josé mário branco - fmi

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FMI   José Mário Branco Vou, vou-vos mostrar mais um pedaço da minha vida, um pedaço um pouco especial, trata-se de um texto que foi escrito, assim, de um só jorro, numa noite de Fevereiro de 79, e que talvez tenha um ou outro pormenor que já não é muito actual. Eu vou-vos dar o texto tal e qual como eu o escrevi nessa altura, sem ter modificado nada, por isso vos peço que não se deixem distrair por esses pormenores que possam ser já não muito actuais e que isso não contribua para desviar a vossa atenção do que me parece s er o essencial neste texto. Chama-se FMI. Quer dizer: Fundo Monetário Internacional. Não sei porque é que se riem, é uma organização democrática dos países t odos, que se reúnem, como as pessoas, em torno de uma mesa para disc utir os seus assuntos, e no fim tomar as decisões que interessam a todos…  É o internacionalismo monetário! FMI Cachucho não é coisa que me traga a mim Mais novidade do que lagostim Nariz que reconhece o cheiro do pilim Distingue bem o Mortimore do Meirim A produtividade, ora aí está, quer dizer Há tanto nesta terra que ainda está por fazer Entrar por aí a dentro, analisar, e então Do meu „attaché-casesai a solução!  FMI Não há graça que não faça o FMI FMI O bombástico de plástico para si FMI Não há força que retorça o FMI Discreto e ordenado mas nem por isso fraco Eis a imagem „on the rocksdo cancro do tabaco  Enfio uma gravata em cada fato-macaco E meto o pessoal todo no mesmo saco A produtividade, ora aí está, quer dizer Não ando aqui a brincar, não há tempo a perder Batendo o pé na casa, espanador na mão É só desinfectar em superprodução! FMI Não há truque que não lucre ao FMI FMI O heróico paranóico harakiri FMI Panegírico pró lírico daqui Palavras, palavras, palavras e não só Palavras para si, palavras para dó A contas com o nada que swingar o sol-e-dó Depois a criadagem lava o pé e li mpa o pó A produtividade, ora nem mais, celulazinhas cinzentas Sempre atentas

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decidem tudo por ti:- se hás-de construir barcos para a Polónia ou cabeças de alfinete para a Suécia,- se hás-de plantar tomate para o Canada ou eucaliptos para o Japão,descansa que eles tratam disso,- se hás-de comer bacalhau só nos anos bissextos ou se hás-de beber vinho sintético de

Alguidares-de-Baixo!Descansa, não penses em mais nada,que até neste país de pelintras se acha normal haver mãos desempregadas e se achainevitável haver terras por cultivar!

Descontrai baby, come on descontrai,afinfa-lhe o Bruce Lee, afinfa-lhe a macrobiótica, o biorritmo, o horoscópio, dois ou trêsovniologistas, um gigante da ilha de Páscoae uma Grace do Mónaco de vez em quando para dar as boas festas às criancinhas!

Piramiza filho, piramiza,antes que os chatos fujam todos para o Egipto,que assim é que tu te fazes um homenzinhoe até já pagas multa se não fores ao recenseamento.Pois pá, isto é um país de analfabetos, pá!

Dá-lhe no Travolta,dá-lhe no discossáunde,dá-lhe no pop-chula,pop-chula pop-chula,yeah yeah, jo-ta-pi-men-ta-for-e-ver!

Quanto menos souberes a quantas andas melhor para ti!Não te chega para o bife? – antes no talho do que na farmácia!Não te chega para a farmácia? – antes na farmácia do que no tribunal!Não te chega para o tribunal? – antes a multa do que a morte!Não te chega para o cangalheiro? – antes para a cova do que para não sei quem que há-de vir,cabrões de vindouros!

Hã? Sempre a merda do futuro! E eu que me quilhe!

Pois, pá!Sempre a merda do futuro, a merda do futuro, e eu hã?Que é que eu ando aqui a fazer?Digam lá! e eu? José Mário Branco, 37 anos,isto é que é uma porra!anda aqui um gajo cheio de boas intenções,a pregar aos peixinhos,a arriscar o pêlo,e depois?É só porrada e mal-viver, é?“O menino é mal criado”, “o menino é pequeno- burguês”, “o menino pertence a uma

classe sem futuro histórico”…

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Eu sou parvo ou quê?Quero ser feliz, porra,quero ser feliz agora,que se foda o futuro,que se foda o progresso,

mais vale só do que mal acompanhado!Vá: mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa, filhos da puta de progressistasdo caralho da revolução que vos foda a todos!

Deixem-me em paz, porra,deixem-me em paz e sossego,não me emprenhem mais pelos ouvidos, caralho,não há paciência, não há paciência,deixem-me em paz caralho,saiam daqui,deixem-me sozinho só um minuto,vão vender jornais e governos e greves e sindicatos e policias e generais para o raio quevos parta!

Deixem-me sozinho, filhos da puta,deixem só um bocadinho,deixem-me só para sempre,tratem da vossa vida que eu trato da minha, pronto, já chega,sossego porra, silêncio porra,deixem-me só, deixem-me só, deixem-me só,deixem-me morrer descansado.

Eu quero lá saber do Artur Agostinho e do Humberto Delgado,eu quero lá saber do Benfica e do bispo do Porto,eu quero se lixe o 13 de Maio e o 5 de Outubro e o Melo Antunes e a rainha deInglaterra e o Santiago Carrilho e a Vera Lagoa,deixem-me só porra!rua!larguem-me!desòpila o fígado,arreda!

t‟arrenego Satanás! filhos da puta!

Eu quero morrer sozinho ouviram?Eu quero morrer,eu quero que se foda o FMI,eu quero lá saber do FMI,eu quero que o FMI se foda,eu quero lá saber que o FMI me foda a mim,eu vou mas é votar no Pinheiro de Azevedo se ele tornar a ir para o hospital, pronto,bardamerda o FMI,

o FMI é só um pretexto vosso seus cabrões,o FMI não existe,

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o FMI nunca aterrou na Portela coisa nenhuma,o FMI é uma finta vossa para virem para aqui com esse paleio,rua!desandem daqui para fora!a culpa é vossa!

a culpa é vossa!a culpa é vossa!a culpa é vossa!a culpa é vossa!a culpa é vossa!

oh mãe, oh mãe, oh mãe, ohmãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe…

(…) Mãe, eu quero ficar sozinho… Mãe, não quero pensar mais… Mãe, eu quero morrer mãe.Eu quero desnascer,ir-me embora, sem sequer ter de me ir embora.Mãe, por favor!Tudo menos a casa em vez de mim,útero maldito que não sou senão este tempo que decorre entre fugir de me encontrar eme encontrar fugindo… de quê mãe?

Diz, são coisas que se me perguntem?

Não pode haver razão para tanto sofrimento.

E se inventássemos o mar de volta?E se inventássemos partir, para regressar?Partir, e aí, nessa viajem, ressuscitar da morte às arrecuas que me deste.Partida para ganhar,partida de acordar, abrir os olhos,numa ânsia colectiva de tudo fecundar,terra, mar, mãe…

Lembrar como o mar nos ensinava a sonhar alto,lembrar – nota a nota – o canto das sereias,lembrar o “depois do adeus”, e o frágil e ingénuo cravo da Rua do Arsenal,lembrar cada lágrima,cada abraço,cada morte,cada traição,partir aqui,com a ciência toda do passado, partir, aqui, para ficar…

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Assim mesmo,como entrevi um dia,a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila,o azul dos operários da Lisnave a desfilar,gritando ódio apenas ao vazio,

exército de amor e capacetes.Assim mesmo, na Praça de Londres, o soldado lhes falou:- Olá camaradas, somos trabalhadores, e eles não conseguiram fazer-nos esquecer; aquiestá a minha arma para vos servir.

Assim mesmo,por trás das colinas onde o verde está à espera,se levantam antiquíssimos rumores,as festas e os suores,os bombos de Lavacolhos,assim mesmo senti um dia,a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila,o bater inexorável dos corações produtores, os tambores.- De quem é o carvalhal?- É nosso!

Assim te quero cantar, mar antigo a que regresso.Neste cais está arrimado o barco-sonho em que voltei.Neste cais eu encontrei a margem do outro lado, Grandola Vila Morena.

Diz lá: valeu a pena a travessia? Valeu pois.

Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe.No fundo deste mar, encontrareis tesouros recuperados, de mim que estou a chegar dolado de lá para ir convosco.Tesouros infindáveis que vos trago de longe e que são vossos,o meu canto e a palavra.O meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda nãonasceram.A minha arte é estar aqui convoscoe ser-vos alimento e companhia

na viagem para estar aquide vez.

Sou português,pequeno-burguês de origem,filho de professores primários,artista de variedades,compositor popular,aprendiz de feiticeiro.Faltam-me dentes.

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Sou o Zé Mário Branco,37 anos, do Porto,muito mais vivo que morto.

Contai com isto de mim

para cantar e para o resto.