josé saramago - claraboia

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CLARABOIA

Obras do autor publicadas pela Companhia das Letras O ano da morte de Ricardo Reis O ano de 1993 A bagagem do viajante O caderno Cadernos de Lanzarote Cadernos de Lanzarote II Caim A caverna Claraboia O conto da ilha desconhecida Don Giovanni ou O dissoluto absolvido Ensaio sobre a cegueira Ensaio sobre a lucidez O Evangelho segundo Jesus Cristo Histria do cerco de Lisboa O homem duplicado In Nomine Dei As intermitncias da morte A jangada de pedra A maior flor do mundo Manual de pintura e caligrafia Objecto quase As palavras de Saramago (org. Fernando Gmez Aguilera) As pequenas memrias Que farei com este livro? O silncio da gua Todos os nomes Viagem a Portugal A viagem do elefante

JOS SARAMAGO

CLARABOIA Romance

Copyright 2011 by Fundao Jos Saramago

A editora manteve a grafia vigente em Portugal, observando as regras do Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990. Claraboia, cuja redao Jos Saramago terminou a 5 de janeiro de 1953, consiste num datiloscrito de 319 pginas, assinado com o pseudnimo de Honorato. A presente edio reproduz fielmente o original. Capa: Hlio de Almeida sobre La balade du petit carr V,(1973), gravura (goiva) em cores, de Arthur Luiz Piza, 37,9 x 28,3 cm. Coleo Museu de Arte Moderna de So Paulo. Foto Rmulo Fialdini. Reviso: Carmen S. da Costa Thas Totino Richter

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip) (Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Saramago, Jos, 1922-2010 Claraboia / Jos Saramago. So Paulo : Companhia das Letras, 2011. isbn: 978-85-359-1983-7 1. Romance portugus I. Ttulo. 11-11472 ndice para catlogo sistemtico: 1. Romances : Literatura portuguesa cdd-869.3 869.3

2011 Todos os direitos desta edio reservados editora schwarcz ltda. Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 So Paulo sp Telefone: (11) 3707-3500 Fax: (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br www.blogdacompanhia.com.br

memria de Jernimo Hilrio, meu Av

Em todas as almas, como em todas as casas, alm da fachada, h um interior escondido. Raul Brando

I

Por entre os vus oscilantes que lhe povoavam o sono, Silvestre comeou a ouvir rumores de loia mexida e quase juraria que transluziam claridades pelas malhas largas dos vus. Ia aborrecer-se, mas percebeu, de repente, que estava acordando. Piscou os olhos repetidas vezes, bocejou e ficou imvel, enquanto sentia o sono afastar-se devagar. Com um movimento rpido, sentou-se na cama. Espreguiou-se, fazendo estalar rijamente as articulaes dos braos. Por baixo da camisola, os msculos do dorso rolaram e estremeceram. Tinha o tronco forte, os braos grossos e duros, as omoplatas revestidas de msculos encordoados. Precisava desses msculos para o seu ofcio de sapateiro. As mos, tinha-as como petrificadas, a pele das palmas to espessa que podia passar-se nela, sem sangrar, uma agulha enfiada.9

Num movimento mais lento de rotao, deitou as pernas para fora da cama. As coxas magras e as rtulas tornadas brancas pela frico das calas que lhe desbastavam os pelos entristeciam e desolavam profundamente Silvestre. Orgulhava-se do seu tronco, sem dvida, mas tinha raiva das pernas, to enfezadas que nem pareciam pertencer-lhe. Contemplando com desalento os ps descalos assentes no tapete, Silvestre coou a cabea grisalha. Depois passou a mo pelo rosto, apalpou os ossos e a barba. De m vontade, levantou-se e deu alguns passos no quarto. Tinha uma figura algo quixotesca, empoleirado nas altas pernas como andas, em cuecas e camisola, a trunfa de cabelos manchados de sal-e-pimenta, o nariz grande e adunco, e aquele tronco poderoso que as pernas mal suportavam. Procurou as calas e no deu com elas. Estendendo o pescoo para o lado da porta, gritou: Mariana! Eh, Mariana! Onde esto as minhas calas? (Voz de dentro:) J l vai! Pelo modo de andar, adivinhava-se que Mariana era gorda e que no poderia vir depressa. Silvestre teve que esperar um bom pedao e esperou com pacincia. A mulher apareceu porta: Esto aqui. Trazia as calas dobradas no brao direito, um brao mais gordo que as pernas de Silvestre. E acrescentou:10

No sei que fazes aos botes das calas, que todas as semanas desaparecem. Estou a ver que tenho que passar a preg-los com arame... A voz de Mariana era to gorda como a sua dona. E era to franca e bondosa como os olhos dela. Estava longe de pensar que dissera um gracejo, mas o marido sorriu com todas as rugas da cara e os poucos dentes que lhe restavam. Recebeu as calas, vestiu-as sob o olhar complacente da mulher e ficou satisfeito, agora que o vesturio lhe tornava o corpo mais proporcionado e regular. Silvestre era to vaidoso do seu corpo como Mariana desprendida do que a Natureza lhe dera. Nenhum deles se iludia a respeito do outro e bem sabiam que o fogo da juventude se apagara para nunca mais, mas amavam-se ternamente, hoje como h trinta anos, quando do casamento. Talvez agora o seu amor fosse maior, porque j no se alimentava de perfeies reais ou imaginadas. Silvestre foi atrs da mulher at cozinha. Enfiou na casa de banho e voltou da a dez minutos, j lavado. No vinha penteado porque era impossvel domar a grenha que lhe dominava (dominava o termo) a cabea o lambaz do barco, como lhe chamava Mariana. As duas tigelas de caf fumegavam sobre a mesa, e havia na cozinha um cheiro bom e fresco de limpeza. As faces redondas de Mariana resplandeciam, e todo o seu corpo obeso estremecia e se agitava movendo-se na cozinha. Cada vez ests mais gorda, mulher!...11

E Silvestre riu. Mariana riu com ele. Duas crianas, sem tirar nem pr. Sentaram-se mesa. Beberam o caf quente em longos sorvos assobiados, por brincadeira. Cada um queria vencer o outro no assobio. Ento, que resolvemos? Agora, Silvestre j no ria. Mariana tambm estava sisuda. At as faces pareciam menos coradas. Eu no sei. Tu que resolves. J ontem te disse. A sola est cada vez mais cara. A freguesia queixa-se de que levo caro. a sola... No posso fazer milagres. Sempre queria que me dissessem quem que trabalha mais barato que eu. E ainda se queixam... Mariana deteve-o no desabafo. Por este caminho no resolviam nada. O que era preciso era ver essa questo do hspede. Pois , fazia jeito. Ajudava-nos a pagar a renda e, se fosse um homem sozinho e tu quisesses encarregar-te da roupa, a gente equilibrava-se. Mariana escorripichou o caf adocicado do fundo da tigela e respondeu: C por mim, no me importo. Sempre uma ajuda... Pois . Mas estarmos outra vez a meter hspedes, depois de nos vermos livres dessa cavalheira que se foi embora... Que remdio! Seja ele boa pessoa... Eu dou-me bem com toda a gente, se se derem bem comigo. Experimenta-se uma vez mais... Um homem s, que s venha dormir, o que convm. Logo, 12

tarde, vou pr o anncio. Mastigando ainda o ltimo bocado de po, Silvestre levantou-se e declarou: Bom, vou trabalhar. Regressou ao quarto e caminhou para a janela. Afastou a cortina que formava um pequeno biombo que o isolava do quarto. Havia um estrado alto e sobre ele a banca de trabalho. Sovelas, formas, bocados de fio, latas de prego mido, retalhos de sela e pele. A um canto, a ona de tabaco francs e os fsforos. Silvestre abriu a janela e deitou uma vista de olhos para fora. Nada de novo. Pouca gente passava na rua. No muito longe, uma mulher apregoava fava-rica. Silvestre no chegava a perceber como vivia aquela mulher. Nenhum dos seus conhecidos comia fava-rica, ele prprio no a comia h mais de vinte anos. Outros tempos, outros costumes, outras comidas. Resumida a questo nestas palavras, sentou-se. Abriu a ona, pescou as mortalhas na barafunda de objetos que pejavam a banca, e fez um cigarro. Acendeu-o, saboreou uma fumaa e deitou mos ao trabalho. Tinha umas gspeas a pr, e a estava uma obra em que sempre aplicava todo o seu saber. De vez em quando, relanceava os olhos para a rua. A manh ia aclarando pouco a pouco, embora o cu estivesse coberto e houvesse na atmosfera um ligeiro vu de nvoa que esbatia os contornos das coisas e das pessoas. Na multido de rudos que j enchia o prdio, Silvestre comeou a distinguir um bater de saltos13

nos degraus da escada. Identificou-os imediatamente. Ouviu abrir a porta que dava para a rua e debruou-se: Bom dia, menina Adriana! Bom dia, senhor Silvestre. A rapariga parou debaixo da janela. Era baixinha e usava culos de lentes grossas que lhe transformavam os olhos em duas bolinhas minsculas e inquietas. Estava a meio do caminho dos trinta aos quarenta anos, e j um que outro cabelo branco lhe riscava o penteado simples. Ento, ao seu trabalho, heim? verdade. At logo, senhor Silvestre. Era assim todas as manhs. Quando Adriana saa de casa j o sapateiro estava janela do rs do cho. Impossvel escapar sem ver aquela gaforina desgrenhada e sem ouvir e retribuir os inevitveis cumprimentos. Silvestre seguiu-a com os olhos. Assim, de longe, parecia, na comparao pitoresca do sapateiro, um saco mal atado. Chegada esquina da rua, Adriana voltou-se e acenou um adeus para o segundo andar. Depois, desapareceu. Silvestre largou o sapato e torceu a cabea para fora da janela. No era bisbilhoteiro, mas gostava das vizinhas do segundo, boas freguesas e boas pessoas. Com a voz alterada pela toro do pescoo, saudou: Viva, menina Isaura! Que tal o dia, hoje? Do segundo andar, atenuada pela distncia, veio a resposta: No est mau, no. O nevoeiro...14

No se chegou a saber se o nevoeiro prejudicava, ou no, a beleza da manh. Isaura deixou morrer o dilogo e fechou a janela devagar. No desgostava do sapateiro, do seu ar a um tempo refletido e risonho, mas nessa manh no sentia nimo para conversar. Tinha um monte de camisas para acabar at ao fim da semana. Sbado tinha que entreg-las, desse l por onde desse. Por sua vontade, acabaria de ler o romance. S lhe faltavam umas cinquenta pginas e estava na passagem mais interessante. Aqueles amores clandestinos, sustentados atravs de mil peripcias e contrariedades, prendiam-na. Alm disso, o romance estava bem escrito. Isaura tinha experincia bastante de leitora para assim julgar. Hesitou. Mas bem via que nem sequer tinha o direito de hesitar. As camisas esperavam-na. Ouvia l dentro um rudo de vozes: a me e a tia falavam. Muito falavam aquelas mulheres. Que tinham elas a dizer todo o santo dia, que no estivesse j dito mil vezes? Atravessou o quarto onde dormia com a irm. O romance estava cabeceira. Lanou-lhe os olhos vorazes, mas seguiu. Parou diante do espelho do guarda-vestidos que a refletia da cabea aos ps. Trazia uma bata caseira que lhe modelava o corpo esguio e magro, mas flexvel e elegante. Com as pontas dos dedos percorreu as faces plidas onde as primeiras rugas abriam sulcos finos, mais adivinhados que visveis. Suspirou para a imagem que o espelho lhe mostrava e fugiu dela.15

Na cozinha, as duas velhas continuavam a falar. Muito parecidas, os cabelos todos brancos, os olhos castanhos, os mesmos vestidos negros de corte simples, falavam com vozinhas agudas e rpidas, sem pausas e sem modulao: J te disse. O carvo s terra. preciso ir reclamar carvoaria dizia uma. Est bem respondia a outra. Que esto a dizer? perguntou Isaura, entrando. Uma das velhas, a de olhar mais vivo e de cabea mais ereta, respondeu: o carvo que uma lstima. Tem que se reclamar. Est bem, tia. Tia Amlia era, por assim dizer, a ecnoma da casa. Era ela quem cozinhava, fazia contas e dividia as raes pelos pratos. Cndida, a me de Isaura e Adriana, tratava dos arranjos domsticos, das roupas, dos pequenos bordados que ornamentavam profusamente os mveis e dos solitrios com flores de papel que s eram substitudas por autnticas flores nos dias festivos. Cndida era a mais velha, e, tal como Amlia, viva. Vivas a que a velhice j tranquilizara. Isaura sentou-se mquina de costura. Antes de comear o trabalho, olhou o rio que se estendia muito largo, com a outra margem oculta pelo nevoeiro. Parecia o oceano. Os telhados e as chamins estragavam a iluso mas, mesmo assim, fazendo fora para os no ver, o oceano surgia nos poucos quilmetros16

de gua. Uma alta chamin de fbrica, esquerda, esborratava o cu branco com golfadas de fumo. Isaura sempre gostava daqueles momentos em que, antes de curvar a cabea sobre a mquina, deixava correr os olhos e o pensamento. A paisagem era sempre igual, mas s a achava montona nos dias de vero teimosamente azuis e luminosos em que tudo evidente e definitivo. Uma manh de nevoeiro como esta, de nevoeiro delgado que no impedia de todo a viso, cobria a cidade de imprecises e de sonho. Isaura saboreava tudo isto. Prolongava o prazer. No rio ia passando uma fragata, to maciamente como se flutuasse numa nuvem. A vela vermelha tornava-se rosada atravs das gazes do nevoeiro. Sbito, mergulhou numa nuvem mais espessa que lambia a gua e, quando ia surdir de novo nos olhos de Isaura, desapareceu atrs da empena de um prdio. Isaura suspirou. Era o segundo suspiro nessa manh. Sacudiu a cabea como quem sai de um mergulho prolongado, e a mquina matraqueou com fria. O tecido corria debaixo da patilha e os dedos guiavam-no mecanicamente como se fizessem parte da engrenagem. Aturdida pelo barulho, pareceu a Isaura que algum lhe falava. Deteve a roda bruscamente e o silncio refluiu. Voltou-se para trs: O qu? A me repetiu: No achas que um bocadinho cedo? Cedo? Porqu? Bem sabes... O vizinho...17

Mas, minha me, que hei de fazer? Que culpa tenho eu de que o vizinho de baixo trabalhe de noite e durma de dia? Ao menos, podias esperar at mais logo. No gosto nada de questes com a vizinhana... Isaura encolheu os ombros. Pedalou outra vez e disse, elevando a voz acima do rudo da mquina: E a me quer que eu v loja pedir que esperem, no ? Cndida abanou devagar a cabea. Era uma criatura sempre perplexa e indecisa, que sofria o domnio da irm, mais nova que ela trs anos, e com a conscincia aguda de que vivia custa das filhas. Desejava, acima de tudo, no incomodar ningum, passar despercebida, apagada como uma sombra na escurido. Ia responder mas, ao ouvir os passos de Amlia, calou-se e voltou cozinha. Entretanto, Isaura, lanada no trabalho, enchia a casa de barulho. O cho vibrava. As faces empalidecidas coloriam-se-lhe pouco a pouco e uma gota de suor comeava a brotar-lhe da testa. Sentiu mais uma vez que algum se aproximava e abrandou. escusado trabalhares to depressa. Cansas-te. Tia Amlia nunca dizia palavras suprfluas. Apenas as necessrias e no mais que as indispensveis. Mas dizia-as de uma maneira que aqueles que a ouviam ficavam a apreciar o valor da conciso. As palavras pareciam nascer-lhe na boca no momento em que eram ditas: vinham ainda repletas de significao, pesadas de sentido, virgens. Por isso18

dominavam e convenciam. Isaura abrandou a velocidade. Da a poucos minutos, a campainha da porta tocou. Cndida foi abrir, demorou-se alguns instantes e regressou desorientada e aflita, murmurando: Eu no dizia?... Eu no dizia?... Amlia levantou a cabea: Que ? a vizinha de baixo que vem reclamar. Este barulho... Vai l tu, vai l tu... A irm deixou a loua que estava lavando, limpou as mos a um pano e dirigiu-se porta. No patamar estava a vizinha de baixo. Bom dia, dona Justina. Que deseja? Amlia, em qualquer momento e em qualquer circunstncia, era a polidez em pessoa. Mas bastava-lhe carregar na polidez para tornar-se terrivelmente fria. As pupilas pequenssimas cravavam-se no rosto que fitavam e provocavam uma impresso de mal-estar e de constrangimento impossveis de reprimir. A vizinha entendera-se bem com a irm de Amlia e estivera quase a concluir o que trazia para dizer. Aparecia-lhe agora um rosto menos tmido e um olhar mais direto. Articulou: Bom dia, dona Amlia. o meu marido... Trabalha toda a noite no jornal, como sabe, e s de manh que pode descansar... Fica sempre aborrecido quando o acordam e eu que tenho que o ouvir. Se pudessem fazer menos barulho com a mquina eu agradecia...19

Bem sei. Mas a minha sobrinha precisa de trabalhar. Compreendo. Por mim, no me importaria, mas sabe como so os homens... Sei, sei. E tambm sei que o seu marido no se preocupa muito com o descanso dos vizinhos quando entra de madrugada. Que hei de eu fazer? J desisti de o convencer a subir a escada como gente. A figura longa e macilenta de Justina animava-se. Nos seus olhos comeava a brilhar uma pequena luz maligna. Amlia terminou a conversa: Esperaremos mais um bocado. V descansada. Muito obrigada, dona Amlia. Amlia murmurou um com licena! seco e breve e fechou a porta. Justina desceu a escada. Vestia luto carregado e, assim, muito alta e fnebre, com os cabelos pretos divididos ao meio por uma risca larga, parecia um boneco mal articulado, demasiado grande para mulher e sem o menor sinal de graa feminina. S os olhos negros, profundos nas olheiras maceradas de diabtica, eram paradoxalmente belos, mas to graves e srios que a graa no morava neles. Ao chegar ao patamar, parou junto da porta que ficava defronte da sua e aproximou o ouvido. De dentro no vinha qualquer rumor. Fez um trejeito de desprezo e afastou-se. Quando ia entrar, ouviu abrir-se uma porta no andar de cima e, logo a seguir, um rudo de vozes. Ajeitou o capacho para se dar um pretexto para no sair dali.20

De cima vinha um dilogo animado: Ela o que no quer ir trabalhar! dizia uma voz feminina com asperezas de irritao. Seja l o que for. preciso cuidado com a pequena. Est na idade perigosa respondeu uma voz de homem. Nunca se sabe o que estas coisas do. Qual idade perigosa, qual qu? Hs de ser sempre o mesmo. Com dezanove anos, idade perigosa? Isso s teu!... Justina achou conveniente sacudir o capacho com fora, para anunciar a sua presena. A conversa, em cima, interrompeu-se. O homem comeou a descer a escada, ao mesmo tempo que dizia: No a obrigues a ir. Se houver alguma novidade telefona-me para o escritrio. At logo. At logo, Anselmo. Justina cumprimentou o vizinho com um sorriso sem amabilidade. Anselmo passou, fez um solene gesto na direo da aba do chapu e articulou com belo timbre uma saudao cerimoniosa. A porta da escada, em baixo, teve um bater cheio de personalidade, quando ele saiu. Justina cumprimentou para cima: Bom dia, dona Roslia. Bom dia, dona Justina. Que tem a Claudinha? Est doente? Como soube? Estava aqui a sacudir o capacho e ouvi o seu marido. Pareceu-me perceber... Aquilo manha. O meu Anselmo que no pode ouvir a filha queixar-se. o ai-jesus... Diz ela que lhe21

di a cabea. Mndria que ela tem. To grande a dor de cabea que j est outra vez a dormir! Nunca se sabe, dona Roslia. Foi assim que eu fiquei sem a minha filha, que Deus haja. No era nada, no era nada, diziam, e l se foi com a meningite... Tirou um leno e assoou-se com fora. Depois, continuou: Coitadinha... Com oito anos... No me esquece... Est agora a fazer dois anos, lembra-se, dona Roslia? Roslia lembrava-se e enxugou uma lgrima de circunstncia. Justina ia insistir, lembrar pormenores j sabidos, apoiada compaixo aparente da vizinha, quando uma voz rouca lhe cortou as palavras: Justina! O rosto plido de Justina tornou-se de pedra. Continuou a conversar com Roslia at que a voz se ouviu mais alta e violenta: Justina!!! Que ? perguntou. Faz favor de vir para dentro. No quero conversas na escada. Se estivesse to farta de trabalhar como eu, no tinha disposio para dar lngua! Justina encolheu os ombros com indiferena e prosseguiu a conversa. Mas a outra, incomodada pela cena, despediu-se. Justina entrou em casa. Roslia desceu alguns degraus e apurou o ouvido. Atravs da porta passaram exclamaes speras. Depois, subitamente, o silncio. Era sempre assim. Ouvia-se o homem ralhar, depois a mulher pronunciava algumas poucas e22

inaudveis palavras e ele calava-se. Roslia achava isto muito esquisito. O marido de Justina tinha fama de brutamontes, com o seu corpanzil inchado e os seus modos grosseiros. Ainda no chegara aos quarenta anos e parecia mais velho, por causa do rosto flcido, de olhos papudos e beio reluzente sempre cado. Ningum percebia como e por que dois seres to diferentes se tinham casado. Verdade que tambm ningum se lembrava de os ter visto juntos na rua. E, ainda, ningum compreendia como de duas pessoas nada bonitas (os olhos de Justina eram belos e no bonitos) pudera nascer uma filha de tal maneira graciosa como fora a pequena Matilde. Dir-se-ia que a Natureza se enganara e que, depois, descobrindo o engano, se emendara fazendo desaparecer a criana. O certo que o violento e spero Caetano Cunha, linotipista no Notcias do Dia, sempre a estalar de gordura, novidades e m criao, aps trs exclamaes agressivas calava-se a um murmrio da mulher, a diabtica e dbil Justina que um sopro bastaria para derrubar. Era um mistrio que no conseguia descobrir. Esperou ainda, mas o silncio era total. Recolheu a casa, cerrando a porta com cuidado para no acordar a filha que dormia. Que dormia ou fingia dormir. Roslia espreitou pela frincha da porta. Pareceu-lhe ver estremecerem as plpebras da filha. Abriu a porta completamente e avanou para a cama. Maria Cludia cerrava os olhos com fora demasiada e escusada. Rugas23

pequeninas, vincadas pelo esforo, assinalavam o lugar onde mais tarde viriam a aparecer os ps-de-galinha. A boca carnuda conservava ainda restos de bton do dia anterior. Os cabelos castanhos, cortados curtos, davam-lhe um ar de garoto rufio que lhe tornava a beleza picante e provocadora, quase equvoca. Roslia mirava a filha, um tanto desconfiada daquele sono profundo que tinha todo o ar de impostura. Deu um pequeno suspiro. Depois, num gesto de carinho maternal, aconchegou a roupa em volta do pescoo da filha. A reao foi imediata. Maria Cludia abriu os olhos. Riu muito, quis disfarar, mas j era tarde: Fez-me ccegas, mezinha! Furiosa porque fora lograda e, sobretudo, porque a filha a surpreendera em flagrante delito de amor maternal, Roslia respondeu de mau humor: Era assim que dormias, no era?! J no te di a cabea, pois no? O que tu no queres trabalhar, preguiosa! Como a dar razo me, a rapariga espreguiava-se devagar, saboreando o distender dos msculos. A camisinha enfeitada de rendas abria-se no movimento em que o peito alargava e deixava ver dois seios pequenos e redondos. Embora incapaz de dizer por que entendia que aquele movimento descuidado a ofendia, Roslia no pde reprimir o seu desagrado e resmungou: V l se te tapas! Vocs, hoje, so de tal maneira que nem se envergonham na presena da vossa me! Maria Cludia esbugalhou os olhos. Tinha-os azuis, de um azul brilhante, mas frios, tal como as24

estrelas que esto longe e de que, por isso, s percebemos a luminosidade. Mas, que mal faz? Pronto! J estou tapada. No tempo em que eu tinha a tua idade, se aparecesse assim diante da minha me levava uma bofetada. Olhe que era bater por bem pouco... Achas? Pois era o que tu precisavas. Maria Cludia ergueu os braos num espreguiamento disfarado. Depois, bocejou: Os tempos so outros, me. Roslia respondeu, enquanto abria a janela: So outros, so. So piores. Depois voltou cama: Vamos a saber: vais trabalhar ou no? Que horas so? Quase dez. Agora j tarde. Mas h bocado no era. Doa-me a cabea. As frases curtas e rpidas denunciavam irritao de parte a parte. Roslia fervia de clera reprimida, Maria Cludia estava aborrecida com as observaes moralizadoras da me. Doa-te a cabea, doa-te a cabea! Fingida, que tu s!... J disse que me doa a cabea. Que quer que lhe eu faa? Roslia explodiu: assim que se responde, menina? Olha que sou tua me, ouviste?25

A rapariga no se atemorizou. Encolheu os ombros, querendo significar com o gesto que aquele ponto no merecia discusso, e, de um salto, levantou-se. Ficou de p, descala, com a camisa de seda descendo-lhe pelo corpo macio e bem formado. Na fervura da irritao de Roslia caiu a frescura da beleza da filha e a irritao desapareceu como gua em areia seca. Roslia sentiu-se orgulhosa de Maria Cludia, do lindo corpo que ela tinha. As palavras que disse a seguir eram uma rendio: Tem que se avisar para o escritrio. Maria Cludia no mostrou ter apreciado a mudana de tom. Respondeu, indiferente: Vou l abaixo dona Ldia, telefonar. Roslia irritou-se de novo, talvez porque a filha enfiara uma bata caseira e era, agora, discretamente vestida como estava, incapaz de encant-la. Sabes bem que no gosto que entres em casa da dona Ldia. Os olhos de Maria Cludia eram mais inocentes que nunca: Ora essa! Por qu? No percebo. Se a conversa continuasse, Roslia teria de dizer coisas que preferia calar. Sabia que a filha as no ignorava, mas entendia que h assuntos em que prejudicial tocar diante de uma menina solteira. Da educao que recebera ficara com uma noo do respeito que deve existir entre pais e filhos e aplicava-a. Simulou no ter percebido a pergunta e saiu do quarto.26

Maria Cludia, sozinha, sorriu. Diante do espelho desabotoou a bata, abriu a camisa e contemplou os seios. Estremeceu. Uma leve vermelhido lhe tingiu o rosto. Sorriu de novo, um pouco nervosa, mas contente. O que fizera provocara-lhe uma sensao agradvel, com um sabor a pecado. Depois, abotoou a bata, olhou uma vez mais o espelho e deixou o quarto. Na cozinha, aproximou-se da me, que torrava fatias de po, e beijou-a. Roslia no pde negar que gostara do beijo. No o retribuiu, mas o corao ficou-lhe batendo de contentamento: Vai-te lavar, filha, que as torradas esto quase prontas. Maria Cludia encerrou-se na casa de banho. Voltou fresqussima, a pele brilhante e limpa, os lbios sem pintura ligeiramente entumecidos pela gua fria. Os olhos da me cintilaram ao v-la. Sentou-se mesa e comeou a comer com apetite. Sabe bem ficar em casa uma vez por outra, no ? perguntou Roslia. A rapariga riu com gosto: Ora, v? Tenho, ou no tenho, razo? Roslia sentiu que se dera demasiadamente. Quis emendar, compor a frase: Est bem, mas sempre bom no abusar. No escritrio no ralham comigo. Podem ralhar, filha. E preciso conservar o emprego. O ordenado do teu pai no grande, bem sabes. Esteja descansada. Eu sei fazer as coisas.27

Roslia gostaria de saber como, mas no quis perguntar. Acabaram de comer em silncio. Maria Cludia levantou-se e disse: Vou pedir dona Ldia que me deixe telefonar. A me ainda abriu a boca para uma objeo, mas calou-se: a filha j ia no corredor. Escusas de fechar a porta, visto que no te demoras. Na cozinha, Roslia ouviu a porta fechar-se. No quis acreditar que a filha o tivesse feito de propsito para a contrariar. Encheu o alguidar e comeou a lavar a loua suja da refeio da manh. Maria Cludia no comparticipava dos escrpulos da me quanto inconvenincia das relaes com a vizinha de baixo, e, pelo contrrio, achava d. Ldia muito simptica. Antes de tocar, ajeitou a gola da bata e passou as mos pelo cabelo. Lamentou no ter dado um poucochinho de cor aos lbios. A campainha deu um som estrdulo que ficou a ressoar no silncio da escada. Por um pequeno rudo que ouviu, Maria Cludia teve a certeza de que Justina a espreitava pelo ralo. Ia voltar-se, com um gesto de provocao, mas nesse momento a porta abriu-se e d. Ldia apareceu. Bom dia, senhora dona Ldia. Bom dia, Claudinha. Que a traz por c? No quer entrar? Se me d licena... No corredor penumbroso, a rapariga sentiu envolv-la a tepidez perfumada do ambiente.28

Ento, que h? Venho ma-la, mais uma vez, dona Ldia. Ora, ora, no maa nada. Bem sabe que gosto muito que venha a minha casa. Obrigada. Queria pedir-lhe se me deixava telefonar para o escritrio a dizer que no vou hoje. vontade, Claudinha. Empurrou-a docemente na direo do quarto. Maria Cludia nunca ali entrava sem se perturbar. O quarto de Ldia tinha uma atmosfera que a entontecia. Os mveis eram bonitos, como nunca vira, havia espelhos, cortinas, um sof vermelho, um tapete felpudo no cho, frascos de perfume no toucador, um cheiro de tabaco caro, mas nada disto, isoladamente, era responsvel pela sua perturbao. Talvez o conjunto, talvez a presena de Ldia, qualquer coisa impondervel e vaga, como um gs que passa atravs de todos os filtros e que corri e queima. Na atmosfera daquele quarto, perdia sempre o domnio de si mesma. Ficava tonta como se tivesse bebido champanhe, com uma irresistvel vontade de fazer tolices. Ali tem o telefone disse Ldia. Esteja vontade. Fez um movimento para retirar-se, mas Maria Cludia disse, rapidamente: Ai, por minha causa, no, dona Ldia. Isto no tem importncia nenhuma... Disse a ltima frase com uma intonao e um sorriso que pareciam dizer que outras coisas teriam29

importncia e que d. Ldia bem sabia quais. Estava de p, e Ldia exclamou: Sente-se, Claudinha! A mesmo, na beira da cama. Com as pernas a tremer, sentou-se. Pousou a mo livre sobre o dredon forrado de cetim azul e, sem que desse por isso, ps-se a afagar o tecido acolchoado, quase com volpia. Ldia parecia desinteressada. Abrira uma caixa de cigarros e acendera um Camel. No fumava por vcio ou por necessidade, mas o cigarro fazia parte de uma complicada rede de atitudes, palavras e gestos, todos com o mesmo objetivo: impressionar. Isso, em si, j se transformara numa segunda natureza: desde que estivesse acompanhada, e fosse qual fosse a companhia, trataria de impressionar. O cigarro, o riscar lento do fsforo, a primeira baforada de fumo, longa e sonhadora, tudo eram cartas do jogo. Maria Cludia explicava ao telefone, com muitos gestos e exclamaes, a sua terrvel dor de cabea. Fazia boquinhas de mimo, boquinhas dolorosas de quem est muito doente. s furtadelas, Ldia observava-lhe a mmica. Por fim, a rapariga desligou e levantou-se: Pronto, dona Ldia. E muito obrigada. Ora essa! J sabe que est sempre s suas ordens. D-me licena? Aqui tem os cinco tostes da chamada. Patetinha. Guarde o dinheiro. Quando que perde o hbito de me querer pagar os telefonemas?30

Sorriram ambas, olhando-se. Subitamente, Maria Cludia teve medo. No havia de que ter medo, ao menos daquele medo fsico e imediato, mas, de um momento para o outro, sentiu uma presena assustadora no quarto. Talvez a atmosfera, que h pouco apenas entontecia, se tivesse tornado, de repente, sufocante. Bem. Vou-me embora. E, mais uma vez, obrigada. No quer ficar mais um bocadinho? Tenho que fazer. A minha me est minha espera. No a prendo, ento. Ldia trazia um roupo de tafet duro, vermelho, com os reflexos esverdeados dos litros de certos besouros, e deixava atrs de si um rasto de perfume intenso. Ouvindo o ruge-ruge do tecido e, sobretudo, aspirando o aroma quente e capitoso que se desprendia de Ldia, aroma que no era s o do perfume, que era, tambm, o do prprio corpo de Ldia, Maria Cludia sentia que estava a ponto de perder completamente a serenidade. Quando Claudinha, depois de repetir os agradecimentos, saiu, Ldia voltou ao quarto. O cigarro queimava-se lentamente no cinzeiro. Esmagou-lhe a ponta para o apagar. Depois, estendeu-se na cama. Uniu as mos atrs da nuca e acomodou-se melhor sobre o dredon macio que Maria Cludia acariciara. O telefone tocou. Com um gesto cheio de preguia, levantou o auscultador: Sim... Sou... Ah! sim. (...) Quero. Qual a ementa, hoje? (...) Est bem. Serve. (...) No, isso31

no. (...) Uhm! Est bem. (...) E a fruta? (...) No gosto. (...) escusado. No gosto. (...) Pode ser. (...) Bom. No mande tarde. (...) E no se esquea de mandar a conta do ms. (...) Bom dia. Pousou o auscultador e deixou-se cair outra vez na cama. Deu um amplo bocejo, com o -vontade de quem no teme observadores indiscretos, um bocejo que evidenciava a ausncia de um dos ltimos molares. Ldia no era bonita. Feio por feio, a anlise concluiria por aquele tipo de fisionomia que est to longe da beleza como da vulgaridade. Neste momento, prejudicava-a o no estar pintada. Tinha o rosto luzidio do creme da noite, e as sobrancelhas, nas extremidades, exigiam depilao. Ldia no era, de facto, bonita, sem contar com a circunstncia importante de que o calendrio j marcara o dia em que completara trinta e dois anos e que os trinta e trs no vinham longe. Mas de toda ela se desprendia uma seduo absorvente. Os olhos eram castanho-escuros, os cabelos pretos. O rosto tinha, em momentos de cansao, uma dureza masculina, especialmente ao redor da boca e nas asas do nariz, mas Ldia sabia, com uma ligeira transformao, torn-lo acariciante, sedutor. No pertencia ao tipo de mulheres que atraem pelas formas do corpo, mas, da cabea aos ps, irradiava sensualidade. Era bastante hbil para provocar em si prpria um frmito que deixava o amante sem raciocnio, impossibilitado de defender-se daquilo que supunha32

ser natural, daquela onda simulada em que se afogava julgando-a verdadeira. Ldia sabia. Tudo eram cartas do seu jogo e o seu corpo, delgado como um junco e vibrante como uma vara de ao, o seu maior trunfo. Hesitou entre o adormecer e o levantar-se. Pensava em Maria Cludia, na sua beleza fresca de adolescente, e, num instante, apesar de sentir indignas de si quaisquer comparaes com uma criana, teve um brusco apertar de corao, um movimento de inveja que lhe enrugou a testa. Quis arranjar-se, pintar-se, pr entre a juventude de Maria Cludia e a sua seduo de mulher experiente a maior distncia possvel. Levantou-se rapidamente. Ligara j o esquentador: a gua para o banho estava pronta. Num s movimento, despojou-se do roupo. Depois ergueu a camisa de dormir pela fmbria e despiu-a pela cabea. Ficou completamente nua. Experimentou a temperatura da gua e deixou-se escorregar para a banheira. Lavou-se devagar. Ldia conhecia o valor do asseio na sua situao. Limpa e refrescada, embrulhou-se no roupo de banho e saiu para a cozinha. Antes de voltar ao quarto acendeu o fogo de gs e ps uma cafeteira ao lume para o ch. No quarto, vestiu um vestido simples mas gracioso, que lhe vincava as formas e a tornava mais nova, arranjou sumariamente o rosto, contente de si mesma e do creme que vinha usando. Regressou cozinha. A gua j fervia. Retirou a cafeteira. Quando abriu33

a caixa do ch verificou que estava vazia. Fez uma careta de aborrecimento. Deixou a lata e voltou ao quarto. Ia fazer uma ligao para a mercearia, chegou a levantar o auscultador, mas ao ouvir algum falar na rua abriu a janela. O nevoeiro levantara-se e o cu estava azul, de um azul aguado de comeo de primavera. O sol vinha mesmo de muito longe, to de longe que a atmosfera estimulava de frescura. Na janela do rs do cho esquerdo do prdio uma mulher dava, e tornava a dar, um recado a um garoto loiro que a olhava de baixo, com o narizito franzido pelo esforo de ateno que estava fazendo. Falava com acento espanhol e abundantemente. O garoto j percebera que a me queria dez tostes de pimenta, e estava pronto a partir, mas ela repetia a encomenda s pelo gosto de falar com o filho e de ouvir-se a si mesma. Parecia nada haver mais a recomendar. Ldia chamou: Dona Carmen, dona Carmen! Quien me llama? Ah, buenos das, dona Ldia! Bom dia. Dava licena que o Henriquinho me fizesse um recado da mercearia? Precisava de ch... Deu o recado e lanou uma nota de vinte escudos para o garoto. Henriquinho deitou a correr rua fora, como se o perseguissem ces. Ldia agradeceu a d. Carmen que respondia na sua lngua de trapos, alternando palavras espanholas com frases portuguesas e deixando estas a escorrer sangue na pronncia. Ldia, que no gostava de exibir-se janela,34

despediu-se. Da a pouco chegou Henriquinho, muito vermelho da carreira, com o pacote do ch e o troco. Gratificou-o com dez tostes e um beijo e o garoto foi-se embora. A chvena cheia, um prato de bolos secos ao lado, Ldia instalou-se de novo na cama. Enquanto comia ia lendo um livro que tirara de um pequeno armrio da casa de jantar. Preenchia o vazio dos seus dias desocupados com a leitura de romances e tinha alguns, de bons e maus autores. Neste momento estava interessadssima no mundo ftil e inconsequente de Os Maias. Ia bebendo o ch em pequenos goles, trincava um palito de la reine e lia um perodo, exatamente aquele em que Maria Eduarda lisonjeia Carlos com a declarao de que alm de ter o corao adormecido, o seu corpo permaneceu sempre frio, frio como um mrmore.... Ldia gostou da frase. Procurou um lpis para marc-la, mas no encontrou. Ento, levantou-se com o livro na mo e foi ao toucador. Com o bton fez um sinal na margem da pgina, um risco vermelho que ficava sublinhando um drama ou uma farsa. Da escada veio um rumor de vassoura. Logo, a voz aguda de d. Carmen entoou uma cantilena melanclica. E, ao fundo, atrs desses rudos de primeiro plano, o zumbido perfurante de uma mquina de costura e as pancadas secas de um martelo sobre a sola. Com um bolo delicadamente apertado entre os dentes, Ldia recomeou a leitura.

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