josé luiz fiorin - linguangem e ideologia
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José Luiz Fiorin
Linguagem
e ideologia
8° edição
2° reimpressão
ISBN: 85-08-09163-X
Editora Ática
São Paulo – 2005
Nota de Esclarecimento
Caro(a) leitor(a)
Este livro fora digitalizado pelo Projeto Prometheus, que
tem por objetivo, a digitalização de toda e qualquer obra
acadêmica e literária que seja de fundamental importância para
o enriquecimento do conhecimento de toda a sociedade, pois
acreditamos que as mesmas citadas não devem permanecer nas
limitações dos poucos exemplares oferecidos nas bibliotecas
públicas ou privadas, como tão pouco, nas livrarias a preços
inacessíveis a grande parte da população de nosso país.
Entretanto, condenamos e repudiamos veemente a pirataria,
pois ela faz seus lucros sobre o que mais condenamos, os altos
preços por aquilo que deveria ser de acesso gratuito a todos, o
conhecimento. Mediante a isto, e em reafirmação dos valores do
Projeto Prometheus, esta obra é oferecida a toda sociedade de
maneira total e perpetuamente gratuita. Vedada toda forma de
lucro sobre ela e/ou uso que não seja exclusivamente o do
ascender do conhecimento pessoal ou coletivo.
Atenciosamente.
Projeto Prometheus.
Nota de Orelha
Série Princípios – Consagrada como uma das mais importantes
coleções destinadas ao público universitário, a Série Princípios ganha
novo fôlego em edições atualizadas e revistas pelos autores.
Veja alguns títulos da coleção:
A articulação do texto
Elisa Guimarães
Guia teórico do alfabetizador
Miriam Lemle
Linguagem e persuasão
Adilson Cintelli
Guia prático do alfabetizador
Marlene Carvalho
Nota de Contra-capa
Áreas de interesse do volume:
Comunicações
Lingüística
Literatura
Existem duas maneiras opostas de abordar o fenômeno lingüístico:
uma se preocupa somente em analisar internamente a linguagem,
estudando os fatos lingüísticos e a estrutura social.
Este livro mostra que a linguagem pode, ao mesmo tempo, gozar de
certa autonomia em relação às formações sociais e sofrer as
determinações da ideologia. Numa análise veis e dimensões são
autônomos e determinados.
José Luiz Fiorin é professor da Universidade de São Paulo. Publicou
Regime de 64: discurso e ideologia.
Sumário
1. Introdução 5
2. Marx e Engels dão as primeiras dicas 8
3. As primeiras distinções 10
4. Quem determina o quê? 12
5. Discurso: autonomia e determinação 17
6. Variabilidade na invariabilidade 20
7. Duas maneiras de dizer a mesma coisa 23
8. Que é ideologia? 26
9. Formações ideológicas e formações discursivas 32
10. A consciência é um fato social 35
11. A individualidade na linguagem 37
12. A trapaça discursiva 41
13. Falar ou ser falado? 43
14. Arena de conflitos e palco de acordo 45
15. Análise não é investigação policial 49
16. O discurso é reflexo da realidade? 52
17. Um exemplo: a igualdade burguesa 57
18. Outros exemplos: reprodução e polêmica 61
19. A linguagem faz parte da superestrutura? 66
O marrismo 66
As posições de Stálin 70
O lugar da linguagem 72
20. Comunicar é agir 74
21. Conclusão 76
22. Vocabulário crítico 79
23. Bibliografia comentada 84
1. Introdução [05]
Acabou vendo Joan Brossa que
os verbos do catalão tinham
coisas por detrás, eram só
palavras, não.
João Cabral
A partir do momento em que se constituiu como ciência autônoma, a
lingüística passou a estudar internamente a linguagem. A maioria dos
lingüistas não mais se preocupou com as relações entre a linguagem e a
sociedade, não mais cuidou das vinculações entre a linguagem e os
homens que dela fazem uso. Sua preocupação básica passou a ser a
análise das relações internas entre os elementos lingüísticos. Estabeleceu
assim a chamada lingüística estrutural. Experimentou ela, nas últimas
décadas, duas situações distintas e até mesmo antagônicas: fastígio e
declínio. Numa certa época, foi tomada como "ciência-piloto" das demais
ciências humanas. Lévi-Strauss, Dumézil, Lacan, Barthes e outros
teóricos tomaram os conceitos da lingüística e transladaram-nos para
outros ramos do saber. Mais tarde, a reação que se operou contra o
avassalador domínio dos conceitos da lingüística produz um
comportamento oposto. Passou-se a considerar as aquisições da [06]
lingüística estrutural, que, sem dúvida alguma, representam um inegável
avanço no âmbito dos estudos lingüísticos, como um conjunto de práticas
puramente "ideológicas". Os problemas colocados até então pela ciência
da linguagem eram considerados falsos problemas. A lingüística
estrutural foi chamada lingüística burguesa.
Para os lingüistas chegou a hora de fazer um cuidadoso balanço do
que a lingüística fez, deixou de fazer ou pode fazer, pois vive ela uma
crise epistemológica. A tarefa é difícil, porque implica uma reflexão
ampla sobre a linguagem, que leve em conta o fato de que ela é uma
instituição social, o veículo das ideologias, o instrumento de mediação
entre os homens e a natureza, os homens e os outros homens. No
entanto, é preciso também ter em conta que a linguagem não é uma
instituição social igual às outras. Não, ela tem suas especificidades. Perry
Anderson, em seu livro A crise da crise do marxismo, diz que a
linguagem é singular em relação às instituições sociais porque as
estruturas lingüísticas têm um baixíssimo coeficiente de mobilidade
histórica, porque à imobilidade da língua como estrutura corresponde a
"volátil liberdade" da fala, porque a produção lingüística não está
submetida à lei da escassez natural e porque o sujeito da fala é
axiomaticamente individual. Embora concordando com Perry Anderson
na idéia de que a linguagem tem suas especificidades e de que elas
precisam ser tomadas em consideração, cremos que sua concepção de
linguagem é um tanto redutora, pois para ele a linguagem se divide em
língua e fala. No decorrer do presente ensaio, tentaremos mostrar que
há um terceiro elemento que ele não levou em conta.
O objeto de nosso trabalho é refletir sobre as relações que a
linguagem mantém com a ideologia. Não nos interessa apenas mostrar
que uma pronúncia de prestígio é imposta com a finalidade de
discriminar as pessoas; que o acesso a determinadas posições de
destaque está ligado também à aquisição das [07] varieda lingüísticas
consideradas corretas, elegantes etc.; que a norma lingüística utilizada
pelos que detêm o poder transforma-se na "língua" modelar; que as
variedades lingüísticas usadas pelos segmentos sociais subalternos são
consideradas erros, transgressões e seus usuários são, por isso,
ridicularizados. Afinal, esses fatos estão à vista de todos. Não é preciso
muita reflexão para comprovar isso. Basta arrolar alguns exemplos.
Refletir sobre a questão das relações entre a linguagem e a ideologia
não é também dizer que a linguagem é instrumento de poder e que os
segmentos sociais dominantes tentam ridicularizar a palavra dos
dominados. Isso é velhíssimo. Tácito, historiador romano, nos Anais
(1,16-17), ao narrar a revolta das legiões panônicas, que reivindicavam
melhorias em suas condições de vida, diz que elas eram dirigidas por um
certo Percênio, que tinha sido chefe de uma claque teatral e que, por
isso, possuía uma língua insolente e uma certa habilidade em dirigir
multidões. Ao colocar essa nota em seu discurso, Tácito desqualifica as
reivindicações dos legionários, considerando que elas eram fruto da
manipulação de um indivíduo que desejava conturbar a ordem. Ouvindo
as palavras de certas autoridades brasileiras diante de determinadas
reivindicações populares, podemos até concluir que o comportamento
dos dominantes não mudou muito da época dos romanos até hoje.
A nossa intenção é verificar qual é o lugar das determinações
ideológicas neste complexo fenômeno que é a linguagem, analisar como
a linguagem veicula a ideologia, mostrar o que é que é ideologizado na
linguagem. O trabalho é difícil. O que aqui apresentamos é antes um
esboço, uma linha de reflexões, que um conjunto acabado de idéias. Se
este trabalho se revelar tão prenhe de equívocos que as hipóteses devam
ser totalmente rejeitadas, só nos resta exclamar como Jakobson:
É maravilhoso! A coisa mais importante de dizer sempre é: eu me
enganei.
2. Marx e Engels dão
as primeiras dicas
[08]
Marx e Engels, em A ideologia alemã, dizem que não se pode fazer da
linguagem uma realidade autônoma, como os filósofos idealistas fizeram
com o pensamento. Mostram os dois autores que nem o pensamento
nem a linguagem constituem um domínio autônomo, pois ambos são
expressões da vida real (p. 489-90).
Engels, em carta a Bloch, datada de 21/9/1890, explica que nem
todas as alterações que se dão nas instituições sociais se devem a
causas econômicas e exemplifica essa afirmação com a mutação
consonântica do alto alemão, que ocorreu por razões internas ao sistema
fonológico.
As duas dicas parecem, à primeira vista, contraditórias, pois a
primeira mostra que a linguagem é determinada pelas condições sociais,
enquanto a segunda revela que a linguagem goza de autonomia em
relação às formações sociais. Aqui começa o nosso problema.
A linguagem é um fenômeno extremamente complexo, que pode ser
estudado de múltiplos pontos de vista, pois pertence a diferentes
domínios. É, ao mesmo tempo, individual e social, física, fisiológica e
psíquica. Por isso, dizer que a [09] linguagem sofre determinações
sociais e também goza de uma certa autonomia em relação às formações
sociais não é uma contradição. Isso implica, entretanto, distinguir
dimensões e níveis autônomos e dimensões e níveis determinados.
O primeiro cuidado é, pois, não considerar a linguagem algo
totalmente desvinculado da vida social nem perder de vista sua
especificidade, reduzindo-a ao nível ideológico.
Comecemos, portanto, a distinguir os níveis e as dimensões da
linguagem.
3. As primeiras distinções [10]
É preciso, em primeiro lugar, fazer distinção entre o sistema virtual
(a língua) e sua realização concreta. O sistema é social no sentido de que
ele é comum a todos os falantes de uma dada comunidade lingüística.
Ele é um todo em si e compreende o conjunto dos elementos lexicais e
gramaticais que fazem parte de uma língua, a organização interna
desses elementos e suas regras combinatórias.
Não podemos pensar que o sistema seja uma lista de palavras.
Saussure comparava-o a um jogo de xadrez. Para o jogador não
importam, por exemplo, o formato das peças ou o material de que elas
são feitas. O que importa é que as peças se distingam de algum modo,
pois essa diferenciação lhes dá valor diferente, e que elas se movam no
tabuleiro segundo determinadas regras.
Na língua ocorre mais ou menos a mesma coisa. Um elemento
lingüístico tem que ser diferente de outro, para que ele tenha um
determinado valor. Assim, o /l/ tem que ser diferente do /t/, para que
possamos operar uma distinção significativa entre, por exemplo, mala e
mata. Além disso, os elementos lingüísticos não se combinam
aleatoriamente, mas segundo uma série de regras. Em português, por
exemplo, o artigo vem sempre antes do substantivo. Dizemos "o animal"
e não "animal o".
[11] Em romeno, o artigo vem depois do substantivo. Em português,
o pronome demonstrativo e o artigo são mutuamente excludentes.
Podemos dizer "este armário" ou "o armário", mas não "o este armário"
ou "este o armário".
Definamos melhor o sistema: é a rede de relações que se estabelece
entre um conjunto de elementos lingüísticos. Essas relações dão um
determinado valor a cada componente do sistema e permitem selecionar
o elemento apropriado para figurar em cada ponto da cadeia da fala e
combinar adequadamente esses elementos entre si. O sistema é um
conjunto de elementos com uma organização interna, ou seja, com uma
estrutura.
Esse sistema virtual, abstrato, que todos os falantes de uma dada
língua conhecem, realiza-se concretamente nos atos de fala. Na
realização concreta do sistema é necessário distinguir o discurso da fala.
O discurso são as combinações de elementos lingüísticos (frases ou
conjuntos constituídos de muitas frases), usadas pelos falantes com o
propósito de exprimir seus pensamentos, de falar do mundo exterior ou
de seu mundo interior, de agir sobre o mundo. A fala é a exteriorização
psicofísico-fisiológica do discurso. Ela é rigorosamente individual, pois é
sempre um eu quem toma a palavra e realiza o ato de exteriorizar o
discurso.
4. Quem determina o quê? [12]
A fala, em si mesma, não sofre qualquer determinação social, pois ela
é a simples exteriorização do discurso. É o ato concreto, momentâneo e
individual de manifestação da linguagem.
O sistema, por sua vez, goza de certa autonomia em relação às
formações sociais. Isso parece evidente. Não se pode atribuir a razões
encontráveis na estrutura social o fato de que o /k/ latino que precede a
vogal /a/, como em capra, tenha-se mantido em português (Cf. cabra) e
tenha-se transformado em /š/ no francês (Cf. chèvré). Não há explicação
socioeconômica para o fato de a forma latina lacte(m) ter dado leite em
português, leche em espanhol, lait em francês, lach em provençal, latte
em italiano e lapte em romeno. O sistema, em geral, altera-se devido a
causas internas do próprio sistema.
Que são essas causas internas? Tomemos um exemplo de alteração
no sistema fonológico. O sistema latino distingue consoantes simples
(ex.: t/n/l) e consoantes geminadas (ex.: tt/nn/ll). Assim, duas palavras
iguais em tudo menos no fato de que uma possui uma consoante simples
e a outra, uma consoante geminada significam coisas diferentes. Por
exemplo, os pares mittis/mitis, annus/anus e stella/stela significam,
respectivamente, envias/doce, ano/velha feiticeira e estrela/coluna or-
namental de túmulos. O desaparecimento dessa oposição [13]
consonantal acarretou uma série de conseqüências. Havia uma oposição
do tipo atta vs. ata vs. ada. Desfazendo-se a oposição geminada vs.
simples, a série acima mencionada tornou-se ata vs. ata vs. ada. Seria
então preciso refazer a oposição para que os dois primeiros elementos
não se confundissem. Por isso, a surda intervocálica do segundo termo
da série sonoriza-se (t, no caso, passa a d) e a sonora do terceiro termo
cai. Refaz-se, assim, a série: ata vs. ada vs. aa (Cf. gutta > gota; latu >
lado e nudu > nu).
Um outro exemplo do sistema fonológico. O latim possuía as
oposições p/b, t/d, k/g, que se distinguem pela sonoridade ausente no
primeiro elemento do par e presente no segundo. Tinha, ao mesmo
tempo, as consoantes isoladas surdas /s/ e /f/. Aparecem, então, os
fonemas /z/ e /v/ como extensão da oposição existente em pares
correlatos. Nesses dois casos, são fatores internos do sistema que
acarretam as alterações. No primeiro, o desaparecimento de uma
oposição produziu uma série de modificações; no segundo, aparecem
novos fonemas, porque o sistema tem uma certa tendência à simetria.
Tomemos agora um exemplo do âmbito do vocabulário. O latim fazia
uma distinção entre homo e vir. Homo significa o ser humano e vir, o ser
humano do sexo masculino. O desaparecimento do termo vir produziu,
em português, uma extensão do sentido do termo homem, que passou a
significar tanto o ser humano em geral quanto o indivíduo do sexo
masculino.
O latim possuía três gêneros: o masculino, o feminino e o neutro. As
principais línguas românicas (provenientes do latim) têm, em geral,
apenas dois gêneros: o masculino e o feminino. O desaparecimento do
neutro deve-se também a causas absolutamente internas do sistema. A
queda das consoantes finais e a identidade de tratamento da maioria das
vogais finais contribuíram para o nivelamento das diferenças entre
palavras [14] masculinas e neutras e, com o tempo, isso ocasionou o
desaparecimento do neutro.
A analogia é outro fator interno que produz alterações lingüísticas.
Ela funciona a partir de um modelo, convertendo formas "irregulares" em
formas "regulares". O modelo é constituído por formas produtivas, ou
seja, mais abrangentes ou mais bem integradas ao sistema e, portanto,
capazes de eliminar as formas não-produtivas. Em português, a forma
produtiva de primeira pessoa do singular do pretérito perfeito do
indicativo da segunda conjugação é em i (Cf. bebi, desci, escrevi). No
entanto, certos verbos fazem a primeira pessoa do singular desse tempo
de maneira irregular: trouxe, fiz, disse. Quando uma criança diz fazi,
trazi, dizi, está ocorrendo aí a ação da analogia, que é um jogo de
uniformização para facilitar o uso. No exemplo citado, a criação infantil é
eliminada no curso da aprendizagem lingüística. No entanto, em muitos
casos, a ação da analogia produz alterações. Por exemplo, em português,
os nomes em o fazem o feminino em a. Por isso, nomes não terminados
em o, que eram uniformes, passam também a ter um feminino em a.
Assim, temos infante/infanta, senhor/senhora etc. Como em português,
em princípio, os nomes em o são masculinos, os nomes de árvores em o,
como choupo, pinho, olmo, que eram femininos em latim, tornaram-se
masculinos em português.
Todos esses exemplos mostram que, em geral, as alterações no
sistema são motivadas por fatores especificamente lingüísticos. Não se
quer com isso dizer, porém, que o surgimento de uma categoria
gramatical ou semântica não se deva a razões encontráveis na estrutura
socioeconômica de uma determinada sociedade, não dependa de fatores
sociais. Os gêneros masculino, feminino e neutro do latim correspondiam
a uma visão mítica e antropomórfica do mundo. Eram neutros os nomes
de coisas consideradas inertes, passivas ou produtos. Os nomes de
árvores terminados em us (terminação que servia, muitas vezes, para
distinguir o [15] masculino do feminino em a) eram femininos, porque a
árvore é reprodutora, gera o fruto. Já o nome do fruto era neutro (Cf.
malus — macieira, malum — maçã).
Talvez o fato de o masculino ser, numa série de línguas, o genérico,
isto é, o termo que indica conjuntamente nomes masculinos e femininos,
deva-se ao prestígio do homem nas sociedades patriarcais. É possível
que o surgimento de um número muito grande de pronomes de
tratamento, como, por exemplo, Vossa Excelência, Vossa Majestade,
Vossa Alteza, no período do absolutismo monárquico, esteja ligado ao
aparecimento de uma sociedade rigorosamente hierarquizada e
governada por um protocolo muito rígido. Os esquimós, para quem a
neve é um elemento vital, não possuem um nome para designar aquilo
que chamamos "neve"; têm, entretanto, toda uma série de nomes para
indicar os diferentes estados da neve, considerados elementos distintos.
Pode ser que o surgimento de uma categoria, como o gênero, a
distinção nome e verbo etc. seja determinado por fatores sociais.
Comprovar uma hipótese dessa natureza a respeito de uma categoria
particular, no entanto, é extremamente difícil, pois as categorias
presentes nas línguas modernas são herança das línguas de que
provieram. O português tem os modos indicativo, subjuntivo e
imperativo, porque eles já existiam no latim. A mesma coisa acontece
com os números singular e plural e com o fato de que o plural é indicado
por um s. Fatores sociais devem ter determinado o aparecimento de uma
categoria lingüística. No entanto, as categorias perderam qualquer
relação com as causas que lhes deram origem e ganharam autonomia. A
história do sistema passa a ser uma história relativamente autônoma em
relação às formações sociais em que ele está presente. Passa ela a ser
uma história do próprio sistema.
Em Ave, palavra, Guimarães Rosa narra que, um dia, visitando uma
aldeia de índios no Mato Grosso, observou que, na [16] língua falada
pelos seus habitantes, os nomes de cores eram todos terminados em i
'ti. Pensou que i'ti significasse "cor" e que fosse, portanto, um
substantivo que se tornara um sufixo. Um informante disse-lhe que i'ti
significava "sangue". Aí ele começou a imaginar que, como o indígena
entendia que o sangue era o elemento vital, porque para ele a morte
estava associada ao esvair-se em sangue, talvez visse a cor como o
sangue (o elemento vital) de certas coisas. Assim, o verde seria o
sangue da folha (a folha morta perde a cor verde); o azul, o sangue do
céu; o amarelo, o sangue do sol e assim por diante. Procurou, então,
saber o significado original dos nomes de cores. No entanto, nenhum dos
falantes foi capaz de informá-lo. E aí diz Guimarães Rosa, "toda língua
são rastros de velhos mistérios". As razões do aparecimento das
categorias lingüísticas existentes nas línguas modernas perderam-se no
tempo.
Procurar estabelecer as determinações que incidiram, um dia, sobre
os elementos do sistema poderá resultar em estudos fragmentários, de
interesse pontual, quando não em fantasias. É no nível do discurso que
devemos, pois, estudar as coerções sociais que determinam a linguagem.
5. Discurso: autonomia
e determinação
[17]
Assim como a frase não é um amontoado de palavras, mas é uma
cadeia construída segundo certas regras, o discurso não é um
amontoado de frases. O discurso tem uma estrutura. Diante de um texto
absolutamente caótico dizemos: "Isso não significa nada. É um samba do
crioulo doido". Sabemos distinguir um texto de um não-texto. Porque o
discurso é estruturado, temos que diferençar no seu interior uma sintaxe
e uma semântica.
A sintaxe discursiva compreende os processos de estruturação do
discurso. Assim, pertence a ela um procedimento como a introdução ou
não da primeira pessoa no discurso (por exemplo, Eu acho que Pedro foi
ao cinema e Pedro foi ao cinema). O uso da primeira pessoa cria um
efeito de sentido de "subjetividade", enquanto sua não-utilização produz
um efeito de sentido de "objetividade". Se um cientista dissesse "Eu
afirmo que a Terra é redonda", isso poderia ser entendido como um
ponto de vista pessoal. Entretanto, quando ele diz "A Terra é redonda", é
como se o próprio fato se narrasse a si mesmo. Nesse caso, temos a
impressão de que uma verdade objetiva se estabeleceu.
Outro procedimento pertencente à sintaxe discursiva é o mecanismo
do discurso direto, indireto e indireto livre. [18] Tomemos um exemplo.
O discurso direto caracteriza-se pela preservação integral do discurso
relatado. Nele o narrador dá voz à personagem que parece falar de
maneira autônoma. Por exemplo: "O lobo disse: — Vou matá-lo,
cordeiro, porque você está sujando a água que eu estou bebendo". O
discurso direto cria um efeito de sentido de "verdade", pois o narrador
parece repetir palavra por palavra o discurso do outro. É como se a
própria personagem estivesse falando.
A semântica discursiva abarca os conteúdos que são investidos nos
moldes sintáticos abstratos. Por exemplo, o mecanismo abstrato do
discurso direto, em que um narrador delega a palavra a uma
personagem para que ela fale, é sintático. A personagem a quem se
delega voz, o que ela diz etc. pertencem à semântica.
A sintaxe discursiva goza de certa autonomia em relação às
formações sociais, enquanto a semântica depende mais diretamente de
fatores sociais. Com efeito, mecanismos como, por exemplo, o discurso
direto, podem receber e veicular quaisquer conteúdos, mas estes são
determinados pela estrutura social.
Há no discurso, então, o campo da manipulação consciente e o da
determinação inconsciente. A sintaxe discursiva é o campo da
manipulação consciente. Neste, o falante lança mão de estratégias
argumentativas e de outros procedimentos da sintaxe discursiva para
criar efeitos de sentido de verdade ou de realidade com vistas a
convencer seu interlocutor. O falante organiza sua estratégia discursiva
em função de um jogo de imagens: a imagem que ele faz do interlocutor,
a que ele pensa que o interlocutor tem dele, a que ele deseja transmitir
ao interlocutor etc. É em razão desse complexo jogo de imagens que o
falante usa certos procedimentos argumentativos e não outros. Embora
consideremos que a sintaxe seja o campo da manipulação consciente,
pode-se, em virtude de hábitos adquiridos ao [19] longo da
aprendizagem lingüística, utilizar seus procedimentos de maneira
inconsciente.
O campo das determinações inconscientes é a semântica discursiva,
pois o conjunto de elementos semânticos habitualmente usado nos
discursos de uma dada época constitui a maneira de ver o mundo numa
dada formação social. Esses elementos surgem a partir de outros
discursos já construídos, cristalizados e cujas condições de produção
foram apagadas. Esses elementos semânticos, assimilados
individualmente pelo homem ao longo de sua educação, constituem a
consciência e, por conseguinte, sua maneira de pensar o mundo. Por
isso, certos temas são recorrentes na maioria dos discursos: os homens
são desiguais por natureza; na vida, vencem os mais fortes; o dinheiro
não traz a felicidade etc. A semântica discursiva é o campo da
determinação ideológica propriamente dita. Embora esta seja
inconsciente, também pode ser consciente.
Inúmeras questões devem ser ainda explicadas. Vamos devagar a
cada uma delas.
6. Variabilidade
na invariabilidade
[20]
Uma pergunta que se poderia fazer é a seguinte: se discursos de
natureza muito diferente utilizam-se dos mesmos elementos semânticos,
como, por exemplo, liberdade, felicidade, justiça, de que maneira se
pode distingui-los?
É preciso estabelecer uma diferença entre um nível profundo e um
nível de superfície. Por exemplo, numa história de fadas, o príncipe
necessita sempre de um objeto mágico para vencer seu oponente e ficar
com a princesa. Numa história, é um anel mágico; noutra, é uma espada
mágica e assim por diante. Os elementos semânticos que aparecem na
superfície (um objeto mágico determinado) são variações que
concretizam um elemento semântico invariante, mais abstrato e mais
profundo, o poder-vencer.
A liberdade pode ser concretizada, por exemplo, como "evasão
espacial" (ida para uma ilha no Pacífico Sul, ida para um lugar perdido na
floresta amazônica) ou como "evasão temporal" (volta à infância). O
discurso de muitos poetas românticos concretiza assim a liberdade. No
entanto, a liberdade poderia ainda aparecer na superfície como "direito à
diferença, à singularidade" (observe-se o discurso de certas minorias) ou
[21] como "não-exploração", que poderia ser a forma de um partido
operário entender a liberdade.
Analisando, cuidadosamente, a maneira como um elemento
semântico da estrutura profunda se concretiza, não vamos confundir dois
ou três discursos distintos só porque todos eles falam em liberdade. É
importante verificar em cada um deles o que é que "liberdade" significa,
isto é, como é que ela é concretizada.
Cada um dos níveis não tem apenas uma semântica, tem também
uma sintaxe própria. Não interessa, porém, neste trabalho, expor todos
os elementos da sintaxe do nível profundo e do nível superficial, pois
estamos fazendo todas essas distinções com a finalidade de precisar o
nível em que a linguagem sofre determinações sociais.
Podemos agora determinar com maior precisão o componente da
linguagem em que percebemos com toda a nitidez a determinação
ideológica. Dissemos anteriormente que era a semântica discursiva que
mostrava, com clareza, uma maneira de ver o mundo de uma dada
sociedade numa determinada época. Isso, a nosso ver, está correto, pois
não é indistinto falar da "liberdade" ou da "ordem", da "riqueza" ou do
"amor ao próximo". No entanto, estudar as coerções ideológicas só com
os elementos da estrutura profunda pode, como já mostramos, falsear a
análise. É no nível superficial, isto é, na concretização dos elementos
semânticos da estrutura profunda, que se revelam, com plenitude, as
determinações ideológicas. Os discursos que consideram a liberdade
como "direito à diferença" ou como "não-exploração da força de
trabalho" pertencem a universos ideológicos distintos.
Além disso, dois discursos podem trabalhar com os mesmos
elementos semânticos e revelar duas visões de mundo completamente
diferentes, porque o falante pode dar valores distintos aos elementos
semânticos que utiliza. Alguns são [23] considerados eufóricos, isto é,
são valorizados positivamente; outros, disfóricos, ou seja, são
valorizados negativamente. O conto "A gata borralheira" e o romance
Justine, do Marquês de Sade, colocam em jogo praticamente as mesmas
oposições semânticas: submissão, humildade, amor ao próximo,
bondade vs. prepotência, orgulho, maldade, cinismo. No primeiro dos
textos, são eufóricas as virtudes da submissão e da humildade, que são
recompensadas, e disfóricos o orgulho e a prepotência, que são
castigados. No segundo texto, eufóricos são os elementos valorizados
negativamente no primeiro texto e disfóricos, os valorizados
positivamente.
7. Duas maneiras de dizer
a mesma coisa
[23]
Observemos os textos que seguem:
Texto A
Um cavalo, quase morto de fome e de sede, caminhava em busca de
água e de comida. De repente, deparou com um campo de feno, ao
lado do qual corria um regato de águas cristalinas. O cavalo, não
sabendo se primeiro bebia da água ou comia do feno, morreu de
fome e de sede.
Texto B
Há pessoas tão indecisas que são incapazes de realizar qualquer
escolha e acabam perdendo muitas oportunidades na vida.
Os dois textos querem dizer praticamente a mesma coisa. Qual é a
diferença que existe, então, entre eles?
O segundo é mais abstrato, expõe idéias que explicam um fato
observável no mundo. O primeiro é mais concreto. Ao expor o fato,
utiliza-se de conteúdos que indicam elementos do mundo natural:
cavalo, água, feno, riacho etc. O segundo fala de elementos semânticos
que indicam coisas que em si não existem no mundo natural: escolha,
incapacidade, indecisão. Fala de coisas que não têm existência própria.
[24] O primeiro texto é figurativo, enquanto o segundo é temático,
não-figurativo. O componente básico dos textos figurativos é a figura,
enquanto o dos não-figurativos são os temas. Temas e figuras são dois
níveis de concretização dos elementos semânticos da estrutura profunda.
Assim, podemos concretizar o elemento semântico "liberdade" como
"não-trabalho", como "lazer". Este é um primeiro nível de concretização.
Podemos concretizar o "não-trabalho" como "balançar-se numa rede
horas a fio", como um "passeio pelo campo". A publicidade que diz
"Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada" usa esse conjunto de
temas e de figuras. Assim como diferentes temas podem concretizar o
mesmo elemento semântico da estrutura profunda, o mesmo tema pode
ser figurativizado de maneiras diversas.
Definamos, de maneira precisa, o que é tema e o que é figura. Tema
é o elemento semântico que designa um elemento não-presente no
mundo natural, mas que exerce o papel de, categoria ordenadora dos
fatos observáveis. São temas, por exemplo, amor, paixão, lealdade,
alegria. Figura é o elemento semântico que remete a um elemento do
mundo natural: casa, mesa, mulher, rosa etc. A distinção entre ambos é,
pois, de maior ou menor grau de concretude. Temos que entender, no
entanto, que nem sempre essa distinção é fácil de ser feita, pois concreto
e abstrato são dois pólos de uma escala que comporta toda espécie de
gradação.
O discurso figurativo é a concretizado de um discurso temático. Para
entender um discurso figurativo é preciso, pois, antes de mais nada,
apreender o discurso temático que subjaz a ele. Ir das figuras ao tema é
o que fazemos quando perguntamos: qual é o tema deste texto; de que
trata ele?
Quando falamos em textos figurativos ou não-figurativos, estamos
falando em predominância e não em exclusividade. Não existem textos
exclusivamente figurativos ou temáticos. Um texto figurativo é aquele
construído predominantemente com figuras, enquanto um texto temático
é organizado basicamente com temas.
[25] Nos textos não-figurativos, a ideologia manifesta-se, com toda a
clareza, no nível dos temas. Nos textos figurativos, essa manifestação
ocorre na relação temas-figuras. Os temas do discurso político oficial
pós-64 são reveladores de uma dada ideologia: Ocorre, no mundo, uma
luta entre a civilização cristã ocidental e o comunismo ateu. Essa guerra
é psicológica, pois ocorre no coração e nas mentes dos homens. Por isso,
ela é travada no interior de cada país. As fronteiras não são, então,
externas, pois o inimigo se acha entrincheirado dentro do país. São
inimigos os que renegaram a sua condição de brasileiros, aqueles que
vão contra os ditames da alma nacional, que repele as ideologias exó-
ticas, que tentam insuflar a luta de classes no seio de um povo ordeiro e
pacífico. Os inimigos estão ocultos, travestem-se de liberais, de
defensores dos direitos humanos. Atuam pela contestação ao governo,
que encarna os valores da brasilidade, procurando realizar os objetivos
nacionais permanentes. Por isso, justifica-se a repressão aos que querem
conturbar a ordem. Esta é a harmonia do capital e do trabalho, que
juntos concorrem para a grandeza do país. Qualquer reivindicação
operária por melhores condições de trabalho ou por melhores salários
constitui conturbação da ordem, pois quem fará a riqueza dos operários
será a mão invisível do mercado. Esses temas servem de justificativa de
uma ordem política que, ao reprimir com violência o movimento
operário, favorece uma acumulação mais rápida de capital.
Num texto figurativo que narre a vida de uma família pobre, mas
feliz, cujo pai sai cedo para o trabalho e volta à noite para ficar com a
família e cuja mãe realiza os trabalhos domésticos; que passa por muitas
privações, mas vive com um sorriso nos lábios, os temas são: o dinheiro
não traz felicidade, pois esta se encontra no íntimo de cada indivíduo; o
espaço da mulher é o lar e o do homem, o do trabalho não-doméstico.
Essa relação temas-figuras revela um universo ideológico que considera
a família a célula básica da sociedade, que vê os papéis sociais como
algo natural, que prescreve que cada um deve contentar-se com o que
tem.
8. Que é ideologia?
[26]
Até agora temos falado em ideologia, em fatores sociais que
determinam a semântica discursiva. Mas que é realmente ideologia?
Numa formação social, temos dois níveis de realidade: um de
essência e um de aparência, ou seja, um profundo e um superficial, um
não-visível e um fenomênico. Para entender a existência desses dois
níveis, vamos acompanhar a análise que Marx faz do salário. No nível da
aparência, o salário apresenta-se como o pagamento de um trabalho
realizado. Nesse nível, a relação de trabalho é uma troca entre indivíduos
livres e iguais. Eles são livres, porque não estão sujeitos a outros
homens por laços de dependência pessoal, como no modo de produção
escravagista, mas podem vender seu trabalho a quem quiserem. São
iguais, pois todos são donos de uma mercadoria e, portanto, podem
estabelecer uma troca: uns vendem seu trabalho e outros o compram.
No entanto, se sairmos do nível da circulação de bens (aparência) e
passarmos para o da produção (essência), veremos que não há uma
troca igualitária e que o operário não vende seu trabalho, mas sua força
de trabalho. Com efeito, o trabalho é o dispêndio da força de trabalho, o
ato de produzir, enquanto a força de trabalho é a capacidade de
trabalhar, de produzir. O [27] operário que trabalha oito horas por dia,
não recebe, ao final, todo o valor que produziu, mas recebe apenas uma
parte dele. Se ele produziu cem e recebe como pagamento apenas vinte,
ele não vendeu o seu trabalho, mas sua força de trabalho. Há, dessa
forma, um tempo de trabalho necessário, aquele tempo da jornada de
trabalho em que o operário produz para pagar o seu salário, e um tempo
de trabalho excedente não-pago, ou seja, aquele tempo em que o
operário produz um sobrevalor de que o capitalista se apropria. Se o
salário não é a retribuição do trabalho, mas da força de trabalho, então
ele é, em geral, o mínimo historicamente indispensável para a
reprodução da mão-de-obra, ou seja, o mínimo necessário para que o
trabalhador sobreviva e continue a produzir.
O salário, ao aparecer como o pagamento do trabalho e não da força
de trabalho, apaga a distinção entre tempo de trabalho necessário e
tempo não-pago, fazendo das relações de trabalho, no nível aparente,
uma troca igualitária. Isso mostra que o capitalismo engendra formas
que mascaram sua essência, pois, se não houvesse apropriação do valor
gerado pelo trabalho não-pago, não haveria capital.
Tudo isso denota que, no nível fenomênico, a realidade põe-se
invertida. O que no nível profundo são relações de exploração
(apropriação do valor gerado por um trabalho não-pago) aparece como
troca; a opressão, como igualdade; a sujeição, como liberdade. As
relações que, no nível de superfície, apresentam-se como relações entre
indivíduos são, no nível de essência, uma relação entre classes sociais,
uma que se apropria do valor produzido pelo trabalho não-pago e outra
que vende sua força de trabalho e é espoliada. As relações igualitárias de
troca existem apenas no nível fenomênico. Isso quer dizer que há uma
troca de equivalentes, isto é, igualdade na troca. No entanto, ela ocorre
apenas no nível da circulação. Isso significa que ela, ao mesmo tempo, é
afirmada e negada. É afirmada no [28] nível fenomênico e negada no
nível profundo, em que não há equivalência, nem troca, mas simples
apropriação.
Somente o nível da aparência se dá a perceber imediatamente para
nós. Ele apresenta-se como a totalidade da realidade, o que denota que,
no modo de produção capitalista, a aparência é vista como a totalidade
da realidade.
Outras categorias poderiam ser analisadas para mostrar que há dois
níveis de realidade e que o nível da aparência é a inversão do nível da
essência.
A partir do nível fenomênico da realidade, constroem-se as idéias
dominantes numa dada formação social. Essas idéias são racionalizações
que explicam e justificam a realidade. Na sociedade capitalista, a partir
do nível aparente, constroem-se os conceitos de individualidade, de
liberdade como algo individual etc. Aparecem as idéias da desigualdade
natural dos homens, uma vez que uns são mais inteligentes ou mais
espertos que os outros. Daí se deduz que as desigualdades sociais são
naturais. Outras idéias pias, presas às formas fenomênicas da realidade,
vão construindo-se: a riqueza é fruto do trabalho (só se omite que é
fruto do trabalho dos outros); pobres e ricos vão sempre existir; a
pobreza é uma bênção, pois a riqueza só traz preocupações.
Demos até agora exemplos de idéias muito amplas, que fazem parte
das crenças da maioria da população. Há, porém, outras idéias que
ganham estatuto de verdades científicas e, não obstante, estão
vinculadas às formas aparentes da realidade. É o caso, por exemplo, das
teorias antropológicas segundo as quais havia raças inferiores e
superiores e que estas deveriam civilizar aquelas. Essas teorias serviram
para justificar o colonialismo.
A esse conjunto de idéias, a essas representações que servem para
justificar e explicar a ordem social, as condições de vida do homem e as
relações que ele mantém com os outros homens é o que comumente se
chama ideologia. Como ela é [29] elaborada a partir das formas
fenomênicas da realidade, que ocultam a essência da ordem social, a
ideologia é "falsa consciência".
É preciso explicitar bem esse ponto. Se há inversão da realidade, a
ideologia está contida no objeto, no social, não podendo, portanto, ser
reduzida à consciência. Ela existe independentemente da consciência dos
agentes sociais. É uma forma fenomênica da realidade, que oculta as
relações mais profundas e expressa-as de um modo invertido. A inversão
da realidade é ideologia. Por isso, é preciso muito cuidado ao usar a
expressão "falsa consciência". Ela indica apenas que as idéias
dominantes são elaboradas a partir de formas fenomênicas da realidade,
não apreendendo, portanto, as relações sociais mais profundas. Essas
idéias são, por conseguinte, ideologia sobre ideologia. A representação
pode ser invertida, porque a realidade se põe invertida. Mas é preciso
avançar um pouco mais nessa reflexão. Por que determinadas ciências,
como a Economia Política clássica, não chegam à essência da realidade e
pairam apenas na aparência? Porque ela se identifica com os interesses
da burguesia. Podemos então afirmar que não há um conhecimento
neutro, pois ele sempre expressa o ponto de vista de uma classe a
respeito da realidade. Todo conhecimento está comprometido com os
interesses sociais. Esse fato dá uma dimensão mais ampla ao conceito de
ideologia; ela é uma "visão de mundo", ou seja, o ponto de vista de uma
classe social a respeito da realidade, a maneira como uma classe ordena,
justifica e explica a ordem social. Daí podemos deduzir que há tantas
visões de mundo numa dada formação social quantas forem as classes
sociais. Há visões de mundo presas às formas fenomênicas da realidade
e outras que a ultrapassam, indo até a essência. Nem toda ideologia é,
portanto, "falsa consciência". Numa perspectiva histórica, há aquelas que
são consciência invertida da realidade e aquelas que não o são. Dessa
forma, verificamos que não há, como queriam muitos autores, uma
separação entre ciência e ideologia, pois esta, mesmo [30] tomada no
sentido de "falsa consciência", constrói-se a partir da realidade, só que
de suas formas fenomênicas. Cada uma das visões de mundo apresenta-
se num discurso próprio.
A ideologia é constituída pela realidade e constituinte da realidade.
Não é um conjunto de idéias que surge do nada ou da mente privilegiada
de alguns pensadores. Por isso, diz-se que ela é determinada, em última
instância, pelo nível econômico.
Dizer que as idéias de uma dada época são determinadas, em última
instância, pelo nível econômico não significa que a ideologia seja mero
reflexo do nível econômico. Os teóricos do materialismo histórico
mostraram que ocorrem defasagens entre os diferentes níveis da
estrutura social, o que não aconteceria se a determinação se exercesse
por uma causalidade mecânica. Engels, em carta a Bloch, datada de
21/9/1890, diz que "o elemento determinante da história, em última
instância, é a produção e a reprodução da vida real". Mostra, no entanto,
que nem ele nem Marx disseram que o elemento econômico é o único
determinante, pois as formas políticas da luta.de classes e os seus
resultados, as formas jurídicas, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas e
as concepções religiosas exercem também influência nas lutas históricas
e podem até determinar sua forma. Apesar de o elemento econômico
não ser o determinante único das lutas históricas, é o determinante em
última instância.
Que significa determinar em última instância? Engels dá a seguinte
explicação no Anti-Dühring:
A concepção materialista da história parte do princípio de que a produção
e com ela a troca de produtos constitui a base de toda a ordem social; de que,
em cada sociedade que a história apresenta, a repartição dos produtos, e com
ela a hierarquia social de classes e ordens, rege-se segundo a natureza e a
forma da produção e segundo a forma de troca das coisas produzidas. Por
conseqüência, é necessário procurar as causas últimas de todas as
transformações sociais e de todas as revoluções políticas, não na cabeça dos
homens, isto é, na idéia [31] cada vez mais clara que adquirem da verdade e
da justiça eternas, mas nas variações da forma de produção e de troca; é mis-
ter procurar tais causas, não na filosofia, mas na economia de cada época.
Determinação em última instância significa que o modo de produção
determina as idéias e os comportamentos dos homens e não o contrário.
É preciso, no entanto, cabe repetir, não ver o nível ideológico como
simples reflexo do econômico, pois ele tem seu conteúdo próprio e suas
próprias leis de funcionamento e de desenvolvimento. Isso significa que
não existe determinação direta e mecânica da economia, mas uma
determinação complexa.
Há ainda uma coisa muito importante que não devemos esquecer.
Embora haja, numa formação social, tantas visões de mundo quantas
forem as classes sociais, a ideologia dominante é a ideologia da classe
dominante. No modo de produção capitalista, a ideologia dominante é a
ideologia burguesa.
9. Formações ideológicas e
Formações discursivas
[32]
Uma formação ideológica deve ser entendida como a visão de mundo
de uma determinada classe social, isto é, um conjunto de
representações, de idéias que revelam a compreensão que uma dada
classe tem do mundo. Como não existem idéias fora dos quadros da
linguagem, entendida no seu sentido amplo de instrumento de
comunicação verbal ou não-verbal, essa visão de mundo não existe
desvinculada da linguagem. Por isso, a cada formação ideológica
corresponde uma formação discursiva, que é um conjunto de temas e de
figuras que materializa uma dada visão de mundo. Essa formação
discursiva é ensinada a cada um dos membros de uma sociedade ao
longo do processo de aprendizagem lingüística. É com essa formação
discursiva assimilada que o homem constrói seus discursos, que ele
reage lingüisticamente aos acontecimentos. Por isso, o discurso é mais o
lugar da reprodução que o da criação. Assim como uma formação
ideológica impõe o que pensar, uma formação discursiva determina o
que dizer. Há, numa formação social, tantas formações discursivas
quantas forem as formações ideológicas. Não devemos esquecer-nos de
que assim como a ideologia dominante é a da classe dominante, o
discurso dominante é o da classe dominante.
[33] As visões de mundo não se desvinculam da linguagem, porque a
ideologia vista como algo imanente à realidade é indissociável da
linguagem. As idéias e, por conseguinte, os discursos são expressão da
vida real. A realidade exprime-se pelos discursos.
Dizer que não há idéias fora dos quadros da linguagem implica
afirmar que não há pensamento sem linguagem. Engels dizia que não há
realmente um pensamento puro desvinculado da linguagem. Ao opor-se
à idéia de Dühring de que quem não era capaz de pensar sem o auxílio
da linguagem não tinha conhecido o verdadeiro pensamento, afirma,
com ironia, que, se isso fosse verdade, os animais seriam os pensadores
mais abstratos e autênticos, porque seu pensamento jamais é
perturbado pela interferência da linguagem.
Alguns lingüistas e psicólogos julgam que existe um pensamento puro
pré-lingüístico e, ao lado dele, a expressão lingüística que lhe serve de
envólucro. Outros afirmam que é impossível pensar fora dos quadros da
linguagem.
O problema começa com o próprio conceito de pensamento. Se
imaginarmos que pensamento seja a "faculdade de se orientar no
mundo", ou o "reflexo subjetivo da realidade objetiva", ou ainda "a
faculdade de resolver problemas", então podemos concluir que há um
pensamento verbal e um pré-verbal, pois todos os animais fundam seu
comportamento numa certa orientação no mundo, num certo reflexo
subjetivo da realidade objetiva ou numa certa capacidade de solucionar
problemas. Mas, se dissermos que o que caracteriza o pensamento
humano é seu caráter conceptual, o pensamento não existe fora da
linguagem.
Há processos mentais que escapam ao nível puramente lingüístico,
mas, a partir de uma certa idade, o pensamento torna-se
predominantemente conceptual e este não existe sem uma linguagem. O
cérebro funciona de maneira muito complexa, [34] mas os estudos de
psicologia genética e das patologias lingüísticas demonstram que a
ausência de uma linguagem, qualquer que ela seja, impossibilita o
exercício do pensamento conceptual. Quando se diz que não há idéias
independentemente da linguagem, está-se falando de pensamento
conceptual.
Não há, porém, identidade entre linguagem e pensamento. O que há
é uma indissociabilidade de ambos, que não se apresentam jamais de
uma forma pura. Por isso, as funções da linguagem e do pensamento
não podem ser dissociadas e, muito menos, opostas. O pensamento e a
linguagem, diz Schaff, são dois aspectos de um único processo: o do
conhecimento do mundo, da reflexão sobre esse conhecimento e da
comunicação de seus resultados. Para Vygotsky, apesar de o
pensamento e a linguagem serem diferentes em sua origem, ao longo do
processo evolutivo, soldam-se num todo indissociável de forma que, no
estágio do pensamento verbal, torna-se impossível dissociar as idéias da
linguagem. Pensamento e linguagem são distintos, mas inseparáveis.
Por causa dessa indissociabilidade, pode-se afirmar que o discurso
materializa as representações ideológicas. As idéias, as representações
não existem fora dos quadros lingüísticos. Por conseguinte, as formações
ideológicas só ganham existência nas formações discursivas.
Surge, porém, um problema: se o pensamento e a linguagem são
indissociáveis, onde fica a consciência individual?
10. A consciência é
um fato social
[35]
Marx e Engels afirmam, em A ideologia alemã, que a "linguagem é a
consciência real". Bakhtin diz que a "consciência constitui um fato
socioideológico", pois a realidade da consciência é a linguagem. Segundo
esse último autor, sem linguagem não se pode falar em psiquismo
humano, mas somente em processos fisiológicos ou processos do
sistema nervoso, pois o que define o conteúdo da consciência são fatores
sociais, que determinam a vida concreta dos indivíduos nas condições do
meio social. O discurso não é, pois, a expressão da consciência, mas a
consciência é formada pelo conjunto dos discursos interiorizados pelo
indivíduo ao longo de sua vida. O homem aprende como ver o mundo
pelos discursos que assimila e, na maior parte das vezes, reproduz esses
discursos em sua fala.
O pensamento dominante em nossa sociedade reluta em aceitar a
tese de que a consciência seja social, pois repousa sobre o conceito de
individualidade e concebe, assim, a consciência como o lugar da
liberdade do ser humano. No âmago de seu ser, ele estaria livre das
coerções sociais. Desses conceitos derivam as idéias de uma liberdade
abstrata de pensamento e expressão e de uma criatividade, que seria
preciso cultivar, pois ela seria a expressão da subjetividade individual.
[36] A confusão dessas idéias radica-se no próprio conceito de
indivíduo, porque o homem não é apenas uma individualidade que reside
no espírito. É também e principalmente produto de relações sociais
ativas e inteligentes, ou seja, que dependem, como mostrava Gramsci,
do grau maior ou menor de inteligibilidade que delas tenha o homem
individual. Como as relações de que o homem participa são, em geral,
necessárias, não há a possibilidade de existir um homem livre de todas
as coerções sociais. Isso não ocorre nem mesmo no interior do ser
humano. Sabemos que as normas sociais impõem até que desejos são
admissíveis e que desejos são inadmissíveis.
O discurso, por sua vez, também é determinado por coerções
ideológicas. Ora, se a consciência é constituída a partir dos discursos
assimilados individualmente por membros de um grupo social e se o
homem é limitado por relações sociais, não há uma individualidade de
espírito nem uma individualidade discursiva absoluta.
11. A individualidade
na linguagem
[37]
Muitas pessoas dizem que o discurso não pode ser determinado
socialmente, porque cada indivíduo expressa suas idéias de maneira
diferente. A nossa sociedade cultua a originalidade de expressão e chega
a sancionar negativamente a pura e simples cópia de algo que alguém já
escreveu, pintou etc.
Impõe-se para responder a essa objeção uma última distinção. O
signo lingüístico é formado por dois componentes: um conceito e um
suporte do conceito, que serve para expressá-lo, manifestá-lo, veiculá-lo.
Ao conceito chama-se significado ou conteúdo; ao suporte denomina-se
significante ou expressão. O significado é a parte inteligível do signo,
enquanto a expressão é a parte dizível ou sensível. O signo "árvore", por
exemplo, tem o significado "vegetal que atinge grandes proporções e que
tem o caule lenhoso". Seu significante é a imagem dos sons verbais que
serve para dizer, para veicular o conceito. Os significantes podem ser de
diferentes espécies, verbais, pictóricos, gestuais etc. O signo é a união
de um significante a um significado.
O discurso pertence ao plano do conteúdo. Ele é manifestado por um
plano de expressão. A manifestação é, portanto, o [38] encontro de um
plano de conteúdo com um plano de expressão, que pode ter como
material qualquer língua natural ou um meio não-verbal de expressão,
como o cinema, a pintura, a gestualidade, a fotografia etc. Neste nível
surge o texto. Enquanto o discurso pertence exclusivamente ao plano do
conteúdo, o texto faz parte do nível da manifestação.
Há necessidade de estabelecer uma distinção entre conteúdo e
expressão, entre imanência e manifestação, entre discurso e texto?
Sim, pois o mesmo discurso pode ser manifestado por diferentes
textos e estes podem ser construídos com materiais de expressão
diversos. Um conteúdo como "negação" pode ser textualizado por signos
verbais, como "não", "no", "non", ou pelo gesto de mover a cabeça de
um lado para outro diversas vezes. O beijo da mulher-aranha foi
manifestado verbalmente, num livro, e cinematograficamente (união da
expressão visual, verbal etc.). Se o mesmo conteúdo pode manifestar-se
por diferentes planos de expressão, a distinção entre imanência e
manifestação, entre discurso e texto, deve ser feita.
Mas aí poderia alguém objetar: quando um discurso é expresso por
dois textos diferentes, ambos reproduzem o sentido básico do discurso,
mas cada um apresenta certas peculiaridades significativas. Assim, o
filme O beijo da mulher-aranha não é exatamente igual ao livro. Tal
afirmação está correta, pois, no nível da manifestação, significados
novos agregam-se ao discurso e outros conteúdos deixam de ser
veiculados, devido às coerções do material e aos efeitos estilísticos da
expressão.
Os efeitos estilísticos da expressão estabelecem uma homologia entre
expressão e conteúdo, procurando manifestar o conteúdo na expressão e
não apenas pela expressão. Com os efeitos estilísticos da expressão,
quem, por exemplo, escreve não apenas fala de um conteúdo, mas recria
esse conteúdo no plano da expressão. Vejamos como isso funciona na
linguagem [39] verbal. Na primeira parte do poema "I-Juca-Pirama", de
Gonçalves Dias, há um esquema acentuai, que se repete em todos os
versos: -'--/-'- -/- -‘ -/-'- -. Esse esquema indica, por meio da sucessão
alternada de tempos fortes e fracos, o ritmo dos tambores da festa
indígena de que fala o poema:
No meio das tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos — cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d’altiva nação;
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
Temíveis na guerra, que em densas coortes
Assombram das matas a imensa extensão.
No verso "Pedras, pingos pulam de alegria" do poema "Chuva de
pedra", de Augusto Meyer, a aliteração do /p/ imita o saltitar das "gotas
duras". A vibração do raio é mostrada pela aliteração do [r/ nos versos
de Raimundo Correia: "E o céu da Grécia, torvo, carregado,/ Rápido, o
raio, rútilo, retalha". A assonância do /i/, no verso "Tíbios flautins
finíssimos gritavam", de Bilac, manifesta o som do flautim.
Como mostra Dámaso Alonso, no verso de Garcilaso "cestillos blancos
de purpúreas rosas", o vermelho das rosas oferecidas à ninfa morta é
destacado certamente pelo contraste com o branco dos cestinhos em que
eram trazidas. Esse contraste, porém, é reforçado pela ordem quiástica
das palavras dos dois blocos, isto é, pela construção em forma de x
(substantivo/adjetivo vs. adjetivo/substantivo), pelo contraste dos
timbres a e u nos adjetivos e pelos acentos colocados sobre essas duas
vogais.
A coerção do material é responsável pelo fato de determinados
aspectos do sentido serem mais bem expressos por um tipo de
manifestação do que por outro. A cor tem uma importância muito grande
no filme Gritos e sussurros, de Ingmar Bergman. Há todo um sentido
derivado do contraste entre os tons escuros e os tons claros e luminosos.
Dificilmente esse sentido seria bem revelado por um plano de expressão
verbal. [40] Por outro lado, no soneto de Camões "Amor é fogo que
arde", o poeta combina figuras, numa tentativa de definir o amor. Nos
onze primeiros versos, busca essa definição, passando por várias
categorias lingüísticas. Acaba, no entanto, por abandonar suas
tentativas, porque cada uma das definições encerra uma contradição
(exemplo: "Amor é fogo que arde sem se ver,/ É ferida que dói e não se
sente"). No final, o poeta mostra sua perplexidade numa interrogação e
contenta-se em qualificar o amor com uma simples atribuição ("Mas
como causar pode seu favor/ Nos corações humanos amizade,/ Se tão
contrário a si é o mesmo amor?"). Esses efeitos de sentido dificilmente
poderiam ser manifestados por um plano de expressão não-verbal, pois
aí tem importância capital a estrutura sintática da definição (sujeito que
contém o termo a ser definido + verbo ser no presente do indicativo +
predicativo que encerra a definição), que se repete ao longo dos onze
primeiros versos do poema.
Essa coerção ocorre também quando usamos uma língua natural e
não outra. Daí a dificuldade da tradução do texto poético, que faz largo
uso dos efeitos estilísticos de expressão. A tradução do texto poético
deve ser uma recriação, pois caso contrário os efeitos estilísticos se
perdem. Se traduzirmos o verso virgiliano "Et stetit illa tremens" por "E
ela (a espada) parou tremendo", perderemos o valor sonoro do tremor,
dado pela aliteração do /t/.
Em síntese, o mesmo discurso pode ser manifestado por diferentes
meios de expressão. Nessa manifestação, atuarão as coerções do
material e agregar-se-ão os conteúdos engendrados pelos efeitos
estilísticos da expressão. O ruído do chiar das rodas de uma carroça, que
acompanha monotonamente, no filme Vidas secas, a retirada da família
de Fabiano, não aparece nem poderia aparecer no livro, cujo plano de
manifestação é verbal.
12. A trapaça discursiva
[41]
Enquanto o discurso é a materialização das formações ideológicas,
sendo, por isso, determinado por elas, o texto é unicamente um lugar de
manipulação consciente, em que o homem organiza, da melhor maneira
possível, os elementos de expressão que estão a sua disposição para
veicular seu discurso. O texto é, pois, individual, enquanto o discurso é
social. Há um nível grande de liberdade no âmbito da textualização,
enquanto, no nível discursivo, o homem está preso aos temas e às
figuras das formações discursivas existentes na formação social em que
está inserido.
Todos os discursos têm, para usar uma expressão de Edward Lopes,
uma "função citativa" em relação a outros discursos. Por isso, ele não é
único e irrepetível. Na medida em que é determinado pelas formações
ideológicas, o discurso cita outros discursos. Os mesmos percursos
temáticos e figurativos se repetem. O percurso temático da "salvação da
pátria" foi usado milhares de vezes pelos que falavam a palavra do poder
depois de 1964. No imaginário da classe média, o tema do "luxo" e do
"requinte" é figurativizado por "baixelas de prata, porcelanas, tapetes
persas, poltronas de veludo, quadros etc". Porque o discurso tem essa
função citativa, a liberdade discursiva é muito pequena, quando não é
nula. O enunciador é o suporte da [42] ideologia, vale dizer, de
discursos, que constituem a matéria-prima com que elabora seu
discurso. Seu dizer é a reprodução inconsciente do dizer de seu grupo
social. Não é livre para dizer, mas coagido a dizer o que seu grupo diz.
Já o texto é individual. O falante organiza sua maneira de veicular o
discurso. A ilusão da liberdade discursiva tem sua origem nesse fato. O
discurso simula ser individual, porque aquilo que, em si, não tem
sentido, o plano da expressão, é o campo da organização individual, é o
plano da manifestação pessoal. No entanto, deve-se ressaltar que essa
individualidade é objetivada, uma vez que é formada por meio de
operações modelizantes de aprendizagem, que incluem a formação
lingüística, retórica e de procedimentos de formas de elocução. Formas
de dizer o discurso são aprendidas e estão de acordo com as tradições
culturais de uma sociedade. Muitas pessoas buscaram, numa certa
época, textualizar como Rui e Coelho Neto ou versejar como Bilac.
Como o mesmo discurso pode manifestar-se em diferentes textos, a
liberdade de textualizar é muito grande, estando condicionada apenas
pelos processos modelizantes de aprendizagem, ou seja, pela tradição
textual. O discurso é, pois, o lugar das coerções sociais, enquanto o
texto é o espaço da "liberdade" individual. Como diz Edward Lopes,
combinando uma simulação com uma dissimulação, o discurso é uma
trapaça: ele simula ser meu para dissimular que é do outro.
Essa dissimulação ocorre porque um plano de manifestação individual
é que veicula um plano de conteúdo social. Assim, o discurso simula ser
individual para ocultar que é social. Ao realizar essa simulação e essa
dissimulação, a linguagem serve de apoio para as teses da
individualidade de cada ser humano e da liberdade abstrata de
pensamento e de expressão. O homem coagido, determinado, aparece
como criatura absolutamente livre de todas as coerções sociais.
13. Falar ou ser falado?
[43]
O falante, suporte das formações discursivas, ao construir seu
discurso, investe nas estruturas sintáticas abstratas temas e figuras, que
materializam valores, carências, desejos, explicações, justificativas e
racionalizações existentes em sua formação social. Esse enunciador não
pode, pois, ser considerado uma individualidade livre das coerções
sociais, não pode ser visto como agente do discurso. Por ser produto de
relações sociais, assimila uma ou várias, formações discursivas, que
existem em sua formação social, e as reproduz em seu discurso. É nesse
sentido que se diz que ele é suporte de discursos.
Se o enunciador é o suporte de um discurso que ele reproduz, quem
é o agente discursivo? Na medida em que as formações discursivas
materializam as formações ideológicas e estas estão relacionadas às
classes sociais, os agentes discursivos são as classes e as frações de
classe. Tornamos a lembrar que, embora haja diferentes formações
discursivas numa formação social, a formação discursiva dominante é a
da classe dominante.
O "árbitro" da discursivização não é o indivíduo, mas as classes
sociais. O indivíduo não pensa e não fala o que quer, mas o que a
realidade impõe que ele pense e fale.
Poderiam objetar: essas concepções não são muito restritivas? Afinal,
sendo o homem um "animal racional", organiza [44] seu discurso como
quer para exprimir o que quiser. Deve-se contestar essa liberdade
absoluta do ser humano, pois, como já mostramos, sendo ele produto de
relações sociais, age, reage, pensa e fala, na maior parte das vezes,
como os membros de seu grupo social. Além disso, as idéias que tem à
disposição para tematizar seu discurso são aquelas veiculadas na
sociedade em que vive. É claro que, com isso, não se exclui a
possibilidade de o homem elaborar um discurso crítico, diferente,
portanto, dos discursos dominantes. No entanto, esse discurso crítico
não surge do nada, do vazio, mas se constitui a partir dos conflitos e das
contradições existentes na realidade.
A aprendizagem lingüística, que é a aprendizagem de um discurso,
cria uma consciência verbal, que une cada indivíduo aos membros de seu
grupo social. Por isso, a aprendizagem lingüística está estreitamente
vinculada à produção de uma identidade ideológica, que é o papel que o
indivíduo exerce no interior de uma formação social.
Na medida em que o homem é suporte de formações discursivas, não
fala, mas é falado por um discurso.
14. Arena de conflitos
E palco de acordo
[45]
Se um discurso cita outro discurso, ele não é um sistema fechado em
si mesmo, mas é um lugar de trocas enunciativas, em que a história
pode inscrever-se, uma vez que é um espaço conflitual e heterogêneo ou
um espaço de reprodução. Um discurso pode aceitar, implícita ou
explicitamente, outro discurso, pode rejeitá-lo, pode repeti-lo num tom
irônico ou reverente. Por isso é que o discurso é o espaço da reprodução,
do conflito ou da heterogeneidade. As relações interdiscursivas podem,
assim, ser contratuais ou polêmicas.
Dois discursos que consideram o brasileiro um homem cordial,
pacífico, que cultua a conciliação, mantêm entre si uma relação
contratual. Um tipo de discurso religioso segundo o qual o homem deve
conformar-se com sua situação na Terra para ganhar o reino de Deus
está em relação polêmica com outro para o qual o reino de Deus deve
começar a ser construído aqui na Terra pela implantação da justiça e que
todos os homens devem lutar para que isso se efetive.
Um discurso sempre cita outro discurso. Um texto pode citar outro
texto. As relações entre os textos podem também ser contratuais ou
polêmicas.
[46] A "Canção do exílio", de Gonçalves Dias, tornou-se um clichê.
Aparece até nos seguintes versos do Hino Nacional:
Do que a terra mais garrida
Teus risonhos lindos campos têm mais flores.
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida, no teu seio, mais amores.
Neste ponto, o Hino Nacional quer evocar a atitude ufanista de
exaltação à pátria que o texto gonçalvino expressa. Temos aí uma
relação contratual entre os dois textos. No entanto, o clichê pode ser
inserido noutro contexto com intenção parodística, como acontece com o
mesmo poema de Gonçalves Dias, ao ser usado na "Canção do exílio", de
Murilo Mendes:
Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza. (...)
Nossas flores são mais bonitas,
Nossas frutas, mais gostosas,
Mas custam cem mil-réis a dúzia!
Ai, quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!
Um bom exemplo de polêmica textual é dado pelo texto intitulado
"Carta pras icamiabas", que faz parte do livro Macunaíma, de Mário de
Andrade. Nele o narrador utiliza uma maneira de textualizar que, pelo
preciosismo léxico, por certas estruturas sintáticas e por determinados
maneirismos textuais, aproxima-se do modo de textualização dos
autores parnasianos ou pré-modernistas. Usa, com ironia, esses
procedimentos de feitura do texto. Cita até mesmo os primeiros versos
do episódio do Gigante Adamastor de Os lusíadas:
Porém já cinco sóis eram passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca de outrem navegados...
[47] Vejamos uma parte desse texto:
Senhoras:
Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e a literatura
desta missiva. Cumpre-nos, entretanto, iniciar estas linhas de saudade
e muito amor, com desagradável nova. É bem verdade que na boa
cidade de São Paulo — a maior do universo no dizer dos seus prolixos
habitantes — não sois conhecidas por "icamiabas", voz espúria, senão
que pelo apelativo de Amazonas; e de vós se afirma, cavalgardes
ginetes belígeros e virdes da Hélade clássica; e assim sois chamadas.
Muito nos pesou a nós, Imperator vosso, tais dislates da erudição,
porém heis de convir conosco que, assim, ficais mais heróicas e mais
conspícuas, tocadas por essa patina respeitável da tradição e da
pureza antiga. Mas não devemos esperdicarmos vosso tempo fero, e
muito menos conturbarmos vosso entendimento, com notícias de mau
calibre; passemos, pois, imediatamente, ao relato dos nossos feitos
por cá.
Nem cinco sóis eram passados que de vós nos partíramos, quando a
mais temerosa, desdita pesou sobre Nós. Por uma bela noite dos idos
de maio do ano translato, perdíamos a muiraquitã; que outrem
grafara muraquitã, e, alguns doutos, ciosos de etimologias esdrúxulas,
ortografam muyrakitan e, até mesmo, muraqué-itã, não sorriais!
Haveis de saber que esse vocábulo, tão familiar às vossas trompas de
Eustáquio, é quase desconhecido por aqui. Por estas paragens mui
civis, os guerreiros chamam-se polícias, grilos, guardas-cívicas,
baxistas, legalistas, masorqueiros etc., sendo que alguns desses
termos são neologismos absurdos — bagaço nefando, com que os des-
leixados e petimetres conspurcam o bom falar lusitano. Mas não nos
sobra já vagar para discretearmos "sub tegmine fagi", sobre a língua
portuguesa, também chamada lusitana. O que vos interessará mais,
por sem dúvida, é saberdes que os guerreiros de cá não buscam
mavórticas damas para o enlace epitalâmico; mas antes as preferem
dóceis e facilmente trocáveis por pequenas e voláteis folhas de papel a
que o vulgo chamará dinheiro — o "curriculum vitae" da Civilização, a
que hoje fazemos ponto de honra em pertencermos.
[48] Ao ironizar o texto dos autores do final do século XIX e começo
do século XX, o narrador ironiza também as concepções desse período,
isto é, seu discurso. Quando um discurso cita outro discurso, os textos
que os veiculam não precisam necessariamente remeter um ao outro,
mas, quando um texto cita outro texto, os discursos veiculados por eles
também se citam.
Discurso e texto são ambos arena de conflitos e palco de acordo.
Os conflitos e acordos são sociais. Só se pode, pois, falar em contrato
e polêmica entre textos e discursos, porque expressam conflitos e
acordos existentes na realidade social.
15. Análise não é
investigação policial
[49]
Alguns teóricos dizem que não se pode falar na posição ideológica do
enunciador, pois ele pode ocultar sua verdadeira visão de mundo,
construindo um discurso que revele uma outra ideologia. É evidente que,
sendo o falante suporte das várias formações discursivas presentes
,numa formação social, pode construir discursos que revelem diferentes
visões de mundo. Saber, entretanto, se o falante revela ou não sua
verdadeira visão de mundo, ao enunciar um discurso, não é problema do
analista do discurso, uma vez que a análise não é investigação policial.
Preocupa-se ela não com o enunciador real, mas com o enunciador
inscrito no discurso, ou seja, com aquele que no interior do discurso diz
eu.
A análise vai mostrar a que formação discursiva pertence
determinado discurso. O sujeito inscrito no discurso é um "efeito de
sentido" produzido pelo próprio discurso, isto é, seus temas e suas
figuras é que configuram a "visão de mundo" do sujeito. Se, do ponto de
vista genético, as formações ideológicas materializadas nas formações
discursivas é que determinam o discurso, do ponto de vista da análise, é
o discurso que vai revelar quem é o sujeito, qual é sua visão de mundo.
[50] O que importa para o analista é que todo discurso desvela uma
ou várias das visões de mundo existentes numa formação social. O
homem não escapa de suas coerções nem mesmo quando imagina
outros mundos. Na ficção científica, por exemplo, em que o homem cria
outros universos, revela os anseios, os temores, os desejos, as carências
e os valores da sociedade em que vive.
Quando o discurso tem, em seu interior, um único enunciador, revela
apenas uma visão de mundo. Se tomarmos um discurso pronunciado
pelo presidente Mediei, veremos que ele tem um só enunciador e que
revela, portanto, uma só ideologia. No entanto, num romance, há vários
enunciadores de segundo grau (personagens) a quem o narrador delega
voz. Essas personagens podem manifestar diferentes visões de mundo.
Por exemplo, no romance Germinal, de Zola, proletários opõem-se a
burgueses. Etienne Lantier, líder dos mineiros, por exemplo, mostra uma
"visão de mundo" proletária, enquanto personagens como M. Grégoire e
M. Hennebeau manifestam uma visão burguesa de mundo.
Além das diferentes visões de mundo apresentadas pelas
personagens, o narrador pode ou não tomar partido por uma das
ideologias reveladas na obra. O narrador de Lucíola, por exemplo, diz
que vai mostrar que o "lírio viceja no lodo" e figurativiza Lúcia como um
ser composto da união dos quatro elementos primordiais, a terra, a
água, o fogo e o ar. Com efeito, há na obra a união da terra e da água, a
lama ("a lama deste tanque é o meu corpo"); a reunião do fogo e da
terra, a lava ("escaldar-me da lava que corria de seu corpo"); o
englobamento do ar e da água ("o meu pensamento, impregnado de
desejos lascivos, se depurava de repente, como o ar se depura com as
brisas do mar que lavam as exalações da terra"); a união do ar e do fogo
("irradiação íntima do fogo divino"). Com suas afirmações e com o uso
dessa configuração discursiva, o narrador mostra que o [51] homem não
é apenas bom ou mau, mas é um ser complexo, uma vez que é a
mistura dos quatro elementos que deram origem ao mundo. Critica a
idéia da liberdade absoluta do ser humano, segundo a qual o homem age
movido por sua consciência, pois Lúcia se figurativizou como "lama" e
"lava" porque sofreu coerções que a fizeram tornar-se, na aparência, um
ser do elemento terra, quando, na essência, conservava a pureza e a
paixão divina.
A análise, em síntese, não se interessa pela "verdadeira" posição
ideológica do enunciador real, mas pelas visões de mundo dos
enunciadores (um ou vários) inscritos no discurso.
16. O discurso é reflexo
da realidade?
[52]
Os filósofos idealistas sempre afirmaram que a linguagem cria uma
imagem do mundo. Que querem dizer esses filósofos com essa
afirmação? A linguagem contém uma visão de mundo, que determina
nossa maneira de perceber e conceber a realidade, e impõe-nos essa
visão. A linguagem é como um molde, que ordena o caos, que é a
realidade em si. Como a linguagem dá forma a esse caos, determinando
o que é uma coisa, um acontecimento etc., cria uma imagem ordenada
do mundo. Cada língua ordena o mundo à sua maneira. Assim, por
exemplo, o português categoriza como duas cores distintas o verde e o
azul, enquanto o japonês considera-as matizes de uma só cor,
designando-as por aoi. Isso não significa que os japoneses não percebam
a diferença real que existe entre o verde e o azul, mas que tais
diferenças são colocadas na categoria dos matizes de uma mesma cor.
Os exemplos poderiam ser multiplicados.
O fundamental a ressaltar nas teorias idealistas, no entanto, é que a
linguagem tem um papel ativo no processo de aquisição do
conhecimento. Essa tese, como mostra Adam Schaff, constitui o
elemento racional das teorias idealistas. Entretanto, essa primeira tese
está associada, implícita ou explicitamente, a [53] uma segunda que diz
ser a linguagem produto de uma convenção arbitrária ou da função
simbólica peculiar à psique humana.
Que é que determina, porém, essa imagem do mundo? Dizer que a
linguagem, que contém essa imagem do mundo, é produto de uma
convenção arbitrária é utilizar, para a explicação da gênese da
linguagem, um axioma impossível de provar e que, por isso, é colocado
na categoria dos elementos teóricos indemonstráveis. A tese da
linguagem como resultado de uma convenção arbitrária é a aplicação
para as línguas naturais do princípio de constituição dos sistemas
simbólicos especiais, como, por exemplo, os sinais de trânsito ou os
símbolos matemáticos. Afirmar, por outro lado, que a linguagem é uma
das formas de simbolização particular à psique humana é deixar o
problema sem solução, pois o que queremos saber não é se a linguagem
forma ou não uma imagem do mundo, mas o que é que determinou essa
visão contida na linguagem. Foram fatores biológicos? Foi uma força
superior? Foram outros fatores? Quais? Segundo Schaff, onde param os
filósofos idealistas que consideram a linguagem produto da função
simbólica começa o verdadeiro problema da filosofia da linguagem.
Só há uma resposta para esse problema: a linguagem cria a imagem
do mundo, mas é também produto social e histórico. Assim, a linguagem
"criadora de uma imagem do mundo é também criação desse mundo". A
linguagem formou-se, no decorrer da evolução filogenética, constituindo
um produto e um elemento da atividade prática do homem. À medida
que os sistemas lingüísticos se vão constituindo, vão ganhando certa
autonomia em relação às formações ideológicas. Entretanto, o
componente semântico do discurso continua sendo determinado por
fatores sociais. É esse componente que contém a visão de mundo
veiculada pela linguagem. Por isso, essa visão de mundo não é arbitrária,
mas resulta de fatores sociais, não podendo, por conseguinte, ser
alterada em razão de uma escolha arbitrária. [54] Assim, o que está na
consciência é provocado por algo exterior a ela e independente dela.
Os filósofos materialistas dizem que a linguagem é reflexo da
realidade. O termo "reflexo" é uma metáfora e, por isso, prestou-se a
toda sorte de confusões. O componente semântico sofre determinações
sociais, mas tem um papel ativo no processo de aquisição do
conhecimento. Isso significa que a linguagem condensa, cristaliza e
reflete as práticas sociais, ou seja, é governada por formações
ideológicas. Ao mesmo tempo, porém, em que é determinada é
determinante, pois ela "cria" uma visão de mundo na medida em que
impõe ao indivíduo uma certa maneira de ver a realidade, constituindo
sua consciência.
É preciso considerar, quando se diz que a linguagem reflete a
realidade (seja seu nível aparente, seja seu nível de essência), que o
espírito humano não é passivo e que sua função não consiste apenas em
refletir a realidade. Isso significa que o discurso não reflete uma
representação sensível do mundo, mas uma categorização do mundo, ou
seja, uma abstração efetuada pela prática social. A percepção pura não
existe. Pelo contrário, certos dados da psicologia autorizam a dizer que a
percepção é guiada pela linguagem. Porque o homem age e transforma a
realidade, não a apreende passivamente. A forma de apreensão depende
do sujeito cognoscente, isto é, do gênero de prática, acumulada na
filogênese e na ontogênese, de que dispõe. É por isso que uma mesma
realidade pode ser apreendida diversamente por homens distintos.
A consciência humana depende, pois, da linguagem assimilada. Não
só os elementos semânticos, diretamente determinados pelas formações
ideológicas, mas também as categorias lingüísticas que gozam de uma
certa autonomia em relação às formações sociais exercem um papel
ativo na percepção do mundo.
[55] Quando Wilhelm Stock traduzia Antero de Quental para o
alemão, escreveu ao poeta português, mostrando a dificuldade de verter
para o alemão o soneto "Mors-Amor", porque o poema joga com a
oposição masculino/feminino em função das duas figuras alegóricas - o
Amor e a Morte - e essas duas palavras têm gêneros opostos em
português e em alemão (Die Liebe e Der Toei). Em sua resposta, Antero
diz que os falantes das línguas neolatinas figurativizam a morte como
mulher e conclui afirmando que
a imaginação (e por conseguinte o pensamento) ainda onde parece
ser tão espontânea, é escrava de acidentes lingüísticos como aqueles
que fizeram que a palavra mors, há inúmeros anos, quando se formou
em latim, fosse do gênero feminino.
Carolina Michaelis de Vasconcelos, a propósito do mesmo assunto,
comenta que os falantes do alemão representam a morte como um
cavaleiro esquelético, montado em fogosíssimo corcel.
A linguagem tem influência também sobre os comportamentos do
homem. O discurso transmitido contém em si, como parte da visão de
mundo que veicula, um sistema de valores, isto é, estereótipos dos
comportamentos humanos que são valorizados positiva ou
negativamente. Ele veicula os tabus comportamentais. A sociedade
transmite aos indivíduos — com a linguagem e graças a ela — certos
estereótipos, que determinam certos comportamentos. Esses
estereótipos entranham-se de tal modo na consciência que acabam por
ser considerados naturais. Figuras como "negro", "comunista", "puta"
têm um conteúdo cheio de preconceitos, aversões e hostilidades, ao
passo que outras como "branco", "esposa" estão impregnadas de
sentimentos positivos. Não devemos esquecer que os estereótipos só
estão na linguagem porque representam a condensação de uma prática
social.
[56] Para mostrar como o conteúdo de um vocábulo está repleto de
valores negativos, tomemos alguns trechos de uma enque-te realizada
pelo jornal Repórter, n° 30, jun. 1980, a respeito do significado da
palavra "comunismo":
Comunista é um ateu cheio de complexos contra a
democracia. Anda insuflando a desarmonia e defendendo seus pontos
de vista.
Comunismo é um tipo de bagunça, uma cambada de
desordeiros.
Sou contra o comunismo, interferem na liberdade do povo,
tomam toda propriedade do indivíduo, é um roubo qualificado e
descarado.
Comunismo é algo de ruim para o país. Acontece que
ocorre o seguinte: o patrão faz você de escravo, você não tem direito
de almoçar, de ter um tempinho pró café. É só trabalho, trabalho,
assim não dá.
Pode-se concluir que o discurso é, ao mesmo tempo, prática social
cristalizada e modelador de uma visão de mundo.
17. Um exemplo: a
igualdade burguesa
[57]
No caso dos textos não-figurativos, as coerções ideológicas
manifestam-se, com toda nitidez, no nível dos temas. Tomemos um
texto para ilustrar essa afirmação. O texto escolhido é um trecho de uma
circular ao serviço público da França revolucionária, datado de maio de
1794.
O funcionário público, acima de tudo, deve desfazer-se da
roupagem antiga e abandonar a polidez forçada, tão inconsistente
com a postura de homens livres, e que é uma relíquia do tempo em
que alguns homens eram ministros e os outros, seus escravos.
Sabemos que as velhas formas de governo já desapareceram:
devemos até mesmo esquecer como eram. As maneiras simples e
naturais devem substituir a dignidade artificial que freqüentemente
constituía a única virtude de um chefe de departamento ou outro
funcionário graduado. Decência e genuína seriedade são os requisitos
exigidos de homens dedicados à coisa pública. A qualidade essencial
do Homem na Natureza consiste em ficar de pé. O jargão ininteligível
dos velhos ministérios deve dar lugar a um estilo simples, claro,
conciso, isento de expressões de servilismo, de formas obsequiosas,
indiretas e pedantes, ou de qualquer insinuação no sentido de que
existe autoridade superior à razão e à ordem estabelecida pelas leis
— um estilo que adote atitude natural [58] em relação às autoridades
subalternas. Não deve haver frases convencionais, nem desperdício de
palavras (Apud Lasswell, Harold & KAPLAN, Abraham. A linguagem da
política. Brasília, EUB, 1979. p. 43).
O texto trata das atitudes que deve ter o funcionário público da
França revolucionária. Opõe o serviço público do novo regime ao do
antigo. Ao fazer essa oposição, aparecem sob o texto dois discursos: o
que mostra como eram os funcionários públicos do antigo regime e o que
explica como devem ser os do novo. Assim, o discurso propõe um dever-
fazer e um não-dever-fazer. Esses discursos dividem-se em duas partes:
uma que discute as atitudes dos funcionários e uma que trata do
problema do discurso utilizado nas repartições.
No que concerne às atitudes, a polidez forçada e a dignidade artificial
devem ser substituídas por maneiras simples e naturais e pela decência e
genuína seriedade. O servilismo, fruto da divisão entre ministros e
escravos, deve desaparecer. O funcionário não pode ser servil aos
ministros, porque o homem na natureza fica em pé, numa atitude digna,
e não curvado diante dos outros. No antigo regime, os funcionários
graduados tinham uma dignidade artificial, enquanto os subalternos
eram servis. Como todos os homens são, por natureza, livres e iguais, os
funcionários do novo regime devem cultivar apenas a deçgn-cia e a
seriedade. A referência a ministros e escravos opõe temas que definem
cada um dos dois regimes: liberdade vs. não-liberdade e igualdade w.
não-igualdade. Ao explicar que o homem na natureza fica em pé e não
curvado e ao considerar esse traço um elemento definitório do homem, o
texto mostra que todos os homens são iguais e que essa igualdade está
radicada num fator biológico, sendo, portanto, natural. Os homens são
iguais porque eles são seres humanos.
O texto afirma que o discurso reflete as relações sociais. A uma
ordem social fundada na desigualdade correspondem [59] um jargão
ininteligível, um estilo empolado e prolixo, um texto repleto de
expressões de servilismo, de formas obsequiosas, indiretas e pedantes,
de frases convencionais. Esse discurso sempre insinua que há uma
autoridade que se coloca acima da razão e da ordem estabelecida pelas
leis, ou seja, que existem autoridades por direito divino ou que ocupam
sua posição em virtude de seu nascimento. A dignidade artificial vigente
no serviço público do antigo regime engendra um discurso ininteligível,
pedante, convencional e prolixo, enquanto o servilismo gera a
obsequiosidade. A uma ordem social baseada nos princípios de igualdade
e de liberdade correlacionam-se um estilo claro, simples e conciso, um
texto despido de expressões de servilismo, de formas obsequiosas,
indiretas e pedantes, em que não há desperdício de palavras nem frases
convencionais. Esse discurso deixa patente que não há autoridade
superior à razão e à ordem estabelecida pelas leis.
Aparecem no texto três temas básicos da ideologia burguesa: a
liberdade, a igualdade e a naturalidade das relações sociais.
As relações sociais, fundadas na liberdade e na igualdade, são
naturais porque decorrem de um fator biológico. Do ponto de vista da
natureza humana, os homens são livres e iguais, uma vez que são
"animais racionais". O homem subordina-se apenas à razão e à ordem
estabelecida pelas leis. Ambas fazem suas coerções incidirem sobre
todos os homens, não podendo ninguém furtar-se a elas. A igualdade é,
então, formal: todos são iguais perante a lei. Por outro lado, ao colocar
no texto o vocábulo "escravo", o enunciador mostra que a liberdade é
individual, ou seja, nenhum homem está sujeito a outros por laços de
dependência pessoal, mas somente à autoridade da razão e das leis.
Pelo que vimos no capítulo dedicado ao conceito de ideologia, os
temas deste texto constroem-se a partir de formas aparentes da
realidade. Não está em questão, porque não o está na ideologia
burguesa, o problema não-formal da igualdade e da [60] liberdade. O
discurso, refletindo o nível da aparência da realidade, considera a razão
como um fato que independe das coerções sociais e a lei como algo
vinculado a um suposto "interesse geral". Não vê, assim, a desigualdade
presente na sociedade burguesa e a subordinação de uma classe à outra.
Ao dizer que o funcionário público está sujeito à lei e à razão, mostra um
Estado que parece decorrer da "vontade coletiva" que se encarrega da
promoção do bem comum.
O nível temático, que concretiza o dever-fazer e o não-de-ver-fazer
presentes na estrutura profunda do texto, revela uma dada visão de
mundo determinada, em última instância, pela infra-estrutura
econômica.
18. Outros exemplos: reprodução
e polêmica
[24]
Tomemos agora exemplos de textos figurativos. O primeiro é de um
autor naturalista chamado Inglês de Sousa. Pertence ao romance O
missionário, que conta a história de Pé. Antônio de Morais. Do pai o
padre herdara um caráter indolente, comodista e sensual. Na infância,
fora criado de maneira muito livre, a saciar
o apetite sem peias nem precauções nas goiabas verdes, nos araçás
silvestres, nos taperebás vermelhos, sentindo a acidez irritante da
fruta umedecer-lhe a boca e banhá-la em ondas de uma
voluptuosidade bruta.
Quando jovem, foi enviado pelo padrinho a um seminário onde devia
ilustrar-se. A educação severa deu-lhe uma camada de virtudes. Depois
de ordenado, é mandado para Silves como vigário. Diante da monotonia
de suas tarefas resolve partir em missão catequizando índios qual um
novo Anchieta. Na selva, conhece Clarinha com quem vive um tempo de
prazer.
O texto escolhido é exemplar no sentido de revelar temas e figuras
de uma dada formação discursiva:
Entregara-se, corpo e alma, à sedução da linda rapariga
que lhe ocupara o coração. A sua natureza ardente e apaixonada,
extremamente sensual, mal contida até então pela disciplina do [62]
Seminário e pelo ascetismo que lhe dera a crença na sua predes-
tinação, quisera saciar-se do gozo por muito tempo desejado, e
sempre impedido. Não seria filho de Pedro Ribeiro de Morais, o
devasso fazendeiro do Igarapé-mirim, se o seu cérebro não fosse
dominado por instintos egoísticos, que a privação dos prazeres
açulava e que uma educação superficial não soubera subjugar. E como
os senhores Padres do Seminário haviam pretendido destruir ou, ao
menos, regular e conter a ação determinante da hereditariedade
psicofisiológica sobre o cérebro do Seminarista? Dando-lhe uma
grande cultura de espírito, mas sob um ponto de vista acanhado e
restrito, que lhe excitara o instinto da própria conservação, o
interesse individual, pondo-lhe diante dos olhos, como supremo bem,
a salvação da alma, e como meio único, o cuidado dessa mesma
salvação. Que acontecera? No momento dado, impotente o freio moral
para conter a rebelião dos apetites, o instinto mais forte, o menos
nobre, assenhoreara-se daquele temperamento de matuto, disfarçado
em padre de S. Sulpício. Em outras circunstâncias, colocado em meio
diverso, talvez que Padre Antônio de Morais viesse a ser um santo, no
sentido puramente católico da palavra, talvez que viesse a realizar a
aspiração da sua mocidade, deslumbrando o mundo com o fulgor das
suas virtudes ascéticas e dos seus sacrifícios inauditos. Mas nos
sertões do Amazonas, numa sociedade quase rudimentar, sem moral,
sem educação... vivendo no meio da mais completa liberdade de
costumes, sem a coação da opinião pública, sem a disciplina duma
autoridade espiritual fortemente constituída... sem estímulos e sem
apoio... devia cair na regra geral dos seus colegas de sacerdócio, sob a
influência enervante e corruptora do isolamento, e entregara-se ao
vício e à depravação, perdendo o senso moral e rebaixando-se ao nível
dos indivíduos que fora chamado a dirigir (Rio de Janeiro, Edições de
Ouro, 1967. p. 383-4).
O tema mais evidente no texto é que o homem é determinado pelo
meio, a hereditariedade e o momento. Esse tema provém do positivismo
e, mais particularmente, da obra de Taine.
Tendo a burguesia, depois da Revolução Francesa, assumido a
hegemonia, suas idéias e seus ideais revolucionários [63] declinam. Na
segunda metade do século XIX, ocorre um grande progresso científico. O
interesse da burguesia era dominar a natureza, ou seja, conhecer seus
segredos com a finalidade de poder manipulá-la, colocando-a a serviço
da produção. O conhecimento científico deve resultar numa técnica que
racionalize o trabalho e aumente a produção. Os fenômenos sociais, no
bojo do processo de naturalização da ordem social, devem ser explicados
pelo método científico, que se quer totalmente objetivo. Temos, então, o
primado do dado, do fato, da observação sobre a especulação. O
positivismo torna-se a explicação do progresso social.
Todos os fatos sociais são explicados por determinações mecânicas,
por uma série de leis similares às que regem os fenômenos naturais. O
homem é visto como um ser condicionado mecanicamente pelo meio, a
hereditariedade e o momento. Taine diz que "a virtude e o vício são
produtos da natureza como o açúcar e o vitríolo". Com essas explicações,
instaura-se uma concepção fatalista da história.
As ciências humanas são invadidas por concepções e princípios
retirados das ciências naturais. Difundem-se pela lingüística, por
exemplo, as concepções darwinianas sobre a origem das espécies, a
seleção natural e a luta pela vida. A língua era considerada um
organismo vivo, que nasce, cresce, reproduz-se e morre. Assim como o
homem era submetido a determinações mecânicas, também as línguas
evoluíam de acordo com leis que não admitiam exceção.
Esses são alguns dos temas dominantes do discurso da segunda
metade do século XIX. Refletem uma determinada formação ideológica.
A literatura não fica imune a esses temas. O naturalismo, que incorpora
elementos das ciências naturais, torna-se dominante. As obras
naturalistas manifestam a objetividade, que é o ideal científico da época.
Diz Zola no prefácio à 2.ª edição de Thérèse Raquin:
Começa-se, espero, a compreender que minha finalidade foi, antes de
tudo, uma finalidade científica. (...) Apenas fiz sobre dois corpos vivos
o trabalho analítico que os cirurgiões fazem sobre os cadáveres.
A obra de Inglês de Sousa é um "romance de tese", ou seja, a
história da vida do Pé. Antônio de Morais serve de ilustração das idéias
dominantes na época. A personagem está submetida ao fatalismo da
queda, uma vez postas as condições que a determinavam. O texto
escolhido reproduz, com nitidez, os elementos da ideologia burguesa do
século XIX.
Enquanto Inglês de Sousa reproduz o discurso dominante, o Pé.
Antônio Vieira, opondo-se ao discurso escravagista de sua época, faz
uma candente denúncia do modo de produção escravista:
Os dolorosos (ouçam-me agora todos), os dolorosos são os que vos
pertencem a vós, como os gozosos aos que devendo-vos tratar como
irmãos, se chamam vossos senhores. Eles mandam e vós servis; eles
dormem, e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o
fruto de vossos trabalhos, e o que vós colheis deles é um trabalho
sobre outro. Não há trabalhos mais doces que os das vossas oficinas;
mas toda essa doçura para quem é? Sois como as abelhas, de quem
disse o poeta: S/c vos non vobis mellificatis apes (Assim como as
abelhas, vós produzis o mel, mas não para vós) (Sermões. Porto, Lello,
1959. p. 315. v. XI).
Esse texto é um fragmento de um sermão pregado na Bahia à
irmandade dos pretos de um engenho, no ano de 1633. É um sermão
sobre o rosário. O enunciador começa dizendo que os mistérios dolorosos
do rosário, que falam da paixão e morte de Cristo, pertencem aos
escravos, pois eles têm uma vida de sofrimentos, enquanto os mistérios
gozosos, que falam do nascimento e da infância, concernem aos
senhores, pois eles levam uma vida de deleites.
[65] A oposição entre os mistérios gozosos e dolorosos serve de
ponto de partida para a construção de um belo jogo de antíteses, recurso
básico de estruturação do texto, por meio do qual Vieira põe em
destaque a perversidade do sistema escravagista.
O trabalho dos escravos a quem Vieira pregava era doce, porque eles
eram trabalhadores de um engenho e, portanto, produziam açúcar. No
entanto, e aí está a candente denúncia contra o sistema escravista, o
produto do trabalho dos escravos pertence integralmente aos senhores,
que exploram, sem sequer o disfarce de uma troca igualitária de trabalho
por salário, sua força de trabalho.
O texto de Vieira, embora não manisfeste a visão de mundo
dominante, revela uma das visões de mundo presentes na formação
social em que vivia.
Num ensaio intitulado "MPB: uma análise ideológica", que aparece no
livro Saco de gatos, Walnice Nogueira Galvão analisa canções de Gilberto
Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Edu Lobo e Vandré, para. mostrar
que uma denúncia de uma realidade feia, existente nas músicas desses
compositores no final da década de 1960 e início da de 70, não
corresponde a nenhuma proposta de ação, a não ser cantar. Destinam-se
essas músicas a um público privilegiado que, diante da realidade que
conhece bem, busca ansioso uma mitologia, proposta pelos versos, que
não o leve a agir. Por isso, essas canções chamadas "participantes" são
escapistas e consoladoras, pois encobrem um "afago ao privilégio". A
relação do tema da "mudança" com as figuras "o dia que virá" (sozinho,
evidentemente), "o tempo da alegria", "a manhã que se anuncia", "a
canção" (que consola, enquanto o dia não vem; anuncia o dia que virá,
fará o dia vir, soluciona os males do mundo) revela o universo ideológico
de uma certa faixa da classe média intelectualizada que lastima o que
acontece e embala-se na certeza da mudança, nada fazendo para que a
situação mude. Deplorar a situação e constatar que nada pode ser feito
redunda num fatalismo conservador, bem próprio de certas camadas
médias da população.
19. A linguagem faz parte
da superestrutura?
[24]
Quando se estudam as determinações ideológicas que incidem sobre
a linguagem, pergunta-se se ela faz parte da superestrutura. Marr
respondeu afirmativamente a essa questão, enquanto Stálin deu a ela
uma resposta negativa. Analisemos o problema com vagar.
O marrismo
Nicolau Yakovlevitch Marr, lingüista soviético, procura, depois da
Revolução de 1917, aplicar à lingüística princípios marxistas. Desenvolve,
então, a teoria da monogênese da linguagem. Para ele, na comunidade
primitiva, os homens em geral comunicavam-se por gestos, mas os
feiticeiros emitiam certos grunhidos para convocar sua reunião. Esses
sinais são quatro: sal, ber,yôn, roch. Os feiticeiros, aos poucos, vão
utilizando sons como símbolos de idéias com a finalidade de manter seu
domínio sobre os outros homens. Esses sinais vão combinando-se em
construções dissilábicas e em seguida vão constituindo construções mais
complexas. Com a variação livre dos sons, os quatro elementos
primitivos vão aumentando.
[67] Marr determina os quatro elementos básicos, que deram origem
à linguagem, a partir de um método que denominou "paleontologia
lingüística". Esse método baseia-se em aproximações semânticas e
comparações fonéticas de vocábulos de diferentes línguas.
Um dos pontos básicos do marrismo é que a língua teria origem no
desejo de uma classe social dominar outra.
Para Marr, existe na língua, como em todos os fenômenos sociais, a
passagem do quantitativo (acumulação de transformações menores) ao
qualitativo (aparecimento de uma nova língua). Por isso, não fala ele em
evolução lingüística, mas em saltos lingüísticos que são verdadeiras
revoluções. A partir da tese do desenvolvimento lingüístico em saltos,
desenvolve o lingüista soviético a idéia dos estádios lingüísticos. A
concepção que subjaz a essa idéia é de que o desenvolvimento das
línguas é paralelo às mudanças das formações socioeconômicas. A uma
dada formação social corresponderia um determinado estádio de língua.
O progresso lingüístico seria, então, paralelo ao progresso social. As
línguas são classificadas em quatro grupos:
a) estádio primário: o chinês e algumas línguas africanas;
b) estádio secundário: o turco, o mongol e as línguas finougrianas;
c) estádio terciário: línguas camíticas e caucasianas;
d) estádio quaternário: línguas semíticas e indo-européias. Marr
afirma que, quando uma comunidade se afasta da corrente do progresso
geral, a língua sofre idêntico desvio, distanciando-se do grupo a que
pertencia. A partir desse momento, as alterações que ocorreram
permanecem, mesmo que a comunidade se integre novamente na
corrente do progresso.
Se as transformações na infra-estrutura produzem mudanças no
sistema lingüístico, ele é um elemento da superestrutura. Daí se pode
deduzir que as línguas têm um caráter de classe.
[68] Esses elementos da teoria marrista aqui apresentados não
provocam hoje senão sorrisos, pois são inteiramente fantasiosos. A tese
da monogênese da linguagem é uma hipótese totalmente inverificável.
Não se pode também comprovar a idéia de que os elementos primordiais
sejam quatro e de que sejam aqueles quatro descritos por Marr. Isso
tudo fica no reino da especulação e da fantasia. Mas há outros equívocos
mais sérios nas teses marristas.
Em primeiro lugar, Marr, em sua tese da monogênese da linguagem,
supõe que houvesse luta de classes na sociedade primitiva. No entanto,
segundo os clássicos do marxismo, a sociedade primitiva era uma
sociedade sem classes e, portanto, não poderia haver luta de classes
onde não havia classes. Por isso, a linguagem não pode ser uma
invenção de uma classe para garantir sua dominação.
Em segundo lugar, Marr admite a existência de uma consciência e de
um pensamento anteriores à linguagem. Afirma que a linguagem surge
de uma trama de feiticeiros. Marx e Engels, entretanto, dizem que "a
linguagem é tão antiga quanto a consciência". Engels, num texto
intitulado "O papel do trabalho na transformação do macaco em
homem", enfatiza que o trabalho é a categoria fundadora da história e
que, a partir do processo de trabalho, estabelecem-se relações sociais
que estão na base da origem da linguagem. Esta surge da necessidade
de comunicação. Trabalho e linguagem estão, por sua vez, associados no
desenvolvimento da capacidade de pensar, que, por seu turno,
aperfeiçoou a linguagem e os processos de trabalho. Como se observa,
Marr nem sequer conhecia muito bem os princípios do marxismo, que
pretende aplicar à lingüística.
A tese dos estádios lingüísticos pode também ser considerada
fantasiosa, pois, por exemplo, o sistema gramatical do chinês continua,
depois da Revolução, idêntico ao que era antes. Não passou do estádio
primário ao quaternário, não mudou [69] de isolante a flexivo. Não se
pode justificar esse fato dizendo que um sistema lingüístico retrocede,
quando a comunidade que o utiliza se afasta da corrente do progresso
mundial, mas não volta a progredir, mesmo que a comunidade volte a
integrar-se à corrente do progresso, pois aí entramos novamente no
terreno da pura especulação. Se um sistema regride, por que não
progride?
A idéia de progresso lingüístico, por outro lado, pode introduzir no
âmbito da lingüística certos julgamentos de valor em relação às
diferentes línguas, que poderiam levar a teses já banidas há muito
tempo. Lembremo-nos de que, durante séculos, vigorou a idéia de que
língua e raça estavam intimamente relacionadas, o que levava a postular
a existência de línguas superiores e inferiores homólogas às raças que
também eram classificadas em superiores e inferiores. Essa concepção
era um dos elementos que servia para justificar a "missão civilizatória"
dos povos colonialistas. A lingüística estrutural, ao demonstrar que todos
os sistemas lingüísticos são equivalentes e que qualquer língua pode
expressar qualquer conteúdo, baniu essas teses racistas do âmbito da
ciência da linguagem. Embora Marr não fale em vinculação da língua à
raça, sua tese do progresso lingüístico leva à concepção de línguas
superiores e inferiores.
Haveria outros argumentos para combater as teses marristas
apresentadas, mas esses são suficientes para demonstrar que elas não
estavam sequer de acordo com certos postulados basilares do marxismo.
Há que ressaltar, no entanto, que as concepções de Marr têm o mérito
de apontar para a necessidade de refletir sobre as relações entre
linguagem e formação social. A falha maior da teoria marrista é buscar
as relações entre linguagem e história no nível do sistema e não do
discurso.
[70] As posições de Stálin
Em 1950, o Pravda abre um debate sobre as teses de Marr. Durante
três meses, partidários e adversários do marris-mo participam da
polêmica. No dia 20 de junho, Stálin publica um artigo intitulado "A
propósito do marxismo em lingüística".
As duas teses centrais desse artigo são: a língua não é um fenômeno
de superestrutura; ela não tem caráter de classe.
Para fazer essas afirmações, Stálin considera a língua uma gramática
e um fundo léxico comum. Nesse sentido não há objeção às teses
stalinistas. Diz ele que a língua difere radicalmente da superestrutura.
Comprova essa afirmação com o exemplo da sociedade russa e da língua
russa. Com a Revolução, a base econômica capitalista da Rússia foi
liquidada e, em seu lugar, foi erigida uma base econômica nova,
socialista. Em conseqüência, a superestrutura (instituições políticas,
jurídicas etc.) correspondente à base capitalista foi substituída por outra,
adequada à base socialista. Apesar dessas mudanças, a língua russa
permanece idêntica ao que era antes da Revolução. Stálin afirma ainda
que não há línguas de classe, mas línguas nacionais comuns a todo um
povo. Se houvesse línguas de classe, haveria, por exemplo, uma
gramática burguesa e uma gramática proletária, o que evidentemente
não existe.
Se é verdade que a língua não tem caráter de classe nem é um
fenômeno de superestrutura, as posições de Stálin não esgotam o
problema das relações entre linguagem e história. Nas análises desse
fenômeno, Stálin leva em conta apenas a língua, o sistema. Ora,
sabemos que a língua não é o único elemento da complexa realidade do
fenômeno lingüístico.
Stálin não leva em consideração fatos históricos que não intervém
diretamente na determinação de categorias do sistema lingüístico, mas
que interferem seja no uso que se faz de determinados aspectos da
linguagem, seja na evolução mais ou menos [71] rápida de uma língua.
Assim, não se preocupa com o fato de que, por exemplo, os idiomas
românicos surgem no bojo de um processo de desagregação do latim,
que ocorre quando soçobram as bases econômicas do Império Romano.
O fator econômico atua no sentido de favorecer uma mais rápida
mudança do latim, mas não determina como vão dar-se as
transformações de sons, categorias morfológicas e estruturas sintáticas.
Por isso, esse fator não determina diretamente o sistema lingüístico, mas
acelera as mudanças devidas a causas internas ao próprio sistema.
A idéia da homogeneidade lingüística não permite apreender a
multifacetada realidade da linguagem, pois descarta a importância da
variação dialetal, das diferentes normas existentes. Stálin não se
preocupa com a distinção entre o sistema lingüístico, relativamente
autônomo em relação às formações sociais, e a norma única ensinada na
escola, produto de uma legitimação social que faz que determinados usos
sejam vistos como a única maneira correta e elegante de falar. Para
Stálin, a língua é um dos elementos determinantes da nacionalidade,
devendo, portanto, ser combatido tudo o que contrariar a unidade
lingüística, pois assim se lutará contra a desagregação nacional. A
concepção de língua nacional aparece com o surgimento dos Estados
modernos. Foi depois da Revolução Francesa que os dialetos regionais
foram substituídos pelo dialeto de Paris e que o francês, dialeto da região
de Île-de-France, passou a ser considerado língua nacional. É certo que a
unificação lingüística da França já havia começado no período dos
monarcas absolutistas por meio da administração e do exército. Cabe
lembrar, no entanto, que a unificação só tem início quando começa a ruir
o modo de produção feudal. A Itália só termina seu processo de
unificação política em 1870 e apenas então aparece aí uma língua
nacional, que teve como fundamento o dialeto florentino (toscano). Está
vinculado a essas razões o fato de que a Reforma Protestante
proporcionou a tradução da Bíblia para os diferentes idiomas [72]
modernos, o que chegou a fazer que línguas como o rético e o romeno
passassem a ter escrita.
A concepção homogeneizadora da língua e a tese de que o idioma é
um dos elementos constitutivos da nacionalidade derivam dos ideais do
nacionalismo burguês. Data do início da hegemonia burguesa a
preocupação com o que Marcellesi e Gardin chamam "discurso moral"
sobre a língua. Stálin utiliza-se desse discurso, quando fala em
"enriquecimento" dos idiomas nacionais, para transformá-los em línguas
de cultura, e em "homogeneização do idioma com vistas à unificação
nacional". A política lingüística do Estado espanhol, durante o governo de
Franco, quando proibia o ensino e o uso oficial do basco, do catalão e do
galego, tinha como objetivo promover a unificação nacional, de que
falava Stálin.
Como Stálin vê o problema da linguagem de maneira muito restrita,
uma vez que leva em conta apenas a dimensão sistêmica (a língua), não
se ocupando do discurso, não pode perceber as determinações históricas
que atuam sobre a linguagem.
O lugar da linguagem
A língua em si não é um fenômeno que tenha um caráter de classe,
uma vez que ela existia nas sociedades sem classes, existe nas
formações sociais com classe e continuará existindo quando as classes
forem abolidas. No entanto, as classes usam a linguagem para transmitir
suas representações ideológicas. Ela também não é propriamente um
fenômeno de superestrutura, mas é o veículo das representações
ideológicas. No entanto, as formações discursivas, na medida em que
constituem a materialização das formações ideológicas, são fenômenos
de superestrutura. Por isso, a uma alteração das relações sociais de
produção pode acabar por corresponder uma mudança nas formações
ideológicas e, por conseguinte, nas formações discursivas. [73]
Entretanto, essa transformação não provoca uma mudança concomitante
no sistema lingüístico, pois este é apenas o instrumento de
materialização das visões de mundo.
É preciso não entender as formações ideológicas e, portanto, as
formações discursivas como mero reflexo das relações sociais. Todos os
principais teóricos do materialismo procuraram afastar essa visão
mecanicista. Entretanto, como o discurso é um produto histórico e social,
as transformações na estrutura social podem acarretar mudanças
discursivas.
Não existem representações ideológicas senão materializadas na
linguagem. Por isso, excetuadas as formações discursivas, a linguagem
não faz parte da superestrutura, mas é o seu suporte, é o instrumento
que permite que as representações ganhem materialidade.
Se entendermos que a linguagem, ao mesmo tempo que permeia
toda a superestrutura, constitui formações discursivas que pertencem à
ordem superestrutural, não incidiremos no equívoco de dar uma resposta
exclusivamente afirmativa, como Marr, ou unicamente negativa, como
Stálin, à questão das relações entre linguagem e formações sociais. A
primeira função da linguagem não é ser representação do pensamento
ou instrumento de comunicação, mas expressão da vida real.
Nos domínios da linguagem, parece não existirem afirmações apenas
positivas ou só negativas, mas afirmações complexas, simultaneamente
positivas e negativas. Quando nos interrogamos sobre as relações que a
20. Comunicar é agir
[74]
Quando um enunciador comunica alguma coisa, tem em vista agir no
mundo. Ao exercer seu fazer informativo, produz um sentido com a
finalidade de influir sobre os outros. Deseja que o enunciatário creia no
que ele lhe diz, faça alguma coisa, mude de comportamento ou de
opinião etc. Ao comunicar, age no sentido de fazer-fazer. Entretanto,
mesmo que não pretenda que o destinatário aja, ao fazê-lo saber alguma
coisa, realiza uma ação, pois torna o outro detentor de um certo saber.
Comunicar é também agir num sentido mais amplo. Quando um
enunciador reproduz em seu discurso elementos da formação discursiva
dominante, de certa forma, contribui «ara reforçar as estruturas de
dominação. Se se vale de outras formações discursivas, ajuda a colocar
em xeque as estruturas sociais. No entanto, pode-se estar em oposição
às estruturas econômico-sociais de uma maneira reacionária, em que se
sonha fazer voltar um mundo que não mais existe, ou de uma maneira
progressista, em que se deseja criar um mundo novo. Sem pretender
que o discurso possa transformar o mundo, pode-se dizer que a
linguagem pode ser instrumento de libertação ou de opressão, de
mudança ou de conservação.
Nas últimas páginas, expusemos as seguintes idéias:
[75] a) as formações discursivas, constituídas por um conjunto de
temas e de figuras, materializam as formações ideológicas;
b) essas formações discursivas são fenômenos de superestrutura,
embora a linguagem em geral e a língua em particular sejam apenas o
instrumento de materialização das representações ideológicas;
c) o uso de um determinado discurso é, de certa forma, uma ação no
mundo.
Parece-nos que essas três idéias estão subjacentes à primeira página
de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Marx:
Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução
de 1789-1814 vestiu-se alternadamente como a República
Romana e o Império Romano, e a Revolução de 1848 não soube
fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição
revolucionária de 1793-1795. (...) Camille Desmoulins, Danton,
Robespierre, Saint-Just, Napoleão, os heróis, os partidos e as
massas da velha Revolução Francesa desempenharam a tarefa de
sua época, a tarefa de libertar e instaurar a moderna sociedade
burguesa, em trajes romanos e com frases romanas. (...) E nas
tradições classicamente austeras da República Romana, seus
gladiadores encontraram os ideais e as formas de arte, as ilusões
de que necessitavam para esconder de si mesmos as limitações
burguesas do conteúdo de suas lutas e manterem seu entusiasmo
no alto nível da grande tragédia histórica. Do mesmo modo, em
outro estágio do desenvolvimento, um século antes, Cromwell e o
povo inglês haviam tomado emprestado a linguagem, as paixões
e as ilusões do Velho Testamento para sua revolução burguesa.
Uma vez alcançado o objetivo real, uma vez realizada a
transformação burguesa, Lock suplantou Habacuc.
21. Conclusão
[76]
A linguagem é, ao mesmo tempo, autônoma em relação às formações
sociais e determinada por fatores ideológicos. Por isso, o lingüista deve
distinguir níveis e dimensões em que existe relativa autonomia e níveis e
dimensões que sofrem coerções ideológicas. Em nosso ponto de vista, a
determinação ideológica revela-se, em toda sua plenitude, no
componente semântico do discurso. As formações ideológicas presentes
numa dada formação social determinam formações discursivas. Estas
materializam aquelas. Estabelecem um conjunto de temas e de figuras
com que o "indivíduo" fala do mundo exterior e interior.
As coerções ideológicas constituem, assim, um elemento pré-
semântico que determina o componente semântico. O lingüista que vê a
linguagem como um fenômeno totalmente autônomo em relação às
formações sociais apega-se a um formalismo que não percebe a razão
última dos significados discursivos. O estudioso da linguagem que só se
preocupa em tomar os significados e relacioná-los com este ou aquele
aspecto da realidade social, sem considerar a relativa autonomia da
linguagem, aferra-se a um ideologismo, que desconhece as
especificidades do fenômeno a ser analisado. Os estudos lingüísticos
devem fugir de duas ilusões: a total autonomia da linguagem e sua
redução à ideologia.
[77] A análise do discurso vai, à medida que estuda os elementos
discursivos, montando por inferência a visão de mundo dos sujeitos
inscritos no discurso. Depois, mostra que é que determinou aquela visão
nele revelada.
Tito Lívio, na sua História romana (II, 32, 3-12), conta que, numa
revolta da plebe, no século I a. C., Menênio Agripa procurava pacificar os
revoltosos, mostrando que a sociedade precisa ser solidária como os
órgãos do corpo humano, pois o estômago precisa das mãos, da boca e
dos dentes, assim como estes necessitam daquele. Dizia o tribuno da
plebe que, um dia, as mãos e a boca se rebelaram e resolveram não
mais alimentar o estômago e, assim, todo o corpo ficou doente. Concluía
afirmando que os órgãos devem ser solidários, cada um deles deve
executar a função que a natureza lhe reservou, senão todo o corpo ficará
arruinado. Diante desse texto, a análise não pode simplesmente anotar a
metáfora retirada da fisiologia para explicar a ordem social, mas deve
revelar que essa metáfora traduz uma concepção funcionalista da
sociedade que, ao naturalizar a ordem social, serve à dominação da
plebe pelo patriciado.
A concepção do discurso como fenômeno, ao mesmo tempo
autônomo e determinado, obriga a análise a voltar-se para dentro e para
fora, para o texto e para o contexto, para os mecanismos internos de
agenciamento de sentido e para a formação discursiva que governa o
texto. A análise, embora não negue a relativa autonomia do discurso,
não o vê como uma autarcia, pois a chave para sua inteligibilidade última
não está nele mesmo, mas na formação ideológica que o governa. As
determinações últimas do texto estão nas relações de produção.
O itinerário pelo discurso não se esgota no interior do próprio
discurso, mas se projeta na história. É preciso levar em conta o
intertexto para ler o texto.
A análise do discurso deve desfazer a ilusão idealista de que o
homem é senhor absoluto de seu discurso. Ele é antes [78] servo da
palavra, uma vez que temas, figuras, valores, juízos etc. provêm das
visões de mundo existentes na formação social.
Talvez não sejam apenas as coerções ideológicas que determinam o
discurso. Afinal, a linguagem é um fenômeno extremamente complexo e
multifacetado. É possível pensar que outras coerções pré-semânticas
incidem sobre os elementos da semântica discursiva: coerções
pulsionais, arquétipos míticos etc. É evidente que todas essas
determinações recaem sobre os sujeitos inscritos no discurso. Não
podemos, por exemplo, quando falamos em coerções pulsionais, voltar a
certas análises psicológicas ingênuas facilmente contestáveis. Tudo isso,
porém, é matéria de outros trabalhos.
A reflexão sobre a linguagem desafia os homens há milênios, porque
dela se pode dizer o que dizia Riobaldo, no Grande sertão: veredas:
Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é
uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de
muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de
aumentar a cabeça para o total.
22. Vocabulário critico
[79]
Aliteração: é a recorrência do mesmo fonema consonântico ou de
fonemas consonânticos que possuem o mesmo traço fônico (por
exemplo, a oclusividade).
"No ar cerúleo da tarde, (...) fluíam fumos diáfanos fundindo-se no
espaço nevoado." (Coelho Neto)
Assonância: é a recorrência do mesmo fonema vocálico. "Batem
pausadamente as patas compassadas." (Olavo Bilac)
Conteúdo: é o plano do significado veiculado por um plano de expressão.
O conceito "vegetal de grande porte com caule lenhoso" é o
conteúdo manifestado pelo plano de expressão "árvore".
Discurso: é um dos patamares da constituição do significado, em que um
enunciador reveste formas mais abstratas com conteúdos mais
concretos. Por exemplo, nas fotonovelas há sempre a mesma
estrutura abstrata: X ama Y, Z é obstáculo ao amor de X e Y, X e Y
vencem o obstáculo etc. O nível discursivo é que reveste, de
maneira diferente, essa estrutura: X é uma doméstica que trabalha
na casa de Y, filho de um rico industrial; a posição social de ambos
é o obstáculo ao seu amor etc. O discurso varia, enquanto a
estrutura profunda permanece inalterada nas fotonovelas. O
discurso é a [80] atualização de uma competência discursiva do
falante, isto é, de uma capacidade de estruturar discursos. A nosso
ver, é no discurso que se manifestam, com toda a plenitude, as
coerções ideológicas que incidem sobre a linguagem.
Enunciação: é o ato por meio do qual o falante produz enunciados.
Enunciado: é toda combinatória de elementos lingüísticos, provida de
sentido.
Enunciador. é o destinador da enunciação (o falante). Pode ele estar
implícito no enunciado ("À noite, todos os gatos são pardos") ou
inscrito em seu interior (Eu acho que todos os gatos, à noite, são
pardos).
Enunciatário: é o destinatário da enunciação (o ouvinte). Também ele
pode ou não estar inscrito no enunciado.
Expressão: é o veículo do significado, seu suporte, o elemento "sensível"
que o manifesta. Assim, por exemplo, a imagem acústica "descer"
veicula o significado "movimento com deslocamento para baixo".
Fala: é a atividade psico-físico-fisiológica individual de atualização do
discurso.
Figura: é um elemento do plano discursivo que remete a um dado
elemento do mundo natural, criando, assim, no discurso, uma
ilusão referencial, ou seja, uma simulação do mundo natural
(exemplos: lobo, cordeiro, regato).
Fonema: q um som da fala que tem uma função distintiva, ou seja, em
oposição a outro som colocado em idêntico ponto da cadeia da fala
serve para distinguir significados. Os sons /m/ e /s/ são dois
fonemas porque eles opõem significados como "manha" e "sanha".
O nível fonológico é o nível em que se dá a combinação dos
fonemas para formar unidades significativas.
[81]Formação discursiva: é um conjunto de temas e figuras que
materializam uma dada formação ideológica presente numa
determinada formação social.
Formação ideológica: é uma visão de mundo, um conjunto de
representações que explicam as condições de existência. Como as
visões de mundo estão vinculadas às classes sociais, há, em
princípio, numa formação social, tantas visões de mundo quantas
forem as classes aí existentes. No entanto, a visão de mundo
dominante é a da classe dominante.
Imanência: é, em oposição ao plano de manifestação, o plano de
conteúdo de um discurso.
Infra-estrutura: é a estrutura econômica da sociedade. Compreende as
forças produtivas e as relações sociais de produção, isto é, as
relações que se estabelecem entre os proprietários dos meios de
produção e os produtores diretos.
Intertexto: é o conjunto de discursos a que um discurso remete e no
interior do qual ele ganha seu significado pleno.
Lexema: é o elemento lingüístico provido de um significado externo, ou
seja, dado pelo dicionário e não pela gramática. Assim, mesa é um
lexema. O lexema não se confunde, porém, com a palavra, pois,
num vocábulo verbal como "mergulhássemos", temos quatro
elementos lingüísticos dotados de significado: mos indica a
primeira pessoa do plural; sse, o pretérito imperfeito do
subjuntivo; à,\a primeira conjugação; mergulh, o movimento que
se faz na água com deslocamento para baixo. Só o último
elemento é um lexema, pois o significado dos outros três é dado
pela gramática. O lexema fala do mundo extralingüístico, isto é,
das coisas, dos acontecimentos, das sensações, das volições etc.
Léxico: é o conjunto dos lexemas de uma língua, ou seja, seu dicionário.
Manifestação: é a união de um plano de conteúdo com um plano de
expressão. O plano de expressão pode ser de natureza [82]
variada: verbal ou não-verbal (pictórico, gestual etc.). A
manifestação é a veiculação de um discurso por meio de um plano
de expressão.
Morfologia: embora se negue um estatuto teórico à morfologia, pode-se
dizer que, para uma língua como o português, ela é o nível em que
as unidades lingüísticas mínimas dotadas de significado
(gramemos, que são unidades lingüísticas providas de significação
gramatical, como gênero, número, tempo etc., ou lexemas (ver
acima)) se combinam para formar palavras.
Norma: é um conjunto de realizações lingüísticas constantes e repetidas,
de caráter sociocultural. Em São Paulo, por exemplo, a preposição
em coloca-se entre o verbo ser e um numerai cardinal. Diz-se
"somos em cinco" e não "somos cinco", como se diz no norte do
país. O uso dessa preposição é um italianismo que passou a fazer
parte da norma popular de São Paulo. A norma é, então, aquilo
que na fala corresponde a um uso geral numa dada região, num
determinado segmento da população.
Percurso figurativo: é um encadeamento de figuras que manifesta um
dado tema. Se num discurso fôssemos manifestar o tema do
"bucolismo", poderíamos usar, por exemplo, as figuras "carneiros",
"regato de límpidas águas", "relva verde" etc. Esse conjunto
encadeado de figuras correlato a um certo tema é o percurso
figurativo.
Percurso temático: é um encadeamento de temas que podem ser
resumidos num tema mais geral. No discurso político oficial pós-
64, toda a história do movimento militar de 1964 é um
encadeamento de temas (reordenar, reorganizar, repor nos trilhos,
afastar a ameaça comunista) que podem ser resumidos no tema
mais geral "salvação da pátria".
Regras combinatórias: são princípios que comandam a combinatória dos
elementos lingüísticos entre si para formar [83] unidades cada vez
mais complexas. No nível morfológico, por exemplo, o morfema
adverbial de modo "mente" só se combina com formas adjetivas
femininas (Cf. redondamente).
Semântica: é o investimento de conteúdo que preenche o conjunto de
relações sintáticas abstratas. Por exemplo, a uma estrutura
sintática tal que artigo + nome + verbo + artigo + nome podem
corresponder investimentos semânticos como a menina rega a
planta, o jardineiro colhe a rosa.
Sintaxe: é o conjunto de princípios que presidem à combinató-ria dos
elementos lingüísticos com vistas à construção da frase ou à
combinação das frases com a finalidade de produzir o discurso. A
sintaxe é de natureza conceptual, ou seja, produz também
significados.
Sistema: é o conjunto de elementos lingüísticos que possui um arranjo
interno subordinado a uma série de princípios, ou seja, uma
estrutura. Esta determina a organização dos elementos do sistema
e suas combinações possíveis.
Superestrutura: é o conjunto de instituições jurídico-políticas (Estado,
direito etc.) e as "formas de consciência social" que correspondem
a uma dada infra-estrutura. E preciso lembrar, no entanto, que
essa correspondência não é mecânica, mas a superestrutura tem
uma relativa autonomia em relação à infra-estrutura.
Tema: é uni elemento da semântica discursiva que não corresponde a
nenhum elemento do mundo natural, mas antes a categorias que o
ordenam. Por exemplo, solidariedade, honra, vulgaridade,
exploração.
Texto: é a manifestação de um discurso por meio de um plano de
expressão.
23. Bibliografia comentada
[85]
Embora a bibliografia disponível em língua estrangeira seja um pouco
mais vasta, vamo-nos limitar a indicar alguns títulos em português.
BAKHTIN, Mikhail (Voloshinov). Marxismo e filosofia da linguagem. São
Paulo, Hucitec, 1979.
O autor busca desenvolver uma filosofia da linguagem de base
marxista. Criticando ao mesmo tempo as duas orientações do
pensamento lingüístico contemporâneo, o sub-jetivismo idealista e
o objetivismo abstrato, Bakhtin mostra o caráter ideológico do
signo, que reflete e refrata a realidade.
Para o autor, o signo tem um caráter dialético, pois nele se
confrontam significados de valor contraditório. Elerê uma "arena
onde se desenvolve a luta de classes". Desenvolve Bakhtin a tese
de que a consciência é social e não individual, uma vez que é
constituída pelo discurso. Na última parte do livro, estudando o
problema do discurso direto, indireto e indireto livre, esboça os
princípios para uma história das formas de enunciação.
CASSIRER, Ernst. Antropologia filosófica: ensaio sobre o homem:
introdução a uma filosofia da cultura humana. 2. ed. São Paulo,
Mestre Jou, 1977.
[85] O autor, ao pretender elaborar uma filosofia da cultura,
discute, do ponto de vista do idealismo filosófico, num dos
capítulos, o papel ativo da linguagem na constituição de uma
imagem do mundo.
FIORIN, José Luiz. O regime de 64: discurso e ideologia. São Paulo, Atual,
1987.
É um estudo do discurso político do regime implantado no país
após o golpe de 1964, em que se mostra a vinculação dos seus
temas e de suas figuras à formação ideológica de um certo
segmento da classe média, atrelado ao projeto político da
burguesia.
GNERRE, Maurizio. Linguagem e poder. In: Subsídios à proposta curricular
de língua portuguesa para o 2° grau: variação lingüística e norma
pedagógica. São Paulo, SE/ CENP/Unicamp, 1978.
O texto analisa o papel da linguagem como instrumento de poder,
mostrando que uma variedade lingüística "vale" o que "valem" na
sociedade seus usuários. A partir daí, o autor analisa o processo
histórico de legitimação de uma norma.
GREIMAS, A. J. & courtés, J. Dicionário de semiótica. São Paulo, Cultrix,
1983.
Embora os autores não tratem do problema abordado neste
ensaio, apresentam uma teoria do engendramento do sentido.
Segundo eles, o discurso constitui-se por meio de um percurso
gerativo que vai do mais abstrato e geral ao mais concreto e
particular. Cada um dos patamares do percurso contém um
componente sintático e um semântico. Trata-se de um livro de
difícil leitura, pois é construído sob a forma de um dicionário.
LEFEBVRE, Henri. A linguagem e a sociedade. Lisboa, Ulisseia, s.d.
[86] Discute o problema da linguagem de um ponto de vista
materialista, mostrando sua complexidade e seus paradoxos.
MARCELLESI, J. B. & gardin, B. Introdução à sociolingüística. Lisboa,
Aster, 1975.
Trata-se de um manual que resenha a obra dos principais autores
da sociolingüística de inspiração marxista ou não. O interessante,
neste livro, é que o autor expõe as concepções dos principais
clássicos do marxismo sobre a linguagem. A exposição é sucinta
e, muitas vezes, incompleta, mas permite que se tenha uma certa
visão do que pensavam autores como Marx, Lenin e Engels a
respeito da linguagem.
ROBIN, Régine. História e lingüística. São Paulo, Cultrix, 1977.
Percorrendo o trabalho de alguns historiadores e uma série de
métodos de abordagem de texto, a autora discute os problemas
da relação História/Lingüística, mostrando o descompasso
conceituai entre essas duas disciplinas e os pontos de encontro
possíveis.
SCHAFF, Adam. Linguagem e conhecimento. Coimbra, Almedina, 1974.
O autor discute, de um ponto de vista marxista, as relações entre
linguagem e pensamento, linguagem e consciência, linguagem e
realidade. Mostra que a linguagem é determinada pela prática
social e, depois de constituída, exerce um papel ativo na
determinação da visão de mundo de cada homem pertencente a
uma dada comunidade. No entanto, embora o livro tenha
reflexões extremamente interessantes, não hierarquiza os
elementos que exercem determinação sobre a linguagem, não
estabelecendo, por conseguinte, as sucessivas mediações entre a
prática social e a língua. Dessa forma, não se estabelece o que
determina a linguagem em última instância. Além disso,
conquanto fale sempre em linguagem, o filósofo polonês entende
a [87] linguagem como língua. Isso tem importantes
conseqüências, pois afasta da reflexão o discurso, o que leva à
impossibilidade de explicar determinadas categorias lingüísticas.
Por outro lado, considerar a linguagem como língua implica não
perceber as relações entre linguagem e classes sociais, pois a
língua é um sistema comum a todos os falantes e as co-variações
sociais não estão no âmbito sistêmico. É por isso que o filósofo
não trata das relações entre linguagem e ideologia.
SEIXAS, Cid. O espelho de Narciso: linguagem, cultura e ideologia no
idealismo e no marxismo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1981.
O livro analisa como diferentes autores idealistas e marxistas
concebem a linguagem, a cultura e a ideologia.
VYGOTSKY, Lev Semenovich. Pensamento e linguagem. Lisboa, Antídoto,
1979.
O autor analisa as relações entre linguagem e pensamento.
Mostra que o desenvolvimento do pensamento, entendido como
"orientação no mundo", é anterior ao desenvolvimento da
linguagem, tanto na filogênese quanto na ontogênese. O
pensamento e a linguagem desenvolvem-se segundo trajetórias
distintas, mas em certo ponto do desenvolvimento filogenético e