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Da cera à madeira: as representações simbólicas do artesão Véio (1980-2000)1
Resumo: Este artigo dedica-se ao estudo das representações do artesão Cícero Alves dos
Santos, conhecido popularmente por Véio. Em seu Sítio e residência denominado Sítio
“SóArte” são encontradas esculturas em madeira bruta expostas a céu aberto, localizado na
zona rural da cidade de Feira Nova-SE, onde também abriga um museu com peças e utensílios
da história da antiga “Boca da Mata”, atual cidade natal do artesão, Nossa Senhora a Glória-
SE, local que foi visitado durante a realização da pesquisa, sendo realizadas entrevistas com o
artesão. A partir de Chartier (1990), percebe-se a importância da história cultural, que
possibilita entender como os indivíduos constroem sentido e representações para suas vidas.
Assim, as esculturas produzidas por Véio serão compreendidas como parte dessa
interpretação histórica, na medida em que constituem um valoroso patrimônio cultural e local.
Palavras-chave: Artesão; Madeira; Escultura;Representações; Museu.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como recorte histórico o período de 1980-2000, abrangendo
como espaço empírico a cidade de Nossa Senhora da Glória, meu lugar de origem bem como
do artesão Véio, conhecedor e pesquisador da história gloriense. O período escolhido se
justifica na época em que a carreira do artesão ganhou notoriedade, seja através de
reconhecimento local, estadual e nacional, como também no ano 2000 o referido artesão
decide transferir o seu museu localizado inicialmente na área urbana para a área rural. Fato
que foi comentado pelos habitantes do município, como também no depoimento do próprio
artesão como forma de indignação e revolta para com os dirigentes políticos da época, pois
em sua visão estes não valorizavam sua arte, assim como a cultura local. Véio produziu peças
para demonstrar esta revolta e narrou esta história para as pessoas que visita seu museu.
Diante do exposto, o referido artigo tem como objetivo efetuar um breve estudo das
representações oriundas das esculturas feitas pelo referido artesão, com o intuito de descrever
o seu trabalho artístico, pois conotam a expressão da memória individual e coletiva.São
1Ana Celma Amaral Santos, Pedagoga, graduada em História Licenciatura. E-mail: [email protected]
representações de homens, mulheres e animais, um grupo de esculturas que na visão do
artistaretratam o cotidiano sertanejo, ou seja, o mundo que o cerca.
Neste sentido há uma representação em suas peças refletindo suas crenças, o homem
sertanejo, curiosidades da época, religiosidade e críticas do cotidiano do nosso município.
Assim, há uma pretensão nesta discussão de perceber as representações das obrasdo artista
Véio, no sentido de conceber a partir de seu trabalho a importância da preservação da
memória e da cultura de nosso povo. Além de conhecer o mundo simbólico do artesão Véio
através da forma e objetos que utiliza para produção de sua arte, e que apesar de utilizar a
madeira como matéria prima, tem consciência da importância e cuidados com a preservação
ambiental. Fato que é observado na preservação de mata virgem existente em sua propriedade
onde está localizado seu museu a céu aberto, bem como a sua residência.
Partindo desse contexto, este estudo está estruturado em uma introdução, dois tópicos
e as considerações finais, levando em consideração que, por ser tratar de uma pesquisa-campo
qualitativa, a nossa escrita reflete as marcas da oralidade típicas dos atores envolvidos, ou
seja, tal uso dessas marcas são as representações sociais, políticas, simbólicas e territoriais de
se falar sobre lugar, arte etc.
Neste sentido, no primeiro tópico narrarei:1. DE CÍCERO ALVES DOS SANTOS A
VÉIO. Este tópico objetiva fazer uma descrição narrativa da vida e infância do artesão Véio.
Essa narrativa buscará captar os diversos movimentos que compõem o universo
simbólicodeste artesão. Assim, no item: 1.1 – A madeira como matéria-prima. Aqui mostrarei
como o artesão troca da cera de abelha usada inicialmente aos cinco anos de idade para
confecção de suas primeiras tentativas de fazer suas esculturas e que com a escassez dessa
matéria prima passa a usara madeira até o presente momento. No segundo,1.2– Ambientalista
por natureza. Nesta parte descreverei como Véio aproveita as sobras de madeira encontradas
em seus passeios pela mata, transformando a madeira morta em belíssimas obras de artes,
dando vida.
Deste modo, nestestópicos iniciais trará a vida, infância, costumes, história local e
matéria prima utilizada na arte deste notável artesão gloriense. Assim, essa narrativa do
universo simbólico de Véio servirá de substrato para as demais partes.
No segundo tópico, o2. A ARTE PAR SEUS OLHOS. Nesta parte, analisarei de que
forma a arte faz parte do universo de Véio, sua paixão, bem como seu compromisso com a
preservação da cultura local. Apresentarei no primeiro tópico: 2.1 – Um artesão apaixonado
pela arte. Veremos através das memórias do artista as suas fontes de inspiração, numa
tentativa de decodificar o real e o abstrato, percebendo no seu trabalho uma forma de
preservação da memória do povo do sertão.
Continuando ainda nesta perspectiva, tratarei na parte 2.2 – Obras do artesão Véio.
Onde nesta parte do estudo será tratado o quanto suas obras ganharam notoriedade em
Universidades, exposições ao longo do Estado de Sergipe; diversos estados do Brasil e em
países estrangeiros, tais como, EUA, Chile, França e Bélgica, como também nas mãos dos
mais diversos colecionadores que apreciam sua arte. Já no tópico, 2.3 - As representações do
homem sertanejo – Tratarei de analisar através de suas esculturas rústicas, feitas de traços e
cortes simples uma representatividade do homem sertanejo que Véio pesquisa há 40 anos a
vida e costumes desses homens.
1 – DE CÍCERO ALVES DOS SANTOS A VÉIO
Cícero Alves dos Santos, nome dado em homenagem ao Padre Cícero, protetor do
sertanejo e do Rio são Francisco é filho do carpinteiro Maximino Alves dos Santos e de Maria
Júlia de Oliveira, nasceu na cidade de Nossa Senhora da Glória, no estado de Sergipe, em
1947. Conhecido popularmente e nacionalmente como Véio, nome dado devido passar horas e
horas ouvindo as pessoas mais velhas conversando, é hoje um importante artesão de Sergipe e
do Brasil.
Desde cinco anos de idade Cícero Alves dos Santos já demonstrava habilidades para
fazer trabalhos manuais, iniciando com cera de abelha, matéria-prima encontrada na sua
região.Enquanto outros meninos brincavam, ele priorizava os assuntos tratados por aqueles
que, em sua opinião, “tinham sempre importantes estórias para contar”2.
Com o passar do tempo, na idade adulta, Véio vai deixando para trás o interesse pelo
estudo formal e, devido à profissão do pai, carpinteiro, o então artesão começa a ter interesse
no trabalho em um tipo de madeira chamada de imburana, árvore de mata ciliar rara em
Sergipe, esculpindo com muita habilidade a cultura do homem sertanejo, bem como retrata
em suas artes a vida e o sofrimento do homem nordestino. Assim não só tem interesse pelas
esculturas, mas, passa a ter interesse pela história oral dos costumes e tradições do nosso
povo.
2Entrevista concedida a autora. Nossa Senhora da Glória, 09 de junho de 2012.
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Em 1986, recebeu o merecido prêmio do maior miniaturista do Brasil, reconhecido
pelo “GuinessWorld Book”, lançado em português como “O livro dos recordes” por suas
quase 3.000 peças de tamanho variado com até (3 mm), sempre retratando situações da vida
do sertanejo. Nesta mesma década também se dedicava a colecionar objetos raros e antigos da
nossa região e do nosso povo, pois as pessoas não valorizavam estes materiais e com grande
facilidade se desfaziam deste imenso legado cultural. Para ele, este acervo seria fundamental
para manter viva a história do nosso povo, que poderia ser levado e preservado de geração em
geração.
Véio, com muito esforço e determinação, já expôs seus trabalhos nas diversas capitais
brasileiras, a exemplo de Aracaju, Natal, Salvador, São Paulo, Recife, Brasília.Amostra de sua
arte também pode ser apreciada em país como: Bélgica, França, EUA e Chile.
Em 1995, Véio montou o seu próprio museu denominado “Boca da Mata” na cidade
de Nossa Senhora da Glória com o apoio dos acadêmicos do Curso de Relações Pública da
UNIT e da Prefeitura Municipal. O Museu foi entregue ao Município com um acervo de
aproximadamente 5600 peças, entre esculturas em madeira do próprio artista e algumas
relíquias que faziam parte da história do homem sertanejo, colecionadas pelo artesão.
Infelizmente, por falta de interesse do poder público local em manter este museu, após
pouco mais de três meses o artesão frustrado e decepcionado com tamanha falta de
sensibilidade e descaso com a cultura local procurou a administração da UNIT na tentativa de
viabilizar uma possível negociação do seu acervo. Revoltado, esculpiu em madeira o que para
ele representaria “o enterro da cultura” (Figura 01).
Esta revolta de Véio ficou explícita em depoimento a autora, quando relata: “Meu
trabalho aqui é como um copo descartável”1, deixando claro que a cultura local não é vista do
mesmo ponto de vista que o artesão apresenta, no sentido maisamplo da palavra cultura.
Com um sentido de volume muito peculiar, Veio não só equilibra quatro elementos
com harmonia em uma única escultura de pequena dimensão – uma figura de mulher, duas
crianças, um feixe de lenha – como, mais recentemente, partiu para a instalação do seu
trabalho em espaços abertos, públicos, em pleno sertão sergipano. Na rodovia Engenheiro
Jorge Neto, quem passa em frente ao seu sítio, se depara com figuras em tamanho natural ou
agigantado de lavradores com suas pás, mulheres grávidas carregando pesos, crianças e
animais, Lampião, Maria Bonita, Padre Cícero, além de procissões de enterro, pares dançando
forró, criam uma atmosfera há um tempo onírica e crítica do penoso dia-a-dia do homem do
campo em sua pobreza, mas alimentado pela aura de sua cultura.3Igualmente cabe ressaltar
que as lendas folclóricas também fazem parte deste universo do artesão.
Ao conceituar a arte, mesmo que seja de forma genérica é possível dizer que é uma
criação humana que designa valores estéticos, tais como beleza, equilíbrio, harmonia, revolta,
3FROTA, Leila Coelho. Pequeno Dicionário da Arte do Povo Brasileiro. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2005.
Fig.01 - O enterro da cultura - Fonte: Acervo do Max
– Museu de Arqueologia de Xingó.
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tristeza, e uma imensa gama de outras representações que sintetizam suas emoções, sua
história, seus sentimentos e a sua cultura.
1.1- A MADEIRA COMO MATÉRIA-PRIMA
Véio começou confeccionar suas obras de arte aos cinco anos de idade, ou
seja,inicialmente usou a cera de abelha como sendo suas primeiras tentativas de fazer suas
esculturas, usava como massa de modelar. Assim, com a escassez dessa matéria prima passa a
usar a madeira para confecção de sua arte, sendo utilizada até o presente momento, sempre
com um olhar pensado no uso consciente e na preservação do meio ambiente.
Com a dificuldade em conseguir o produto para esculpir suas obras e sendo o seu pai,
Maximino Alves dosSantos, um carpinteiro passou a utilizar “os restos” de madeira para fazer
o seuartesanato.A madeira utilizada pelo artista é o mulungu, que se caracteriza em uma
madeira macia, sem valor comercial, porém existente em grande quantidade na região. Já em
Fig.02 – Grupo de figuras nordestinas - Fonte: Acervo do
Max – Museu de Arqueologia de Xingó
relação à fabricação de peças para seu mostruário e acervo, bem como para encomenda,ele
reproduz apeça na madeira cedro ou em imburana, sendo um tipo mais resistente e duradoura.
A partir de dois tipos de troncos de árvore é que Véio faz as suas esculturas. Para ele
os troncos abertos são aqueles em que a própria estrutura da árvore já se acomoda para a
projeção da imagem, exemplo de uma forquilha que por sua forma já pode se transformar em
duas pernas ou cifres o que vai depender do olhar do artista. O outro tipo, os troncos fechados
são trabalhados de acordo com sua fértil imaginação, dando vida a personagens criados por
ele.
É interessante ressaltar que essas produções artísticas, ou seja, essas projeções não
obedecem a uma ordem ou regra estabelecida. De acordo com o imaginário de Véio elas vão
sendo projetadas e criadas. Neste contexto é que acontece o mundo de representações do
artesão Véio, e esta particularidade está presente principalmente a partir das obras feitas no
que ele chama de “tronco aberto”. Assim podemos perceber e afirmar a relação de seu
trabalho com a natureza, fato que se comprova ao comprar uma área de terra nativa, em
extinção onde tem o privilégio de morar e trabalhar. Para ele:
A inspiração nasce da visão, você chega numa árvore dessa, como eu cheguei aqui, e
vi todo tipo de escultura, já que eu posso aproveitar uma árvore dessa, é só eu olhar
e ver qual a história de cada peça. No meu trabalho eu não sou um desmatador, eu
dou vida a quem já tá morto, eu coloco ela pra que seja apreciada com a beleza e as
curvas que ela tem. Quando você pega um tronco fechado, você aí cria a partir da
inspiração. Eu trabalho com os dois gêneros diferentes, tanto vejo a obra feita,
quando ela tem curva, e quando ela não tem curva eu dou forma, eu interpreto de
dentro de minha imaginação.4
Assim sendo, Véio é um artista popular que inventa, cria com liberdade e imaginação,
seu próprio universo, usando como instrumentos a madeira e um simples canivete. (Figuras
03 e 04).
1.2 – AMBIENTALISTA POR NATUREZA
Apartir da escassez de sua matéria prima utilizada inicialmente, a cera de abelha
resultando na permuta pelo uso da madeira como sua atual matéria primaVéio é um homem
4DVDteca Arte na Escola – Material educativo para professor-propositor; 66.
simples, sem estudos, maspreocupado com as questões ambientais, haja vista a
aquisiçãodamatéria-prima que utiliza não é um dos principais problemas do artesão, pois é
conhecedor da importância da preservação do meio ambiente. Fato que se justifica ao manter
intocável e preservada uma pequena reserva de mata nativa, em extinção em nosso município
em seu sítio, local do museu intitulado Sítio “SóArte” em que busca preservar a fauna e a
flora local.Como o próprio autor afirma: “Eu não mato o que está vivo. Eu dou a vida a quem
já está morto”. 5
Ambientalista por natureza, Véio aproveita as sobras de madeira encontradas em seus
passeios pela mata, transformando a madeira morta em belíssimas obras de artes, dando vida.
2. A ARTE PARA SEUS OLHOS
À margem da Rodovia Engenheiro Jorge Neto, que leva ao município de Nossa
Senhora da Glória, no interior do sertão sergipano, mais precisamente na BR 206, entre os
5Véio / Instituto Arte na Escola ; autoria de Dora Maria Dutra Bay; coordenação de Mirian Celeste
Fig.03 - Sítio “SóArte” e local da reserva ambiental
de Véio – Acervo Pessoal
municípios deNossa Senhora da Glória,e Feira Nova,na altura do Km 8, encontramos o Sítio
“SóArte”, é sem sombras de dúvidas, uma visita inesquecível e singular. (Figura 05).
Da própria rodovia o visitante já vislumbra de um magnífico cenário composto por
esculturas em madeira bruta expostas a céu aberto, dispostas nas laterais do acesso à
residência do artesão. Lá se encontra: museu, sítio, e residência oficial do artesão. Este espaço
é um convitea percorrer um pedaço especial do universo do artista. É o próprio artista quem
guia a visita, através de seu sítio transformado em museu ao céu aberto, com aulas reveladoras
sobre sua obra, suas crenças e sobre as coisas da vida e do Sertão.
Com isso, mostra como ele construiu, à frente de seusítio, uma verdadeira galeria de
arte a céu aberto. Lá encontramos esculturasem tamanho natural ou gigantes de homens,
mulheres,crianças e animais, ilustrando cenas cotidianas que traduzem um poucoda cultura
nordestina, é uma exposição permanente a céu aberto, que acaba enriquecendo o espaço ali
constituído.
Como ele afirma no documentário:
Essas são exposições que a gente coloca, assim, a céu aberto, com afinalidade de
mostrar que a arte, ela não é só para estar no gabinete ouem escritórios, ou em
museus. Ela pode estar também na roça, fazendoparte desse povo que também
convive com o sol, com a poeira ecom a seca. Por isso é que ela está aí, ressecada no
sol.6
As esculturas de Véio são rústicas, feitas de traços e cortes simples e agudos que
traduzem e representam o imaginário popular sertanejo.
6Entrevista concedida a autora. Nossa Senhora da Glória, 09 de junho de 2012.
A madeira em seu estado bruto, vai aos poucos sendo ressignificada, a partir da
suanova existência e readaptação, fazendo parte deste universo único e particular de Véio que
afirma: “A inspiração nasce da visão. Então, numa árvore dessas, eu vejo todo tipo de
escultura que eu posso aproveitar. Só de olhar, eu já sei o que eu vou fazer e qual a história de
cada peça”. E ainda acrescenta: “Aqui eu converso com eles. Eles têm vida, têm alegria, têm
tristeza. Cada peça dessas é uma pessoa, é um filho, é um irmão, é uma família”.7
É certo que devido à exposição ao ar livre, ao sol e a chuva as peças de Véio terá vida
curta, mas sua eterna criatividade e paixão pela arte este cenário vai sempre se renovando,
resignificando.
Véio não fala só do homem nordestino, a religiosidade também está fortemente
presente em seu museu, através de peças produzidas demonstrando diversas devoções típicas
do catolicismo, encenando novenas, procissões, seguidas por fiéis. Apesar de se considerar
“um atoa”, deixa claro sua fé em um ser superior.
7Entrevista concedida a autora. Nossa Senhora da Glória, 09 de junho de 2012.
Fig.04 – Os personagens nordestinos presentes no
museu de Véio–Acervo Pessoal.
Diante do contexto, é possível afirmar que a história está dentro de nós, e não fora.
Neste sentido o acervo museológico possui a capacidade de ampliar o significado do tempo e
do espaço quando da visitação ao museu, ou seja, relaciona presente e passado em tempos,
lugares e cidades diferentes para além do que se pode ver construindo e reconstruindo a
identidade coletiva.
Nesta perspectiva a memória, Le Goff (1996), está a serviço do homem visitante no
museu. O potencial de despertar no ser a busca de sua memória está contido no museu e
permeia o visitante em todos os momentos da visitação, inclusive naqueles indivíduos que não
estão, num primeiro momento,dispostos a esta busca.
Segundo Abreu (2003), o museu consegue engenhosamente entrelaçar a “história
oficial” de uma época com a história de nossos avós, em que o tempo perde singularidade e a
memória une passado e presente, despertando o “espírito” de um tempo, por meio de
testemunhos vivos do passado. Ou seja, na tentativa de aproximar presente e passado, pela
memória, é interessante observar, por exemplo, como pequenos costumes são preservados por
diversas pessoas até os dias atuais.
Fig.05 - Museu do Artesão Véio – Acervo Pessoal.
Diante do exposto, é possível afirmar que Véio é um lutador para manter nossas
tradições e valores culturais (Figura 09), conseguindo a admiração de renomados críticos do
universo da arte, um homem apaixonado pela cultura local, pela cultura de seu povo.
2.1 – UM ARTESÃO APAIXONADO PELA ARTE
Em entrevista cedida à autora, em 09 de junho de 2012, é perceptível o amor, a paixão
pela arte, apesar de exercer também a função de lavrador como sua fonte de renda é através da
arte que ele se realiza, materializa seus pensamentos, sua ideias, seu eu. Além de seu
compromisso com a preservação da cultura, da arte. E ainda acrescenta: “eu não copio
trabalho de ninguém, eu crio”8, mostrando assim, sua particularidade, sua individualidade, sua
marca, o da criatividade no fazer artístico.
Quando questionado sobre a possibilidade da arte ser uma fonte de renda, um meio de
auto-realização ou ambas, argumenta: “Como artista não tenho como sobreviver em uma terra
tão pobre como é a nossa, a arte é mais como um lazer, um passatempo, hoje é também a
partir de agora uma fonte de renda, eu faço pensando no prazer pessoal”.9 Assim, é possível
concluir que a paixão pela arte está acima de lucros financeiros, mas acima de tudo, “lucro
espiritual”, que só um artista e apaixonados pela arte pode explicar seu valor.10Véio é uma
artista que apenas deseja revestir de símbolos, de representações, a história de sua gente,
como descrito no documentário:
Eu quis fazer um trabalho por amor à profissão, por respeito ao passadode um povo,
por ter uma história da arte num estado onde nãoé respeitada a cultura, então eu
passei a fazer o trabalho com esteobjetivo. Eu nasci assim com esta fascinação não
só pelas coisasantigas, mas pelas coisas do universo. Então eu não sabia, nem
faziapara me tornar um artista, mas fazia por uma necessidade que a própria mente
mandava.11
Segundo Chartier (1990), que tudo dentro da sociedade pode ser entendido como
representação e prática, e que as representações estão sempre presentes e lidas entre as linhas
de todos os atos que tomamos, sejam no campo da coletividade ou da individualidade.Ao
entrevistar o artesão Véio, este se diz se diz “palhaço da arte” e conversa com as esculturas,
8 Entrevista concedida a autora. Nossa Senhora da Glória, 09 de junho de 2012. 9Entrevista concedida a autora. Nossa Senhora da Glória, 09 de junho de 2012. 10Entrevista concedida a autora. Nossa Senhora da Glória, 09 de junho de 2012. 11DVDteca Arte na Escola – Material educativo para professor-propositor; 66.
“pessoas da família, que têm vida, alegria e tristezas”12.
2.2 – OBRAS DO ARTESÃO VÉIO
Véio passa a ganhar notoriedade na década de 1980 com suas esculturas em
miniaturas, feitas a canivete, esculpidas em palitos de fósforo, tendo sua marca registrada no
GuinnesWorld Book, como sendo as menores peças do mundo confeccionadas em madeira.O
artista ressalta em documentário que, para ele, as miniaturas não são competição,mas
desafios, e comenta:
é forma de mostrar para os amantes da arte que ela não é medidanem pelo tamanho,
nem pelo peso, a arte, pela sua criatividade, pelasua simplicidade, pela mensagem
que ela passa, pode ter 10 m., ou1mm., é o seu sentimento, é sua forma de
expressão.13
As obras de Véio ganha cada vez mais espaços em universidades, tais como a UNIT-
Universidade Tiradentes, como também em várias cidades do estado, e em boa parte do
Brasil: São Paulo, Salvador, Recife, Natal e Brasília, e ainda em outros países como EUA,
Chile, Portugal, França e Bélgica, e para o mundo. Além do mais,Véio é um grande entusiasta
da cultura local, conhecedor da história de Nossa Senhora da Glória e colecionar de relíquias
de nossa localidade. Conta também com exposições permanentes no Memorial de Sergipe e
no Museu da Gente Sergipana.
Na luta para manter nossas tradições e valores culturais, consegue a admiração de
renomados críticos do universo da arte e, aos poucos, graças ao elevado nível de sua
sensibilidade, seus trabalhos ganham destaque nos mais renomados museus de arte do país e
em outros países. Neste sentido, Véio ganha dimensões gigantescas, de Nossa Senhora da
Glória para o mundo.
Recentemente em outubro de 2012, em Paris, o artesão Véio participou da exposição
coletiva “A exposição Histoires de Voir - Show andTell”, marcando o lançamento do livro
“Teimosia da Imaginação” na versão francesa, na ocasião em cartaz na Fundação Cartier.
(Figura 10).Mesmo com estas notáveis e expressivas obras Véio afirma: “Se chegar alguém
aqui dizendo “parabéns” ou “não vejo nada”, para mim é a mesma coisa”.14
12Entrevista concedida a autora. Nossa Senhora da Glória, 09 de junho de 2012. 13DVDteca Arte na Escola – Material educativo para professor-propositor; 66. 14Entrevista concedida a autora. Nossa Senhora da Glória, 09 de junho de 2012.
É fato que além de inúmeras publicações de revistas de arte, a trajetória de Véio já foi
retratada em cinco documentários, a saber: “Véio- Tradição e Contemporaneidade”, “Nação
Lascada de Véio”, “A Glória do Sertão”, “Véio – O filme”, “O Universo Simbólico de Véio”,
e “Cavalhada de Poço Redondo”.
2.3 - AS REPRESENTAÇÕES DO HOMEM SERTANEJO
Véio pesquisa os costumes do homem sertanejo há 40 anos, fato que representa através
de suas esculturas esculpidas em madeira. Além disso, registra também em seu acervo os
costumes do sertanejo em peças que retratam os costumes de nossa gente, tais como a
gravidez e a tradição do parto com a ajuda da parteira e as crendices populares de enterrar o
umbigo da criança. Véio é também um contador de histórias do nosso folclore, sendo também
temas de sua preferência às histórias locais e as lendas. É fato que essa mesma compenetração
continua um traço marcante da personalidade do escultor sergipano Véio. Seus gestos e sua
Fig. 06 - Livro da exposição de Histoires de Voir -
Show andTell (Paris- 10/2012) –Acervo Pessoal.
fala parecem constantemente externar a gravidade de seus sentimentos e pensamentos, os
quais ele articula e transmite com a destreza de um verdadeiro mestre.
Véio não é só simplesmente um artesão e agricultor, mas um homem simples,
preocupado em resguardar a memória do homem sertanejo, cujo objetivo, assegura Henry
Rousso:
Seu atributo mais imediato é garantir a continuidade do tempo e permitir resistir à
alteridade, ao „tempo que muda‟, as rupturas que são o destino de toda vida
humana; em suma, ela constitui – eis uma banalidade – um elemento essencial da
identidade, da percepção de si e dos outros”. (ROUSSO, 1998, pp.94-95).
Véio tira das peças brutas a sua tradução da arte nordestina sob a interpretação do
cotidiano a crítica econômica, social e política da nossa gente nordestina. Através da arte Véio
encontra uma forma de questionar as mazelas sociais trazidas pelo povo sofredor sertanejo,
seja pelas condições climáticas do sertão, seja pela falta de políticas públicas voltadas para
amenizar o sofrimento da população carente do nordeste. Nesta perspectiva a arte popular
acaba desnudando uma realidade, ou seja, é a angústia humana presentes em todas as culturas.
Desse modo, Chartier (1990) esclarece que a História Cultural é importante para
identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma realidade social é construída,
pensada, dada a ler. No entanto, aHistória Cultural deve ser entendida como o estudo dos
processos com os quaisse constrói um sentido, uma vez que as representações podem ser
pensadas como“[...] esquemas intelectuais, que criam as figuras graças às quais o presente
podeadquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado”
(CHARTIER,1990,p.17).
É neste universo simbólico que Véio retrata o cotidiano das comunidades sertanejas
através de sua visão crítica. Assim, este universo representa não só o cotidiano dos grupos
vivenciais sertanejos, mas consegue também remetermos à abrangência antropológica do
homem contemporâneo, ou seja, aproximando tradição e modernidade.
Contudo, Véio não representa apenas um artista, mas é um verdadeiro museu vivo no
qual está guardada toda a nossa história local.Autodidata, Véio admirava a cultura popular
desde criança, quando começou a executar suas primeiras peças em cera de abelha.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A principal contribuição que se pretendeu dar com este trabalho foi estabelecer uma
rápida discussão a cerca das representações das obras do artesão conhecido popularmente por
Véio. Estudar o universo simbólico deste notável artista possibilitou-me deparar com duas
prerrogativas: a sensibilidade do artesão e sua história.
Em relação a sua sensibilidade, o artesão utiliza a madeira praticamente em estado
bruto, o que a partir de sua visão artística são apenas readaptadas para sua nova existência,
resignificadas para integrarem este mundo particular e único de Véio. É neste mundo
simbólico que o artista vive.
Entretanto, ao observarmos uma obra de arte depende de nossa experiência,
conhecimento e sensibilidade para podermos entender suas múltiplas representações. É
Fig. 07 - Sítio “SóArte” – Acervo Pessoal.
necessário que tenhamos disposição e imaginação para podermos compreender os
significados de uma arte e sua dimensão.
A história de Cícero Alves dos Santos é permeada de tristezas, alegrias, decepções,
superação e um amor incondicional a arte e a cultura, demonstrando a necessidade em
valorizar as identidades, em rememorar as tradições.
Ao utilizar a madeira como matéria prima tem a consciência de percebê-la como
elemento fundamentalmente inserido em um ecossistema, na qual precisa ser conservada e
preservada, não só pelos artesãos, artistas e usuários mais sim, de toda a humanidade, pois se
constitui em um dos mais importantes recursos naturais. No que concerne à madeira, tudo
causa influência ao fazedor de arte, textura, densidade etc. A forma como esta matéria-prima
se apresenta diante do homem e do mundo, parece despertar um desejo de transformar
pensamento em peças, e objetos de arte.
Neste trabalho fez-se necessário entender que a relevância desta discussão está
centrada na concretização de um sonho que o artesão tinha em criar um espaço vivo da
memória do povo sertanejo, com o intuito de preservar para que as gerações futuras pudessem
se apropriar das memórias da nossa gente, do cotidiano das comunidades sertanejas, com seus
misticismos, lendas e lutas relacionadas à natureza, vista a partir do olhar crítico de um
artesão simples e popular, com uma sabedoria grandiosa.
Desde seus cinco anos de idade já demonstrava habilidades com o fazer artístico, um
autodidata, moldava suas ideias inicialmente com a cera de abelha, material que tinha ao seu
redor, que ao tornar-se escassa passa a utilizar a madeira como sua matéria prima, utilizando-a
ultimamente para realização do seu fazer artístico, do seu eu, da sua subjetividade.
Conclui-se que o artesanato produzido pelo artesão Véio, assim como o acervo que
encontramos em seu museu (Figura 09), possuem de alguma forma, características culturais
do município de Nossa Senhora da Glória, agregando valores culturais que devem ser
preservados, assim como os visitantes de outras regiões possam conhecer a cultura e valores
do povo sertanejo, e o mais interessante é que o visitante é guiado pelo próprio artesão, cada
peça narrada tem a representação própria do autor, com a competência e simplicidade de um
autêntico nordestino. E, por fim, quando questionado sobre o que a arte representa para ele,
mas uma vez surpreende: “A arte é tudo, vida, alegria, comunicação, política”.15
15Entrevista concedida a autora. Nossa Senhora da Glória, 09 de junho de 2012.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABREU, Regina; CHAGAS, Mário. (Org.). Memória e Patrimônio: ensaios contemporâneos.
Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
BAY, Dora Maria Dutra. Véio/Instituto Arte na Escola. São Paulo: Instituto Arte na Escola,
2006.(DVDteca Arte na Escola – Material educativo para professor-propositor; 66).
CHARTIER, Roger: A história cultural entre práticas e representações. Tradução de Maria
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VÉIO: Entrevista concedida a autora. Nossa Senhora da Glória, 09 de junho de 2012.
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http://www.galeriaestacao.com.br/artista/7. Acessado dia 08/12/2012.