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Introdução às Origens do Haṭha Yoga Não há como afirmar quando o Yoga teve início por duas razões. A primeira é referente à tradição oral do Yoga Śastra. A tradição védica na qual o Yoga está inserido , apesar de estar fundamentada no cânone de escrituras sagradas mais extenso e antigo da humanidade pelo qual hoje há um mínimo consenso acadêmico sobre quando estas escrituras foram geradas, tem sua origem em uma longa tradição oral antes que houvesse necessidade de registrar por escrito seus versos. Ninguém pode dizer quando esta tradição teve início. Filosofia Perene Śiva Natarāja Para entendermos a segunda razão, temos que conceber o Yoga de forma mais profunda. Os limites impostos pelas vicissitudes da natureza sempre geraram no homem um aflitivo conflito existencial, como também um ímpeto de os transcender em prol de uma verdade ontológica mais profunda e libertadora. Tal ímpeto é inerente ao homem e independe da forma cultural em se manifesta. De uma maneira ampla, todo empenho que parte deste ímpeto pode ser descrito como Yoga, e desta forma o Yoga é tão antigo quanto o homem em si. Esta visão é belamente simbolizada nos mitos de origem do Yoga que o atribuem à deidade Śiva, que em algumas tradições é descrita como a manifestação do Ser que dá a qualidade entrópica ao universo, embora nas tradições mais diretamente relacionadas ao Yoga (especialmente à sistemas como o Haṭha Yoga), é vista como o próprio Ser. Isto nos faz compreender que o empenho do homem pela Verdade do Ser tem dupla genetriz: a dor de perceber que tudo em que ele preza tende inevitavelmente à transitoriedade, porém uma certeza íntima que além do mundo dos fenômenos existe uma verdade eterna onde o homem pode depositar sua confiança. Esta certeza não pode ser uma abstração mental, pois o finito não pode conceber o infinito. Ela vem do coração do homem onde habita

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Introdução às Origens do Haṭha Yoga

Não há como afirmar quando o Yoga teve início por duas razões. A primeira é referente à tradição oral do Yoga Śastra. A tradição védica na qual o Yoga está inserido , apesar de estar fundamentada no cânone de escrituras sagradas mais extenso e antigo da humanidade pelo qual hoje há um mínimo consenso acadêmico sobre quando estas escrituras foram geradas, tem sua origem em uma longa tradição oral antes que houvesse necessidade de registrar por escrito seus versos. Ninguém pode dizer quando esta tradição teve início.

Filosofia Perene

Śiva NatarājaPara entendermos a segunda razão, temos que conceber o Yoga de forma mais profunda. Os limites impostos pelas vicissitudes da natureza sempre geraram no homem um aflitivo conflito existencial, como também um ímpeto de os transcender em prol de uma verdade ontológica mais profunda e libertadora. Tal ímpeto é inerente ao homem e independe da forma cultural em se manifesta. De uma maneira ampla, todo empenho que parte deste ímpeto pode ser descrito como Yoga, e desta forma o Yoga é tão antigo quanto o homem em si.

Esta visão é belamente simbolizada nos mitos de origem do Yoga que o atribuem à deidade Śiva, que em algumas tradições é descrita como a manifestação do Ser que dá a qualidade entrópica ao universo, embora nas tradições mais diretamente relacionadas ao Yoga (especialmente à sistemas como o Haṭha Yoga), é vista como o próprio Ser. Isto nos faz compreender que o empenho do homem pela Verdade do Ser tem dupla genetriz: a dor de perceber que tudo em que ele preza tende inevitavelmente à transitoriedade, porém uma certeza íntima que além do mundo dos fenômenos existe uma verdade eterna onde o homem pode depositar sua confiança. Esta certeza não pode ser uma abstração mental, pois o finito não pode conceber o infinito. Ela vem do coração do homem onde habita o Ser, que o atrai para a descoberta do Si Mesmo através da auto-investigação denominada ātma vicāra.

A palavra "Yoga" aparece em um texto pela primeira vez no Ṛg Veda, cânone que tem possivelmente 4500 anos de idade, em um contexto diferente do qual a usamos. Como a "união ou identificação do ser vivente com o Ser Universal",  sua primeira aparição é no Taittirīya Upaniṣad, há 3000 anos. No século II a.C., o sábio Patañjali compilou um sistema prático e filosófico denominado Aṣtāṅga Yoga (Yoga de Oito Membros) em seu texto Yoga Sūtra. E há cerca de 600 anos atrás, começaram a aparecer os primeiros textos de Haṭha Yoga, dentre os quais os mais conhecidos são o Haṭha Yoga Pradīpikā, o Gheraṇda Saṁhitā e o Śiva Saṁhitā.

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O Corpo como Sagrado e a Serpente Enrodilhada

O Haṭha Yoga faz parte da tradição tântrica indiana. O Tantra é uma escola pensamento que como fenômeno literário, surgiu apenas na baixa idade média indiana, por volta do século VIII d.C., porém mistura elementos pré-históricos da cultura aborígene indiana com o pensamento védico. A premissa básica do Tantra é uma visão monista do universo, onde o Ser (denominado Śiva) e a Força da Natureza (denominada Śakti), em última análise são dois nomes para a mesma realidade. A natureza material então não é irreal (como considerada por outras escolas de pensamento védico), mas manifestação física de realidades mais sutis. Esta sacralização da natureza acaba por dar ao adepto uma visão, no contexto da religião bramânica, revolucionária de seu próprio corpo - visto como sagrado, ele é tido não como a fonte de misérias, paixões, doenças e mortalidade, mas instrumento de salvação. Através do Haṭha Yoga, aspira-se o transubstanciar em vajra deha, o "corpo adamantino", veículo capaz de conduzir as energias sutis de alta frequência que levam sādhaka a sua realização no Yoga.

GorakṣanāthaOs sistemas de Yoga associados ao tantrismo têm como ponto em comum o objetivo de atingir a percepção do Ser e a libertação (mokṣa) através do processo de liberação do potencial energético latente na base da coluna vertebral do homem, a kuṇḍalinī, e o Haṭha Yoga não é diferente. A palavra "Haṭha" quer dizer "força" ou "esforço", e se refere ao fato de que seus métodos para obter êxito no Yoga dependerem de um trabalho físico. Sua denominação também está ligada às sílabas-semente ham e ṭham, cujo som tem influência vibratória respectivamente nas nāḍīs idā e piṅgalā, as correntes energéticas lunar e solar. O objetivo do Haṭha Yoga é equilibrar estas correntes, purificando o corpo e seus centros cérebro espinais de suas impressões subconscientes latentes e abrir suśumnā nāḍī, corrente energética principal do corpo humano presente na coluna, para que, poeticamente, "a noiva vá até o amado" - kuṇḍalinī śakti chegue aos mais elevados centros cérebro-espinais, desperte os potenciais psíquicos do homem e esclareça sua percepção em direção à Autorrealização. 

A origem do Haṭha Yoga tradicionalmente está associada a Gorakṣanātha e seu mestre Matsyendranātha, que fundaram a linhagem Nātha e viveram por volta do século X d.C.. Este venerável yogi têm grande mérito em sistematizar suas técnicas e fundar a escola que propagou seu legado, e provavelmente ele ou seu mestre é responsável pelo cunho do termo “Haṭha Yoga” (os primeiros textos de Haṭha Yoga são atribuídos à Gorakṣa,  precedendo o Haṭha Yoga Pradīpikā, incluindo um que se perdeu denominado justamente  “Haṭha Yoga”). O nāthismo atribui o início de sua ordem a Adīnātha, o “nathā primordial”, que seria o próprio Śiva, passando seus ensinamentos diretamente para Matsyendra. A vida de Gorakṣanātha é recoberta de mitos, e ele é venerado como um mestre divino e siddha (ser perfeito, realizado) em toda a Índia e também no Tibete. 

O Senhor das Feras e a Cidade Perdida

Porém, há muitas evidências que indicam que os métodos corporais e bioenergéticos expostos nos textos clássicos de Haṭha Yoga precedam em muito a idade média. O próprio Yoga Sūtra tem vários aforismos expondo o controle da energia vital e meditações nos centros cérebro-espinais, algo característico do Haṭha Yoga. Poucos séculos antes a Śvetāśvatara Upaniṣad foi escrita, com versos sobre estabilidade corporal, controle da energia vital, e os benefícios do trabalho corporal através do Yoga. Até mesmo o

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épico  Bhagavadgītā, que foi composto entre os séculos V e VI a.C. mas narra uma batalha (e em seus versos, um diálogo) ocorrido em 1500 a.C., no verso IV:29 menciona a união de prāṇa e apāna como meio de liberação. Este é um fenômeno energético o qual pode-se dizer que é o objetivo do praticante avançado de Haṭha Yoga e de suas ciências irmãs. 

Selo de PaśupatiMas a mais antiga pista que nos faz imaginar quão antigos estes métodos podem ser vem das escavações em Mohenjo-Daro, sítio arqueológico datado de 2800 a.C. no Paquistão descoberto da década de 20. A cidade perdida demonstrou surpreendente avanço cultural da civilização do Indo-Saraswatī, sendo uma metrópole de 2,5 quilômetros quadrados de rigoroso planejamento urbano, com um sofisticado sistema de drenagem e esgoto e edifícios de 3 andares construídos com tijolos cozidos no forno. Algo que fascinou os estudiosos foram os selos de pedra-sabão e terracota demonstrando divindades sentadas à maneira dos yogis, particularmente, o Selo de Paśupati ("Senhor das Feras"), que não só retrata uma divindade sentada em uma postura ritual semelhante à bhadrāsana, mas que alguns pesquisadores a identificam como Śiva, o yogi primordial arquetípico.

Luz no Haṭha Yoga

O texto clássico mais conhecido de Haṭha Yoga é o Haṭha Yoga Pradīpikā (seu título quer dizer “Luz no Haṭha Yoga”), escrito no século XV por Swami Svātmārāma. Logo de início, no primeiro verso, o autor demonstra sua ligação ao nāthismo, prestando homenagem ao “guru primordial” Adīnātha, e no quarto verso dá créditos à origem do conhecimento que expõe a Matsyendranātha e Gorakṣanātha. No primeiro verso ainda, há uma menção interessante: Svātmārāma apresenta o Haṭha Yoga como uma “escadaria que conduz ao elevado Raja Yoga”. Raja Yoga é o “Yoga Régio”, título que o aponta ao mais elevado Yoga. O termo é conhecido hoje como um sinônimo do Aṣtāṅga Yoga de Patañjali. Não sabemos o que o autor quis dizer com isso, provavelmente à finalidade do Haṭha Yoga, o samādhi (estado* extático de percepção do Ser) através do despertar do potencial energético latente na base da coluna (como o samādhi é tratado na tradição em que se apóia o nāthismo). O termo Raja Yoga designando o Aṣtāṅga Yoga só seria dado no século XIX por Swami Vivekananda, o primeiro mestre a ensinar o Sanātana Dharma na América. Contudo, o Haṭha Yoga, que por si só inclui técnicas de meditação e por si só tem o potencial o sādhaka à Autorrealização, serve como excelente via de preparo psicofísico caso o praticante queira seguir o Aṣtāṅga Yoga**.

Um grande diferencial do Yoga Sūtra de Patañjali para o Haṭha Yoga Pradīpikā é que apesar de ambos oferecerem uma lista de prescrições e proscrições comportamentais indicadas para o êxito no Yoga, no primeiro isto aparece como pré-requisito para suas práticas posteriores, enquanto o Haṭha Yoga Pradīpikā enfatiza a purificação corporal por meio de ṣaṭkarma e o trabalho postural e de regulação do fluxo bioenergético através, respectivamente, de āsana e prānāyāma. O código comportamental do Haṭha Yoga, visando ética, bem-estar coletivo e individual e atitudes inteligentes para o sucesso da meta do Yoga, é tratado no primeiro capítulo mas não é tido como pré-requisito. Após estas primeiras instâncias, os capítulos seguintes ocupam-se de técnicas avançadas para o despertar de kuṇḍalinī śakti como mudrā (“selos” corporais de direcionamento bioenergético) e bandha (contrações corporais), e culmina numa descrição de Nāḍā e Lāyā Yoga (descritos no texto “Brahmaṇidhāna: uma Explanação Sobre Nāḍā e Lāyā Yoga”) e do samādhi. Como podem perceber, o Haṭha Yoga é um sistema completo que leva à finalidade de todo sistema de Yoga, por uma abordagem tântrica. Nāḍā e Lāyā Yoga são sinônimos de Kuṇḍalinī Yoga, e pode-se dizer que esta ciência e o Haṭha Yoga tradicional são, na prática, idênticos.

Haṭha Yoga Contemporâneo

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Segundo Swami Satyananda Saraswati, um dos maiores mestres tântricos do século XX, a corrente lunar governa o psiquismo (o antaḥkaraṇa e suas partes) enquanto a corrente solar governa a fisiologia do corpo (pañcaprāṇa). Sua sucessora Swami Satyasangananda Saraswati, durante uma palestra no Brasil, ensinou que o Haṭha Yoga equilibrando perfeitamente o complexo mente-corpo faz o praticante viver nem em introspecção aprisionante, nem em extroversão impulsiva, mas com uma qualidade de presença e atenção plena (mindfulness). Como o Yoga é definido em dois célebres textos, é bastante facilitada a "perfeição na ação" que é o que nos torna livres mesmo em atividade na vida, e a "cessação [da identificação com] a atividade mental", possibilitando o processo de introspecção, concentração, meditação e samādhi.

Swami Sivananda Saraswati (esq.) e Swami Vishnudevananda Saraswati (dir.)No século XX, os grandes expoentes do Haṭha Yoga foram Srí Tirumalai Krishnamacharya  (mestre de K. Pattabhi Jois, difusor do método Ashtanga Vinyasa Yoga) e Swami Sivananda Saraswati, que dentre seus discípulos mais conhecidos, estão Swami Satchidananda Saraswati, que fundou o método Yoga Integral, Swami Vishnudevananda  Saraswati, fundador das escolas de Sivananda Yoga que existem pelo mundo inteiro, e  Swami Satyananda Saraswati, fundador da Bihar School of Yoga. Escolas como estas influenciaram a tornar o Haṭha Yoga o sinônimo “top of mind” de Yoga no ocidente, que teve sua aceitação e difusão talvez pela mesma razão da sua proposta original - sem a necessidade prévia de restrições comportamentais ou inquerimentos filosóficos profundos, o aspirante através dos métodos psicofísicos vem a transformar sua mente de maneira que o qualifique espontaneamente para viver de acordo com a paz e a estabilidade que é sua verdadeira natureza.

* “Esta firmeza calma dos sentidos chama-se Yoga. Mas deve estar atento, pois o Yoga vem e vai”. - Kaṭha Upaniṣad II:3:11. Embora o yogi realizado entre e saia de samādhi, em rigor técnico é incorreto chamá-lo de “estado”. Os estados da consciência de sono, sonho e vigília são os três sustentados por turīya, que não é outro estado da consciência, mas a consciência em si, em seu aspecto natural, puro e não-alterado pelos outros três. Quando o yogi realiza turīya através da suspensão da identificação com os processos mentais, percebe que isto não é um estado que começa e termina, mas a verdade contínua e subjacente aos três estados, não percebida pela identificação da consciência com um deles, como o silêncio onipresente por trás das perturbações sonoras.

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** Não confundir com o Ashtanga Vinyasa Yoga, estilo de Haṭha Yoga caracterizado por posturas dinâmicas, difundido por K. Pattabhi Jois e muito popular no ocidente, de alta adesão nas academias de ginástica.

Postado por Diogo Ralston às 16:57 Nenhum comentário: Enviar por e-mail BlogThis! Compartilhar no Twitter Compartilhar no Facebook Compartilhar com o Pinterest Marcadores: Yoga (Haṭha Yoga), Yoga (Tantra)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O Mal do Século: A Dor que Conduz ao Ser - Parte II

Parte II - O Sofrimento na Visão do Yoga e sua Extinção

“Toda ciência que não se ocupa da Libertação é inútil”.Rājamārtaṇḍa, IV:22

Na primeira parte do texto, foi introduzida a questão dos grandes números de casos diagnosticados de transtornos de ansiedade e depressão, como isto pode estar relacionado com alguns fatores da sociedade pós-moderna, e a abordagem da filosofia existencial quanto à questão de angústia. Foi também discutido o trabalho do teólogo alemão existencialista Paul Tillich e sua concepção das três ansiedades fundamentais que ameaçam o existência do homem denunciando sua finitude, o “não-ser” no homem, e como nossos medos têm não só suas raízes na ansiedade existencial, mas são medidas para evitar o confronto com esta ameaça de ordem mais abstrata, estabelecendo relações com objetos de medo muitas vezes criados com este fim. A primeira parte do texto é  concluída com a importância da “coragem de ser”, como Tillich a chama, uma coragem existencial que visa afirmar o ser a despeito do não-ser. 

Esta segunda parte se dedica a mostrar como a coragem pode levar a um caminho de comunhão com o Ser*, e a erradicação completa da angústia. Dois mil anos antes destes autores existencialistas exporem suas obra, em uma terra a milhares de quilômetros de distância da Europa ou da América do Norte, um texto com idéias talvez semelhantes era compilado. Sua origem é envolta de controvérsias - estudiosos contemporâneos não concordam com a data de sua compilação, com uma margem de possibilidade de oito séculos, mas o consenso é que deve ter sido escrito por volta de dois séculos antes de cristo. Sua autoria, mais coberta de mistério ainda - não se sabe quase nada sobre seu autor, ou ele foi mesmo o autor, e para densificar esta névoa, o autor em sua terra natal é deitificado, envolto em lendas e mitos. Contudo ele recebe o título de mahaṛṣi - “grande sábio” - o admitimos então como tal. Seu nome é Patañjali, e o texto cujo mérito é a ele atribuído é o Yoga Sūtra, os Aforismos do Yoga, a referência mais conhecida e completa de Yoga, um dos darśanas (“pontos de vista”) da antiga filosofia védica.

Agora, o Ensinamento do Yoga

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Patañjali MahaṛṣiPatañjali é visto como um “compilador” pois as idéias expostas em seus sūtras antecedem o seu texto. São idéias que aparecem de forma mais espalhada em outras escrituras védicas, e estas tendem a serem passadas em uma longa tradição oral antes de serem transcritas. Porém, a virtude do Yoga Sūtra é a sua organização, objetividade e precisão em expôr o Yoga em sua definição, objetivo e processos, em um sistema denominado aṣtāṅga - “oito membros”, referente à sua sistematização em oito partes de como um aspirante chega à meta do Yoga.

E esta meta suprema é o samādhi, a realização da verdade sobre o Si Mesmo que leva à mokṣa, a libertação do sofrimento existencial. Logo no início do primeiro capítulo o Yoga é definido em dois dos mais conhecidos aforismos deste texto:

“yogaśchittavṛttinirodaḥ | | 2 | |Yoga é a cessação da [identificação com] as modificações da consciência.

tadā draṣṭuḥ svarūpe’ vasthānam | | 3 | |Então, aquele que vê se estabelece em sua própria natureza”.

“Aquele que vê” (“draṣṭṛ”) é chamado de o “observador” ou a “consciência testemunha”, e de “ātma”, que é o próprio Ser no homem. Este possui todos os atributos (ou melhor, falta de atributos) que o Ser tratado em muitas obras de filosofia ocidental - eternidade, imutabilidade, imaculabilidade em relação ao mundo dos fenômenos e da causalidade. Porém no pensamento védico, o Ser é consciente, é a consciência no homem que antecede seus fenômenos psíquicos. Diz o vigésimo sutra do segundo capítulo: “Aquele que vê [o Puruṣa] é o conhecedor absoluto. Ele é puro e observa as modificações da consciência como uma testemunha”. 

Como será discutido mais detalhadamente adiante, é justamente quando a consciência se identifica com o psiquismo que a veicula como um ser vivente e individual (“jivātma”) tendo como causa avidyā ou “ignorância”, que surge o sofrimento existencial. Isto ocorre com a identificação com os objetos que os sempre mutáveis fenômenos psíquicos lhe apresentam. Por isto a consciência deve isolar sua identificação em si mesma (kaivalya), retirando a identificação das representações psíquicas gradualmente das mais densas às mais sutis. E para isto, é preciso que o psiquismo se estabilize e se aquiete, e o sistema óctuplo do Aṣtāṅga Yoga apresentado no texto é justamente um manual metodológico orientando o aspirante neste objetivo.

A Intencionalidade Suprema

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ArjunaO aretés dos antigos gregos citado na primeira parte do texto também têm sua concepção védica. Patañjali o menciona como vīrya, muitas vezes traduzida como “energia” (investida em um objetivo), a “intencionalidade”, e outras como “coragem”. O termo coragem é apropriado, pois vīrya é a característica dos heróis (vīra) e raiz sânscrita de palavras latinas, como “virilidade”. Esta virilidade porém não é algo bruto ou barbárico, mas uma virtude na raiz de sua etimologia: o latim virtus que quer dizer justamente “força masculina”. Virtude, porém, é virtus aliada à nobreza moral, portanto associada ao ideal do cristianismo medieval do cavaleiro consagrado, do herói corajoso, nobre, espiritual.

Assim como o aretés da grécia antiga, vīrya tem uma conotação dentro do que o contexto cultural valoriza, similar aos dos gregos até - enquanto esta virtude para os gregos trata-se de uma coragem nascida da educação filosófica, que orienta corretamente a afirmação da intencionalidade, o heroísmo védico é o heroísmo de Arjuna, personagem do épico Bhagavad Gita, que o dirige a cumprir o dharma, manter o rigor do auto-controle e da disciplina, e se colocar humilde perante à sabedoria transcendental dos Vedas, como o herói épico coloca-se em relação ao seu professor Kṛṣṅa. Vīrya é um dos quatro** pré-requisitos para o aspirante ter êxito em atingir o samādhi, como consta no Yoga Sūtra. A “coragem de ser” mencionada na primeira parte do texto afirma o ser a despeito do não-ser, a coragem no contexto védico direciona a intencionalidade do aspirante a transcender o não-ser, percebendo-se como o Ser aquém das sobreposições do não-ser.

O Não-Ser como Manifestação

A palavra “sobreposição” é usada para entender o que é o mundo dos fenômenos e do vir-a-ser neste contexto. Outro darśana de interpretação védica associado ao Yoga é o Vedānta. A tradição vedantina em sua concepção não-dual é sintetizada na expressão “brahma satyaṃ, jagat mithyā”  ("só o Ser é Real, este mundo é [apenas] aparente”). Este conceito de mithyā significa algo que não tem realidade independente. Toda manifestação no universo natural tem início, meio e fim, porém o Ser é perene, existindo antes, durante e depois do que quer que tenha se manifestado. Os fenômenos psíquicos mudam da vigília para o sonho, e cessam do sonho para o sono sem sonhos, mas o Ser permanece desde sempre e para sempre. De acordo com o Vedānta, o significado de todo objeto manifesto é uma sobreposição que depende de um regime de som e luz, de nome e significado. Esta sobreposição é mithyā, e identificar-se com isto é aflitivo por sua identidade ter a amorfidade de algo que, por depender de muitos outros fatores para ter sua forma e composição, está sempre sujeito à mudança.

Mithyā não é irreal, no termo que o mundo, em certo sentido, existe. Assim como Māyā, vulgarmente traduzida como “ilusão” e com isto, sempre causando confusões, é definida no Vivekacūḍāmaṇi, mesmo texto de onde vem o verso citado no parágrafo acima, como “Aquilo que é e que não é” - algo que existe,

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mas apenas como manifestação. Os Vedas tem uma visão de realidade coerente com a filosofia parmenidiana, por exemplo - o que muda, não pode ser real, só o Ser imutável é real.

E a existência do Ser é eterna - satyaṃ (o que quer dizer “verdade” ou “realidade”, “nitya” quer dizer “eterno”, mas em termos qualitativos são praticamente sinônimos). Este Ser, brahman, é a consciência testemunha, o Puruṣa citado atrás. Quando ela identifica-se com si mesma, o sujeito percebe-se também como satyaṃ, não como seu corpo ou sua mente que são mithyā, caindo por terra a concepção de sua finititude. Pode-se dizer então que o não-ser nos Vedas é mithyā ou māyā, partindo do pressuposto que são manifestações do Ser (Tillich também considerava o não-ser como abarcado no ser, ou seja - não existe, em nenhuma corrente de pensamento citada, algo que seja alheio ao ser, até mesmo o não-ser).

O Sofrimento no Pensamento Védico

Além dos darśanas do Yoga e do Vedānta, existe também a escola de filosofia Sāṁkhya, que descreve uma elaborada cosmologia de como o Ser e a natureza interagem resultando na manifestação do universo físico. O Sāṁkhya descreve uma fonte tríplice de sofrimento conhecida como dukha traya, que é composta do sofrimento oriundo da relação do homem com a natureza (ādhidaivika), com as outras pessoas (ādhibhautika) e com si mesmo (ādhiātmika). O Yoga Sūtra claramente tem influência do Sāṁkhya por muitas vezes usar a terminologia da escola filosófica, mas complementa o duhka traya com outro conceito: pañcakleśa.

O pañcakleśa é um conjunto de cinco aflições existenciais descrita no terceiro aforismo do segundo capítulo do Yoga Sūtra: “avidyāsmitārāgadveṣābhiniveśāḥ kleśāḥ”, que quer dizer “ignorância, egoísmo, apego, aversão e medo da morte são os cinco kleśās”. O aforismo seguinte descreve a ignorância, avidyā, como a causa das seguintes quatro aflições. A consciência em seu aspecto individualizado, “encantada” com o jogo de cores e formas da manifestação (māyā), acaba por sofrer de uma espécie de “amnésia” sobre a natureza de sua própria identidade. Diz o quinto aforismo do segundo capítulo: “Ignorância é tomar o não eterno, o impuro, o incorreto e o não Ser como sendo o eterno, o puro, o correto e o Ser respectivamente”. “Tomar o não Ser como sendo o Ser” neste contexto significa tomar a manifestação, que é finita, com o Ser, que é eterno. Como vimos, neste contexto tudo que é mutável não é o Ser em seu aspecto puro, é o Não-Ser que, contudo, é manifestação do Ser. 

Isto torna compreensíveis as próximas aflições. O egoísmo, segundo o aforismo seguinte,   é “a identificação do poder do Ser com o poder da cognição”, ou seja, identificação da consciência pura com o psiquismo e seus vṛttis (padrões psíquicos). Estes vṛttis são descritos como kliṣṭa e akliśṭa no primeiro capítulo, isto é, aflitos e não-aflitivos. Os padrões de consciência não-aflitivos não são aqueles que conduzem ao prazer, mas aqueles, em termos, isentos de aflição, que dizem respeito e conduzem o aspirante à iluminação. Os padrões psíquicos diretamente relacionados ao prazer produzem desejo e estão intrinsecamente relacionados, como uma estrada de mão dupla, aos padrões de consciência de medo e ódio - afinal, tememos e odiamos os objetos e eventos que ameaçam a realização de nossos desejos. Estes são o terceiro e o quarto kleśās, apego e aversão (rāga e dveṣā), respectivamente os vṛttis que acompanham memórias de prazer e sofrimento. “Tudo provoca sofrimento para aquele que discerne”, escreve Patañjali em outro aforismo, e isto se refere não só ao apego, mas até mesmo os padrões psíquicos akliśṭa, pois a liberação final pelo estado de supressão (chitta nirodah) necessariamente incluem os vṛttis não-aflitivos. Estes também geram impressões latentes, que por sua vez geram mais vṛttis, mantendo o aspirante sob o jugo dos guṇas, os atributos básicos da natureza manifesta que geram toda a mutabilidade.

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Um Temor de Raízes Profundas

A quinta aflição é o medo da morte, abhiniveśa. Patañjali deixa claro que este medo não se trata de um medo psicológico superficial, mas um medo profundo, pois no sūtra que o descreve, é mencionado que este está “presente tanto no ignorante quanto no sábio”. O sábio, mesmo avançado em sua discernimento entre o Ser e o Não-Ser, ainda possui a vāsana (condicionamento subconsciente) que surge da experiência do medo da morte. Aqui a palavra “experiência” é usada porque para os estudiosos do Yoga, abhiniveśa está relacionado à lembrança de morrer em existências passadas. Para estes, o medo da morte não pode ser explicado sem o reencarnacionismo, pois não surge da percepção direta, nem da dedução ou testemunho, é anterior a tudo isso.

Independente desta concepção reencarnacionista, abhiniveśa pode perfeitamente ser relacionado ao “ser-para-a-morte” de Martin Heidegger, que está encrustado no daisein, o ser em sua particularidade humana que é consciente de sua existência finita. Isto é, abhiniveśa mesmo sendo traduzido como “medo da morte”, em uma comparação com a filosofia existencial não se trata de um medo, mas da própria angústia do ser. Pode ser perfeitamente comparado também à Ansiedade da Morte de Tillich - de fato, a ansiedade tríplice de Tillich, a angústia dos autores existenciais e a aflição quíntupla do Yoga Sūtra têm a mesma característica básica: são raiz de todo o sofrimento humano.

O pañcakleśa  é responsável pelos condicionamentos mentais e comportamentais que nos impedem de perceber nossa natureza, em um círculo vicioso. Inclusive, são estes condicionamentos que determinam as situações conflituosas que derivam de nosso ambiente externo, relacionado à natureza e às pessoas (ādhidaivika e ādhibhautika descrito no Sāṁkhya). Os kleśas condicionando nosso comportamento, geram os frutos de karmāśaya, uma espécie de arquivo subconsciente de tendências e impressões latentes que vêm determinando nossas ações e suas relações de causa e efeito. Estas acabam por moldar a realidade situacional em que não só estamos inseridos no momento presente, como potencialmente estaremos no futuro. Em suma, enquanto as aflições existenciais não forem anuladas pelo fogo do conhecimento, estas irão determinar nossas vidas e nos manter aprisionados em nossas dores.

Liberdade Prática

Felizmente, o Yoga Sūtra oferece um caminho de liberação, cortando o sofrimento por sua raiz. Seguem o décimo e o décimo primeiro aforismo do segundo capítulo:

te pratiprasavaheyāḥ sūkṣmāḥ | | 10 | |Estes kleśas sutis podem destruir-se ao interromper-se [a identificação com] a vida psicomental.

dhyānaheyāstadvṛttayaḥ | | 11 | |Os vṛttis vinculados a eles se aniquilam com a meditação.

A prática meditativa descrita como samyama (concentração, meditação e samādhi - os três últimos membros do método óctuplo de Patañjali) e mūla prajñā (exposição, questionamento e reflexão sobre a verdade do Ser) tem, então, a capacidade de queimar as raízes da angústia existencial, a fonte de todo o sofrimento. Mas para o leitor, isto pode parecer demasiadamente abstrato e metafórico. Ou então de pragmatismo inalcançável, especialmente para aquele que não é familiar com a prática da meditação. 

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O Yoga possui muitos caminhos, cada um adequado a um tipo de pessoa, e também uma época. Sim, uma época - pois estes tempos onde transtornos de humor e de ansiedade  se tornaram uma questão de saúde pública se encaixam na descrição de uma era específica a qual os Vedas mencionam. Há uma outra escola de filosofia védica, não-ortodoxa como os darśanas, que segundo suas próprias escrituras é especialmente tem suas práticas especialmente recomendadas para estes tempos turbulentos. É uma escola que contém elementos tão antigos, que suas raízes entrelaçam-se com as raízes do Yoga, e na no mundo contemporâneo, seu sistema de prática mais conhecido se confundiu como sinônimo do Yoga Darśana. Esta escola é o Tantrismo, e a prática referida, o Haṭha Yoga.

Os fundamentos do Tantrismo e do Haṭha Yoga ficarão para outro texto, pois este é um tema de extensão própria. O que é apropriado constar aqui é que o Haṭha Yoga é compatível, complementar e de certa forma introdutório ao sistema prescrito por Patañjali. Swami Svātmārāma escreveu no século XVI o mais antigo tratado de Haṭha Yoga que se tem acesso, e o descreve como uma “escadaria para Rāja Yoga” - termo que, três séculos depois, o respeitado Swami Vivekananda usou para descrever o Aṣtāṅga Yoga exposto por Patañjali.

O processo de desindentificação com os padrões psíquicos é gradual, tal como a libertação interior. A expressão que a verdade é “amarga no início, e doce no final”, no Haṭha Yoga não tem lugar. O seu trabalho corporal libera as tendências latentes do subconsciente, das mais grosseiras às mais sutis, como é do extenso conhecimento da psicologia e fisiologia sutil do tantrismo. Assim, por si só, gradual e ininterruptamente, a prática aumenta o bem-estar e a qualidade de vida desde o começo da prática - por isso conquistou o número de adeptos que tem hoje. Esta sutilização e refinamento do sistema psicofísico não apenas prepara o aspirante para samyama e desperta seu interesse por mūla prajñā, mas sozinha é capaz de dar vislumbres do mar de calma que é sua natureza.

Satcitānanda - Sua Verdade última

A ansiedade e a depressão devem ser vistos de maneira oportunista, e isto requer muita coragem. Muitos são os que encontram mecanismos eficientes para tornar a angústia suportável, assim mantendo-se perpetuamente condicionados por ela de forma subconsciente. Quando a escuridão abissal do Nada vêm à tona por aqueles indivíduos mais sensíveis, e estes vagam pelo deserto do sentimento de vazio, aí jaz uma oportunidade sem igual para que por trás do insuportável silêncio deste deserto, se ouça a voz do Ser que é Eternidade, Consciência e Amor (satcitānanda).

A coragem que leva à afirmação do Ser a despeito do Não-Ser, pode ser canalizada para a transcendência do Não-Ser rumo à identificação com o Ser. Desta forma, não apenas convive-se superando a angústia - mas pode-se a aniquilar completamente. Por mais que o pensamento de muitos autores ocidentais tenham similaridades (e muitas vezes, influência direta) com o pensamento védico, mas são nos yoga śastras que encontramos uma metodologia objetiva, pragmática e completa de superação à angústia existencial. Nesta jornada, descobre-se que por trás do sofrimento emocional, há a angústia, porém por trás desta, há uma paz além de todo o entendimento - e por trás desta realidade, não há mais nada. Esta é a verdade última do ser humano.

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* À partir daqui escreve-se “Ser” com letra maiúscula pelo caráter não apenas universal, mas divino da palavra - o Ser como Brahman.

** Swami Satyananda Sarawati, ao contrário de muitos autores, traduz o sutra I:20 considerando “samādhi prajña” como uma virtude única, “conhecimento do samādhi” e não duas (“samādhi” e “prajña” separadamente), totalizando assim quatro ao invés de cinco virtudes.

Postado por Diogo Ralston às 08:57 Nenhum comentário: Enviar por e-mail BlogThis! Compartilhar no Twitter Compartilhar no Facebook Compartilhar com o Pinterest Marcadores: Psicologia (Ansiedade), Psicologia (Humor), Yoga (Haṭha Yoga), Yoga (Vedānta), Yoga (Yoga Sūtra)

O Mal do Século: A Dor que Conduz ao Ser - Parte I

Parte I - Introdução e Ansiedade no Pensamento Ocidental

“Quando um homem não encontra a si mesmo, não encontra nada”.- Johann Wolfgang von Goethe.

O que parece para alguns um "modismo", esconde uma alarmante verdade: casos dos chamados "transtornos" de humor e ansiedade têm crescido de maneira epidêmica em todo o mundo. A Anxiety and Depression Association of America consta que 18% da população acima de 18 anos nos Estados Unidos sofre com algum tipo de transtorno de ansiedade. O Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas em São Paulo recentemente apresentou uma pesquisa mostrando dados semelhantes: 20% da população do estado de São Paulo também se encontra na mesma condição. A ansiedade é a instância psíquica do mecanismo do estresse, e o estresse está direta ou indiretamente ligado a 50% a 75% de todas as consultas médicas feitas no mundo.

Estatísticas da Organização Mundial de Saúde de 2001 (mais de 10 anos atrás) atestavam a depressão como quinta maior causa de morbidade entre todas as doenças do mundo, e que até 2020 subiria para a segunda, junto com as doenças cardiovasculares. Estas duas enfermidades já são as mais debilitantes e dispendiosas no contexto de saúde. 

Estes números fazem disto uma questão de saúde pública de ordem global.  É como um grande aviso que nos faz perguntar: o que está acontecendo conosco? O que membros da comunidade médica atestam é que tais casos foram sempre presentes, mas apenas agora o desenvolvimento dos critérios diagnósticos e modelos de doença permitem identificar tais distúrbios. Mas apesar dos enormes avanços que as pesquisas em neurociências têm tido no campo, ainda é desafiador estabelecer uma etiopatogenia destas enfermidades dada a complexidade das áreas com que se relacionam, dada a natureza biopsicossocial do homem. Não obstante, isto não nos impede de levantar algumas questões.

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Sob Pressão

A cultura humana tende a evoluir numa velocidade que sobrepuja sua própria natureza biológica, que tem um passo bastante mais gradual. Nos últimos 60 anos, houve mais progresso que em toda a história da civilização humana. O sistema nervoso humano não mudou desde que éramos caçadores-coletores;  o que é compreensível, visto que o período em que a humanidade abandonou estas práticas para fundar os alicerces da civilização até a pós-modernidade corresponde a apenas 1% de sua história evolutiva. Os módulos de nosso cérebro estão preparados para a quantidade ruidosa de informação a que somos expostos, às inúmeras possibilidades de interpretações de situações sociais como ameaçadoras, com a complexidade das pressões as quais a sociedade moderna nos expõe?

E qual o impacto que estas mudanças podem ter sobre a formação de nossa subjetividade? Qual é a identidade que se adapta a esta sociedade, e como isso afeta nossa saúde emocional e a qualidade de nossas relações? O sociólogo Zygmunt Bauer é conhecido por cunhar o termo “modernidade líquida”, que descreve um mundo de rápida mutação onde nada mantém uma mesma forma por muito tempo. A perda de solidez nas instituições sociais e a flexibilidade no mercado de trabalho obrigaria as pessoas a estarem em constante e desgastante atividade sem nenhum senso de estabilidade ou segurança. Isso também teria um reflexo nas relações humanas: a falta de tempo a impossibilidade de assentar raízes impossibilitaria a durabilidade das relações. Assim vínculos podem ser desfeito a qualquer momento, mantendo-os apenas enquanto eles trouxerem satisfação e conveniência imediata. Em muitas esferas, as pessoas vivem sob constante ameaça de se tornarem descartáveis e supérfluas numa analogia que cabe dentro de uma sociedade de consumo: o lixo. Aflição, insegurança, depressão e ansiedade seriam mal-estares característicos da chamada modernidade líquida.

Angústia, a Inquietação Metafísica

Os distúrbios de humor e a ansiedade estão intimamente ligados. Os transtornos mistos de depressão e ansiedade são muito comuns e mesmo existe uma comorbidade  diagnóstica e muitas vezes patogênica em transtornos depressivos e de ansiedade, especialmente quando se cronificam - o ansioso crônico acaba por deprimir, e o deprimido crônico acaba por manifestar ansiedade - dada a debilitação que estes sintomas causam na funcionalidade e qualidade de vida de uma pessoa. E a ansiedade tem sido assunto não só de médicos e psicólogos, mas de milenares tradições espirituais, e influentes e renomados pensadores, que levantam inquerimentos capazes de nos fazer questionar que todos os nossos esforços para lidar com o que têm sido chamado de "o mal do século", sem negar sua valiosa colaboração, ainda assim sejam apenas paliativos. 

A filosofia existencialista têm uma interessante abordagem de ansiedade como angústia. Se distingue do medo por sua indeterminação - enquanto o medo sempre se relaciona a um objeto, a angústia não se relaciona a nenhum objeto particular. A angústia é mais profunda e abstrata, e permeia o psiquismo humano em sua totalidade. Ela é, em verdade, a porta de entrada para a condição humana. Søren Kierkegaard escreve que a angústia é parte essencial e exclusiva da espiritualidade do homem. Um anjo ou um animal não padeceria deste sentimento, e o homem de espírito fraco se esforça em a mascarar, a esconder. Hegel relaciona a atitude de homem frente à morte como angústia, justamente por sua vaguidez, carência de representação precisa e sentimento de dissolução de todas as nossas representações.

Martin Heidegger chama o ser em sua condição particularmente humana de daisein (“ser-aí”), e ressalta seu diferencial dos outros entes pela consciência de sua mortalidade e assim, a obrigatoriedade de

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confrontar-se com ela. A morte para o daisein não é o fim de sua existência, mas algo sempre presente e intrínseco a ele. O homem não é mortal, mas moribundo, existe para findar-se, e um de seus aspectos ontológicos é o conceito  heideggeriano “ser-para-a-morte” (“Sein-zum-Tode”). O ser-para-a-morte compreende a morte como a presença do nada e a impossibilidade de sua existência como tal; daí, sua angústia. Mas o importante é a ressalta do autor que esta não é uma angústia psicológica, não é um superficial medo da morte, dos objetos que podem a provocar, do pensamento, expectativa ou preparação para a morte. Lembrando a ênfase na distinção do medo e da angústia, enquanto um parte dos entes do mundo, esta última brota do ser, muito mais profundamente entranhado na condição existencial humana.

O Medo como Resistência ao Nada

Paul TillichDe todos os autores existencialistas, pessoalmente meu favorito é o teólogo alemão Paul Tillich. Em seu livro “A Coragem de Ser”, Tillich desenvolve a problemática do “não-ser”, conceito abordado desde os pré-socráticos até existencialistas recentes como Heidegger e Sartre (respectivamente, com seus conceitos de Das Nichts e le néant - “O Nada”). Para o teólogo, o ser engloba ele próprio e também o não-ser, na forma do dinamismo, do movimento, do devir - o não-ser é eternamente presente e eternamente superado. Nesta criatividade vivente, o ser se afirma eternamente superando o não-ser dentro de si. Tillich usa a palavra “ansiedade” para descrever a angústia existencial. Ansiedade é a finidade experimentada como nossa própria finidade - é a consciência existencial do não-ser, estado no qual um ser tem ciência de seu possível não-ser. 

Ansiedade pela finitude não é o medo da morte consciente, derivado da observação da transitoriadade universal ou da experiência da morte dos outros, mas a latente impressão de “ter que morrer” incrustada no ser do homem. O medo da morte relaciona-se com a doença, o acidente, a dor e a perda; a ansiedade com o absoluto desconhecido da possibilidade de cessação existencial que a morte proporciona. Podemos nos relacionar com os objetos de medo da mortalidade, resistindo-os, em prevenções envolvendo nossa saúde e segurança, por exemplo. Mas a ansiedade “nua” do derradeiro não-ser envolve a impotência insolúvel de não ser capaz de resolver sua ameaça, estando além do alcance de qualquer medida.

Apesar de distintos, o medo e a ansiedade são interdependentes. Esta última é fonte do medo, e também veiculada por ele. Tillich traz alguns autores e místicos que descrevem suas experiências em lidar com instantes da ansiedade em sua nudez - Nietzsche e o “grande nojo” de Zarathustra, a “noite da alma” de São João da Cruz. Para evitar este horror inimaginável, se acaba por estabelecer objetos de medo, transformando ansiedade em medo, para que este “cubra” a ansiedade e evite este terrível desamparo. Através da concretude dos objetos de medo, o homem pode estabelecer uma relação de luta e

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resistência, em uma tentativa inconsciente de auto-afirmar-se diante de sua ansiedade, o não-ser. Tillich, no entanto, escreve que tais tentativas são vãs.

A ansiedade da morte relaciona-se com o não-ser em sua forma mais puramente ôntica. Porém o autor fala de outros dois desdobramentos da ansiedade, formando uma tríade de ansiedades básicas. Estas outras são a ansiedade da vacuidade, que é a expressão do não-ser negando a auto-afirmação espiritual do homem (sentido, propósito ou significado de sua existência), e a ansiedade da condenação, ameaçando a auto-afirmação moral do homem. As três ameaças não são mutuamente excludentes, mas imanentes e entrelaçadas uma na outra. Esta tríplice ameaça pode constituir um desespero, situações extremas de ansiedade onde sente-se o não-ser como esmagadoramente vitorioso, as quais toda a vida humana tem como tentativa contínua evitar - e a maioria das pessoas faz um bom trabalho quanto a isso. 

Loucura e Coragem

Porém há aqueles que são particularmente sensíveis ao não-ser. Para estes, há ainda uma linha de frente para evitar o desespero - a patologia como estado de ansiedade especial sob condições especiais. A neurose seria um escape limitado e disfuncional; “o meio de evitar o não-ser evitando o ser”. O neurótico afirmaria algo muito abaixo de seu potencial, pois caso contrário, a realização plena de seu ser implicaria na aceitação do não-ser. Ele estabelece uma afirmação fixada, irrealista e limitada, e esta fortaleza  psíquica imaginária ao mesmo tempo que o preserva, cria um conflito entre ele e a realidade que o expõe a mais ataques de ansiedade uma vez que pise fora dos limites de sua afirmação reduzida. Há contudo uma ambiguidade na personalidade neurótica - pelo fato da limitação da amplitude de sua afirmação ser compensada com uma grande intensidade  que lhe distorce a realidade, e também pela sensibilidade ao não-ser, que ocasionalmente pode revelar os mistérios do ser, o neurótico pode ter grandes rompantes de criatividade. Ainda assim, a ansiedade patológica é doença e sofrimento, e deve ser curada por intermédio da coragem.

A coragem é a única saída, tanto para o neurótico quanto para o homem comum. A coragem psicológica que é o poder da mente de sobrepujar seus medos. Esta encontra na ansiedade um adversário insuperável por seus meios usuais, porém se propriamente direcionada, contém em si a vitalidade para uma auto-afirmação plena. A vitalidade e potência de vida associada a coragem, não no sentido biológico, mas associadas à “intencionalidade” do homem - isto é, o ser dirigido para conteúdo significativo (lógica, estética, ética, fé, etc.). Isto empodera o homem no que dá a ele o poder de criar para além de si próprio, sem perder a si próprio. Seu espírito, a instância na qual estão unidas vitalidade e intencionalidade, é o combustível de sua auto-afirmação. 

Aquilo que os gregos chamam de aretés, especialmente na concepção da grécia antiga, a virtude que todos aspiravam que é a coragem de viver todo o seu potencial. A concepção grega de coragem e nobreza vem deste termo, pois esta não é a coragem barbárica, mas do grego educado que conhece a ansiedade de não-ser porque conhece o valor de ser. E daí vem o conceito de coragem em Tillich, que transcende a coragem meramente psicológica: esta é a coragem de ser, que faz progredir a auto-afirmação “a-despeito-de”, a despeito daquilo que tende a impedir o eu de se afirmar. O homem que percebe na existência universal o não-ser compreendido pelo ser, e que este perenemente supera e afirma-se a despeito da constante presença do não-ser, toma esta suprema realidade como exemplo e a insere no âmbito microcósmico de sua própria existência - seu ser também compreende o não-ser, mas este pode ser constantemente superado por sua coragem e auto-afirmação sempre nova e vitalizada. 

Quando a Dor é um Chamado

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Aquele que sofre do que hoje é descrito como uma patologia costuma buscar o alívio imediato de seus sintomas pela psiquiatria alopata e os psicofármacos. Isto não é uma crítica ou desconsideração à psiquiatria, muito pelo contrário, estes medicamentos quando bem aplicados têm o nobre resultado de salvar vidas, e uma pessoa estuporada por ansiedade ou tristeza deve procurar este tipo de ajuda. Mas ela não deve parar aí, mesmo quando se sente bem, mesmo quando se cansou de questionar-se e quer apenas viver a vida, com sua capacidade funcional restaurada. Se em dado momento ela teve a sensibilidade de sentir o Vazio e isto a prostrou, ela deve admitir que a construção dos muros de seu psiquismo estavam fragilizados por rachaduras ou buracos, mas que por suas brechas foi possível o medonho espetáculo de observar o grande abismo que jaz além destes muros. E o não-ser, como atesta Tillich, conduz aos mistérios do ser - através desta escuridão, esconde-se a infinidade, como a noite que revela a imensidão das estrelas.

Um novo paradigma, de ordem espiritual, deve ser incluído - a inclusão daquilo que todos automaticamente excluem em aversão, a realidade do não-ser dentro do ser, e tendo coragem de admitir esta realidade “a-despeito-de”, observar como a auto-afirmação ôntica mostra o triunfo de sua existência existência sobre as sombras do Nada. Pode parecer um tanto abstrato, mas isto pode trazer dignidade e serenidade para nossas vidas de forma que nos garante uma defesa à ansiedade bastante mais sólida, enraizada e profunda que as medidas mais recorridas. Abraçar o finito para dar-se conta do eterno pode ser a única verdadeira e duradoura cura.

Postado por Diogo Ralston às 07:27 Nenhum comentário: Enviar por e-mail BlogThis! Compartilhar no Twitter Compartilhar no Facebook Compartilhar com o Pinterest Marcadores: Filosofia (Existencialismo), Psicologia (Ansiedade), Psicologia (Humor)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Brahmaṇidhāna: Uma Explanação Sobre Ṇāda e Lāyā Yoga

“Mas, quando ele escutava atentamente o que cantava o rio, com seu coro de mil vozes, quando se abstinha de destilar dele o sofrimento ou o riso, quando cessava de ligar a alma a determinada voz e de penetrar  nela com o seu espírito, quando, pelo contrário, ouvia todas elas, a soma, a unidade, acontecia que a grandiosa cantiga dos milhares de vozes se resumia numa só palavra, que era Om, a perfeição”.

- Hermann Hesse, “Sidarta”.

Brahmaṇidhāna é um termo usado por Swami Srí Yukteswar, o guru do popular Paramansa Yogananda, para designar a meditação no som divino de Oṁ. Literalmente, o termo significa “meditação em Brahman”, o Ser. Os dois mestres enfatizam que tal objeto de meditação pode levar à salvação. Para entender isto, precisamos entender o conceito de ontos, o "ser enquanto ser", por que o interesse de tantos pensadores neste segmento da metafísica e como, na tradição dos Vedas, a sílaba Oṁ está ligada a esta discussão.

Ontologia e Soteriologia

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A busca do ser enquanto ser, do Ser cuja natureza é inerente a todos os seres, não é exclusiva ao pensamento oriental - é uma busca da humanidade de caráter universal. Dentre os nomes que ajudaram a alicerçar o pensamento ocidental, podemos citar: Parmênides de Eleia e o Ser Uno, Eterno, Imutável e Não-Gerado; Platão e o Ser das Idéias; Plotino e o Uno; Baruch Espinoza e a Substância.

Esta cruzada ontológica muitas vezes pode ter como motor o inquerimento filosófico. Por exemplo, questionar o que é uma cadeira de acordo com sua "taleidade", a cadeira como tal, independente de suas partes - encosto, pernas, assento - é um questionamento ontológico. O homem pode aplicar a mesma pergunta diante de si mesmo. O que faz de mim um homem? Qual é o substrato de minha própria existência?

Mas muitas vezes esta sede pela realidade última por trás dos fenômenos tem aspecto mais visceral. O homem, quando identifica-se por suas partes - seu corpo, intelecto, auto-imagem - vê-se confrontado com a questão da mutabilidade da natureza, da perecibilidade de suas partes, da extinção daquilo que ele pode considerar como si próprio. Ele é confrontado com a mortalidade.

O desconforto e a recusa do homem diante desta força da natureza aparentemente incontestável é presente em qualquer cultura, e de fato é o combustível da transmissão cultural que fez de nós os seres complexos e fascinantes que somos. Mas ao mesmo tempo, é também a origem primária de nossas mais profundas ansiedades existenciais, resultando no desdobramento de todas as nossas aflições e vícios. É aí que a busca pelo Ser e pelo autoconhecimento mostra seu principal sentido: uma via soteriológica. 

Cosmologia do Yoga

Disto de trata o real sentido do Yoga. A palavra Yoga vem da raiz sâncrita yuj, cujo um dos significados é "juntar" ou "unir", justamente no contexto da união através da identificação do homem com o Ser. Chamado de Cit-Śākti ou Śiva-Śākti pelas tradições tântricas e de Brahman pelas tradições Vedantinas, de acordo  com os Vedas esta é a realidade do homem, que é Satcitānanda - Eternidade, Pura Consciência e Amor, e que nela todo o sofrimento é extinguido. 

A consciência na visão védica não é um produto da sofisticação do sistema nervoso humano, mas um aspecto do Ser, Cit, antecedendo qualquer fenômeno psíquico. Visando retirar a identificação da consciência com suas formas de expressão mutáveis como o corpo, mente, intelecto e auto-imagem, e a assentar em si mesma, o homem atinge a meta suprema do Yoga que é kaivalya ou samādhi, e obtém mokṣa, a libertação do medo e da dor existencial causada por erroneamente se identificar com aquilo que é perecível.

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Mas para que este processo seja orientado, o Yoga se associou a escolas de pensamento que oferecem uma explanação cosmológica de como o universo físico se manifesta à partir do Ser, numa espécie de decantação em elementos sutis até se sedimentar na natureza empírica que conhecemos. Os tantras e os āgamas descrevem 36 destes elementos, partindo da Consciência Pura que é Śiva, e seu aspecto dinâmico e criativo, a força denomināḍa Śakti.

Esta potência é imbuída das energias da vontade, do conhecimento e da ação, e através dela, houve uma vontade primordial (Brahma Saṅkalpa) de manifestação criativa analogicamente representada na expressão védica eko’ham, bahu syām (“eu sou um, que eu seja muitos”). Esta vontade é expressa através de um poder vibracional chamado Nāḍa Śakti. 

Esta vibração gera Bindu Śakti, o ponto sutil que é fonte de toda a manifestação. Através dos cinco princípios de limitação de Māyā Śakti que incluem o tempo e o espaço, esta vibração causa uma perturbação no equilíbrio dos atributos (guṇas) da natureza em seu estado inerte (Mūla Prakṛti), que possibilita toda a estrutura material e energética do universo em sua vasta diversidade. Assim podemos dizer que a vibração de Nāda Śakti é o princípio criador e ao mesmo tempo, primeira e mais pura manifestação do Ser.

E o Verbo era Deus

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Cruzando oceano da mutabilidade, o yogi então navega buscando a estrela polar que possa conduzir à eternidade, Brahman. Os antigos riśis (sábios) da Índia, mediante técnicas iogues que os levavam a estados profundos de introspecção, concentração e meditação, observaram que conforme os sons exteriores eram abstraídos, um uníssono que parecia comportar todos os demais ia ganhando força.

Este som impronunciável era contínuo e inabalável, como o óleo que flui suavemente, como o longo ressoar de um gongo. Não podia ser localizado, vinha de dentro e de todo lugar. Suas qualidades de onipresença e perene constância mostravam sua natureza transcendental. Sempre novo, tinha o poder de sem esforço tomar a mente absorta, e sempre inspirador, continha em si a semente de todo o conhecimento dos Vedas.

Foi chamado de Praṇāva por sua intensa qualidade reverberante (de “praṇu”, “rugir”, “reverberar”), de Anāhatanāḍa por ser eterno e sem início (de “anāhata”, “não-batido”), de Pārāvak, a “palavra suprema”, e Śabdabrahman - o “Som de Brahman” ou Som Cósmico; e simbolizado pelo oṃkāra - a sílaba Oṁ. O Taittiriya Upaniṣad diz: “Oṁ é Brahman. Oṁ é todo este universo, tanto visto quanto imaginado ” (VIII.1) Outros śastras vedantinos também atestam a plena identificação do Som Cósmico com o Ser:

“Explicar-te-ei resumidamente a meta declarada pelos Vedas, o objetivo de todas as austeridades, que os homens realizam ao levar uma vida de continência. Essa meta é a sílaba sagrada [Oṁ]. Essa sílaba sagrada é, em verdade, o puro Brahman. Esta sílaba é a meta mais elevada. Quem a conhece, realiza todos seus objetivos. Ela é o melhor apoio, o mais elevado sustento. Quem conhece este esteio reside feliz no mundo de Brahman”. - Kaṭha Upaniṣad 1.2.15-7 "O Oṅkāra é tudo o que está aqui. Aqui [inicia] a clara exposição: tudo o que foi, o que é e o que será, é de fato Oṁ. Tudo o que há além dos três períodos do tempo é também, de fato, Oṁ".  - Māṇḍūkya Upaniṣat 1.1.1

Nāḍa Yoga e Lāyā Yoga

Através deste som ouvido em profunda introspecção, o yogi então pode ter experiência direta com o Ser, a eternidade e infinitude que transcende a mutabilidade do mundo e o sofrimento humano. Mas não é apenas por isso que a sílaba Oṁ é tida em estima tão alta pela tradição védica. Quando o sādhaka ouve a vibração sutil, sem esforços e de modo espontâneo, sua atenção dirige-se ao Som que a deixa absorta em um processo conhecido como lāyā, conforme Swami Sivananda ensina:

“Então somos deixados com dois caminhos. O primeiro, para trazer o prāṇa sobre controle através de várias e árduos processos ióguicos, e então para controlar a mente e a introverter dos objetos externos. O segundo, nós podemos tentar aniquilar a mente através da realização de Mano Lāyā por encontrar um elevado e poderoso princípio ao qual a mente irá naturalmente se dirigir e na qual irá se mergir, assim entrando no estado de Lāyā. Os sábios descobriram que Mano Lāyā seguido de Mano Nāśa [“extinção” dos processos mentais] são caminhos mais seguros para obter a autorrealização do que o árduo processo de controlar e desenvolver a

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mente, o que sempre está ligado ao risco da mente pular para os velhos padrões dos vāsanas [tendências, padrões, vícios e condicionamentos mentais] a qualquer momento. (...) Então, Mano Lāyā e Mano Nāśa através de Nāḍa Yoga (união ou fusão pelo Som) foi descoberto como um meio eficiente e seguro para a autorrealização” - “Tantra Yoga, Nada Yoga and Kriya Yoga”.

No quarto capítulo do Haṭha Yoga Pradīpikā, a mais tradicional escritura de Haṭha Yoga, há passagens que explanam de forma clara a relação entre Nāḍa Śakti e sua identificação com o Ser, o estado de absorção da mente produzido pelo Som Cósmico e como este processo conduz a mokṣa, a liberdade das aflições existenciais:

“Louvamos Śiva, o guru que se apresenta na forma de nāḍa, bindu e kalā. Aquele que se consagrar a ele alcançará o estado sem mácula, livre as correntes da ilusão. (...) A mente domina os órgãos dos sentidos. O prāṇa é senhor da mente. O estado de dissolução (lāyā) controla o prāṇa e, por sua vez, depende da vibração sutil (nāḍa). A quietude mental em si mesma se chama mokṣa, embora outros possam chamá-la de outras formas; em qualquer caso, quando a mente e prāṇa se dissolvem, sobrevêm uma indescritível alegria”.  (IV:1;29-30)

E até mesmo as mais famosas escrituras relacionadas ao Yoga, como os aforismos de Patãnjali e o épico Bhagavad Gītā também têm passagens sobre o Som Cósmico como manifestação do Brahman e como este tem o poder de conduzir o homem a sua meta última:

“Īśvara é um Puruṣa especial, incólume às aflições, os resultados das ações ou as latências provocadas por elas. Nele está a semente da onisciência sem par. Não estando limitado pelo tempo, Īśvara é o guru dos mais antigos mestres. Sua designação é o praṇava [a sílaba Oṁ]. A repetição constante e a meditação sobre seu significado resultam na remoção dos obstáculos e na orientação da consciência para o interior”. Yoga Sūtra I:24 “Pronunciando “Oṁ”, que possui uma sílaba [e] é [o nome de] Brahman, e lembrando-se de mim, aquele que se vai, abandonando o corpo, alcança o objetivo mais elevado”. Bhagavad Gītā VIII:13

Porém Nāḍa Yoga não se trata de repetir a sílaba Oṁ, como é entoado precedendo recitações védicas ou em salas de aula de Haṭha Yoga. Embora os cânticos de Oṁ tenham seus benefícios, especialmente se feitos com concentração, repetição e reverência, mestre Yogananda esclarece:

“Muitas pessoas acreditam que entendem o que Patañjali afirmou: ‘Pense neste som e cante-o’. Essas pessoas começam a cantar a palavra “Oṁ” sem terem, primeiro, elevado suas

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consciências para ouvir o verdadeiro Oṁ. (...) Só podem conhecer Deus aqueles que, pela meditação e pelo samādhi (comunhão extática com Deus), pronunciam superconscientemente Seu Nome Cósmico, com os lábios da intuição. (...) Quem conhece Deus como o Som Cósmico encontra o portão para libertar-se dos confins das infelicidades humanas e da mortalidade. O verdadeiro conhecimento de Deus e seu nome, Oṁ, é o único caminho para a liberdade eterna”.

A Imersão nas Águas do Rio Cósmico

Pamahamansa Yogananda e sua linhagem de gurus enfatizam o Nāḍa Yoga o ensinando com clareza em lições por correspondência até hoje distribuidas pela Self Realization Fellowship. Nesta tradição, o Nāḍa Yoga é chamado de “Meditação em Oṁ” e constitui-se de uma das técnicas básicas e premilinares para a prática de Kriya Yoga. Seu mestre Swami Srí Yukteswar, em seu livro "The Holy Science", chama a técnica de Brahmaṇidhāna, a meditação em Brahman. 

O respeitado mestre diz que Brahmaṇidhāna é o batismo ou mergulho do Eu no rio do Som Sagrado (Praṇāva, Oṁ), o que constitui a obra sagrada praticada para alcançar a salvação e único caminho pelo qual o homem pode retornar à sua Divindade, o Pai Eterno, donde caiu. Paramahansa Yogananda carinhosamente comparava Śabdabrahman com o Paráclito, o “consolador” do evangelho cristão, “...o bálsamo curativo para toda a tristeza humana”. 

Postado por Diogo Ralston às 09:32 Nenhum comentário: Enviar por e-mail BlogThis! Compartilhar no Twitter Compartilhar no Facebook Compartilhar com o Pinterest Marcadores: Yoga (Lāyā Yoga), Yoga (Nāḍa Yoga), Yoga (Tantra) Postagens mais antigas Página inicial Assinar: Postagens (Atom)

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