa curiosidade, nem alimentar nossa ânsia por ostentação, nem tam-pouco deparar-nos uma chance para invenções místicas e palavreado tolo; sua intenção, ao contrário, era fazer-nos o bem. E assim, o uso correto da Escritura deve guiar-nos sempre ao que é proveitoso”.5

Logo, o uso jocoso e irreverente das Escrituras constitui-se num menosprezo do que Deus nos deu para a nossa instrução. A Bíblia é o nosso manual de salvação que se processa por intermédio santificação! O seu emprego para quaisquer outros objetivos, por mais nobres que possam parecer aos nossos olhos, equivale a usá-la indignamente... "O fim de um teólogo não pode ser deleitar o ouvido, senão confirmar as consciências ensinando a verdade e o que é certo e proveito-so".6 Este princípio é válido para todos os que sinceramente se aproximam da Pala-vra. Portanto, não negligenciemos os benefícios provenientes da Palavra de Deus, a fim de não cairmos nas armadilhas de Satanás.7

A) ÚTIL PARA O ENSINO: "Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para ensino, (didaskali/a)8 para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça" (2Tm 3.16). Muitas pessoas querem saber do seu futuro, o que as aguarda e se serão bem sucedidas em seus projetos, buscando para isso orientação em cartas de baralho, jogo de búzios, em mapas astrais, por meio da necromancia, revelações sobrenatu-rais e "caixinhas de promessa". Todavia, Paulo está dizendo que a Palavra de Deus é útil para o nosso ensino; não para fazer previsões, para ficar entregue aos nossos casuísmos interpretativos ou, para satisfazer às nossas curiosidades pecaminosas. Ela é útil para o ensino. Deus quer nos falar por intermédio da Sua Palavra. Por isso, Paulo enfatiza a responsabilidade de Timóteo e Tito – como de todos os Ministros de Deus –, de meditar, preservar e ensinar a sã doutrina (1Tm 4.6,13,16; Tt 1.9; 2.1,7) pois, diz ele: “.... haverá tempo (kairo/j)9 em que não suportarão a sã

5João Calvino, As Pastorais, (2Tm 3.16), p. 263.

6J. Calvino, As Institutas, I.14.4.

7 Vd. João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.14), p. 130.

8 A palavra significa “ato de ensino”, “instrução”, “treinamento”, podendo ser também empregada na

forma passiva, indicando “aquilo que é ensinado”, “instrução”, “doutrina” (* Mt 15.9; Mc 7.7; Rm 12.7; 15.4; Ef 4.14; Cl 2.22; 1Tm 1.10; 4.1,6,13,16; 5.17; 6.1,3; 2Tm 3.10,16; 4.3; Tt 1.9; 2.1,7,10). 9A idéia da palavra é de “oportunidade”, “tempo certo”, “tempo favorável”, etc. (Vd. Mt 24.45; Mc 12.2;

Lc 20.10; Jo 7.6,8; At 24.25; Gl 6.10; Cl 4.5; Hb 11.15). Ela enfatiza mais o conteúdo do tempo. Este termo que ocorre 85 vezes no NT é mais comumente traduzido por “tempo”, surgindo, então, algumas variantes, indicando a idéia de oportunidade. Assim temos (Almeida Revista e Atualizada): Tempo e tempos: Mt 8.29; 11.25; 12.1; 13.30; 14.1; Lc 21.24; At 3.20; 17.26; “Devidos tempos”: Mt 21.41; “Tempo determinado”: Ap 11.18; “Momento oportuno”: Lc 4.13; “Tempo oportuno”: Hb 9.10; 1Pe 5.6; Oportunidade: Lc 19.44; Gl 6.10; Cl 4.5; Hb 11.15; Devido tempo: Lc 20.10; Presente: Mc 10.30; Lc 18.30; “Circunstâncias oportunas”: 1Pe 1.11; Algum tempo: Lc 8.13; Hora: Lc 8.13; 21.8; Época: Lc 12.56; At 1.7; 1Ts 5.1 (Xro/nwn kai\ tw=n kairw=n); 1Tm 6.15; Hb 9.9; Ocasião: Lc 13.1; 2Ts 2.6; 1Pe 4.17; Estações: At 14.17; Vagar: At 24.25; Avançado: Hb 11.11.

Page 3: Introducao a Educacao Crista 7

Introdução à Educação Cristã (7) – Rev. Hermisten – 12/04/10 – 3

doutrina (didaskali/a); pelo contrário, cercar-se-ão de mestres, segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos; e se recusarão a dar ouvi-dos à verdade, entregando-se às fábulas” (mu=qoj = lenda, mito)10 (2Tm 4.3-4).

Pode soar estranho, mas, ao que parece, a gravidade do ensino bíblico juntamen-te com seriedade de suas reivindicações, fazem com que o homem não queira saber dele, preferindo uma mensagem mais “light”, que quando muito mexa com seus músculos, mas não com a sua mente e coração. Para muitas pessoas, a religião o-cupa um lugar reservado para as crianças, as mulheres, os pobres, os velhos ou, quando a medicina confessa a sua impotência, aí, nesta brecha a religião pode ter algum relevo: peço ou encomendo algumas orações. O homem longe de Deus e a-vesso à Sua Palavra, quando possível, fabrica e molda seus mestres e, domestica os outros. Na mesma linha de raciocínio, o escritor de Hebreus pede aos seus leitores que suportem aquela exortação que fizera; em outras palavras, pede que suportem a “sã doutrina”: “Rogo-vos ainda, irmãos, que suporteis (a)ne/xomai) a presente palavra de exortação; tanto mais quanto vos escrevi resumidamente” (Hb 13.22). Por sua vez, não devemos “suportar” os falsos mestres com seus ensinos enga-nosos. Paulo receia isso pelos coríntios. Logo eles que eram tão críticos em relação a Paulo e tão tolerantes para com o ensino enganoso, que se constituía num “evan-gelho” estranho e oposto ao ensinado pelo Apóstolo. Notemos que os falsos mestres não apresentavam uma imagem de Jesus corrompida, mas, tentavam distorcer os seus ensinamentos: “Mas receio que, assim como a serpente enganou a Eva com a sua astúcia, assim também seja corrompida a vossa mente e se aparte da simplici-dade e pureza devidas a Cristo. Se, na verdade, vindo alguém, prega outro (a)/lloj) Jesus que não temos pregado, ou se aceitais espírito diferente (e(/teroj) que não tendes recebido, ou evangelho diferente (e(/teroj) que não tendes abraçado, a esse, de boa mente (kalw=j), o tolerais (a)ne/xomai)” (2Co 11.3-4). À frente, Paulo acusa os coríntios de estarem alegremente (“boa mente” h(de/wj),11 com satisfação e delei-te, “tolerando” os insensatos: “Porque, sendo vós sensatos, de boa mente tolerais (a)ne/xomai) os insensatos” (2Co 11.19).

No texto que estamos analisando, Paulo está dizendo que aquelas pessoas que hoje ouvem a Pa-lavra com interesse e avidez poderão não ouvir em outras épocas ou circunstâncias, daí a nossa res-ponsabilidade de anunciar a Palavra de Deus e o nosso senso de urgência... 10

“[A] fé saudável equivale à fé que não sofreu nenhuma corrupção proveniente de fábu-las” [João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.14), p. 320]. “Se porventura desejarmos conservar a fé em sua integridade, temos de aprender com toda prudência a refrear nossos sentidos para não nos entregarmos a invencionices estranhas. Pois assim que a pessoa passa a dar atenção às fábulas, ela perde também a integridade de sua fé” [João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.14), p. 320]. 11h)de/wj * Mc 6.20; 12.37; 2Co 11.19. A palavra é proveniente de h(donh/, “deleite”, “prazer” (*Lc 8.14;

Tt 3.3; Tg 4.1,3; 2Pe 2.13). h(donh/, de onde vem o termo “hedonista”, é sempre usada negativamente no Novo Testamento. (Ver: E. Beyreuther, Desejo: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Inter-nacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, Vol. I, p. 606-608; In: G. Stählin, h)donh/: In: Friedrich & G. Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983, Vol. II, p. 909-926).

Page 4: Introducao a Educacao Crista 7

Introdução à Educação Cristã (7) – Rev. Hermisten – 12/04/10 – 4

A Palavra de Deus nos ensina preventivamente. Cabe aos ministros de Deus mi-nistrá-la fielmente, para que a Igreja seja aperfeiçoada em santidade e, assim, ".... não mais sejamos como meninos, agitados de um lado para outro, e levados ao re-dor por todo vento de doutrina (didaskali/a), pela artimanha (kubei/a)12dos ho-mens, pela astúcia com que induzem ao erro” (Ef 4.14). Calvino enfatiza que “Deus nos deu sua Palavra na qual, quando fincamos bem as raízes, permanece-mos inamovíveis; os homens, porém, fazendo uso de suas invenções, nos ex-traviam em todas as direções”.13 Somente quando a Igreja se dispõe a aprender com discernimento a Palavra ela pode, de fato, ter discernimento para interpretar corretamente os outros ensinos. "O-ra, o Espírito afirma expressamente que, nos últimos tempos, alguns apostatarão da fé, por obedecerem a espíritos enganadores e a ensinos (didaskali/a) de demô-nios, pela hipocrisia dos que falam mentiras, e que têm cauterizada a própria consci-ência” (1Tm 4.1-2).

Com demasiada frequência, nós procuramos na Palavra apenas uma confirmação de nossos intentos, de nossos propósitos; queremos apenas que ela nos diga o que desejamos ouvir. Contudo, a observação de Paulo permanece: Toda a Escritura é proveitosa para o ensino... "Pois tudo quanto outrora foi escrito, para o nosso ensino (didaskali/a) foi escrito....” (Rm 15.4). Precisamos ter a “santa modéstia” de deixar que as Escrituras corrijam a nossa teologia e a nossa prática. Por outro lado, vemos também a responsabilidade dos Ministros: Usar a Palavra dentro do propósito para a qual Ela nos foi dada. Calvino, pastoralmente orienta: “Deus mesmo não desce do céu para nós, nem diariamente nos envia men-sageiros angelicais para que publiquem sua verdade, senão que usa as ati-vidades dos pastores, a quem destinou para esse propósito”.14 “.... Em rela-ção aos homens, a Igreja mantém a verdade porque, por meio da prega-ção, a Igreja a proclama, a conserva pura e íntegra, a transmite à posteri-dade”.15

Calvino entendia que “a verdade, porém, só é preservada no mundo atra-vés do ministério da Igreja. Daí, que peso de responsabilidade repousa sobre

12

kubei/a (kybeia)(só ocorre aqui em todo o Novo Testamento), palavra que vem de ku/boj, astúcia, dolo, que, passando pelo latim, cubus, chegou a nossa língua como cubos, dados. Significa a habili-dade para manipular os dados, usando de truques para iludir e persuadir. Paulo emprega a palavra figuradamente para se referir ao homem que usa de todos os seus truques para enganar, dar pistas erradas e driblar; revelando aqui a habilidade de um jogador profissional sem escrúpulos, que obvia-mente quer levar vantagem a qualquer preço. 13

João Calvino, Efésios, (Ef 4.14), p. 128-129. 14

João Calvino, As Pastorais, (1Tm 3.15), p. 97. 15

João Calvino, As Pastorais, (1Tm 3.15), p. 98. Veja-se também, As Institutas, IV.1.5. Do mesmo modo, Lloyd-Jones: “O pastor é aquele a cujos cuidados são confiadas almas. Não é apenas um homem fino e agradável que visita as pessoas, toma uma chávena de chá com elas à tarde ou se entretém com elas. Ele é o guardião, o vigia, o preceptor, o organizador, o dire-tor, que governa o rebanho. O mestre ministra instrução na doutrina, na verdade” (David M. Lloyd-Jones, A Unidade Cristã, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1994, p. 167).

Page 5: Introducao a Educacao Crista 7

Introdução à Educação Cristã (7) – Rev. Hermisten – 12/04/10 – 5

os pastores, a quem se tem confiado o encargo de um tesouro tão inestimá-vel!”.16 Escrevendo a Cranmer (jul/1552?) diz: “A sã doutrina certamente jamais prevalecerá, até que as igrejas sejam melhor providas de pastores qualifica-dos que possam desempenhar com seriedade o ofício de pastor.”17 “Quanto maior for a dificuldade em ministrar fielmente à Igreja, mais solícito deve ser o pastor em aplicar todas as suas faculdades nesse ministério; não apenas por um curto tempo, mas com inexaurível perseverança. Paulo lembra a Timóteo que, nesta obra, não há espaço para indolência ou frouxidão, pois ela re-quer a máxima solicitude e assiduidade”.18

B) ÚTIL PARA A REPREENSÃO: "Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para (...) a repreensão (e)legmo/j ou e)le/gxw)19...” (2Tm 3.16). Paulo está dizendo que a Escritura Sagrada, que é plenamente inspirada e pro-vém de Deus, é útil para o ensino e, também para corrigir, para refutar o erro e re-preender o pecado. O termo usado aqui para "repreensão" já possuía um rico em-prego na literatura secular,20 significando, de modo especial: a) A exposição lógica e objetiva dos fatos de uma matéria, com o objetivo de refu-tar os argumentos de um oponente; daí a idéia de refutar e convencer. b) A correção do modo de viver dos homens, feita pela consciência, pela verdade ou por Deus. Uma idéia embutida na palavra grega é a de evidenciar o erro, expô-lo e trazê-lo à luz, objetivando corrigi-lo. Há na palavra o sentido de "disciplina educativa"; a edu-cação e a correção devem caminhar juntas (Pv 3.11,12; Hb 12.5; Ap 3.19).

16

João Calvino, As Pastorais, (1Tm 3.15), p. 97. Comentando sobre a necessidade do bispo ser a-pegado à Palavra fiel, diz: “Este é o principal dote do bispo que é eleito especificamente para o magistério sagrado, porquanto a Igreja não pode ser governada senão pela Palavra” [J. Calvino, As Pastorais, (Tt 1.9), p. 313]. Vejam-se também, As Institutas, IV.1.5; João Calvino, Efésios, (Ef 4.12), p. 124-125. “A erudição unida à piedade e aos demais dotes do bom pastor, são como uma preparação para o ministério. Pois, aqueles que o Senhor escolhe para o ministé-rio, equipa-os antes com essas armas que são requeridas para desempenhá-lo, de sorte que lhe não venham vazios e despreparados” (João Calvino, As Institutas, IV.3.11). “Não se requer de um pastor apenas cultura, mas também inabalável fidelidade pela sã doutrina, ao ponto de jamais apartar-se dela” [J. Calvino, As Pastorais, (Tt 1.9), p. 313]. 17

Calvin to Cranmer, Letter 18. In: John Calvin Collection, The AGES Digital Library, 1998. Do mesmo modo, Letters of John Calvin, Selected from the Bonnet Edition, p. 141-142. 18

João Calvino, As Pastorais, (1Tm 4.14), p. 124. 19

As duas palavras dispõem de boa base documental, e)legmo/j = “convicção”, “repreensão”, “casti-go” ou e)le/gxw = “trazer à luz”, “expor”, “demonstrar”, “convencer”, “persuadir”, “punir”, “disciplinar”. 20

Vd. H.M.F. Büchsel, E)le/gxw: In: G. Kittel & G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), Vol. II, p. 475; H.-G. Link, Culpa: In: Colin Brown, ed. ger. Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, Vol. I, p. 572.

Page 6: Introducao a Educacao Crista 7

Introdução à Educação Cristã (7) – Rev. Hermisten – 12/04/10 – 6

Neste sentido, Paulo está falando que a Palavra de Deus, justamente por ser per-feita, evidencia o nosso pecado para que, em submissão a Deus, possamos corrigi-lo. Quando de fato buscamos nas Escrituras orientação para a nossa vida, desco-brimos também que ela nos mostra os nossos erros; ela traz luz à nossa conduta que, muitas vezes, está manchada, pois às vezes, nos acomodamos com este ou aquele pecado, visto ser "normal" dentro do mundo em que vivemos. Entretanto, Paulo nos chama a atenção para o fato de que as Escrituras são úteis para nos cor-rigir segundo o modelo divino. Notem bem: segundo o modelo divino. O padrão da correção das Escrituras é o padrão de Deus, não um modelo de uma época ou cultura. Toda cultura tem um padrão de homem ideal; a "recompensa" e as "repreensões" são o resultado social do preenchimento destes objetivos, que variam de época para época e de povo para povo. Entretanto, Deus nos corrige por inter-médio da Sua Palavra, não para que nos moldemos ao "homem ideal de uma épo-ca", mas para que sejamos conforme Seu Filho, que é o modelo de todos os eleitos de Deus: "Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8.29). Meditando sobre a repreensão de Deus, Elifaz diz a Jó: "Bem-aventurado é o ho-mem a quem Deus disciplina (LXX: e)le/gxw); não desprezes, pois, a disciplina do Todo-Poderoso” (Jó 5.17). De semelhante modo, instrui Salomão: "Filho meu, não rejeites a disciplina (pai-dei/a) do Senhor, nem te enfades de sua repreensão (LXX: e)le/gxw). Porque o Se-nhor repreende (LXX: paideu/w) a quem ama, assim como o Pai ao filho a quem quer bem” (Pv 3.11-12). O escritor da Epístola aos Hebreus repete este texto, acrescentando que ".... o Senhor corrige (e)le/gxw) a quem ama, e açoita a todo filho a quem recebe” (Hb 12.6). No livro de Apocalipse, encontramos a declaração explícita de Jesus Cristo à Igre-ja de Laodicéia: "Eu repreendo (e)le/gxw) e disciplino a quantos amo. Sê, pois, zelo-so, e arrepende-te” (Ap 3.19). Por isso, Paulo recomenda a Timóteo que pregue a Palavra, porque ela de fato é útil para a correção: "Prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige (e)le/gxw), repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina” (2Tm 4.2). Analisando a força dos nossos argumentos contra aqueles que se opõem à dou-trina, Paulo nos mostra que o poder de persuasão repousa na Palavra; por isso, ele declara que os ministros devem ser "apegados à palavra fiel que é segundo a dou-trina, de modo que tenham poder, assim para exortar pelo reto ensino como para convencer (e)le/gxw = "reprovar") os que contradizem” (Tt 1.9).

Page 7: Introducao a Educacao Crista 7

Introdução à Educação Cristã (7) – Rev. Hermisten – 12/04/10 – 7

Em outro lugar, Paulo insiste com Tito para que repreenda os falsos mestres a fim de que eles tenham uma fé sadia: "Portanto, repreende-os (e)le/gxw) severamente para que sejam sadios na fé” (Tt 1.13). Como pudemos notar, a palavra usada por Paulo para "repreensão" tem também o sentido de convencer alguém dos seus erros.21 Deste modo, a Escritura deve ser pregada, porque é por meio dela que o Espírito convence o mundo do pecado, da justiça e do juízo. Foi neste sentido que Jesus disse: ".... Convém-vos que eu vá, porque se eu não for, o Consolador não virá para vós outros; se, porém, eu for, eu vo-lo enviarei. Quando ele vier convencerá (e)le/gxw) o mundo do pecado, da justiça e do juízo” (Jo 16.8). A ação do Espírito tem um duplo efeito: Convence os homens de seus pecados, conduzindo-os ao arrependimento a fim de que sejam salvos pela justiça de Cristo (1Co 1.30)22 e, também, há no texto de Jo 16.8 a idéia de que Ele mostrará aos homens, para a sua própria condenação, que eles estavam errados em relação à Pessoa e obra de Cristo.23 Aqui podemos falar do “ofício judicial do Espí-rito”.24 Esta ação do Espírito redundará na salvação de uns e na condenação de ou-tros. Do que analisamos neste tópico, podemos extrair algumas lições: 1) A Palavra de Deus é útil para evidenciar o nosso erro, mostrando-nos o para-digma definitivo que é Cristo Jesus; 2) Deus nos deu a Sua Palavra para nos guiar e repreender. A repreensão do Se-nhor indica a nossa não conformidade com a Sua Palavra e revela também o Seu amor por nós. Devemos, portanto, nos entristecer com o nosso pecado e nos alegrar com a repreensão amorosa do Senhor. 3) Devemos pregar a Palavra, entendendo que Deus convence o mundo, agindo pelo Espírito por intermédio da Palavra. Deste modo, a força de nossa argumenta-ção não está em nossa sabedoria, mas, sim, em pregar a Palavra com fidelidade e autoridade. Por isso, Paulo fala ao jovem Tito: "Dize estas cousas; exorta e repreen-de (e)le/gxw) também com toda a autoridade. Ninguém te despreze" (Tt 2.15). 4) A repreensão de Deus, conforme as Escrituras, visa a nossa restauração espi-ritual. 21

Sentido bem parecido ao que fora dado por alguns filósofos gregos, tais como: Platão (O Sofista, 242b; Górgias, 470c) e Aristóteles (Ética a Nicômaco, 1146a 23). 22

Não é demais lembrar que “A graça de Deus vem a nós não porque Deus revela o fato da Sua lei ser quebrada por nós, mas porque a Sua lei foi plenamente satisfeita pelos atos de justiça que Cristo fez a nosso favor (...). Ele cumpriu perfeitamente a lei de Deus” (A. Booth, Somente pela Graça, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1986, p. 56-57. Vd. tam-bém, Ibidem., p. 15 e 31). 23

Vd. G. Hendriksen, El Evangelio Segun San Juan, Grand Rapids, Michigan: SLC., 1981, p. 596-597; Richard C. Trench, Synonyms of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1985 (Reprinted), p. 13-15. 24

H.M.F. Büchsel, E)le/gxw: In: G. Kittel & G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Tes-tament, Vol. II, p. 474.

Page 8: Introducao a Educacao Crista 7

Introdução à Educação Cristã (7) – Rev. Hermisten – 12/04/10 – 8

5) Quando oramos "seja feita a Tua vontade" estamos declarando o nosso desejo de que Deus nos oriente pela Sua Palavra, e, também, estamos reconhecendo, nas Escrituras, um espelho que reflete o ideal de Deus para nós e revela as nossas im-perfeições, que precisam ser corrigidas. Deste modo, pelo Espírito, admitimos com tristeza os nossos pecados e anelamos aprender do Pai amoroso a Sua vontade. Calvino, comentando o salmo 50, diz: “Aqueles que têm desprezado a corre-ção, e se têm empedernido contra a instrução, preparam-se para precipitar-se a todo excesso que o desejo corrupto ou o mau exemplo possa sugerir”.25 6) Por inferência, podemos também dizer que o critério de correção de nossos fi-lhos deve estar sempre fundamentado nos princípios bíblicos, visto ser a Escritura útil para o ensino e repreensão.

C) ÚTIL PARA CORREÇÃO: "Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para (...) a correção (e)pano/rqwsij), para a educação na justiça" (2Tm 3.16). No item anterior, enfatizamos que a Escritura é útil para nos repreender, mostrar os nossos erros, convencendo-nos da estultícia de nossos pecados. Agora quere-mos enfatizar um aspecto positivo do ensinamento de Paulo: ele nos diz que a Es-critura é útil para a nossa correção. A palavra empregada por Paulo para correção só ocorre aqui em todo o Novo Testamento e mesmo na Septuaginta. Ela tem o sentido de: "restaurar", "corrigir", "emendar", "melhorar", "aprimorar", "endireitar”, “restabelecer”.26 Paulo está nos mostrando que, ao mesmo tempo em que as Escrituras eviden-ciam os nossos pecados, nos convencendo de nossos erros, ela também é útil pa-ra nos conduzir positivamente a uma atitude correta. Deus, por meio da Sua Pala-vra, nos mostra uma vereda reta, um caminho seguro para que possamos seguir de forma consciente, a fim de que, abandonando os nossos pecados, possamos ser restaurados à comunhão com Ele. Desta forma, nestas duas palavras "repreensão" e "correção", encontramos du-as fases de nossa vida, a primeira nos conduz ao arrependimento; a segunda à reconstrução de novos valores, conforme aprendidos das Escrituras, por meio de uma mente transformada (Rm 12.1-2).

25

João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, (Sl 50.17-20), Vol. 2, p. 415. 26

Aristóteles (384-322 a.C.) emprega a palavra referindo-se aos amigos que "são passíveis de re-forma" (Ética a Nicômaco, 1165b 19). No livro apócrifo de 1Mac 14.34, refere-se ao estabelecimento dos judeus em Gazara.

Page 9: Introducao a Educacao Crista 7

Introdução à Educação Cristã (7) – Rev. Hermisten – 12/04/10 – 9

D) ÚTIL PARA A EDUCAÇÃO NA JUSTIÇA:

1) O Sentido de Educar:

Paulo diz que "Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para (...) a educação (paidei/a) na justiça" (2Tm 3.16).

Conforme já vimos, a palavra paidei/a (de onde vem a nossa “pedagogia”),27 sig-nifica "educação das crianças", e tem o sentido de treinamento, instrução, disciplina, ensino, exercício, castigo. Cada cultura tem o seu modelo de homem ideal e, portanto, a educação visa for-mar esse homem, a fim de atender às expectativas sociais. Paulo sabia muito bem disso; ele mesmo declarara durante a sua defesa em Jerusalém que fora instruído por Gamaliel, o grande mestre da Lei. "Eu sou judeu, nasci em Tarso da Cilícia, mas criei-me nesta cidade e aqui fui instruído (paideu/w) aos pés de Gamaliel, segundo a exatidão da lei de nossos antepassados....” (At 22.3).

De igual modo, Estevão, descrevendo a vida de Moisés, fala de sua formação, declarando: "E Moisés foi educado (paideu/w) em toda a ciência dos egípcios, e era poderoso em palavras e obras” (At 7.22). Cito um fato elucidativo. Quando Virgínia e Maryland assinaram um tratado de paz com os Índios das Seis Nações, como demonstração da generosidade do ho-mem branco, seus governantes mandaram cartas aos índios solicitando que envias-sem alguns de seus jovens para estudarem em seus colégios. Seguem abaixo extra-tos da resposta dos chefes indígenas:

“.... Nós estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem para nós e agradecemos de todo o coração. “Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que a vossa idéia de educação não é a mesma que a nossa. “.... Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas, quando eles voltavam pa-ra nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e inca-pazes de suportarem o frio e a fome. Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros. “Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão oferecemos aos nobres senhores de Virgínia que nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes ensi-

27

paidagwgi/a.

Page 10: Introducao a Educacao Crista 7

Introdução à Educação Cristã (7) – Rev. Hermisten – 12/04/10 – 10

naremos tudo o que sabemos e faremos, deles, homens”.28 Se olharmos ainda que de relance o tipo de formação desde a Antigüidade, pode-remos constatar que o seu ideal variava de povo para povo e, até mesmo, de cidade para cidade, daí a diferença entre os "currículos", visto que este é o caminho, a "cor-rida" para se atingir o objetivo proposto.29 Assim, temos, ainda que, grosso modo, diversas perspectivas educacionais:30 � CHINA: A educação visava conservar intactas as tradições. Portanto, o currículo

está voltado apenas para o conhecimento e preservação das tradições, seguindo sempre o seu modelo. A originalidade era proibida.

� EGITO: Preparar o educando para uma vida essencialmente prática, que o levas-

se ao sucesso neste mundo e, por intermédio de determinados ritos, alcançasse o favor dos deuses, e a felicidade no além.

� HOMERO: “O educador da Grécia”, como o denomina Platão,31 tinha como meta formar homens virtuosos inspirando-se nos heróis em seus atos de bravura na consecução de seus ideais.32

� ESPARTA: Homens guerreiros, mas que fossem totalmente submissos ao Esta-

do. Neste processo estimula-se até mesmo à delação como modo de evidenciar a

28

Apud Carlos R. Brandão, O Que é Educação, 6ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 8-9. 29

Currículo" é uma transliteração do latim "curriculum" que é empregado tardiamente, sendo deriva-do do verbo "currere", "correr". "Curriculum" tem o sentido próprio de "corrida", "carreira"; um sentido particular de "luta de carros", "corrida de carros", "lugar onde se corre", "hipódromo" e um sentido fi-gurado de "campo", "atalho", "pequena carreira", "corte", "curso".

A palavra currículo denota a compreensão que ele não é um fim em si mesmo; é apenas um meio para atingir determinado fim. [Vd. Hermisten M.P. Costa, A Propósito da Alteração do Currículo dos Seminários Presbiterianos, São Paulo: 1997, p. 8ss. (Trabalho não publicado)]. 30

Veja-se um bom sumário disso em Thomas Ransom Giles, Filosofia da Educação, São Paulo: E-PU., 1983, p. 60-92. 31

Platão, A República, 7ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1993), 606e, p. 475. Num fragmento de Xenófanes de Colofão (c. 570-c.460 a.C.), crítico mordaz de Homero, encontramos a menção: “Desde o início todos aprenderam seguindo Homero...” (Xenófanes, Fragmento 10: In: José Calvante de Souza, org., Os Pré-Socráticos, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, Vol. I), 1973, p. 70). 32

A palavra traduzida, ainda que inadequadamente, por virtude (a)reth/) relaciona-se àquilo que faz com que uma coisa seja o que é. Sobre o conceito de virtude (a)reth/) entre os gregos, vejam-se: O. Bauernfeind, a)reth/: In: Gerhard Kittel & G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testa-ment, 8ª ed. (reprinted) Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing Co., 1982, Vol. I, p. 457-460; H.G. Link & A. Ringwald, Virtude: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1983, Vol. IV, p. 574-575; Werner Jaeger, Paidéia: A Formação do Homem Grego, 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989, especialmente, p. 19ss.; José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 2001, Vol. 4, p. 3027-3028; André Lalande, Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 1218-1221; F.E. Peters, Termos Filosóficos Gregos: Um léxico histórico, 2ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1983), p. 38-39; Jean Porter, Virtudes: In: Jean-Yves Lacoste, dir., Dicionário Crítico de Teologia, São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004, p. 1860; Henri-Irénée Marrou, História da Edu-cação na Antigüidade, 5ª reimpressão, São Paulo: EPU., 1990, especialmente, p. 28ss.

Page 11: Introducao a Educacao Crista 7

Introdução à Educação Cristã (7) – Rev. Hermisten – 12/04/10 – 11

sua lealdade ao Estado.33 “Certamente, essa Esparta dos séculos VIII-VI é, antes de tudo, um Estado guerreiro (...). O lugar dominante ocupado em sua cultura pelo ideal militar é atestado pelas elegias guerreiras de Tirteu, que ilustram belas obras plásticas contemporâneas, consagradas, como elas, à glorificação do herói combatente.”34 “Ao atingir sete anos, o jovem espartano é requisitado pelo Estado: até à morte, pertence-lhe inteira-mente. A educação propriamente dita vai dos sete aos vinte anos; ela é disposta sob a autoridade direta de um magistrado especial, verdadeiro comissário da Educação nacional, o paidono/moj”.35

� ATENAS: Treinamento competitivo entre os homens a fim de formar cidadãos

maduros física e espiritualmente com capacidade de exercitarem a sua liberdade. � SÓCRATES (469-399 a.C.)/PLATÃO (427-347 a.C.): Formar basicamente por

meio da música e da ginástica, homens capazes de vencer a injustiça reinante.36 A educação tinha um forte apelo moral por intermédio do conhecimento e prática das virtudes. A sabedoria está associada à vida virtuosa.

� OS SOFISTAS:37 Pedagogia elitizada,38 propícia e adequada apenas a quem pu-

desse pagá-los. Partindo do relativismo e subjetivismo,39 tinha como objetivo con-

33

Thomas Ransom Giles, Filosofia da Educação, p. 64. 34

Henri-Irénée Marrou, História da Educação na Antigüidade, São Paulo: E.P.U. (5ª reimpr), 1990, p. 35. 35

Henri-Irénée Marrou, História da Educação na Antigüidade, p. 42. 36

Platão, A República, 376e ss. p. 86ss. 37

A palavra "sofista" provém do grego Sofisth/j, que é derivada de Sofo/j (= “sábio”). Originariamente, ambas as palavras eram empregadas com uma conotação positiva. É importante lembrar que foram os próprios sofistas que se designaram assim. 38

"Já desde o começo a finalidade do movimento educacional comandado pelos sofistas não era a educação do povo, mas a dos chefes. No fundo não era senão uma nova forma da educação dos nobres (...). Os sofistas dirigiam-se antes de mais nada a um escol, e só a ele. Era a eles que acorriam os que desejavam formar-se para a política e tornar-se um dia dirigentes do Estado" (Werner Jaeger, Paidéia: A Formação do Homem Grego, 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 236). 39

A Retórica Sofística, inventada por Górgias (c.483-c.375 a.C.), era famosa. Górgias dizia: "A palavra é uma grande dominadora que, com pequeníssimo e sumamente invisível cor-po, realiza obras diviníssimas, pois pode fazer cessar o medo e tirar as dores, infundir a alegria e inspirar a piedade (...) O discurso, persuadindo a alma, obriga-a, convencida, a ter fé nas palavras e a consentir nos fatos (...) A persuasão, unida à palavra, impressiona a alma como quer (...) O poder do discurso com respeito à disposição da alma é idêntico ao dos remédios em relação à natureza do corpo. Com efeito, assim como os diferentes remédios expelem do corpo de cada um diferentes humores, e alguns fazem cessar o mal, outros a vida, assim também entre os discursos alguns afligem e outros deleitam, outros espantam, outros exci-tam até o ardor os seus ouvintes, outros envenenam e fascinam a alma com persuasões malvadas" (Górgias, Elogio de Helena, 8, 14). "Quanto à sabedoria e ao sábio, eu dou o nome de sábio ao indivíduo capaz de mudar o aspecto das coisas, fazendo ser e parecer bom para esta ou aquela pessoa o que era ou lhe parecia mau" (Palavras de Protágoras, conforme, Platão, Teeteto, 166d).

Page 12: Introducao a Educacao Crista 7

Introdução à Educação Cristã (7) – Rev. Hermisten – 12/04/10 – 12

vencer,40 persuadir o seu oponente independentemente da veracidade do argu-mento.41

� ARISTÓTELES (384-322 a.C.): Formar homens moderados, que tivessem zelo

pela ética e estética.42

� ROMANOS: Educação eminentemente prática, preparando o indivíduo para servir ao Estado.

� RENASCENÇA: Formar homens eruditos que soubessem ler e escrever em gre-

go, latim e, em alguns lugares o hebraico,43 tendo um estilo erudito, que pudes-sem contribuir para a criação do novo, tendo o homem como "medida de todas as coisas".

"Mas deixaremos de lado Tísias e Górgias? Esses descobriram que o provável deve ser mais respeitado que o verdadeiro; chegariam até a provar, pela força da palavra, que as cousas miúdas são grandes e que as grandes são pequenas, que o novo é antigo e que o velho é novo" (Platão, Fedro, 267). 40

"A sofística, que caracteriza os últimos cinqüenta anos do século V, não designa uma dou-trina, mas uma maneira de ensinar. Os sofistas são professores que vão de cidade em cida-de em busca de auditores e que, por preço convencionado, ensinam os alunos, seja por li-ções pomposas, seja por uma série de cursos, os métodos adequados a fazer triunfar uma tese qualquer. À pesquisa e à manifestação da verdade substitui-se a preocupação do êxi-to, baseado na arte de convencer, de persuadir, de seduzir" (Émile Bréhier, História da Filosofi-a, São Paulo: Mestre Jou, 1977, I/1 p. 69-70). 41

Vd. Platão, Teeteto, 166c-167d; Sofista, 231d; Mênon, 91c-92b; Fedro, 267; Protágoras, 313c; 312a; Crátilo, 384b; Górgias, 337d; A República, 336b; 338c. 42

Aristóteles, Ética a Nicômaco, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. IV), 1973, V.2, 1130b 26-27. p. 324 43

O hebraico, que era então ainda mais ignorado do que o grego e o latim, foi também redescoberto. Surgindo, então, as famosas escolas que ensinavam os três idiomas – em Lovaina (1517), Oxford (1517 e 1525), Paris (1530) –, visando formar o “homo trilinguis” (Vejam-se: Jacob Burckhardt, A Cul-tura do Renascimento na Itália: Um Ensaio, São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 154; Jean Delumeau, A Civilização do Renascimento, Lisboa: Editorial Estampa, 1984, Vol. I, p. 97). Foi assim que foi elaborada a primeira gramática hebraica escrita por um cristão, Reuchlin (1455-1522), em 1506. Não devemos nos esquecer também, que é deste período a publicação da “Bíblia Poliglota Complutense” – recebendo este nome por ter sido impressa em Complutum, forma latina da atual Al-calá, Espanha, onde Ximenes fundou uma Universidade –, que continha o Antigo Testamento em 3 idiomas, formatado em três colunas paralelas: Hebraico, latim (da vulgata) e grego (da LXX), tendo, também, uma tradução latina interlinear. Na parte inferior da página, constava do Novo Testamento em grego e latim. Esta obra sendo promovida pelo Cardeal Francisco Ximenes de Cisneros (1437-1517), foi iniciada em 1502 sendo concluída em 1517 (O NT estava concluído desde 1514), sendo constituída por seis volumes. Todavia, o papa Leão X só deu permissão para a sua circulação em 22/03/1520. Ao que parece, esta obra não chegou a Alemanha antes de 1522 e, Lutero não se utili-zou dela para a sua tradução do Novo Testamento (Vejam-se mais detalhes em: W.G. Kümmel, In-trodução ao Novo Testamento, São Paulo: Paulinas, 1982, p. 713-714; Wilson Paroschi, Crítica Textual do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 107-108; E. Lohse, Introdução ao No-vo Testamento, São Leopoldo, RS.: Sinodal, © 1972, p. 261; Hipólito Escolar, Historia del Libro, 2ª ed. corregida y ampliada, Salamanca/Madrid: Fundación Germán Sánchez Ruipérez/Pirámide, 1988, p. 416ss.). Quanto à disposição das três colunas da obra: Hebraico, Latim e Grego, “Cisneros dizia que adotara esta disposição para recordar o lugar que a Igreja romana ocupava entre a si-nagoga e a Igreja grega: posição análoga à do Cristo entre os dois ladrões!” (Jean Delume-au, A Civilização do Renascimento, Vol. I, p. 98).

Page 13: Introducao a Educacao Crista 7

Introdução à Educação Cristã (7) – Rev. Hermisten – 12/04/10 – 13

� ATUALIDADE: Formar homens competitivos, que alcancem o sucesso a qualquer preço. É claro que isto sofrerá alterações em cada área de estudo e, também, se-rá diferente entre os países, contudo, esta visão geral nos parece pertinente.

Retornando ao ensino bíblico, perguntamos: E nós, que tipo de homens somos?; que tipo de formação temos dado aos nossos filhos?; que tipo de formação a Igreja tem proporcionado à infância e à juventude? Que modelo temos apresentado? No-temos, que Paulo nos diz: “Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino (didaskali/a), para a repreensão, para a correção, para a educação (paidei/a) na justiça” (2Tm 3.16). Como já mencionamos, é neste sentido que Salomão diz: "O temor do Senhor é o princípio do saber, mas os loucos desprezam a sabedoria e o ensino (LXX: pai-dei/a)” (Pv 1.7; Vd. Pv. 9.10; 15.33; Sl 111.10). "Ouvi o ensino (LXX: paidei/a), sêde sábios, e não o rejeites” (Pv 8.33). A educação significa também "disciplina". Deus muitas vezes usa este recurso pa-ra nos educar, a fim de que sejamos salvos. Paulo diz: "Mas, quando julgados, so-mos disciplinados (paideu/w) pelo Senhor, para não sermos condenados com o mundo” (1Co 11.32). Na educação divina (disciplina), vemos estampada a Sua graça, não necessaria-mente a Sua ira,44 que atua de forma pedagógica: "Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens, educando-nos (paideu/w) para que, rene-gadas a impiedade e as paixões mundanas, vivamos no presente século, sensata, justa e piedosamente” (Tt 2.11-12) –; e o Seu amor. Jesus disse: "Eu repreendo (e)le/gxw) e disciplino (paideu/w) a quantos amo. Sê, pois, zeloso, e arrepende-te” (Ap 3.19). Aqui, como em outros textos, percebemos a ligação entre a repreensão e a disciplina (= educação) operada por Deus naqueles a quem Ele ama. Observem que o texto não fala da “ira” de Deus, que também é santa, antes, nos diz que a educação que Deus promove em Seus filhos é fruto da graça. É pela graça que Deus nos salva, nos educa, nos instrui, nos disciplina. Moisés, compreendendo bem a “didática” de Deus, diz ao povo: “Recordar-te-ás de todo o caminho, pelo qual o Senhor teu Deus te guiou no deserto estes quarenta anos, para te humilhar (hfnf(),45 para te provar, para saber o que estava no teu cora-ção (לבב) (lebab), se guardarias ou não os seus mandamentos. Ele te humilhou (hfnf(), e te deixou ter fome, e te sustentou com o maná, que tu não conheceste, nem teus pais o conheceram, para te dar a entender que não só de pão viverá o homem, mas 44

Veja-se: Augustus Nicodemus Lopes, Ensinar e Aprender em Paulo. In: Fides Reformata, (Edição Especial: Educação)São Paulo: Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, 13/2 (2008) 113-122, p. 120. 45

A palavra hebraica (hfnf() (‘ãnãh) tem o sentido de “aflito”, “oprimido”, com o sentimento de impotên-cia, consciente de que o seu resgate depende unicamente da misericórdia de Deus. Esta palavra é contrastada com o orgulho, que se julga poderoso para resolver todos os seus problemas, relegando Deus a uma posição secundária, sendo-Lhe indiferente. hfnf( (‘ãnãh) apresenta também a idéia de ser humilhado por outra pessoa: (Gn 16.6; 34.2; Ex 26.6; Dt 22.24,29; Jz 19.24; 20.5).

Page 14: Introducao a Educacao Crista 7

Introdução à Educação Cristã (7) – Rev. Hermisten – 12/04/10 – 14

de tudo o que procede da boca do Senhor, disso viverá o homem” (Dt 8.2-3. Do mesmo modo, Dt 8.16) (Vd. Sl 102.23; Is 64.12; Lm 3.33). O salmista narra a sua experiência: “Foi-me bom ter eu passado pela aflição (hfnf(), para que aprendesse (למד)(la ̂mad) os teus decretos” (Sl 119.71). As aflições corre-tamente compreendidas podem ser instrumentos utilíssimos para a prevenção e cor-reção de nossos desvios espirituais. O que a Palavra de Deus nos mostra, e por certo temos confirmado isto em nossa experiência, é que buscamos a Deus mais intensamente em meios às aflições: “Es-tou aflitíssimo (hfnf(), vivifica-me, Senhor, segundo a tua palavra” (Sl 119.107). “Antes de ser afligido (hfnf(), andava errado, mas agora guardo a tua palavra” (Sl 119.67). O coração contrito – demonstra Moisés – aprende com a disciplina do Senhor e se alegra por Deus tê-lo afligido: “Alegra-nos por tantos dias quantos nos tens afligi-do (hfnf(), por tantos anos quantos suportamos a adversidade” (Sl 90.15).

O desejo de Deus é a restauração de Seus filhos. Neste sentido, Paulo recomen-da ao jovem Timóteo como deveria agir com aqueles que se opunham à mensagem do Evangelho: "Disciplinando (paideu/w = “ensinando”, “instruindo”) com mansidão os que se opõem, na expectativa de que Deus lhes conceda não só o arrependimen-to para conhecerem plenamente a verdade, mas também o retorno à sensatez, li-vrando-se eles dos laços do diabo, tendo sido feitos cativos por ele, para cumprirem a sua vontade” (2Tm 2.25-26).

Morton faz um quadro comparativo relevante, mostrando porque os grandes sis-

temas educacionais da Antiguidade fracassaram, enquanto que o de Israel não:

“Pode-se dizer que o sistema de Esparta apontou para a destruição do indivíduo no serviço ao estado. Pode-se dizer que o sistema de Atenas a-pontou para treinar o indivíduo no serviço da cultura. Em Roma, o treina-mento do indivíduo foi no serviço do estado. O objetivo de Israel foi treinar o indivíduo no serviço de Deus. O objetivo em Roma, Esparta e Atenas ma-logrou em um nível moral. O sistema deles não continha a fé capaz de de-safiar indiferença e superficialidade. Portanto, eles perderam senso de di-reção e falharam. (...) A educação judaica nunca perdeu seu senso de di-reção. A sua intenção não era educação em conhecimento acadêmico e técnico, mas educação em santidade (Lv 19.2). Apesar do povo de Is-rael frequentemente esquecer os ideais, sempre houve sacerdotes, profe-tas, escribas, sábios, rabinos e professores para relembrá-los. Deus era o centro e não homem; retidão era o alvo e não o interesse próprio (Ex 19.6)”.46

46

A.W. Morton, Educação nos Tempos Bíblicos: In: Merrill C. Tenney, org. ger., Enciclopédia da Bí-blia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, Vol. 2, p. 263.

Page 15: Introducao a Educacao Crista 7

Introdução à Educação Cristã (7) – Rev. Hermisten – 12/04/10 – 15

2) O Sentido de Justiça:

“Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para (...) a educação (pai-dei/a) na justiça (dikaiosu/nh)" (2Tm 3.16). Temos visto que a palavra "Educação" (paide/ia) significa "educação das crian-ças", e tem o sentido de treinamento, instrução, disciplina, ensino, exercício. Vimos também que o ideal de Deus para a nossa formação é nos fazer "sábios". Ser sábio conforme a sabedoria de Deus é o mesmo que ser educado na justiça (2Tm 3.16). Ou, como disse Calvino (1509-1564): "instrução na justiça significa instrução numa vida piedosa e santa".47 Paulo está nos dizendo que a Escritura é útil para o nosso treinamento na justiça. Aqui algumas perguntas se configuram como de su-ma importância para a continuação de nosso estudo: O que significa justiça? Qual o sentido da palavra empregada por Paulo? E, qual o sentido bíblico desta justiça? A palavra "justiça" adquire na Bíblia o sentido de "retidão". Proceder justamente significa agir conforme o caráter de Deus, Aquele que é justo absolutamente: "....Deus é fidelidade, e não há nEle injustiça: é reto e justo (LXX: di/kaioj)” (Dt 32.4). O Antigo Testamento, indicando a justiça de Deus manifesta em Seu Reino, de-clara, numa linguagem figurada, que: "Justiça (LXX: dikaiosu/nh) e direito são o fundamento do teu trono; graça e verdade te precedem” (Sl 89.14). A justiça é o fun-damento do Seu governo: ".... Justiça (dikaiosu/nh) e juízo são a base do seu trono" (Sl 97.2). Deste modo, o nosso "treinamento na justiça" indica a nossa busca por um com-portamento semelhante ao modelo de Deus. A educação que Deus nos dá por meio da Sua Palavra visa o nosso envolvimento, o nosso compromisso com os Seus pre-ceitos. A justiça operada por Deus é sempre decorrente da Sua Palavra; portanto, “Ne-nhum outro jamais se apropriará corretamente da justiça divina senão aque-le que a abraça como ela lhe é oferecida e apresentada na Palavra”.48 De-sejar a justiça de Deus significa desejar o cumprimento da promessa de Deus. A educação na justiça não consiste apenas na tentativa de um melhoramento mo-ral, antes é o estabelecimento de um novo modelo, resultante da nova natureza que foi implantada em nosso coração pelo Espírito, como fruto da obra sacrificial e vitori-osa de Cristo. "Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que nele fossemos feitos justiça (dikaiosu/nh) de Deus” (2Co 5.21). Por meio do sacrifício vicário de Cristo fomos declarados justos diante de Deus; por isso é que a Escritura afirma que Cristo é a nossa justiça: "...Vós sois dele [de Deus], em Cristo Jesus, o qual se tornou da parte de Deus sabedoria, e justiça (di-

47

J. Calvino, As Pastorais, (2Tm 3.16), p. 264. 48

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 40.10), p. 233.

Page 16: Introducao a Educacao Crista 7

Introdução à Educação Cristã (7) – Rev. Hermisten – 12/04/10 – 16

kaiosu/nh), e santificação e redenção” (1Co 1.30). Na justificação Deus nos declara justos, perdoando todos os nossos pecados, os quais foram pagos definitivamente por Cristo; por isso, já não há nenhuma condenação sobre nós; estamos em paz com Deus amparados pela justiça de Cristo (Vd. Rm 5.1; 8.1,31-33). Na justificação Deus declara que já não há mais culpa em nós.

Deus nos gerou em Cristo para a prática da justiça de Cristo. "Carregando ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados, para que nós, mortos aos pecados, vivamos para a justiça (dikaiosu/nh); por suas chagas fostes sarados” (1Pe 2.24). A prática do "caminho da justiça" (2Pe 2.21) tornou-se o sinal inconfun-dível de todos os que pertencem a Cristo: "Se sabeis que ele [Jesus] é justo

(di/kaioj), reconhecei também que todo aquele que pratica a justiça (dikaiosu/nh) é nascido dele (...). Filhinhos, não vos deixeis enganar por ninguém; aquele que prati-ca a justiça (dikaiosu/nh) é justo (di/kaioj), assim como ele é justo (di/kaioj) (...). Nisto são manifestos os filhos de Deus e os filhos do diabo: todo aquele que não pratica justiça (dikaiosu/nh) não procede de Deus, também aquele que não ama a seu irmão" (1Jo 2.29; 3.7,10). Os critérios de justiça variam de povo para povo e até mesmo conforme os nos-sos interesses pecaminosos. A nossa mente tem a capacidade de usar um recurso chamado de "mecanismo de defesa", que consiste na racionalização, que nada mais é do que a tentativa de justificar as nossas crenças já dogmatizadas pelos nossos desejos. Por isso é que a justiça que devemos seguir não é a de homens, conforme os seus pecados e/ou nossos interesses, mas, sim, a justiça de Deus. É neste senti-do que Jesus nos adverte quanto à "justiça" dos escribas e fariseus. “.... Se a vossa justiça (dikaiosu/nh) não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entra-reis no reino dos céus” (Mt 5.20). A justiça destes homens visava tão somente satisfazer os seus próprios desejos de serem vistos e admirados como homens "piedosos" e geniais "intérpretes da lei". Jesus novamente nos adverte: "Guardai-vos de exercer a vossa justiça (dikaio-su/nh) diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles; doutra sorte não te-reis galardão junto de vosso Pai celeste” (Mt 6.1-2). Por isso a Bíblia nos ensina enfaticamente, que a justiça que devemos seguir é a de Deus, conforme é-nos ensinada por Jesus Cristo; e "a justiça exigida por Cristo é nada menos que uma completa conformidade com a santa lei de Deus".49 Lembremo-nos de que o Senhor conhece os nossos corações, sabendo de nossas intenções e motivações (Jo 2.25). E é Ele mesmo Quem nos julgará com justiça. Paulo insiste com o jovem Timóteo neste ponto: ".... Segue a justiça (dikaio-su/nh), a piedade, a fé, o amor, a constância, a mansidão” (1Tm 6.11). "Foge (feu/gw),50outrossim, das paixões da mocidade. Segue (diw/kw) a justiça (dikaio-su/nh), a fé, o amor e a paz com os que de coração puro, invocam o Senhor” (2Tm

49

G. Hendriksen, El Evangelio Segun San Mateo, Grand Rapids, Michigan: Subcomision Literatura Cristiana, 1986, p. 307. 50

O verbo, no presente imperativo, indica uma ação que deve se tornar um hábito de vida.

Page 17: Introducao a Educacao Crista 7

Introdução à Educação Cristã (7) – Rev. Hermisten – 12/04/10 – 17

2.22). O verbo seguir (diw/kw)51 é extremamente forte, indicando no texto que devemos buscar intensamente a justiça, persegui-la constante e intensamente. Significa, en-tão, que isto não é fácil. Buscar praticar a justiça quando ainda temos inclinação pa-ra o pecado, é extremamente difícil. Daí a ênfase: buscar, empenhar-se, perseguir intensamente a prática da justiça de Deus em todas as nossas relações, em todos os nossos atos. A Palavra de Deus nos instrui na justiça, a fim de que o nosso viver seja caracte-rizado pelos frutos da justiça. Isto equivale a dizer que a justiça de Cristo em nós se revela no agir; ela frutifica em nosso comportamento. A vontade de Deus é que reve-lemos a Sua justiça em nós por intermédio de nossa fé e de nossas atitudes, de-vendo ser estas, evidências daquela. Paulo escreve aos efésios: "...Quanto ao trato passado, vos despojeis do velho homem, que se corrompe segundo as concupis-cências do engano, e vos renoveis no espírito do vosso entendimento, e vos revis-tais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça (dikaiosu/nh) e retidão pro-cedentes da verdade. Por isso, deixando a mentira, fale cada um a verdade com o seu próximo (...). Aquele que furtava, não furte mais; antes trabalhe (...). Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, e, sim, unicamente a que for boa para a edifica-ção (...). Não entristeçais o Espírito de Deus (...). Longe de vós toda a amargura, e cólera, e ira, e gritaria, e blasfêmias, e bem assim toda a malícia. Antes sede uns pa-ra com os outros benignos, compassivos, perdoando-vos uns aos outros, como tam-bém Deus em Cristo vos perdoou....” (Ef 4.22-31). Neste texto, Paulo apresenta diversos frutos da justiça que consistem basicamen-te no abandono do pecado e na prática da justiça. A justiça de Cristo frutifica em nós por meio da mudança de paradigma, que consiste numa mudança de valores e comportamento. Aos mesmos efésios Paulo diz: "....Outrora éreis trevas, porém ago-ra sois luz no Senhor; andai como filhos da luz, porque o fruto da luz consiste em to-da a bondade, e justiça (dikaiosu/nh), e verdade, provando sempre o que é agradá-vel ao Senhor" (Ef 5.8-10).

O cristão é responsável por descobrir diariamente – orientado pela Palavra –, a a-titude ética correta condizente com a sua nova natureza que reflita a justiça de Cris-to, sendo agradável a Deus. Deus se agrada com a nossa integridade em servi-Lo; com a nossa busca por fazer a Sua vontade, mesmo nas mínimas coisas. O desafio de todo aquele que deseja fazer a vontade de Deus é aplicar a Sua Palavra à sua realidade diária, aos desafios de nossa vida social, profissional, familiar, estudantil e afetiva. Jesus Cristo nos diz que pelos frutos nós conhecemos a qualidade de uma árvo-

51

O verbo está no presente imperativo ativo. Associando-se o fugir ao seguir, temos um comporta-mento constante e complementar que deve fazer parte da conduta cristã. Diw/kw é utilizado sistema-ticamente para aqueles que perseguiam a Jesus, os discípulos e a Igreja (Mt 5.10-12; Lc 21.12; Jo 5.16; 15.20). Lucas emprega este mesmo verbo para descrever a perseguição que Paulo efetuou contra a Igreja (At 22.4; 26.11; 1Co 15.9; Gl 1.13,23; Fp 3.6), sendo também a palavra utilizada por Jesus Cristo quando pergunta a Saulo do porquê de sua perseguição (At 9.4-5/At 22.7-8/At 26.14-15). Paulo diz que prosseguia para o alvo (Fp 3.12,14). O escritor de Hebreus diz que devemos perseguir a paz e a santificação (Hb 12.14). Pedro ensina o mesmo a respeito da paz (1Pe 3.11).

Page 18: Introducao a Educacao Crista 7

Introdução à Educação Cristã (7) – Rev. Hermisten – 12/04/10 – 18

re; e aplica este exemplo à vida espiritual. Deste modo, o nosso desejo de agradar a Deus será demonstrado em nossa prática, condizente com a Sua justiça. "Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se, porventura, uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos? Assim toda árvore boa produz bons frutos, porém a árvore má produz frutos maus. Não pode a árvore boa produzir frutos maus, nem a árvore má produzir frutos bons (...). Assim, pois, pelos seus frutos os conhecereis. Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7.16-18,20,21). O apóstolo Paulo nos fala do fruto do Espírito como uma característica dos filhos de Deus; daqueles que andam no Espírito: "O fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio....” (Gl 5.22-23). Paulo ora a Deus pelos filipenses, para que eles se apresentassem diante de Cristo "sinceros e inculpáveis", tendo a responsabilidade de viverem hoje, "cheios do fruto de justiça". "E também faço esta oração: que o vosso amor aumente mais e mais em pleno conhecimento e toda a percepção, para aprovardes as cousas exce-lentes e serdes sinceros e inculpáveis para o dia de Cristo, cheios do fruto de justiça (dikaiosu/nh), o qual é mediante Jesus Cristo, para a glória e louvor de Deus” (Fp 1.9-11). Portanto, nós como justificados em Cristo, devemos frutificar em toda boa obra de justiça, evidenciando a habitação do Espírito em nós em todas as áreas de nosso vi-ver.

E) ÚTIL PARA CONCEDER-NOS DISCERNIMENTO E SABEDORIA: Sabedoria consiste na habilidade de saber usar os recursos que temos; discernimento está ligado à capacidade de interpretar os fatos, entender o que está acontecendo, saber distinguir, separar os eventos em suas relações causais ou aci-dentais. Deus, por intermédio da Sua Palavra, nos dá sabedoria espiritual e discernimento para que possamos reconhecer nos Seus testemunhos a Palavra de vida eterna; a fim de que vejamos com clareza os sinais dos tempos, sem nos deixar levar por fal-sas doutrinas engenhosamente criadas pelos homens, seguindo sabiamente o ca-minho de Deus. Podemos citar alguns testemunhos de servos de Deus que usufruíram deste dis-cernimento: Davi: "A lei do Senhor é perfeita, e restaura a alma; o testemunho do Senhor é fiel, e dá sabedoria aos símplices” (Sl 19.7). O salmista: "A revelação das tuas palavras esclarece e dá entendimento aos simples” (Sl 119.130). "Por meio dos teus preceitos consigo entendimento; por isso detesto todo caminho de falsidade” (Sl 119.104). Paulo, escrevendo ao jovem Timóteo, recorda o aprendizado deste nas Escritu-ras, dizendo: “.... desde a infância sabes as sagradas letras que podem tornar-te sá-bio para a salvação pela fé em Cristo Jesus” (2Tm 3.15).

Page 19: Introducao a Educacao Crista 7

Introdução à Educação Cristã (7) – Rev. Hermisten – 12/04/10 – 19

O que tem faltado à Igreja é sabedoria para discernir, por intermédio da Palavra de Deus, o que está acontecendo. A Bíblia não é um manual hermético repleto de "regrinhas" fechadas e acabadas, para cada e toda situação; ela é de fato o Livro por excelência, com princípios eternos para todas as situações de nossa vida. Muitas vezes temos sido iludidos, enganados espiritualmente, justamente porque nos tem faltado a meditação na Palavra de Deus, acompanhada pela oração para que Deus nos dê a compreensão dos fatos, da Sua vontade para o nosso momento presente. Diz o salmista: "Os teus mandamentos me fazem mais sábio que os meus inimi-gos; porque aqueles eu os tenho sempre comigo. Compreendo mais do que todos os meus mestres, porque medito nos teus testemunhos. Sou mais entendido que os idosos, porque guardo os teus preceitos. De todo mau caminho desvio os meus pés, para observar a tua palavra” (Sl 119.98-101). Deus não deseja um povo ingênuo, imaturo quanto à interpretação da realidade; Ele quer que sejamos maduros, aptos para discernir, interpretar os acontecimentos e que, sem titubear, sigamos os Seus preceitos. Esta sabedoria espiritual exige um laborioso processo de compreensão, enten-dimento e prática da verdade. Portanto, a nossa sabedoria consiste em nos subme-ter às Escrituras. Lutero (1483-1546) constatou acertadamente: “quão grande dano tem havido quando se tenta ser sábio e interessante sem ou acima da Escritura”.52 O caminho da sabedoria é o caminho da santidade. Se nós queremos ser santos, devemos buscar na Palavra de Deus a coragem para cumprir os Seus decretos, o ânimo para não nos abatermos com as ciladas do diabo, e o discernimento e sabe-doria para que possamos interpretar a Palavra de Deus, avaliando os fatos, e apli-cando os princípios eternos de Deus à nossa realidade cotidiana.

Maringá, 11/12 de abril de 2010. Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

52

Lutero, Apud Phillip J. Spener, Mudança para o Futuro: Pia Desideria, Curitiba, PR./São Bernardo do Campo, SP.: Encontrão Editora/Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, 1996, p. 43.