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Resumo inscrito: O Vellocino de ouro: primórdios da adaptação de mitos gregos para o

público infantil no Brasil. Parece ser antigo o interesse por mitos quando se trata de uma produção para o

leitor criança. O Vellocino de Ouro, Volume 3 da Coleção “Biblioteca Infantil”, foi lançado em 1915, em adaptação feita pelo educador paulista Arnaldo de Oliveira Barreto, também coordenador da coleção. O objetivo desta comunicação é apresentar a obra e uma análise desta, levantando os procedimentos de adaptação adotados e valorizados quando se publicam mitos para crianças, bem como as estratégias editoriais reveladas pela obra, tendo em vista a imagem de criança pressuposta pelo pólo de produção (editores, ilustradores, adaptadores). Palavras-chave: literatura infanto-juvenil; literatura adaptações; mitologia grega.

O Vellocino de ouro: adaptação de mitos gregos para crianças no Brasil

Maria das Dores Soares Maziero1

Parece ser antigo o interesse por mitos quando se trata de uma produção para o leitor criança. O Vellocino2 de Ouro, Volume 3 da Coleção “Biblioteca Infantil”, foi lançado em 1915, em adaptação feita pelo educador paulista Arnaldo de Oliveira Barreto, também coordenador da coleção. O objetivo deste trabalho é apresentar a obra, levantando os procedimentos de adaptação adotados e valorizados quando são publicados mitos para crianças, bem como as estratégias editoriais reveladas pela obra, tendo em vista a imagem de criança pressuposta pelo pólo de produção (editores, ilustradores, adaptadores).

A coleção “Biblioteca Infantil”, de Arnaldo de Oliveira Barreto Em 1915, a Weiszflog Irmãos – estabelecimento gráfico de propriedade dos

alemães Otto e Alfried, produz “aquele que seria um marco da literatura infantil brasileira. O livro ‘O Patinho Feio’, de Hans Christian Andersen – com ilustrações de Franz Richter”3, o volume número 1 da Biblioteca Infantil. A coleção alcançaria cem títulos até 1948, quando foi suspensa. Seus livros representaram uma inovação no campo das obras destinadas à infância: a coleção era composta por livros em série, que traziam alternância entre páginas com texto e outras com gravura colorida; O Patinho feio foi o primeiro livro no Brasil editado a quatro cores.

A iniciativa de se publicar a coleção deveu-se ao educador paulista Arnaldo de Oliveira Barreto, que foi também inspetor escolar, organizador das Escolas de

1 Mestre pela FE/Unicamp - Grupo de Pesquisa “Alfabetização, leitura e escrita” (ALLE) ; professora de Língua Portuguesa na Universidade São Marcos – Campus Paulínia - e no ensino médio da rede municipal, também em Paulínia. 2 A grafia Vellocino, com dois ll,é a que se encontra na capa do livro de Arnaldo Barreto. 3 Disponível em: www.melhoramentos.com.br, acesso em 03/06/2007.

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Aprendizes de Marinheiros, diretor do Ginásio de Campinas - atual Colégio Culto à Ciência - e da Escola Normal de São Paulo, tendo se dedicado por dez anos à seleção e adaptação de obras clássicas para a infância. (Coelho, 1995, p. 31)

Coelho (op. cit, p. 31) também considera que esta série editorial representa um marco na história da literatura infantil em São Paulo, informando que permaneceu sob a direção do Prof. Arnaldo Barreto até 1925, ano de seu falecimento. O último catálogo organizado pelo professor registrava a publicação de 28 títulos, sendo o Vellocino de Ouro (2 volumes) o número três da coleção.

A respeito da atuação de Arnaldo de Oliveira Barreto, coordenador da Biblioteca Infantil, Lajolo e Zilberman (1986, p. 17) explicam que “o início da literatura infantil brasileira fica marcado pelo transplante de temas e textos europeus adaptados à linguagem brasileira”.

Para Menin (1999, p. 151), o mérito pela publicação da coleção deve ir para Arnaldo de Oliveira Barreto e para Walter Weiszflog4; “ao primeiro porque, de fato, deve-se a ele a idéia, organização e recriação da maioria dos títulos que fazem parte da Coleção Biblioteca Infantil. Ao segundo, por acreditar e imediatamente comprar o projeto que lhe foi oferecido por Barreto”.

O Vellocino de ouro 1. A obra Como já dito inicialmente, o Vellocino de Ouro é o volume 3 da Coleção

Biblioteca Infantil, publicado provavelmente em 1915, mesmo ano de lançamento de O Patinho Feio.

Pesquisa realizada por Menin (1999, p. 152) nos arquivos da companhia Editora Melhoramentos localizou carta de Arnaldo Barreto, datada de 4/8/1915, à Editora Weiszflog Irmãos, na qual o autor “oferece a venda de seu trabalho definido por ele como série de livros escolares”. Ainda segundo a pesquisadora, “em 6/08/1915, Arnaldo de Oliveira Barreto recebe a quantia de 1.950$000 réis pela entrega de três volumes: O patinho feio, O soldadinho de chumbo e o Vellocino de ouro”. (Op. cit., p. 154). O Centro de Referência Mário Covas, entidade ligada à Secretaria de Estado da Educação, sediada no bairro do Brás, em São Paulo, possui os dois volumes de O Vellocino de Ouro, identificados como 1a. parte (com 64 páginas) e 2a. parte (com 59 páginas), numa edição sem data. Os dois volumes fazem parte do acervo do Colégio Caetano de Campos, tendo sido recebidos como doação de um ex-aluno. Um dos volumes, aquele que corresponde à 2ª. Parte, traz uma dedicatória datada de 1o. de fevereiro de 1940, portanto podemos calcular que a obra recebeu sucessivas reedições. Tivemos acesso aos livros para leitura, mas como se trata de obras raras, não pudemos fotocopiá-los; o recurso encontrado foi fazer a leitura em voz alta, gravar em fita k-7 e, posteriormente, transcrever o que foi lido. Foi esse o método

4 O terceiro dos irmãos Weiszflog.

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utilizado para se ter acesso ao texto integral, fonte para a análise dos trechos transcritos no presente trabalho.5

Trata-se de uma adaptação da história do jovem Jasão, da mitologia grega, líder dos argonautas, encarregado de trazer para o rei Pélias o tosão, ou velo, de um animal fantástico: um carneiro com o pêlo inteiramente de ouro, que antes de ser sacrificado aos deuses era capaz de falar e de voar pelo espaço. Além de tudo isso, o velo dava poder e prosperidade a quem o possuísse, o que justificava a expedição de Jasão. São contadas as aventuras deste herói, que conquista seu intento com a ajuda de Medéia, uma poderosa feiticeira que por ele se apaixona.

“Jasão era filho do rei de Iolcos, cidade da Grécia antiga. Ele era ainda pequenino quando seus pais o fizeram sair de casa, concedendo sua educação a um ser chamado Quíron” (Barreto, 1ª. Parte, s/d).6 O primeiro volume de O Vellocino de ouro, ou 1ª. Parte, conta a infância de Jasão, príncipe filho do rei Éson, que confiou sua criação e educação ao centauro Quíron, uma vez que se a criança ficasse em Iolcos seria assassinada pelo seu tio Pélias, que usurpara o trono do próprio irmão.

Ao se tornar rapaz, Jasão resolve vingar-se do mal que Pélias causara a seu pai e a ele próprio e por isso foge da caverna de Quíron. No caminho, ajuda a deusa Hera, disfarçada como uma velhinha, a atravessar um rio caudaloso e, ao chegar à cidade de Iolcos, é reconhecido pelo tio e pelo povo da cidade. Não podendo simplesmente mandar matá-lo, Pélias o encarrega de ir buscar o Velocino de ouro, que se encontrava no reino de Colchos (Cólquida) – após o que lhe devolveria o trono.

Jasão, protegido por Hera, faz construir o maior navio de toda a Grécia – o Argos – e convoca os quarenta e nove maiores heróis gregos para acompanhá-lo na difícil expedição. Por serem tripulantes do Argos, eles passam a ser os argonautas.

A viagem tem início e esta 1ª. Parte termina narrando algumas das perigosas aventuras vividas pelos heróis antes de chegar a seu destino.

A 2ª. Parte se inicia contando outras aventuras vividas por Jasão e seus companheiros: “Os argonautas continuaram então sua viagem, cheia de maravilhosos incidentes, alguns dos quais poderiam, por si, constituir uma história” (Barreto, 2ª. Parte, s/d). Na chegada a Colchos, o rei Eetes, um tirano bárbaro, propõe a Jasão como condição para entregar-lhe o Velocino de Ouro, a realização de algumas perigosas tarefas, praticamente impossíveis de serem cumpridas.

Jasão, no entanto, se desvencilha das mortais armadilhas preparadas pelo rei graças à ajuda da filha deste, Medéia, que se apaixonara pelo herói. Com suas artes mágicas, ela ensina Jasão a domar touros que soltavam fogo pelas narinas, a derrotar temíveis guerreiros nascidos da semeadura de dentes de dragão, bem como a alcançar o desejado Velocino de Ouro.

O segundo volume, ou 2ª. Parte, termina com Jasão embarcando na nau Argos e partindo de volta a Iolcos, aclamado por seus companheiros.

5 Cheguei ao Vellocino de ouro em maio/2005, durante pesquisa de Mestrado, que resultou na dissertação “Mitos gregos para crianças e jovens: que Olimpo é esse?”, defendida em fevereiro/2006, pela FE/Unicamp. 6 Ortografia atualizada, procedimento que será adotado na transcrição dos trechos citados neste trabalho.

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2. Estratégias editoriais ligadas aos aspectos gráficos: o tratamento dado ao suporte

No final do século XIX e início do século XX, a literatura para a infância no Brasil resumia-se à tradução e adaptação de textos europeus, em sua grande maioria contos da tradição oral e histórias de aventura, portanto O Vellocino de ouro faz parte dessa prática editorial já exercida por autores como Fidelino Figueiredo, o que é confirmado por Lajolo e Zilberman, para quem o projeto editorial de Arnaldo de Oliveira Barreto

constitui a retomada atualizada da idéia da Livraria Quaresma, na medida em que o coordenador da série era um pedagogo, homem ligado, pois ao metiê escolar. E a escola, além de emprestar seu prestígio de instituição às histórias de fadas, é também o espaço onde se encontram os leitores-consumidores visados pelo projeto. (LAJOLO E ZILBERMAN, 1987, p. 31)

De acordo com Arroyo (1988, p. 186), o significado revolucionário da

iniciativa de Arnaldo de Oliveira Barreto está mais ligado à apresentação gráfica dos volumes do que ao tipo de livro trazido pela coleção. Sobre essas inovações gráficas, o aspecto que mais se destaca no projeto editorial da coleção, Arroyo explica que

Os livros da série inovavam a leitura para a infância pelo seu aspecto gráfico. Fisicamente já representavam um divórcio dos moldes escolares. Não eram volumes pesados, com aquela seriedade doutoral dos lançamentos do século XIX. Pelo contrário, desde seu aspecto externo eram uma festa para os olhos dos meninos pelo seu rosto colorido e a figura simpática da vovozinha cercada de netos. Eram volumes de poucas páginas entremeadas de gravuras também coloridas, estórias compostas em tipo grande, com um equilíbrio de texto em cada página que se constituía em verdadeira atração para a leitura. (ARROYO, 1968, p. 187) (grifos meus)

Tal preocupação com as cores, ilustrações e qualidade da impressão já se revela no contrato de venda e compra7 , onde se lê:

Arnaldo de Oliveira Barreto é actualmente unico e exclusivo autor de um trabalho intitulado bibliotheca Infantil destinado a leitura da infancia brazileira para o cultivo de sua imaginação e gosto literário... a Weiszflog Irmãos caberá imprimir o trabalho com toda nitidez e arte, afim de pela sua esthetica, corresponder aos intuitos educativos do referido trabalho (p. 2).(op.cit, p. 153)

O destaque dado por Arroyo à materialidade dos livros e ao projeto editorial

7 “Firmado em cartório, no 2o. Tabelião de Notas, à rua Álvares Penteado, 32 A – SP, no Livro de Notas n° 298, fls 3, em 28/08/1915.” (MENIN, 1999, p. 153)

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leva a pensar que os livros infantis não deveriam ser assim antes do lançamento desta coleção; mostra também a importância da adoção de projetos editoriais pensados para atingir novos públicos. O que se pode perceber é a emergência de uma fórmula editorial que continua em vigor até os dias de hoje: um projeto marcadamente voltado para o leitor infantil, com o objetivo explícito de ser uma leitura leve, divertida, diferente em tudo dos manuais didáticos e que pela capa propõe uma prática de ler: pela avó, em voz alta, aconchegada de seus netos.

Sobre a capa, aliás, há algo que é importante mencionar: além de ser a mesma para todos os volumes da Biblioteca Infantil, foi escolhida, também, como a ilustração de capa da obra pioneira do mestre Leonardo Arroyo, Literatura Infantil Brasileira, publicada pela editora Melhoramentos, o que de certo modo sinaliza a importância da coleção dentro do universo das obras destinadas ao público infantil.

Especificamente sobre as estratégias editoriais encontradas em O Vellocino de Ouro, elas podem ser encontradas ainda na literatura contemporânea para crianças:

a) A obra faz parte de uma coleção composta por livros em série, que traz contos de fadas e contos populares consagrados como leitura para a infância. O volume 1 da coleção foi O Patinho Feio e o 2 foi O soldadinho de Chumbo, ambos adaptação da obra de Hans C. Andersen, sendo O Vellocino de Ouro (Da Mythologia Grega) o volume 3.

b) Há alternância entre páginas com texto e outras com gravura colorida, apesar de existirem também ilustrações em preto e branco. Para se ter idéia da proporção dessas gravuras por livro, no exemplar correspondente à 2ª. Parte há sete ilustrações em preto e branco e cinco ilustrações coloridas (portanto, 12 ao todo), distribuídas ao longo de 59 páginas. Além das ilustrações, o texto de cada página vem dentro de uma espécie de “moldura” delicada, também uma forma de ilustrar o espaço destinado à parte escrita.

d) O texto é impresso em letras grandes e com linguagem adequada às crianças.

e) Os livros eram impressos em formato pequeno, (13 X 17 cm), diferente daquele dos livros de estudo, o que se constituía num atrativo especial para as crianças.

3. Estratégias ligadas aos aspectos discursivos: o estilo e o conteúdo

Observando-se as condições de publicação de O Vellocino de Ouro, pode-

se perceber que além da obra estar no interior de uma coleção que traz livros de aventura e histórias do campo do maravilhoso, acompanhadas por ilustrações coloridas, também há a preocupação em tornar a linguagem adequada ao público infantil a quem se destina, sem perder de vista que tal público está inserido na escola, instituição responsável pela transmissão de conhecimentos e pelo aprimoramento da expressão verbal de seus alunos.

O Prof. Arnaldo Barreto tem claro o fato de ela ser destinada a crianças, o que pode ser ilustrado pelo trecho abaixo, extraído do volume que traz a 1a. parte

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de O Vellocino de Ouro. Está presente aí, inclusive, uma interlocução com os pequenos leitores, chamados de leitorzinhos e aconselhados a não imitarem o comportamento de Jasão, que fugira de seu mestre Quíron, aspecto que sugere uma preocupação com o bom comportamento que se espera que a leitura adequada à infância leve a criança a adotar:

Jasão viveu na caverna com Quíron desde muito criança, até ficar homem. Tornou-se um belo harpista, hábil jogador de armas, conhecedor de ervas e outros ingredientes medicinais e, principalmente, um admirável cavaleiro, porque no ensino da equitação Quíron não conhecia rival entre os mestres-escolas. Tornando-se um moço corpulento e atleta, Jasão resolveu conquistar fortuna e, sem consultar Quíron, e nem mesmo lhe tocar no assunto, saiu para o mundo. Insensato procedimento, que nenhum de vós, leitorzinhos, devereis imitar. Para justificar esta resolução de Jasão, ficareis sabendo que ele era um príncipe real e que seu pai, o rei Éson, tinha sido despojado do seu reino de Iolcos por Pélias, que também teria assassinado Jasão, se este não estivesse escondido na caverna do centauro. (BARRETO, 1ª. parte, s/d)

Arnaldo de Oliveira Barreto, apesar de figurar como organizador da

Biblioteca Infantil, ao recontar com palavras mais adequadas ao leitor infantil do seu tempo as aventuras de Jasão se torna adaptador dos textos publicados, apesar de isso não aparecer nestes termos.

Apesar da simplificação do texto, porém, a imagem de criança que nos é apresentada pela leitura do texto não é semelhante, em termos de conhecimentos lingüísticos, às de uma criança do século XXI. A linguagem, apesar de simples em relação a outros textos de autores de literatura não-infantil da época, apresenta construções rebuscadas e palavras que estão além do vocabulário infantil contemporâneo, como podemos ver pelos exemplos abaixo, que apresentam vocabulário pouco comum – em I - e uso de mesóclises – em II, recurso próprio do registro escrito culto, distante do tom coloquial que se esperaria de uma interlocução com um leitor criança.

I) Suponho que Jasão houvesse sido instruído na lavoura pelo bom Quíron, que talvez nas suas demonstrações, chegasse a jungir-se ao arado, de modo que o nosso herói foi perfeitamente sucedido na diretura dos regos e no voltar da leiva. (BARRETO, 2ª. Parte, s/d)

II) (...) mas como a tua urgência é grande, passar-te-ei assim mesmo ao outro lado e se a corrente te afogar, suceder-me-á a mim o mesmo.(BARRETO, 1ª. Parte, s/d)

A respeito da linguagem usada nos textos destinados à infância no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, Lajolo e Zilberman explicam que

Principalmente em relação à linguagem, a literatura infantil deste período é fecunda para a percepção de certas contradições, inevitáveis num

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projeto tão permeado pelas ideologias dominantes como o foi aquele que presidiu o surgimento da literatura brasileira para crianças. Se por um lado a preocupação com o destinatário infantil motivava a adaptação que fazia esta literatura afastar-se dos padrões lingüísticos lusitanos, por outro o compromisso escolar e ideologicamente conservador que inspirava os livros pode responder pelo academicismo de sua linguagem num momento em que a literatura não-infantil já ensaiava algumas rupturas. (LAJOLO e ZILBERMAN, 1986, p. 20)

Outra característica que nos chama a atenção é que o autor, talvez por haver pensado a coleção como um produto destinado à escola, tendo sido ele próprio professor, parece entender que uma obra escolar, além de aventura, deve contribuir também para a formação moral das crianças. É isso que percebemos nos trechos abaixo, nos quais é feito um elogio a Quíron, professor de Jasão, e à educação que este deu ao rapaz, ao qual ensinou, além de conhecimentos, boas maneiras como a gentileza e a disposição para proteger os mais fracos:

I) O bom Quíron tinha lhe ensinado que o mais nobre uso que se pode fazer da própria força é ajudar os fracos e, nesses casos, uma moça se deve considerar como uma irmã, e uma velha como uma mãe. (BARRETO, 1ª. Parte, s/d)

II) - Poderoso senhor – respondeu Jasão com uma reverência, porque Quíron lhe havia ensinado a ser atencioso quer com os reis, quer com os mendigos (....) (BARRETO, 2ª. Parte, s/d)

Outro fato importante diz respeito ao modo como o narrador faz seguidas

interpelações ao leitor, isto é, em nenhum momento o autor se esquece do fato de que está contando a história para alguém, que precisa ser envolvido e ter a atenção chamada para os detalhes que esse narrador considera importantes. É quase como se o narrador se colocasse no papel daquele narrador da tradição oral, a avozinha da capa da coleção que conta histórias para crianças.

A forma como essa interpelação é feita, no entanto, seria impensável nos dias atuais, uma vez que ocorre sempre através do uso da 2ª.pessoa do plural, isto é, vós:

I) Jasão notou também que o homem olhava principalmente para seus pés, um dos quais, como estareis lembrados, estava descalço, enquanto outro ostentava a sandália paterna de cordões de ouro. (BARRETO, 1ª. Parte, s/d) II) Preciso dizer-vos que há alguns anos antes, ao rei Pélias tinha sido vaticinado pelo carvalho falante de Dodona, que um homem calçado apenas com uma sandália o destituiria do seu trono. (op. cit.) III) Essa resposta, como calculareis, era uma das mais difíceis e perigosas que então se poderia imaginar.(op. cit.)

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IV) Seria longo contar-vos todas as aventuras dos argonautas, pois que delas não houve falta, como podereis calcular pelo que vou narrar. (BARRETO, 2ª. Parte, s/d) V) - Eu os vejo perfeitamente – disse Linceu – cujos olhos como sabeis alcançavam tanto quanto um bom telescópio.(op. cit) VI).... E quem imaginais serem esses dois viajantes? Se quiserdes dar-me crédito, ficais sabendo que eram filhos do célebre Frixos .... (op. cit) VII)... em feiticeiras, como sabeis, não pode a gente confiar muito. (op. cit)

Na verdade, os mitos gregos não surgiram como literatura para crianças; pertencem ao que se costuma chamar de obras clássicas ou cânone, isto é, obras literárias de tradição, pertencentes ao universo adulto, que não contemplam apenas o gênero narrativo, mas incluem a poesia, o teatro e mesmo a filosofia.

Sendo assim, não podemos deixar de destacar o recorte escolhido pelo adaptador para contar a história, que termina com a partida de Jasão da Cólquida, omitindo-se o que acontecerá depois ao herói, segundo está registrado em obras sobre mitologia grega destinadas ao público adulto. 8

Segundo estas obras, as aventuras de Jasão estão longe de terminar com a conquista do Velocino de ouro; após este episódio ele volta à Grécia levando consigo Medéia e o irmão desta, sendo perseguidos pelo Rei Eetes. Para retardar os navios do pai, Medéia, com ajuda de Jasão, assassina e esquarteja o próprio irmão, jogando os pedaços ao mar.

Se não bastasse isso, na volta a Iolcos, como o rei Pélias se recusasse a entregar o trono a Jasão conforme o combinado, Medéia ludibria as filhas deste, levando-as a assassiná-lo, convencidas que foram pela feiticeira de que este ato terrível devolveria ao pai o vigor da juventude.

Após este crime, o casal é expulso de Iolcos, recebendo permissão para morar em Corinto, governada pelo rei Creonte.

Decorridos dez anos, Jasão abandona a esposa e se casa com uma outra princesa, Creúsa, filha de Creonte. Inconformada, Medéia não só provoca a morte da rival e do pai desta, além da destruição do palácio de Corinto, como mata os próprios filhos para se vingar de Jasão.

Pensando na destinação infantil da obra, pode-se compreender essa espécie de censura imposta pelo autor. A obra infantil não deve ser veículo de transmissão de violência, especialmente em um nível tão abominável. Para evitar esse aspecto pouco adequado ao público a que se destina, o autor apesar de não modificar o teor da história, a interrompe no ponto em que comumente terminam 8 Ao contrário de O patinho feio e O soldadinho de chumbo, obras infantis já publicadas anteriormente e de autor conhecido, não conseguimos levantar o(s) texto(s) usado(s) como base para a escrita de O Vellocino de Ouro. Segundo Brandão (1987, p. 175), as principais informações e referências dos autores gregos e latinos acerca de Jasão encontram-se em Homero (Ilíada e Odisséia); Hesíodo, Teogonia; Eurípides, Medéia; Ovídio Heróides; Píndaro; Pausânias; Diodoro Sículo e Higino.

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as histórias clássicas de aventura para crianças: o herói conquista o prêmio - o Velocino de ouro, vence o dragão e se consagra vencedor, escapando ileso do inimigo terrível e desleal.

Percebe-se, no entanto, que a escolha das aventuras de Jasão não se deu para familiarizar a criança com o universo da Grécia antiga, como ocorreria com obras como O Minotauro (1936) e Os doze trabalhos de Hércules (1945), escritas e publicadas por Monteiro Lobato alguns anos depois. Na verdade, o que parece ter norteado a escolha é o fato de Jasão simbolizar a figura do herói imbatível, valente e justo, o que com certeza cativaria o público infantil, apreciador de histórias de aventura, cujo teor determina, tanto ontem como hoje, que haja um final feliz, com a vitória do herói e, portanto, do bem e da verdade, valores caros à sociedade e à escola, que se vê no papel de transmiti-los aos pequenos leitores.

Considerações finais

O Vellocino de Ouro, segundo pudemos apurar através de pesquisas bibliográficas, parece ter sido a primeira adaptação publicada no Brasil de uma história da mitologia grega destinada ao público infantil como obra independente, dentro de um projeto editorial próprio para a escola e para as crianças.

O que levou Arnaldo de Oliveira Barreto a incluí-lo entre as três obras que entregou há quase um século para os Irmãos Weiszflog? Por que, após dois contos de fadas, incluir uma história de aventura, ainda mais ambientada no mundo grego, num tempo anterior a Cristo?

Dificilmente encontraremos a resposta. Sendo assim, talvez seja adequada a explicação dada por Ana Maria Machado, ela própria escritora consagrada de livros infantis, que afirma sobre a cultura grega:

Guardada por tanto tempo e reconhecida como um tesouro da humanidade, a cultura grega antiga sempre despertou o entusiasmo de leitores apaixonados, em diferentes épocas históricas. São uma fonte inesgotável, onde sempre podemos beber. Para muita gente, eles são os mais fascinantes de todos os clássicos.Provavelmente são os que mais marcaram toda a cultura ocidental. (MACHADO, 2002, p. 26)

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Referências bibliográficas ARROYO, Leonardo. Literatura Infantil Brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1988. BARRETO, Arnaldo de Oliveira. O Vellocino de Ouro (Da Mythologia Grega). Biblioteca Infantil. São Paulo: Weiszflog Irmãos, s/d, livro 3, 1ª. Parte (transcrição escrita, feita a partir de gravação em fita K-7). __________________________ O Vellocino de Ouro (Da Mythologia Grega). Biblioteca Infantil. São Paulo: Companhia Melhoramentos (Weiszflog Irmãos incorporada), s/d, livro 3, 2ª. Parte (transcrição escrita, feita a partir de gravação em fita K-7).

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega, Vol. III. Petrópolis/RJ: Vozes, 1997, v. 1.

COELHO, Nelly Novaes. dicionário Crítico de Literatura Infantil e Juvenil Brasileira: Séculos XIX e XX. São Paulo: Editora da Universidade de são Paulo, 1995. HALLEWELL, Laurence. O Livro no Brasil: sua história. 2ª. Ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. Um Brasil para crianças: para conhecer a literatura infantil brasileira:história, autores e textos. São Paulo: Global, 1986. ___________________________________ Literatura Infantil Brasileira – História & Histórias. São Paulo: Ática, 1987.

MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. Objetiva: Rio de Janeiro, 2002.

MENIN, Ana Maria da Costa Santos. O patinho feio de H.C. Andersen: o “abrasileiramento” de um conto para crianças. Tese de Doutorado, UNESP/FCL, 1999. PAIXÃO, Fernando. Momentos do Livro no Brasil. São Paulo: Ática, 1998.