jlpm tese naea ufpa 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ NÚCLEO DE ALTOS ESTUDOS AMAZÔNICOS PROGRAMA DE DOUTORADO EM DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DO TRÓPICO ÚMIDO JAMES LEÓN PARRA MONSALVE ORGANIZAÇÕES REGIONAIS INDÍGENAS, CIDADANIA E TECNOLOGIAS DE (DES)INFORMAÇÃO E (IN)COMUNICAÇÃO NA PAN-AMAZÔNIA Belém 2015

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Tese de doutoramento no NAEA-UFPA. James León Parra Monsalve.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR NCLEO DE ALTOS ESTUDOS AMAZNICOS

    PROGRAMA DE DOUTORADO EM DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL DO TRPICO MIDO

    JAMES LEN PARRA MONSALVE

    ORGANIZAES REGIONAIS INDGENAS, CIDADANIA E TECNOLOGIAS DE (DES)INFORMAO E (IN)COMUNICAO NA PAN-AMAZNIA

    Belm 2015

  • JAMES LEN PARRA MONSALVE

    ORGANIZAES REGIONAIS INDGENAS, CIDADANIA E TECNOLOGIAS DE (DES)INFORMAO E (IN)COMUNICAO NA PAN-AMAZNIA

    Tese apresentada ao Ncleo de Altos Estudos Amaznicos da Universidade Federal do Par como requisito para obteno de ttulo de doutor no Programa de Doutorado em Desenvolvimento Sustentvel do Trpico mido. Orientadora: Profa. Dra. Rosa Elizabeth Acevedo Marin

    Belm 2015

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Biblioteca do NAEA/UFPa)

    Monsalve, James Len Parra Organizaes regionais indgenas, cidadania e tecnologias de (des)informao e (in)comunicao na Pan-Amaznia / James Len Parra Monsalve ; Orientadora, Rosa Elizabeth Acevedo Marin. 2015.

    262 f.: il. ; 29 cm Inclui bibliografias

    Tese (Doutorado) Universidade Federal do Par, Ncleo de Altos Estudos Amaznicos, Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Sustentvel do Trpico mido, Belm, 2015. 1. Indgenas Amaznia. 2. Cidadania Amaznia. 3. Tecnologias de Informao e Comunicao. I. Marin, Rosa Elizabeth Acevedo, orientadora. II. Ttulo.

    CDD 22. ed. 330.153

  • JAMES LEN PARRA MONSALVE

    ORGANIZAES REGIONAIS INDGENAS, CIDADANIA E TECNOLOGIAS DE (DES)INFORMAO E (IN)COMUNICAO NA PAN-AMAZNIA

    Tese apresentada ao Ncleo de Altos Estudos Amaznicos da Universidade Federal do Par como requisito para obteno de ttulo de doutor no Programa de Doutorado em Desenvolvimento Sustentvel do Trpico mido.

    Data de aprovao: 16/03/2015

    Banca Examinadora: Prof. Dr. Rosa Elizabeth Acevedo Marin Orientadora - NAEA/UFPA Prof. Dr. Nrvia Ravena Examinadora interna - NAEA/UFPA Prof. Dr. Silvio Jos de Lima Figueiredo Examinador interno - NAEA/UFPA Prof. Dr. Manuel Jos Sena Dutra Examinador externo - FACOM/UFPA Prof. Dr. Sirio Possenti Examinador externo - IEL/UNICAMP

  • memria de Moub, liderana Nukak Maku, quem me fez compreender os mltiplos embates que seu povo sofre h quase trs dcadas, graas a nossa selvajaria ocidental. memria de Armando Mendes e Thomas Hurtienne, os mestres que me ensinaram a enxergar a Amaznia de outro jeito.

  • AGRADECIMENTOS

    CAPES pela concesso da bolsa com a qual pude desenvolver essa pesquisa sobre

    uma problemtica transcendental para a regio Norte e, mormente, para a Pan-Amaznia toda,

    unidade na diversidade sul-americana.

    Aos(as) professores(as) e funcionrios(as) do NAEA, na UFPA, por compartilharem

    seu saber conosco, notadamente, ao Prof. Dr. Luis Aragn, por quem soube dessa instituio.

    Profa. Dra. Rosa Elizabeth Acevedo Marin, pela sua amabilidade e compreenso, por

    todo o tempo oferecido nessa longa caminhada e todas as orientaes dadas durante os anos

    em que desenrolamos essa pesquisa. Fico imensamente obrigado.

    Ao Prof. Dr. Sirio Possenti, por me aceitar como aluno especial na sua disciplina de

    Introduo Anlise do Discurso, ministrada em 2014 na UNICAMP. Esse perodo no IEL

    foi realmente crucial na minha formao pessoal e acadmica.

    A Mara Ernestina Garreta Chindoy, admirvel lutadora e querida esposa, por sua

    incansvel companhia e apoio ao longo desse esforo que nos levou descoberta de novos e

    valiosos conhecimentos e paisagens maravilhosas. Sem sua magnfica ajuda, coragem e

    perseverana, esse processo nem sequer tivera comeado.

    minha me, Rosa, ao meu pai, Oscar, e todos os meus irmos e irms, dessa famlia

    que comeou a formar-se na dcada de 1970 e que, mesmo distncia, enviam-me a energia

    que fortifica as minhas jornadas.

    Aos meus sogros, Delia Chindoy e Miguel Garreta, pela estimao e apreo, pela

    ateno com que sempre nos acolhem.

    A Gustavo Patio lvarez, advogado extraordinrio, e a sua famlia, graas a quem

    conheci as lutas indgenas e me aventurei pela primeira vez na Amaznia em 2004.

    Aos(as) indgenas das organizaes e terras visitadas durante 2012 e 2013, na regio

    amaznica do Equador, Peru, Bolvia, Brasil, Venezuela e Colmbia. Especialmente s

    comunidades de Condagua e Cidade Hitoma, na Colmbia; e ao povo Mundurucu, no Brasil.

    Todas as suas lutas e reivindicaes sociais so tambm as nossas.

    Aos(as) colegas dessa turma diversa que integrou o curso de doutorado no PPGDSTU

    ao incio de 2011, pelos momentos partilhados conosco, os cafezinhos dos intervalos e os

    mltiples bate-papos que ajudaram no aperfeioamento do meu portugus.

    Enfim, a todos(as) os(as) que, de alguma maneira ou de outra, encontramos ou nos

    encontraram no caminho feito ao longo desses quatro anos.

  • El hecho de que no nos hayan puesto en los mapas no quiere decir que seamos unos aparecidos.

    Povo Ianacona

    Es el mayor ro que hay en el Per; los indios le llaman Apurmac; quiere decir: el principal, o el capitn que habla, que el nombre apu tiene ambas significaciones, que comprende los principales de la paz y los de la guerra. Tambin le dan otro nombre, por ensalzarle ms, que es Cpac Mayu: mayu quiere decir ro; Cpac es renombre que daban a sus Reyes; dironselo a este ro por decir que era el prncipe de todos los ros del mundo.

    Inca Garcilaso de la Vega

    La gran mayora de los pueblos han sido y siguen siendo no ciudadanos sino sbditos.

    James Scott

    Si las nuevas tcnicas de comunicacin favorecen el funcionamiento de los grupos humanos en inteligencia colectiva, repitamos que no la determinan automticamente.

    Pierre Lvy

  • RESUMO

    A Amaznia uma extensa rea sul-americana, compartilhada por oito pases e um

    departamento ultramarino francs. Ela hoje conhecida amplamente pela sua diversidade

    socioambiental. A existncia de indgenas e outros povos tradicionais, ao longo desse

    territrio, tem sido historicamente decisiva para a conservao de formas comuns de acesso e

    usufruto da terra. Nesse contexto, os movimentos indgenas tm desenvolvido uma importante

    tarefa de estruturao organizativa, especialmente a partir da dcada de 1970, com o fim de

    reivindicar tais direitos no mbito do estado-nao. Constituram-se, assim, novos agentes

    organizacionais em luta pelo reconhecimento pleno de seu status cidado em pases como

    Bolvia, Equador, Peru, Colmbia, Venezuela e Brasil. Como consequncia dessa articulao

    organizativa e, mais ainda, da resistncia histrica das populaes indgenas ao extermnio

    fsico e simblico, as novas constituies polticas nesses estados reconheceram o carter

    tnico e multicultural de suas sociedades. Surgiram, desse modo, entidades de ndole tnico-

    regional como a Confederao de Povos Indgenas do Oriente, Chaco e Amaznia da Bolvia

    (CIDOB), a Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira (COIAB), a

    Organizao dos Povos Indgenas da Amaznia Colombiana (OPIAC), a Confederao das

    Nacionalidades Indgenas da Amaznia Equatoriana (CONFENIAE), a Associao Inter-

    tnica de Desenvolvimento da Selva Peruana (AIDESEP) e a Organizao Regional de Povos

    Indgenas do Amazonas (ORPIA) na Venezuela. Organizaes que chegam no sculo XXI

    com a responsabilidade de reivindicarem os direitos dos mltiplos povos que representam,

    tendo ao seu alcance novas ferramentas como as Tecnologias de Informao e Comunicao

    (TICs), as quais poderiam, em graus diversos, alavancar esse objetivo social. Este estudo

    comparativo permite compreender a relao das reivindicaes tnicas cidads com o saber

    comunicacional indgena e o modo em que elas produzem informao e comunicao.

    Palavras-chave: Organizaes indgenas. Amaznia. Cidadania. Tecnologias de informao e comunicao. Comunicao transdisciplinar.

  • ABSTRACT

    The Amazon is an extensive South American area, shared by eight countries and a French

    overseas department. It is now widely known for its social and environmental diversity. The

    existence of indigenous and other traditional peoples over that territory, has historically been

    crucial for the conservation of common ways to access and use the land. In this context,

    indigenous movements have developed an important organizational structuring task,

    especially starting from the 1970s, in order to claim such rights within the nation-state. Thus,

    they have set up new agencies in the struggle for full recognition of their citizen status in

    countries like Bolivia, Ecuador, Peru, Colombia, Venezuela and Brazil. As a consequence of

    organizational articulation and, even more, the historical resistance of indigenous peoples to

    the physical and symbolic disintegration, the new political constitutions in those countries

    recognized the ethnic and multicultural character of their societies. Regional ethnic

    organizations emerged like the Confederation of Indigenous Peoples of the East, Chaco and

    Amazon of Bolivia (CIDOB), the Coordination of Indigenous Organizations of the Brazilian

    Amazon (COIAB), the Organization of Indigenous Peoples of the Colombian Amazon

    (OPIAC), the Confederation of Indigenous Nationalities of the Ecuadorian Amazon

    (CONFENIAE), the Inter-ethnic Association of the Peruvian Rainforest Development

    (AIDESEP) and the Regional Organization of Indigenous Peoples of the Amazon (ORPIA) in

    Venezuela. Organizations that reach the twenty-first century with the responsibility to claim

    the rights of multiple people representing, with new tools such as Information and

    Communication Technologies (ICTs), which could, in varying degrees, leverage this social

    goal. This comparative study allows us to understand the relationship of ethnic-citizen claims

    with indigenous knowledge about communication and the way they produce information and

    communication.

    Keywords: Indigenous organizations. Amazon. Citizenship. Information and communication technologies. Transdisciplinary communication.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 - Circuito da fala segundo Saussure............................................................ 33

    Figura 2 - Eixos inter- e intradiscursivo........................................................................ 51

    Figura 3 - O poder segundo os meios mobilizados........................................................ 97

    Figura 4 - Concepo e mtodo tri-dimensionais de anlise do discurso...................... 98

    Figura 5 - Evoluo do nmero de dissertaes e teses sobre TICs no Brasil (2001-2010............................................................................................................... 134

    Figura 6 - Teses e dissertaes sobre TICs no Brasil por regio (2001-2010).............................................................................................................. 138

    Figura 7 - O botuto ontem (a) e hoje (b)........................................................................ 224

    Figura 8 - Manguars muinane (macho e fmea, respetivamente)................................ 225

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 - Fatores envolvidos na comunicao verbal segundo Jakobson................ 36

    Quadro 2 - Formaes imaginrias do sujeito do discurso......................................... 43

    Quadro 3 - Unidades tpicas e no-tpicas da Anlise do Discurso.......................... 53

    Quadro 4 - O sujeito discursivo numa perspectiva psicanaltica................................ 70

    Quadro 5 - Perspectivas de base em comunicao..................................................... 86

    Quadro 6 - Quantidade de informao publicada a novembro de 2013 nos portais das organizaes indgenas...................................................................... 135

    Quadro 7 - Organizaes regionais indgenas, tecnologia, velocidade de rede e localizao geogrfica.............................................................................. 136

    Quadro 8 - O quadrado ideolgico............................................................................. 137

    Quadro 9 - Roteiro inicial de perguntas temticas...................................................... 182

    Quadro 10 - Enunciados/impresses sobre a cidadania na AIDESEP......................... 193

    Quadro 11 - Enunciados/impresses sobre cidadania na CIDOB................................ 199

    Quadro 12 - Enunciados/impresses sobre cidadania na COIAB................................ 212

  • LISTA DE SIGLAS

    A.M. Modulao em Amplitude

    AD Anlise do Discurso

    AAD Anlise Automtica do Discurso

    ACD Anlise Crtica do Discurso

    ADSL Asymmetric Digital Subscriber Line

    AIDESEP Associao Inter-tnica de Desenvolvimento da Selva Peruana

    AIE Aparelhos Ideolgicos de Estado

    ANPPAS Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Ambiente e Sociedade

    APA Amerindian People's Association of Guyana

    APPE Associao Peruana de Imprensa Estrangeira

    AZCAITA Associao Zonal do Conselho de Autoridades Indgenas de Tradio Autctone

    CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior

    CD Compact Disc

    CIDH Comisso Inter-americana de Direitos Humanos

    CIDOB Confederao de Povos Indgenas do Oriente, Chaco e Amaznia da Bolvia

    CIPTA Centro de Informao e Planejamento Territorial AIDESEP

    COIAB Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira

    COICA Coordenao das Organizaes Indgenas da Bacia Amaznica

    CONAMAQ Conselho Nacional de Aillus e Marcas do Quiasuio

    CONFENIAE Confederao das Nacionalidades Indgenas da Amaznia Equatoriana

    DANE Departamento Administrativo Nacional de Estatstica

    DVD Digital Video Disc

    EIB Educao Intercultural Bilngue

    F.M. Modulao em Frequncia

    FD Formao Discursiva

    FOAG Fdration des Organisations Autochtones de Guyane

    FUNAI Fundao Nacional do ndio

    GB Gigabyte

    Gb Gigabit

    GPL General Public License

  • GPRS General Packet Radio Service

    GPS Global Positioning System

    IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis

    IBERCOM Associao Ibero-Americana de Comunicao

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IEL Instituto de Estudos da Linguagem

    IIRSA Iniciativa de Integrao da Infraestrutura Regional Sul-Americana

    INE Instituto Nacional de Estatstica

    INTERCOM Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao

    ISDN Integrated Services Digital Network

    KB Kilobyte

    Kb Kilobit

    Kbps Kilobits por segundo

    MB Megabyte

    Mb Megabit

    Mbps Megabits por segundo

    MD Materialismo Histrico

    MERCOSUL Mercado Comum do Sul

    MH Materialismo Dialtico

    LSB Linux Standard Base

    NAEA Ncleo de Altos Estudos Amaznicos

    OIS Organisatie van Inheemsen in Suriname

    OIT Organizao Internacional do Trabalho

    ONG Organizao No-Governamental

    ONIC Organizao Nacional Indgena da Colmbia

    ONU Organizao das Naes Unidas

    OPIAC Organizao dos Povos Indgenas da Amaznia Colombiana

    ORPIA Organizao Regional de Povos Indgenas do Amazonas

    OTCA Organizao do Tratado de Cooperao Amaznica

    OS X Dcima verso do sistema operacional Macintosh

    OTCA Organizao do Tratado de Cooperao Amaznica

    PAC Programa de Acelerao do Crescimento

    PNCSA Projeto Nova Cartografia Social da Amaznia

    PPGDSTU Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Sustentvel do Trpico mido

  • RPOs Rdios dos Povos Indgenas

    SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia

    SIG Sistema de Informao Geogrfico

    TICs Tecnologias de Informao e Comunicao

    TIPNIS Territrio Indgena e Parque Nacional Isiboro Scure

    UFPA Universidade Federal do Par

    UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura

    UNICAMP Universidade Estadual de Campinas

    USB Universal Serial Bus

    WEB World Wide Web

    WI-FI Wireless Fidelity

  • SUMRIO

    1 INTRODUO.................................................................................................. 16

    2 SOBRE A COMUNICAO DISCURSIVA.................................................. 28 2.1 Problematizar a comunicao............................................................................ 28 2.1.1 O que discurso? Uma definio interdisciplinar................................................ 30 2.2 Da comunicao mecanicista ao discurso......................................................... 32 2.2.1 O modelo de comunicao subjacente na lingustica saussureana....................... 32 2.2.2 Teoria da informao e modelo jakobsoniano da comunicao........................... 35 2.2.3 'O efeito a mensagem'........................................................................................ 37 2.3 Filosofia e linguagem.......................................................................................... 39 2.4 Teoria do discurso: fundamentos para uma comunicao discursiva........... 42 2.4.1 Condies de produo do discurso...................................................................... 43 2.4.2 O que formao discursiva (FD)?...................................................................... 44 2.4.2.1 Formao discursiva em Foucault....................................................................... 45 2.4.2.2 Formao discursiva em Pcheux........................................................................ 48 2.4.2.3 O que 'interdiscurso'?........................................................................................ 50 2.4.2.4 Outra forma de entender as FD: unidades tpicas e no-tpicas........................ 52 2.4.3 O enunciado como unidade da comunicao discursiva...................................... 53 2.4.4 Enunciao no fala: a questo do sujeito numa teoria do discurso.................. 60

    3 TICS, IDEOLOGIA E CIDADANIA............................................................... 73 3.1 Tecnologias, informao e comunicao........................................................... 73 3.2 Pensar as TICs numa tica scio-materialista................................................. 82 3.3 Teoria da comunicao: uma viso geral......................................................... 84 3.4 Ideologia e discurso............................................................................................. 90 3.5 Poder e prticas sociais....................................................................................... 94 3.5.1 Histria, sociedade e relaes de dominao........................................................ 94 3.5.2 Texto e prtica social............................................................................................ 98 3.6 Da cidadania incompleta cidadania tnica.................................................... 100

    4 MATERIALISMO HISTRICO, METODOLOGIA DISCURSIVA E BENS COMUNS................................................................................................. 104

    4.1 Metodologia: reconstrues e polos................................................................... 104 4.2 Materialismo histrico e dialtica..................................................................... 106 4.2.1 A vida e a atividade produtiva numa ontologia materialista histrica.................. 110 4.2.2 Modo de produo extrativo, propriedade, domnios........................................... 115 4.2.3 Sobre a dialtica como lgica cientfica............................................................... 120 4.2.4 Consideraes epistemolgicas sobre o materialismo histrico e dialtico......... 124 4.3 Anlise crtica do discurso e questes de pesquisa........................................... 132 4.3.1 O corpus de uma pesquisa discursiva sobre as TICs............................................ 133 4.3.2 O quadrado ideolgico, instrumento de anlise discursivo-social........................ 137 4.4 A internet como bem ou recurso comum.......................................................... 138

    5 TPICOS PARA UMA TEORIA TRANSDISCIPLINAR DA COMUNICAO.............................................................................................. 146

    5.1 Informao, impresso e sentido....................................................................... 146 5.1.1 A informao como fator de comunicao........................................................... 147 5.1.2 O 'efeito expresso' e a unidade de anlise da comunicao................................ 149 5.2 A linguagem como factor de comunicao social............................................. 151

  • 5.3 O canal ou as condies ambientais da comunicao...................................... 155 5.4 Uma perspectiva transdisciplinar da comunicao......................................... 157 5.5 Elementos para uma anlise das relaes entre cidadania e comunicao

    na Amaznia........................................................................................................ 159

    5.5.1 Modos de produo e formao social na Amaznia........................................... 160 5.5.2 Aspectos da cidadania em face da comunicao na Amaznia............................ 172 5.5.2.1 Revisitando o sentido da cidadania sob a tica do materialismo histrico......... 174 5.5.3 Informao geogrfica e TICs na AIDESEP........................................................ 177

    6 SENTIDOS DA CIDADANIA ATRELADOS AO USO DE TICS EM ORGANIZAES INDGENAS AMAZNICAS........................................ 180

    6.1 Organizaes indgenas: espaos histricos de reivindicao social.............. 186 6.2 Uma luta scio-histrica da AIDESEP no Peru............................................... 190 6.2.1 Sentidos da cidadania na AIDESEP..................................................................... 191 6.3 O Estado Pluri-Nacional Boliviano e a defesa dos direitos nas terras

    baixas.................................................................................................................... 195

    6.3.1 CIDOB: a defesa dos direitos nas terras baixas.................................................... 197 6.3.2 Sentidos da cidadania na CIDOB........................................................................ 198 6.4 Um instrumento de representao e luta na Amaznia brasileira................. 210 6.4.1 A cidadania entre aspas......................................................................................... 212

    7 TECNOLOGIAS DE (DES)INFORMAO E (IN)COMUNICAO NO CONTEXTO DO SABER COMUNICACIONAL INDGENA AMAZNICO..................................................................................................... 221

    7.1 Elementos etnogrficos do saber comunicacional indgena amaznico......... 221 7.1.1 O mullu e o botuto................................................................................................ 222 7.1.2 De trocanos e manguars..................................................................................... 224 7.1.3 Ecos e cantos entre os tacana e os aioreo............................................................. 226 7.1.4 A comunicao interpessoal................................................................................. 228 7.1.5 De chasques e quipos........................................................................................... 228 7.2 Organizaes regionais indgenas e tecnologias de (des)informao e

    (in)comunicao.................................................................................................. 231

    8 CONSIDERAES FINAIS............................................................................ 238

    REFERNCIAS................................................................................................. 245

    APNDICE.......................................................................................................... 260

  • 16

    1 INTRODUO

    Os parnteses que acompanham o ttulo desse trabalho merecem a primeira

    considerao. O des- e o in- da informao e da comunicao, respetivamente, sugerem uma

    problematizao desses conceitos chaves da pesquisa. Isto , de no partir deles como se

    fossem fenmenos ou processos dados, claros, certos. Trata-se de enxerg-los na sua

    constituio como prticas sociais que navegam entre a certeza e a incerteza, com graus

    diversos de probabilidades na sua concreo.

    Entre informao e desinformao (ou comunicao e incomunicao) no existe uma

    linha divisria evidente ou que, ao menos, possa-se distinguir com absoluta clareza. Em

    alguns cenrios, a identificao da primeira poderia ser fcil, mas, a segunda, graas ao seu

    carter camalenico, insere-se pelos interstcios dos chamados meios massivos de

    comunicao, tanto quanto no cotidiano. E, assim muitos desses meios faam questo de se

    declarar isentos, reproduzem estratgias de manipulao comercial, poltica, cultural, militar,

    etc., nos seus discursos. Ali a comunicao inibe ou impossibilita o seu sentido como

    processo aberto e solidrio para se converter numa mercadoria a mais.

    At hoje parece que estamos mais desinformados do que comunicados. Ou, talvez,

    mais incomunicados do que informados. Assim, o acmulo de informao que atingimos no

    acompanha, necessariamente, a qualidade da comunicao social. Pense-se ainda na

    importncia crescente do uso de TICs nas organizaes e a sociedade em geral, os poucos

    estudos sobre o assunto na Pan-Amaznia, a diversidade socioambiental nesta regio e as

    percepes acrticas na relao da comunicao e o desenvolvimento. Conjuntura em que a

    reflexo sobre os modos de produzir informao e comunicao nas organizaes indgenas

    torna-se inadivel.

    Aprofunda-se nessa problemtica segundo uma abordagem transdisciplinar e

    pluralista. Neste aspecto, a leitura de todo tipo de textos recomendados nas disciplinas

    cursadas no NAEA, os conselhos da minha orientadora, a pesquisa de campo, o perodo de

    estudo na Unicamp e o dilogo entre saberes comunicacionais, foram essenciais para a escrita

    e a estruturao dos captulos aqui reunidos. Eles aparecem aqui como produto, mas devem

    ser considerados igualmente como ponto de partida de outras indagaes.

    dito que as ltimas dcadas do sculo XX trouxeram grandes inovaes nos campos

    da informao e da comunicao, especialmente em relao micro-eletrnica e s

    telecomunicaes. Estas potenciaram os computadores e possibilitaram a interconexo de

    mquinas e seres humanos na internet. No entanto, o acesso e uso das mais novas Tecnologias

  • 17

    de Informao e Comunicao (doravante TICs) herdam as enormes desigualdades histricas,

    pois, em tanto alguns setores sociais tm acesso de tima qualidade e os mais avanados

    aparelhos informticos, muitos outros carecem deles e/ou no tm acesso sequer internet.

    Mas, a carncia desse acesso no quer dizer que os valores sociais da informao e da

    comunicao sejam menores. Os saberes e prticas a elas ligados assinalam algumas

    tendncias sobre o agir comunicativo nas entidades regionais indgenas analisadas: AIDESEP,

    CIDOB, COIAB, CONFENIAE, OPIAC e ORPIA.

    Em termos organizacionais, a visibilidade das atividades corporativas e a

    disponibilizao e compartilhamento de informao dinamizar-se-iam com os avanos das

    TICs. Por exemplo, o desenvolvimento da Web 2.0, durante a primeira dcada do sculo XXI,

    diminuiu custos como os de transmisso e publicao, desonerando as entidades de boa parte

    dessas despesas. Mas, outras barreiras, relativas ao saber-fazer e s relaes de produo,

    impedem usos mais efetivos dessas tecnologias por parte de algumas organizaes indgenas

    amaznicas.

    Nesse panorama, as entidades indgenas locais s vezes sofrem at pelo fornecimento

    de energia eltrica, que a base para o funcionamento de aparelhos e dispositivos eletrnicos.

    Porm, no nvel regional, as organizaes tm conseguido melhor infraestrutura e servios por

    estar sediadas nas capitais de departamentos, estados ou pases, sendo que no por isso

    deixem de experimentarem tambm disfuncionalidades no acesso e uso de TICs.

    Devo dizer que a oportunidade que tenho tido de trabalhar profissionalmente na rea

    de Comunicao Social, nos ltimos anos, com grupos e entidades indgenas amaznicos,

    principalmente na Colmbia, oferece-me elementos imprescindveis para o estudo dessa

    problemtica. Da mesma maneira, no desenvolvimento da minha dissertao tive ocasio de

    fazer uma pesquisa de campo ao longo do rio Putumayo-I, conhecendo de perto as

    atividades indgenas nessa bacia, que leva suas guas at o rio Solimes. Outra excurso de

    campo, feita em alguns pontos da bacia do Caquet-Japur, permitiu aprofundar tambm a

    minha aproximao s culturas da Amaznia (PARRA MONSALVE, 2009). Dessa vez, o

    horizonte de pesquisa pan-amaznico, analisado atravs dos modos de produzir informao e

    comunicao num mbito organizacional indgena, implicou o desenvolvimento de atividades

    de campo em setores amaznicos e andinos da Bolvia, o Peru, a Colmbia, o Equador, a

    Venezuela e o Brasil. O que forneceu diversos momentos e materiais que complementaram as

    vrias consideraes terico-metodolgicas colocadas nesse documento.

    Por isso, a temtica escolhida tem a ver com aquela, a minha trajetria recente, e com

    a procura de melhor conhecimento sobre as dinmicas miditicas e de comunicao dos

  • 18

    grupos indgenas dessa regio tropical. Trata-se de descrever, interpretar e explicar a

    realizao dessas dinmicas nas organizaes a partir de ferramentas tecnolgicas, avaliando

    as suas potencialidades e limitaes no contexto corporativo dos movimentos sociais

    indgenas amaznicos. Enxerga-se, desse ponto de vista, a riqueza representada nos saberes

    indgenas sobre, entre outras matrias, a informao e a comunicao, em constante

    transformao pelos diferentes contatos culturais.

    Quanto perspectiva temporal e espacial dessa pesquisa, deu-se prioridade ao estado

    atual da temtica em seis entidades regionais na bacia amaznica, com foco na ltima dcada

    e meia (2001-2014). No entanto, considera-se fundamental levar em mente as trajetrias

    organizacionais, que do conta do seu desenvolvimento histrico nas dcadas finais do sculo

    XX. Este fio condutor levar-nos- muito seguramente a quatro ou cinco dcadas atrs, aos

    primrdios da estruturao de algumas das atuais organizaes indgenas dessa bacia na

    Bolvia, Brasil, Colmbia, Equador, Peru e Venezuela.

    Estimou-se, inicialmente, em quase 50 mil reais o oramento para a realizao da

    pesquisa de campo nos pases objeto da anlise, incluindo despesas de transporte integral

    (internacional, nacional, regional, local), hospedagem, alimentao, em parte ultrapassado. No

    total estive seis dias na Bolvia, dez no Peru, seis no Equador, sete na Venezuela, quinze no

    Brasil, e, a maior permanncia, na Colmbia, durante quase 90 dias. Essa desproporo

    quanto ao tempo dedicado ao campo na Colmbia respeito dos outros pases, justifica-se por

    duas razes. Em primeiro lugar, devido s restries do oramento da pesquisa e sendo

    natural da Colmbia, onde conheo vrias organizaes, comunidades e terras indgenas,

    preferi desenvolver ali com maior aprofundamento algumas questes etnogrficas dessa tese.

    Em segundo lugar, pela minha experincia profissional na Amaznia colombiana, essa

    perspectiva etnogrfica pde concretizar-se nas terras indgenas de Cidade Hitoma em Letcia,

    Amazonas, e Condagua, em Mocoa, Putumayo, nas quais tinha contatos desde os anos 2007 e

    2008, poca em que realizei essa outra pesquisa de campo para a minha dissertao, no

    programa de mestrado em histria da Universidade Nacional da Colmbia. Cidades em que

    foi relativamente fcil o acesso a diversos centros regionais de documentao e pesquisa,

    assim como a espaos adequados sistematizao e anlise dos dados coletados durante o

    percorrido de investigao.

    Esse tempo em campo representou, aproximadamente, quatro meses, ainda que no

    consecutivos. Uma parte do oramento concretizou-se com a bolsa da CAPES; a outra parte

    com fundos pessoais e a gentileza de diversas pessoas nesses territrios. Finalmente, fizeram-

    se visitas e entrevistas em cinco das nove organizaes almejadas na proposta inicial (cf.

  • 19

    Apndice A). Por questes oramentrias e de tempo no foi possvel fazer visita de campo

    nem entrevistas na Guiana (Amerindian People's Association of Guyana, APA), na Guiana

    Francesa (Fdration des Organisations Autochtones de Guyane, FOAG), no Suriname

    (Organisatie van Inheemsen in Suriname, OIS) e no Equador (Confederacin de

    Nacionalidades Indgenas de la Amazonia Ecuatoriana, CONFENIAE). Contudo, o alcance

    dessa seleo, em termos de aprofundamento sobre a comunicao na regio amaznica,

    continua a ser amplo e diverso, tal e como se ver.

    Na sua ordem, a Confederacin de Pueblos Indgenas del Oriente, Chaco y Amazonia

    de Bolivia, CIDOB, em Santa Cruz de La Sierra, Bolvia; a Coordenao das Organizaes

    Indgenas da Amaznia Brasileira, COIAB, em Manaus, Brasil; a Organizacin de los

    Pueblos Indgenas de la Amazonia Colombiana, OPIAC, em Bogot, Colmbia; a

    Organizacin Regional de Pueblos Indgenas del Amazonas, ORPIA, em Puerto Ayacucho,

    Venezuela; e a Asociacin Intertnica de Desarrollo de la Selva Peruana, AIDESEP, em

    Lima, Peru, foram visitadas e realizadas entrevistas nas suas sedes principais.

    No obstante, em termos de acesso s matrias publicadas na internet, os stios da

    COIAB, da CIDOB e da AIDESEP, permitiram uma anlise mais detalhada e rigorosa,

    comparativamente falando. Isto se v respaldado tambm pelas prprias trajetrias desses

    agentes organizacionais e suas condies histricas. Tais organizaes foram essenciais para a

    construo do corpus de anlise da cidadania, a partir de matrias disponibilizadas na internet.

    O objetivo principal dessa tese foi compreender a relao das reivindicaes cidads

    dessas organizaes regionais e a utilizao de TICs. Especificamente, interpretar esses usos e

    explicar as suas potencialidades e disfuncionalidades nesse mbito. Para tanto, o corpus de

    anlise selecionado, fornece materiais onde a prtica comunicativa organizacional aparece nas

    redes eletrnicas. Mas, antes de se chegar l, sero feitas vrias reflexes e discusses sobre

    alguns fundamentos tericos, metodolgicos, analticos, tcnicos, que constam em diversos

    captulos desse documento, tal e como se descreve a continuao.

    Comeamos pelo segundo captulo, Sobre a comunicao discursiva, o qual

    desenvolve pressupostos tericos derivados, mormente, das cincias da comunicao, da

    lingustica, da teoria do discurso, da sociologia e da filosofia da linguagem, complementados

    no terceiro captulo intitulado TICs, ideologia e cidadania. A seguir, o quarto, Materialismo

    histrico, metodologia discursiva e bens comuns, coloca questes de ordem lgica,

    ontolgica, epistemolgica e, em menor medida, terica. Representa o momento de

    ponderao dos fundamentos metodolgicos principais dessa tese, assim como da reflexo em

    torno da prtica cientfico social.

  • 20

    Vale repetir que nesses captulos (como na tese toda) desenvolvemos uma perspectiva

    pluralista, pois se articulam ali abordagens crticas, sociais, discursivas, inter- e trans-

    disciplinares. Interdisciplinar no primeiro momento da pesquisa, o qual se defronta com a

    fundamentao terica e metodolgica oferecida, em parte, nas disciplinas cursadas durante o

    primeiro ano de estudos no NAEA e na reviso de literatura. O segundo momento, da

    pesquisa de campo, desdobrou-se numa perspectiva transdisciplinar, acolhendo outros saberes

    sobre informao e comunicao na Pan-Amaznia.

    Quanto ao quinto, Tpicos para uma teoria transdisciplinar da comunicao, sugere

    um caminho possvel para a investigao social, o qual visa abordagens inovadoras nas

    cincias da comunicao e, por que no, nas prticas comunicativas dos mesmos agentes

    sociais. Isto se poderia desenrolar s com a ampla discusso e a adequada participao que

    uma temtica como essas exige. J o sexto, Sentidos da cidadania atrelados ao uso de TICs

    em organizaes indgenas amaznicas, oferece uma anlise do discurso sobre a cidadania

    indgena, num contexto dito democrtico, pois o perodo estudado foca-se nos anos de 2001 a

    2014, em pases com regimes constitucionais democrticos vigentes.

    Destaca-se mesmo a nfase terico discursiva nessa pesquisa. Assim, o eixo central da

    nossa anlise, estrutura-se numa conceitualizao aprofundada, mormente, no comeo e a

    metade, a qual se auna, paulatinamente, nas divises posteriores desse documento. bom

    lembrar que nessas divises desenrolam-se consideraes poltico econmicas, etnogrficas,

    discursivas, comunicativas, descrevendo os resultados centrais da anlise. Finalmente, o

    stimo captulo, Tecnologias de (des)informao e (in)comunicao no contexto do saber

    comunicacional indgena amaznico, desenvolve um olhar etnogrfico ligado aos resultados

    mais importantes da pesquisa de campo.

    Nesses quase trs lustros do nosso recorte temporal, a internet e todo tipo de

    aparelhagem tm se espalhado enormemente, junto ao aumento das velocidades de

    transferncia e as maiores quantidades de armazenagem e processamento de informao. Sem,

    no entanto, melhorar as possibilidades de permanncia dessa imensa diversidade social e

    ambiental que a Amaznia. primeira vista, esses avanos dos campos da informao e da

    comunicao no aparecem como ameaa para essa diversidade regional. Mas, mergulhando-

    se nas conexes propostas ao longo desses captulos, enxerga-se o desafio que representam as

    TICs respeito da diversidade socioambiental e a sua permanncia; desafio atrelado, mormente,

    ao desenvolvimento do modo capitalista de produo.

    preciso lembrar tambm que diversos textos aqui aprofundados foram apresentados

    em anais, resumos, pster, comunicaes orais, em reunies da Sociedade Brasileira para o

  • 21

    Progresso da Cincia (SBPC), a Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em

    Ambiente e Sociedade (ANPPAS) e a Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da

    Comunicao (INTERCOM). Recentemente foi aceite, de igual forma, outro trabalho para

    apresentao no XIV Congresso da Associao Ibero-Americana de Comunicao

    (IBERCOM), a realizar-se na Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo

    (29 de maro a 02 de abril de 2015).

    Nessas participaes (e outras mais, como na Cpula dos Povos na Rio+20) pude

    trocar ideias e argumentos com mltiplas pessoas, sobre variados aspectos da pesquisa que,

    sem dvida, auxiliaram no seu aperfeioamento. Dessa maneira, tanto a pesquisa de campo

    como as publicaes e a anlise aqui redigida, respondem s diferentes fases desse trabalho

    acadmico. Um trabalho que representou para mim um verdadeiro desafio tambm em termos

    de uma temtica que ainda pouco entendida pela prpria pesquisa cientfica.

    Se pensarmos que o nosso objeto de anlise tem a ver com sujeitos coletivos, portanto,

    poltico-ideolgicos, torna-se sugestivo, ento, conceber as atividades organizacionais

    indgenas como necessidades de novo direito ou prticas de direito vivo (GRIMALDI,

    2014), as quais esto ligadas com os campos da informao e da comunicao. Trata-se de

    uma discusso relacionada com uso do espectro eletromagntico, das infraestruturas digitais,

    da transmisso de contedos, dentre outros assuntos do complexo (mas no complicado) e

    reticular mundo das tecnologias digitais, da produo de informao e comunicao, ligados

    ao campo da cidadania, em ltima instncia, do direito e da poltica.

    As possibilidades da informtica e da comunicao assinalam novos horizontes nesses

    campos, decorrentes das invenes e descobertas em diferentes setores cientficos e

    tecnolgicos. S que a dinmica dominante em que tais invenes e descobertas

    desenvolvem-se, assinalam a maneira perversa em que ainda vivemos, na pr-histria da

    humanidade; levando nas nossas costas a carga da transformao indevida dos bens comuns

    em mercadorias. Incluindo nelas at a informao e o conhecimento.

    Sem dvida, uma das resistncias mais perseverantes ante tal transformao tem sido a

    dos povos indgenas, nos quais a terra (e outros commons) ainda conservam um sentido do

    pr-comum, presente nessas populaes, povos originrios, nacionalidades ou comunidades

    nativas. Onde o governo do territrio no pode ser particular seno coletivo, pois a terra no

    tida como simples mercadoria. Sobre esse tpico vai se discutir ao longo desse trabalho,

    frisando a importncia da formao e funcionamento de laboratrios e atividades de

    informao geogrfica. Adiantando um pouco disso, diremos que os processos de criao

    cartogrfica feitos pelas organizaes e/ou comunidades indgenas amaznicas revelam uma

  • 22

    tendncia para o uso de mapas que aliceram suas reivindicaes cidads. Portanto, de sua

    forma coletiva de apropriao e usufruto da terra, gua, ar, floresta, animais; de sua luta por

    um espao de existncia comum como grupo social que resiste, est vivo e que precisa de

    novos horizontes de direito.

    Explica-se. Essas prticas produtivas coletivas, que poderamos agrupar nos chamados

    bens comuns so especialmente importantes na nossa considerao. Isto inclui, claro,

    aquelas relativas aos campos da informao e da comunicao, onde essa perspectiva terica

    assinala no uma tragdia seno uma alternativa vivel de administrao dos recursos de uso

    comum. O grande contraste entre as terras indgenas e as reas de colonizao aponta

    transformao acelerada dessas ltimas, com um elevadssimo custo social e ambiental, que

    se projeta em cada um dos pases que dividem as territorialidades amaznicas. Muitos desses

    projetos planejados, ou em obra, constam dos programas da chamada Iniciativa de Integrao

    da Infraestrutura Sul-Americana, IIRSA, ou do Programa de Acelerao do Crescimento,

    PAC, e demais planos de desenvolvimento nacional (planos que no Brasil transformaram

    rapidamente a Amaznia, especialmente desde os anos 1970, como eixo de articulao

    necessrio nova configurao espacial do pas).

    Fala-se, assim, da construo de grandes hidreltricas como as dos rios Xingu e

    Madeira ou do Plano Amaznia Sustentvel (PRESIDNCIA DA REPBLICA, 2008, no

    paginado); este ltimo com o compromisso manifesto de fortalecer a integrao amaznica

    por meio de organismos como a Organizao do Tratado de Cooperao Amaznica (OTCA)

    e o Foro Consultivo de Municpios, Estados, Provncias e Departamentos do MERCOSUL.

    Esses empreendimentos so impostos s populaes locais como prioridade nacional, visando

    fornecer ao mercado os recursos naturais, assim entregues a grandes empresas nacionais e

    estrangeiras (CASTRO, 2009), enquanto o planejamento nacional em instrumentos como o

    Plan Nacional de Desarrollo da Colmbia (2011), projetam ali as reas amaznicas no marco

    de uma integrao para a circulao de mercadorias, energia, transporte, ligados aos discursos

    sobre os mercados nacionais e globais. Mais adiante voltaremos nesse contexto que,

    certamente, tem a ver com a nossa problemtica.

    Por enquanto, anotaremos algumas outras consideraes em torno desse trabalho.

    Devemos dizer, primeiramente, que a tese traz as referncias em portugus, espanhol, francs,

    ingls, pois se optou por citaes em lngua de origem no texto e suas respetivas tradues

    livres em nota de rodap. H mesmo ali uma rica coleo de notas explicativas,

    especificaes, dados, enunciados, acompanhando, assim, as arguies feitas em cada seo.

  • 23

    A anlise foca questes como: o que a informao publicada na internet representa

    para as metas e objetivos dos agentes organizacionais estudados? Como as organizaes

    fazem produo e reproduo de informao eletrnica que visibiliza as suas reivindicaes

    tnicas cidads? De que forma a prpria organizao indgena continua a enxergar a

    tecnologia, a informao e a comunicao? Que efeitos de sentido movimenta a cidadania nas

    prticas discursivas dessas organizaes regionais dos povos amaznicos? Em suma, trata-se

    de refletir sobre o modo de produzir informao e comunicao, como uma prtica

    sociocultural, dentre outras, relevante na vida das populaes e das organizaes indgenas.

    O que mais certo se pensarmos que na Ideologia Alem Marx e Engels (1998) falam

    nos modos de produo como a maneira mediante a qual os homens, organizados em

    sociedade, produzem a sua subsistncia; os modos de produo correspondem aqui, de acordo

    com palavras dos fundadores do Materialismo Histrico, a modos de vida, ou uma forma

    determinada de manifestar a vida, prximo de modo de fazer. Eles realizam isto usando os

    instrumentos de sua cultura; de sua cultura na prtica como diria Sahlins. Destarte, optou-se

    por enfatizar a categoria de modos de produo nessa tese.

    Em nossos dias, certamente, o modo capitalista ainda domina o cenrio mundial. E

    cabe aos pesquisadores lembrarem e descobrirem formas especficas em que esse predomnio

    produzido, reproduzido ou contestado. assim que entendemos a prtica cidad, atrofiada

    por mecanismos estatais ou de mercado. Nessa medida podemos afirmar que em lugar do

    cidado formou-se um consumidor, que aceita ser chamado de usurio. (SANTOS, 1996, p.

    13, grifo do autor). O que primeira vista apareceria como uma contradio de termos no

    seno o devir do mundo, segundo uma lgica que enxerga tragdias que encobrem o potencial

    de os sujeitos coletivos cooperarem e se comunicarem.

    No se deve esquecer que o conhecimento tradicional (que, ao final, pode ser pensado

    tambm como um acervo dinmico de informao comum) associado aos usos de fauna e

    flora, ou ao funcionamento da cultura como um todo, vital para a reproduo das sociedades

    indgenas. Mas, um saber transmissvel que se fragiliza pelo processo de cercamento dos bens

    comuns do conhecimento e da informao. Nesse sentido, exploram-se argumentos que

    valorizam o pr-comum nas TICs, o que apenas justo se pensamos na transcendncia do

    coletivo para se entender o individual no mbito das sociedades indgenas. Isso se constatou

    tanto na literatura como na pesquisa de campo. O reconhecimento desse valor demais,

    resultante do trabalho social, da ao em comum, da cooperao, que se prolonga entre

    geraes como conhecimento partilhado (produzido/reproduzido).

  • 24

    Aps ler os fundamentos constitucionais dos vrios pases que dividem a Amaznia,

    parece haver nesses textos muitos sinais de estimao das liberdades de expresso,

    informao e comunicao, assim como alertas perante os perigos da monopolizao ou

    oligopolizao do aparelho miditico. Mas, a realidade novamente supera a fico, pois assim

    a internet tenha criado espaos alternos para a comunicao, as relaes sociais atuais

    sinalizam ainda uma concentrao da produo e a difuso de contedos e do funcionamento

    dos servios de telecomunicaes.

    Panorama que representa hoje uma verdadeira provocao, em termos da diversidade

    social e cultural existente na Amaznia. Quer dizer, onde os diversos modos de (re)produzir

    informao nas populaes indgenas amaznicas e, por extenso, nas suas organizaes, so

    tpicos compreendidos, maiormente, sob o reducionismo disciplinar que perde de vista as

    especificidades das formaes econmicas e sociais como a do trpico mido sul-americano.

    Por isto, seguimos assistindo hoje ao confronto cultural e social, renovado agora pela

    homogeneizao potenciada no aparelho pblico-privado de informao e comunicao.

    Panorama que, todavia, representa a utilizao de tecnologias, geralmente alheias, mas

    estrategicamente usadas, segundo os prprios fins sociais e organizacionais dos indgenas.

    Desse modo, emergem possibilidades contra-hegemnicas, de resistncia, de emancipao, de

    reivindicao, ocultas muitas vezes como resultado das condies subalternas em que se

    produzem. Por isso, pensamos com Scott (2000, 2011) que a explorao passvel, em

    diversos momentos e espaos, de ser contestada, controvertida e at transformada, em

    processos de resistncia incubados sombra dela mesma.

    Uma abordagem que nos aproxima dos pressupostos scio-materialistas centrais dessa

    arguio, os quais aliceram tambm a discusso em torno da cidadania. Acredita-se como

    Santos (1996, p. 8) que ela pode comear por definies abstratas, cabveis em qualquer

    tempo e lugar, mas para ser vlida deve poder ser reclamada. Ideia que sintetiza uma

    cidadania ativa, onde diversas aes so desenvolvidas por sujeitos (em nosso caso

    organizacionais) que efetivamente reclamam, manifestam, contestam, como exerccio

    constante na defesa dos seus territrios, da sua vida. Atividades claramente ligadas a esses

    processos de resistncia e reivindicao que se contrapem s concepes formalista e

    substantivista da cidadania.

    o caso das marchas que durante os anos 2011 e 2012 realizaram alguns setores

    indgenas opostos construo de um tramo de estrada na Terra Indgena e Parque Nacional

    Isiboro Scure (TIPNIS), na Bolvia. Ou a oposio feita pela populao de Bagua, Amaznia

    peruana, em defesa dos recursos naturais. Ou da ORPIA, na Venezuela, nas lutas pelo

  • 25

    reconhecimento dos territrios indgenas e na denncia da violncia contra os seus hermanos

    no Estado do Amazonas, em particular, e desse pas, em geral. Esse exerccio constante, ativo,

    na defesa dos bens comuns articulado em alguns efeitos de sentido sobre a cidadania,

    colocados em matrias publicadas pela AIDESEP, a CIDOB e a COIAB durante o perodo

    analisado.

    Sentidos que encontram eco na discusso sobre o no cidado do terceiro mundo,

    aquele que, em nossos pases, classificado diversamente: h os que so mais cidados, os

    que so menos cidados e os que nem mesmo ainda o so. (SANTOS, 1996, p. 12). Por isso,

    chega a falar-se dela at como se fosse mais privilgio do que exerccio poltico. Ento,

    refletindo sobre essa cidadania atrofiada, justifica-se a deriva conceitual tomada do

    arcabouo materialista histrico, com o escopo de se explicar esse campo poltico-

    comunicativo ao que nos aproximamos nessas laudas.

    Mas, o que tem a ver a cidadania com os modos de produo e as formaes sociais

    numa perspectiva transdisciplinar da comunicao? Sintetiz-lo em poucas linhas no uma

    tarefa simples. Pensemos numa abordagem que considera tambm a vida, a prtica social,

    onde as problemticas ligadas s reivindicaes cidads so colocadas, dispostas, e analisadas

    sob uma tica sociomaterialista, onde fatores como as condies materiais e poltico-

    econmicas da sociedade (MCQUAIL, 2003) passam a fundamentar tambm o nosso olhar

    cientfico social sobre a produo de fenmenos de comunicao e informao no espao e

    tempo escolhidos.

    Dessa forma, configurou-se um arcabouo terico-metodolgico fundamentado

    mormente no Materialismo Histrico e na Anlise do Discurso. Pressupostos que, segundo o

    nosso modo de ver, permitem descrever, interpretar e explicar de forma mais rigorosa a

    problemtica da produo de informao e comunicao nas entidades regionais indgenas,

    objeto dessa anlise. Por isto, o longo percurso dedicado a eles, junto teoria da

    comunicao, considera-se uma etapa necessria (ainda que pesada e inacabada) desse

    empreendimento crtico.

    Empreendimento fundamentado, primeiramente, numa metodologia interdisciplinar

    que, aos poucos, foi se aproximando de um horizonte transdisciplinar. Explica-se. Nos

    primeiros anos desse doutorado e com a reviso de literatura realizada aprofundamos numa

    viso interdisciplinar da investigao cientfico social, tal e como estipulado no Programa de

    Desenvolvimento Sustentvel do Trpico mido, adscrito, entre outros 288 programas de

    educao superior brasileira, na rea interdisciplinar da Coordenao de Aperfeioamento de

    Pessoal de Nvel Superior (CAPES). Mas, considerando-se a problemtica abordada e os

  • 26

    principais resultados da pesquisa de campo, procurou-se uma via alterna, com o fim de

    integrar e pensar esses outros saberes indgenas sobre a informao e a comunicao na

    Amaznia.

    Uma abordagem reforada pela anlise comparativa que evidencia as maneiras

    concretas em que as organizaes indgenas amaznicas utilizam as TICs segundo suas

    especificidades. No entanto, com o intuito de delimitar a abrangncia ampla dessa

    comparao, optou-se por explorar analiticamente o eixo discursivo da cidadania. Desse

    modo, definiu-se tambm o alcance da pesquisa, debateu-se e refletiu-se na comunicao e na

    informao de uma forma comparativa. Para tanto, exploraram-se diversas conceitualizaes,

    dentre as quais a expresso cidadania tnica a que melhor resume os processos de

    reivindicao social desses grupos; processos tambm presentes no dialogismo (BAKHTIN,

    1999) dos discursos organizacionais indgenas.

    A conceitualizao sobre a comunicao e a cidadania seguiu, assim, alguns dos

    achados materialista-histricos, problematizadas segundo um contexto multisocietal como o

    amaznico. Nesse mesmo sentido deve ser entendida a tentativa de ir do inter ao

    transdisciplinar. Por isso, a execuo do nosso trabalho de pesquisa buscou envolver o

    indivduo comum com sua maneira comum de falar e de pensar (MARX, 2007, p. 131),

    articulando um olhar que perpassa, portanto, o mbito universitrio.

    Devo dizer ainda que tanto a pesquisa de campo desenvolvida como o perodo de

    estudos feito na Universidade Estadual de Campinas, em So Paulo, foram cruciais nessa tese.

    Foi o perodo em que tive a oportunidade de assistir disciplina de Introduo Anlise do

    Discurso, ministrada pelo Prof. Dr. Sirio Possenti, no Instituto de Estudos da Linguagem

    (IEL) dessa universidade. O perodo comeou em fevereiro de 2014 e se prolongou at

    outubro desse ano; tempo em que foram dedicadas extensas jornadas a leitura e anlise,

    especialmente na Biblioteca Central Cesar Lattes e outros espaos comuns desse centro de

    educao superior, na cidade de Campinas.

    O fato de ter desenvolvido a pesquisa de campo com antecedncia ao aprofundamento

    terico metodolgico desse perodo implicou novas questes que so colocadas no comeo

    desse trabalho. Pode ser que a ordem expositiva dele, por isso, no seja a melhor, mas

    constitui uma estrutura que reflete a caminhada que se fez ao longo dos anos para apreender,

    compreender, explicar, em termos cientficos, a informao e a comunicao. Conceitos como

    formao e comunicao discursiva, interdiscurso, enunciado, informao, impresso,

    sentido, sujeito, ideologia, prticas sociais, linguagem, canal e transdisciplinaridade so

    pensados sob uma viso crtica da cidadania. O que segue vigente hoje, pois essa viso ainda

  • 27

    aponta uma cidadania atrofiada, imperfeita, pensada, imaginada, controvertida, resistida,

    transformada, por isto, com a necessidade de se analisarem, concretamente, quais os seus

    sentidos.

    Tenho a firme convico da necessidade de refletir sobre os processos, procedimentos

    e representaes da informao e a comunicao que influenciam, de alguma maneira, a

    evoluo organizacional e dos movimentos sociais na Amaznia. Ento, a comunicao, a

    lingstica, a antropologia, o direito, a sociologia, entre outras cincias sociais e humanas,

    junto histria das organizaes e as formaes econmicas e sociais, podem alicerar a

    anlise comparativa, a discusso interdisciplinar e o reconhecimento de outros saberes na

    temtica aqui proposta. Esta tese procura e anima, de igual modo, o debate sobre a

    transdisciplinaridade, imaginada aqui como um caminho certo para religar os saberes, os

    conhecimentos tradicionais indgenas e no-indgenas; para tentar achar e navegar nas ondas

    emergentes de um paradigma cientfico que faz questo da incerteza e do movimento na

    histria da humanidade social.

  • 28

    2 SOBRE A COMUNICAO DISCURSIVA

    Este captulo representa uma tentativa para a construo de um campo terico

    interdisciplinar que v alm das concepes mais tradicionais da comunicao social. Procura

    ressignificar o social na comunicao, uma disciplina que se tornou importantssima no

    sculo XX dentre as cincias em geral. Para isso, desenvolver-se-o algumas ideias das

    correntes de pensamento que constituram o seu dominante terico, logo do qual apresento

    algumas categorias e noes fundamentais para a construo desse campo denominado j por

    Mikhail Bakhtin de 'comunicao discursiva'. Descrevem-se, a seguir, maiores determinaes

    sobre a problemtica e alguns elementos fundamentais nesse arcabouo terico discursivo.

    2.1 Problematizar a comunicao

    Nesta abordagem fica claro que a comunicao no pode ser enxergada nem como

    transmisso de informao ou como um estmulo-resposta. A primeira reduz mecnica e

    linearmente o complexo (mas no complicado) processo da comunicao, enquanto a segunda

    o simplifica, em termos comportamentais, desdenhando a riqueza simblica nele

    movimentada. Sentido e complexidade tm de ser levados a srio numa teoria da

    comunicao. Se acreditamos na transcendncia da comunicao na vida e nas relaes

    humanas, dever observar-se que

    uma teoria da comunicao no pode limitar-se a analisar aspectos parciais da convivncia social, nem contentar-se em examinar as diversas tcnicas de comunicao, embora estas e suas consequncias despertem, pela sua novidade, particular interesse na sociedade actual. (LUHMANN, 2006, p. 39).

    Pensar na improbabilidade da comunicao , de alguma forma, problematiz-la.

    Primeiro, improvvel que algum compreenda o que outro quer dizer; segundo, que uma

    comunicao chegue a mais pessoas do que as que se encontram presentes numa situao; e,

    terceiro, que se obtenha o 'resultado desejado', entendendo este como que o receptor adopte o

    contedo seletivo da comunicao (a informao) como premissa de seu prprio

    comportamento, incorporando seleco novas seleces e elevando assim o grau de

    selectividade (LUHMANN, 2006, p. 42); em consequncia dessas improbabilidades a

    comunicao arrisca falhar ou se degradar. Esta incerteza constitutiva far at que os sujeitos

    se abstenham de comunicar no momento em que no tenham garantias suficientes de que a

  • 29

    sua mensagem vai chegar a outras pessoas, de que vai ser compreendida e de que vai cumprir

    os seus objectivos. (LUHMANN, 2006, p. 43).

    Apesar dessa improbabilidade, a concepo de sistemas sociais afirma que a

    comunicao pode encontrar um certo xito, superando e transformando a sua natureza

    improvvel. Luhmann (2006, p. 45) crtica que no sistema dos meios modernos de

    comunicao de massas actua-se, sob a sugesto do funcionamento, como se todos estes

    problemas estivessem resolvidos. Quer dizer, a mdia, at hoje, defende a comunicao como

    um mecanismo harmnico, no contraditrio, uma viso bastante generalizada nas correntes

    tericas mais tradicionais. E o que torna, ento, a comunicao improvvel em provvel?

    Luhmann vai propor que os 'meios' so os mecanismos que permitem uma tendncia

    para essa probabilidade. Em sua concepo os 'meios' esto agrupados em trs tipos: de

    linguagem, de difuso e de comunicao simbolicamente generalizados, assim chamados

    porque neles precisamente se atinge por antonomsia o objectivo da comunicao

    (LUHMANN, 2006, p. 46-47). Para ele 'sociedade' o sistema que compreende todo tipo de

    comunicaes, que reproduz a comunicao por meio da comunicao e desta forma se

    distingue de um ambiente. (LUHMANN, 2006, p. 129). Postulou assim uma ontologia do

    social, embasada na comunicao como mecanismo auto-poitico que constitui o seu ser.

    Entende o social como uma possibilidade de existncia, decorrente das relaes

    comunicativas.

    Nesse sentido primordial a diferenciao entre comunicao e informao, pois isto

    marca a separao entre dois contextos de seleco completamente diferentes, e deste ponto

    de vista, o acto de comunicao tem como tarefa voltar a reunir os elementos separados.

    (LUHMANN, 2006, p. 133). Desprovida dessa tarefa articuladora, a comunicao entendida

    como o estabelecimento de uma unidade comum, uma comunidade.

    Esse 'estabelecer uma comunidade' fica evidente quando considerados aqueles meios

    'de comunicao simbolicamente generalizados' (que traz tona a noo de meios de

    intercmbio de Parsons) como o dinheiro, o poder, a influncia, os compromissos morais, a

    verdade (na cincia) e o amor (nas relaes ntimas). Ou seja, nas 'comunidades' criadas a

    partir de trocas econmicas, polticas, culturais, sexuais, vai se desenvolver a 'comunicao',

    como criao do comum entre pessoas, de compartilhamento de uma dada unidade espacial e

    social. nesse mbito que a comunicao se torna essencial para as formaes econmicas e

    sociais e no s na explicao de um sistema social.

    Levando em considerao isso, deveramos falar melhor de uma possvel disperso ou

    bifurcao de fenmenos anlogos mais do que uma diferenciao real entre comunicao e

  • 30

    informao. Com esse objeto aprofundaremos mais adiante nessa distino entre sentido,

    impresso, linguagem e comunicao (Cap. 5), conceitos de grande valor heurstico nesta

    abordagem discursiva. Por enquanto, tratar-se- do discurso como categoria central do

    arcabouo terico-metodolgico relacionado com a nossa problemtica scio-comunicativa.

    2.1.1 O que discurso? Uma definio interdisciplinar

    Considera-se que o discurso ultrapassa os cdigos de manifestao linguageira na

    medida em que o lugar da encenao da significao, sendo que pode utilizar, conforme

    seus fins, um ou vrios cdigos semiolgicos. (CHARAUDEAU, 2001, p. 25). No o

    mesmo que texto ou algo que ultrapasse a frase ou que seja um plano de enunciao diferente

    e oposto ao da histria (CHARAUDEAU, 2001). Por isto, um conceito ligado, certamente, ao

    campo da comunicao.

    A categoria 'discurso', como usada aqui, provm do campo dos estudos do discurso,

    especialmente da denominada Anlise do Discurso (AD). Nessa linha ele designa menos um

    campo de investigao delimitado do que um certo modo de apreenso da linguagem; modo

    no considerado como uma estrutura arbitrria, mas como a atividade de sujeitos inscritos

    em contextos determinados. (MAINGUENEAU, 1998, p. 43, grifo do autor). Em outras

    palavras,

    O discurso, bem menos do que um ponto de vista, uma organizao de restries que regulam uma atividade especfica. A enunciao no uma cena ilusria onde seriam ditos contedos elaborados em outro lugar, mas um dispositivo constitutivo da construo de sentido e dos sujeitos que a se reconhecem. (MAINGUENEAU, 1997, p. 50).

    Em vez de um lugar da encenao da significao, ele se aproxima do dispositivo

    (KLEIN, 2007), da existncia de uma atividade determinada, chamada prtica discursiva, que

    no meramente transmisso de informao, j que existe ali um processo complexo de

    constituio de sujeitos e criao de sentidos. Portanto, muito mais do que um cenrio pr-

    estabelecido ou ringue. Essa relao de sujeitos e sentidos produz efeitos mltiplos e variados,

    [d]a a definio de discurso: o discurso efeito de sentidos entre locutores. (ORLANDI,

    2010, p. 21).

    Foucault (1999, p. 51) sugeria o questionamento da vontade de verdade, a

    reconsiderao do discurso como acontecimento e a elevao da soberania do significante.

    Dessa maneira, sugerindo uma crtica dos atos comunicativos, que aqui tomada como

  • 31

    pressuposto terico para a anlise dos processos de informao e comunicao nas

    organizaes indgenas. Vale a pena ento frisar o discurso como prtica privilegiada na

    formao de sujeitos, objetos e conceitos, por tanto, uma prtica no apenas de representao

    do mundo, mas de significao do mundo, constituindo e construindo o mundo em

    significado. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91). Diz Foucault (2008, p. 55) tambm que os

    discursos so prticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os

    discursos so feitos de signos; mas o que fazem mais que utilizar esses signos para designar

    coisas. Processos, atividades, prticas, por isso, ligados com o extralingustico ou o que est

    fora da linguagem, com o real.

    Nesse sentido, vale observar dois equvocos a serem evitados numa teoria discursiva:

    O primeiro consiste em confundir discurso e fala (no sentido saussuriano): o discurso seria ento a realizao em atos verbais da liberdade subjetiva que 'escapa ao sistema' (da lngua). Contra esta interpretao reafirmamos que a teoria do discurso e os procedimentos que ela engaja no poderiam se identificar com uma 'lingustica da fala'. O segundo equvoco se ope ao primeiro porque 'distorce no outro sentido' a significao do termo 'discurso', enxergando a um suplemento social do enunciado, logo um elemento particular do sistema da lngua, que a 'lingustica clssica' teria negligenciado. (PCHEUX; FUCHS, 2010, p. 178179).

    Ento, se ele no fala nem suplemento social do enunciado, poderamos dizer com

    Brando (2004, p. 106) que ele o efeito de sentido construdo no processo de interlocuo,

    o qual se ope concepo de lngua como mera transmisso de informao. Trata-se de

    um fenmeno em movimento que articula diversas disciplinas e tendncias na sua anlise:

    Da o fato de suas fronteiras se confinarem com as de determinadas reas das cincias humanas como a Histria, a Psicanlise, a Sociologia, s para citar algumas. Pelos prprios objetivos a que se prope, a anlise do discurso , e s pode ser, interdisciplinar. Da mesma forma, essa interdisciplinaridade surge na sua relao com as outras tendncias desenvolvidas no interior das cincias lingsticas, e nesse sentido que a vemos, por exemplo, dialogando com as teorias enunciativas, a lingstica textual e, no campo da pragmtica, com a semntica argumentativa e a teoria dos atos de linguagem. (BRANDO, 2004, p. 104).

    Nesse contexto interdisciplinar vai se enfatizar o seu carter material, scio-histrico.

    Segundo Foucault (2002, p. 141) os discursos so efetivamente acontecimentos, [...] tm

    uma materialidade. Por sua parte, Orlandi (2006, p. 17) diz que o discurso a materialidade

    especifica da ideologia e a lngua a materialidade especfica do discurso. Assim, o discurso

    no se deve conceber fora da sua dinmica, da sua relao com a sociedade, a linguagem e a

    histria.

  • 32

    Num sentido mais abstrato o discurso uma categoria analtica que descreve os

    amplos recursos de significao a nossa mo, entendido assim tambm como 'semiose'; a

    Anlise Crtica do Discurso (ACD) o concebe como uma forma de prtica social que implica

    uma relao dialtica entre um evento discursivo particular e a situao, a instituio e a

    estrutura social que o enquadra; consequentemente uma relao de mo-dupla: the discursive

    event is shaped by situations, institutions and social structures, but also shapes them.1

    (FAIRCLOUGH; MULDERRIG; WODAK, 2009, p. 357). Portanto, uma relao dialtica

    que resulta, necessariamente, das interaes sociedade/sujeito e sujeito/sociedade.

    Wodak (2004) v na ACD, campo que se alimenta especialmente da teoria crtica, uma

    perspectiva frutfera ao interior da AD. Desta relao com a teoria crtica decorre a nfase que

    a ACD d aos problemas sociais vigentes, ponto de partida para a pesquisa e a construo de

    estratgias para a ao poltica. Pesquisa e ao ligadas, em nosso caso, com uma

    problemtica sobre os modos de produzir informao e comunicao no mbito indgena.

    No se pretende aqui determinar absolutamente o que (so) o(s) discurso(s), embora

    os pargrafos anteriores constituam um ponto de partida certo nessa aproximao. Pensa-se

    que o alcance dessa tica discursiva na rea inter/transdisciplinar da comunicao ser mais

    bem apreendido a partir de conceitualizaes tais como condies de produo, formao

    discursiva, interdiscurso, intradiscurso, enunciao, comunicao discursiva, as quais

    fornecem um variado instrumental para uma anlise histrica e social dessa problemtica.

    o que se detalha a seguir.

    2.2 Da comunicao mecanicista ao discurso

    2.2.1 O modelo de comunicao subjacente na lingustica saussureana

    O Curso de Lingustica Geral foi o nome dado compilao das disciplinas

    ministradas pelo suo Ferdinand de Saussure (1857-1913) entre 1906 e 1911, na

    Universidade de Genebra. O livro foi publicado primeiramente, e de forma pstuma, em

    francs, no ano de 1916. Contudo, seria traduzida ao espanhol s em 1945, em tanto a verso

    em portugus viria a luz em 1970. Dessa maneira que, aos poucos, o seu pensamento ir-se-ia

    difundir amplamente entre leigos, discentes, docentes, profissionais, pesquisadores, tanto da

    lingustica como da comunicao e outras disciplinas das cincias humanas e sociais,

    1 o evento discursivo delimitado pelas situaes, instituies e estruturas sociais, mas tambm as delimita. (Traduo nossa).

  • 33

    inicialmente na Amrica Latina e logo no Brasil. um desses poucos autores que muitos dos

    que passamos por uma faculdade de comunicao ainda lembramos, pois, tanto no ciclo

    bsico de estudos como no aprofundamento disciplinar, os ensinamentos do linguista eram (e

    qui ainda sejam) matria obrigatria em aulas de semiologia ou semitica.

    Tendo como antecedentes a gramtica e a filologia (incluindo a suas verses

    comparadas), e devido insuficincia delas para os problemas que os estudos sobre as lnguas

    colocavam no final do sculo XIX, Saussure (2006, p. 7) prope uma lingustica geral. O

    assunto dessa nova disciplina atingiria as diferentes manifestaes da linguagem humana,

    centrando-se especialmente nos textos escritos, para o qual se estipulou como tarefa a

    descrio e histria das lnguas, a procura das leis que as regem e o estabelecimento dos

    limites e definies prprios desse novo espao disciplinar.

    Para se estudar ento a lngua, destacada como fato primordial e norma nos assuntos

    de linguagem, vai se definir no Curso uma unidade terica: o signo lingustico (SAUSSURE,

    2006, p. 79). Como um dos seus pressupostos essenciais ele representa a associao

    necessria de um significante (imagem acstica) e um significado (conceito). Dessa maneira,

    explicava-se o mecanismo psico-fisiolgico a partir do qual os indivduos poderiam formar e

    expressar ideias numa lngua, entendida como um sistema de signos.

    Mas, como poderia pensar-se um modelo subjacente de comunicao nessa teoria

    lingustica? Tendo em mente essa natureza dicotmica do signo lingustico (significante

    significado), o que Saussure (SAUSSURE, 2006, p. 19) nomeou como circuito da fala pode

    imaginar-se como o modelo bsico de comunicao subjacente na sua teoria, tal e como se

    apresenta na figura seguinte (Figura 1):

    Figura 1 - Circuito da fala segundo Saussure

    Fonte: Saussure (2006, p. 19)

    O funcionamento do circuito dar-se-ia com, no mnimo, dois indivduos, representados

    por A e B. Tomando como origem o crebro A, um conceito suscitaria nele uma imagem

  • 34

    acstica, num processo inteiramente psquico; logo, esse crebro, por meio de um impulso

    relacionado com essa imagem, ativaria o aparelho fnico num processo fisiolgico, para

    traduzir a imagem em sons; em seguida, as ondas sonoras chegariam da boca de A at o

    ouvido de B por processo fsico; depois, inversamente, o ouvido deste ltimo captaria esses

    sons como imagem acstica para chegar por meio de sinais ao crebro de B, onde

    psiquicamente voltaria a se formar o conceito. Completado o circuito dessa fala o crebro de

    B estaria na capacidade de recome-lo.

    Esquematicamente, o circuito desenvolvido por duas pessoas que falassem, ficaria

    representado pelos seguintes pontos nodais: crebro(A), boca(A), canal(=), ouvido(B),

    crebro(B) e vice-versa. De maneira que processos psquicos e fisiolgicos pessoais

    encarregar-se-iam de manter, criar e, finalmente, veicular o signo lingustico para o canal que

    possibilitaria a equivalncia de um conceito em ambos os crebros. Em termos gerais, trata-se

    de um modelo do ato de fala, quer dizer, de comunicao verbal, formalista e psicologizante,

    ao colocar a origem do sentido como estando no crebro individual. No entanto, o autor vai se

    voltar ao estudo da lngua sem se deter, por tanto, na problematizao desses aspectos.

    Segundo Saussure (2006, p. 22): Com o separar a lngua da fala, separa-se ao mesmo

    tempo: 1.o, o que social do que individual; 2.o , o que essencial do que acessrio e mais

    ou menos acidental. A fala fica aqui explicitamente considerada como um ato individual,

    acessrio e acidental. E sua razo de ser permitiria expressar o pensamento pessoal, por meio

    de mecanismos psico-fisiolgicos e fsicos e umas combinaes apropriadas da lngua, em sua

    funo de cdigo. Evidencia-se assim uma preferncia no bojo da sua teoria pelo estudo da

    lngua, a qual, a diferena da fala e pelo seu carter homogneo e sistemtico, poderia ser

    estudada separadamente, como o pretendia no seu projeto da lingustica geral.

    No Curso reconhece-se que lngua e fala so os dois fatores constituintes da

    linguagem, embora assinale-se que: A lngua para ns a linguagem menos a fala. o

    conjunto dos hbitos lingsticos que permitem a uma pessoa compreender e fazer-se

    compreender. (SAUSSURE, 2006, grifo no original, p. 92). No obstante, enxerga-se uma

    concepo onde 'hbitos lingusticos' apropriados se relacionam com a realizao da

    linguagem, com a comunicao, com o 'compreender e fazer-se compreender'. Mas preciso

    do tempo e de uma massa falante para que exista uma lngua como instituio social.

    E como se constitui essa instituio social? Pela soma de sinais? A lngua existe na

    coletividade sob a forma duma soma de sinais depositados em cada crebro, mais ou menos

    como um dicionrio, cujos exemplares, todos idnticos, fossem repartidos entre os

    indivduos. (SAUSSURE, 2006, p. 27) Por isso, a realizao da fala, no havendo nada de

  • 35

    coletivo nela, dependeria da vontade e dos hbitos lingusticos dos que falam,

    desconsiderando assim os aspectos histricos do ato comunicativo. Diz-se ali tambm que o

    linguista s pode penetrar na conscincia dos indivduos que falam suprimindo o passado. A

    interveno da Histria apenas lhe falsearia o julgamento. (SAUSSURE, 2006, p. 97); e o

    seu trabalho dar-se-ia fundamentalmente na sincronia, pois se este se coloca na perspectiva

    diacrnica, no mais a lngua o que percebe, mas uma srie de acontecimentos que a

    modificam. (SAUSSURE, 2006, p. 106).

    Essa viso sincronista aistrica vai obstaculizar a descoberta de uma unidade para o

    estudo da linguagem (menos fala): No podendo captar diretamente as entidades concretas

    ou unidades da lngua, trabalharemos sobre as palavras. (SAUSSURE, 2006, p. 132). A

    escolha da palavra como entidade instrumental, d-se pela sua propriedade de representar

    ideias com valor convencional e/ou diferencial. O tempo considerou-se ali somente como

    elemento cronolgico da sucesso de palavras (ou subunidades destas), as quais

    conformariam assim ordens de relaes sintagmticas ou associativas, que limitariam a

    arbitrariedade do signo lingustico. Mas, como disse Bakhtin (1999, p. 70): Se ligarmos o

    processo fisiolgico da produo do som ao processo de percepo sonora, nem por isso

    estaremos nos aproximando de nosso objetivo.

    Aps detalhar melhor alguns dos aspectos relacionados com a linguagem na teoria

    saussuriana, fica evidente o atrativo do seu arcabouo conceitual para os estudos em

    comunicao. A lngua, como meio por excelncia para a comunicao humana (explicitada

    especialmente como instituio social base do 'circuito da fala'), transferiu-se

    metonimicamente para o estudo de estruturas com funes mediadoras como a imprensa, o

    rdio, a televiso, o cinema. De fato, o texto do Curso anima uma trajetria dessa espcie,

    quando assinala que: A lngua um sistema de signos que exprimem idias, e comparvel,

    por isso, escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simblicos, s formas de polidez,

    aos sinais militares etc., etc. (SAUSSURE, 2006, p. 24). Nesse sentido, no s a lingustica

    saussuriana contribuiria eficazmente. Outros campos como o da engenharia e a matemtica

    brindariam modelos suscetveis de entrar nas correntezas desse novo campo de conhecimento

    estruturado no sculo XX.

    2.2.2 Teoria da informao e modelo jakobsoniano da comunicao

    A teoria matemtica da comunicao (ou teoria da informao) , sem dvida, uma

    das teorias mais caras aos estudos em comunicao. Seu problema bsico foi o de reproduzir,

  • 36

    exata ou aproximadamente, uma mensagem de um ponto a outro, esquecendo os seus aspectos

    semnticos; para isso, Shannon (1948, p. 1) props um esquema geral de comunicao, onde

    haveria uma fonte de informao, origem da mensagem, que seria veiculada por um

    transmissor atravs de sinais num canal (susceptvel a perturbaes), sinais que seriam

    recebidos logo por um receptor que reconstituiria a mensagem, endereada finalmente para

    algum (ou para algo). Este esquema chamaria imensamente a ateno de outros cientistas,

    alm dos da matemtica e da engenharia.

    Na dcada de 1960, Jakobson (2001, p. 73) considerava a anlise lingustica

    coincidente e convergente com a abordagem da linguagem feita pela supradita teoria da

    informao. Seguindo essa perspectiva, o autor construiu tambm seu esquema de anlise,

    com o objetivo de relacionar os fatores 'inalienavelmente' postos em jogo em todo processo

    lingustico, em toda comunicao verbal, assim:

    Quadro 1 - Fatores envolvidos na comunicao verbal segundo Jakobson

    CONTEXTO

    REMETENTE MENSAGEM DESTINATRIO

    ...............................................................

    CONTATO

    CDIGO

    Fonte: Jakobson (2001, p. 123).

    Explicado sumariamente: O REMETENTE envia uma MENSAGEM ao

    DESTINATRIO, mas, para que isso seja eficaz, requer-se de um CONTEXTO ou

    referente, um CDIGO comum (ou parcialmente comum) e um CONTATO, sendo este

    um canal fsico e uma conexo psicolgica entre o remetente e o destinatrio que

    possibilitam a comunicao; esquema do qual derivam as seis funes bsicas da

    comunicao verbal: emotiva, potica, conativa, referencial, metalingustica e ftica,

    relacionadas, com remetente, mensagem, destinatrio, contexto, cdigo e contato,

    respetivamente (JAKOBSON, 2001, p. 129).

    Destarte, o autor estabelece uma categorizao que serviria para a anlise da

    comunicao verbal, aproximando-se mais do que se afastando da teoria matemtica da

    comunicao. Se a informao ali quantificada como digito binrio, como bit, esta

    caraterizao formalista vai ser extrapolada no fonema como unidade distintiva e elementar

  • 37

    para a lingustica da fala, em quanto elabora uma esquemtica linear do processo de

    comunicao verbal, anexando-lhe um contexto e algumas caratersticas psicossociolgicas na

    sua explicitao. Alm disso, ao suprimir no seu modelo a possibilidade de perturbaes

    (rudos, disfuncionalidades) do canal ou da conexo psicolgica do remetente e o

    destinatrio (no que ele denomina de 'contacto'), deixa de lado uma parte imprescindvel ao

    funcionamento da prpria linguagem. Porque, enquanto para Shannon essa potencialidade do

    erro no mecanismo comunicativo evidente, em Jakobson esse funcionamento da

    comunicao verbal vai ser normalizado.

    Para Jakobson (2001, p. 52): Na linguagem normal, a palavra ao mesmo tempo

    parte integrante de um contexto superior, a frase, e por si mesma um contexto de constituintes

    menores, os morfemas (unidades mnimas dotadas de significao) e os fonemas. Uma

    desordem nessa estruturao vai, portanto, constituir a anormalidade na linguagem, a

    incapacidade do indivduo combinar e selecionar, por inteligncia e vontade, as unidades

    lingusticas certas para falar.

    Jakobson mostra grande afinidade com o modelo saussuriano de comunicao. No seu

    objetivismo enxerga-se tambm uma grande influncia do esquema informacional, alm do

    funcionalismo aplicado na sua fundamentao terica. Contemporaneamente a Jakobson vai

    se desenvolver outra teoria de corte comportamental, que vai dominar uma parte do

    mainstream, em dcadas posteriores, nos estudos da comunicao.

    2.2.3 'O efeito a mensagem'

    Para McLuhan (1988, p. 21) as conseqncias sociais e pessoais de qualquer meio

    ou seja, de qualquer uma das extenses de ns mesmos constituem o resultado do novo

    estalo introduzido em nossas vidas por uma tecnologia ou extenso de ns mesmos, uma

    tese que teria uma grande influncia nos estudos acadmicos de comunicao a partir da

    dcada de 1960. Assinalava-se o reclamo por uma mudana de foco na pesquisa em

    comunicao, pois as mais recentes abordagens ao estudo dos meios levam em conta no

    apenas o 'contedo', mas o prprio meio e a matriz cultural em que um meio ou veculo

    especfico atua. (MCLUHAN, 1988, p. 25).

    Em palavras de McLuhan (1988, p. 33) o 'contedo' como a 'bola' de carne que o

    assaltante leva consigo para distrair o co de guarda da mente. O efeito de um meio se torna

    mais forte e intenso justamente porque o seu 'contedo' um outro meio. Da a aposta por

  • 38

    novos horizontes para alm do contedo como caminho alternativo para um programa de

    pesquisa.

    O passo de uma era mecnica para uma era eltrica seria um dos pressupostos

    essenciais para as concepes mcluhanianas. Ele faz uma analogia do sistema eltrico como

    extenso de nosso sistema nervoso central. No seu pensamento, a energia eltrica

    informao pura, sem contedo, por isso, com uma capacidade imensamente informativa e

    transformadora. Os meios, pela sua possibilidade de se hibridizar, de se encontrar com outros

    meios, possuem tambm esta capacidade libertadora. McLuhan (1988, p. 77) vaticina:

    Ao colocar o nosso corpo fsico dentro do sistema nervoso prolongado, mediante os meios eltricos, ns deflagramos uma dinmica pela qual tdas as tecnologias anteriores meras extenses das mos, dos ps, dos dentes e dos contrles de calor do corpo, e incluindo as cidades como extenses do corpo sero traduzidas em sistemas de informao.

    Nesse contexto os meios tornam-se produtores de acontecimentos, de efeitos sobre os

    indivduos e a sociedade. Eltricamente contrado, o globo j no mais do que uma vila.

    (MCLUHAN, 1988, p. 19). Este conceito de aldeia global seria um dos avanos mais

    conhecidos da sua teoria e a rede eltrica o sistema central dessa vila planetria. McLuhan

    interessa-se mais pelo efeito do que pelo significado, pois o efeito envolve a situao total e

    no apenas um plano do movimento da informao. (MCLUHAN, 1988, p. 43). Poderia ser

    problemtico falar sobre a situao total j que os planos do movimento da informao so

    mltiplos e at contra-hegemnicos e no simplesmente uma questo de efeitos.

    A palavra falada, a escrita, as estradas, o nmero, o vesturio, a habitao, o dinheiro,

    os relgios, a tipografia, a imprensa, a roda, o automvel, os anncios, os jogos, o telgrafo, a

    mquina de escrever, o telefone, o fongrafo, o cinema, o rdio, a televiso, os armamentos e

    a automao, so considerados por McLuhan os principais meios de informao e

    comunicao.

    Esse objetivismo radical no estudo da comunicao e da informao s poderia

    produzir uma 'miditica' ou, mais alm, uma 'midiatologia', tal e como o apresenta a verso

    mais elaborada desse paradigma, concebendo o meio como se fosse a mensagem, como se o

    objeto mesmo levasse no seu seio as condies sociais de produo dos discursos de forma

    evidente. E, as mais das vezes, tais condies so apagadas em prol dos efeitos ligados

    fundamentalmente com os meios mesmos. Nesse sentido, far-se-o a seguir algumas reflexes

    sobre filosofia e linguagem tendo ao grupo de Bakthin, notadamente, como base para elas.

  • 39

    2.3 Filosofia e linguagem

    As pesquisas que sobre diversos aspectos da linguagem fizeram Mikhail Bakhtin e o

    denominado Crculo de Bakhtin so de reconhecida importncia na lingustica e nos estudos

    da linguagem contemporneos, mas, ao que parece no assim no campo da comunicao. Esta

    disciplina, de alguma maneira, ficou apresada na corrente de pensamento inaugurada e

    difundida amplamente pela Lingustica Geral de Saussure.

    Essa proeminncia do pensamento saussuriano na comunicao pode se explicar, em

    parte, pelo fato de que estudos como os do Crculo, publicados j desde os anos 1920 na

    Rssia, s chegaram a se conhecer a partir das dcadas de 1960 e 19702 em pases europeus e

    posteriormente no mbito latino-americano. Tais estudos refutam muitas das teses do suo e

    seus seguidores, fundamentalmente a sua ontologia materialista histrica, onde as relaes e

    no os termos configuram a base do sentido.

    Segundo Sobral (2005, p. 137) ao mesmo tempo em que generaliza sobre o singular,

    o Crculo recusa a abstrao, o teoreticismo, ou seja, a atribuio aos elementos gerais de um

    papel autnomo, o que apagaria a especificidade dos fenmenos singulares. Destarte, a

    inovadora maneira de enxergar os fenmenos da linguagem sob um prisma sociolgico e

    materialista, indica uma via mais sugestiva para evitar esse objetivismo.

    O tempo e espao aqui no permitem aprofundar sobre os detalhes dessa abordagem.

    Pelo momento vale lembrar as grandes afinidades entre a linguagem e o campo da

    comunicao e, claro, da cultura popular e a filosofia do cotidiano, pois a

    'linguagem' essencialmente um nome coletivo: le no pressupe uma coisa 'nica', nem no tempo nem no espao. Linguagem significa tambm cultura e filosofia (ainda que no nvel do senso comum) e, por tanto, o fato 'linguagem' , na realidade, uma multiplicidade de fatos mais ou menos orgnicamente coerentes e coordenados: no extremo limite, pode-se dizer que todo ser falante tem uma linguagem pessoal e prpria, isto , um modo pessoal de pensar e de sentir. (GRAMSCI, 1995, p. 36).

    No entanto, seja no extremo limite, indevido pensar numa linguagem pessoal e

    prpria, pois, ao nosso modo de ver, no nvel pessoal realizada uma linguagem mas no

    constituda e, portanto, os seres falantes teriam, sim, um estilo e no uma linguagem prpria.