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1 Cadernos de Educação de Infância Jan./Mar. 2002 Investigação INVESTIGAÇÃO PROFISSÃO, PROFISSIONALIDADE E PROFISSIONALIZAÇÃO DOS EDUCADORES DE INFÂNCIA Maria Goreti Torres * , Catarina Mouta ** , Ana Luísa Meneses ** Introdução Constituindo a Educação de Infância uma realidade relativamente recente no sistema educativo, parece oportuno e adequado reflectir sobre a profissão que lhe está associada – o educador de infância. O presente artigo constrói-se em torno de alguns conceitos de referência – a profissão, a profissionalização e a profissionalidade do educador de infância, tendo em vista um melhor entendimento da realidade profissional deste agente educativo em Portugal. A revisão de literatura, relativa a esta temática, torna possível vislumbrar uma pluralidade de abordagens que se inscrevem em paradigmas de inspiração positivista, fenomenológica e sociológica e que vão desde abordagens estruturais e funcionalistas a abordagens construtivistas e interaccionistas, visando quer interesses de matéria técnica, quer interesses de matéria prática e emancipatória. Pretende-se, neste texto, elaborar um enquadramento geral da literatura relativamente à temática enunciada, tendo como critério orientador a afinidade dos trabalhos de investigação em relação ao mesmo alvo. A primeira parte deste trabalho incide, essencialmente, sobre a profissão propriamente dita. Há aqui que fazer referência ao processo de profissionalização da ocupação e aos elementos que mais consensualmente são abrangidos pelo conceito de profissão, tornando possível a sua caracterização. Estes elementos organizam-se em torno de noções como profissionalismo, deontologia, associativismo, autonomia (ou suas limitações), funções e direitos e deveres consignados aos educadores de infância. Numa segunda parte, tenta-se uma articulação dos quadros conceptual e pragmático, através da exploração do conceito de profissionalidade. I - Educadores, profissão e profissionalização * Mestranda em Sociologia da Infância (Universidade do Minho, Braga). ** Educadoras especializadas em Educação de Infância e Básica Inicial, variante de Expressões Artísticas Integradas, pela Universidade do Minho, Braga.

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Cadernos de Educação de InfânciaJan./Mar. 2002

Investigação

INVESTIGAÇÃO

PROFISSÃO, PROFISSIONALIDADE E PROFISSIONALIZAÇÃO DOS EDUCADORES DE INFÂNCIA

Maria Goreti Torres *, Catarina Mouta **, Ana Luísa Meneses **

Introdução

Constituindo a Educação de Infância uma realidade relativamente recente no sistema

educativo, parece oportuno e adequado reflectir sobre a profissão que lhe está

associada – o educador de infância.

O presente artigo constrói-se em torno de alguns conceitos de referência – a profissão,

a profissionalização e a profissionalidade do educador de infância, tendo em vista um

melhor entendimento da realidade profissional deste agente educativo em Portugal.

A revisão de literatura, relativa a esta temática, torna possível vislumbrar uma

pluralidade de abordagens que se inscrevem em paradigmas de inspiração positivista,

fenomenológica e sociológica e que vão desde abordagens estruturais e funcionalistas

a abordagens construtivistas e interaccionistas, visando quer interesses de matéria

técnica, quer interesses de matéria prática e emancipatória. Pretende-se, neste texto,

elaborar um enquadramento geral da literatura relativamente à temática enunciada,

tendo como critério orientador a afinidade dos trabalhos de investigação em relação ao

mesmo alvo.

A primeira parte deste trabalho incide, essencialmente, sobre a profissão propriamente

dita. Há aqui que fazer referência ao processo de profissionalização da ocupação e

aos elementos que mais consensualmente são abrangidos pelo conceito de profissão,

tornando possível a sua caracterização. Estes elementos organizam-se em torno de

noções como profissionalismo, deontologia, associativismo, autonomia (ou suas

limitações), funções e direitos e deveres consignados aos educadores de infância.

Numa segunda parte, tenta-se uma articulação dos quadros conceptual e pragmático,

através da exploração do conceito de profissionalidade.

I - Educadores, profissão e profissionalização * Mestranda em Sociologia da Infância (Universidade do Minho, Braga). ** Educadoras especializadas em Educação de Infância e Básica Inicial, variante de Expressões Artísticas Integradas, pela Universidade do Minho, Braga.

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Investigação

Levar a cabo uma reflexão acerca do que é, actualmente, a profissão de educador de

infância implica, necessariamente, a perscrutação e a clarificação dos sentidos a que o

lexema profissão alude.

O conceito de profissão é decorrente, mormente, de uma construção social, sendo, por

consequência, susceptível de sofrer alterações de acordo com as condições sociais

em que é utilizado. O facto de variar em função do tempo e do contexto em que ocorre

faz com que esta noção se torne, de certo modo, híbrida e de difícil aproximação. Com

efeito, o vocábulo profissão dá ensejo a uma pluralidade de significações, implicando,

em virtude disso, a inexistência de uma definição fixa ou universal1 (Popkewitz, 1991).

A profissão não deve ser considerada como um somatório de características

distintivas, mas como um processo de emergência e diferenciação social de

determinado grupo ocupacional, que faz variar o estatuto e o reconhecimento das

profissões ao longo dos tempos. Sociologicamente, profissão pode ser entendida

como «(...) o desempenho de uma actividade humana, apoiada num saber e em

valores próprios, possuidora de atributos específicos e como tal reconhecida pelo todo

social e confirmada pelo Estado» (Sarmento, 1994:38).

O rótulo profissão é, normalmente, utilizado para identificar um grupo especializado,

altamente formado, competente e digno de confiança pública. Todavia,

frequentemente, a profissão faz dos seus serviços uma forma de obtenção de

prestígio, de poder e de estatuto económico, ou seja, desenvolve uma autoridade

cultural e social (Popkewitz, 1991).

A problemática das profissões foi, desde sempre, objecto de análise da sociologia,

com Carr Saunders, Illich e Parsons, entre outros. A partir dos anos 70, as correntes

construtivistas e interaccionistas-simbólicas dominaram a sociologia das profissões.

Os teóricos funcionalistas partem de um tipo ideal de profissão – liberal – e fundam a

distinção entre duas acepções: ocupação e profissão. Nesta perspectiva, os diferentes

grupos ocupacionais são, ou não, profissionais, em função da proximidade em relação

a um conjunto de características próprias das “verdadeiras” profissões (Nóvoa, 1992 e 1 Existem, por exemplo, diferenças notórias entre as tradições anglo-americanas e europeias relativamente à significação do termo profissão. Em diversos países europeus não existia, até há relativamente pouco tempo, um termo equivalente à palavra anglo-saxónica profissão: «Este termo foi trazido para a língua de muitos países de modo a descrever as formações sociais do trabalho no contexto da classe média, a importância cada vez maior da especialização no processo de produção/reprodução e, especificamente no ensino, o esforço no sentido de um prestígio profissional crescente. O conceito anglo-americano de profissão não é um termo neutro que possa ser facilmente incorporado noutros vocabulários nacionais, pois impõe uma “lente” interpretativa sobre o modo como as profissões funcionam. O debate americano sobre a profissão docente, por exemplo, identifica um tipo ideal de ocupação altruísta que está separada das funções do Estado. A autonomia dos profissionais, o conhecimento técnico, o controlo da profissão sobre remunerações usufruídas e ainda uma nobre ética do trabalho são características que servem para definir uma profissão. Contudo, este tipo ideal tem uma frágil base de sustentação, na medida em que ignora as lutas políticas, os confrontos e os compromissos que estão envolvidos na formação das profissões» (Nóvoa,

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Sarmento, 1994), respectivamente:

i) um saber especializado, expresso através de um vocabulário técnico, adquirido

no decorrer de uma longa formação escolar;

ii) controlo de admissão à profissão;

iii) existência de um código deontológico profissional;

iv) autonomia profissional;

v) associações profissionais, distintas dos sindicatos;

vi) condições de trabalho adequadas;

vii) orientação para o cliente e o ideal de serviço.

A aplicação destas características à profissão docente possibilitou que a

considerassem (tal como ao grupo dos enfermeiros e de outros trabalhadores sociais)

como uma semiprofissão, uma vez que, comparativamente às profissões liberais, a

autonomia se vislumbrava mais reduzida, o direito a uma comunicação privilegiada

menos estabelecido e um status menos consignado (Etzioni, 1969). No entanto, na

realidade, esta classificação das profissões acabava por definir muito mais uma

hierarquia social do que profissional. Também investigadores como Marc Maurice e

William Goode (cit. Nóvoa, 1987) concluíram que era inútil estudar um grupo

profissional através da observação de um tipo ideal de profissão, sem colocar em

causa os seus fundamentos e atributos sociais.

Actualmente, denota-se um esforço crescente do Estado no controlo e burocratização

dos docentes, das escolas e da educação. Com base neste pressuposto, alguns

autores questionam-se quanto à validade do conceito de profissão atribuído ao grupo

ocupacional dos professores / educadores. Encontra-se, como agravante desta

situação, a componente maioritariamente feminina da profissão. O Estado e os

docentes rivalizam-se pelo controlo do acto educativo, e esta tensão vai no sentido da

proletarização dos professores / educadores. Esta proletarização imprime um efeito

desqualificador ao trabalho docente, ao fazer integrar curricula de base condutista,

originando uma separação entre as fases de concepção e execução – a elaboração

dos curricula e dos programas fica a cargo de especialistas científicos, sob o controlo

estatal. O professor / educador concretiza pedagogicamente as orientações

concebidas, o que enfatiza a tecnicização do seu trabalho, uma consequente perda de

autonomia no processo de ensino e, outrossim, uma degradação do seu estatuto

(Sarmento, 1994 e Nóvoa, 1992). Daqui se infere que na profissão docente influem,

1992:38,39).

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sobretudo, dois mecanismos opostos, definidos por Mark Ginsburg da seguinte forma:

«A profissionalização é um processo através do qual os

trabalhadores melhoram o seu estatuto, elevam os seus

rendimentos e aumentam o seu poder/autonomia. Ao invés, a

proletarização provoca uma degradação do estatuto, dos

rendimentos e do poder/autonomia; é útil sublinhar quatro

elementos deste último processo: a separação entre a concepção

e a execução, a estandardização das tarefas, a redução dos

custos necessários à aquisição da força de trabalho e a

intensificação das exigências em relação à actividade laboral»

(cit. Nóvoa, 1992:23).

A profissionalização constitui-se, deste modo, como um verdadeiro instrumento de

defesa contra o normativismo do Estado, funciona como um travão pelejador

relativamente ao seu poder, nomeadamente através da criação de competências e de

uma auto-imagem profissional no grupo docente.

Em Portugal, a investigação tem identificado um processo crescente de

profissionalização dos docentes, o qual só é compreensível com o entendimento dos

antagonismos originados na acção social e na construção histórica. Isto implica um

esclarecimento das interacções que existem entre os docentes, docentes / outros

profissionais e docentes / Estado (Sarmento, 1994).

Na perspectiva de António Nóvoa (1992), a profissão docente constitui uma profissão

do tipo funcionário ou burocrático, edificada historicamente pela integração de duas

dimensões:

a) A construção de um corpo de conhecimentos e técnicas próprias e específicas da

profissão docente, o qual é permanentemente reelaborado – corpo de saberes2.

b) A organização de um conjunto de normas e valores que devem pautar a actividade

profissional docente3.

A construção da profissão docente percorre, igualmente, quatro etapas constitutivas

(as quais não devem, porém, ser lidas numa perspectiva sequencial rígida) (Idem):

!Exercício a tempo inteiro da actividade docente;

!Estabelecimento de um suporte legal para o exercício da actividade docente

que funciona como instrumento de controlo e de defesa profissionais;

!Criação de instituições específicas para a formação de professores/educadores; 2 Sublinhados nossos.

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!Constituição de Associações Profissionais.

Recentemente, foi salientada uma nova etapa, respeitante ao processo de

desfuncionalização e exigência crescente de autonomia face ao Estado (Nóvoa, cit.

Sarmento, 1994).

Todos os estudos apontam para a existência, em Portugal, de uma relação conflitual

constante entre as políticas governamentais e a afirmação de autonomia por parte do

grupo docente. Esta divergência expressa-se na forma de compromissos, de

negociações, de ocupação de zonas incertas e até mesmo de desentendimentos

abertos. Esta tensão traduz a dinâmica de um processo de profissionalização que

constitui o estatuto do grupo ocupacional docente actual (Idem).

É possível, em síntese, e perante o quadro traçado, afirmar que os educadores

constituem um grupo ocupacional em plena profissionalização.

Para uma melhor caracterização da profissão de educador de infância, perscrutam-se,

ainda, alguns elementos que mais consensualmente são abrangidos pelo conceito de

profissão em causa, designadamente, 1) o associativismo, 2) os direitos e os deveres

consignados aos educadores e 3) a deontologia.

1) As Associações Profissionais

A indefinição do estatuto e o relativo isolamento social em que os educadores vivem

reforça um sentimento de solidariedade entre estes membros do grupo docente e, num

certo sentido, faz emergir uma identidade profissional.

As associações de educadores desempenham um papel preponderante na promoção

de uma referência identitária, através da consolidação de um saber próprio destes

profissionais e da elaboração de normas de conduta profissional. Com efeito, uma

associação de educadores constitui um mecanismo institucionalizado que visa,

mormente, a defesa dos direitos profissionais destes agentes educativos, a definição

dos seus deveres, a promoção do seu estatuto, a salvaguarda de uma maior

autonomia e, ainda, a projecção social da profissão.

Estes organismos podem, neste sentido, «(...) desempenhar um papel decisivo,

favorecendo a delimitação de uma territorialidade própria da profissão docente, no

3 Sublinhados nossos.

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quadro de uma co-responsabilização na área da formação e de uma intervenção activa

na regulação da acção profissional» (Nóvoa, 1990:7).

A formação de associações constitui, deste modo, um momento importante do

processo de profissionalização, na medida em que implica a existência de uma união

de profissionais em corpo solidário e a elaboração de uma mentalidade comum (Idem,

1991).

A Associação de Profissionais de Educação de Infância - A.P.E.I. – surgiu em 1980,

com uma assembleia geral de profissionais de educação de infância, reunindo cerca

de 200 educadores de infância. Esta Associação veio dar voz aos interesses e diminuir

o isolamento em que a maior parte destes agentes vivia.

A A.P.E.I. pode ter um efeito valioso na Educação de Infância, quer através do

favorecimento de uma aproximação dos educadores aos professores do ensino básico

e secundário, quer através da impedição da descaracterização deste grupo (através,

concretamente, do reforço de elementos específicos da cultura profissional). Este

organismo exerce, ainda, um papel positivo no que concerne à promoção da formação

contínua destes profissionais, indispensável do ponto de vista dos saberes e da

regulação da profissão (Ibidem, 1990).

Esta Associação possui um veículo fundamental para estabelecer o contacto entre os

educadores: os “Cadernos de Educação de Infância”, revista trimestral, que

proporciona um espaço de troca de experiências e de partilha de conhecimentos, o

diálogo entre agentes educativos, bases que se afiguram essenciais para a

consolidação de saberes e de normas emergentes da prática profissional. A

comunicação que se estabelece entre profissionais do mesmo grupo constitui um

factor decisivo de socialização profissional e de afirmação de valores próprios da

profissão.

2) Direitos e Deveres do Educador de Infância

O Estatuto da Carreira Docente dos Educadores de Infância, alterado pelo Decreto-Lei

1/98 de 2 de Janeiro, toma como base a profissionalização dos seus destinatários e o

profissionalismo da função.

O supracitado estatuto define claramente os DIREITOS e os DEVERES específicos

dos educadores de infância, os quais assumem particular relevância, dedicando o

referido Decreto-Lei um capítulo a esta temática.

Os educadores, além do conjunto de direitos e deveres de que são titulares e a que

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estão obrigados os funcionários públicos em geral (direito à remuneração, direito à

assistência médica e direito ao tempo de serviço prestado), têm, igualmente, um

conjunto de direitos e de deveres específicos da sua função, que decorrem,

simultaneamente (Carvalho e Oliveira, 1990):

i) da profissionalização manifestada pelo grau de formação inicial e pela necessidade

permanente de formação contínua e,

ii) da exigência de profissionalismo, no desenvolvimento de uma prática coerente com

a profissionalização de que todos os docentes são titulares.

A que se reportam os direitos e deveres específicos dos educadores? Reportam-se a

comportamentos individuais e institucionais, na perspectiva múltipla da interacção com

colegas, crianças, pais e comunidade em geral.

As regras específicas consideradas são aquelas que, pela sua prática reiterada, foram

interiorizadas e ainda aquelas que constituem padrões para os quais se orienta o

comportamento individual e institucional.

Em consequência, são consagrados os seguintes DIREITOS ao educador:

- Direito de participação no processo educativo (art.º 5);

- Direito à formação e informação para o exercício da função educativa

(art.º 6);

- Direito ao apoio técnico material e documental (art.º 7);

- Direito à segurança na actividade profissional (art.º 8);

- Direito à negociação colectiva (art.º 9).

No artigo décimo deste artigo encontram-se consignados os DEVERES profissionais

específicos dos educadores de infância, a saber:

- Contribuir para a formação e realização integral do aluno, promovendo o

desenvolvimento das suas capacidades, estimulando a sua autonomia e

criatividade, incentivando a formação de cidadãos civicamente responsáveis e

democraticamente intervenientes na vida da comunidade;

- Colaborar com todos os intervenientes no processo educativo,

favorecendo a criação e o desenvolvimento de relações de respeito mútuo,

em especial entre docentes, alunos, encarregados de educação e pessoal

não docente;

- Participar na organização e assegurar a realização de actividades

educativas;

- Gerir o processo de ensino-aprendizagem, no âmbito dos programas

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definidos, procurando adoptar mecanismos de diferente acção pedagógica,

susceptíveis de responder às necessidades individuais dos alunos;

- Respeitar a natureza confidencial da informação relativa aos alunos e

respectivas famílias;

- Contribuir para a reflexão sobre o trabalho realizado individual e

colectivamente;

- Reconhecer e respeitar os demais membros da comunidade educativa,

valorizando os diferentes saberes e culturas e combatendo os processos de

exclusão e discriminação;

- Enriquecer e partilhar os recursos educativos, bem como utilizar novos

meios de ensino que lhe sejam propostos, numa perspectiva de abertura à

inovação e de reforço da qualidade da educação e ensino;

- Co-responsabilizar-se pela preservação e uso adequado das instalações

e equipamentos e propor medidas de melhoramento e renovação;

- Empenhar-se nas e concluir as acções de formação em que participar;

- Assegurar a realização, na educação pré-escolar e no ensino básico, de

actividades educativas de acompanhamento de alunos, destinadas a suprir a

ausência imprevista e de curta duração do respectivo docente;

- Cooperar com os restantes intervenientes no processo educativo na

detecção da existência de casos de crianças ou jovens com necessidades

educativas especiais;

- Actualizar e aperfeiçoar os seus conhecimentos, capacidades e

competências, numa perspectiva de desenvolvimento pessoal e profissional.

3) A Docência – uma ocupação ética

O educador lida com um dos aspectos mais delicados dos seres humanos – o

carácter. Este profissional tem como meta principal a realização plena dos

educandos4. O favorecimento do desenvolvimento holístico e harmonioso das

crianças implica a transmissão de um conjunto de normas e de valores que tenham em

conta a dimensão socializadora das mesmas. O educador deve, deste modo, facilitar a

promoção de hábitos, de costumes, de valores e de atitudes, por forma a que os

educandos fortaleçam o carácter e se tornem pessoas que orientem a sua vida para o

bem (Estrela, 1997).

4 Cf. Lei de Bases do Sistema Educativo.

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Investigação

Pretende-se, igualmente, que as crianças sejam portadoras de uma estrutura ética5:

não obstante, a construção dessa estrutura, o modo de ser susceptível da realização

dos valores depende, em grande parte, do modo mais ou menos ético como o

profissional educador leve a cabo a sua incumbência (Cordero, 1986). De facto, existe

sempre subjacente à tarefa educativa e aos que nela se comprometem uma dimensão

ética, tanto mais que a educação não é individual mas social: cada novo indivíduo

“formado” vai integrar-se no tecido social que ajuda a construir e a renovar e da sua

formação ética dependerá, pois, a de toda a sociedade (Idem). A responsabilidade que

recai sobre o educador é, assim, difícil de contestar, enfatizando-se aqui, uma vez

mais, a dimensão ética da sua acção. Este agente educativo necessita, para realizar a

sua tarefa educativa, de estar imbuído de determinadas características que lhe

garantam a possibilidade de, respeitando os outros, “ensinar”, as quais são,

normalmente, referenciadas como “autoridade moral”: «(...) ser educador obriga a um

modo particular de ser e estar, obriga a uma autoridade moral» (Estrela, 1997:164).

O educador tem, assim, de consignar uma dimensão ética à sua acção, tem de pautar

a sua conduta por critérios deontológicos: «(...) a reflexão recente sobre a docência

como autêntica profissão, e não simplesmente como “missão” ou “assistência”, não

pode deixar de colocar a questão da sua ética profissional específica» (D’Orey da

Cunha, 1995:39).

A deontologia deve constituir uma expressão de autonomia profissional. Deste modo, a

regulação ética do desempenho profissional surge a par da formação profissional

interiorizada no decorrer de uma longa escolarização, da profissionalização dos

docentes e da existência de associações, como um dos elementos constitutivos do

profissionalismo:

«A elaboração e outorga de um código de ética é um elemento

constitutivo da identidade profissional de um grupo. Sem uma

ética não há uma comunidade. A partilha, por todos os

professores, de ideias sobre o que é, para que serve e como

deve ser exercida a docência é um elemento de enorme

importância para a criação e fortalecimento do sentimento de

pertença a um mesmo corpo e para a coesão entre todos os seus

membros» (Estrela, 1997:165).

5 Embora seja corrente tomar os termos ética e moral como sinónimos e utilizá-los de forma indiferenciada, no âmbito filosófico estabelece-se e justifica-se a distinção pelas diferentes áreas semânticas que os dois conceitos envolvem. De acordo com

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As vantagens fundamentais de um código deontológico advêm da incrementação de

uma identidade profissional, a qual se espelha na imagem endógena e exógena da

profissão e na afirmação da autonomia em relação à heteronomia dos regulamentos

governamentais.

Os códigos deontológicos têm, igualmente, a função de garantir a qualidade dos

serviços que se prestam e asseverar que os profissionais são dignos de confiança por

parte dos seus concidadãos, uma vez que actuam com o rigor e a seriedade a que o

código de ética lhes adverte (Idem).

Em Portugal, o exercício da actividade docente não se pauta por referência a uma

deontologia determinada num código escrito. Não obstante, há implícita ao

desempenho profissional de cada educador uma ética, ou seja, um entendimento ou

pressentimento da forma como convém que se desempenhe a profissão (Ibidem).

Paradoxalmente, não se compreende como é que em Portugal «(...) se é certo que a

profissão docente sempre foi considerada como actividade eminentemente moral, no

entanto, não existe tradição de sistematizar a deontologia de tal actividade, nem muito

menos é costume de a cristalizar em códigos» (D’Orey da Cunha, 1995: 42).

Seria, em virtude disto, interessante que se debatessem propostas diversas de

códigos deontológicos para os docentes, dando origem a um código que os

educadores / professores sentissem como seu e que os auxiliasse a consciencializar

acerca dos aspectos éticos da sua profissão, pela reflexão colectiva que esse debate

faria suscitar.

II – Consciência e Acção sobre a Prática – Profissionalidade

O educador constitui uma peça fundamental na acção educativa. É grande a sua

responsabilidade educacional. A prática educativa exige dele determinadas actuações

como condição para a melhoria da qualidade da educação, e daí a necessidade de se

compreender as ligações entre o educador e a prática.

A profissionalidade remete para o tipo de desempenho e saberes específicos da

profissão docente: o conjunto de comportamentos, conhecimentos, destrezas, atitudes

e valores que corporizam a especificidade de ser educador (Nóvoa, 1992).

O conceito de profissionalidade diz, assim, respeito

«(...) ao conjunto de valores e saberes e os respectivos princípios

e modos operativos que integram o conjunto dos elementos Billingdon (1988) a ética significa a teoria do certo e do errado na conduta e reporta-se aos valores a que ela presidem. Por seu

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participantes na definição dos critérios de competência dos

professores, os quais são historicamente construídos, dinâmicos,

sujeitos a debates de natureza política e ideológica e envolvidos

em determinações que não são totalmente endógenas ao grupo

profissional, mas dependem do estado, dos sistemas periciais,

das instâncias de formação de professores» (Sarmento,

1994:80).

Deste modo, o conhecimento da prática pedagógica e a capacidade de a modificar

implicam o entendimento das inter-relações existentes entre três domínios distintos. O

primeiro diz respeito ao contexto pedagógico constituído pela actividade diária da

classe, o que comummente se designa por prática. Aqui têm lugar as funções mais

imediatas dos educadores. O segundo relaciona-se com o contexto profissional destes

agentes educativos, que elaboram como grupo o modelo de comportamento

profissional (ideologias, conhecimentos, crenças, rotinas, etc.). Por último, surge o

contexto sociocultural, o qual proporciona valores e conteúdos considerados

relevantes (Nóvoa, 1991).

Sendo o ensino, por excelência, uma prática social concretizada na interacção entre

educadores e alunos, que espelham a cultura e os contextos sociais em que vivem,

facilmente se depreende e justifica que o status do grupo ocupacional dos educadores

varie consoante as sociedades e os contextos.

Segundo Hoyle (1986), existem, pelo menos, seis factores determinantes do prestígio

da profissão docente, os quais integram:

- A recrutamento social do grupo, oriundo, sobretudo, das classes média e

baixa;

- O grande número de profissionais, que acaba por empecer a melhoria de

salários;

- A predominância de profissionais do sexo feminino, grupo socialmente

discriminado;

- A qualificação académica de acesso, de nível médio, para os docentes

do ensino pré-escolar e básico;

- O status dos clientes;

- A relação com os clientes não voluntária, mas baseada na

obrigatoriedade do ensino.

turno, a moral relaciona-se com a prática, ou seja, com os comportamentos efectivos das pessoas em articulação com os valores.

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Investigação

A análise das condições psicológicas e culturais dos professores torna possível, desta

forma, um melhor entendimento do conceito de profissionalidade.

Considerações finais: Em certas profissões, a consciência da ambiguidade, da complexidade e da

instabilidade inerentes originou um pluralismo profissional. A análise efectuada

permitiu vislumbrar que a profissão de educador de infância constitui uma dessas

profissões. De todo o grupo docente, os educadores são aqueles a quem a sociedade

reconhece menos poder, cujas vozes têm sido menos ouvidas. Daí a necessidade da

criação de redes de comunicação interprofissional, que tornem possível conceder “vez

e voz aos educadores”. O desenvolvimento de grupos de referência, de canais,

através dos quais estes agentes educativos possam partilhar experiências,

conhecimentos, dúvidas e inquietações impõe-se, neste quadro, como essencial. O

diálogo pode, com efeito, desempenhar um papel valioso, quer na afirmação social dos

educadores, quer na estimulação da emergência de uma cultura profissional no seio

destes agentes.

Jennifer Nias (1985) enfatiza, num estudo acerca de grupos de referência entre

professores do ensino básico, a relevância da “conversa” entre os docentes:

«Throughout this study talk emerges as the critical element

enabling the formation of individual values and related reference

groups. First, it was through discussion during their early

experiences of teaching that individuals hammered out their aims

and priorities (…) The phenomenological view, that it is through

talk that participants create and make sense of a shared social

order, offers a mean of understanding this need for talk (Nias,

1985:115)6.

A comunicação entre profissionais surge, assim, como o elemento que viabiliza e dá

sentido a uma ordem social partilhada. A criação de fluxos dialógicos entre

profissionais incentiva a “produção de sentidos” acerca de vivências, práticas e

experiências de vida. De facto, esta forma participada de comunicação parece

constituir o elemento crítico que corporiza a formação dos valores individuais e dos 6 As citações são sempre feitas na língua da edição consultada.

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grupos de referência relacionados.

As tentativas governamentais para controlar o grupo docente acabam por provocar

uma visão normalizada do educador que implementa passivamente aquilo que os

burocratas do Estado decidem sobre a Educação, o curriculum, a avaliação e etc.

(Vasconcelos, 1997). A Associação de Profissionais de Educação de Infância surge,

aqui, como um marco decisivo na crescente afirmação de uma identidade profissional

que se tem vindo a desenvolver, uma vez que, ao tornar possível a voz destes agentes

educativos, permite demonstrar que o educador é mais um agente de ensino do que

um instrumento para a aplicação das noções da educação.

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Sublinhados nossos.

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Cadernos de Educação de InfânciaJan./Mar. 2002

Investigação

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