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JOGOS AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NO CONTEXTO DAS AULAS
DE EDUCAÇÃO FÍSICA*
Alesandro Anselmo Pereira
Luiz Gonçalves Junior
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva
Resumo
A Lei 10.639/2003, que altera a Lei 9394/1996, torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro–Brasileira e Africana na educação básica. No entanto, percebemos uma lacuna quanto ao cumprimento desta lei dentro das instituições educacionais, particularmente no componente curricular Educação Física. Assim, o objetivo deste estudo foi, inicialmente, fazer um levantamento sobre jogos, brincadeiras, danças e contos de origem africana e afro-brasileira para, em um segundo momento, realizar aplicação das mesmas em uma intervenção em aulas do Projeto Recreação da Prefeitura Municipal de São Carlos, e, finalmente, observar como se dá o desenvolvimento de tais atividades junto aos participantes e se estas contribuem na formação de identidade negra positiva de crianças negras e não negras e no respeito à diversidade étnico-cultural. Tratou-se de uma pesquisa qualitativa com coleta de informações realizada por meio do registro sistemático das observações em diário de campo. Consideramos que é possível vivenciar, de forma reflexiva, a história de diferentes culturas, inclusive a africana, e que as vivências, os diálogos e a reflexões foram de extrema importância para afirmação, compreensão e respeito de diferentes culturas e identidades.
Introdução
Dia-a-dia as pessoas se deparam com as diferenças existentes e aparentemente
consolidadas pela sociedade, acreditando, por vezes, que situações constrangedoras
desencadeadas através de apelidos, brincadeiras mal intencionadas, especialmente no
ambiente escolar, são atitudes corriqueiras, as quais devem ser aceitas como “naturais”
pela força do contexto em que se vive, como, por exemplo, acreditar que afro-
descendentes são seres humanos inferiores.
Ao brincar e jogar na rua ou na escola podemos sentir em situações de
acolhimento étnico-cultural: valorização, receptividade, conforto e alegria. Como
também, em situações de tolhimento étnico-cultural: desvalorização, constrangimento,
desconforto e tristeza. De um modo ou de outro são momentos de aprendizagem que, no
entanto, oscilam entre prazer e dor, devendo as primeiras serem encorajadas e as
segundas banidas de nossa sociedade. * Referência: PEREIRA, Alesandro A.; GONÇ ALVES JUNIOR, Luiz; SILVA, Petronilha B. G. e. Jogos africanos e afro-brasileiros no contexto das aulas de educação física. In: XII Congresso da Association Internationale pour la Recherche Interculturelle (ARIC): diálogos interculturais: descolonizar o saber e o poder, 2009, Florianópolis. Anais... Florianópolis: UFSC, 2009. p.1-18. (ISBN: 978-85-87103-36-9).
A partir de nossa vivência e contato com a Lei 10.639/2003, que altera a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/1996, tornando obrigatório o ensino de
História e Cultura Afro–Brasileira e Africana na educação básica (BRASIL, 2004) nos
sentimos estimulados e desafiados a desenvolver intervenção e estudo sobre o tema,
relacionando-o ao contexto da Educação Física, especialmente por percebermos, lacuna
quanto ao cumprimento desta lei no citado componente curricular.
Devido a dificuldades de desenvolvimento da intervenção em aulas regulares de
Educação Física resolvemos realizar a mesma junto ao Projeto Recreação da Prefeitura
Municipal de São Carlos, o qual ocorre em escolas da rede pública municipal, no
contra-horário das aulas regulares. O citado Projeto atende crianças de 7 a 12 anos,
menos favorecidas economicamente e moradoras das imediações da escola e tem por
premissa trabalho educacional realizado por meio de atividades recreativas, esportivas e
de lazer, tais como: atletismo, natação, tênis de mesa, hip hop, jogos diversos, kung fu e
futebol. Salientamos termos realizado nosso estudo em uma das escolas do Projeto,
localizada no bairro Santa Felícia.
O objetivo deste estudo foi, inicialmente, fazer um levantamento sobre jogos,
brincadeiras, danças, contos, entre outros, de origem africana e afro-brasileira para, em
um segundo momento, realizar aplicação das mesmas em uma intervenção em aulas do
Projeto Recreação da Prefeitura Municipal de São Carlos, e, finalmente, observar como
se dá o desenvolvimento de tais atividades junto aos participantes e se estas contribuem
na formação de identidade negra positiva de crianças negras e não negras e no respeito à
diversidade étnico-cultural.
A luta do Negro
O continente africano e seu povo foi dominado por Portugal entre os séculos XV
e XX. Tal país controlava o comércio de especiarias, se apropriou de recursos na costa
africana e ainda apreendeu negros para o tráfico de escravos. Somente em 1910, alguns
países deste continente iniciaram seu processo de independência. Portugal resistiu ao
movimento e sofreu uma campanha que o esgotou social e economicamente,
culminando com a Revolução dos Cravos, em 1974, quando todas as colônias
portuguesas na Á frica tornaram-se independentes (ANDRADE, 1992).
A Á frica possui 30 milhões de quilômetros quadrados de superfície e abriga
diversas civilizações, etnias e culturas. Está dividida politicamente em 53 Estados,
sendo que a média relativa per capita é muito baixa na maioria de seus países, sobretudo
entre a população negra; a minoria branca ainda controla o poder político, a exploração
dos recursos econômicos e a força de trabalho em quase todo continente. Há baixo
desenvolvimento industrial (ANDRADE, 1992).
Se por um lado tais problemas ainda se fazem presentes, fruto da dominação
européia no período da colonização, por outro lado, de acordo com Nascimento (citado
por ABRAMOWICZ e col., 2006):
O legado egípcio fundamenta um desenvolvimento em todo o continente africano, assim como o saber greco-romano fundamenta a civilização ocidental de origem européia. Desse modo, diferentemente do pensamento comum, a Á frica possui cultura, ciência e tecnologia sofisticadas desde tempos remotos. (p.100).
No passado colonial brasileiro muitos negros, capturados como escravos em
diversas regiões da Á frica, eram embarcados em tumbeiros destinados, inicialmente, aos
portos de Recife e da Bahia. Durante a viagem alguns negros morriam devido às
péssimas condições ou mesmo suicidavam-se; no Brasil, eram escravizados e quando
reagiam eram açoitados e por vezes assassinados pelos senhores ou capatazes. Muitos,
por outro lado, conseguiam fugir e formavam os quilombos (ANDRADE, 1992).
Segundo Giffoni (1974) a presença de grande quantidade de negros no Brasil
causou mudanças importantes na formação brasileira, tanto com relação aos aspectos
culturais, bem como com relação aos aspectos sociais trazidos pelas famílias e
transmitidos entre as gerações.
De acordo com Abramowicz e col. (2006), a influência dos negros foi de intensa
formação da cultura brasileira, por exemplo, com algumas canções conhecidas até os
dias atuais, entre elas, “Escravos de Jó”, cujo objetivo é passar pedras de um
participante a outro de uma roda no ritmo em que a música é cantada. Em Gana, país da
Á frica, as crianças têm uma canção muito parecida com esta. Ainda com relação a
música, o rap reaparece com forte manifestação afro-brasileira, denunciando a opressão
e a marginalização sobre a população pobre, composta, em sua maioria, por negros.
Nele, a força da musicalidade africana está presente em circuitos que unem os negros dos Estados Unidos aos negros do Brasil, principalmente do Rio de Janeiro e de São Paulo. Tanto os ritmos marcados e repetitivos, como a força da palavra, e especialmente da palavra cantada, remetem a características das
sociedades africanas; as letras das músicas de rap denunciam a opressão e a marginalização a que estão submetidos os habitantes das periferias dos grandes centros urbanos, em sua maioria negros e mestiços (SOUZA, 2006, p.138).
Outras contribuições de importância cultural africana no Brasil são, na música e
na dança: o carimbó, o jongo, o samba e o cacuriá; nos instrumentos musicais: o
atabaque, o agogô, o berimbau, o afoxé e a ganzá; nas lutas: a capoeira; na religião: o
candomblé e a umbanda; na culinária: o vatapá, o caruru, a muqueca, o acarajé e a
feijoada; no idioma, palavras como: marimbondo, quilombo e moleque.
De acordo com Souza (2006) os africanos também trouxeram para o Brasil
técnicas de produção de objetos, como modelar e cozer o barro utilizado para confecção
de recipientes, bem como padrões estéticos presentes nas formas, nas decorações e no
colorido.
Apesar de tais contribuições, ainda vivenciamos, no Brasil, preconceitos e
discriminações. O decreto nº 1331, de 17 de fevereiro de 1854, por exemplo, estabelecia
que as escolas públicas do país não podiam admitir escravas, e as previsões de instrução
para adultos negros dependiam da disponibilidade do professor (BRASIL, 2004).
Buscando minimizar e acabar com tais posturas, a luta do movimento negro
impulsionou a criação da lei nº 10.639/2003, a qual obriga o ensino da História e
Cultura Afro–Brasileira e Africana na educação básica (BRASIL, 2004).
Tal lei altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9.394, de 20
de dezembro de 1996, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino da "História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana". Essa decisão destaca a contribuição dos negros na
construção e formação da sociedade brasileira e tem o mérito de trazer aos estudantes do
ensino básico os conhecimentos acerca das relações étnico-raciais e das histórias afro-
brasileira e africana (BRASIL, 2004).
Especificamente na área de Educação Física, os Parâmetros Curriculares
Nacionais - PCNs - (BRASIL, 1997) indicam a importância de se: “conhecer e valorizar
a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos socioculturais
de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em
diferenças culturais, de classe social, de crença, de sexo, de etnia ou características
individuais e sociais” (p.7).
O mesmo documento indica ainda que:
A Educação Física permite que se vivenciem diferentes práticas corporais advindas das mais diversas manifestações culturais e se enxergue como essa variada combinação de influências está presente na vida cotidiana. As danças, esportes, lutas, jogos e ginásticas compõem um vasto patrimônio cultural que deve ser valorizado, conhecido e desfrutado. Além disso, esse conhecimento contribui para a adoção de uma postura não-preconceituosa e discriminatória diante das manifestações e expressões dos diferentes grupos étnicos e sociais e às pessoas que dele fazem parte (BRASIL, 1997, p.28-29).
Não se trata, porém, conforme esclarece Freire (2005), de realizar “justaposição
de culturas, muito menos no poder exacerbado de uma sobre as outras, mas na liberdade
conquistada, no direito assegurado de mover-se cada cultura no respeito uma da outra,
correndo risco livremente de ser diferente, de ser cada uma ‘para si’” (p.156).
No que diz respeito a cultura corporal, Gonçalves Junior (2007) destaca:
...observamos comumente nas aulas de Educação Física, a predominância do esporte como conteúdo por vezes exclusivo, o que acaba por reduzir o universo da cultura corporal, circunscrevendo-o, não raro, ao contexto cultural estadunidense e/ou europeu do futebol, voleibol, basquetebol e handebol, em detrimento das potencialidades que podem ser exploradas ao propor a vivência de outras práticas corporais (jogos, brincadeiras, danças, lutas), oriundas da diversidade cultural de diferentes povos que construíram e constroem o Brasil para além dos europeus, tais como os indígenas e africanos.
Neste texto e contexto passamos a expor algumas práticas culturais africanas e
afro-brasileiras relacionadas a jogos, brincadeiras, danças e contos, por nós levantados
ou elaborados para esta intervenção e estudo.
Jogos Africanos e Afro-Brasileiros
Segundo Prista, Tembe e Edmundo (1992) o jogo e a brincadeira sempre
estiveram voltados para o âmbito educacional e preparação para vida. O jogo está além
dos limites físicos e psicológicos, pois todo jogo tem algum significado.
De acordo com Huizinga (1971) o jogo ultrapassa os limites da atividade
puramente física ou biológica, tendo capacidade de criar ordem, deslocando-se da
imperfeição do mundo para uma perfeição temporária.
Para Huizinga (1971) trata-se o jogo de:
Atividade livre, conscientemente tomada como ‘não séria’ e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticado dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras” (p.16).
De acordo com Maranhão (2006) os jogos na cultura africana, assim como em
outras culturas, possuem algumas particularidades em relação a gênero, idade e número
de participantes. Alguns jogos na cultura africana são praticados somente por meninas e
outros somente por meninos. Afirma ainda ser fundamental levar em consideração o
contexto em que se desenvolve(u) o jogo para haver compreensão e respeito à cultura.
Neste estudo, chamaremos de jogo, genericamente, atividades lúdicas como
brincadeiras, danças, cantos, dramatizações e afins.
Procedimentos
Na primeira fase do estudo realizamos um levantamento de jogos, brincadeiras
e danças africanos ou afro-brasileiros a partir da nossa vivência, de material
bibliográfico ou da internet, bem como da construção de atividades lúdicas com enfoque
nas relações étnico-raciais que contribuíssem na formação de uma identidade cultural
negra positiva.
Na segunda fase do estudo realizamos uma intervenção através vinte aulas junto
ao Projeto Recreação da Prefeitura Municipal de São Carlos, sendo que participaram da
mesma 40 crianças, após diálogo com elas e seus respectivos pais e responsáveis sobre
os objetivos do trabalho, procedimentos metodológicos e uso dos dados para divulgação
científica, os quais as autorizaram através da assinatura de termo de consentimento livre
e esclarecido a participar e a nós a divulgar os dados em meios acadêmicos.
O cotidiano da intervenção foi todo sistematicamente registrado em diário de
campo, que, de acordo com Bogdan e Biklen (1994), “são relatos escritos daquilo que o
investigador ouve, vê, experiencia e pensa no decurso da recolha e reflectindo sobre os
dados de um estudo quantitativo”.
Resultados
A seguir apresentamos a descrição de alguns jogos, entre parênteses a fonte da
atividade, sendo a descrição, o objetivo e o resultado por nós escrito com base em nossa
pesquisa, experiência e situações em campo, conforme registro em diários:
1. O que é áfrica? (MARANHÃO, 2006)
Descrição: A atividade consistiu em escrever e/ou desenhar o que as crianças sabiam
sobre a Á frica (ver Fig. 1). Realizamos uma conversa inicial com as crianças sobre a
Á frica, perguntando a elas o que sabiam a respeito, se conheciam países de lá, pessoas
originárias, se alguma delas possui descendência etc. Na seqü ência fizemos a
distribuição de uma folha de papel, lápis comum, lápis de cor e/ou giz de cera para as
crianças se expressarem através da escrita e/ou desenhos que representassem o que
sabem sobre a Á frica.
Objetivo: Identificar qual concepção de Á frica as crianças possuíam e dialogar sobre a
mesma; despertar a curiosidade de conhecer os países e as etnias que compõem tal
continente; estimular pesquisa pessoal delas em seu meio familiar sobre sua
descendência e se possuem alguma de origem africana.
Resultado: Ao analisar as respostas das crianças, percebemos que as mesmas, em sua
maioria, apresentaram insistentes menções a florestas, animais, indígenas e muita
pobreza, conforme os relatos que seguem: “A Á frica tem povos indígenas, tem muitos
bichos asiáticos, tem um animal que gosto muito o leão, na Á frica tem muitos leões”
(Aluno 1); “Na Á frica tem leão, onça, tigre, macaco, gavião, passarinho, macaco, onça
pintada” (Alunos 5, 15, 16, 23 e 32); “A Á frica é um país muito pobre onde as pessoas
moram em barracos, na selva tem muitos animais. A copa do mundo de 2010 vai ser na
Á frica do Sul” (Aluno 25); “Amazônia, Á frica, eu imagino que seja, um lugar
maravilhoso, cheio de flores, com muita árvore para nós respirarmos, este lugar é cheio
de maravilhas, como pássaro, leão, cobra linda e brilhante, leopardo... O que eu acho
mais chato de tudo é porque os seres humanos jogam fogo na Á frica e da Á frica vai
para Amazonas e assim continua... Na hora que eles colocam fogo os animais saem
correndo, mata bastante animal, destrói a nossa natureza e polui o ar” (Aluno 39).
Fig. 1: Crianças expressando o que sabem sobre a Á frica
2. Escrever uma história do negro e outra do branco (MARANHÃO, 2006)
Descrição: Distribuímos uma folha de papel e lápis comum para as crianças,
orientando-as para, num primeiro momento, passar um traço no meio da mesma. Num
segundo momento, pedimos para desenharem em um dos lados da página uma pessoa
negra e escrever uma breve história relacionada ao desenho e, na outra metade da
página, desenharem uma pessoa branca também escrevendo breve história relacionada a
este desenho (ver Fig. 2).
Objetivo: Possibilitar, a partir dos desenhos e histórias criados pelas crianças, realização
de roda de conversa sobre status e papel social que elas relacionam as pessoas brancas e
negras, se a raça/cor da pele influencia os valores atribuídos a estas pessoas.
Resultado: Ao desenharem e/ou descreverem a personagem negra e a branca,
percebemos que elas atribuíram valores sociais, econômicos e estéticos superiores as
personagens brancas, por exemplo: “A minha menininha era muito negra, mas ela
conhecia uma menina branca queria ser igualzinha a ela, elas brincavam muito e a
amiguinha dela falou: eu vou viajar, mas você pode ficar cuidando da minha casa,
respondeu a menina negra sim” (Aluno 1); “Era uma vez uma menina negra, ela não
gostava de ser negra porque ninguém gostava dela então resolveu sair para andar, de
repente ela encontrou um gênio no meio do caminho, oba vou fazer um pedido eu quero
ser bonita” (Aluno 3); “O menino pobre era o negro e o menino rico era o Branco”
(Aluno 11); “A menina negra não tem muita coisa para brincar, mas é feliz, a mãe dela
não tem muito dinheiro para comer ela não chora. O menino loiro ele tem muita coisa
para ele poder brincar e não é feliz, a mãe tem muito dinheiro para comprar pão e ele
faz birra” (Alunos 8, 9 e 17); “Negra, vida pobre, ela cata lixo para sobreviver, toda sua
família cata lixo para viver, come comida do lixo, porque não tem dinheiro, estudo,
casa, vida rica, a vida do branco é muito bom ter carro, casas e tudo que é bom, mas
afinal tem estudo, não come comida do lixo, tem tudo” (Aluno 21).
Fig. 2: Crianças criando história de um personagem negro e um branco
3. O que é capoeira? (Os autores)
Descrição: Para Oliveira (1993) trata-se a capoeira na atualidade de “jogo-de-luta-
dançada", ou seja, ao insinuar, representar e encenar golpes, o capoeirista brinca de lutar e,
de forma lúdica, realiza a capoeira como jogo, além disso, a musicalidade típica das rodas
flui como dança na corporeidade dos jogadores-dançarinos. Em nossa atividade,
inicialmente, pedimos para as crianças escreverem e/ou desenharem o que conheciam
sobre capoeira. Foi realizado diálogo acerca do que sabiam a respeito, se alguém já
havia praticado ou conhecia alguém que praticasse. Na seqü ência distribuímos uma
folha de papel, lápis comum, lápis de cor e/ou giz de cera para as crianças se
expressarem através da escrita e/ou desenhos que representassem o que sabiam sobre
capoeira. Para finalizar convidamos todas as crianças que conheciam movimentos da
capoeira apresentassem para as demais para jogarem juntas, inicialmente de modo livre,
depois em duplas e finalizando com uma roda (ver Fig. 3 e 4) com todas batendo palmas
na cadência de três tempos típicas da capoeira. Acrescentamos acompanhamento de
instrumentos característicos (berimbau, atabaque, reco-reco, pandeiro, agogô, chocalho
etc) e, em alguns momentos, músicas de capoeira tocadas em CD.
Objetivo: Identificar os conhecimentos que as crianças possuíam sobre capoeira e
possibilitar vivência/reflexão da movimentação e musicalidade dessa prática da cultura
afro-brasileira desenvolvida pela necessidade histórica do negro escravizado no Brasil
libertar-se.
Resultado: Percebemos que algumas crianças desconheciam a capoeira, mas que outras
tinham contato com esta prática corporal, inclusive enquanto praticantes. Entre as frases
escritas pelas crianças destacamos: “A capoeira nasceu na Á frica, os africanos que
inventaram a ginga” (Aluno 1); “Eu não sei nada de capoeira” (Alunos 3, 8, 10, 14, 16,
20, 27, 31, 34); “Capoeira é uma luta” (Alunos 7 e 33); “A capoeira nasceu na Á frica
que os afro descendentes negros brincavam tinham instrumentos musicais o berimbau e
chocalho” (Aluno 9); “A capoeira veio da Capital do nordeste” (Alunos 11, 17 e 24);
“Eu conheço bastantes coisas sobre a capoeira, ginga, meia lua, você sabia que eu já fiz
capoeira (...). Eu conheço o berimbau” (Aluno 12); “A capoeira é um esporte pouco
praticado pelas pessoas, na minha escola tem capoeira” (Aluno 25); “Eu só vi uma vez,
foi na televisão” (Aluno 26). A capoeira despertou grande interesse aos participantes na
vivência e mesmo em outras ocasiões no decorrer da nossa intervenção.
Fig. 3 e 4: Crianças vivenciando o jogo e a musicalidade características da capoeira
4. Labirinto (PRISTA; TEMBE; EDMUNDO, 1992)
Descrição: Os jogadores colocam-se de frente um para o outro, tendo um uma pedra
numa das mãos, sem que o outro saiba em qual. Na aresta inicial do “Labirinto” são
colocadas duas pedras diferentes, sendo uma de cada jogador. O jogador que tem a
pedra estende as mãos ao colega, tendo este que adivinhar em qual das mãos está. Se
conseguir a sua peça é deslocada em uma aresta do labirinto. Senão adivinhar é a peça
do que estendeu as mãos que é movimentada. Este procedimento repete-se até que a
pedra de um dos jogadores chegue à última aresta. O jogo termina quando a pedra de
um jogador chegar à última aresta.
Objetivo: Proporcionar às crianças aprendizado de jogo de cultura africana praticado em
Niassa, cidade localizada em Moçambique.
Resultado: As crianças disseram desconhecer o jogo do labirinto (ver Fig. 5 e 6) até
então e que gostaram muito de praticá-lo, uma das crianças inclusive comentou que era
muito bom saber que na Á frica existiam jogos interessantes.
Fig. 5 e 6: Ilustração de um labirinto e diálogo sobre a vivência do jogo.
5. Matacuzana (PRISTA; TEMBE; EDMUNDO, 1992)
Descrição: Consiste em lançar com as mãos pedrinhas ou castanhas de caju do solo para
o alto. Os participantes podem ir formulando ou alterando as regras como: “jogar a
semente para cima e pegar com a mão contrária”, “quem deixar cair à semente que
jogou devolver as que ganharam em outras partidas”, etc.
Objetivo: Proporcionar às crianças aprendizado de jogo de cultura africana (ver Fig. 7)
tipicamente praticado nas cidades de Maputo, Manica, Niassa e Tetê, localizadas em
Moçambique. O jogo é semelhante a “Chincha” ou “Três Marias”, denominações mais
utilizadas em Portugal e no Brasil.
Resultado: Ao final, na roda de conversa, as crianças lembraram já terem ouvido falar
de Moçambique em outro jogo e disseram acreditar serem as crianças de lá muito
felizes, pois conheciam muitas brincadeiras diferentes e divertidas. Outras crianças
disseram ser o jogo parecido com a nossa chincha.
Fig. 7: Crianças jogando Matacuzana
6. My God (PRISTA; TEMBE; EDMUNDO, 1992)
Descrição: No jogo My God (Meu Deus) colocamos latas (de achocolatado, ervilhas,
milho ou similares) e dividimos o grupo em dois, cada um em uma das laterais da
quadra ou pátio. No centro empilhamos as latas (em torno de 5). Um grupo tem por
meta derrubar as latas com uma bola (de borracha ou de meia) e/ou queimar as crianças
do outro grupo impedindo que estas empilhem as latas novamente. Ganha o jogo o
grupo que conseguir fazer mais pontos empilhando todas as latas, passando a perna por
sobre elas, derrubando-as a seguir e finalmente gritando “My God”. Cada grupo faz o
papel de defensor das latas por um tempo pré-fixado, por exemplo, 5 minutos. Ganha o
jogo o grupo que, neste tempo, conseguir mais vezes montar e derrubar as latas gritando
“My God”.
Objetivo: Proporcionar às crianças aprendizado de jogo de cultura africana (ver Fig. 8)
praticado nas cidades de Maputo e Niassa, localizadas em Moçambique.
Fig. 8: Crianças jogando “My God”
Resultado: Ficamos surpresos com o gosto que as crianças tomaram por este jogo, pois
não queriam mais parar, na roda de conversa ao final da atividade todas as crianças
destacaram o quanto gostaram.
7. Mancala (Disponível em: http://www.jogos.antigos.nom.br/mancala.asp - Acesso
em: 27 fev. 2009)
Descrição: É jogado, tradicionalmente, em duplas em um tabuleiro de 6 orifícios
(covas) de cada lado contendo 6 sementes ou pequenas pedras em todos esses. No
tabuleiro há ainda um depósito em cada extremidade, onde são guardadas as sementes
(ver Fig. 9). A movimentação das sementes tem o sentido anti-horário (em algumas
versões do jogo sentido horário) conhecido como "semeadura" (colocação das sementes
ou pedras) e "colheita" (retirada das sementes ou pedras). Cada jogada consiste em
escolher uma cova do seu lado, retirar suas 6 sementes e distribuí-las pelas outras covas,
sendo obrigatório distribuir 1 semente em cada no sentido estabelecido (anti-horário ou
horário), colocando também uma semente em seu respectivo depósito sempre que passar
por ele, pulando, no entanto, o do outro jogador caso passe pelo depósito dele. Quando
as 6 covas de um jogador estiverem vazias, o companheiro colocará todas as sementes
que estiverem na sua metade do tabuleiro em seu depósito, somando-se então as
sementes de cada um, sendo que quem tiver mais sementes ganhará o jogo.
Objetivo: Proporcionar às crianças aprendizado de jogo de cultura africana (ver Fig. 10)
diretamente relacionado ao plantio/colheita que trabalha o raciocínio lógico-
matemático.
Resultado: Desde o início do jogo as crianças se mostraram muito concentradas, cada
qual desenvolvendo estratégias próprias para obter mais sementes em seu depósito,
consequentemente ganhar o jogo. Apenas uma criança disse conhecer o jogo de
antemão, apesar de não se lembrar das regras.
Fig. 9: Ilustração de um tabuleiro de mancala com 6 sementes em cada cova
Fig. 10: Crianças jogando Mancala com tabuleiro adaptado feito a partir de caixas de
ovos
8. Cacuriá (SILVA; CARDOSO, 2007)
Descrição: dança afro-brasileira executada ao som das caixas do Divino (pequenos
tambores que acompanham a dança) animada por cantor que puxa a dança e cujos
versos, de improviso ou conhecidos, são respondidos por um coro formado pelos
dançadores. É dançado em roda principalmente nas ruas de São Luís, capital do
Maranhão, tem suas origens na Festa do Divino Espírito Santo. Após o derrubamento do
mastro do Divino, que encerra a obrigação religiosa, as caixeiras se reúnem para
“vadiar”, esta parte profana da festa é conhecida como “lava-pratos”. Trabalhamos junto
às crianças com a música: “Caranguejinho tá andando, tá andando. Caranguejinho tá
andando, tá andando. Tá na boca do buraco, caranguejo sinhá. Tá na boca do buraco,
caranguejo sinhá.”, na qual nós e as crianças nos deslocávamos pelo espaço cantando,
batendo palmas e simulando a pegada do caranguejo, variando às vezes pegando
(tocando) o pé do companheiro.
Objetivo: Proporcionar às crianças aprendizado de dança de cultura afro-brasileira com
característica lúdica e relacionada à religiosidade.
Resultado: Nenhuma criança manifestou já conhecer a dança, mas todas participaram,
apesar de no início ficarem um pouco acanhadas, principalmente os meninos. No
decorrer da atividade meninos e meninas foram se soltando e brincando mais uns com
os outros, principalmente ao tocar nos pés dos colegas como que imitando o pegar
caranguejo e/ou o pinçar deste. O ritmo das palmas e do cantar também foi melhorando
durante a prática.
Considerações Finais
No início da intervenção, as crianças do projeto demonstraram falta de
conhecimento sobre a Á frica, pensamentos racistas e discriminatórios, os quais são
refletem o imaginário de parte da sociedade brasileira.
De acordo com Silva (2001), além da omissão e distorção histórico-cultural, a
presença dos estereótipos em livros didáticos, na mídia e em outros materiais
pedagógicos ou de opinião pública fortalece a rejeição inconsciente a um saber
importante para a formação de uma identidade cultural livre de preconceitos.
A ideologia do branqueamento se efetiva no momento em que o negro internalizando uma imagem negativa de si próprio e uma imagem positiva do branco, tende a se rejeitar, a não se estimar e a procurar aproximar-se em tudo do indivíduo estereotipado positivamente e dos seus valores, tidos como bons e perfeitos (SILVA, 2001).
Por outro lado, nos aproximando do término da intervenção percebemos, com
base nos diários de campo, outra visão surgindo acerca da Á frica e dos afro-brasileiros,
visão que destacava haver coisas positivas oriundas da Á frica e de seus filhos.
Consideramos com o presente trabalho que é possível vivenciar, de forma
reflexiva, a história de diferentes culturas, inclusive a africana, pouco lembrada na
escola, apesar da legislação atual (Lei 10.639/2003).
Conforme Maranhão, Gonçalves Junior e Corrêa (2007) observaram em estudo
similar, neste também notamos que as crianças passaram a ter outra percepção de Á frica
e conseqü entemente outra percepção de negro e cultura negra, sendo que tal mudança,
também reflete na formação da identidade da criança e no despertar de um novo olhar
de si e do outro.
Percebemos que as vivências, os diálogos e a reflexões foram de extrema
importância para afirmação, compreensão e respeito de diferentes culturas e identidades.
Esperamos, primordialmente, que esta seja uma contribuição que auxilie o
trabalho dos educadores no meio escolar e não escolar.
Referências
ABRAMOWICZ, A; SILVÉRIO, V. R; OLIVEIRA, F; TEBET, G. G. C. Trabalhando a diferença na educação infantil. São Paulo: Moderna, 2006. ANDRADE, M. C. O Brasil e a África. São Paulo: Contexto, 1992.
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SOUZA, M. M. África e Brasil africano. São Paulo: Á tica, 2006.
Perfil Profissional dos Autores
Alesandro Anselmo Pereira
Licenciado em Educação Física pela Universidade Central Paulista (UNICEP) em 2007.
Atualmente cursa Especialização em Educação Física Escolar (lato-sensu) na
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar); trabalha como técnico no Departamento
de Educação Física e Motricidade Humana (DEFMH/UFSCar); é membro do Núcleo de
Estudos de Fenomenologia em Educação Física (NEFEF/UFSCar) e da Sociedade de
Pesquisa Qualitativa em Motricidade Humana (SPQMH); tem se dedicado a estudos
étnico-raciais.
Luiz Gonçalves Junior
Licenciado em Educação Física pela UNESP-RC em 1989; Mestre em Educação
(Currículo) pela PUC-SP em 1993; Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP em 1998;
Pós-Doutor em Ciências Sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de
Lisboa - Portugal em 2003. Foi vice-presidente do Conselho Municipal de Esportes e
Lazer) da cidade de São Carlos. É avaliador do Sistema Nacional de Avaliação da
Educação Superior do Ministério da Educação. Atua como Professor Associado do
Departamento de Educação Física e Motricidade Humana da Universidade Federal de
São Carlos (DEFMH/UFSCar) desde 1995, já tendo sido Coordenador e Vice-
Coordenador do Curso de Educação Física. É Coordenador do Curso de Especialização
em Educação Física Escolar (lato-sensu) da UFSCar; Coordenador do Núcleo de
Estudos de Fenomenologia em Educação Física (NEFEF) desde 1996; Sócio-Fundador,
Pesquisador e atual Vice-Presidente da Sociedade de Pesquisa Qualitativa em
Motricidade Humana (SPQMH). É credenciado no Programa de Pós-Graduação em
Educação da UFSCar. Desenvolve pesquisa nas linhas Práticas Sociais e Processos
Educativos e Estudos Socioculturais do Lazer. Desenvolve extensão comunitária com
lazer e educação popular junto a comunidades de baixa renda da periferia da cidade de
São Carlos.
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva
Professora Titular de “Ensino-Aprendizagem - Relações Étnico-Raciais” da
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), pesquisadora do Núcleo de Estudos
Afro-Brasileiros da UFSCar e Coordenadora do Grupo Gestor do Programa de Ações
Afirmativas da UFSCar. Realizou estágio de Pós-Doutorado em Teoria da Educação, na
University of South Africa, em Pretoria, Á frica do Sul (1996). Por indicação do
Movimento Negro foi conselheira da Câmara de Educação Superior do Conselho
Nacional de Educação, mandato 2002-2006. Nesta condição foi relatora do Parecer
CNE/CP 3/2004 que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana e participou da relatoria do Parecer CNE/CP 3/2005 relativo às Diretrizes
Curriculares Nacionais para o curso de Pedagogia. Foi professora visitante na
University of South Africa (1996), na Universidad Autonoma del Estado de Morelo, in
Cuernavaca, México (2003). Participa ativamente do International Research Group on
Epystemology of African Roots and Education da Georgia State University/USA.