ismail xavier - o concerto do ressentimento nacional

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  • 8/18/2019 Ismail Xavier - O concerto do ressentimento nacional

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    OLH   CRÍTICO

     por Ismail Xavier 

    O Concerto do Ressentimento Nacional

    Cronicamente inviável , de SérgioBianchi, libera o cinema brasileiro da timi-dez de um filho bem comportado que marcouos filmes dos anos 90. Em vez de umaansiedade pela legitimação vinda da“competência profissional”, trouxe a provo-cação, e a resposta que obteve dos jovens,apesar dos seus lugares de circulação restritos,

    demonstra como a abordagem agressiva detemas politicamente explosivos não é algo dopassado.

    O cinema brasileiro recente tem, sem

    sombra de dúvida, tematizado problemassociais – a pobreza, a corrupção –, e algunsdos melhores filmes da década de 90 fizeramda violência social seu tópico central,retornando aos espaços emblemáticos doCinema Novo (o sertão e a favela), ouampliando o nosso olhar para as novas zonasde fronteira controladas pelo crimeorganizado. Mas a sua forma de representaçãonão produziu nada que se compare ao efeito

    alcançado pela acumulação de cenas breves egrotescas, associadas ao comentárioprovocativo, trazido pela montagem de some imagem do filme de Bianchi. Do Sudeste à

     Amazônia , do in te rior ao li to ra l,concentrando sua munição em alvoslocalizados no Rio e em São Paulo, o cineastaprojetou na tela a fisionomia indesejável das

    classes sociais e dos grupos étnicosformadores da nação. Seu objetivo era criarum mosaico de agressão, cinismo e

    humilhação capaz de expor as fraturas de

    um país degradado por uma das pioresdistribuições de renda do planeta.

    Quando digo fisionomia, refiro-meao senso original de totalização de Bianchi,seu movimento rumo ao diagnóstico geralprovocativamente anunciado no título dofilme, algo que parecia fora de época em nossocontexto. Contra a corrente, o cineastaconseguiu o sucesso, em parte porque revelouum senso agudo das vicissitudes da

    representação em um tempo saturado deimagens e palavras, submerso no discurso damídia. De imediato, o filme deixa clara a suaestratégia: retrabalhar um legado deprocedimentos do cinema moderno em claraoposição ao roteiro “bem feito” baseado nacontinuidade. Cronicamente inviável  é umdiscurso escancarado, uma conversa com a

    platéia que combina a ironia do diálogo, acena agit-prop   com sabor pedagógico, odistanciamento produzido pelo comentário

    off  . Na primeira sequência, a cena dos

    mendigos revirando a lata do lixo dorestaurante é interrompida pela voz quediscute o caráter por demais explícito, cru,da ação que observamos. Sugere a repetiçãoem outros termos, menos chocantes. Oespectador percebe que a proposta é sublinharque tanto a versão mais radicalmente grotescaquanto a alternativa palatável derivam damesma realidade inaceitável. Essa conversasobre a forma da representação define o tom

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    que vai se manter até o fim, sem tréguas naagressividade. A coleção de cenas dispostade maneira descontínua percorre espaçossimbólicos nacionais e faz emergir umaidéia da sociedade brasileira. Esta não vemde demonstrações teóricas, embora haja a

     voz de alguém identificado como um pro-fessor que escreve livros sobre o país. Em

     verdade, o discurso de imagem, palavra emúsica vai muito além do ponto de vistado professor, e o comportamento ambí-guo deste cria um sentido gradual de des-confiança em relação a seu caráter, que nofim revela-o como um narrador não

    confiável, figura do cinismo envolvida notráfico de órgãos de pessoas assassinadas,razão de suas constantes viagens pelo paísque, em parte, acompanhamos. Interagindocom essa voz, vamos orientando-nos nareação, somos obrigados a encontrar nos-sa própria perspectiva, fazer nosso própriomovimento no espaço nacional, afastadosde um espectador neutro, vivendo as expe-

    riências de choque sem a muleta do clichêexplicativo. A totalidade construída como cole-

    ção; a justaposição descontínua dos episódi-os; a consciência dos problemas da represen-tação – essas são as armas escolhidas para criaruma espécie de “cinema da crueldade” queestá longe do esprit de finesse   e que seempenha em cortar o caminho da

    contemporização. Bianchi deseja renovar anossa capacidade de assombro, fazendo-nosrever, como ofensivas e inaceitáveis, formasde dominação, que a desfaçatez dos de cima ea passividade dos de baixo transformam numfato natural. No seu mosaico, a classedominante brasileira é brutal e cínica; opensamento crítico no país é anêmico; o povotende à paciência apolítica. A violência estáem toda parte, às vezes como maneira de con-

    duzir os negócios, às vezes como expedientede sobrevivência encontrado pelos pobresdentro da guerra civil não-declarada em queestamos todos encurralados. Sofrimentos e im-pulsos reprimidos de vingança criam umadialética amarga de desejo e frustração que

    faz da figura do ressentimento uma força subs-tancial na vida social – não por acaso umapeça central no diagnóstico da nação presen-te no filme. Este joga com o sentimento de

     vergonha que permeia a sociedade por debai-xo dos sinais visíveis de orgulho e euforiaque Bianchi procura dissolver para nos fazer

    reconhecer o mal-estar. De um lado, o filmeinveste contra o mito da sociabilidadedescontraída do brasileiro, alegre, temperadapelo “pegar leve” no trabalho e pela festa. De

    outro, ataca com força o mito do progressoassumido pelos brasileiros que advogam umamoral do trabalho, como os paulistas que, aolongo do filme, são vistos apenas expressandoa sua estupidez, o seu preconceito e arrogân-cia para com os imigrantes explorados. O ce-nário central – um restaurante chique em SãoPaulo onde todos os personagens encontram-se – é o local de conversas frívolas que, apesarde seu contraste frente às explosões de raiva

     vistas em outros espaços, não estão isentas daagressão mútua, constante, que sinaliza o res-sentimento. Este não é uma exclusividade dospobres empregados ou da gente da rua.Mesmo o garçom homossexual brincalhão e“anarquista” – que faz o papel de um agente

    catalisador – termina comprometendo o seuespírito de rebeldia, pois seu rancor eexibicionismo acabam por mostrar como eleestá preso ao mesmo círculo de desejo efrustração que denuncia.

    Em contextos diferentes, o pobreoscila entre uma postura de falsa reconcilia-ção – vista em conjunto como resultante de

    um suposto calor humano nacional – e ummergulho em surtos de cólera deflagrados emocasiões especiais, quando a indignação superao autocontrole. É o que vemos acontecer amalgumas passagens do filme: um exemplo é acena em que a mulher burguesa surpreende asua empregada com um desconhecido em suaprópria cama, gerando um confronto no qual,encorajada pela disposição violenta do seu

    parceiro, a moça começa a xingar a sua patroa,num franco contraste com seu comportamentopacífico de antes. Nessa cena, seguindo umaregra do filme, os dois pobres acabam poratacar-se mutuamente, e o companheiro desexo bate sem piedade na empregada,esquecendo a mulher rica que se tornaespectadora, atônita, porém a salvo. A mesmapersonagem burguesa, num episódio seguinte,

    terá o maior prazer em assistir ao espetáculode agressão mútua entre as crianças pobresprovocado pelo seu próprio gesto de aparentecaridade em plena rua.

    Colocada nos pontos médios daestratificação social, a mulher que trabalhacomo maîtrisse  no restaurante expressa seusressentimentos combinando um apetite

     vicioso pela ascensão social (que não dispensaa participação em rede de contrabando de

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    órgãos e assassinato de crianças) com umimpulso perverso para humilhar osempregados sob seu comando. Falando aosricos ela exibe má-fé ao vender suas origensindígenas como mercadoria e fazer de suainfância um cenário idealizado que alimenta

    a nostalgia vicária de seus ouvintes. Se aempregada doméstica é patética em suaexplosão de raiva e a maîtrisse  irritante emseu teatro, o rico proprietário do restaurantee seus clientes burgueses são ridículos em suaretórica de desencanto, sempre tentandoconvencer a si mesmos que o Brasildefinitivamente não é o seu lugar.

    Na galeria de tipos de Bianchi, al-guns lastimam o que são, outros lastimam ondemoram ou o lugar de onde vieram. Masninguém tem outra escolha que não seja a dedividir preconceitos recíprocos, mitosfamiliares, lutas de classe, guerras entre ossexos, a paranóia da cidade violenta e, acimade tudo, o senso de impotência para mudaras coisas. A condição de brasileiros é vivida

    pelos membros da elite como um dever vergonhoso e contra a sua vontade. A sensaçãode degradação nacional abate-se sobre eles egera uma ideologia do sacrifício: estamos aindaaqui porque patriotas, mas nossos sonhos estãoem Nova York. Ressentidos, culpam o povo,ou mesmo deus nas ocasiões em que revelamum sentido perverso de filosofia voltada paracomentários frívolos sobre a ironia divina

    incorporada no que deveria ser o paraísotropical.

     Ao observar os representantes daelite, o filme parodia a visão da direita tradi-cional que vê o Brasil como terra condenadaao atraso porque povoada por uma populaçãoinferior. Esse diagnóstico racista, e sua versãomodernizada, levam à idéia de que no Brasiltodos trapaceiam, na preguiça ou na esperteza,o que gera dois tipos de autojustificação de

    burgueses flagrados em pleno delito. Ora é amadame que desce do carro para proferir seudiscurso “legalista” e isentar-se de culpa noatropelamento de uma criança, cujo corpoainda vivo em pleno asfalto define o mun-do concreto que a retórica procura obscure-

    cer de modo obsceno – compondo então umaalegoria referida ao cipoal de formalismojurídico que favorece a quem paga e obstruia efetiva ação da justiça, separando o real e olegal, o corpo contundente no solo e o artifícioda letra em seu apelo infinito ao detalheimponderável. Ora é o homem de negóciosque, no passeio de carro, explica para a sua

    mulher as razões de suas práticas ilegais su-postamente inocentes diante do festival de es-cândalos financeiros que tem pontuado a vidaeconômica e política do país nestes temposde desregulamentação e avanço do trabalhoinformal.

    Em um momento quando acorrupção vem a primeiro plano no debatepolítico, Cronicamente inviável , ao contrá-

    rio de reforçar o preconceito de que toda asafadeza nacional concentra-se e isola-se lá no“mundo dos políticos”, vem deslocar os temasmaiores que orientam o debate moral, poismuda o foco da miséria brasileira: esta passados “políticos” para o cidadão comum, sempoupar nenhum grupo social ou região dopaís. Como uma peça forte de críticaendereçada à versão corrente do darwinismo

    social encarnada na nova economia, o filmeatinge sua dimensão política através do carátersistêmico de sua abordagem às “feridassubjacentes de classe”, que permeiam a vidacotidiana brasileira. Da mesma forma, pormeio de seu ataque provocativo a tudo o que

     vê como instância de contemporização – se-jam as prestigiosas festas identitárias, como ocarnaval ou outros teatros de harmonia, sejaa vida intelectual, cujos esforços explanatórios

    terminam funcionando como consolação(porque não é raro que ciência e fatalismodêem as mãos).

    Embora exiba lances de pedagogiaexplícita em seu percurso, Bianchi privile-gia a experiência de choque, o golpe no estô-

    mago que pode tornar-se indignação moral,o que é aqui virtude política mas não excluio risco de enredar o cineasta no mesmo cír-culo do ressentimento que expõe de modo

    brilhan-te em seumosaico.

    De qualquermodo, sua for-

    ça maior vem dodesconforto produ-

    zido pela estratégia deacumulação, este fazer a

    iniquidade repetir-se na variedade e amplidãodos espaços. A aposta é de que a recusa deconsolação ou de esperança outorgada – tra-ços que, não por acaso, aparecem “em segun-do grau” como patética ativação do clichê nafala da mãe de rua ao final – é a condiçãopara que o filme possa despertar-nos para qual-quer empenho. Seu modo de desqualificar aexperiência nacional procura afastar-se dos di-

    agnósticos pessimistas de tipo conservadorque, em outro tom e com ares de ciência ousabedoria religiosa, incitaram à resignação eà obediência.

    Marcando a distância, o tom deCronicamente inviável  é de exasperação, e suaagressividade retoma uma estética da violênciapresente no cinema brasileiro desde GlauberRocha, apesar das claras diferenças que separamBianchi da tradição do Cinema Novo.

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