inverno de 1974 hospital psiquiátrico de roozbeh, teerão fileescuro. sorrio, desferindo ‑lhe um...

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11 Inverno de 1974 Hospital Psiquiátrico de Roozbeh, Teerão Oiço a voz de alguém a declamar, e os versos repetitivos batem levemente como água na margem da minha consciência. Se tivesse um livro, lê‑lo‑ia. Se tivesse uma canção, cantá‑la‑ia. Olho em volta até ver um velhote parado a alguns metros de distância declamando num tom de voz constante e ausente. O lugar não me parece familiar. O roupão azul que me cobre o corpo, a cadeira de rodas onde estou sentado, a luz do sol que entra pelas persianas e me aquece — tudo me parece estranho. Se conhecesse uma dança, dançá‑la‑ia. Se conhecesse um cântico, entoá‑lo‑ia. Se tivesse uma vida, arriscá‑la‑ia. Se pudesse ser livre, tentá‑lo‑ia. Lá fora no pátio, homens de todas as idades e feitios passeiam‑se lentamente de roupão azul. Têm todos algo de peculiar. Parecem perdidos. Subitamente, uma vaga de emoções invade‑me o peito e sobe‑ ‑me à garganta. Uma enfermeira baixinha com um rosto cheio e simpático que parece uma maçã corre para mim, planta‑me as mãos nos ombros e grita: — Ajudem‑me aqui, ajudem‑me! Um homem de uniforme branco aproxima‑se a correr e tenta segurar‑me. — Fica na cadeira, querido. Não saias da cadeira — berra a Maçã, o que significa que devo estar a mexer‑me. Concentro‑me em ficar quieto e olho para o velhote no outro lado da sala. Ele continua a fitar‑me e a repetir freneticamente o seu mantra:

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Inverno de 1974Hospital Psiquiátrico de Roozbeh, Teerão

Oiço a voz de alguém a declamar, e os versos repetitivos batem levemente como água na margem da minha consciência.

Se tivesse um livro, lê ‑lo ‑ia.Se tivesse uma canção, cantá ‑la ‑ia.

Olho em volta até ver um velhote parado a alguns metros de distância declamando num tom de voz constante e ausente. O lugar não me parece familiar. O roupão azul que me cobre o corpo, a cadeira de rodas onde estou sentado, a luz do sol que entra pelas persianas e me aquece — tudo me parece estranho.

Se conhecesse uma dança, dançá ‑la ‑ia.Se conhecesse um cântico, entoá ‑lo ‑ia.Se tivesse uma vida, arriscá ‑la ‑ia.Se pudesse ser livre, tentá ‑lo ‑ia.

Lá fora no pátio, homens de todas as idades e feitios passeiam ‑se lentamente de roupão azul. Têm todos algo de peculiar. Parecem perdidos.

Subitamente, uma vaga de emoções invade ‑me o peito e sobe‑‑me à garganta. Uma enfermeira baixinha com um rosto cheio e simpático que parece uma maçã corre para mim, planta ‑me as mãos nos ombros e grita:

— Ajudem ‑me aqui, ajudem ‑me! Um homem de uniforme branco aproxima ‑se a correr e tenta

segurar ‑me.— Fica na cadeira, querido. Não saias da cadeira — berra a

Maçã, o que significa que devo estar a mexer ‑me. Concentro ‑me em ficar quieto e olho para o velhote no outro lado da sala. Ele continua a fitar ‑me e a repetir freneticamente o seu mantra:

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Se tivesse um cavalo, montá ‑lo ‑ia.Se tivesse um cavalo, montá ‑lo ‑ia.Se tivesse um cavalo...

Levam ‑me para um quarto com uma cama e a Maçã anuncia: — Vou dar ‑te um sedativo para te sentires melhor, querido.Sinto uma picada no braço e de repente a minha cabeça e os

meus braços tornam ‑se insuportavelmente pesados e fecham ‑se os meus olhos.

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Verão de 1973 Teerão

Os Meus Amigos, a Minha Família e a Minha Rua

Dormir no terraço no verão é costume em Teerão. O calor seco do dia acalma depois da meia ‑noite e os que dormem nos terraços acordam com o primeiro sol no rosto e o ar fresco nos pulmões. A minha mãe opõe ‑se terminantemente a esse costume, lembran do‑‑me todas as noites de que «Todos os anos centenas de pessoas caem dos terraços». Eu e o meu melhor amigo, o Ahmed, trocamos sor‑risos furtivos a cada advertência e depois subimos as escadas para passar a noite sob as estrelas que parecem suficientemente próxi‑mas para tocar. A rua em baixo assenta numa miscelânea de luz artificial, sombra e ruído. Um automóvel desce lentamente a rua deserta, com cuidado para não acordar ninguém, enquanto um cão vadio ao longe solta uma série de latidos irritantes.

— É a tua mãe que está a chamar — murmura o Ahmed no escuro. Sorrio, desferindo ‑lhe um leve pontapé a que ele facilmente se esquiva, rebolando.

A nossa casa é a mais alta do bairro, o que torna o nosso terraço um lugar ideal para observar as estrelas. Com efeito, dar às estrelas nomes de amigos e pessoas que amamos é um dos nossos passatem‑pos preferidos.

— Será que toda a gente tem uma estrela? — pergunta o Ahmed.— Só as pessoas boas.— E quanto melhor fores, maior a tua estrela, certo?— Maior e mais brilhante — respondo, como sempre quando

ele faz a mesma pergunta.— E a tua estrela serve ‑te de guia quando estás em dificuldades,

certo?

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— A tua estrela e as estrelas das pessoas que amas.O Ahmed fecha um olho e levanta o polegar para ocultar uma

das estrelas mais brilhantes. — Estou farto de olhar para o teu carão gordo.— Então cala ‑te e dorme — replico, rindo ‑me. Deixo o olhar

repousar no vazio aveludado entre cada pontinho de luz. Os meus olhos descem pelo céu até se deterem nos familiares altos e baixos das montanhas Alborz, que serpenteiam entre o deserto e as águas azul ‑esverdeadas do mar Cáspio. Perco ‑me por um momento ten‑tando decidir se a escuridão é mesmo negra ou de um azul tão escuro que apenas parece negra por comparação.

— Gostava de saber porque é que as pessoas temem tão impu‑dentemente a escuridão — medito. O Ahmed ri ‑se por entre dentes. Sei sem perguntar que se está a rir do meu vocabulário excêntrico, fruto de uma vida inteira de leituras intensas. Um dia o meu pai chamou ‑me e ao Ahmed à parte e perguntou ‑me, diante de parentes e amigos da família, o que eu achava que era a vida. Respondi pron‑tamente que a vida era uma série aleatória de vinhetas graciosamente compostas, ligadas superficialmente por um fio de personagens e tempo. Os amigos do meu pai chegaram mesmo a aplaudir, dei xan do‑‑me muito envergonhado. O Ahmed inclinou ‑se para mim e sus‑surrou que em breve eu seria declarado o rapaz de dezassete anos mais velho do mundo, sobretudo se continuasse a dizer coisas como «impudentemente» e «vinhetas graciosamente compostas».

Eu e o Ahmed acabámos o décimo primeiro ano e vamos entrar para o nosso último ano de escola secundária no outono. Aguardo com ansiedade o fim da escola secundária, como qualquer outro jovem de dezassete anos, mas essa alegre expectativa é atenuada pelos planos do meu pai de me enviar para os Estados Unidos para estudar engenharia civil. Há muitos anos, o meu pai trabalhou como guarda ‑florestal, protegendo as florestas nacionalizadas de pessoas que abatiam as árvores ilegalmente para lucro pessoal. Agora trabalha num escritório, gerindo uma região inteira com um exército de guardas ‑florestais às suas ordens.

— O Irão precisa urgentemente de engenheiros — lembra ‑me o meu pai, sempre que pode. — Estamos prestes a mudar de um país

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de agricultura tradicional para um país industrial. Um homem for‑mado em engenharia numa universidade americana assegura um grande futuro para si e para a sua família, além de gozar do prestígio de ser chamado «Sr. Engenheiro» para o resto da vida. — Eu amo o meu pai, e nunca lhe desobedeceria, mas odeio mate mática, odeio a ideia de vir a ser engenheiro e odiaria ser chamado «Sr. En genheiro». Nos meus sonhos licencio ‑me em literatura e estudo a filosofia dos Gregos antigos, a teoria da evolução, o marxismo, a psicanálise, Erfan e o budismo. Ou então licencio ‑me em cinema e torno ‑me escritor ou realizador, alguém com algo importante para dizer.

Por enquanto vivo com os meus pais num bairro de classe média. Temos uma típica casa iraniana com um pátio modesto, um grande quarto de hóspedes e uma hose — uma pequena piscina no pátio da frente. No nosso bairro, como em qualquer outro em Teerão, as casas foram construídas coladas umas às outras e estão separadas por muros altos. A nossa tem dois andares completos, e o meu quarto ocupa uma pequena parte do segundo andar, onde um pátio enorme está ligado ao topo do edifício por uma pesada escadaria de aço. A nossa casa é a mais alta do bairro, e está virada para sul.

— Nunca moraria numa casa voltada para norte, nem que ma dessem de graça — afirma repetidamente a minha mãe. — Nunca apanham sol. São um viveiro de micróbios. — A minha mãe nunca terminou a escola secundária, mas fala de questões de saúde com a autoridade de uma doutorada em Harvard. Tem um remédio para todos os males: tisanas para curar a depressão, óleo de espinheira para esmagar as pedras nos rins, flores em pó para tratar sinusites, folhas secas para eliminar o acne e comprimidos para crescermos altos como árvores — apesar de ela ter apenas um impressionante metro e meio de altura, sem calçado.

A paz das noites de verão desfaz ‑se com os ruídos das famílias a iniciar o seu dia, e a nossa rua enche ‑se de miúdos de todas as idades. Os rapazes berram e brigam, perseguindo bolas de futebol de plástico barato, enquanto as raparigas passeiam de casa em casa, fazendo o que as raparigas fazem juntas. As mulheres reúnem ‑se em zonas dife‑rentes da rua, e é fácil perceber quem gosta de quem pela maneira

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como se juntam. O Ahmed dividiu estes ajuntamentos em três grupos: as comissões de mexericos do leste, do oeste e do centro.

O Ahmed é um rapaz alto e magro de feições morenas e sorriso radioso. O seu corpo forte mas esguio, queixo largo e voluntarioso e olhos vivos cor de avelã fazem dele o exemplo perfeito do jovem saudável, na opinião especialista da minha mãe. É bastante esti‑mado no bairro, e cómico. Digo ‑lhe que podia vir a ser um grande comediante se levasse mais a sério o talento que Deus lhe deu.

— Sim, mais a sério — responde ele. — Posso tornar ‑me o pa‑lhaço mais sério do país.

Conheço o Ahmed desde os meus doze anos, quando a minha famí‑lia se mudou para o bairro. Falámos pela primeira vez na escola quando três rufias me estavam a espancar. Os outros miúdos ficaram apenas a ver, mas o Ahmed correu para me ajudar. Os rapazes eram altos, gran‑des e feios, e apesar dos nossos esforços heroicos apa nhámos uma tareia.

— Sou o Pasha — apresentei ‑me, depois da briga.O Ahmed sorriu e deu ‑me um aperto de mão. — Porque estavam a lutar? — perguntou.Eu ri ‑me. — Não sabias? Porque me ajudaste?— Três contra um! Tenho dificuldade em aceitar isso. Claro, sabia

que íamos levar uma sova, mas pelo menos não seria tão injusto como três contra um.

Percebi naquele momento que o Ahmed seria o meu melhor amigo para sempre. A sua coragem e atitude otimista conquista‑ram ‑me imediatamente. A experiência uniu ‑nos e levou o meu pai, antigo campeão de boxe de pesos pesados, a ensinar ‑nos a praticar boxe, para grande consternação da minha mãe.

— Vais torná ‑los violentos — queixava ‑se ao meu pai, que a igno rava. Para emendar as coisas, todas as noites depois do jantar ela estendia ‑me um copo de um líquido amarelo que cheirava a urina de cavalo num dia quente de verão. — Isto irá inverter o que o teu pai te está a fazer ao caráter — garantia ‑me, obrigando ‑me a beber a mistela repugnante.

Eu adorava o boxe, mas o remédio da minha mãe quase me levou a desistir.

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Após alguns meses de treino, quando os nossos socos se torna‑ram decididos — curtos e rápidos, mas fortes quando tinham de ser —, comecei a ansiar por uma desforra com os três rufias da escola. O meu pai soube dos nossos planos de vingança e interveio.

— Sente ‑se, Sr. Pasha — disse ‑me ele um dia, no final dos trei‑nos. Depois apontou para o Ahmed. — Queres juntar ‑te a nós, por favor?

— Claro, Sr. Shahed — respondeu o Ahmed. Ao sentar ‑se ao meu lado, sussurrou: — Acho que estamos metidos em sarilhos, Sr. Pasha!

— Quando aprendemos o boxe — começou o meu pai, pensa‑tivamente —, entramos para a fraternidade de atletas que nunca levantam a mão contra pessoas mais fracas do que eles.

A minha mãe deixou o que estava a fazer e veio colocar ‑se, com um ar severo, ao lado do meu pai.

— Mas, pai, se não batemos em pessoas mais fracas do que nós, em quem é que batemos? — perguntei, espantado. — E não seria estúpido escolher pessoas mais fortes do que nós?

O meu pai esforçava ‑se por não olhar para a minha mãe, que o fitava como um tigre vigiando um veado mesmo antes do salto final e fatal.

— Eu ensinei ‑vos o boxe para que pudessem defender ‑se — resmungou. — Não vos quero a provocar brigas.

Eu e o Ahmed não conseguíamos acreditar no que estávamos a ouvir.

— Quero que me prometam que respeitarão sempre o código da nossa fraternidade — insistiu o meu pai.

Devemos ter levado algum tempo a reagir.— Quero que prometam — repetiu ele, levantando a voz.E assim, com relutância, eu e o Ahmed juntámo ‑nos à fraterni‑

dade de atletas que nunca batem em rufias que partem a cara a miúdos mais fracos que eles. Na altura, claro, não fazíamos ideia de que a tal fraternidade nunca existiu.

— O Iraj tem sorte por o teu pai nos ter obrigado a prometer — comenta o Ahmed mais tarde, levando ‑nos os dois a rir.

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O Iraj é um miúdo baixo e desmazelado com um nariz comprido e bicudo cujo rosto queimado pelo sol lhe dá um aspeto de indiano. É inteligente, tem as melhores notas da nossa escola e adora física e matemática, as duas disciplinas que eu mais odeio.

Estou convencido de que o Iraj gosta da irmã mais velha do Ahmed, pois não consegue tirar ‑lhe os olhos de cima quando ela está na rua. Toda a gente sabe que não se pode gostar da irmã de um amigo como se ela fosse uma rapariga de outro bairro. Se eu fosse o Ahmed e apanhasse o Iraj a olhar para a minha irmã, dava‑‑lhe uma grande sova. Mas não sou o Ahmed.

— Ei — chama ele, esforçando ‑se por não sorrir ao assustar o Iraj —, para de olhar para ela, senão quebro a minha promessa à sagrada irmandade da fraternidade do boxe.

— Sagrada irmandade da fraternidade do boxe? — murmuro, com um sorriso. — Irmandade e fraternidade são a mesma coisa. Não devias usá ‑las na mesma frase.

— Ah, tu cala ‑te. — O Ahmed ri ‑se.

O Iraj é o campeão de xadrez do nosso bairro. É tão bom que já ninguém está disposto a jogar contra ele. Enquanto jogamos fute‑bol na rua, o Iraj joga xadrez sozinho, contra si mesmo.

— Quem está a ganhar? — pergunta o Ahmed, com um sorriso matreiro. O Iraj ignora ‑o. — Já alguma vez bateste a ti mesmo? — insiste o Ahmed. — Podias, sabes... se não estivesses tão obcecado com a minha irmã.

— Não estou obcecado com a tua irmã — resmunga o Iraj, revi‑rando os olhos.

— Pois — replica o Ahmed, acenando com a cabeça. — Se tive‑res alguma dificuldade em te bateres, diz ‑me, que eu terei todo o prazer em fazê ‑lo por ti.

— Sabes — provoco —, costumava zangar ‑me com ele por olhar para a tua irmã, mas talvez não seja assim tão mau ter um campeão de xadrez como cunhado.

— Cala ‑te — resmunga o Ahmed —, senão assalto a despensa da tua mãe e preparo ‑te uma poção especial que te fará crescer pelos na língua.

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A ameaça tem algum peso, considerando a maneira como a minha mãe tem aplicado os seus conhecimentos únicos e intuição para me diagnosticar como introvertido agudo.

— Sabes o que acontece às pessoas que guardam tudo para si? — pergunta ela, sem esperar pela minha resposta. — Ficam doen‑tes. — Quando argumento que não sou introvertido, ela lembra‑‑me a vez em que eu tinha quatro anos e caí das escadas. As minhas duas tias, os meus dois tios e os meus avós tinham vindo visitar ‑nos nesse dia, e a minha mãe calcula que ver ‑me cair por dois lanços de escadas abaixo quase provocou dois ataques de coração, três derrames cerebrais e meia dúzia de pequenas úlceras.

— Partiste a tíbia em três sítios! — barafusta. — O médico disse que tinha visto homens adultos a chorar depois de uma fra‑tura daquelas, mas tu não. Sabes o que esse tipo de esforço te faz ao corpo?

— Não — respondo.— Provoca o cancro.Depois cospe três vezes para esconjurar o pensamento.Para curar a minha introversão, ela exige que eu beba uma infu‑

são escura que parece e cheira a óleo de motor usado. Queixo ‑me de que o remédio tem um sabor horrível e ela diz ‑me para me calar e parar de me queixar.

— Pensei que esta poção fosse para me tirar da casca — lembro‑‑lhe.

— Cala ‑te — ordena —, queixar es‑te não conta. Se quiseres ser bem‑sucedido na vida tens de te obrigar a ser extrovertido — ex‑plica. — Os introvertidos acabam como poetas solitários ou escri‑tores indigentes.

— Então — medita o Ahmed um dia —, o óleo de motor torna‑‑te extrovertido e a urina de cavalo ajuda ‑te a acalmar. — Ele abana a cabeça, com um ar condoído. — Quando a tua mãe acabar de tratar de ti, estarás completamente maluco.