kara dalkey - o sangue da deusa i (rev)

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o sangue da deusa i kara dalkey

no, no, tem asas como um morcego enorme! o quinto homem sbio tentou rodear a barriga com os braos e exclamou, deve ser um cavalo com uma grande cilha! o sexto, que colocara a mo na ampla testa do elefante, disse: no, irmos, estamos enganados. isto no um animal, mas uma parede! ao stimo homem cego haviam-lhe dado os testculos para agarrar e disse: estais todos enganados. isto so apenas cabaas num saco de couro. algumas verses deste conto terminam com os sete homens cegos a lutar uns com os outros at morte por causa das suas discrdias. mas o monge budista escolheu conclu-lo de uma outra maneira: ele disse que os cegos ficaram to perplexos com as suas respostas divergentes que no conseguiam acreditar que fosse o mesmo animal. por isso cada um dos homens manteve a mo na parte em que primeiro tocara, deslizando a outra mo ao longo do corpo do elefante at que encontrava a mo do outro. ao fazerem isto, os homens cegos descobriram que embora cada parte fosse diferente, juntas formavam uma s coisa. e apesar de mesmo assim no serem capazes de apreender a forma completa da criatura, os cegos tiveram a possibilidade de concordar que devia ser realmente uma criatura maravilhosa. eu no falo apenas para encher o ar com a minha respirao, ou para vos ajudar a passar o tempo com vacuidades agradveis. gostaria que se lembrassem desta histria na continuao da vossa jornada. s se v um lado da montanha de cada vez. vede tudo o que puderdes, mas sabendo que nunca tudo. que possais caminhar na sombra da vontade divina, estranho. gandharva msico da corte do sulto ibrahim adilshah ii

captulo i carvalho: a mais possante das rvores, a mais real e santa. os antigos consideravam-na a primeira de todas as rvores. mesmo agora, existem alguns que vertem o sangue de animais sacrificados nas razes do carvalho para obter as suas bnos. a madeira de carvalho considerada a materializao da fora e da resistncia, e muitas vezes queimada em fogueiras sagradas. os seus galhos so usados para juntar ervas medicinais. um barco construdo da rvore conhecida como carvalho-vermelho, contudo, d azar e encontrar o infortnio... setembro de 1597, ilhas amindivi, mar laccadive thomas chinnery ergueu o olhar ao som da trovoada distante. no havia nuvens a escurecer o cu opressivo de safira por sobre os mastros de the bears whelp. soprou na tinta molhada da carta que estivera a escrever e ps-se de p. da amurada do navio, podia ver a linha de palmeiras da costa da pequena ilha onde haviam ancorado. no viu qualquer homem com pistola. o navio companheiro do seu, the bear, estava fundeado a ocidente, mas o som viera de leste e norte. - a escrever outra missiva tua namorada, tom? - ouviu ele atrs de si e estremeceu. o escocs, andrew lockheart, era um comerciante de l, companheiro do senhor bathwick, considerado um viajante experimentado e com fama de tratante. tambm parecia estranhamente determinado a pressionar a sua amizade com thomas. - na verdade, no estou, senhor. um relatrio para o meu amo, o boticrio geoffrey coulter de londres. de onde veio aquele rugido? os lbios de lockheart rodeados de barba negra esticaram-se num sorriso manhoso. - pois eu penso que era uma dama rica a gritar: levai-me e serei vossa. - senhor, falais por enigmas. - achas que sim? olha para o cimo das rvores longnquas, tom, onde ela acena com o leno para captar os teus olhos. thomas fixou o olhar para onde apontava o escocs e viu a ponta de um mastro, que arvorava um pendo com as cores de portugal, a mover-se para sul na direo da ponta da ilha. - minha nossa senhora - murmurou ele -, outra vez, no. um marinheiro na enxrcia do whelp gritou: - um galeo! no, dois! a avanarem com fora! os homens j corriam pela costa, abandonando as provises que eventualmente tinham recolhido. saltaram para os esquifes que estavam na praia e remaram como demnios de volta aos seus navios. o capito benjamin wood apareceu na coberta da proa, com o cabelo ruivo ondulando ao vento.

- homens s velas! o bom deus manda-nos algo ao nosso engodo. se aproveitarmos a brisa, apanharemos a caa lusitana. levantar ncora! s velas! - os homens ainda mal recuperaram do nosso ltimo encontro - suspirou thomas. - a cobia um remdio muito potente, meu rapaz, e d vida s pernas de muitos homens. a propsito disso, talvez tenhas de ir para baixo. as tuas poes e ervas tero sem dvida mais utilidade l. - no, os nossos homens disponveis so poucos. pedirei ao contramestre uma espada e entregarei os meus braos luta. lockheart franziu o sobrolho: - muito bem dito, rapaz. mas no te devias poupar para o trabalho do teu amo? - se formos derrotados por falta de homens - disse thomas -, terei poucas oportunidades de faturar para o meu amo. - verdade. mas a dama da fortuna sorri. os navios l de longe no tm grande capacidade para nos enfrentar. e o capito wood tem um plano engenhoso. - como sabeis isso? - porque fui eu que lho dei. - com uma piscadela de olho, lockheart atravessou o convs para ajudar nas cordas. thomas foi para a escotilha entre os mastros, onde um rapaz puxava espadas de um compartimento em baixo. mesmo os marinheiros que se arrastavam fracos de escorbuto se levantavam para distribuir as armas e as canecas de cerveja. o navegador colocou-se na roda do leme e puxou-a para bombordo. a vela mestra desenrolou-se com um craque pesado e virou para apanhar a brisa de norte. lentamente, o whelp avanou para mar aberto. o bear, alguns comprimentos atrs, afastou-se da ilha num ngulo mais para sul. thomas emborcou a sua caneca cheia de cerveja amarga de uma s vez. blsamo dado antes da ferida. remdio para entorpecer os sentidos para aquilo que se deve seguir. ele podia ouvir as ordens constantes de tiroteio a serem gritadas abaixo do convs, e o ribombar e o estrondo das colubrinas a serem preparadas. as pequenas bombardas e peas de artilharia do convs principal estavam a ser carregadas com o pouco que restava de munies. thomas trocou a caneca de cerveja por um cutelo e uma grande pistola escalavrada e foi-se encostar amurada. os senhores allen e bromefield, os mercadores encarregados da viagem, passaram por thomas com os rostos ensombrados pela irritao. ouviu-os discutir com o capito wood, que no tinha nada a ver com aquilo. verdade, pensou thomas, nunca pensei vir a tornar-me mais pirata que boticrio. se eu tivesse querido que a pilhagem fosse o meu modo de vida, teria sido aprendiz

do almirante raleigh. quando o whelp surgiu da parte de trs da ilha, thomas teve a sua primeira viso da presa. seguindo o vento, procura de um campo mais aberto, apareceu um pequeno galeo ostentosamente dourado de umas trinta toneladas. no entanto, assomava-se por detrs dele a maior carraca portuguesa que thomas alguma vez vira; mais de cem ps de comprimento e mil toneladas, com um mastro principal mais alto que qualquer rvore natural, e com os lados brilhantes de canhes. estamos feitos, pensou thomas. a um grito vindo de baixo, as quatro vigias de canhes do whelp saudaram os recm-chegados com vozes tonitruantes. atravs do fumo acre, thomas viu aparecer um corte numa vela do galeo e fendas na madeira do bojo mesmo por cima da linha de gua. a tripulao do galeo estava espantada com o aparecimento do whelp, e correram pelas cobertas como formigas assustadas. - apanhamo-los a dormir a sesta - disse nathan, o aprendiz de carpinteiro do navio. - o que parece - disse thomas. - e poder ser isso que nos salve. - o whelp estava a passar a leste do galeo e a enorme carraca tambm virou na mesma direo, como se quisesse colocar-se entre o galeo e o whelp. - este rico - disse nathan, com os olhos ainda no galeo. - um mercador particular, talvez com rubis e esmeraldas para as suas senhoras em lisboa. - sim - murmurou thomas -, e uma escolta poderosa para o guardar. - ele via que metade das dezesseis vigias de canhes da carraca estavam preparadas e equipadas e, enquanto ele observava, mais vigias se iam abrindo. a bombarda da popa do whelp disparou um ltimo tiro para o galeo que passava. a tripulao aprontou as velas para dar outra oportunidade s colubrinas de dispararem. como uma montanha nascida da gua, a carraca aproximou-se, elevando-se acima deles. os canhes do whelp dispararam outra vez e, por boa pontaria ou sorte, uma das balas partiu o mastro da vela do traquete da carraca, fazendo cair pano e corda sobre a coberta. ouviram-se gritos de jbilo dos marinheiros ingleses. mas quando a carraca passou popa, as suas colubrinas responderam. choveu tiro de canho e thomas atirou-se para a coberta. o navio oscilou e um fumo acre rodopiou sua volta. - estou ferido! - gemeu nathan. - maldito sejais, capito wood - resmungou thomas enquanto rastejava para junto de nathan. a camisa do rapaz mostrava um rasgo sangrento. - est quieto, nate, seno vais rasgar a ferida. - ainda estou bom para lutar. - o rapaz recuou para se sentar. - no vou desistir da

minha parte da pilhagem. - h coisas mais valiosas do que ouro e rubis - disse thomas, rasgando a camisa do rapaz para fazer uma ligadura. ouviu-se outro lanamento, mas no da carraca nem do whelp. thomas espreitou por cima da amurada e percebeu qual fora o plano matreiro de lockheart. o bear, por detrs e para sul, estava agora bem posicionado para apresentar o costado carraca. a tripulao do whelp estava a lutar com as cordas das velas a fim de se restabelecer novamente. a carraca e o galeo ficariam presos entre os dois navios ingleses mais pequenos e mais rpidos. uma bela armadilha, no h dvida, pensou thomas, se ns no formos afundados primeiro. um tiro da coberta da proa arrancou o gurups do bear e parte do castelo da proa superior. dois elegantes pequenos canhes de bronze do castelo da popa vomitaram fogo... e a carraca portuguesa perdeu o seu mastro de mezena. - esto a disparar contra a sua prpria escolta! - disse nathan, segurando-se de lado. - endoideceram? - ou ser que percebemos mal a sua relao? - cismou thomas. - no sei. - lockheart apareceu na direo do cotovelo direito de thomas, observando a cena. - no me digais, senhor - disse-lhe thomas -, que a loucura do galeo fazia tambm parte do vosso plano matreiro. a boca do escocs torceu-se num sorriso pesaroso: - o bom deus ajuda aqueles que se ajudam a si mesmos, est escrito. do outro lado da gua, a tripulao do galeo e da carraca gritavam uns para os outros. a carraca apertou as suas velas e carreou, passando pela proa do atrapalhado bear. - vai-se embora! - disse nathan. - deixando a sua carga, se assim o era, para trs - disse thomas -, mas que cobardia horrorosa. - eu apostava - disse lockheart - que a carraca no era protetora mas perseguidora. vedes as cicatrizes na filigrana do galeo? at parece que a carraca lhe acertou um tiro ou dois antes de ns. - quereis dizer, senhor - disse nathan -, que fomos a salvao de algum? o elegante canho de bronze do galeo disparou outra vez, com as balas a arrancarem uma parte da amurada perto do stio onde eles se agachavam. - sim - disse lockheart, ousando erguer mais uma vez a cabea. - e est to grato

como um tigre libertado da sua armadilha. o whelp e o bear dispararam em conjunto contra o galeo, causando uma barafunda de mastros, cordame e velas. nenhum dos navios ingleses estava em condies de perseguir a carraca fugitiva, por isso fecharam-se sobre o galeo desafortunado. a tripulao do whelp atirou cordas de atracagem e iou-se l para dentro. a tripulao do galeo, muitos deles rabes de turbante e hindus de pele escura, olhavam silenciosamente no meio da confuso de panos, madeira e cordas. - achas que consegues ir para l lutar, nathan? - disse thomas. - como os melhores - replicou o rapaz. - bravo moo! - disse lockheart. - e tu, tom? os anos passados na loja do mestre coulter a misturar unguentos malcheirosos e poes no tinham preparado thomas para carnificinas corpo a corpo. mas haviamlhe ensinado a levar a cabo tarefas desagradveis. - se tiver de ser. lockheart deu-lhe uma pancada no ombro com uma mo larga. - ento que os fados sejam amveis contigo. - rendeis-vos? - gritou o capito wood para o galeo cativo -, ou fazemos a abordagem e sereis obrigados a isso pela fora? um grito no terreno elevou-se de muulmanos e hindus. os marinheiros portugueses cortaram as cordas de atracagem com as suas facas. as pranchas de abordagem foram atiradas do whelp para as amuradas do galeo e os marinheiros ingleses treparam-nas. thomas murmurou juras entrecortadas com a respirao e avanou, com a pistola na mo esquerda e o cutelo na direita. quando se escondeu debaixo de uma vela cada, uma faca curva surgiu em frente da sua garganta. ele atirou-a com o cutelo e atirou-se para diante, mas o inimigo desaparecera. thomas deu consigo em p no meio de um emaranhado que parecia uma floresta imobilizada pelo nevoeiro. os mastros estavam derrubados como se fossem rvores cadas e as cordas subiam pelos seus tornozelos como videiras. o p da plvora ardia-lhe nos olhos. as sombras de homens nas velas confundiam-lhe a viso. os gritos e gemidos rodeavam-no. aqui e ali uma bala de pistola assobiou passando por ele como uma abelha zangada. um muulmano saltou para a frente dele, com a espada pronta e os olhos brilhantes. thomas recuou, erguendo o cutelo quando o seu opositor desferiu a arma. thomas repeliu o ataque do mouro, mas tropeou e caiu para trs sobre uma massa de cordas e velame. o mouro sorriu e saltou para mais perto a fim de se aproveitar da

queda de thomas. este ergueu a sua pistola. houve um grito que se sobreps aos outros. foi seguido de uma longa declarao numa lngua que thomas no compreendeu. seguiu-se um silncio profundo. o muulmano baixou a espada com o sobrolho carregado e afastou-se. o capito wood, algures atrs dele, gritou: - desistam, homens! eles renderam-se! thomas suspirou profundamente com alvio e espreitou por um rasgo na vela ao seu lado. os marinheiros portugueses e os muulmanos estavam a depositar as armas no convs, olhando para o castelo da proa. os hindus pressionavam as testas contra o convs em orao. thomas enfiou mais o pescoo e viu, no castelo da proa, uma mulher alta e elegante. vestia um sari de seda carmim com fios dourados que brilhavam. a sua pele era castanha-clara, mas os olhos eram espantosamente azuis. eis aqui uma rara maravilha. ser que este navio dela e que ela consegue comandar estes homens? ser que a filha de um mercador rico? e porque que a carraca a perseguia? a mulher fez uma vnia ao capito wood e falou com ele, tendo como intrprete um dos marinheiros hindus. embora o capito anusse com a cabea, de queixo na mo, parecia ter dificuldade em compreender. alguns minutos depois, o capito despediu o intrprete com a mo e ele prprio acompanhou a senhora at ao whelp. com a sua partida, um feitio invisvel quebrou-se no convs do galeo, e os homens comearam a mexer-se e a falar outra vez. de ombros cados, a tripulao do galeo dividiu-se; alguns para tentar a sorte alcanando a segurana nos dois pequenos esquifes do galeo (principalmente os portugueses orgulhosos e os muulmanos), outros escolheram velejar com o whelp e o bear. entretanto, os marinheiros ingleses abriram as escotilhas que davam para o poro do galeo e comearam a pilhagem. thomas saiu do seu ninho de cordame e seguiu para o castelo de popa. tambm poderei procurar a minha justa parte. o mestre coulter h-de querer algum lucro desta infeliz viagem. pelo menos no entraria muito em competio com os outros marinheiros, pois que buscava no era ouro nem sedas. medida que se aproximava do castelo da popa, thomas sentiu uns puxes nas suas calas. um hindu com o cabelo negro atado ajoelhou-se sua frente, pedindo algo desesperadamente na sua lngua macia e lquida. alguns homens da tripulao do whelp surgiram da porta do tombadilho, carregando arcas de madeira e jarros que cheiravam a resinas aromticas e a especiarias. o hindu fazia gestos na sua direo medida que falava. - o que queres, homem? - disse thomas. - eu no posso impedi-los. lockheart apareceu porta com um braado de sedas coloridas e panos de chita.

- sabeis, senhor, o que este gentio est a dizer? - perguntou thomas. sem parar, lockheart respondeu: - ele diz para tirares o que quiseres da maldita carga l em baixo. ficam melhor livres dela. thomas olhou para as costas largas do escocs. as vezes gostaria que ele no gozasse tanto. embora seja possvel que o hindu no tenha amor nenhum a quem servia. thomas disse algumas palavras que esperou pudessem acalmar o homem e entrou pela porta. foi descendo por umas escadas apertadas at parte de baixo do convs. virou e entrou num corredor cheio de marinheiros a passar, cada um deles com os braos e os bolsos carregados. na penumbra, thomas viu uma passagem livre que levava mais longe proa e dirigiu-se para l. - no precisais de vos dar ao trabalho de ir nessa direo - gritou um marinheiro. - j rebuscamos. est vazio. thomas aquiesceu, mas mesmo assim continuou, preferindo o corredor tranquilo rapina da multido na passagem principal. continuou passando pelo leme e descobriu que o corredor acabava numa janela de vitral popa. mesmo por debaixo dele ficariam os alojamentos principais do capito ou do proprietrio do navio. as instalaes da tripulao deviam ser mais frente e o armazenamento na plataforma por baixo. thomas encostou-se janela, observando o caminho por onde viera. medida que os seus olhos se ajustavam luz, reparou numa porta sua direita, com emblemas entalhados de caa e uma orla de rosas de oito ptalas. thomas carregou no cabo do puxador de marfim e abriu a porta. levava a um quarto que continha uma mesa comprida e vrias cadeiras pesadas de carvalho trabalhado e couro. em cima da mesa encontravam-se algumas taas, mas o quarto estava desocupado. thomas entrou, fechando a porta atrs de si, agradecido por ter alguns momentos de paz. afundou-se pesadamente numa das cadeiras e fechou os olhos. ouviu o arrastar de outra cadeira contra o cho e levantou-se outra vez, com os olhos bem abertos. no havia mais ningum no quarto. ser que este navio est assombrado pelas sombras daqueles que foram despachados muito recentemente? voltou a ouvir-se o arrastar, mas agora conseguia localizar o som por detrs de uma parede sua esquerda. mas ali devia ser a casa do leme. uma olhadela pelo quarto disse-lhe que este era mais pequeno do que o comprimento do corredor l fora. a parede sua esquerda tinha um lambril profundamente trabalhado mais uma vez representando cenas de caa. reparou num pssaro que parecia estar mais saliente que os ramos e as folhas sua volta. tirando a pistola da cinta, thomas aproximouse silenciosamente da parede. deu uma volta ao pssaro como se fosse um puxador e a porta abriu-se para dentro. suavemente, entrou.

era uma salinha pequena, onde um homem elegantemente vestido estava sentado a uma secretria. vestia uma casaca de veludo preto, mangas debruadas a dourado e um rufo largo de linho fino e duro, debruado a renda. tinha uma barba preta limpa e pontiaguda e olhos pretos que pareciam cansados, mas sem medo. na sua mo direita tinha uma pena de escrever e a sua mo esquerda repousava na tampa de uma caixa de madeira. - deixai isso como est - disse thomas, acenando com a pistola para a caixa. receou que o outro tambm tivesse uma arma. esperou que o homem o compreendesse. o homem de barbas retirou lentamente a mo e sorriu com os lbios apertados. disse qualquer coisa em portugus que podia muito bem ser uma desculpa educada. thomas desejou que lockheart estivesse por perto; o escocs parecia conhecer qualquer idioma da terra. - levantai-vos da. devagar - fez o gesto com a pistola. o homem barbudo pousou o aparo e levantou-se. comeou a andar volta da mesa, na direo de thomas, que levantou a pistola, esperando no ter de matar um homem desarmado. - ei, bom trabalho, tom! - sully, o contramestre, apareceu na porta que ficava por trs. - vejo que capturaste o nosso feiticeiro. - feiticeiro? - a palavra, segundo a experincia de thomas, podia querer dizer muita coisa desde um homem que convocava demnios at ao astrlogo de sua majestade, ou mesmo at algum que tivesse uma afeio demasiado grande por gatos. mesmo os boticrios como o seu mestre, geoffrey coulter, eram por vezes acusados de feitiaria por clientes e homens do clero. - sim, soubemos que ele procurado pelos inquisidores de goa. era por isso que a carraca os perseguia. thomas no via nada na pequena salinha que sugerisse as artes obscuras. - ento este barco dele? - sim, por isso o capito wood quer que ele seja tratado com respeito. - ento e a senhora que parou a luta? - bem, agora pode haver muitas perguntas espera de resposta, no ? este tinha alguma coisa de valor? mapas ou dirios de bordo, por acaso? - ns tnhamos acabado de nos conhecer. - pois, aposto que ele no te daria isso a ti. tiro-te o sujeito das mos ou queres a glria de seres tu prprio a traz-lo? - podeis lev-lo. eu vou procurar um pouco mais. - ento, boa caa. vinde, senhor, conhecer a hospitalidade do capito wood.

o feiticeiro portugus olhou fixamente para o contramestre e murmurou palavras frias e precisas. - as vossas maldies no tm efeito em mim, senhor disse sully. - sou um marinheiro ingls e j ouvi as piores maldies possveis. vamos l. thomas desviou-se e permitiu que o contramestre escoltasse firmemente o cavalheiro. assim que eles se foram embora, thomas foi at secretria e esquadrinhou-a. ao lado da pena cada havia uma folha de pergaminho. s tinha algumas palavras escritas, mas thomas no reconheceu a lngua. voltou-se para a caixa de madeira. era do comprimento da sua mo e da largura da sua palma, feita de madeira escura. no cimo tinha desenhos geomtricos esculpidos. thomas empurrou o gancho de lato da abertura e abriu a caixa. no interior, dentro de um revestimento de seda preta e dourada encontrava-se uma garrafa rolhada de vidro iridiscente. no interior da tampa da caixa havia um papel dobrado. ao tir-lo, thomas viu que o interior da tampa tinha duas serpentes esculpidas em torno de um basto - um caduceu. thomas abriu o papel dobrado e viu vrias linhas escritas. a parte de cima era em grego e thomas abenoou a sua educao, pois sabia l-lo. a mordedura de uma serpente para aquele que respira. uma pele de serpente para aquele que no respira. uma adivinha ou talvez uma maldio, pensou thomas. as outras linhas j no conseguia ler, embora tenha reconhecido a segunda como sendo rabe. dobrou o papel e voltou a p-lo debaixo da tampa da caixa. ser que isto uma poo mgica? uma droga? curativa ou venenosa? thomas fechou a caixa e p-la dentro da sua casaca. se for um remdio, aprenderei com ele. outros podero escolher a sua parte da pilhagem de hoje. esta ser a minha. captulo ii pilriteiro: esta pequena rvore espinhosa tem flores plidas no auge do vero e bagas vermelhas no outono. diz-se que a coroa de espinhos de nosso senhor era feita dos ramos desta rvore, e por isso creditada como tendo muito poder contra a bruxaria. ter pilriteiro em casa protege dos fantasmas e do raio do trovo, no entanto tambm se diz que o pilriteiro em casa traz azar e morte... setembro de 1597, colnia portuguesa de goa o padre antnio gonso, enviado especial do conselho supremo do grande inquisidor de lisboa, estava de p junto de uma janela da santa casa. para seu alvio, a paisagem sua frente no ondulava como o mar. por debaixo da janela ficava a praa da catedral, uma praa ampla como a de qualquer cidade europia. do outro lado da praa erguia-se a catedral de santa catarina, cuja fachada era embelezada com esculturas de santos e as suas duas torres quadradas subiam modestamente em direo ao cu. dois golfinhos de pedra, gmeos, jorravam gua alegremente na fonte da praa. para oeste ficava a

misericrdia, o hospital dirigido pelos jesutas. o resto da praa era rodeado por casas avarandadas de dois andares com telhados de telha vermelha. distncia, belas terras com pomares e jardins alindavam as encostas. na aparncia, a vista podia ser quase a de um porto prspero em portugal. no fossem certas diferenas; diferenas que perturbavam gonso. a praa estava cheia de gente; mestios fidalgos, que vestiam veludos e rendas, passeando com um rapaz atrs para transportar a espada, outro para transportar um guarda-sol, e ainda outro trazendo uma almofada. os senhores nobres faziam vnias uns aos outros, tirando os chapus com gestos grandiosos e alargados. isto tinha tanto de cortesia como de competio, pois era considerado rival o homem cuja vnia no fosse suficientemente baixa, ou sugerisse troa. as senhoras seguiam em palanquins dourados transportados por escravos com peles de colorao no ibrica. muulmanos, judeus, homens de olhos oblquos da longnqua china, persas, hindus, juntamente com todo o tipo de europeus, passavam l em baixo, subindo e descendo a rua direita, indo e vindo debaixo da pedra negra do arco de vice-reis que se virava para o rio mandovi. o ar transcendia ao cheiro de flores tropicais, aves coloridas guinchavam cantos desconhecidos. era tudo demasiado luminoso, demasiado variado, demasiado vivo; os sentidos de gonso sentiram-se sob ataque. recordou uma mulher, a filha de um vizinho da rua onde vivera em lisboa. quando rapaz, admirara o seu cabelo cor de mel-escuro e o seu rosto doce. mas anos mais tarde ela foi trazida perante ele para julgamento, vestida com um roupo de seda vermelha e roxa, acusada de prostituio e feitiaria. goa fazia-lhe lembrar essa mulher; a beleza pintada com devassido, a corrupo a minar debaixo de tudo. os colonos portugueses de goa tinham sido incentivados a casarem com as nativas, na esperana de produzirem converses em massa. mas em vez disso, a verdadeira f conseguira apenas apropriar-se precariamente das almas de goa, de tal modo eram enganadores o ambiente e as influncias estrangeiras. a heresia e o paganismo andavam sempre superfcie como sereias das profundidades. s a santa casa, a sagrada inquisio, permanecia como um baluarte perante as mars que de outro modo engoliriam os fiis. e mesmo essa santa instituio, ao que parecia a gonso, sofria de algumas fendas. e eu sou enviado para fortalecer os seus pilares. estive demasiado tempo no mar, murmurou com um sorriso interior. at os meus pensamentos cheiram a peixe. ouviu passos que se aproximavam e voltou-se da janela. era domine rui sadrinho, o inquisidor-mor. era alto e muito magro, talvez com 40 anos. o rosto acima da sua barba preta bem aparada era salpicado e manchado com cicatrizes de alguma antiga pestilncia. gonso inclinou a cabea na sua direo. - domine. - bom dia, padre. espero que tenhais recuperado da vossa longa viagem. as vossas acomodaes so satisfatrias? - so muito confortveis, obrigado. e estou contente por poder afirmar que o cho

parou de balanar quando caminho. mas dizei-me, domine - gonso puxou o colarinho do seu pesado hbito branco de dominicano -, aqui sempre assim to quente? - na verdade, padre. sempre. - mesmo quando chove? - especialmente quando chove. ento fica quente e mido. - e noite? - ento quente e escuro, padre. - e os mosquitos, domine... - tambm esto sempre conosco. o diabo est muito ocupado nesta parte do mundo. as pestes e as pestilncias abundam aqui. tal como est escrito na vossa cara, pensou gonso, e depois censurou-se. - pois assim me disseram. mas porqu assumir que o trabalho do demnio? uma praga poder ser um ato de deus. o inquisidor-mor olhou espantado, depois desconfiado: - de certeza que nosso senhor mais piedoso do que isso. no, no estou a tentar armar-vos ciladas, pensou gonso, por enquanto. tentou fazer um sorriso desarmante. - apenas uma meditao vulgar, domine. suportarei este clima com pacincia, se tiver de ser. - penso que descobrireis que a nossa santa casa tem confortos melhorados para oferecer, padre. este edifcio, fao notar, era o palcio do adilshah de goa, antes de as nossas gentes chegarem. guardamos alguma da sua moblia... esto na ala residencial. esta cmara era o seu salo do trono. a mesa do santo ofcio na verdade ainda retinha alguma semelhana com a majestade anterior. o vestbulo comprido e de teto alto era ladeado por falsos arcos decorados com arabescos e tapearias delicadas em faixas de cor azul e amarelolimo. dominando a parede de leste havia um enorme crucifixo de madeira. um estrado com degraus enchia o centro do vestbulo. no estrado havia uma mesa longa rodeada de cadeires forrados de brocado de seda vermelho. numa das pontas da mesa via-se um simples banco de dobrar. - posso pedir que vos acompanhem numa volta pelo edifcio, se assim desejardes prosseguiu sadrinho. - obrigado, mas no estou aqui em viagem de prazer, domine, e as tarefas que me

esto destinadas pesam terrivelmente. gostaria de comear os meus inquritos o mais depressa possvel. o grande inquisidor albrecht tem uma grande preocupao pelos vossos problemas aqui. a vossa carta tocou-o profundamente. sadrinho olhou para o cho. - alegra-nos saber que o grande inquisidor se preocupa com um posto to distante da santa casa. - as ovelhas mais afastadas do rebanho so aquelas pelas quais o pastor tem de ter mais cuidado, no assim? mais uma vez o inquisidor-mor pareceu desconfiado. - no nos surpreendeu que ele fosse to generoso ao ponto de nos mandar um enviado especial para... nos ajudar. ah. ento a vossa carta era apenas uma lista de desculpas e no um pedido de auxlio? desde que o governador manuel coutinho voltara vergonhosamente para lisboa, o grande inquisidor andava preocupado com as relaes entre a santa casa e o governo colonial de goa. sadrinho suspirou: - no passado, os governadores tiveram a tendncia para no nos prestar ateno. gonso aquiesceu em simpatia: - a riqueza e o poder cegam os homens para os pensamentos da f. - a feitiaria e os ritos demonacos so mais do que cegueiras, padre. - verdade. a feitiaria uma acusao sria. o fato de primeiro coutinho e agora, este ano, o vice-rei albuquerque terem sido mandados para a ptria acusados dessa prtica perturbaram muito o grande inquisidor. - o ambiente deste lugar, padre. faz nascer heresia que nem moscas em fruta podre. mas a vossa chegada na hora certa. descobrimos alguns dos que esto envolvidos na cabala pag que corrompeu coutinho. - ah, excelente. que espcie de homens compem esta cabala? - um era um mdico muulmano chamado zalambur. infelizmente foi encontrado morto, envenenado, antes de o podermos interrogar. suspeitamos que se tenha suicidado. mas temos a sua amante como nossa convidada aqui. vamos entrevistla outra vez esta noite, se estiverdes interessado em assistir. ele oferece isto como se fosse um entretenimento. - isso poder vir a ser bastante... informativo, domine. houve outras pessoas

envolvidas? - sim. um alquimista e feiticeiro portugus chamado bernardo de cartago. tentou fugir de goa por barco, mas penso que nos v ser devolvido em breve. e h outra pessoa que talvez esteja com ele; uma mulher que a mais misteriosa do crculo, mas talvez a mais influente. conhecemo-la como aditi, embora j tenha ouvido referencila como manasadasa, que significa servidora da deusa serpente. - um ttulo de mau pressgio. sadrinho abanou a cabea: - para os hindus no. eles consideram a serpente como um smbolo de sabedoria e imortalidade. - nosso senhor uma vez tambm disse sejam espertos como serpentes, mas no me parece que ele quisesse que as adorssemos ou servssemos. - foi? - disse o inquisidor com um olhar fascinado. - est nas escrituras, domine. evangelho de so mateus. certamente que estais recordados dos vossos estudos religiosos. reparo que tendes algum conhecimento das crenas nativas. meio encolhendo os ombros, o inquisidor disse: - no nosso trabalho, uma pessoa vai aprendendo coisas. quanto mulher, o nome aditi que nos traz preocupados. o nome de uma deusa dos cus hindu, mas tem tambm a conotao de libertao. h rumores de que esta mulher tem o apoio dos maratas. - maratas? quem so esses? os olhos do inquisidor abriram-se mais: - ah, mas eu esqueo-me que sois novo nesta regio e no conheceis as suas polticas. os maratas encontram-se entre as famlias hindus mais ricas e mais nobres daqui. so de uma casta guerreira superior, e a sua cooperao crucial para o domnio de portugal sobre goa, no entanto sabe-se que eles tm fortes ligaes s famlias governantes de bijapur. - estou a ver. ento estas corrupes podem significar para eles mais do que a simples difuso de prticas demonacas. - gonso confirmou com a cabea: - fizestes um bom progresso nisto, domine. o grande inquisidor ir ficar satisfeito. dizei-me, como vo as relaes com o vosso novo governador, dom francisco da gama? ele honra o nome do seu ilustre av? - no fez nada que o manchasse. e respeita a santa casa. - fico satisfeito por saber isso.

- por favor, perdoem-me, senhores - chamou um jovem rapaz de pele escura junto porta do outro lado do vestbulo, com uma pronncia de portugus com uma tnica musical. chegaram sua excelncia o arcebispo aleixo de meneses e o capito pedro ortiz e solicitam a vossa audincia. sadrinho disse ao rapaz: - muito bem. iremos receb-los. o rapaz fez uma vnia baixa e saiu. - o tempo foi na verdade o preciso - disse gonso. - eu esperava encontrar-me brevemente com o arcebispo de meneses. - e o capito ortiz deve ter boas notcias para ns em relao ao assunto que estivemos a discutir. vinde sentar-vos enquanto esperamos os nossos visitantes. sadrinho fez um gesto na direo das cadeiras vermelhas sobre o estrado. gonso subiu a plataforma e instalou-se numa das cadeiras. em cima da mesa havia um sino de prata e dois livros. um era um missal de capa de couro, o outro era um volume pequeno com capa de pergaminho. gonso pegou lentamente no livrinho e examinou-o. leu o ttulo pintado na lombada, depois voltou-se para o inquisidor sadrinho, permitindo que a sua consternao se visse. - este livro, domine. porque que est aqui? - qual? ah. os lusadas. irmo timteo deve t-lo deixado a. novo e por vezes distrado. gonso abriu a capa e olhou para a primeira pgina. reparou na data ali escrita em nmeros romanos. - domine, esta publicao a original, de 1572. sadrinho franziu o sobrolho. - sim? e ento? - conheceis esta obra? o inquisidor mostrou-se novamente desconfiado: - um poema pico de lus vaz de cames. pensei que era muito respeitado em lisboa. - e . entre os eruditos. j o haveis lido? - no. disseram-me que parte dele foi escrito aqui em goa. o irmo timteo tem-no em grande estima porque o seu av, garcia de orta, o famoso naturalista, conheceu

cames. na verdade, cames viveu em sua casa por uns tempos, e escreveu alguns versos para a introduo do livro de garcia de orta sobre drogas e simples orientais. - ah. interessante. compreensvel, ento, que o rapaz goste do livro. mas esta uma verso no expurgada, domine, e contm muitos... versos pagos. que idade tem o irmo timteo? - treze anos, padre. - s treze? uma idade perigosa. vede, este poema uma histria falsa, domine. descreve as viagens de vasco da gama como se fosse um mito homrico. est recheado de deuses pagos e demnios das antigas grcia e roma. atentai aqui. gonso abriu o livro ao acaso. - nesta pgina, o poeta escreve sobre marte e jpiter no monte olimpo, apoiando vasco da gama para contrariarem o deus do vinho, baco. noutra pgina, temos vasco da gama a falar com prometeu e apoio como se estes fossem verdadeiras foras a quem se reza. e aqui, o poeta escreve uma longa passagem relativa a vnus e sua ilha dos amores. sadrinho ergueu as sobrancelhas: - no fazia idia. - no tenho a certeza se este irmo timteo ter j o conhecimento ou a educao para... compreender esta obra no seu contexto devido. sugiro vivamente, domine, que este livro seja colocado num cofre at o rapaz ser mais velho. o inquisidor concordou: - compreendo. assim ser feito. gonso fez deslizar o livro pela mesa para que sadrinho lhe chegasse e os seus dedos compridos acariciaram a capa de pergaminho com um gesto que poderia ser de pena. parece que os rumores que chegam aos ouvidos de albrecht so verdadeiros. esta santa casa tem falta de disciplina. preocupam-se mais com os seus confortos e possesses do que com o seu trabalho santo. - o irmo timteo vai ficar desapontado - disse sadrinho. - o seu av era muito querido como curandeiro em goa e temos a sorte de timteo ter vindo at ns. um dos nossos melhores aclitos, e at serve como advogado dos nossos visitantes. tem um certo jeito com eles que melhor que qualquer castigo. - admirvel. gostaria de conhecer esta jovem maravilha. se ele um amante da poesia, posso recomendar-lhe a obra de diogo bernardes. achei muitas vezes inspirao na coleo vrias rimas para o bom jesus. tenho um exemplar comigo que lhe posso emprestar. com um sorriso amargo, sadrinho disse:

- tenho a certeza que ele ficar contente. - garanto-vos, domine, que os versos no so to inspidos como o ttulo sugere. - de acordo, padre... ah, a vm os nossos visitantes. as portas distantes abriram-se. o pajem entrou e anunciou: - sua excelncia o arcebispo aleixo de meneses e o capito pedro ortiz do santa rosa. o arcebispo entrou: um homem grisalho de aparncia suave a quem as vestes vermelhas e a capa pareciam espalhafatosas. por trs dele, com cheiro a alho, laranjas e peixe, entrou o capito ortiz, um homem pequeno e rijo. a sua casaca de cetim verde e cales largos estavam manchados e remendados. o capacete dourado que trazia na mo fora, porm, muito polido, e a sua vnia profunda era gentil. o inquisidor recebeu o arcebispo e o capito com um aceno de cabea. gonso levantou-se do seu lugar e desceu do estrado. apertando as mos do arcebispo, disse: - uma honra, excelncia. deixai-me felicitar-vos pela vossa nomeao como primeiro-primaz do oriente. uma honra bem merecida. o arcebispo parecia admirado. - agradeo-vos, padre. tambm ouvi coisas boas a vosso respeito. a minha nomeao foi uma bno inesperada. espero vir a ser merecedor do lugar. - no tenho qualquer dvida em relao a isso, excelncia. e uma boa tarde tambm para vs, capito ortiz. sou o padre antnio gonso. o nome do santa rosa falado com orgulho por toda a lisboa. apresento-vos as boas-vindas. o capito olhava ora para gonso ora para o inquisidor sadrinho. - agradeo-vos e desejo que vs, santos padres, tenhais um bom dia - disse ele numa voz irritante. - que deus vos abenoe este dia e sempre. - as mos que apertavam o seu chapu de veludo estavam plidas. os visitantes da santa casa esto muitas vezes pouco vontade, pensou gonso, no entanto eu acho que as suas notcias no so boas. ele acompanhou o arcebispo e o capito at mesa. meneses sentou-se a alguma distncia de sadrinho e o capito permaneceu de p. gonso sentou-se perto do arcebispo, o que pareceu incomodar o inquisidor-mor. sadrinho virou o seu mau humor para o capito.

- esperamos, capito ortiz, que nos traga provas de tais bnos. confio que bernardo de cartago esteja agora preso no aljouvar. o arcebispo meneses suspirou e olhou para baixo para a mesa. o capito ortiz endireitou os ombros, a revirar o chapu nas mos. - lamento imenso, domines, que ele no esteja. causamos estragos no navio, mas no fomos capazes de o capturar. - no o capturaram - disse sadrinho, devagar. - espervamos melhor de vs, capito ortiz. com os olhos desafiadores, ortiz respondeu: - eu no estava espera que o feiticeiro conjurasse navios ingleses vindos sabe-se l donde para sua defesa, domine! - navios ingleses? - eu acho - disse o arcebispo - que devereis ouvir as circunstncias antes de julgardes, domine. a presena dos ingleses foi confirmada por outros viajantes que chegaram a goa. sadrinho olhou fixamente para o arcebispo e depois voltou a dirigir o olhar para o capito. - muito bem. explicai. o capito ortiz comeou com uma vnia rpida. - o santa rosa chegou junto do galeo do feiticeiro perto das bassas de pedro. dirigia-se para sul. perseguimo-lo, conforme ordenado. quando passvamos a ilhas amindivi, estvamos quase ao p dele. foi ento que os navios ingleses apareceram, vindos por trs da ilha de kiltan. os meus homens esforaram-se por preparar todos os nossos canhes, mas os ingleses j estavam a postos. navegaram entre ns e o navio do feiticeiro, disparando os seus canhes. os navios deles eram mais pequenos e mais rpidos. tinham muito mais hipteses de disparar sobre ns. fizemos o maior nmero de estragos possvel, e abatemos mastros nos navios dos ingleses e do feiticeiro. mas eu ordenei ao santa rosa que continuasse para sul, em vez de o deixar como presa dos ingleses. se isso vos servir de consolo, tenho a certeza que o senhor cartago est ou morto ou um prisioneiro ingls. - fugistes - disse sadrinho suavemente. - no vos considerava um cobarde, capito ortiz. as narinas do capito abriram-se. - domine, apesar de ter a honra de estar a fazer um servio santa casa, o meu ltimo dever para com os meus homens e para com sua majestade, o rei filipe.

talvez vos tenhais esquecido que o santa rosa pertence frota de sua majestade. - talvez vos tenhais esquecido do vosso dever para com deus. - disseram-me, domine, que o servio ao rei servio a deus. ou pretendeis que esta casa seja mais alta que o trono real? bem argumentado, pensou gonso, at mesmo sabiamente. este homem no cobarde nenhum. o rosto de sadrinho empalideceu. - acreditamos que o servio prestado a um servio prestado a ambos. parece que nos haveis falhado a todos. felizmente, temos uma sala disponvel onde podereis contemplar o vosso erro. - estendeu a mo para o sino de prata. - esperai, domine - disse gonso. - padre? - um msculo da face do inquisidor retorceu-se e os olhos estreitaram. - bem-aventurados os piedosos, pois recebero piedade. - isso alguma frase dos jesutas? ento esse rumor tambm verdadeiro. ele muito ignorante das escrituras. - no, domine. essas so tambm as palavras de nosso senhor. dos livros sagrados. o arcebispo murmurou. - mateus, versculo quinto. - ento qual a vossa idia, padre? - capito ortiz, sois um bom catlico? - com todo o meu corao, padre, que deus me oua e defenda. - e aceitais todos os ensinamentos da santa madre igreja? - todos, padre, do nascimento at morte. domine, este homem no hertico nem apstata. a vossa guerra com ele uma questo civil. se precisais de procurar agravo contra ele, tendes de o levar ao governador gama. ele tem a autoridade para decidir se o capito ortiz serviu devidamente o rei. sadrinho rilhou os dentes, mas finalmente disse: - muito bem. podeis ir, capito ortiz. o capito fez uma vnia baixa a gonso.

- no h dvida que deus vos concedeu sabedoria, padre. - e depois voltando-se para o arcebispo, acrescentou: - se me concederdes a vossa bno, excelncia. ajoelhou-se e beijou o anel do arcebispo. meneses pousou uma mo na cabea do capito. - se vos ajudar, tendes a minha bno. vai com deus, meu filho. o capito ortiz ps-se novamente de p, cumprimentando sadrinho com uma volta no chapu. - irei colocar-me imediatamente nas mos do governador gama. o inquisidor sadrinho aquiesceu solenemente e o capito ortiz saiu. assim que as portas se fecharam, fixou os olhos em gonso. - como vos atreveis... - o grande inquisidor albrecht - disse gonso - enviou-me para observar esta santa casa, e corrigir desvios onde eu achasse por bem. sabeis que temos de respeitar uma linha muito clara entre questes de f e questes de justia civil. compreendo que este feiticeiro seja importante, mas homens com a percia do capito ortiz so precisos contra holandeses e ingleses. portugal no se pode dar ao luxo desta perda. - se este trabalho atamancado for caracterstico da percia do capito - resmungou sadrinho -, ento choro por portugal. - ortiz poder ter feito por vs mais do que imaginais. tendes familiares entre os mercadores e pescadores aqui, no verdade? - claro. e ento? - os navios danificados no podem viajar at muito longe. se o santa rosa deitou mastros abaixo nos navios ingleses, eles tero de encontrar porto seguro para reparaes. se os familiares nos puderem dizer onde que os ingleses foram vistos pela ltima vez, poderemos calcular onde que foram acostar. algumas naves costeiras pequenas, enviadas em segredo, podero cumprir o que uma poderosa carraca no conseguiu. sadrinho pestanejou. - ah, sim, estou a ver. talvez isso se possa fazer. vou inquirir imediatamente. perdoaime, excelncia. - e levantou-se para sair acenando com a cabea ao arcebispo. - domine - gonso chamou-o. - sim? - por favor, preparai os livros deste ltimo ano para que eu os inspecione.

- os livros? - presumo que a minha carta de apresentao declare claramente que me devem ser apresentados quaisquer materiais que eu pretenda. - ah. talvez daqui a uns dias, padre. quando tiverdes recuperado da vossa jornada. - eu fui escolhido pela minha capacidade de trabalho, domine. verei os livros esta tarde, se possvel. - ah, vou ver o que se poder reunir num tempo to curto. - obrigado, domine. talvez pudsseis enviar-me o jovem defensor, aquele que gosta de poemas, para me trazer os livros. sadrinho suspirou. - como queirais, padre antnio. depois da missa em santa catarina. - excelente. e quando estiverdes nos vossos servios, por favor lembrai-vos de mim nas vossas oraes. - assim farei, padre. tende a certeza que o farei. depois de a porta se fechar por trs do inquisidor, o arcebispo meneses virou-se para gonso. - sois ousado, padre antnio. essa qualidade muito necessria aqui, embora o inquisidor-mor no a aprecie muito. - no posso dizer que tenha sido inesperado, excelncia. poucos dos que alcanam o poder so poupados sua influncia corruptora. tambm precisamos de nos lembrar do inquisidor nas nossas oraes. - com efeito - disse o arcebispo com pouco entusiasmo. acho este aparecimento dos ingleses - continuou ele, inclinando-se para a frente e tamborilando com os dedos na mesa muito perturbador. - se isso vos descansar a mente, excelncia, quando eu vinha a sair de lisboa, soube que sua majestade estava a reunir uma nova armada. foi por isso, em parte, que eu desejei que o capito ortiz fosse libertado para o governador. ele vai ser preciso. acho que no vamos ter de temer a pirataria inglesa por muito mais tempo. - isso so boas notcias, padre. no entanto, no posso deixar de recordar o destino da nossa armada anterior. - por favor, excelncia, dai algum crdito aos nossos adelantados quanto aprendizagem com os erros anteriores. - h quem diga que a tempestade que destruiu a armada foi um ato de deus. - deus nosso senhor a defender hereges ingleses? cuidado, excelncia. - gonso

agitou um dedo de brincadeira. caminhais perigosamente para a heresia. - perdoai-me - disse meneses com um sorriso. - vou dizer duzentas oraes a santa maria em penitncia. - acrescentai, por favor, mais algumas para mim. - gonso ps-se de p, alisando a sua veste branca e o escapulrio. o arcebispo tambm se levantou. - gostaria de vos fazer uma pergunta, porque que haveis pedido que o rapaz orta vos levasse os livros? por causa do seu famoso av, o herbalista? - domine sadrinho disse-me que o irmo timteo um defensor, apesar da sua juventude. quem melhor me poderia informar acerca dos convidados que so trazidos santa casa e a forma como so tratados? - estou a ver. muito sensato. - h algo que podereis fazer por mim, excelncia. o arcebispo pareceu desconfortvel. - se eu puder. - quero saber tudo o que for possvel no que diz respeito ao julgamento do governador coutinho. se pudsseis fazer com que me dessem os registros do julgamento, isso seria de grande utilidade. - vou ver o que posso fazer, padre. mas confesso, a minha influncia na santa casa no mnimo modesta. - tenho confiana nas vossas capacidades, tal como o cardeal albrecht tambm. - honrais-me demasiado. - quando iam a caminhar em direo s portas, meneses acrescentou: - foi um caso curioso. coutinho era de boa famlia crist, sem um sopro de escndalo de heresia. e no entanto algo o seduziu, o convenceu apostasia. alguma coisa que ele aceitou como prova de crenas pags. - muito curioso. e perturbador saber que a sua f se mostrou to facilmente corruptvel. temos de aprofundar este mistrio o mais que pudermos. onde a serpente do mal levanta a cabea, mais se esconde debaixo da terra. meneses sorriu: - vai ser muito refrescante ter-vos aqui, padre gonso. captulo iii morrio: esta planta tambm chamada erva-de-maria, ou erva-dos-porcos. tem flores carmins ou douradas, que se fecham quando se aproximam tempestades.

abrem-se com bom tempo, e so por isso chamadas barmetros dos pobres. dizse que pegar no morrio d terceira viso. o morrio afasta a bruxaria e os feiticeiros evitam-na pois faz com que revelem os seus segredos. para o mestre geoffrey coulter, boticrio, londres, do seu aprendiz e agente, thomas chinnery, escrita no ms de setembro, no ano de 1597 de nosso senhor. senhor, chego concluso que tenho de comear novamente esta carta, pois a ltima ficou destruda noutra incurso de pirataria ordenada pelo capito wood. no sei se esta alguma vez chegar s vossas mos, mas no posso perder a esperana. alcanamos a costa da ndia, mas no fiqueis maravilhado com a nossa velocidade. o curso da nossa viagem no tem sido o que estava inicialmente previsto. sir robert dudley preparou esta expedio para procurar um caminho mercantil para a china por ocidente, pelo estreito de magalhes. no sei, mas se tivssemos agido desta forma, a fortuna teria sido mais gentil. em vez disso, a nossa frota encontrou o almirante raleigh nas canrias e os seus alardes de riquezas a encontrar ao longo da costa africana e no mar arbico, e os seus avisos sobre os perigos a ocidente, convencendo o capito wood e grande parte da tripulao que deveramos seguir a rota de oriente. sempre melhor o diabo conhecido, disseram eles. os senhores mercadores allen e bromefield estavam furiosos mas pouco podiam fazer. mas o nosso caminho no foi mais fcil que o dos nossos antecessores. o benjamin perdeu-se numa tempestade ao largo do cabo da boa esperana. quase metade da tripulao adoeceu de escorbuto ou de outros males. pela graa de deus, at agora fui poupado s doenas. talvez para abrandar a ira dos mercadores, ou para aumentar a sua glria e riqueza, o capito wood tem perseguido todos os galees portugueses que encontramos. tornamo-nos mais corsrios que mercadores. nestas batalhas, temos ganho, mas no sem esforo. nesta altura em que escrevo, estamos ancorados a norte de calecut, tentando reparar os estragos feitos na nossa ltima incurso. o bear precisa de novos mastros e o carpinteiro diz que as rvores desta regio no servem. embora ainda possamos chegar china, j temos poucas provises com que comear o comrcio. tive de usar quarenta e sete pastilhas do vosso composto de camomila e papoulas para aliviar os doentes e feridos da tripulao. quase metade das provises de ervas desapareceram, em especial o alho, a aristolquia, a anglica e a valeriana. consegui poupar a mirra e o corno de unicrnio, bem como a confectio alcarmas, mas poderei vir a precisar deles se no se encontrar outra fonte de medicamentos. temo que no seja possvel reabastecer estes fornecimentos daqui at canto. disseram-me que talvez se encontre estes materiais em pegu, mas seriam de qualidade incerta. peo-vos que me perdoais o meu desperdcio destes bens que estavam destinados

a serem o nosso meio de troca e riqueza com o oriente. mas eu tornei-me o curandeiro mais proeminente a bordo, pois o nosso mdico do navio sucumbiu a uma febre somente h dois dias atrs. apesar de no ter saudades das suas sangrias e sanguessugas, dou comigo a sentir falta da sua companhia neste trabalho que afeta o corao. espervamos que alguns homens pudessem seguir a p at calecut para pedirem ajuda, mas no podemos dispensar braos para as reparaes. e h o medo de que se se espalhar o rumor relativamente nossa localizao e estado enfraquecido, nos possamos encontrar como alvo de banditismo... thomas levantou a sua pena da carta, com a mo a tremer de cansao. da sua rede sobre as escadas que levavam s instalaes da tripulao, ele podia ouvir os gemidos e os movimentos incessantes dos doentes e dos feridos. para l da antepara, a gua batia no costado do navio e as cordas da ncora rangiam com o empurro da mar. o ar estava mido, asfixiante e espesso com os odores de podrido, tanto de madeira como de carne. no tabique mais prximo jazia nathan, o aprendiz de carpinteiro, com o rosto plido. a sua ferida do canho estava a infectar e thomas pouco podia fazer pelo rapaz. o seu destino est num poder muito maior do que o meu. um pingo de tinta caiu da ponta da pena em cima do papel quando se ouviram passos pesados a descer as escadas por detrs dele. - ento? - disparou lockheart. - outra cano de amor para a tua querida? no afogues a tua rapariga com mimos, meu rapaz, seno ela ainda encontra um cachorrinho menos baboso para acariciar. - tendes um sentido apurado, senhor, de quando me podeis mais facilmente perturbar na minha correspondncia. contudo, thomas no estava inteiramente descontente por ver a presena forte do escocs. o bom humor ruidoso de lockheart, embora desconcertante, fazia com que a esperana parecesse possvel. e embora a sua carta no fosse dirigida diretamente para ela, thomas esperava que anne coulter, a filha do seu mestre, a quem ele admirava h muito, lesse a carta e soubesse que ele estava bem. lockheart assentou o seu corpanzil desajeitadamente nas escadas. - tenho ouvidos de morcego, tom. ouo o raspar da tua pena ao longe. - com ouvidos to finos, como que no ensurdeceis com a vossa prpria voz? a propsito, peo-vos que faleis mais baixo. perturbai-me se quiserdes, mas permiti alguma paz a estes pobres desgraados. - imploro-te perdo - disse lockheart com um rugido mais baixo. - espero que tambm tenhas escrito tua me? as mes no sucumbem aos excessos de

carinho e precisam de ser muito reconfortadas. - no tenho me, senhor. morreu quando eu nasci. - imploro o vosso perdo. as minhas condolncias, ento. thomas encolheu os ombros. - no a conheci, por isso no havia ningum a quem chorar. - surgiram-lhe pensamentos espontneos de uma infncia cheia de tristeza, horas solitrias, uma sucesso de amas, algumas amveis, outras indiferentes, outras pior. - ento precisas de escrever ao teu pai, se ele o teu nico parente. - o meu pai interessa-se pouco pelas minhas coisas. - com certeza que isso no pode ser! s o seu nico filho? - que eu saiba. - ento ele deve querer-te mais do que aquilo que pensas. por vezes, mesmo os pais aparentemente mais distantes tm um interesse genuno pelos seus filhos. thomas fez uma pausa, recordando a forma como, do convs do bears whelp, ele espiara a cara nada sorridente do seu pai no meio da multido do cais quando o navio se afastava. - pode ser que sim. em tempos o meu pai encorajara-me a fazer uma viagem a npoles, mas o mestre coulter disse que uma viagem ao extremo oriente seria mais proveitosa. agora s desejava ter seguido o conselho do meu pai. - pois a tens - disse lockheart. - tendes razo para isso. mas o mestre coulter foi para mim mais pai que qualquer outra pessoa no mundo, ele e a sua boa esposa. - bom quando os homens tratam amavelmente quem os ajuda. mas pela tua forma de falar e pelos teus modos diria que nasceste em bero nobre quando nos encontramos pela primeira vez. o que que te levou a seres aprendiz? thomas riu-se. - bero nobre? vagamente, na melhor das hipteses. o meu pai tinha ligaes muito bem nascidas no continente, e uma vez gabou-se de que a minha me tinha sangue de reis italianos. mas um fio muito fino e enrolado aquele que me liga a qualquer nobreza. uma riqueza de sangue to pequena traz pouca fortuna e ainda menos perspectivas. reparai, se as histrias de luxria contadas acerca dos reis britnicos do passado tivessem qualquer crdito, vontade metade das almas de inglaterra podia sem dvida reclamar descendncia real. lockheart fez um sorriso forado.

- no tinha pensado nisso, mas deve haver alguma verdade no que dizes, rapaz. ouviram-se interrogaes entre gemidos vindos dos tabiques escuros sua volta. - estejam tranquilos, est tudo bem - disse thomas como resposta. para lockheart, ele acrescentou: - estamos a perturbar-lhes o descanso, senhor. vamos para cima para falarmos. - uma idia inteligente. subamos antes que o ar irrespirvel deste lugar nos transforme em vermes aos dois. - dentre os que praticam a arte do meu mestre h os que acreditam que o ar espesso e pestilento atua como barreira contra a doena. eu s posso pensar que esses homens nunca andaram no mar. thomas soprou suavemente na sua carta para secar a tinta, depois dobrou-a e enfiou-a na sua casaca. ps-se de p e seguiu lockheart pelas escadas que rangeram at claridade da luz do dia. thomas foi bafejado por uma brisa fresca, prenhe de gua salgada e flores exticas. um pr do sol dourado encheu o horizonte a ocidente, esbatendo-se em azuis profundos e ndigo na direo do oriente. na linha de estibordo via-se uma lagoa turquesa, rematada por uma praia arenosa e uma floresta de palmeiras. - eis aqui uma cena mais prpria para o bem-estar - disse lockheart. ele usava um gibo sem mangas, manchado, de couro cinzento cor de ferro, habilmente concebido de forma a revelar um forro de veludo vermelho, e rendas abertas at ao peito. visvel por trs da renda estava uma medalha de prata num fio da tampa. dentro desta caixa est esculpido um caduceu, o smbolo de esculpio, a quem os gregos adoravam pelo seu poder de cura. - ah. vejo que conheces os clssicos. - o meu pai deu-me alguma educao, senhor. tinha esperana que o contedo desta garrafa nesta caixa pudesse ser medicinal de alguma forma. - ainda no o experimentaste. - estava na posse de um feiticeiro, lembrai-vos. no sei se de confiana. neste papel h algumas inscries. consigo decifrar o significado da que est mais em baixo, o grego, mas as outras por cima so escritas que no conheo. - d c - disse lockheart, estendendo a mo. com relutncia, thomas deu-lhe o papel. para seu alvio, os dedos pesados do escocs abriram-no com cuidado. - isto misterioso. a primeira frase est escrita em rabe, no entanto, o seu significado bblico: eu sou a ressurreio e a vida.

- isso d esperana. a linha seguinte tambm em rabe, no ? - uma boa tentativa, rapaz, mas persa. - conheceis essa lngua? - s um momento - lockheart examinou-a de perto, como se fosse um estranho inseto. - estas palavras so de outro livro sagrado, o alcoro, do islo. - so? qual a sua mensagem pag? - faz ressurgir os vivos dos mortos e os mortos dos vivos. a terra sem vida acordada por ele. thomas coou o rosto. - todas estas mensagens falam da vida ressurgida da morte. talvez seja um remdio muito poderoso. - ou o mdico que a utiliza tem de orar pela sua eficcia. - como o homem no sabe como os remdios funcionam, talvez a orao seja a parte mais eficaz da cura. qual a mensagem seguinte? lockheart examinou mais uma vez o papel. - aposto que isto snscrito. - que lngua essa? - disseram-me que muitos livros sagrados hindus esto escritos nesta lngua. - se calhar so mais palavras sagradas sobre a vida e a morte. tambm conseguis ler essas palavras? lockheart abriu a boca, fez uma pausa, depois fez um sorriso forado. - no. thomas suspirou. - ainda no estou convencido que posso usar isto em segurana. a frase grega, eu sei, fala de serpentes e pele. - talvez no queira dizer que pertena ao contedo desta garrafa. podem ser apenas escritos ao acaso de algum que pratica estas lnguas. - hmmm. acho que no. o feiticeiro tinha esta caixa ao lado dele quando o encontrei. e estava com pouca vontade de ser separado dela. - se o grego fala de serpentes, talvez seja veneno de cobra.

- ento pode ser veneno ou remdio. a triaga um remdio que usvamos na loja do mestre coulter. contm carne de vboras; um curativo muito comum. isto pode ser alguma coisa assim. - posso ver a garrafa? thomas parou. - quero-a devolvida. - retirou a garrafa iridiscente da sua cama de seda e deu-a ao escocs. - no tenhas receio de mim. isto uma coisa bem bonita. - lockheart fez deslizar suavemente a rolha de cortia. saiu com um pop pequenino. lockheart bateu na garrafa at sair um p fininho castanho para a palma da sua mo. lambeu o polegar e encostou-o ao p. esfregou a substncia misteriosa entre o polegar e o indicador, cheirando a uma distncia segura. olhou durante uns momentos para o mar, mergulhado no pensamento. franzindo o sobrolho, lockheart ps a palma da mo sobre a boca da garrafa e voltou a deitar o que pde l para dentro. depois, cuidadosamente, limpou a mo aos cales para retirar o resto. - que pensais vs? - disse thomas. - acho que as nossas interrogaes nos esto a levar pelo caminho errado. - no remdio nem veneno? - eu li aquelas frases em livros sagrados, tom. talvez isto no seja remdio para o corpo, mas para a alma. ou um meio de levar queda das almas. se o meu julgamento tiver algum valor, o p nesta garrafa sangue seco. e j vi muito sangue na minha vida. - rolhou a garrafa e voltou a d-la a thomas como se ela lhe queimasse as mos. thomas pegou nela, sentindo um arrepio. - sangue de homem ou de animal? o que que um feiticeiro poder fazer com isso? - o que poder ele no fazer, tom? como diz nas escrituras, o sangue a vida. o sangue dos animais nocivos pode realar a poo das bruxas, enquanto o sangue de um homem pode ser usado contra ele mesmo. o sangue de um santo, bem... se a magia do nosso feiticeiro for branca, poder fazer milagres; se for negra, grande mal pode ser causado. - ento isto poder ser uma relquia? - se fosse papista, thomas saberia que a sua alma estaria mais a salvo se ele atirasse imediatamente a garrafa para o mar. lockheart encolheu os ombros. - de certeza que no tenho o conhecimento para o dizer. thomas baixou o olhar para a garrafita. qual ser o mal que mais perigos causa alma: uma relquia papista, um talism pago ou um feitio satnico?

- seja como for - prosseguiu o escocs - possvel que o nosso feiticeiro a tenha usado apenas como especiaria no seu cozinhado. mesmo sem querer, thomas riu-se. - senhor, nunca sei quando falais a brincar. - no te queixes. muitas vezes nem eu. aproximaram-se alguns passos e thomas olhou em volta. o mestre bromefield caminhava na direo deles atravessando o convs, com a sua capa de veludo levantada pelo vento. thomas pensou que ele se parecia com um retrato de taberna do velho rei henrique viii, s que mais magro e mais gasto. interrogou-se qual seria o sentido de honra exagerado que levaria homens como bromefield a usar roupas to pesadas e tufos engomados e duros em volta do pescoo mesmo neste clima to quente. talvez como enviado especial de sua majestade, a rainha isabel, ao grande imperador da china, bromefield nunca soubesse quando que iria ser chamado a impressionar algum. thomas ps novamente a garrafa na sua caixa e enfiou-a na casaca medida que um bromefield encharcado em suor se aproximava deles. - senhor - disse bromefield a lockheart -, o nosso capito apresenta-vos as suas mais calorosas desculpas e pede o vosso regresso para o ltimo interrogatrio dos nossos cativos. - bromefield trazia uma expresso contrafeita e thomas interrogou-se se o mercador gostava menos da mensagem ou da tarefa de mensageiro. - belas palavras, dadas lindamente, senhor - respondeu lockheart -, podeis informar o bom capito que regressarei em breve. - assim farei, senhor. - bromefield virou-se para sair. - mais uma coisa - disse lockheart. - tambm levarei o senhor chinnery, pois tem perguntas suas a fazer. - como bromefield franzisse o sobrolho, acrescentou: - no esqueais que foi ele quem descobriu o nosso feiticeiro. acho que ganhou esse direito. bromefield suspirou, como se o mundo tivesse passado todas as marcas da razo. - muito bem, se o capito wood estiver de acordo. - virou-se, com a capa a rodar e afastou-se. thomas ergueu as sobrancelhas para lockheart. - porqu esta desculpa? - o nosso capito, como deves ter notado, tem um temperamento que muda como os ventos do cabo horn. por razes que desconheo, decidiu descarregar em mim uma tempestade. bom, pediu perdo de uma forma muito elegante. vem, thomas. vamos receb-lo como cavalheiros que somos. - lockheart saltou e ps-se de p.

thomas seguiu-o. - o que que lhes vai acontecer, ao feiticeiro e senhora? - isso que est a ponderar agora o nosso capito. - no sei porque que tantos da sua tripulao nativa ficaram ao nosso servio e no quiseram aceitar a liberdade oferecida. - os portugueses so patres duros, meu rapaz. no h dvida que esto espera de melhor sob o nosso cuidado. thomas e lockheart passaram por vrios dos homens da nova tripulao, que estavam sentados a tirar estopa de cordas velhas para repararem fugas, outros cosiam velas rasgadas e esfarrapadas. thomas sentia-se inquieto por ter tantos estrangeiros escuros a bordo, mas, no entanto, muita da tripulao original do whelp estava to incapaz que a ajuda era necessria em todos os quadrantes. lockheart levou thomas at ao tombadilho, que estava agora mobiliado com uma mesa e algumas cadeiras. o capito wood sentava-se relaxadamente cabeceira da mesa, com o seu rosto corado e curtido com uma expresso carrancuda. esquerda do capito estava sentado o feiticeiro portugus, alerta e direito, com as suas mos algemadas sobre a mesa. os senhores allen e bromefield estavam de p, desconfiados, direita do capito. a misteriosa dama hindu no se via em lado nenhum. o capito wood fez um aceno breve a lockheart, depois a thomas. - senhor chinnery. como que esto os meus homens? a verdade sobreps-se diplomacia: - no muito bem, senhor. sofrem de febres, infeces e de falta de remdios. no sero muitos os que iro recuperar. - tal como eu temia. o capito baixou os olhos para a mesa e thomas ficou surpreendido por sentir alguma simpatia pelo homem. - thomas - disse lockheart -, concedei-me a honra de vos apresentar o senhor bernardo de cartago, de goa. senhor, com licena, apresento o senhor toms chinnery, mdico e alquimista. o prisioneiro ergueu as suas sobrancelhas finas e acenou respeitosamente a thomas. dirigiu ento uma pergunta em portugus a lockheart, que respondeu com uma breve afirmativa. - senhor - disse thomas baixinho a lockheart -, na verdade no sou mdico nem alquimista. ser sensato chamarem-me assim?

- ele ir considerar-te melhor por isso. e que melhor forma para descrever aquilo que fazes, ha? o feiticeiro dirigiu-se ento suavemente a thomas, em latim: - cabe-me, ento, apresentar-vos as minhas desculpas. presumo que o meu salvamento tenha sido pago com alto preo. - o que que ele diz? - murmurou o capito wood a lockheart. - o cavalheiro expressa o seu pesar pelas nossas perdas, senhor. o senhor bromefield franziu o sobrolho. thomas interrogou-se at que ponto era o conhecimento de latim do enviado. o capito olhou para thomas. - senhor lockheart, o nosso feiticeiro convidado tambm se chama a si mesmo um alquimista, no verdade? - sim, e um erudito, senhor. - perguntai-lhe se ele tem capacidades de cura ou remdios que possam ter utilidade para o nosso senhor chinnery. thomas pestanejou com a surpresa. o capito sabe o meu objetivo antes de eu falar. e a sua estima pelo homem aumentou novamente. lockheart recitou uma corrente deselegante de portugus. - sir! - bromefield protestou ao capito. - estais a pensar pr as nossas almas em perigo utilizando os mtodos maliciosos deste homem? no seria melhor morrermos sem mcula do que aceitarmos a ajuda do diabo? inclinando-se pesadamente sobre a tbua, o capito wood ergueu-se da sua cadeira e olhou para o senhor bromefield. - senhor, ser que este navio vai chegar china, credes, navegado apenas pelas almas de homens santificados? ser que sombras abenoadas iro desfraldar as nossas velas e fantasmas enviados pelo cu trabalharo nas vigias dos canhes? ser que os anjos puxaro as cordas e os querubins baldearo a gua? garanto-vos, poucos dos malditos homens l de baixo estaro mesmo agora imaculados do pecado. no entanto, a minha competncia dada por deus cuidar das suas vidas e trabalho. no pensais que ser prestado um melhor servio a eles, a sua majestade e a deus ajud-los a viver? numa vida mais longa, mais oraes sero ditas e mais pecados perdoados. e por mais condenados que possam estar, a nossa jornada no atingir um objetivo mais lucrativo com a ajuda de mos vivas? bromefield, rangendo os dentes para trs e para a frente, murmurou: - ento, que isso fique na vossa conscincia, senhor. que deus vos perdoe. que deus

nos perdoe a todos. - e olhou intencionalmente para lockheart. o capito wood resmungou e sentou-se mais uma vez. o feiticeiro falou durante alguns momentos a lockheart em portugus. lockheart aclarou a garganta: - o senhor cartago diz que tem pouca coisa com ele de remdios vulgares. contudo, tem alguns conhecimentos das plantas que crescem nesta regio. fornecer-nos- isso se permitirmos que ele viaje conosco at pegu. o capito coou a sua barba vermelha desalinhada, depois aquiesceu. - um pedido razovel. vou pensar nele. agora, senhor chinnery, disseram-me que tendes uma pergunta a fazer ao nosso convidado. thomas sentiu que a garganta se lhe secava. como que eu poderei perguntar sem alarmar o capito e o senhor bromefield? - j a haveis feito por mim, senhor. eu tambm desejava saber se ele tinha remdios para oferecer. mas vou perguntar-lhe mais uma vez. - virou-se para cartago e falou em latim: - tendes a certeza, magister, que no havia nada no vosso navio que possa curar ou aliviar a dor? cartago fez uma pausa, olhando para thomas, que reparou num canto da caixa de madeira a espreitar da sua casaca. o feiticeiro inclinou a cabea com um brilho estranho no olhar. - nada, magister, exceto o que foi oferecido por ouroboros. - ps as mos sua frente de forma a que os seus dedos encurvados e polegares criassem um crculo. thomas sentiu que estava a ser testado. a palavra ouroboros era-lhe vagamente familiar, mas no conseguia lembrar-se donde. em vez de mostrar a sua ignorncia, thomas inclinou a cabea em aprovao. - compreendo. obrigado. - falais grego? - perguntou cartago. - sim. o meu pai fez com que me ensinassem intensivamente essa lngua. - a senhora aditi ir achar interessante, magister. podereis falar com ela. eu prprio no tenho conhecimentos de grego. talvez, se houver tempo, possais ensinar-me um pouco. - talvez - respondeu thomas, escondendo a sua admirao. lockheart virou-se para ele, com um sorriso espalhado no rosto. - claro. estava destinado, rapaz! - bateu-lhe no ombro.

- ento, ento, senhor lockheart - interrompeu o capito wood. - o que que o nosso homem disse? o escocs respondeu antes de thomas poder dizer alguma coisa: - ele no tem medicamentos, senhor, mas parece que finalmente encontramos algum que pode falar com a nossa passageira. - temos? - o capito ergueu as suas sobrancelhas peludas para thomas. - o rapaz aprendeu grego e parece que essa a lngua prpria para encantar o ouvido da nossa dama. - raios o partam, lockheart! - explodiu bromefield. - porque que no nos haveis dito que ela falava grego? eu prprio fui escola do merchant taylor e conheo alguma gramtica grega. eu podia ter falado com ela. - no lanceis assim a vossa saliva, senhor - rosnou o capito. - se no podemos arrefecer-vos o sangue, senhor bromefield, atiro-vos gua para que ela o faa. senhor chinnery, sois fluente em grego? thomas acenou que sim: - sou, sim, senhor. domino a gramtica de clenardus e li esopo, plato, demstenes e homero. o capito wood virou-se para bromefield: - foi a escola do merchant taylor que vos ensinou tudo isso? bromefield reteve a respirao e espetou o peito. - como parece que no possuo quaisquer aptides de utilidade aqui, vou juntar-me ao meu companheiro que est em terra, que est neste momento ocupado com o verdadeiro objetivo desta expedio, senhor, que o delinear do comrcio no oriente. bromefield virou-se e afastou-se, olhando para lockheart enquanto se afastava. thomas sentiu-se num nevoeiro de estupefao, no como aquele que sentiu quando, por acidente, ingeriu uma gota de xarope de papoula na loja do seu mestre. a presena de lockheart nesta viagem representava claramente mais do que a venda da boa l inglesa. - perdoai-me, capito, se causei perturbao. o capito wood acenou uma mo carnuda em gesto de despedida. - no ds importncia, rapaz. este ar sufocante. gostaria que falasses com esta

senhora aditi o mais breve possvel. soubemos que ela est muito bem relacionada e pode dar um alto resgate. descobre quanto e de quem e como se poder conseguir. v se esta expedio ainda pode ter algum lucro. segui o vosso caminho. quando desciam do tombadilho, thomas perguntou a lockheart: - sois um homem de tantas lnguas, senhor, estou surpreendido por o grego no ser uma delas. - para dizer a verdade, , embora talvez no a saiba to bem como tu. - ento porque no haveis dito isso ao capito? - queres conhecer o contedo da caixa, no ? eu acho que o nosso feiticeiro te est a dirigir para a nica que te pode dar a resposta. estes filsofos podem ter modos labirnticos, mas muitas vezes so generosos com um colega em viagem. - na verdade, gostaria que no me tivsseis apresentado como um colega alquimista. - e porque no? j viste o que j conseguiste? qual o mal? - receio ser descoberto. agora ele est a testar-me. o nome que ele mencionou, ouroboros, conhecei-lo? - eu pensava que era o nome de um verme. - as suas mos fizeram um crculo. ah! agora lembro-me. o mestre coulter mostroume uma vez num frasco de argila medicinal que ele comprara a um alquimista da saxnia. no um verme, mas sim uma serpente a morder na cauda. - sim, alfa e omega, mundo sem fim. - lockheart ergueu as sobrancelhas. - e mais uma vez a imagem de cobras. este mistrio leva-nos realmente para um caminho em serpentina. - o que parece. esperemos no encontrar dentes que nos mordam no fim. captulo iv sabugueiro esta pequena rvore d flores docemente aromticas na primavera e bagas pretas no vero. a sua lenha cheira mal. os mais velhos contam que judas se enforcou no sabugueiro e que foi desta madeira que se fez a cruz do nosso querido senhor. as bagas vermelhas do sabugueiro tm origem nas gotas de sangue de nosso senhor. o sabugueiro sempre uma rvore de dor e morte. trazer ramos de sabugueiro para dentro de casa tornar-se anfitrio do diabo, e nem os beros nem os barcos devem ser feitos desta madeira... o irmo timteo agarrou com fora contra o peito a bblia gasta, de capa de couro. a pobre senhora no compreende, pensou ele com pena. aproximou-se da mulher que estava deitada, com falta de ar, no catre manchado.

- senhora - disse ele, esperando que a sua voz parecesse suave e em tom de perdo -, senhora, porque deixais que vos atormentem? a cela estava silenciosa, tirando a respirao incerta da mulher e o gotejar incessante de gua nalgum canto escuro. a mulher vestia apenas uma roupa interior outrora de seda fina e agora suja e rasgada. fios de metal afiado atavam-na s tbuas duras e toscas. ela sofrera o potro, o tormento da gua deitada de um jarro para um trapo de linho que colocado sobre a lngua e dentro da garganta. haviamlhe dado alguns momentos de descanso, mas ainda ansiava por ar como se estivesse a afogar-se. virou o seu rosto plido para o irmo timteo quando ele chegou ao seu lado, mas os seus olhos escuros pareciam no o compreender. - senhora? - no! - gritou ela. - mais gua no, suplico-vos. - tossindo, rolava a cabea de um lado para o outro e saltou-lhe da boca um lquido. - eu no trago o jarro, senhora. no temais. trago esperana. no deixais que o diabo endurea o vosso corao, mas abri-o a deus e aos domines que vos interrogam. - mas eu disse tudo o que posso! - lamentou-se ela. no h mais nada que possa dizer-lhes. o meu pai... por favor deixai-me falar com meu pai. - os domines so o vosso pai aqui, senhora. e deus pai de ns todos. porque no lhes dizeis a verdade? um suspiro estremecido: - eu disse-lhes a verdade. - isso no pode ser, senhora, pois ainda estais aqui e os domines esto a voltar. eles conhecem a verdade quando a ouvem. porque no podeis ver a verdade no vosso corao? a mulher fechou os olhos. - no posso, no sei o que que eles querem que eu diga. timteo agarrou na mo fria e tremula, com os olhos a encherem-se de lgrimas. ele desejava no ter esta tarefa. testemunhar a dor dos convidados da santa casa. no entanto, ele sabia que lhe tinham dado o trabalho mais importante, guiar as almas at luz. odiava o diabo que causava tanto sofrimento, que cegava os pecadores para com os seus pecados. - por favor, senhora - disse ele. - olhai para o vosso corao e salvai-vos. falai livremente, e aceitai o perdo de deus. foi interrompido por passos na pedra do corredor no exterior da cela. a mulher ergueu a cabea do catre, de olhos abertos. a sua mo apertava a de timteo como um ferro.

- os domines esto a voltar, senhora. e trazem novamente o jarro. - no... no os deixeis... por favor, no os deixeis... - s vs os podeis parar, senhora. as dobradias da porta da cela chiaram e entraram trs homens: os dois inquisidores-mores em vestes pretas e um estranho de branco. timteo apertou a mo da mulher uma ltima vez e recuou. se os mexericos da cozinha que ele ouviu eram verdade, o dominicano devia ser o enviado do grande inquisidor. baixando o olhar, timteo fez educadamente uma vnia e ps-se a um lado. - irmo timteo - disse domine sadrinho -, a senhora resgate quer fazer a sua confisso? - no sei, domine. ela tem de falar por si mesma. - timteo olhou para o teto e rezou. senhor, soltai a priso que o diabo exerce sobre o seu corao. ajudai-a a ver a luz do vosso amor. no a abandoneis na escurido. - porque que continuam a atormentar-me, domines? irritou-se a mulher. - eu no sei nada. o inquisidor sadrinho respondeu suavemente: - porque, minha filha, os tormentos que se enfrentam no inferno so muito maiores que qualquer tormento que possais receber na terra. os sentidos da carne so passageiros. o inferno dor eterna. aquilo que vos damos um carinho comparado com o que se passa no domnio de satans. fazemo-vos isto para que vos lembreis desse fato. no quereis falar livremente conosco e assim escapar aos horrores da condenao? aps alguns momentos de silncio, o inquisidor pinto disse: - parece que ela deseja passar mais tempo na cama da memria. o homem de branco aproximou-se do catre e disse: - qual o vosso nome, senhora? a sua boca moveu-se, mas no saram quaisquer palavras. timteo podia sentir o seu medo. - senhora - disse o inquisidor sadrinho -, este o padre antnio gonso. ele fez todo este caminho desde lisboa para ver se no ficais perdida nos fogos de hades. de tal forma grande a compaixo da santa casa. - padre - sussurrou ela -, por favor, ajudai-me. - padre gonso, esta infeliz a senhora serafina resgate, viva de um fidalgo

proeminente. como vos disse, ela era conhecida por acompanhar os feiticeiros zalambur e cartago. ai de mim, ela parece no se lembrar do tempo passado com eles ou com algum do seu crculo. - padre - peo-lhe que... - senhora - disse timteo -, no percais as vossas preciosas foras pedindo aquilo que s vs podeis dar. estais a passar por uma horrvel provao. peo-vos, dizei apenas palavras que vos levem libertao. deixai que os domines sejam como parteiras que ajudem a vossa alma a entrar numa nova vida, e no coveiros que observam uma alma a enterrar-se sozinha no pecado. a mulher olhou para ele. - no h outra esperana para mim? - nenhuma, senhora. ela suspirou. - eu fiz uma jura. nunca falar disso. - haveis jurado a falsos deuses, senhora - disse o inquisidor. - como podeis ser castigada por aquilo que no existe? - eu vi... - ela fechou a boca com firmeza, com um novo medo nos olhos. - o que haveis visto, filha? dizei-nos e libertai-vos. ela tossiu outra vez, com os olhos muito fechados, mas no falou. - muito bem. - domine sadrinho fez um gesto com a cabea ao inquisidor pinto, que ergueu o jarro sobre o rosto da mulher, deixando que o tecido molhado lhe tocasse no rosto. - no! - os seus olhos arregalaram-se e lutou contra os arames que a atavam. - por favor, senhora, no nos forceis a fazer isto. conforme o pano de linho lhe tocou na boca, ela gritou: - sim! perdoai-me. eu vou confessar! o inquisidor pinto afastou imediatamente o pano e o jarro do seu rosto. - bernardo, harun, perdoai-me - murmurou ela. o corao de timteo saltou de alegria. caiu de joelhos. graas a deus! - uma deciso sensata, senhora - disse o inquisidor sadrinho. foi at cabeceira do catre e suavemente acariciou-lhe o cabelo mido - o que nos quereis dizer, minha filha?

- senhor, eu... eu pequei. - sim. - o inquisidor-mor acariciou-lhe o brao devagarinho com as costas da mo. continua. descreve o teu pecado. - ns... eu fazia parte de... reunies. cerimnias. em adorao da deusa. - e alm de vs quem estava nessas reunies? - o meu amante, harun. uma mulher chamada aditi. outros... no sei. estava escuro. no conseguamos ver os rostos uns dos outros. - muito bem. e o que faziam nesses rituais pagos? - sri aditi disse-nos que a deusa vive entre os mortais na ndia. que ela tem o poder de dar a vida e a morte. - fostes enganada, senhora. s o senhor deus d a vida e a morte, e depois a vida eterna. - como dizeis, domine. s deus. mas ela mostrou provas. - provas? quereis dizer que ela usou de iluses para vos enganar. mostrou-vos dolos? - esttuas. havia esttuas... - e esta deusa tem cabea de hipoptamo ou de outra criatura bizarra? - cobras... - a mulher parecia estar a entrar em delrio. havia cobras. - qual o nome desta deusa? - o seu nome fora. - quais foram os vossos atos nestes rituais de adorao? - houve oraes... e cnticos, penso. - essas evases no iro salvar a vossa alma, minha filha. tendes de ser mais especfica. no penseis que ficaremos chocados. a santa casa est habituada a todas as formas do trabalho do diabo. - ento para que preciso de vos contar? - para bem da vossa alma, senhora. - alguns de ns... bebemos sangue. aditi disse que era o sangue da deusa. - sim? continuai.

- ... tudo. - impossvel. - no. - ns sabemos tudo sobre as cerimnias pags, senhora. no faz bem vossa alma esconder seja o que for. claro, o inquisidor pinto pode trazer novamente o potro, no caso de a vossa boca estar muito seca, ou de a vossa lngua precisar de se soltar. de olhos estonteados, a mulher disse: - no, o que que querem que eu diga? que comemos papoulas ou fornicmos com animais? - ah - disse o inquisidor pinto. - agora estamos a chegar algures. o padre visitante tossiu: - domine, talvez fosse melhor o jovem irmo ir tratar agora dos seus outros deveres. - como? ah, sim, claro. podes ir, timteo. timteo fez uma vnia e caminhou para a porta, sorrindo e feliz. depois da sua confisso, ele sabia que dariam um banho mulher e que seria alimentada e levada de volta sua cela. dar-lhe-iam muito tempo para recuperar enquanto aguardaria julgamento no prximo auto-de-f. no seu julgamento seria excomungada, mas se encontrassem em goa um defensor altura para ela, seria imediatamente recebida nos braos da santa madre igreja. do lado de fora da cela, virou-se e viu que o padre dominicano o seguira. - foi muito impressionante, meu filho - disse o padre. s na verdade um grande trunfo para esta santa casa. timteo sentiu que o seu rosto aquecia. - fico contente por mais uma alma ter voltado para deus, padre. - claro. domine sadrinho, disse-te que eu gostaria de falar contigo com calma um pouco mais tarde? - no, padre. - talvez esta noite, quando tiveres acabado os teus deveres noturnos. fazias-me o favor de te encontrares comigo? - mmm... mas claro, padre.

- timo. s claramente talentoso e perspicaz. poders ser de uma grande ajuda para o meu trabalho. - com um aceno de cabea, o padre virou-se e voltou a entrar na cela, fechando a porta atrs de si. timteo sentiu que a sua alegria diminua com a preocupao o que que o enviado especial quer de mim? porque que ele me elogia? eu s conduzo os nossos hspedes para a luz. o seu regresso graa obra do senhor, no minha. mesmo nada minha. captulo v oliveira: esta rvore muito venerada cresce no oriente desde tempos antigos. dos seus frutos retira-se um leo bom como remdio, alimento ou combustvel para candeeiros. para os gregos a oliveira era smbolo da paz, de viagem segura e vida muito longa. era consagrada a atena, a sua deusa da sabedoria. em itlia, considera-se que o ramo da oliveira protege do raio do trovo e das bruxas. para os espanhis, um arco de oliveira torna a mulher chefe da casa... sri aditi, nascida com o nome de dar naini num cl de gentes de caravanas no rajasto, olhava fixamente para o deserto do mar. tanta gua, e nenhum socorro para a sede. que horizonte to longnquo, mas sem lugar para onde caminhar. morte no meio da vida. vida no meio da morte. um paradoxo altura de mahadevi. porque que eu deixei que bernardo me convencesse a fugir com ele? eu nem sequer o amo. em goa havia ruas familiares e casas onde a ajuda se podia encontrar. o que que fao agora? a janela na cabina do navio ingls era demasiado pequena para se saltar por ela. pouca diferena fazia; aditi no sabia nadar. ser asfixiada pela gua, ou despedaada pelos monstros que moram l em baixo? no, se a morte tiver de chegar, a forma no ser essa. a brisa trouxe do mar um cheiro acre a sal. aditi recuou e fechou a janela. havia vozes a aproximarem-se da porta. aditi rapidamente se ps atrs de uma mesa, que colocou juntamente com uma cadeira entre ela e a porta. deslizou o candeeiro de petrleo para ficar ao alcance da mo e pousou a outra mo no cabo de uma faca enfiada na cintura da sua saia gahgrah. iria tentar ferir ou matar o maior nmero de ingleses que pudesse, ou a si mesma, antes de eles terem qualquer hiptese de a envergonhar. at agora tinham sido educados, mas bernardo dissera-lhe como eram os ingleses. no esperava que a sua amabilidade durasse muito. os marinheiros estavam a acender os candeeiros no convs inferior. com aquela luz fraca, thomas e lockheart encontraram a porta dos aposentos do senhor bertwick, que morrera de escorbuto h dois meses. thatch, o velho e vigoroso mestre de armas do whelp, que era considerado pela tripulao com um misto de terror e respeito, estava de guarda encostado amurada. - boa noite, senhor thatch - disse thomas.

- ah, o jovem senhor chinnery! boas-noites tambm para vs. tendes porventura mais um pouco daquele sumo de pio? eu acho que a minha febre ter est a piorar. - infelizmente, no, senhor, no h mais. mas se encontrarmos algum, dar-vos-ei a saber. - bom, ento, ficarei muito agradecido. o que vos traz por aqui? - disseram-me que a nossa prisioneira est aqui alojada. por trs dele, lockheart acrescentou: - o capito gostaria que falssemos com ela pois conhecemos uma lngua que ela sabe. o mestre de armas esfregou o queixo proeminente com o polegar, olhando com suspeita para o escocs. - sim, h muitos homens a bordo a quererem falar a lngua dela, e os lbios e as mos tambm. mas eu estou encarregado de que nada de mal lhe acontea. - tende cuidado com a vossa prpria lngua, senhor rosnou lockheart. - ns somos cavalheiros aqui ao servio do capito. - por favor - disse thomas, mais uma vez espantado com a forma como lockheart parecia provocar inimizades em todo o lado. - tenho ordens para saber como que se poder obter um resgate da senhora. e talvez ela saiba quais os remdios que podem ser encontrados nestas terras, em especial o xarope de papoula. - ento entrai, meu bom senhor chinnery. mas se alguma coisa correr mal, chamem por mim. - o mestre de armas puxou o trinco e recuou. - assim farei, senhor. a senhora aditi estava de p por detrs de uma pequena mesa quando thomas e lockheart entraram. a luz fraca do candeeiro em cima da mesa cintilava nos fios dourados do seu sari vermelho, brilhando na trana escura do seu cabelo. uma mo de dedos esguios repousava na mesa, a outra na cintura, perto de uma faca semiescondida. ela olhava para eles desconfiada, mas no parecia ter medo. thomas achou-a muito bela, embora de estrutura demasiado musculosa e porte excessivamente orgulhoso para o seu gosto. o azul dos seus olhos tem mais ao que o cu limpo. sentiu que lockheart lhe bateu nas costas. - no fiques a especado, rapaz. fala! com uma pequena vnia, thomas disse em grego. - os meus cumprimentos, despoina aditi. disseram-me que sabeis a lngua dos

sbios e antigos helnicos. os seus olhos abriram-se e um sorriso suave apareceu nos seus lbios. a sua postura desconfiada relaxou e deixou descair a mo afastando-a da faca. inclinou a cabea. - certamente falastes com bernardo. - se quereis dizer despos de cartago, estais correta. - como que acontece falardes esta lngua? sois um estudioso, como bernardo? - sim, despoina. embora os nossos reinos de estudo difiram. eu sou thomas chinnery, boticrio, um investigador de ervas e drogas curativas. - estou a perceber. - inclinou a cabea com um sorriso curioso. - tamas, no ? - nai, despoina. h alguma coisa... - no nada. os vossos nomes estrangeiros so-me estranhos. - ah. posso perguntar-vos como que sabeis grego? - fui ensinada pelas minhas amas quando era criana. - tivestes amas... muito instrudas, despoina. - nai. quem este? - aditi voltou o seu olhar para o escocs. - sou andrew lockheart, despoina - disse ele com uma vnia. - um homem errante longe da sua floresta, trazendo o ramo sagrado da caadora. thomas olhou de lado para ele. o que poder ele estar a tentar fazer? a senhora aditi fez uma vnia em resposta, mas no mostrou qualquer reao s suas palavras. - fomos enviados pelo capito wood - prosseguiu thomas -, para sabermos qual o resgate que poderemos obter por vs e quem o pagar. - compreendo. podem negociar com os maratas de goa. eles pagaro de boa vontade milhares de tangas de prata para a minha libertao segura. tambm controlam muito negcio nesta regio, e se eu for bem tratada poderei ter alguma influncia sobre eles relativamente aos vossos mercadores. - ento e os portugueses - disse lockheart -, que vos perseguiam e a despos cartago? o que que eles poderiam pagar se vos entregssemos a eles? ela levantou o queixo, com os olhos mais estreitos. - neles no se pode confiar. iriam enganar-vos e pagar-vos com a morte.

thomas suspeitou que seria a senhora aditi a pagar com a morte, se fosse entregue aos portugueses, mas no se importou de a ajudar a evitar um tal destino. - como que podemos contactar esses maratas? - qualquer comerciante hindu que encontrardes nesta costa ir aceitar pagamento para levar uma mensagem dessas. cuidado, porm, com os piratas, pois tambm so vulgares nestas guas. - temos conhecimento