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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP KASSIA NOBRE DOS SANTOS EM BUSCA DA CREDIBILIDADE PERDIDA: A REDE DE INVESTIGAÇÃO JORNALÍSTICA NA ERA DAS FAKE NEWS DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA SÃO PAULO 2018

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

KASSIA NOBRE DOS SANTOS

EM BUSCA DA CREDIBILIDADE PERDIDA: A REDE DE INVESTIGAÇÃO

JORNALÍSTICA NA ERA DAS FAKE NEWS

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO

2018

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Kassia Nobre dos Santos

EM BUSCA DA CREDIBILIDADE PERDIDA: A REDE DE INVESTIGAÇÃO

JORNALÍSTICA NA ERA DAS FAKE NEWS

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de Doutor em

Comunicação e Semiótica sob a orientação da Profª. Drª

Cecília de Almeida Salles.

São Paulo

2018

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BANCA EXAMINADORA

______________________________________

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Ao meu querido Vicente

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES)

88887.160.692/2017_00

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais Everaldo Gomes dos Santos e Maria Lúcia Nobre dos Santos pelo total

apoio aos meus estudos.

À minha orientadora Cecília Almeida Salles por sua teoria crítica dos processos criativos

e por sua dedicação à minha pesquisa.

Ao Diogo Cronemberger pela revisão crítica do texto e pelo apoio essencial durante o

processo.

Aos jornalistas Bernardo Esteves, Paula Scarpin, Carol Pires, Malu Gaspar e Cristina

Tardáguila pelos depoimentos.

À CAPES pela concessão da bolsa de estudos que permitiu a realização desta pesquisa.

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RESUMO

As redes sociais enalteceram a cultura participativa da sociedade em assuntos de interesse

coletivo, algo positivo porque promoveu a diversidade de vozes e decentralizou o poder

da grande mídia como única porta-voz da informação. Ao mesmo tempo, a revolução

digital foi a responsável pela pós-verdade e o fenômeno das notícias falsas (fake news),

que abalou o conceito de verdade, já que opiniões e fatos se confundem porque circulam

no mesmo espaço digital. Diante desse cenário, pilares fundamentais da profissão de

jornalista – a apuração aprofundada e a checagem - foram resgatados e valorizados a partir

da criação de novos modelos de trabalho. A partir da discussão do jornalismo sob a

perspectiva de seus processos de produção, o objetivo desta pesquisa é propor uma

reflexão sobre os modos de ação dos jornalistas da revista piauí e da agência Lupa,

procurando compreender os procedimentos por eles utilizados na construção da

reportagem e da checagem. A revista piauí está há mais de dez anos no mercado editorial

brasileiro e é exemplo para outros modelos recentes na produção de grandes reportagens.

Já a agência Lupa foi a primeira agência de fact-checking do Brasil. Os apontamentos

teóricos para a análise estão na teoria crítica dos processos criativos (Salles, 2008; 2011;

2016; 2017). Os instrumentos de análise são os “documentos de processos”, que são

registros materiais do processo criador. No caso da presente pesquisa foram realizadas

entrevistas com os jornalistas da revista piauí e com a criadora da agência Lupa para o

entendimento de seus processos criativos. A partir desses dados, foi criada a rede de

investigação jornalística com os respectivos pontos de análise: o tempo de criação; a

narratividade; a transparência e a correção do erro. Desta forma, a tese defendida é que

há um campo de experimentação a ser explorado pelo jornalista para atuar na crise da

profissão e retomar a credibilidade perdida. Além disso, a partir do combate à

desinformação, o jornalismo pode recuperar uma das suas principais funções que é o

fortalecimento da democracia.

Palavras-chave: Investigação jornalística; Pós-verdade; Revista piauí; Agência Lupa.

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ABSTRACT

The social networks have praised the participative culture of society regarding to subjects

of collective interest, something positive because it has been promoting the diversity of

voices and decentralizing the power from the mainstream media as the unique advocate

of information. At the same time, the digital revolution was the responsible for post-truth

also fake news, which both have disrupted the concept of truth, once opinions and facts

mix each other because they are on the same digital area. In this scenario, fundamental

principles due to the profession of journalism - detailed verification and check - have been

rescued and valued from the begining of new ways of work. From the discussion of

journalism under the perspective of its processes of production, the goal of this research

is based on proposing a reflection towards the manners of acting of journalists of revista

Piauí (Piauí Magazine) and agência Lupa (Lupa Agency), willing to understand the

procedures which are used by them focused on the report creation as well as the check.

The Piauí magazine has been in Brazilian market for over ten years and it is an example

for other actual models regarding to the big report construction. The Lupa agency was the

first agency of fact-checking in Brazil. The theoretical basis for this analysis are the

critical theory of creative processes (Salles, 2008; 2011; 2016; 2017). The analytical tools

are the “documents of processes” which are material records from creative process. For

the actual research, some interviews were conducted with journalists of Piauí magazine

as well as the creator of Lupa agency in order to understand their creative processes. From

these datas, a journalistic research network was created containing the following

analytical issues: the narrative, the transparence and the error correction. Consequently,

the present thesis is based on the fact there is an experimental field to be explored by

journalist in order to act toward the crisis of this profession in addition to reclaim the lost

credibility. Moreover, from the combat of misinformation, the journalism is able to

recover one of its main role which is the reinforcement of the democracy.

Key words: journalistic investigation, post-truth; Piauí Magazine, Lupa Agency.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 09

2 ALGUMAS QUESTÕES SOBRE A CREDIBILIDADE DA

INFORMAÇÃO .............................................................................................

15

2.1 A objetividade é credibilidade: o surgimento dos jornais ............................. 15

2.2 A apuração é credibilidade: a produção da reportagem no Brasil ................. 20

2.3 A voz participativa é credibilidade: a internet e as redes sociais ................... 25

3 A ERA DA PÓS-VERDADE E FAKE NEWS ........................................... 32

3.1 O fenômeno da pós-verdade ......................................................................... 32

3.2 O colapso da confiança na imprensa ............................................................. 37

3.3 As agências de notícias falsas ....................................................................... 41

3.4 O jornalismo e as notícias falsas ................................................................... 43

4 A REDE DE INVESTIGAÇÃO JORNALÍSTICA DO PROJETO PIAUÍ 48

4.1 A rede de investigação da revista piauí ........................................................ 48

4.2 A revista piauí .............................................................................................. 50

4.3 A piauí no cenário do jornalismo brasileiro ................................................. 53

4.4 Nó 1: Tempo de investigação ....................................................................... 57

4.4.1 Velocidade como fetiche no jornalismo ..................................................... 58

4.4.2 A charrete da piauí ..................................................................................... 60

4.4.3 O caminho da reportagem .......................................................................... 64

4.4.4 A importância do acaso .............................................................................. 66

4.4.5 A especialidade do repórter ........................................................................ 70

4.4.6 O ato comunicativo .................................................................................... 73

4.5 Nó 2: A narratividade ................................................................................... 75

4.5.1 A narrativa literária .................................................................................... 75

4.5.2 A narrativa cinematográfica ....................................................................... 77

4.5.3 Narratividade no jornalismo ....................................................................... 78

4.5.4 Narratividade na revista piauí ..................................................................... 80

5 A REDE DE CHECAGEM DA AGÊNCIA LUPA ..................................... 89

5.1 A checagem nos EUA ................................................................................... 89

5.2 Oportunidades diante da crise ....................................................................... 91

5.3 A checagem no Brasil ................................................................................... 92

5.3.1 Novas iniciativas ........................................................................................ 93

5.3.2 A checagem e as redes sociais .................................................................... 95

5.4 A agência Lupa ............................................................................................. 99

5.4.1 Lupa Educação ........................................................................................... 102

5.4.2 Aprimoramento do debate público ............................................................. 103

5.5 A rede de criação da Agência Lupa .............................................................. 103

5.6 Nó 3 A transparência .................................................................................... 104

5.6.1 A transparência da metodologia ................................................................. 104

5.6.2 A checagem de opinião .............................................................................. 105

5.6.3 A checagem além do declaratório .............................................................. 106

5.6.4 As etiquetas ................................................................................................ 108

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5.6.5 Transparência das fontes ............................................................................ 109

5.6.6 Transparência do financiamento ................................................................ 110

5.6.7 Apartidarismo ............................................................................................ 111

5.7 Nó 4: A correção do erro .............................................................................. 113

5.7.1 O erro na checagem .................................................................................... 114

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 117

REFERÊNCIAS .................................................................................................. 122

ANEXOS .............................................................................................................. 127

Anexo 1 .................................................................................................................. 127

Anexo 2 .................................................................................................................. 128

Anexo 3 .................................................................................................................. 129

Anexo 4 .................................................................................................................. 130

Anexo 5 .................................................................................................................. 131

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1. INTRODUÇÃO

Em agosto de 2018, o Sesc São Paulo e a Revista Cult realizaram o seminário

“Jornalismo: as novas configurações do quarto poder”1, que reuniu profissionais da

imprensa e acadêmicos para discussões em torno de uma pergunta principal: o jornalismo

está em crise? Ou seria o modelo de negócio do jornalismo que está em crise? Na mesma

semana, o Grupo Abril, maior editora de revistas do país, pedia a recuperação judicial

com dívida de R$ 1,6 bilhão e declarou o fechamento de publicações e a demissão de

jornalistas.

A situação da editora foi simbólica entre os participantes do seminário para falar

da crise econômica do mercado e a necessidade de novas práticas para a profissão. Aliado

à situação da Abril está o número expressivo de demissões em massa de veículos

tradicionais e alternativos do Brasil que foi registrado no site “A conta dos Passaralhos2”

da agência independente de jornalismo “Volt Data Lab”, que apresentou um panorama

sobre demissões de jornalistas nas redações brasileiras desde 2012. O site mostra que, até

o mês de agosto de 2018, ocorreu o total de 2.327 demissões de jornalistas em redações

desde 2012. Além disso, 7.817 demissões aconteceram em empresas de mídia.

Relacionada com a crise financeira está a crise de credibilidade do jornalismo.

Como será visto no segundo capítulo deste trabalho, o jornalismo conquistou a

confiabilidade junto ao público de diferentes formas com o passar do tempo, da criação

dos jornais até as redes sociais. Essa confiança sempre foi a moeda de troca com o leitor.

Inicialmente, os jornais representavam (ou acreditavam representar) o espelho da

realidade, por isso, a objetividade tornou-se sinônimo de credibilidade. Com isso, nasceu

a figura do repórter e da investigação da realidade. A reportagem é o elo do leitor com os

acontecimentos e o jornalista seu porta-voz.

Com a internet e as redes sociais, a credibilidade passa ser a voz participativa. É

o que diz o teórico Clay Shirky (2008; 2011) que estuda, justamente, as transformações

na sociedade após o advento das novas tecnologias no nosso cotidiano. Assim, a

veracidade da informação passa a ser daquele que conta a sua história e daquele que

presenciou um acontecimento e o narrou. A consequência disso é que a sociedade passa

a questionar o papel do jornalismo e a necessidade de uma mediação dos fatos.

1 O seminário ocorreu nos dias 15, 16 e 17 de agosto de 2018, no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. 2 Disponível em <http://passaralhos.voltdata.info/index.html. Acesso em 29>. Ago. 2018.

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Além da democratização da comunicação, as redes sociais geram um excesso de

narrativas. Atualmente, tais narrativas estão em “bolhas” ideológicas. Ou seja, inseridas

nesse contexto, as pessoas fortalecem suas crenças e ideologias a partir de uma rede

virtual com o pensamento único que não dialoga com o diferente.

A discussão do terceiro capítulo será, justamente, sobre a pós-verdade, o

fenômeno em que as narrativas paralelas (versões) ganham mais relevância do que os

fatos. O teórico Matthew D’Ancona (2017) discutiu sobre as consequências do declínio

da verdade na sociedade atual. Como fica o jornalismo diante desta nova realidade? Ele

sobreviverá a mais uma crise?

Pensando nisso, a tese da presente pesquisa é que, sim, o jornalismo está em

crise, mas devido a essa instabilidade, pilares fundamentais da profissão – a apuração

aprofundada e a checagem - foram resgatados e valorizados a partir da criação de novos

modelos de trabalho e, consequentemente, novos modelos de negócio.

O exemplo animador é a situação atual do jornal The New York Times, que teve o

aumento de suas assinaturas digitais desde a eleição de Donald Trump. O chamado The

Trump bump (efeito Trump) provocou o aumento da fidelização do público leitor de

jornal, em uma diferente plataforma.

Só talvez Trump tenha ajudado a acabar com a era pós-verdade que ele

provavelmente criou e esteja inadvertidamente ajudando a catalisar o

renascimento do jornalismo de qualidade em uma era dominada pelo tipo de

discurso incontrolado no Twitter tão virtuosamente feito pioneiro pelo

presidente eleito (THE GUARDIAN, 2017, ARQUIVO ELETRÔNICO3).

No Brasil, o jornalismo vê surgir novos formatos, especialmente em 2015, ano de

criação das agências de checagem Lupa4 e Aos Fatos5. Além da criação do jornal Nexo6

e a explosão do jornalismo de dados nos anos seguintes. Podem-se citar também o

Intercept Brasil7, a Agência Pública8 e o programa GregNews9.

3 Disponível em <https://www.theguardian.com/us-news/2017/jan/17/the-trump-bump-when-a-diss-from-

donald-is-good-for-business>. Acesso em 04. Set.2018. 4 Objeto de pesquisa deste trabalho. 5 Plataforma multimídia de checagem de fatos. Disponível em: <https://aosfatos.org/>. Acesso em 29.Ago.

2018. 6 Jornal digital com o objetivo de trazer contexto às notícias e ampliar os dados e as estatísticas. Disponível

em <https://www.nexojornal.com.br/>. Acesso em 29. Ago. 2018. 7 The Intercept é uma publicação da First Look Media. Lançada em 2013, é uma empresa multimídia

dedicada a apoiar vozes independentes em jornalismo investigativo. Disponível em

<https://theintercept.com/brasil/>. Acesso em 31.08.2018. 8 Agência de jornalismo investigativo e independente fundada em 2011. Disponível em

<https://apublica.org/>. Acesso em 31. Ago. 2018. 9 Criado em 2017, programa satírico e investigativo que vai ao ar na HBO Brasil. Disponível em

<https://www.youtube.com/channel/UCX2M7xn-jMmq4KfX25TCTCA>. Acesso em 31. Ago. 2018.

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Todas essas iniciativas têm a investigação jornalística como motriz fundamental.

Ou seja, a crise resgatou o jornalismo investigativo em diferentes plataformas e reafirmou

o verdadeiro papel do jornalista em um cenário em que qualquer pessoa pode informar.

A crise resgatou o papel de investigar. Como afirmou Graves (2016, p. 11) ao analisar o

surgimento e expansão das agências de checagem nos Estados Unidos:

As organizações estudadas aqui [as agências de checagem] nasceram em um

setor em crise, atormentado por desafios econômicos, tecnológicos e

profissionais, testemunhas e produtos do que tem sido chamado “colapso em

câmera lenta do modelo de trabalho industrial no jornalismo”. [...] Os

verificadores de fatos praticam uma espécie de jornalismo neste momento, mas

também afirmam revitalizar o que é vital para o auto entendimento do campo.

Para entender melhor o ato de investigar, a presente pesquisa tem como proposta

discutir o jornalismo sob a perspectiva de seus processos de produção, uma reflexão

inserida na crítica dos processos criativos (SALLES, 2008; 2011; 2016; 2017).

O livro Jornalismo Expandido: práticas, sujeitos e relatos entrelaçados (SALLES,

2016), traz o artigo “O processo de produção jornalística em debate”, no qual Salles

propõe a discussão sobre o fazer jornalístico:

Assim jornalistas\pesquisadores, em meio à efervescência dos diálogos

interdisciplinares, discutem as especificidades do fazer jornalístico. Ao mesmo

tempo, eles se expõem às reflexões sobre a experimentação contemporânea no

âmbito das diferentes mídias diante das crises, como da crítica da arte e do

próprio jornalismo no contexto das mídias digitais e suas diversas plataformas

(SALLES, 2016, p. 64).

Salles seleciona alguns aspectos teóricos inseridos na crítica dos processos

criativos para se pensar o fazer jornalístico: o conceito de criação, a complexidade dos

trabalhos em equipe e a necessidade de experimentação.

Segundo Salles (2011), a criação é um gesto contínuo e está presente em todas as

etapas da produção. Sendo assim, não existe um momento específico da criação. O insight

criativo está, na verdade, dissolvido em todas as fases vencidas (ou não) pelo agente

criador. Desta forma, no jornalismo, as marcas da criação estariam presentes nas

primeiras ideias sobre a pauta, no momento da apuração, na construção do texto, na edição

e na escolha da versão para a publicação.

Pode-se afirmar que o jornalismo por sua própria natureza é um trabalho em

equipe em busca de um projeto comum. “Os processos em equipe se dão na interação de

indivíduos (sujeitos em rede de interações múltiplas), em meio a colaborações, comandos

e hierarquias. Daí o aumento da complexidade da rede responsável pelas ações em

equipe” (SALLES, 2016, p. 68).

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Já a experimentação do repórter é um lugar para a análise dos erros e acertos do

processo da reportagem. Segundo Cremilda Medina (2003, p. 98), nenhum projeto de

comunicação que se pretende inovador, digno das expectativas da transformação social,

pode se eximir da condição de uma oficina experimental. Salles (2016, p. 75) discute

sobre a possibilidade de o jornalismo buscar a experimentação como forma de inovar o

que já foi estabelecido e determinado como notícia:

Como se vê, os grandes desafios do jornalismo, acirrados em meio à crise

econômica, se dão no enfrentamento de intenso abalo de certezas de seus

modos de produção que, por muito tempo, não foram questionadas; daí a

constatação da necessidade de experimentação, ou seja, levantamento de novas

hipóteses que viabilizem a entrada de outras possibilidades jornalísticas [...].

Seria necessidade de sujeitos que exploram brechas em nome da sobrevivência

do jornalismo.

O termo “brecha” é usado por Morin e retomado em Salles para explicar a

emergência de um desvio inovador.

Salles (2016, p. 66) destaca ainda três aspectos do conceito de criação que

merecem maior atenção: projeto, ato comunicativo e a introdução de ideias novas.

Projeto, nesse contexto, seriam princípios direcionadores, de natureza ética e

estética, presentes nas práticas das produções, relacionados a um trabalho

específico, assim como à postura geral daquele jornalista, artista ou

publicitário. São princípios relativos à singularidade do sujeito que produz.

Desta forma, o trabalho analisará nos capítulos quarto e quinto o projeto piauí para

entender os princípios direcionadores dos modelos investigativos: a revista piauí e a

agência Lupa. A revista piauí está há mais de dez anos no mercado editorial brasileiro e

é exemplo para outros modelos recentes na produção de grandes reportagens. Já a agência

Lupa foi a primeira agência de fact-checking do Brasil. Desta forma, é importante a

investigação dos bastidores desses modelos jornalísticos.

A análise do projeto piauí discutirá ainda o aspecto comunicativo das tendências

dos processos de criação:

O aspecto comunicativo das tendências dos processos de criação, por sua vez,

abre espaço para a discussão sobre as interações com os outros, em sentido

bastante amplo, envolvendo não só as relações culturais, mas também uma

grande diversidade de diálogos de natureza inter e intrapessoais do jornalista,

no caso aqui enfocado, com ele mesmo, com sua equipe e, especialmente, com

futuros leitores (SALLES, 2016, p. 66).

Ainda conforme Salles (2016, p. 67), a entrada de ideias novas propõe um conceito

de criação no contexto de interconexões e não isolamento, que também sustentam o

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conceito de rede10. As interações da rede são responsáveis pela proliferação de novas

possibilidades: ideias se expandem, percepções são exploradas, acasos e erros geram

novos caminhos etc.

A análise da crítica de processo só é possível com a presença dos documentos de

processo, o corpus da presente pesquisa. Os “documentos de processo são registros

materiais do processo criador. São retratos temporais de uma construção que agem como

índices do percurso criativo” (SALLES, 2011, p. 26).

Os documentos de processo foram os depoimentos dados para a presente pesquisa

sobre o “modo de fazer” dos repórteres da revista piauí: Bernardo Esteves11, Carol Pires,

Malu Gaspar e Paula Scarpin. Além do depoimento da criadora da Agência Lupa, Cristina

Tardáguila. As falas foram essenciais para o entendimento da experimentação dos agentes

criativos no processo de criação – do surgimento de pauta até a publicação - da grande

reportagem e da checagem.

A partir dos documentos de processo, os nós de interação da rede12 de criação

foram nomeados. Salles (2017, p. 117), explica que as interconexões geram os picos ou

nós da rede, elementos de interação ligados entre si, que se manifestam como os eixos

direcionadores da pesquisa.

A rede da revista piauí tem o tempo de criação e a narratividade como tópicos

de análise. Todos os repórteres da revista destacaram a importância do tempo da

investigação e o “jeito piauí” de contar a história que seria o uso da narração e de suas

implicações, como a descrição de cenas e personagens. O termo narratividade foi

escolhido para abranger as narrativas literárias e cinematográficas, referências citadas

pelos repórteres na construção da grande reportagem.

Já a agência Lupa representou uma reconfiguração da checagem, um dos pilares

do jornalismo moderno, nos tempos atuais. Os nós de interação foram representados pela

transparência da metodologia de checagem, das fontes que são usadas e do

apartidarismo; e pela correção do erro. Além do depoimento de Tardáguila, a pesquisa

analisou checagens realizadas pela agência e abordou o cenário atual do fact-checking

brasileiro.

10 Anexo 1. 11 Bernardes Esteves também disponibilizou anotações do seu “diário de bordo”. Ou seja, as anotações que

realizou para uma das reportagens analisadas. 12 Anexo 2.

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Já as considerações finais discutirão sobre a importância do diálogo e o papel do

jornalismo para que isso aconteça em uma sociedade democrática. Assim, a pesquisa

mostrará a importância do entendimento da realidade em sua complexidade com a

abertura para o diálogo com o outro para o fortalecimento da democracia e do combate

às dicotomias e aos radicalismos.

Desta forma, pode-se concluir que o cenário atual do jornalismo tem uma

perspectiva de mudanças e buscas por outras hipóteses jornalísticas ou as “brechas”

citadas por Morin (1998) e Salles (2016). A cena atual está longe da ideia da chamada

morte do jornalismo. Como afirmou Ricardo Kotscho, um dos participantes do seminário

descrito no início, ao ser questionado sobre o fim da reportagem: “Há trinta anos, fui

convidado junto com José Hamilton Ribeiro para uma palestra com o tema ‘A reportagem

morreu?’”. Ou seja, o jornalismo está bem vivo e com novos modelos e novas

possibilidades para reportar a realidade.

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2. ALGUMAS QUESTÕES SOBRE A CREDIBILIDADE DA INFORMAÇÃO

Este capítulo propõe um panorama sobre as diferentes formas que o jornalismo,

desde o surgimento dos jornais até os dias de hoje, busca se credenciar diante do público

para ser o porta-voz da informação.

Se antes o jornalismo era uma voz hegemônica para informar sobre os

acontecimentos, a profissão precisou se reinventar para acompanhar a pluralidade de

vozes que ganhou força na era digital. Essa mesma voz antes passiva começa a questionar

o verdadeiro papel do jornalismo na sociedade. Entender os acordos de confiança entre o

jornalista e seu público durante o passar do tempo e os motivos dos abalos desse pacto

atualmente é fundamental para a discussão principal desta tese sobre os caminhos

necessários para a retomada da credibilidade perdida.

2.1 A objetividade é credibilidade: o surgimento dos jornais

A natureza do jornalismo está no medo. O medo do desconhecido, que leva o

homem a querer exatamente o contrário, ou seja, conhecer (Felipe Pena).

Do manuscrito aos algoritmos, das letteri d’avisi13 à internet, a sociedade de ontem

e de hoje busca a informação para enfrentar o medo do desconhecido. A partir da invenção

de Gutenberg14, surgem os jornais e a informação escrita passa a ser mediada pela

imprensa:

[...] a impressão é realmente a verdadeira revolução da história do jornalismo.

Na onda da emergente indústria do livro, surge uma nova, que cresce entre os

restos de papel e as folhas soltas que dão origem a pequenas publicações

periódicas. Nasce a imprensa, mas é preciso saber que espaço ela vai ocupar.

Esse espaço e o público, que também vai passar por uma série de

transformações (PENA, 2005, p. 28).

13 Os comerciantes da cidade de Veneza, nordeste da Itália, recebiam as letteri d’avisi, que, ao ganhar

periodicidade, transformaram-se nas gazetas, o embrião dos jornais conforme os conhecemos. As gazetas

vêm do italiano gazzette, a moeda utilizada em Veneza no século XVI. Veneza foi o centro informativo

mais importante da Europa na Idade Média. As informações que circulavam esporadicamente eram

manuscritas e se consolidaram nos séculos XIV e XV durante o desenvolvimento do comércio e da vida

urbana. As notícias eram vinculadas ao interesse mercantil, com informes sobre colheitas, chegada de

navios, cotações de produtos e relatos de guerras (PENA, 2005, p. 28 e 34). 14 O alemão Johann Gutenberg inventou, no século XV, a máquina de invenção tipográfica que provocou

uma verdadeira revolução no terreno da escrita e da leitura. A imprensa foi um tipo de dispositivo capaz de

reproduzir palavras, frases, textos ou mesmo livros inteiros através de caracteres ou tipos móveis.

Disponível em <https://brasilescola.uol.com.br/historiag/invencao-imprensa.htm> Acesso em

10.mai.2018.

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16

Os primeiros jornais surgem no começo do século XVII, na Alemanha, nos Países

Baixos e na Inglaterra. As primeiras publicações jornalísticas são herdeiras das gazetas

venezianas. Kunczik (2001, p. 22) relata que os primeiros jornalistas foram

correspondentes dos príncipes governantes, das cidades-imperiais e das cidades-estados

na Europa central. Os primeiros jornais a aparecerem com regularidade foram na

Alemanha e datam do ano de 1609. Pouco depois apareceram jornais na Holanda (1618),

França (1620), Inglaterra (1620) e Itália (1636).

Nelson Werneck Sodré (1983) relata que a história da imprensa é a própria história

do desenvolvimento da sociedade capitalista. Ou seja, os jornais são frutos de um

momento histórico que fortaleceu os ideais capitalistas na sociedade urbana da Europa a

partir do século XVI.

Com a ascensão da burguesia, os jornais passam a ser de pequenos grupos

burgueses e não de domínio apenas dos príncipes governantes. A consolidação de um

modelo de vida urbana e, consequentemente, de um público leitor fortalece a permanência

da imprensa e, consequentemente, o controle da informação por esses grupos.

Ciro Marcondes Filho classifica esse período como o “primeiro jornalismo”, de

1789 à metade do século 19. O autor explica que o saber e a informação passam a circular

e são os jornalistas que irão abastecer esse mercado.

O autor explica também que é a época de ebulição do jornalismo político-literário,

em que as páginas impressas são ressonantes às plataformas de políticos. É na mesma

época que o jornal se profissionaliza e surge a redação como um setor específico. “Os

jornais são escritos com fins pedagógicos e de formação política. É também característica

do período a imprensa partidária, na qual os próprios jornalistas eram políticos e o jornal,

seu porta-voz” (MARCONDES FILHO, 2000, p. 12).

Marcondes Filhos (2000, p. 13) classifica como o “segundo jornalismo” quando o

jornal passa a ser considerado uma grande empresa capitalista que surge a partir da

inovação tecnológica da metade do século 19.

A atividade que se iniciara com as discussões político-literárias aquecidas,

emocionais, relativamente anárquicas, começava agora a se constituir como

grande empresa capitalista: todo o romantismo da primeira fase será

substituído por uma máquina de produção de notícias e de lucros com os

jornais populares e sensacionalistas.

Assim, o desenvolvimento industrial acelera o comércio das notícias e a circulação

dos jornais na Europa e nos Estados Unidos:

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17

A corrida para a revolução nas técnicas de imprensa, iniciada na Inglaterra,

quando o Times, em 1814, utilizou a máquina a vapor na sua impressão, seria

por isso ganha pelos Estados Unidos em pouco tempo. Era o ponto de partida

para a produção em massa que permitiria reduzir o custo e acelerava

extraordinariamente a circulação. [...] Em toda a área capitalista do mundo,

essas transformações se alastraram rapidamente: nos Estados Unidos, na

primeira metade do século XIX, Benjamin Day utilizaria um método já

amplamente dominante na Inglaterra, ao desligar o seu jornal Sun da

subordinação passiva e doutrinária aos agrupamentos partidários, para dar

realce às notícias (WERNECK SODRÉ, 1983, p. 3).

A principal característica do “segundo jornalismo” é que a transformação

tecnológica (modernização das máquinas) exige da empresa jornalística a capacidade

financeira de autosustentação:

A gradual implantação da imprensa como negócio, iniciada após 1830 na

Inglaterra, na França e nos Estados Unidos, impõe-se plenamente por volta de

1875. A grande mudança que se realiza nesse tipo de atividade noticiosa é a

inversão da importância e da preocupação quanto ao caráter de sua mercadoria:

seu valor de troca – a venda de espaços publicitários para assegurar a

sustentação e a sobrevivência econômica – passa a ser prioritário em relação

ao seu valor de uso, a parte puramente redacional-noticiosa dos jornais. A

tendência – como se verá até o final do século 20 – é a de fazer do jornal

progressivamente um amontoado de comunicações publicitárias permeado de

notícias (WERNECK SODRÉ, 1983, p. 14).

Para garantir o alto investimento de capital, a imprensa difunde características da

atividade jornalística que seriam os seus pilares até hoje: a busca pela notícia, o “furo”, o

caráter de atualidade, a aparência de neutralidade e o caráter libertário e independente.

O pesquisador Luiz Costa Pereira Júnior evidencia que a ideia de veracidade e,

consequentemente, de objetividade da notícia seria determinante para a construção da

credibilidade diante do público, necessária para garantir a sobrevivência da imprensa no

mundo industrial.

O desenvolvimento do jornalismo evidencia a credibilidade como condição de

indústria. Para não afastar leitores, jornais tendem a atenuar posições, mascarar

preferências, criar parâmetros equilibrados de julgamento, tornar-se confiáveis

testemunhas dos fatos. A objetividade começa a virar bem valioso a negociar.

É então que a indústria assume o que se poderia chamar de estratégia de

sobrevivência conceitual. Instaura características de objetividade que virariam

pilares na imprensa (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 53).

Assim, os periódicos passam a ser um porta-voz dos fatos do cotidiano dos

leitores. É o início da produção jornalística que busca a credibilidade entre os seus leitores

por meio da objetividade. Porém, Pena (2005) reitera que as estratégias de mercado aos

poucos substituem o espaço das causas públicas e dos valores éticos, conforme a imprensa

vai se constituindo em um produto industrial. “Se a natureza do jornalismo está no medo,

sua origem como veículo está no lucro. Em seu código genético não encontramos um

serviço público, mas sim um comércio de notícias” (PENA, 2005, p. 33).

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18

Segundo Marcondes Filhos, o desenvolvimento e crescimento das empresas

jornalísticas desembocam na constituição do “terceiro jornalismo”, no século 20.

Segundo Medina (1988, p. 19), a formação da grande indústria da informação cujo

símbolo são as agências de notícia e as cadeias jornalísticas exigiu a profissionalização

do oficio de jornalista, no final do século XIX e na primeira metade do século XX.

Na obra A objetividade jornalística, Luiz Amaral (1996) escreve que a separação

entre notícia e comentário representou o aumento das vendas diárias e,

consequentemente, o aumento do faturamento dos jornais.

Até um certo ponto, os jornais se tornaram menos parciais, mais verazes e

credíveis e, portanto, de mais fácil comercialização. Estava aberto o caminho

para o surgimento de grandes e sólidas empresas, dos enormes conglomerados

que constituem, hoje em dia, os impérios jornalísticos (AMARAL, 1996, p.

35).

O autor afirma ainda que a noção de objetividade está presente a cada fase do

processo jornalístico, embora, desde a sua incorporação, tenha sido confrontada com o

seu contrário, a subjetividade. Até porque cada processo jornalístico (apurar, escrever,

editar e publicar) é resultado da escolha de alguém ou de um grupo. O que pressupõe uma

escolha subjetiva, mesmo que nela se busque a objetividade. “A questão é saber se é

possível, e em que grau, o ser humano descrever as coisas como elas realmente são.

Independentemente da relação que temos com elas. É saber se, de fato, a objetividade é

um caminho para a verdade e a realidade” (AMARAL, 1996, p. 18).

Amaral lembra ainda que “[o]s nossos atos são influenciados, quando não

determinados, por nossa maneira própria de ver. [...] O ser humano vê o mundo por meio

de uma espécie de filtro e com base nessa apreciação constrói a sua realidade”

(AMARAL, 1996, p. 18). O que permite o questionamento se é possível uma total isenção

na construção jornalística.

Pereira Júnior (2010, p. 35) acrescenta ainda que esta estratégia da imprensa, a

escolha pela objetividade, representa uma constante busca da relação de confiança entre

o jornal e o leitor. O repórter passa a ser a testemunha dos fatos e o leitor espera que o

jornalista “veja” a realidade em seu lugar para traduzir tudo com fidelidade. A veracidade

do jornal é a moeda de troca pela fidelidade do leitor.

Uma relação de confiança substitui, assim, a confiança no real. O referencial

só se torna aceitável porque um pacto de confiabilidade foi constituído entre o

jornalismo e seu público. Todo o trabalho jornalístico passa então a ser

sancionado menos por um princípio técnico in natura, a certeza de que bastaria

seguir determinados procedimentos profissionais para dar conta de um

incidente noticiável. A condição de sua existência começa a flertar com esse

princípio tão falível que é a honestidade na apuração de cada pista, na redação

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19

de cada texto, na edição de cada reportagem. [...] Um atributo ético preenche

o vácuo técnico (PEREIRA JÚNIOR, 2010, p. 36).

A partir disso, a ação de noticiar sempre estaria interligada ao “fato” que muitas

vezes é confundido com “verdade” para evidenciar ainda mais a busca da credibilidade

desta produção. “A notícia é um relato integral de um fato que já eclodiu no organismo

social” (MARQUES DE MELO, 2003, p. 66). “A notícia se define no jornalismo

moderno como o relato de uma série de fatos a partir do aspecto mais importante ou

interessante” (LAGE, 2002, p. 16).

Assim, existe uma regra estabelecida entre os profissionais responsáveis pela

produção da notícia que foi explicitada por Charaudeau (2013, p. 74): “Toda informação

que pudesse ser percebida pela instância de recepção como algo fabricado, mesmo não

sendo falsa, levantaria suspeitas e teria como consequência desacreditar o seu

responsável”.

Percebe-se, mais uma vez, que a credibilidade do jornalista estaria associada à

descrição do fato como ele é e ao entendimento do público de que o fato é a verdade. A

partir desta concepção, o profissional busca apurar e checar os fatos para transformá-los

em notícia.

O número incalculável de acontecimentos suscetíveis de se tornarem

informação [...] obriga a instância midiática a dotar-se de meios que lhe

permitam abranger o máximo de acontecimentos, selecioná-los e verificá-los.

É na escolha dos critérios que regem tais atividades que se põe em jogo a

imagem de cada organismo de informação (CHARAUDEAU, 2013, p. 74).

Pereira Júnior explicita bem os métodos de checagem do jornalista ao afirmar que

apurar é “encontrar evidências soterradas em camada de versões, procurar certezas em

situações de incerteza” (2010, p. 71). Sendo assim, o trabalho do jornalista exige uma

disciplina de verificação da veracidade das informações, que são de natureza subjetiva

porque são constituídas pela versão de alguém, que é explicitada por meio de entrevistas

e relatos. Além da subjetividade da informação, a investigação jornalística esbarra em

diferentes problemas que são habituais na produção das redações:

Investigar é caro, demanda tempo e esforço. Amarga os ventos sazonais da

redução de postos de trabalho, das Redações enxutas e da carga horária

exaustiva, resultados de uma lógica de investimentos sistematicamente voltada

para a modernização tecnológica e a infraestrutura e nem sempre para

produção de conteúdo qualificado. [...] Sofre as tentações da era da internet,

com o acesso fácil a dados sem que se faça investigação (PEREIRA JÚNIOR,

2010, p. 75).

A dicotomia objetividade e subjetividade é pauta ainda hoje nas discussões sobre

a profissão. Apesar de não haver consenso entre os teóricos e profissionais, a presente

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pesquisa reitera o que diz Felipe Pena ao afirmar que é preciso levar em conta a

subjetividade/complexidade na construção de um fato:

A objetividade é definida em oposição à subjetividade, o que é um grande erro,

pois ela surge não para negá-la, mas sim por reconhecer a sua inevitabilidade.

Seu verdadeiro significado está ligado à ideia de que os fatos são construídos

de forma tão complexa que não se pode cultuá-los como a expressão absoluta

da realidade. Pelo contrário, é preciso desconfiar desses fatos e criar um

método que assegure algum rigor científico ao reportá-los (PENA, 2005, p.

50).

Uma das principais evidências dessa complexidade é o fato de a principal fonte

de informação do jornalista ter a origem em um depoimento de um indivíduo ou de um

grupo. Se buscar a objetividade em uma notícia é difícil, na reportagem (ampliação da

notícia) é um trabalho ainda mais árduo. Segundo Sodré e Ferrari (1986), a reportagem é

um desdobramento da notícia, mas com foco no “quem” e no “o quê” entre as perguntas

clássicas do jornalismo: quem, o quê, como, quando, onde, por quê. Ou seja, muito mais

que o alongamento da notícia, o essencial da reportagem está no interesse humano.

O interesse pelo humano na reportagem assemelha-se à caracterização da

personagem no romance e, consequentemente, da natureza humana, por meio da

descrição física, moral e psicológica do ente da narrativa e, neste sentido, a reportagem

possibilita ao jornalista utilizar recursos da literatura para humanizar o seu relato.

Assim, com a produção de reportagens humanizadas surge uma nova

problematização no processo de produção jornalístico e, consequentemente, na

credibilidade da imprensa: a ficcionalização da realidade.

2.2 A apuração é credibilidade: a produção da reportagem no Brasil

No Brasil, a figura do repórter surgiu no final do século XIX e início do XX. João

do Rio15 é considerado o primeiro repórter investigativo do Brasil. Ele escrevia para a

Gazeta de Notícias (1875). Cremilda Medina (1988, p. 57) afirma que João do Rio

desenvolveu uma característica primária do jornalismo moderno – buscar informações na

rua. “Repórter que vai à rua e constrói sobre o momento e a história dos fatos presentes.

Da união destes dois conceitos nasce a definição moderna de jornalismo. E João do Rio,

15 Paulo Barreto, pseudônimo literário João do Rio, nasceu no Rio de Janeiro, em 1881. Jornalista, cronista,

contista e teatrólogo. Publicou dezessete livros, entre eles, A alma encantadora das ruas (1908). Trabalhou

em diversos jornais do Rio de Janeiro e fundou o diário A Pátria. Disponível em

<http://www.academia.org.br/academicos/paulo-barreto-pseudonimo-joao-do-rio/biografia>

Acesso em Fev. 2017.

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se não é original na história da imprensa, pelo menos no Brasil inicia esse processo”

(MEDINA, 1988, p. 58).

Segundo Cristiane Costa (2005), só no início do século XX que o jornalismo

brasileiro abre espaço para a reportagem e a entrevista. É esse modelo de reportagem de

campo que marca o nascimento do jornalismo moderno.

Uma das principais inovações que ele [João do Rio] trouxe para a nossa

imprensa foi a de transformar a crônica em reportagem [...] Sua inovação foi

apostar num jornalismo investigativo e de comportamento, em que crônica e

reportagem se misturam, como nas histórias narradas em A alma encantadora

das ruas (2005, p. 41-42).

Nesta obra (1908), João do Rio observou o cotidiano da cidade e coletou

informações entrevistando fontes. O jornalista descreve pessoas simples, profissionais da

rua da cidade, como os trapeiros, ciganos, apanhadores de papel, caçadores, selistas, etc.

Todos esses pobres seres vivos tristes vivem do cisco, do que cai nas sarjetas,

dos ratos, dos magros gatos dos telhados, são os heróis da utilidade, os que

apanham o inútil para viver, os inconscientes aplicadores à vida das cidades

daquele axioma de Lavoisier: nada se perde na natureza. A polícia não os

prende, e, na boêmia das ruas, os desgraçados são ainda explorados pelos

adelos, pelos ferros-velhos, pelos proprietários das fábricas... (JOÃO DO RIO,

2007, p. 51).

Medina (1988, p. 60) afirma que João do Rio observou os costumes e situações

sociais que são descritos no jornalismo atual. Com isso, sua contribuição para a

reportagem seria a observação da realidade; a coleta de informações por meio das

entrevistas com fontes específicas ou anônimas; a ampliação da informação como

aprofundamento do contexto, da humanização e da reconstituição histórica. Além do

tratamento estilístico, como a descrição dos ambientes e o ritmo narrativo. Assim,

segundo Costa (2005), o método de apuração de João do Rio já era de um repórter

moderno.

Outro destaque daquela época é o escritor Euclides da Cunha16, que colaborava

para o jornal O Estado de S. Paulo, criado em 1875.

A convite de Júlio de Mesquita, Euclides da Cunha aceita realizar reportagem

sobre Canudos, e parte na comitiva militar do Ministro da Guerra, Marechal

Bittencourt, em direção ao sertão baiano. Durante a viagem empreendida,

enquanto passava por Salvador, Alagoinhas, Queimadas, Monte Santo até

chegar finalmente a Canudos, o escritor envia ao Estado a série de 22

reportagens que integram o “Diário de Uma Expedição”, republicadas no

jornal entre 1952 e 1953. É em Canudos que começa a escrever as primeiras

notas de sua obra-prima Os Sertões (1902), cujas primeiras amostras públicas

16 Euclides Rodrigues da Cunha nasceu em Cantagalo, 20 de janeiro de 1866. Foi escritor, sociólogo,

repórter jornalístico, historiador e engenheiro brasileiro. Disponível em

<http://www.euclidesdacunha.org.br/abl_minisites/cgi/cgilua.exe/sys/startc2ed.html?UserActiveTemplate

=euclidesdacunha&sid=44 >. Acesso em Abr. 2018.

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aparecem no Estado, ainda em 1898, sob o título “Excerto de um livro Inédito”.

Nos anos seguintes, enquanto supervisionava a reconstrução de uma ponte em

São José do Rio Pardo, onde passou a morar com a esposa Ana Emília Solon

Ribeiro e os filhos, continuava colaborando para o Estado, publicando a série

“As secas do Norte”, além de outros artigos, e redigindo Os Sertões. O livro é

recebido com entusiasmo pelos críticos literários da época, e a primeira edição

se esgota em algumas semanas (ESTADÃO, ARQUIVO ELETRÔNICO17).

Os Sertões (1902) é um clássico brasileiro que narra a realidade do sertanejo do

início do século XX. É dele a frase imponente: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”.

Nos anos de 1910, surgem as revistas Kosmos, O Malho, Fon-Fon, Careta, Tico-

Tico, Tagarela. Já nos anos de 1920, destaque para a criação da Revista O Cruzeiro

(1928):

“O Cruzeiro” chegou ao público em 10 de novembro de 1928 prometendo

modernizar o jornalismo brasileiro. Fundada por Carlos Malheiros Dias e

publicada pelos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, investiu em

fotojornalismo, grandes reportagens e num padrão gráfico considerado

moderno para a época. Foi a mais influente revista do país na primeira metade

do século XX. Em suas páginas, os leitores se atualizavam sobre cinema,

esportes, saúde, moda e gastronomia. [...] As charges e a cobertura dos fatos

políticos também marcaram época. A edição sobre a morte de Getúlio Vargas,

em agosto de 1954, teve uma tiragem recorde de 720 mil exemplares, numa

época em que as vendas de um periódico raramente chegavam aos 100 mil.

Nos anos 60, porém, a revista entrou em declínio, tanto por causa do

surgimento de novas publicações quanto pela má gestão do empreendimento.

Sua última edição circulou em julho de 1975 (O GLOBO, 2013, ARQUIVO

ELETRÔNICO).18

Nos anos de 1940, destaque para a revista Diretrizes (1938), veículo de oposição

ao governo de Getúlio Vargas. Nomes de peso colaboravam com o periódico: os autores

Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos e os jornalistas Rubem Braga,

Carlos Lacerda, Joel Silveira e Moacir Werneck de Castro. Na década seguinte, ênfase

para a revista Manchete (1952):

Os Estados Unidos tinham a "Time" e a França, a "Paris Match". No Brasil,

Adolpho Bloch, dono da Bloch Editores, resolveu lançar a revista ''Manchete''

em 26 de abril de 1952, que se tornaria o título de maior sucesso de sua editora.

Um ótimo slogan - ''Aconteceu, virou manchete'' - precedeu o lançamento e

acompanhou por décadas a revista que chegou a ter tiragem de milhões de

exemplares nos anos 80. [...] Essencialmente carioca, numa época em que o

Rio era capital do Brasil e irradiava notícias e cultura para o país, a ''Manchete'',

com foco no fotojornalismo, chegou ao mercado das revistas semanais

ilustradas com qualidade gráfica superior à da sua principal concorrente, ''O

Cruzeiro''. [...] A nova publicação passou a atrair anunciantes interessados em

divulgar seus produtos em cores, quando a recém-inaugurada televisão

veiculava imagens em preto e branco. A revista contava com colunistas de

peso, como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Fernando

17 Disponível em <http://acervo.estadao.com.br/noticias/personalidades,euclides-da-cunha,942,0.htm>.

Acesso em Jul. 2017. 18 Disponível em <http://acervo.oglobo.globo.com/rio-de-historias/com-cruzeiro-chega-as-bancas-

moderno-jornalismo-brasileiro-8883281>. Acesso em Jul. 2017.

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Sabino. [...] Com a falência do Grupo Bloch Editores, em 2000, a revista

''Manchete'' deixou de circular. [...] Posteriormente, ela foi comprada pelo

empresário Marcos Dvoskin e relançada em 2002 com o nome ''Manchete

Editora'', sem periodicidade fixa e apenas com edições especiais (O GLOBO,

2017, ARQUIVO ELETRÔNICO19).

Segundo Cristiane Costa (2005), os jornais brasileiros foram influenciados pelo

movimento americano New Journalism, que contou com jornalistas como Gay Talese,

Hunter Thompson e Truman Capote escrevendo suas reportagens utilizando técnicas do

romance realista, nos anos de 1960. “Se a experimentação formal já era permitida no

espaço exíguo da crônica assinada, passou a ser autorizada nos suplementos culturais, nas

reportagens de comportamento e, dependendo do jornal, até nas matérias de polícia”

(COSTA, 2005, p. 269).

Tom Wolfe, um dos integrantes do movimento literário, evidencia a influência da

literatura realista na produção das reportagens do grupo:

Se se acompanha de perto o progresso do Novo Jornalismo ao longo dos anos

60, vê-se acontecer uma coisa interessante: os jornalistas aprendendo do nada

técnicas do realismo – especialmente do tipo que se encontra em Fielding,

Smollett, Balzac, Dickens e Gogol. Por meio da expectativa e erro, por

“instinto” mais que pela teoria, os jornalistas começam a descobrir os recursos

que deram ao romance realista seu poder único, conhecido entre outras coisas

como seu ‘imediatismo’, sua ‘realidade concreta’, seu ‘envolvimento

emocional’, sua qualidade ‘absorvente’ ou ‘fascinante’ (WOLFE, 2005, p. 53).

Os veículos que se destacaram no âmbito dessa busca foram o O Jornal da Tarde,

do Grupo Estado, e a revista Realidade, da Editora Abril. Segundo Medina (1988, p. 116),

O Jornal da Tarde tinha como traço predominante o processo narrativo dos fatos

jornalísticos. Ou seja, havia muito mais preocupação do periódico em narrar do que relatar

fatos ou tipos.

O Jornal da Tarde marcou sua imagem nesta forma de angular o fato

jornalístico, daí as figuras reais, de caráter informativo, aparecerem como

personagens de ficção e o relato dos fatos se transformar numa narrativa cena

por cena das situações vividas por estes tipos. A força emotiva substitui a força

objetiva, cronológica, do acontecer, [...] A linha de humanização se define em

fazer viver para compreender e tratar de, acima de tudo, emocionar (MEDINA,

1988, p. 116).

O Jornal da Tarde circulou na imprensa brasileira por 46 anos. A última edição do

periódico foi em outubro de 2012. Os motivos do fim foram a redução de gastos do Grupo

Estado e o investimento na plataforma digital.

Já a revista Realidade circulou durante o período do Golpe de Estado no Brasil, a

partir de 1964. Apesar do pouco tempo nas bancas, a revista foi representativa para o

19 Disponível em <http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/dos-anos-50-aos-2000-revista-manchete-

imprimiu-sua-marca-ao-jornalismo-21204604>. Acesso em 13. jul. 2017.

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jornalismo brasileiro, investindo na construção de reportagens que revelavam temas tabus

para a época, como a própria ditadura militar, o divórcio, a liberdade sexual, etc.

Mesmo com a resistência de uma década, o clima de repressão política provocou

várias reformas estruturais na revista que resultaram no seu fim, em 1976.

Realidade abre-se para o Brasil e para o mundo com uma proposta de cobertura

ambiciosa. Realiza mês a mês, em suas edições, a construção somativa de um

novo mapa da realidade contemporânea [...] Realidade ajuda o leitor a

descobrir o Brasil em suas múltiplas facetas nos diversos campos da atividade

econômica, da produção artística, da existência social, do comportamento

humano [...] Realidade não se prende ao fato do dia-a-dia, propõe sair da

ocorrência para a permanência. Seus temas não são os fatos isolados imediatos,

mas a situação. O contexto em que esses fatos se dão (PEREIRA LIMA, 2009,

p. 224-226).

Nos anos de 1980, os Estados Unidos, berço do movimento New Journalism,

vivenciaram uma crise da credibilidade da imprensa a partir de uma série de denúncias

de que jornalistas estariam produzindo reportagens inspiradas na literatura realista, mas

com histórias inventadas, ou seja, os jornalistas estariam criando fatos e personagens para

compor uma reportagem.

Na época, o jornalista John Hersey, autor do livro Hiroshima e ícone do New

Journalism, criticou essa farsa jornalística em um ensaio, reiterando que há uma regra

sagrada no jornalismo: o repórter não pode inventar.

O primeiro caso diagnosticado de reportagens com fatos inventados foi o da

repórter Janet Cooke, jornalista do The Washington Post, em reportagem intitulada

“Jimmy’s World”, sobre o cotidiano de um garoto de oito anos viciado em heroína.

A jornalista poderia ter ganho o Pulitzer de ficção, mas, em vez disso, foi

execrada. O affair Janet Cooke repercutiu em todo o mundo, por ter destruído

um dos pilares do jornalismo contemporâneo: o compromisso com o real.

Apesar de exemplarmente condenada pelos colegas e pela opinião pública,

casos semelhantes pipocaram na imprensa americana, ameaçando tornarem-se

epidêmicos (COSTA, 2005, p. 275).

Costa (2005, p. 283) relata ainda que para preservar as fronteiras entre fato e

ficção, vários órgãos de imprensa, como a revista New Yorker, acionaram departamentos

de fact-cheking20 para averiguar a veracidade das informações de suas reportagens. A

autora revela que até Truman Capote, um dos principais ícones do New Journalism, e sua

grande reportagem que depois se tornou o livro A sangue frio, passaram pelo crivo da

checagem.

Embora de forma não sistemática, o fact-cheking começou a ser aplicado em

1965, quando a New Yorker publicou a série de Truman Capote. [...] Um

20 O fact-checking é um dos principais temas do presente trabalho e será retomado adiante.

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checador profissional foi enviado ao interior do estado de Kansas, onde o

escritor pesquisou durante seis anos o assassinato de um fazendeiro e sua

família, e voltou impressionado com o rigor no levantamento de dados (Costa,

2005, p. 283).

A partir dos anos 80, as grandes reportagens perdem espaço nos jornais e revistas

para reportagens menores. Ou seja, rápidas e com menor custo. Segundo Costa (2005), a

imprensa passa por um enxugamento dos custos e não quer mais pagar por gastos como

viagens e salários de um profissional caro que pode levar semanas para pesquisar, apurar,

estruturar e escrever uma reportagem. “Abalada pela crise de credibilidade que a onda de

reportagens fraudulentas e o próprio questionamento sobre o conceito de verdade

produziram, a imprensa se vê ainda atacada em outro flanco: seu papel de mediadora entre

o público e o real” (COSTA, 2005, p. 287).

Por volta dos anos 70, o jornalismo vivencia o “terceiro jornalismo” que segundo

Marcondes Filho, representa a era tecnológica. Para o autor, a nova fase mudará o papel

histórico do jornalista como um “contador de histórias” (repórter) e como um “explicador

do mundo” (analista e comentarista). As informações passam a ser fornecidas aos jornais

por agentes empresariais e públicos (assessorias de imprensa) e que se misturam e se

confundem com a informação jornalística.

Depois, a substituição do agente humano jornalista pelos sistemas de

comunicação eletrônica, pelas redes, pelas formas interativas de criação,

fornecimento e difusão de informações. São várias fontes igualmente

tecnológicas, que recolhem material de todos os lados e produzem notícias

(MARCONDES FILHO, 2000, p. 30).

O autor comenta que a informática muda a lógica do sistema de informação. Desta

forma, a forma de comunicação nunca mais será a mesma e o jornalismo precisou se

reinventar.

2.3 A voz participativa é credibilidade: a internet e as redes sociais

A chegada de computadores, internet e aparelhos celulares revolucionou a forma

de comunicação da sociedade e, consequentemente, transformou o trabalho da imprensa.

Segundo o teórico Michael Kunczik (2001, p. 207), parecia óbvio que a introdução dos

sistemas eletrônicos nas salas de redação afetaria o trabalho do jornalista. Mas,

inicialmente, a introdução das técnicas eletrônicas deixou quase intacta a atividade

jornalística.

Os profissionais ainda não saberiam dimensionar o impacto da era digital na

produção da notícia. A preocupação da época seria com o processamento e

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26

armazenamento do texto que passaria a ser de forma eletrônica. Essa discussão está na

obra Conceitos de jornalismo, que teve a primeira edição em 1997.

Em relação às novas tecnologias, comprovou-se que a boa vontade para

trabalhar com elas dependia da facilidade do manuseio. Grande parte da

resistência foi eliminada através da experiência prática com as novas técnicas

[...] Em geral, os jornalistas não consideravam a nova tecnologia como uma

ameaça à qualidade de seus trabalhos jornalísticos (KUNCZIK, 2001, p. 215).

Porém, apesar da relação inicial amistosa entre o jornalismo e as novas

tecnologias, Kunczik (2001, p. 217) já advertia na época que os futuros jornalistas

deveriam, mais do que nunca, tomar consciência dos critérios de seleção de notícias. Os

jornalistas deveriam saber que a investigação eletrônica implicaria também na

dependência das informações produzidas por outros, provenientes quase sempre de fontes

desconhecidas. “Pois uma coisa é certa: a tecnologia não é boa nem má, mas também não

é neutra (Lei de Kranzberg)” (KUNCZIK, 2001, p. 218).

Provavelmente, Kunczik já estaria adiantando a verdadeira transformação que as

novas tecnologias provocariam na noção do que seria “notícia”. A principal delas é a

democratização da produção e circulação da informação, o que aconteceria mais tarde. Se

antes a imprensa tradicional – jornal impresso, televisão e rádio – exercia um controle

sobre o que poderia ou não ganhar status de notícia, com a era digital e o surgimento das

ferramentas de mídias sociais, a criação e o compartilhamento de informação passaram a

ser possíveis para qualquer pessoa online.

Um exemplo da revolução que as novas tecnologias provocaram no jornal

impresso foi apresentado no documentário “Primeira Página: Por dentro do New York

Times21”. No documentário, especialistas em comunicação analisaram a transição do

analógico para o digital e as suas consequências como a queda de 30% do faturamento

dos jornais americanos com publicidade, em 2009. Mais a queda de 17% em 2008.

Além disso, o documentário aborda que a imprensa tradicional, segundo o

professor de Novas Mídias da New York University, Clay Shirky, perdeu a exclusividade

de porta-voz da informação. Ou seja, a imprensa ganhou concorrentes desafiadores,

pessoas ou organizações que usam a plataforma digital para informar.

Uma delas é a organização WikiLeaks22, citada no documentário. O editor do

NYT, Bruce Headlam, reflete sobre a competição dos jornais com a organização. Para

21 Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=ogdbquO9xb4>. Acesso em 07. Mar.2018. 22 WikiLeaks é uma organização transnacional sem fins lucrativos que publica, em sua página na internet,

documentos, fotos e informações confidenciais, vazadas de governos ou empresas.

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ele, a situação é uma colisão de dois mundos: o mundo velho, fechado, de especialistas e

informações confidenciais; e o novo mundo, que quer que tudo seja público. O velho e o

novo representa ainda uma analogia com o embate impresso X digital.

O teórico Jeff Jarvis, autor do livro What Would Google Do? (2009), também

comenta no documentário sobre a revolução da mídia e é categórico ao afirmar que o

modelo antigo do jornal está morrendo. Porém, a notícia não. Ela é muito mais barata

agora, porque podemos divulgar de novas formas, operar em plataformas

economicamente acessíveis e em redes.

O documentário chega ao fim de forma um pouco pessimista com a informação

que o NYT foi forçado a demitir 100 pessoas na redação devido à nova realidade digital,

porém o filme enxerga uma luz ao final do túnel quando também mostra o momento em

que o editor chefe, Bill Keller, anuncia que o jornal venceu, apesar da crise, o prêmio

Pulitzer de 2010.

No Brasil, o tema das transformações decorrentes do modelo digital nas principais

redações do país é recorrente nas discussões de congressos e seminários. Em 2018, a 13ª

edição do Congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji)

retomou o assunto na mesa “As mutações no comando nas redações”, com Daniela

Pinheiro (Revista Época), Sérgio Dávila (Folha de S. Paulo), Alan Grip (O Globo) e

Marcelo Beraba (Estadão).

Todos os participantes falaram sobre a revolução digital nas redações e suas

consequências para o jornalismo, desde as dificuldades na adaptação do digital até a

demissão de profissionais e o surgimento do “jornalista multitarefa”, aquele que além de

escrever matérias, precisa abastecer as redes digitais com fotos, vídeos, etc.

Os diretores reforçaram a necessidade do investimento em conteúdo de qualidade

para competir com as informações nas redes e para garantir a fidelidade do público. Ao

mesmo tempo isso é visto como um desafio diante das redações cada vez mais esvaziadas

devido às demissões.

Marcelo Beraba afirmou que o principal desafio é, justamente, fazer jornalismo

de qualidade com equipes cada vez menores e, em geral, mais jovens e menos experientes.

Já Sérgio Dávila afirmou que, em 2010, eram 480 jornalistas na redação da Folha. Hoje,

são 310. Porém, a equipe de repórteres especiais permanece com 20 profissionais.

O digital proporcionou mudanças estruturais nas redações. Dávila afirmou, por

exemplo, que, em 2010, as redações da Folha online e Folha imprensa competiam entre

si. A interação desses dois mundos tornou-se realidade a partir da unificação das marcas

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e restruturação das editorias clássicas da Folha, com a inclusão do Núcleo de Inteligência

da Folha, que transforma dados em histórias, e o Núcleo de circulação e audiência, além

da TV Folha, que conta com vídeos.

O repórter passa a monitorar diferentes mídias, não apenas o impresso. As

mudanças refletiram na audiência que, segundo Dávila, 70% da audiência online da Folha

vem do móbile, porém, dos 35 milhões de leitores só 1% paga o conteúdo.

A busca de assinantes digitais é o novo desafio do jornal O Globo, explica Alan

Grip. O jornal tem um novo modelo de negócio cujo principal objetivo é ser sustentado

pelas assinaturas e não mais pelos anunciantes. Com isso, o jornal investe em conteúdo

de qualidade que, segundo Grip, é o que gera novas assinaturas.

A nova era digital proporcionou a criação de um novo projeto gráfico e editorial

que unificou as redações da revista Época e dos jornais O Globo e Valor Econômico,

explicou Daniela Pinheiro. Agora, o assinante recebe os três produtos em casa.

São inegáveis as transformações que o digital acarretou na forma como

consumimos notícias. Na obra Cultura da convergência (2012), Henry Jenkins classifica

as mídias tradicionais como “passivas” e as mídias atuais como “participativas e

interativas”, porém elas interagem no que o autor denomina como “cultura da

convergência”: “cultura da convergência, onde as velhas e as novas mídias colidem, onde

mídia corporativa e mídia alternativa se cruzam, onde o poder do produto de mídia e o

poder do consumidor interagem de maneiras imprevisíveis” (JENKINS, 2012, p. 29).

Para o autor, novas e antigas mídias interagem de forma cada vez mais complexa

e produtores e consumidores de mídia tornam-se participantes que interagem de acordo

com um novo conjunto de regras, que nenhum de nós entende por completo.

Porém, é certo que “nem todos os participantes são criados iguais. Corporações –

e mesmo indivíduos dentro das corporações da mídia – ainda exercem maior poder do

que qualquer consumidor individual ou mesmo um conjunto de consumidores”

(JENKINS, 2012, p. 30). O que permite afirmar que ainda não existe a democratização

da mídia por completo. Mesmo assim, Jenkins acredita que a “inteligência coletiva pode

ser vista como uma fonte alternativa de poder midiático” (2012, p. 30).

Essa fonte alternativa surge em um momento histórico apontado pelo autor em

que nossos vínculos com antigas formas de comunidade social estão se rompendo e nossas

alianças com Estados-nações estão sendo redefinidas. As novas formas de comunidade

que surgiram são definidas por afiliações voluntárias, temporárias e são reafirmadas

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através de investimento emocionais e empreendimento intelectuais comuns (JENKINS,

2012, p. 57).

Com o crescimento e fortalecimento dessas comunidades digitais, a informação

que circula nesse meio ganha relevância e, a partir disso, surge a preocupação sobre a sua

veracidade. “Mas as comunidades devem realizar um atento escrutínio de qualquer

informação que fará parte de seu conhecimento compartilhado, já que informações

errôneas podem levar a concepções cada vez mais errôneas” (JENKINS, 2012, p. 57). Ou

seja, o autor estaria prevendo a situação atual de descontrole de compartilhamento de

informação falsas por grupos virtuais.

Jenkins afirma que a sociedade ainda está aprendendo como exercer o poder da

comunicação individual ou coletiva. Por isso, não há garantias de que usaremos esse

poder com mais responsabilidade do que os Estados-nação ou as corporações. “Parte do

que precisamos fazer é descobrir como – e por que – grupos com diferentes formações,

projetos, pontos de vistas e conhecimentos podem se ouvir e trabalhar juntos pelo bem

comum. Temos muito a aprender” (2012, p. 328).

O autor afirma ainda a importância do fim da concentração do poder na mídia. Ele

reitera que a concentração é ruim porque coloca as indústrias acima das demandas dos

consumidores e reduz a diversidade de vozes. Jenkins argumenta, por fim, que uma

cultura midiática participativa é um objetivo pelo qual vale a pena a luta.

A cultura da convergência é altamente produtiva: expandir os potenciais para

a participação representa a maior oportunidade para a diversidade cultural. [...]

Os consumidores terão mais poder na cultura de convergência – mas somente

se reconhecerem e utilizarem esse poder tanto como consumidores quanto

como cidadão, como plenos participantes de nossa cultura (2012, p. 343).

O teórico Clay Shirky (2008; 2011) – o mesmo que participa do documentário

sobre o NYT – estuda, justamente, as transformações na sociedade após o advento das

novas tecnologias.

Na época em que a população on-line era pequena, a maioria das pessoas que

você conhecia na vida diária não fazia parte dela. Agora que computadores e

telefones cada vez mais computadorizados foram amplamente adotados, toda

a noção de ciberespaço está começando a desaparecer. Nossas ferramentas de

mídia social não são uma alternativa para a vida real, são parte dela. E,

sobretudo, tornaram-se cada vez mais os instrumentos coordenadores de

eventos no mundo físico (SHIRKY, 2011, p. 37).

Para o autor, diante das redes sociais, a sociedade resgatou a cultura de um

comportamento mais participativo. Encontros locais, eventos e performances ou o

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simples hábito de criar algo com outras pessoas em mente e então compartilhá-lo

representa um eco de um antigo modelo com uma roupagem tecnológica.

Estamos vivendo em meio a um extraordinário aumento de nossa capacidade

de compartilhar, de cooperar uns com os outros e de empreender ações

coletivas, tudo isso fora da estrutura de instituições e organizações tradicionais

[...] Ao facilitar a formação espontânea de grupos e a contribuição individual

para os esforços em grupo sem exigência de gestão formal (e os custos

operacionais que a acompanham), essas ferramentas alteraram de maneira

radical os antigos limites de tamanho, sofisticação e alcance do esforço não

supervisionado. [...] Como seria de se esperar, quando o desejo é grande e os

custos são mínimos, o número desses grupos dispara, e os tipos de efeito que

eles provocam no mundo estão se espalhando (SHIRKY, 2008, p. 24).

Esse fenômeno abalou a estrutura consolidada da imprensa, justamente, pela perda

do controle das informações que se tornam notícia. Só seria notícia o que o editor-chefe

de algum veículo priorizasse, por exemplo. Com as redes sociais, um conteúdo publicado

por um amador pode gerar inúmeros compartilhamentos e interações e alavancar o mesmo

status. A partir disso, surgiu o que Shirky (2008) intitula de “amadorização em massa” da

comunicação.

A mudança não consiste na substituição de um tipo de instituição noticiosa

por outro; está na definição de notícia: esta deixa de ser uma prerrogativa

institucional para ser parte de um ecossistema de comunicações, ocupado por

uma mistura de organizações formais, coletivos informais e indivíduos. (2008,

p. 60).

O teórico questiona o papel da sociedade diante desta revolução. Para ele, já é

certo que os antigos limites da mídia tradicional foram reduzidos radicalmente, como já

é certo que a democratização da informação permite a mobilização social por uma causa

ou por alguém.

Qualquer acontecimento humano, por mais improvável que seja, vê sua

probabilidade crescer numa multidão [...] Novos mecanismos de comunicação

estão agregando nossa capacidade individual de criar e compartilhar em níveis

inéditos. [...] Como cada vez mais produzimos e compartilhamos mídia,

precisamos reaprender o que cada palavra pode significar. [...] Nossa

capacidade de equilibrar consumo, produção e compartilhamento, nossa

habilidade de nos conectarmos uns aos outros, estão transformando o conceito

de mídia, de um determinado setor da economia em mecanismo barato e

globalmente disponível para o compartilhamento organizado (SHIRKY, 2011,

p. 29).

Porém, Shirky (2011) questiona: “Quem define que tipo de causa é certo?”. Pode-

se acrescentar também: Quem define o que é verdade e o que não é? Até porque, com

inúmeros produtores de conteúdo, uma versão pode ganhar status de fato ou verdade, o

que torna as redes sociais um ambiente favorável para a difusão de informações nutridas

por opiniões que ganham relevância de fatos e, posteriormente, de notícias. A

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consequência seria o surgimento de um novo fenômeno mundial provocado pelo digital,

a pós-verdade, que será discutido a seguir.

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3 A ERA DA PÓS-VERDADE E FAKE NEWS

Neste capítulo, a discussão será sobre a pós-verdade e o fenômeno das notícias

falsas (fake news). É certo que a desinformação existe há muito mais tempo na sociedade,

porém o que a pesquisa pretende analisar é a desinformação como resultado e

consequência da revolução digital.

Como foi visto no capítulo anterior, as redes digitais enalteceram a cultura

participativa da sociedade em assuntos de interesse coletivo, algo positivo porque

promoveu a diversidade de vozes e decentralizou o poder da grande mídia como única

porta-voz da informação. Porém, o fenômeno abalou o conceito de verdade, já que

opiniões e fatos se confundem porque circulam no mesmo espaço digital, o que gera as

notícias falsas. Analisar esse cenário é entender como o jornalismo pode atuar para

combater essa desinformação.

3.1 O fenômeno da pós-verdade

O entendimento humano não se compõe de luz pura, pois é sujeito à

influência da vontade e das emoções, donde se pode gerar conhecimento

fantasioso; o homem se inclina a ter por verdade aquilo que prefere (Francis

Bacon).

Para Noah Harari (2018), os humanos sempre viveram na pós-verdade. Segundo

o autor, o Homo sapiens é uma espécie da pós-verdade, cujo poder depende de criar

ficções e acreditar nelas.

Somos os únicos mamíferos capazes de cooperar com vários estranhos porque

somente nós somos capazes de inventar narrativas ficcionais, espalhá‑las e

convencer milhões de outros a acreditar nelas. Enquanto todos acreditarmos

nas mesmas ficções, todos nós obedecemos às mesmas leis e, portanto,

cooperamos efetivamente (2018, p. 290).

O autor afirma que mitos serviram desde a idade da pedra para unir coletivos

humanos. A religião é um exemplo: “Temos zero evidência científica de que Eva foi

tentada pela serpente, que as almas dos infiéis ardem no inferno depois que morrem, mas

bilhões de pessoas têm acreditado nessas narrativas durante milhares de anos” (HARARI,

2018, p. 290).

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O autor explica ainda que cada nação cria sua própria mitologia nacional e

movimentos como o comunismo, fascismo e o liberalismo modelaram elaborados credos

para reforçar ideias e pensamentos:

Diz‑se que Joseph Goebbels, o maestro da propaganda nazista, e talvez o mais

realizado mago da mídia da era moderna, explicou seu método sucintamente

declarando que “uma mentira dita uma vez continua uma mentira, mas uma

mentira dita mil vezes torna‑se verdade” [...] A máquina de propaganda

soviética foi igualmente ágil com a verdade, reescrevendo a história de tudo,

desde guerras inteiras até fotografias individuais [...] Além de religiões e de

ideologias, empresas comerciais também se apoiam em ficção e fake news.

Divulgar uma marca envolve recontar a mesma narrativa ficcional várias

vezes, até as pessoas ficarem convencidas de sua veracidade (HARARI, 2018,

p. 294).

Ao trazer o jornalismo à tona, Eugênio Bucci (2018, p. 23) afirma que a mentira nua e

crua não escapa à profissão:

A mentira de imprensa é tão antiga quanto a imprensa. Quando olhamos os

jornais da virada do século XVIII para o século XIX na Europa e nos Estados

Unidos, vemos um festival de calúnias e xingamentos sem nenhum

compromisso com o equilíbrio, a ponderação e a objetividade. Os diários que

conquistaram na prática a liberdade de imprensa primavam pela violência da

linguagem e mentiam à vontade. A qualidade jornalística, não custa lembrar,

só veio como consequência do exercício da liberdade, não o contrário.

Noah Harari (2018) afirma que as histórias falsas têm uma vantagem intrínseca

em relação à verdade quando se trata de unir pessoas. Foi exatamente o que aconteceu

quando notícias falsas que circularam nas redes sociais impulsionaram grupos a favor da

saída do Reino Unido da União Europeia, o Brexit23, em 2016. Além do triunfo de Donald

Trump24, o candidato que manteve um discurso mentiroso durante a campanha

presidencial dos Estados Unidos, no mesmo ano.

23 A campanha a favor da saída do Reino Unido da União Europeia triunfou com slogans que eram

comprovadamente não verdadeiros ou enganosos. Como a informação falsa que afirmava que a

permanência custava 350 milhões de libras por semana aos cofres públicos e que o dinheiro após a eventual

saída do bloco seria destinado ao serviço público de saúde. Disponível em

<http://www.bbc.com/portuguese/internacional-3799816>. Acesso em 16. Mai. 2018. 24 Pesquisa de cientistas políticos americanos analisou qual foi o impacto das fake news sobre o eleitor dos

EUA. A partir dos resultados, os cientistas políticos observaram que um número considerável de eleitores,

27%, leu pelo menos uma notícia falsa no período analisado. Nesse universo, os pesquisadores

identificaram que os usuários simpatizantes de Trump eram mais propensos a visitar sites identificados

como disseminadores de fake news. Os pesquisadores afirmam ainda que leitores de notícias falsas têm

bom conhecimento de assuntos relacionados à política. Portanto, afirmam os autores, é impreciso associar

o consumo desse tipo de informação a uma suposta ignorância sobre política. O que é possível afirmar é

que as fake news têm mais aderência entre eleitores com posicionamentos políticos mais extremados. Artigo

sobre a pesquisa disponível em <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/01/14/Qual-o-impacto-

das-fake-news-sobre-o-eleitor-dos-EUA-segundo-este-estudo>. Acesso em 16.Mai. 2018.

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O tema impulsionou ainda o dicionário de Oxford a eleger a “pós-verdade” como

a principal palavra do ano de 2016. O dicionário assim definiu a pós-verdade25: adjetivo

que se relaciona a ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência

em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais (Tradução

nossa).

Para Chistian Dunker, um dos autores da obra Ética e Pós-verdade (2017), a pós-

verdade seria uma espécie de segunda onda do pós-modernismo, em que havia o

relativismo cultural da verdade:

A versão contemporânea da pós-verdade retoma, de maneira modificada,

vários aspectos pré-modernos da verdade, ou seja, uma verdade inflacionada

de subjetividade, mas sem nenhum sujeito. Uma verdade que é moralmente

potente, mas que não produz transformações éticas relevantes. Uma verdade

que se confunde com os processos sociológicos de individualização, com as

prerrogativas estéticas do gosto e com a força política das religiões (DUNKER,

2017, p. 18).

Para Matthew D’Ancona, autor do livro Pós-verdade: a nova guerra contra os

fatos em tempos de fake news (2018), os principais autores do pós-modernismo

questionaram a noção de realidade objetiva e desgastaram a noção de verdade:

Os filósofos pós-modernos preferiam entender a linguagem e a cultura como

“constructos sociais”; ou seja, fenômenos políticos que refletiam a distribuição

de poder através de classe, raça, gênero e sexualidade, em vez de ideais

abstratos de filosofia clássica. E se tudo é um “constructo social”, então, quem

vai dizer o que é falso? O que impedirá o fornecedor de “notícia falsa” de

afirmar ser um obstinado digital combatendo a “hegemonia” perversa da

grande mídia? (D’ANCONA, 2018, p. 85).

Dunker (2017) chama atenção ainda para a ascendência de um novo tipo de

irracionalismo que conseguiu recolocar na pauta temas como: o criacionismo contra o

darwinismo, a relatividade da “hipótese” do aquecimento global, a suspeita sobre a

indução e o autismo por vacinas e tantas outras teorias mais ou menos conspiratórias

diluídas por um novo estado da conversa em escala global, facultado de modo inédito

pelas redes sociais.

Dunker (2017) afirma que o nascimento da pós-verdade poderia ter sido em 2011

quando, diante do ataque às torres gêmeas de Nova York, a verdade das armas químicas

que justificaram o ataque ao Iraque mostrou-se como ficção. Assim, o relativismo cultural

da verdade foi subitamente invertido pelo real da guerra ao terror.

25 Adjective relating to or denoting circumstances in which objective facts are less influential in shaping

public opinion than appeals to emotion and personal belief.

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Porém, a pós-verdade é investigada, principalmente, por meio do declínio do valor

da verdade na situação do Reino Unido (devido ao Brexit) e dos Estados Unidos (devido

à vitória de Trump). No artigo “Pós-política e corrosão da verdade”, Eugênio Bucci

afirma que “as democracias mais estáveis do planeta estariam ingressando numa era em

que os relatos sobre os acontecimentos perderam referência na verdade factual (ou

“verdade de facto”, ou, ainda, a verdade que se extrai da verificação honesta e do relato

fidedigno dos fatos e dos acontecimentos)” (2018, p. 22).

Desta forma, além de entender os contextos que permitiram a efervescência da

pós-verdade nesses países é possível fazer uma analogia com a realidade atual brasileira.

Até porque, como explica D’Ancona (2018, p. 38), o desmoronamento do valor da

verdade é uma tendência global.

Todas as sociedades possuem suas lendas fundadoras que as unem, moldam

seus limites morais e habitam seus sonhos futuros. Desde a Revolução

Científica e o Iluminismo, porém, essas narrativas coletivas competiram com

a racionalidade, o pluralismo e a prioridade da verdade como base para a

organização social. O que é novo é a extensão pela qual, no novo cenário da

digitalização e interconexão global, a emoção está recuperando sua primazia,

e a verdade, batendo em retirada.

Ainda segundo D’Ancona, a pós-verdade está relacionada com a degradação do

valor central do jornalismo – a verdade, porém a “verdade factual”. Eugênio Bucci (2018)

cita o termo “verdade factual” da filósofa Hannah Arendt para diferenciar o sentido da

“verdade” jornalística de outras verdades, como a filosófica por exemplo. Além disso,

Hannah ressalta que a verdade factual é frágil e mais vulnerável a falsificações e

manipulações.

D’Ancona (2018) afirma que o Brexit representou a política da pós-verdade em

seu estado mais puro: o triunfo do visceral sobre o racional, do enganosamente simples

sobre o honestamente complexo. Enquanto a chapa a favor da permanência apresentava

fatos e estatísticas que demostravam, por meio de números, as consequências negativas

para o Reino Unido caso se retirasse da União Europeia (950 mil empregos a menos;

queda do salário mínimo, etc.), a campanha a favor da saída priorizou a conexão emotiva

com as pessoas e apostou em promessas frágeis que criavam falsas expectativas nos

eleitores.

O que os partidários do Brexit entenderam envolveu a necessidade de

simplicidade e ressonância emocional: uma narrativa que dava significado

visceral a uma decisão que talvez parecesse técnica e abstrata. Como Dominic

Cummings, diretor de campanha do Vote Leave, favorável ao Brexit, sustentou

na época: o argumento a favor da saída tinha de ser claro e se apegar a

ressentimentos específicos do público (D’ANCONA, 2018, p. 27).

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A prova da fragilidade das promessas foi a mudança do discurso da chapa

vencedora após o resultado do referendo a favor da saída do Reino Unido:

A rapidez com que os defensores do Brexit mudaram de posição a respeito

das promessas que tinham vencido foi de tirar o fôlego. No programa

jornalístico Newsnight, da BBC, um dia após o referendo, Daniel Hannan,

membro do Parlamento Europeu pelo Partido Conservador inglês, negou que

seu partido houvesse prometido ou insinuado que se daria uma redução drástica

na quantidade de imigrantes. “Nunca dissemos que aconteceria algum declínio

radical”, ele disse, para surpresa de Evan Davis, apresentador do programa

(D’ANCONA, 2018, p. 28).

Pode-se afirmar que não há nada de novo em um cenário onde políticos mentem

e enganam seus eleitores para conseguir votos. No entanto, explica Matthew: “a novidade

não é a desonestidade dos políticos, mas a resposta do público a isso. A indignação dá

lugar à indiferença e, por fim, à conivência” (D’ANCONA, 2018, p. 34).

Uma pesquisa realizada logo após o referendo mostra essa conivência dos ingleses

com as propostas obscuras vencedoras. De acordo com o instituto Opinium, em pesquisa

publicada em janeiro de 2017, 52% dos eleitores acreditavam que o Reino Unido tomou

a decisão correta ao sair da União Europeia.

Como foi visto, a eleição de Donald Trump, político republicano, também é

significativa para entender o fenômeno da pós-verdade. De acordo com o site Politifact,

que checa a informação e é ganhador do Prêmio Pulitzer, 69% das declarações de Donald

Trump durante a campanha presidencial foram “predominantemente falsas”, ou “falsas”

ou “mentirosas”. Para Trump, a história importava mais do que o fato e foi esse princípio

que norteou a sua campanha à Casa Branca, em 2016.

Em vez de alimentar à força o eleitorado com um inventário de fatos e detalhes

de seu currículo, ele bramiu uma narrativa que impôs, até certo ponto, uma

ordem bruta sobre as complexidades mutáveis da vida moderna. Ele foi

explicitamente desagregador ao prometer a proibição da imigração de

muçulmanos, um muro ao longo da fronteira com o México, um retorno ao

protecionismo econômico. No entanto, esse foi o ponto: oferecer à grande

massa de eleitores brancos uma série de inimigos contra quem eles poderiam

se unir, uma história na qual seriam capazes de desempenhar um papel e um

plano mítico de “Tornar a América Novamente Grande”. O efeito foi narcótico,

em vez de racional: melhor uma narrativa fantasiosa que parecia boa do que

nenhuma (D’ANCONA, 2018, p. 26).

Assim, não havia fatos na campanha de Trump, mas sim “fatos alternativos” e,

desta forma, o magnata foi eleito o 45º presidente dos Estados Unidos.

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37

No Brasil, pesquisa26 publicada pela Fundação Friedrich Ebert – Brasil mostrou o

crescimento das novas direitas brasileiras, especialmente da extrema direita mais

antidemocrática, simbolizada no pensamento do deputado Jair Bolsonaro, candidato à

presidência do país nas eleições de 2018. Assim como Trump, o discurso de Bolsonaro

elegeu inimigos contra quem os brasileiros poderiam se unir. No caso, o candidato seria

a figura que combateria o “mal” que assola os brasileiros.

O contexto para o crescimento seria a junção de crises econômicas e políticas,

aliado com a centralidade cada vez maior da internet, que produz novos padrões de

sociabilidade e comportamento político. “As formas de organização online e seu impacto

radical na democracia, até com efeitos não esperados e muito desconcertantes como o

fenômeno das fake news ou boatos virtuais [...] para influenciar as preferências políticas

do eleitor” (SOLANO, 2018, p. 6).

Além de um discurso de ódio contra negros e minorias, comum ao presidente

americano, Bolsonaro apresenta sua própria interpretação da realidade. Ou seja, é um

exemplo do discurso da pós-verdade. Em entrevista27 para o programa Roda Viva, da TV

Cultura, em agosto de 2018, o presidenciável negou a existência do período histórico da

escravidão ao ser questionado sobre a dívida histórica que os países possuem com os

negros. “Se for ver a história realmente, os portugueses nem pisavam na África, eram os

próprios negros que entregavam os escravos”, afirmou, durante a entrevista.

3.2 O colapso da confiança na imprensa

Os sites conspirativos e a mídia social tratam com desdém os jornais

impressos ou a grande mídia, considerando-os a voz desacreditada de uma

ordem “globalista”; uma “elite liberal”, cujo tempo já passou

(Matthew D’Ancona).

Os políticos apoiadores do Brexit triunfaram com informações falsas porque

também contaram com uma crescente suspeita da população de que fontes tradicionais de

autoridades e informação eram duvidosas. “Esse colapso da confiança é a base social da

26 Disponível em <http://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/14508.pdf> Acesso em 13. Ago. 2018. 27 Disponível em <https://exame.abril.com.br/brasil/no-roda-viva-bolsonaro-questiona-escravidao-e-

cotas/>. Acesso em 13. Ago. 2018.

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38

era da pós-verdade: todo o resto flui dessa fonte única e deletéria” (D’ANCONA, 2018,

p. 42).

Para D’Ancona, as dificuldades financeiras da mídia impressa na era digital,

juntamente com escândalos envolvendo meios de comunicação, colocaram em perigo a

confiança do público no jornalismo. O autor cita a controversa história sobre grampos

telefônicos ilegais que forçaram o fechamento do tabloide News of the World, na Grã-

Bretanha28, e os crimes sexuais do apresentador de TV e rádio da rede BBC, Jimmy

Savile29.

Já nos Estados Unidos, a revelação pelo New York Times de que um de seus

jornalistas, Jayson Blair, falsificara ou plagiara o conteúdo de 673 artigos ao longo de

quatro anos, reforçaram a descrença do público com os jornais. “Sem dúvida, não é por

acaso que o presidente Trump twitta rotineiramente que o New York Times está

“falhando”: ele sabe em quais organizações midiáticas mirar” (D’ANCONA, 2018, p.

45).

Trump ataca constantemente a grande imprensa americana ao acusar os jornalistas

de propagarem notícias falsas. Principalmente se as notícias são sobre as incongruências

do seu governo. Com isso, o presidente reforça a desconfiança dos americanos com o

jornalismo e propicia um ambiente fértil para as suas declarações infundadas. Para

D’Ancona, o presidente dos EUA escolhe sua própria verdade e define a verdade

investigada por jornalistas como fake news.

A questão não é determinar a verdade por meio de um processo de avaliação

racional e conclusiva. Você escolhe sua própria verdade, como se escolhesse

comida de um bufê. Também seleciona sua própria mentira, de modo não

menos arbitrário. Em um caso clássico de algo que os psicólogos chamam de

“espelhamento”, Trump – notório em sua campanha por suas mentiras –

começou a acusar seus críticos da mídia de espalhar “notícias falsas”

(D’ANCONA, 2018, p. 57).

No Brasil, Eugênio Bucci (2000) pontua momentos históricos em que a

credibilidade da mídia brasileira também foi posta em xeque pela sociedade. Segundo o

autor, a cobertura jornalística da Rede Globo distorceu e omitiu informações de

mobilizações populares ocorridas durante a campanha das diretas de 1984, das eleições

presidenciais de 1989 e pelo impeachment do presidente da república em 1992.

28Disponível em

<https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2011/07/110707_entenda_news_of_the_world_mm>. Acesso

em 15. Jun. 2018. 29 Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/06/140626_savile_abusos_fl>. Acesso

em 15. Jun. 2018.

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39

O jornalismo da Rede Globo ignorou e, com isso, forçou os seus

telespectadores a ignorar – inúmeras passeatas e atos públicos que tomavam

conta do espaço público nacional. [...] A Globo foi a única? Não. Mas a sua

liderança impõe a ela o ônus de ser caso exemplar, sobretudo nos erros

(BUCCI, 2000, p. 30-31).

Durante as jornadas de junho de 201330 e, posteriormente, durante o impeachment

da presidente da república Dilma Rousseff31 em 2016, o Brasil viveu uma grande

instabilidade política que reverberou na insatisfação da população com a grande

imprensa. Parte da população defendia o impeachment da presidente que teria cometido

“pedaladas fiscais” (prática de adiar o repasse a bancos públicos de recursos a serem

distribuídos em programas governamentais).

O outro lado defendia que as “pedaladas” não seriam comprovação de

responsabilidade criminal e que o impeachment seria um golpe. Assim, os veículos que

apoiaram o impeachment de forma oficial ou não foram chamados de golpistas. O que

evidencia, mais uma vez, a perda da confiança na grande imprensa pelo público. Além

disso, a instabilidade política diante dos acontecimentos acima proporcionou um terreno

fértil para a era da pós-verdade no Brasil.

O portal brasileiro “Observatório da imprensa” foi um dos pioneiros na discussão

sobre o tema no Brasil, antes mesmo que a discussão sobre fake news se tornasse quase

rotina nos principais jornais brasileiros (isso aconteceu principalmente em 2018). No

Brasil, um dos pioneiros que realizaram uma reflexão crítica sobre o assunto foi o teórico

Carlos Castilho, que publicou artigos sobre o tema. No artigo intitulado “A desinformação

como estratégia política desafia o jornalismo”, o autor comenta sobre a campanha de

Trump para chegar à Casa Branca que foi movida por notícias falsas:

Desinformação é o processo pelo qual uma notícia falsa, parcialmente falsa,

conceitos distorcidos ou fatos fora de seu contexto são sistematicamente

difundidos por personalidades públicas e pela imprensa gerando a percepção

de que são informações confiáveis entre os consumidores de informações. Não

é um processo novo, pois sempre existiu na política, nos negócios e na

diplomacia como uma forma de tentar mudar a forma como as pessoas veem

personalidades, fatos, dados e eventos. Quem mais se aproximou do fenômeno

atual foi o chefe da propaganda nazista Joseph Goebbels que eternizou a frase:

“uma mentira repetida milhares de vezes vira uma verdade”. Donald Trump

vem seguindo este preceito ao pé da letra, tanto que nas semanas anteriores às

eleições norte-americanas do dia 8 de novembro [2016], a sua assessoria de

comunicação inundou a internet com 8,9 milhões de micro mensagens na rede

30 Disponível em <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/06/17/O-que-foram-afinal-as-Jornadas-

de-Junho-de-2013.-E-no-que-elas-deram>. Acesso em 15. Jun. 2018. 31 Disponível em <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/08/31/dilma-rousseff-perde-o-

mandato-de-presidente-da-republica-mas-mantem-direitos-politicos>. Acesso em 15. Jun. 2018.

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Twitter, mais da metade das quais produzidas por robôs eletrônicos e 55%

delas disseminavam notícias falsas favoráveis ao então candidato republicano

(CASTILHO, 2016, ARQUIVO ELETRÔNICO32).

Em outro artigo, intitulado “Apertem os cintos: estamos entrando na era da pós-verdade”,

Castilho apresenta discussões pertinentes sobre o tema, além de provocar reflexões caras

e urgentes aos profissionais da imprensa:

A pós-verdade coloca para nós jornalistas o desafio de repensar a credibilidade

e os parâmetros profissionais para avaliar dados, fatos e eventos. Não é uma

casualidade o fato da credibilidade da imprensa, em países como os Estados

Unidos, estar hoje num dos pontos mais baixos de sua história. O leitor está

cada vez mais confuso e desconfiado em relação à imprensa. É uma resistência

intuitiva ao fenômeno da complexidade informativa gerada pela internet

(CASTILHO, 2016, ARQUIVO ELETRÔNICO33).

Mais para frente, o tema passa a ser debatido também pela imprensa brasileira,

enquanto casos de fake news se espalham pelo mundo. Destaque para a entrevista do

estudioso dos meios de comunicação, Gabriel Priolli, para a revista Carta Capital34 ao

comentar o caso do soterramento de uma criança chamada Sofia, após um terremoto no

México.

A imprensa tradicional mexicana divulgou o caso intensamente na busca por

audiência e as redes sociais amplificaram a notícia, mas depois se tornou público que

Sofia não existia e que a notícia seria falsa. Segundo Priolli, as notícias falsas podem ser

consideradas um fenômeno que precede a invenção da internet, porém, é certo que ganhou

forças e rapidez nas redes sociais, um produto da era digital:

Notícias falsas são tão antigas quanto a própria imprensa, que as publica por

equívoco ou mesmo intencionalmente, por algum interesse extra-jornalístico.

Não há dúvida de que a internet, em particular as redes sociais, elevou o

problema à enésima potência, na medida em que a sua lógica de monetização

dos conteúdos publicados se dá pelo volume de "cliques", o que levou à criação

de sites ou perfis dedicados exclusivamente a mentir ou distorcer informações.

Mas se a questão é a paternidade das fake news, ou no mínimo a antecedência,

a mídia tradicional está centenas de anos à frente da internet (PRIOLLI, 2017,

ARQUIVO ELETRÔNICO35).

Priolli (2017) reafirma a ideia de que a internet provocou um abalo na

credibilidade de grandes instituições e a mídia é uma delas:

32 Disponível em <http://observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/desinformacao-como-

estrategia-politica/>. Acesso em 09. Mar. 2018. 33 Disponível em <http://observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/apertem-os-cintos-

estamos-entrando-na-era-da-pos-verdade/> Acesso em nov. 2016. 34 Disponível em <https://www.cartacapital.com.br/blogs/midiatico/midia-tradicional-a-mae-das-fake-

news>. Acesso em 17. Mai. 2018. 35 Disponível em <https://www.cartacapital.com.br/blogs/midiatico/midia-tradicional-a-mae-das-fake-

news>. Acesso em 26.set.2017.

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O entendimento mais geral é de que as instituições que se encarregavam de

formar consensos na sociedade, como escolas, ciência, justiça e mídia, foram

abaladas pelas novas dinâmicas sociais da era digital e enfrentam uma

desconfiança crescente. De outro lado, os algoritmos da internet não expõem

mais os indivíduos ao contraditório, soterrando-os em versões sempre

coincidentes dos fatos. Tudo isso, somado, produz incerteza e angústia no

cidadão comum, que o levariam a se aferrar às convicções mais arraigadas, em

busca de chão firme para pisar nesse mundo cada vez mais "líquido".

A citação “os algoritmos da internet não expõem mais os indivíduos ao

contraditório” representa as “bolhas”, ou seja, grupos online que compactuam com a

mesma forma de pensar e permanecem sem dialogar com o diferente. Com a quebra da

credibilidade da imprensa, as informações que circulam nas “bolhas” são fortalecidas e

ganham o status de verdade.

A teórica Pollyana Ferrari discute, justamente, como devemos enfrentar esse

problema com o livro Como sair das bolhas (2018). A autora afirma que os principais

estruturantes da informação do mundo analógico, colapsaram com as plataformas digitais,

transferindo poder e, ao mesmo tempo, responsabilidades informacionais aos indivíduos.

A sociedade do fluxo informacional, a velocidade das redes sociais, dos

aplicativos, tudo nos deixa inquietos, e a inquietude só causa prejuízos:

compartilhamos o que não lemos, aceitamos a sedução como verdade, pois ela

nos conforta no momento de angústia. [...] Quando paramos de duvidar? E

passamos a aceitar todas as declarações que recebemos? A emoção anda

presidindo a razão nesta era da pós-verdade tornando-se porta escancarada para

fake news e outras aberrações midiáticas (FERRARI, 2018, p. 47 e 51).

Um agravante na formação das “bolhas” é o surgimento das agências

especializadas na produção de notícias falsas com o objetivo de circular nesses espaços

online.

3.3 Agências de notícias falsas

a partir de 2013, várias agências de fake news começam a surgir em

diversos países aproveitando a facilidade de se produzir conteúdo sem

checagem, com baixo custo editorial, ou seja, sem investimentos em

redações, equipes de checagem, editores e, ainda, abusando de bots36,

algoritmos (softwares de inteligência artificial) criados para espalhar fake

news (pollyana ferrari)

36 Segundo a Universidade de Oxford, mais da metade do tráfego da internet é feito por bots, programas

que simulam ações humanas repetidas vezes e de maneira padrão. São capazes de fazer um tema se

transformar em tendência, atacar uma figura pública, espalhar um boato e, inclusive, ser importante arma

política. Disponível em <http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2018/02/fake-news-estudo-revela-como-

nasce-e-se-espalha-uma-noticia-falsa-na-web.html>. Acesso em 16. Mai. 2018.

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Mais do que a emissão de opiniões na rede, a era da pós-verdade possibilitou o

surgimento de agências de notícias falsas. Ou seja, grupos que usam a plataforma digital

para divulgar notícias com informações inverídicas. O autor Matthew D’Ancona

denomina como “indústria da desinformação” as empresas que surgiram nos últimos anos

e que fazem propaganda enganosa.

Da mesma forma que a pós-verdade não é simplesmente outro nome para

mentira, essa indústria não tem nada a ver com as ações de lobby e as relações

corporativas legítimas. [...] Bem diferente é a difusão sistemática de mentiras

por organizações de fachada que atuam a favor de grupos de interesse que

desejam suprimir a informação precisa ou impedir que outros grupos ajam

contra eles. Como o jornalista investigativo Ari Rabin – Havt afirma: “Essas

mentiras são parte de um ataque coordenado e estratégico, planejado para

esconder a verdade, confundir o público e criar controvérsia onde nenhuma

antes existia” (D’ANCONA, 2018, p. 46).

D’Ancona relata ainda que a ascensão dessa indústria está relacionada com a

revolução digital devido ao fato que a internet representa um meio barato e rápido de

publicação, como Clay Shirky já havia observado em seu A cultura da participação

(2011).

No Brasil, o jornal Folha de S. Paulo e a revista Época publicaram reportagens

que revelaram como as agências de notícias falsas funcionam no Brasil. A reportagem de

Fabio Victor para a Folha mostrou o tamanho da visibilidade desses portais que consegue

ser maior do que a de veículos tradicionais, como é o caso do portal “Pensa Brasil37”.

Sites lucram com a venda de anúncios. Quanto maior a audiência da página,

mais ela ganhará com publicidade. Segundo a empresa comScore, que mede

audiência digital, o Pensa Brasil teve em dezembro passado 701 mil visitantes

únicos, com média de três páginas vistas por visita (ou seja, 2,1 milhões de

páginas vistas/mês). Jornal mineiro mais acessado na web, o "Estado de

Minas" teve no mesmo mês 2 milhões de visitantes únicos e 16 milhões de

páginas vistas (VICTOR, 2017, ARQUIVO ELETRÔNICO38).

Com o título “O Exército de pinóquios”39, da jornalista Helena Borges, a revista

Época mostrou como operam dez dos maiores sites de notícias falsas do país, pagos até

com verba de gabinete para disseminar boatos. Entre eles, o portal “Gospel Prime”, um

site evangélico40 com média de quase 2,8 milhões de leitores ao mês.

37 https://pensabrasil.com/ 38 Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/02/1859808-como-funciona-a-

engrenagem-das-noticias-falsas-no-brasil.sht>. Acesso em 16. Mai. 2018. 39 Disponível em <https://epoca.globo.com/amp/brasil/noticia/2018/04/o-exercito-de-

pinoquios.html?__twitter_impression=true>. Acesso em 17. Mai. 2018. 40 A relação entre religiões fundamentalistas e o compartilhamento de notícias falsas foi tema de uma

pesquisa que mostrou que pessoas que são dogmáticas ou religiosas são mais propensas a acreditar em

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O Movimento Brasil Livre (MBL)41 é outro exemplo de grupo que propaga

notícias falsas na internet. O movimento é formado por jovens que usam a internet como

ferramenta para a mobilização popular. Inicialmente, o grupo organizou manifestações

contra a reeleição da presidente Dilma Rousseff, em 2014. Hoje em dia, costuma se

posicionar sobre diversos assuntos políticos, religiosos, culturais e sociais.

Um levantamento42 feito pela Associação dos Especialistas em Políticas Públicas

de São Paulo (AEPPSP) identificou os maiores sites de notícias do Brasil que disseminam

informações falsas, não-checadas ou boatos pela internet. Segundo a pesquisa, os sites

com mais notícias falsas compartilhadas são o “JornaLivre” e o “Ceticismo Político”, que

contam com a página do MBL como seu principal canal de distribuição.

O levantamento mostrou ainda características em comum dos sites que

disseminam notícias falsas: foram registrados com domínio .com ou .org (sem o .br no

final), o que dificulta a identificação de seus responsáveis com a mesma transparência

proporcionada ou permitida pelos registros no Brasil. Não possuem qualquer página

identificando seus administradores, corpo editorial ou jornalistas. Quando existe, a página

'Quem Somos' não diz nada que permita identificar as pessoas responsáveis pelo site e

seu conteúdo. As "notícias" não são assinadas e são cheias de opiniões — cujos autores

tão pouco são identificados — e discursos de ódio (haters). Os sites com notícias falsas

possuem nomes parecidos com os de outros sites jornalísticos ou blogs autorais já bastante

difundidos. Seus layouts deliberadamente poluídos e confusos fazem com que pareçam

grandes sites de notícias, o que confere a eles credibilidade para usuários mais leigos. São

repletos de propagandas (ads do Google), o que significa que a cada nova visualização o

dono do site recebe alguns centavos (estamos falando de páginas cujos conteúdos são

compartilhados dezenas ou centenas de milhares de vezes por dia no Facebook).

3.4 O jornalismo e as notícias falsas.

A solução seria reduzir o ritmo, gastar mais tempo na verificação e

contextualização das informações para evitar que o fenômeno das fake news

notícias falsas. Disponível em <http://www.niemanlab.org/2018/05/people-who-are-delusional-dogmatic-

or-religious-fundamentalists-are-more-likely-to-believe-fake-news/>. Acesso em 30.mai.2018. 41 Disponível em <http://mbl.org.br/>. Acesso em 30. Mai. 2018. 42 Disponível em <https://www.issoenoticia.com.br/artigo/projeto-da-usp-lista-10-maiores-sites-de-falsas-

noticias-no-brasil)>. Acesso em 26.set.2017.

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assuma proporções catastróficas comprometendo ainda mais a credibilidade

da imprensa (José Castilho).

Com a era digital em que cada um pode ser um produtor de conteúdo, as pessoas

parecem não precisar mais de um veículo que informe\forme sobre os acontecimentos

políticos, econômicos e sociais. Assim, as redes passam a ser uma das principais formas

de receber e transmitir informações. Neste mundo, como afirma abaixo Clay Shirky

(2008, p. 72-75), é difícil separar o que é privado, público, opinião ou fato:

A paisagem da mídia transformou-se, porque comunicação pessoal e

publicação, antes funções separadas, agora se confundem. Um resultado é a

ruptura do velho padrão de separação profissional entre o bom e o medíocre

antes da publicação; agora essa filtragem é cada vez mais social e acontece a

posteriori. [...] Muita coisa criada a cada dia é apenas a matéria comum da vida

– mexerico, breves informações, pensamentos em voz alta -, mas agora isso é

feito no mesmo meio que material profissionalmente produzido.

Com tantas opções disponíveis, o que poderia ser considerado uma “liberdade

intelectual”, na verdade, se torna um terreno fértil para a chegada de novos líderes para

tomar o espaço vago da imprensa descredibilizada.

A pós-verdade possibilitou diferentes reflexões sobre o ato de fazer jornalismo,

principalmente sobre a credibilidade e a veracidade das informações jornalísticas diante

das inúmeras versões, opiniões e notícias falsas disponíveis nas redes sociais.

No Brasil, pesquisa43 de 2017 mostra que 80% dos brasileiros acreditam nas

informações que veem ou leem na internet (Google) e nas redes sociais Facebook e

Twitter. Além das informações que circulam no aplicativo de conversa Whatsapp. A

plataforma é uma das mais usadas para a difusão de notícias falsas. Em consequência

disso, em 2017, o aplicativo publicou um guia44 para ajudar os usuários a se protegerem

do conteúdo falso.

Um caso brasileiro emblemático sobre o compartilhamento de notícias falsas no

aplicativo Whatsapp foi após o assassinato45 da vereadora do Rio de Janeiro, Marielle

Franco (PSOL). A morte da vereadora dividiu a opinião pública brasileira. De um lado,

partidos políticos esquerdistas afirmavam que a vereadora foi assassinada devido às suas

lutas a favor dos direitos humanos em comunidades dominadas por traficantes e

43 O instituto de pesquisa MDA ouviu 2002 pessoas entre os dias 7 e 11 de fevereiro de 2017, em 138

municípios do país. A margem de erro da pesquisa é de 2,2 pontos percentuais, para mais ou para menos.

A pesquisa foi divulgada no dia 15 de fevereiro de 2017. Disponível em:

<http://www.valor.com.br/empresas/4870574/no-brasil-80-acreditam-no-que-leem-nas-redes-

sociais-diz-pesquisa>. Acesso em 30. Mai. 2018. 44 Anexo 3. 45 Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/15/politica/1521126920_282592.html>. Acesso

em 30. Mai. 2018.

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45

milicianos. Já grupos direitistas afirmavam que a vereadora seria mais uma vítima da

violência do Rio de Janeiro.

No meio da discussão acalorada nas redes, informações falsas sobre Marielle

tentaram associar a vereadora ao tráfico. Assim, textos circularam afirmando que a vítima

seria ex-mulher do traficante Marcinho VP. Uma pesquisa46 inédita feita pela

Universidade de São Paulo (USP) mostrou que metade dos boatos que circularam no

Whatsapp sobre a vereadora carioca foi em grupos de família. Os boatos sobre Marielle

começaram a ser espalhados pelo Whatsapp na mesma noite em que ela foi assassinada.

Nos dias seguintes, foram parar nas redes sociais Twitter e Facebook.

Neste mar de informações sem credibilidade, o jornalismo é pautado, muitas

vezes, para desmentir os boatos. Não foi diferente no caso Marielle. Os jornais e as

agências de checagem produziram matérias negando o envolvimento da vereadora com o

traficante e outras mentiras sobre a vereadora. Antes mesmo deste caso, o jornalismo

produziu matérias47 para mostrar boatos que iniciaram na internet, ganharam repercussão

e precisaram ser desmentidos. Mentiras disfarçadas de notícias como: “Governo vai

confiscar as poupanças da Caixa Econômica Federal”, “Bolsa Família será cancelado pelo

governo” ou “Enem será cancelado”.

Entretanto, o jornalismo não tem a função de apenas noticiar sobre os boatos ou

ser porta-voz das autoridades públicas para desmenti-los. É preciso ir além para combater

esta corrente de informações inverídicas.

Diante da pós-verdade, o ato de repensar a credibilidade e os parâmetros

profissionais para avaliar dados, fatos e eventos torna-se imprescindível para a

sobrevivência do jornalismo, o que torna necessária ainda a discussão sobre o modo de

produção jornalístico, incluindo a etapa da investigação e apuração dos fatos.

É o que propõe a presente pesquisa ao analisar a forma como jornalistas

investigam a realidade diante da complexidade dos fatos e do emaranhado de versões

existentes. Como investigar a verdade no mundo da pós-verdade? Eis o verdadeiro desafio

jornalístico.

Inicialmente, a pesquisa tinha o objetivo de analisar o processo de criação da

revista piauí para compreender a produção da reportagem no Brasil. Entretanto, com o

surgimento da Agência Lupa e com a discussão efervescente e atual sobre a pós-verdade

46 Disponível em <http://www.bbc.com/portuguese/brasil-43797257>. Acesso em 30. Mai. 2018. 47 Disponível em <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/redacao/2015/03/04/veja-5-boatos-que-

sairam-da-internet-e-geraram-resposta-das-autoridades.htm>. Acesso em 06. Jul. 2017.

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e as notícias falsas, o trabalho ganhou novo sentido e ampliou seu horizonte para discutir

o papel da reportagem e da checagem como antídotos da desinformação.

Desta forma, é oportuno observar que o fenômeno da pós-verdade trouxe à tona a

necessidade de refletir criticamente sobre a prática jornalística e rememorou a antiga crise

que o campo vive diante da inclusão sem volta das novas tecnologias na comunicação.

Agora se vê diante da necessidade de rever seus modos de produção para enfrentar

as chamadas “fake news”, produtos da pós-verdade, e ainda reportar a complexidade do

mundo com veracidade.

Para isso, é necessário voltar um pouco atrás na história do jornalismo e reviver

algumas tradições esquecidas com a chegada das novas tecnologias. Um exemplo seria

uma apuração mais consistente e demorada, que priorize a explicação, contextualização

e reflexão da notícia, o chamado “Jornalismo Lento” ou “Slow News” ou “Slow

Journalism”. Há uma tendência no campo jornalístico para isso, como é o caso da revista

piauí, objeto de estudo deste trabalho, porém ainda existe resistência das empresas que

preferem o imediatismo da notícia, modelo de negócio já padronizado nas redações.

No artigo “”O jornalismo lento’ como alternativa à ‘montanha russa’ noticiosa48”,

Castilho problematiza esta escolha das empresas de comunicação e a justifica como

“estratégia política de controle da opinião pública” (Castilho, 2016), já que esta urgência

reduziria a capacidade do público de lidar com questões complexas e aumentaria a

predisposição a tomar como verdade incontestável o que é publicado na imprensa.

Voltando ao debate sobre fake news, no artigo intitulado “Das ‘fake news’ ao

fenômeno ‘Slow News’49”, Castilho expõe a relação entre a iminência da pós-verdade e

a necessidade de uma mudança de comportamento da cultura jornalística. O autor propõe

a diminuição do imediatismo da notícia que impossibilita a checagem de dados, fatos e

eventos. “A solução seria reduzir o ritmo, gastar mais tempo na verificação e

contextualização das informações para evitar que o fenômeno das fake news (jargão

americano) assuma proporções catastróficas comprometendo ainda mais a credibilidade

da imprensa” (CASTILHO, 2017).

48 Disponível em <http://observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/o-jornalismo-lento-como-

opcao/>. Acesso em Jul. 2016. 49 Disponível em <http://observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/das-fake-news-as-slow-

news/>. Acesso em Jan. 2017.

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47

A seguir, a pesquisa analisará a rede de investigação da revista piauí e da agência

Lupa para evidenciar, justamente, o processo de criação da apuração e checagem

jornalística.

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48

4. A REDE DE INVESTIGAÇÃO JORNALÍSTICA DO PROJETO PIAUÍ

Após a exposição do fenômeno da pós-verdade e das notícias falsas no capítulo

anterior, neste capítulo será apresentada a rede de criação da revista piauí com o objetivo

de entender os procedimentos usados pelos repórteres da revista para a produção da

grande reportagem.

O intuito é discutir o jornalismo sob a perspectiva de seus processos de produção

e, principalmente, compreender e analisar os requisitos propostos pela revista na fase da

apuração e da construção do texto. No próximo capítulo, a análise será dos procedimentos

usados pela agência Lupa para a realização da checagem.

4.1 A rede de investigação da revista piauí

Entender o processo criador do repórter – do surgimento da pauta até a publicação

da reportagem – pode ser um caminho para desvendar a produção jornalística e entender

o processo de investigação da realidade. Para analisar a rede de investigação da revista

piauí e da agência Lupa, o presente trabalho utilizará a crítica dos processo criativos

(SALLES, 2008; 2011; 2015).

É uma investigação que vê a obra de arte [objeto da pesquisa] a partir de sua

construção, acompanhando seu planejamento, execução e crescimento, com o

objetivo de melhor compreensão do processo de sistemas responsáveis pela

geração da obra. Essa crítica refaz, com o material que possui, a construção da

obra e descreve os mecanismos que sustentam essa produção. [...] Um artefato

artístico surge ao longo de um processo complexo de apropriações,

transformações e ajustes. O crítico procura entrar na complexidade desse

processo. A grande questão que impulsiona esses estudos é compreender a

tessitura desse movimento (SALLES, 2011, p. 22).

Salles (2015) também discutiu o jornalismo sob a perspectiva de seus processos

de produção no artigo O processo de produção jornalística em debate. O presente

trabalho seguirá essa perspectiva para mostrar o jornalismo como construção e, por isso,

um modo de fazer mutável e em permanente diálogo com o outro (seja a fonte, seja o

editor, seja o leitor). Além de um projeto passível à incerteza, ao erro e ao acaso.

Salles (2016) discute sobre a possibilidade de o jornalismo buscar a

experimentação como forma de inovar o que já foi estabelecido e determinado como

notícia. A experimentação do repórter seria o lugar para a análise dos erros e acertos do

processo da reportagem.

Como se vê, os grandes desafios do jornalismo, acirrados em meio à crise

econômica, se dão no enfrentamento de intenso abalo de certezas de seus

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modos de produção que, por muito tempo, não foram questionadas; daí a

constatação da necessidade de experimentação, ou seja, levantamento de novas

hipóteses que viabilizem a entrada de outras possibilidades jornalísticas [...]

Seria necessidade de sujeitos que exploram brechas em nome da sobrevivência

do jornalismo (2016, p. 75).

Ainda Segundo Salles (2011), a criação é um gesto contínuo e está presente em

todas as etapas da produção. Sendo assim, não existe um momento específico da criação.

O “insight criativo” está, na verdade, dissolvido em todas as fases vencidas (ou não) pelo

agente criador. Desta forma, no jornalismo, as marcas da criação estariam presentes nas

primeiras ideias sobre a pauta, no momento da apuração, na construção do texto, na edição

e na escolha da versão para a publicação.

Os instrumentos de análise são chamados pela autora de “documentos de

processos que são registros materiais do processo criador. São retratos temporais de uma

construção que agem como índices do percurso criativo” (SALLES, 2011, p. 26). No caso

da presente pesquisa serão analisadas as entrevistas dos jornalistas da revista piauí e da

agência Lupa, além de reportagens e checagens. No momento da conversa, cada repórter

da revista escolheu duas reportagens para relatar sobre o processo criativo na construção

das mesmas. O mesmo aconteceu com a criadora da Agência Lupa que pode relatar sobre

a produção da checagem.

Um dos aspectos do conceito de criação apontado por Salles (2011) é o projeto

poético. Segundo a autora, em toda prática criadora há fios condutores relacionados à

produção de uma obra que, por sua vez, atam a obra daquele criador, como um todo.

Posteriormente, Salles (2016, p. 66) retirou a expressão “poético” para ampliar o

conceito para outros processos de criação, incluindo o jornalístico.

Projeto, nesse contexto, seriam princípios direcionadores, de natureza ética e

estética, presentes nas práticas das produções, relacionados a um trabalho

específico, assim como à postura geral daquele jornalista, artista ou

publicitário. São princípios relativos à singularidade do sujeito que produz.

Assim, o presente trabalho analisará o projeto piauí que inclui a revista piauí e a

agência Lupa. A escolha é devida à sua logística de produção que evidencia uma

preocupação com a apuração jornalística e, consequentemente, com a divulgação da

informação.

No cenário em que os produtores midiáticos priorizam a rapidez e a aceleração da

produção da notícia, o projeto piauí busca o apuro extensivo das informações,

característica fundamental para combater a desinformação. A revista piauí é um exemplo

do modelo “Slow Journalism”, já que os jornalistas têm, em média, dois meses para a

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produção de uma grande reportagem. Os repórteres usam este tempo para a apuração da

informação (entrevistas, pesquisas e viagens) e a produção do texto. O que será visto com

mais detalhes neste capítulo.

Como exemplo, em entrevista cedida para esta pesquisa, o repórter Bernardo

Esteves usa o termo “panorama exaustivo” para representar o trabalho de apuração das

reportagens da revista. Na piauí, não existe uma regra estabelecida, mas o resultado

sempre é uma grande reportagem (com a média de 20 páginas). Já na agência Lupa, a

checagem da informação é o diferencial oferecido ao público. É a partir dela que as pautas

são construídas e apresentadas ao leitor.

Para compreender cada etapa do processo, a análise será feita por meio da rede de

criação. Pierre Musso (2013) define a rede como uma estrutura composta de elementos

em interação; estes elementos são os picos ou nós da rede, ligados entre si por caminhos

ou ligações. Salles (2017, p. 117) acopla o conceito de interação presente na rede em toda

discussão do processo de criação:

A criação como rede por ser descrita como um processo contínuo de

interconexões, com tendências vagas, gerando nós de interação, cuja

variabilidade obedece a princípios direcionadores. Esse processo contínuo,

sem ponto inicial nem final, é um movimento falível, sustentado pela lógica da

incerteza, englobando a intervenção do acaso e abrindo espaço para a

introdução de ideias novas.

A autora explica que as interconexões nos colocam no campo relacional. Desta

forma, toda ação está relacionada a outras ações de igual relevância, sendo assim um

percurso não linear e sem hierarquias. As interconexões geram os picos ou nós da rede,

elementos de interação ligados entre si, que se manifestam como os eixos direcionadores.

No caso da rede da revista piauí, o trabalho apresentará os seguintes nós: tempo de

investigação e narratividade.

4.2 A revista piauí

Para quem tem um parafuso a mais (slogan da revista piauí).

A revista piauí está no mercado jornalístico há mais de dez anos. A sua estreia foi

na Festa Literária de Paraty (Flip), em agosto de 2006, em uma edição número zero, que

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circulou pela feira de literatura. O que sinaliza a relação do periódico com a narrativa

literária, já que as reportagens da revista são grandes narrativas de não ficção50.

A primeira publicação disponível nas bancas foi em outubro do mesmo ano. A

edição nº 1 contou com a colaboração dos jornalistas Vanessa Bárbara, Marcos Sá Corrêa,

Luiz MakLouf Carvalho, Dorrit Harazim e Mario Sérgio Conti. Além do cartunista

Angeli, do poeta Francisco Alvim e do próprio João Moreira Salles, o publisher da revista.

Na época desta pesquisa, entre os anos de 2016-2018, a equipe da revista era

formada pelos repórteres Consuelo Dieguez, Daniela Pinheiro, Bernardo Esteves, Malu

Gaspar, Paula Scarpin, Julia Duailibi, Tiago Coelho e João Brizzi. A publicação conta

ainda com colaboradores. O diretor de redação era o jornalista Fernando de Barros e Silva.

A edição era de responsabilidade de João Moreira Salles, Maria Emilia Bender, Rafael

Cariello e Armando Antenore. Além da revisora Luiza Barbara e da checadora de

apuração Luiza Miguez.

Em 2018, último ano da pesquisa, houve mudança no quadro de profissionais da

revista. A composição atual teria como Diretor de redação, Fernando de Barros e Silva, e

como editores João Moreira Salles, Maria Emília, Armando Antenore e Alcino Leite

Neto. O editor da piauí digital é José Roberto de Toledo. Os repórteres são: Allan de

Abreu, Alejandro Chacoff, Bernardo Esteves, Consuelo Dieguez, Fabio Victor Pimentel,

Malu Gaspar, Paula Scarpin, Roberto Kaz e Tiago Coelho. A checadora é Luiza Miguez

e os revisores são Luiza Barbara, Katia Regina e Rodrigo Rosa. Além do assistente de

revisão, Carlos Alberto Santos. A secretária de redação é Raquel Freire. Ainda há a

equipe da piauí digital: Camila Zarur, Kellen Moraes, Luigi Mazza, Vitor Hugo

Brandalise e Yasmin Santos.

Em comemoração aos seus dez anos de existência, em 2016, a revista publicou,

pela Companhia das Letras, o livro Tempos Instáveis51: o mundo, o Brasil e o jornalismo

em 21 reportagens da piauí. No prefácio da coletânea, o diretor da redação, Fernando de

Barros e Silva, contou um pouco da história da revista e relatou as peculiaridades que

permitiram a sua permanência no mercado jornalístico brasileiro. Segundo o diretor da

redação, a revista nasceu na contramão da era digital e na possível morte do jornalismo

impresso:

50 A narratividade da revista piauí representa um nó da rede que será apresentado adiante. 51 A obra reuniu reportagens com temas que representaram o país e o mundo nos últimos dez anos, tempo

de vida da revista. A Operação Lava Jato, que mudou os rumos da política brasileira nos últimos tempos; a

tragédia de Mariana, o maior desastre ambiental da história do país; o atraso das obras de transposição do

rio São Francisco; entre outros.

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A piauí surgiu em outubro de 2006 como uma planta improvável, ou algo

exótica, na paisagem das publicações brasileiras. Já existia o consenso de que

o jornalismo impresso era uma atividade condenada - se não à morte imediata,

a um estrangulamento progressivo que o levaria a um triste fim.[...] Sob a

tirania do online e das redes sociais, o tempo da notícia passou a ser medido

em minutos, segundos, caracteres. [...] Na dinâmica entrópica da nuvem

digital, elementos que devem nortear o exercício do jornalismo profissional,

como o rigor da apuração, a hierarquia entre as notícias, o respeito às nuances

e à complexidade dos fatos, para não falar do compromisso com a busca da

verdade, parecem estar sob ameaça permanente, ou, pior, não ter mais

importância. Foi no ambiente de adensamento dessa nuvem que a piauí veio à

luz (BARROS E SILVA, 2016, p. 7).

Fernando chama a atenção na citação acima para atributos do jornalismo que,

segundo ele, foram esquecidos pelo jornalismo da era digital. Seriam eles: o rigor da

apuração, o respeito à complexidade dos fatos e a busca da verdade. A explosão das

notícias falsas no Brasil ainda não era uma realidade na época desta publicação. Porém,

percebe-se que a internet já era um ambiente propício para a desinformação.

Mesmo indo na contramão dos tempos, a revista piauí tem o seu perfil consolidado

no jornalismo brasileiro e também leitores fiéis. Em uma entrevista de 201752, João

Moreira Salles afirmou que a piauí possui um número de leitores que surpreende a ele

próprio:

Ela é uma revista que tem um teto, não é para 1 milhão de leitores. Mas ela

também não é uma revista para 5 mil leitores. Quando criei a piauí, fui

conversar com pessoas do meio, já que eu vinha do cinema, para ver um pouco

qual era a viabilidade de uma revista dessas. Me lembro de ter falado com duas

pessoas muito influentes no meio, que tocam importantes publicações. Uma

me disse que a revista, se tudo desse certo, teria 15 mil leitores, a outra me

falou em 5 mil leitores, que seria o tamanho dela em um mercado como o do

Brasil. A piauí tem muito mais do que isso, deve ter cerca de 100 mil leitores.

Ela tem perto de 25 mil assinantes, que são muito fiéis. Nossa taxa de retenção

(indicador que mede o percentual da base de clientes que se mantêm fiéis à

revista) é uma das mais altas da indústria, se não for a mais alta. As pessoas

que assinam a piauí continuam com a assinatura. Já em banca depende do que

a revista traz em determinado número, mas vende algo entre 12 mil e 17 mil

exemplares. Se você multiplicar isso por 1,8 ou 1,9 leitor por exemplar, você

chega a quase 100 mil leitores. Isso é bastante bom em termos de Brasil, que

não é um país essencialmente letrado (MOREIRA SALLES, 2017).

Segundo a auditoria do Instituto Verificador de Comunicação (IVC), a revista

piauí possui a tiragem de 55.600 exemplares e 24.016 assinaturas e 13.063 vendas

avulsas. Com o total de circulação paga de 37.079 exemplares.

52 Disponível em <https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/noticia/2017/01/joao-moreira-salles-a-

gente-conta-o-mundo-as-pessoas-que-facam-com-ele-o-que-quiserem-depois-9326084.html>. Acesso em

Jan. 2017.

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53

O atrativo da revista é o diálogo com a narrativa literária e cinematográfica, o que

será visto adiante, mas que não abre mão de uma apuração minuciosa das informações e

uma edição concisa. Algo que pode fidelizar o público em busca de boas histórias

verídicas. Tais especificidades da piauí foram destacadas pelo diretor da redação como o

carro-chefe da revista na citação abaixo:

À medida que a reportagem de fôlego foi se tornando mercadoria de luxo nas

redações, a charrete da piauí, à primeira vista tão na contramão do curso do

mundo, de certa forma reinventou a roda. A aposta na apuração paciente e

minuciosa, que requer coleta exaustiva das informações, contato demorado

com as personagens e capacidade de observação [...] representou um oásis no

semiárido da imprensa brasileira. Em boa medida, o resultado se deve também

ao processo de edição, mais intenso e mais invasivo do que costuma ser em

outros veículos. Mas editar, neste caso, significa tornar o texto mais claro e

mais preciso, a prosa mais fluente e a leitura mais agradável. Editar não se

confunde com editorializar, intervir na narrativa para que ela sirva a propósitos

políticos, obscuros ou explícitos, e não jornalísticos, como se tornou comum

em publicações do país, de forma caricata (BARROS E SILVA, 2016, p. 10).

A apuração paciente e minuciosa com coleta exaustiva das informações, contato

demorado com as fontes e capacidade de observação representam a identidade da revista

e são características essenciais para o enfrentamento das fakes news e da pós-verdade.

Além da investigação exaustiva, a proposta da piauí, desde o seu início, é

reconstituição dos assuntos já conhecidos. Ou seja, pautas que já tiveram grande impacto

na opinião pública, mas que foram esquecidas ou pouco exploradas pela imprensa. Apesar

de abordar um assunto velho, a reportagem traz a novidade (um furo) porque conta,

justamente, com uma apuração paciente que diversos veículos não possuem.

Nem todas as reportagens, portanto, contêm furos no sentido estrito, mas todas

estão cheias de novidades. As novidades derivam, em primeiro lugar, do

acúmulo de detalhes que haviam sido ignorados ou eram desconhecidos até

então; derivam, ainda, da capacidade de tornar inteligível, por meio de uma

narrativa coesa, com começo, meio e fim, uma história que os demais veículos,

premidos por urgências de toda sorte, apresentam em pedaços, em flashes ou

capítulos desconexos. O êxito de uma reportagem à moda piauiense, seja um

perfil ou não, depende, quase sempre, do vaivém entre as descrições das peças

e o funcionamento da engrenagem, da alternância entre a observação da árvore

e a capacidade de enxergar a floresta, de certa tensão que se sustenta no tempo

entre o particular e o geral, o miúdo e o abrangente (BARROS E SILVA, 2016,

p. 11).

4.3 A piauí no cenário do jornalismo brasileiro

Segundo o diretor da redação da piauí, os perfis políticos foram os responsáveis

por retirar a piauí de sua condição inicial de semiclandestinidade. Nomes como Fernando

Henrique Cardoso, Dilma Rousseff, Michel Temer, Eduardo Paes, Aécio Neves, João

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Dória, entre outros, foram personagens de perfis da revista. No meio jornalístico, além

dos perfis, a forma de trabalhar da piauí foi o que mais chamou a atenção dos profissionais

da imprensa:

“Havia, na experiência piauiense, duas características cobiçadas e cada vez mais

raras: tempo para apurar e espaço para escrever. Além, claro, de independência editorial,

sem o que não se faz nada que valha a pena em jornalismo” (BARROS E SILVA, 2016,

p. 10).

Segundo Moreira Salles (2017), a revista chama a atenção ainda dos futuros

jornalistas e das universidades de comunicação: “O número de alunos de jornalismo no

Brasil que têm a piauí como modelo do que gostariam de fazer é muito grande. Tem muita

monografia e tese sobre a revista. Acho que isso tem uma certa relevância, sabe? Estou

feliz com a piauí do jeito que ela é”.

A revista é tema de várias pesquisas no campo da comunicação, especificamente

no jornalismo. No Portal de Livre Acesso à Produção em Ciências da Comunicação53 há

trabalhos que identificam marcas literárias na revista; outros que analisam o projeto

gráfico das capas. Os estudos revelam, de certa forma, a irreverência da revista no

jornalismo brasileiro. Além da qualidade da narrativa e da apuração jornalística. Já a

presente pesquisa buscou entender o processo de criação da grande reportagem a partir

da análise dos bastidores da produção dos repórteres da revista.

Para João Moreira Salles (2017), independente da plataforma papel ou digital, o

importante é manter o perfil de apuração extensiva que caracteriza a revista:

A New Yorker tem uma vida eletrônica muito importante hoje em dia, por

exemplo. Com o DNA já consolidado, a New Yorker pode mudar para o meio

eletrônico sem alterar suas características. Acho que isso vale também para a

piauí. Foi importante para a piauí nascer como papel, mas isso não significa

que ela precise continuar para sempre como papel, porque já tem uma cultura

instalada de fazer as reportagens como a gente faz, com tempo para os

repórteres apurarem as informações e escreverem.

A revista The New Yorker é uma das principais referências da piauí. Ela é uma

leitura habitual de seus repórteres e, muitas vezes, citada por eles como exemplo de uma

boa prática do jornalismo. A publicação americana foi a responsável pelo lançamento de

jornalistas como Truman Capote (A sangue frio) e John Hersey (Hiroshima). Autores do

movimento americano dos anos 60, New Journalism, em que os repórteres produziam

textos inspirados na Literatura Realista.

53 Disponível no site da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom).

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O New Journalism, um dos pontos altos da interação entre o jornalismo e a

literatura, foi influenciado pelo movimento literário Realismo, que predominou a partir

da segunda metade do século XIX. O Realismo tinha como característica principal a ideia

de criação literária inspirada em fatos reais e o rompimento de ideais do movimento

literário Romantismo, que tinha a imaginação do autor como principal fonte de criação.

Outra característica da literatura realista é o afastamento da caracterização da figura do

herói e a busca por pessoas comuns, o que aproximou o movimento literário ao

jornalismo, já que muitos autores de ficção procuraram sua inspiração no cotidiano.

[...] no século XIX, a transição do movimento literário romântico para o

realista, que desejava mostrar o ser humano não em sua versão idealizada, mas

imerso na vida como ela é, incita os escritores do período a mergulharem no

cotidiano para trazerem elementos para sua obra ficcional. Nesse contexto, os

protagonistas deixam de ser heróis para surgir como pessoas comuns, com

altos e baixos, problemas e soluções. A adúltera Emma, protagonista de

Madame Bovary, do francês Gustave Flaubert (1821-1880), inaugura o

movimento, numa transição tão forte do romantismo que levou seu autor a

julgamento por ter ofendido os costumes da época (MARTINEZ, 2009, p. 74).

Também no século XIX, o movimento literário Naturalismo valorizou a realidade

e suas figuras humanas. “À maneira do cientista, o escritor naturalista deveria trabalhar

como se realiza uma experiência: depois de observada a vida social, dispor personagens

em um campo de ação no qual suas relações demonstrem a validade dos fenômenos

observados na vida concreta” (BULHÕES, 2007, p 65). Autores como Gustave Flaubert

e Émile Zola são os grandes representantes do Realismo e Naturalismo respectivamente.

Bulhões (2007) observa que as atribuições dos realistas e naturalistas ao se inspirar

na realidade para compor suas criações eram parecidas com a atividade jornalística de

reportar o dia a dia. Algo como sair às ruas, visitar os locais que dão os episódios da

narrativa, conhecer os espaços que serão descritos, contemplar os rostos de homens e

mulheres e sentir os cheiros dos ambientes.

O movimento contrário também aconteceu. O jornalismo pôde observar nos

romances realistas, técnicas literárias que ajudavam na descrição fiel da realidade. Como

verificou Lima (2009, p. 181), o romance do Realismo do século XIX exercia o papel de

reprodução do real, algo à semelhança do que faria a reportagem mais tarde.

Essa influência do romance realista no jornalismo vai culminar no New

Journalism. Tom Wolfe (2005, p. 53), um dos representantes, evidencia a influência do

movimento literário na composição de reportagens que marcaram o Novo Jornalismo:

Se se acompanha de perto o progresso do Novo Jornalismo ao longo dos anos

60, vê-se acontecer uma coisa interessante: os jornalistas aprendendo do nada

técnicas do realismo – especialmente do tipo que se encontra em Fielding,

Smollett, Balzac, Dickens e Gogol. Por meio da expectativa e erro, por

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“instinto” mais que pela teoria, os jornalistas começam a descobrir os recursos

que deram ao romance realista seu poder único, conhecido entre outras coisas

como seu ‘imediatismo’, sua ‘realidade concreta’, seu ‘envolvimento

emocional’, sua qualidade ‘absorvente’ ou ‘fascinante’.

As marcas da literatura realista identificadas por Tom Wolfe nas reportagens

produzidas por seus contemporâneos eram a construção cena a cena, ou seja, contar a

história passando de cena a cena e recorrendo o mínimo possível à narrativa histórica. O

registro do diálogo completo dos envolvidos na história da reportagem e o uso do “ponto

de vista da terceira pessoa”, que o autor explica como uma técnica que apresenta cada

pessoa em cena ao leitor por intermédio dos olhos de uma personagem particular (o

narrador observador em terceira pessoa).

Outro recurso apontado foi a descrição de gestos, hábitos, maneiras, costumes,

estilos e outras características das pessoas na reportagem para o conhecimento “total” da

pessoa descrita, como propõem autores de ficção (WOLFE, 2005, p. 53-55),

oportunizando, portanto, mais uma vez, a fonte alçar-se à condição de personagem.

Por meio das técnicas inspiradas na literatura realista, os jornalistas relatavam

intimidades das pessoas, ação permitida apenas aos romancistas, como a descrição de

sonhos, alegrias e tristezas. Ou seja, um lado da natureza humana que era retratado apenas

na ficção. Gay Talese, representante do Novo Jornalismo, descreve o seu processo de

criação, evidenciando alguns dos recursos apontados por Tom Wolfe. O autor escreve no

prefácio da obra Fama e anonimato (TALESE, 2009, p. 10):

Eu procuro seguir os objetos de minha reportagem de forma discreta,

observando-os em situações reveladoras, atentando para suas reações e para as

reações dos outros diante deles. Tento apreender a cena em sua inteireza, o

diálogo e o clima, a tensão o drama, o conflito, e então em geral a escrevo do

ponto de vista da pessoa retratada, às vezes revelando o que esses indivíduos

pensam durante os momentos que descrevo.

No trecho abaixo sobre o cantor Frank Sinatra – Frank Sinatra está resfriado – que

Talese escreveu para a revista Esquire, o jornalista constrói um texto descrevendo cena a

cena e compondo características psicológicas de Sinatra:

Frank Sinatra, segurando um copo de bourbon numa mão e um cigarro na

outra, estava num canto escuro do balcão entre duas loiras atraentes, mas já um

tanto passadas, que esperavam ouvir alguma palavra dele. Mas ele não dizia

nada; passara boa parte da noite calado; só que agora, naquele clube particular

em Beverly Hills, parecia ainda mais distante, fitando, através da fumaça e da

meia-luz, um largo salão depois do balcão, onde dezenas de jovens casais se

espremiam em volta de pequenas mesas ou dançavam no meio da pista ao som

trepidante do folk-rock que vinha do estéreo (2009, p. 257).

A expressão “parecia ainda mais distante” é uma marca textual para uma

caracterização psicológica, algo permitido, em tese, aos ficcionistas para escrever sobre

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pensamentos e sentimentos não externalizados pelas suas personagens. Tom Wolfe

levantou a questão da capacidade de o autor escrevendo não ficção, “penetrar

acuradamente os pensamentos de outra pessoa” (WOLFE, 2005, p. 55). Talese responde

que essa capacidade “depende da cooperação total da pessoa sobre a qual se escreve, mas

se o escritor goza de sua confiança, é possível, por meio de entrevistas, fazendo as

perguntas certas nas horas certas, apreender e reportar o que se passa na mente de outras

pessoas” (TALESE, 2009, p. 10).

Outras marcas da literatura são identificadas no texto de Talese sobre Frank

Sinatra. Na descrição física do cantor: “como sempre, estava vestido de forma impecável.

Colete, terno, Oxford cinza de corte tradicional, mas forrado com uma seda vistosa; os

sapatos, ingleses, pareciam estar engraxados até o solado” (TALESE, 2009, p. 260). Em

outro trecho, uma descrição moral:

O mesmo Sinatra [...] de uma hora para outra [pôde] explodir numa

terrível fúria de intolerância se alguns de seus chapas cometer algum pequeno

deslize no cumprimento de uma tarefa. Por exemplo, quando um de seus

homens lhe trouxe um cachorro-quente com ketchup, que, como se sabe,

Sinatra abomina, ele jogou o frasco no homem, cobrindo-o de ketchup (2009,

p. 265).

Voltando para a influência da The New Yorker na revista piauí, segundo João

Moreira Salles, a piauí surgiu de um desejo dele de acompanhar reportagens semelhantes

às de The New Yorker, em português. Para Salles, havia uma lacuna no cenário brasileiro

deste tipo de publicação. Outra inspiração para a criação da piauí é a revista peruana

Etiqueta Negra.

A edição peruana é semelhante à brasileira no formato e na publicação de

reportagens de fôlego. Na entrevista para esta pesquisa, a repórter Carol Pires comentou

que a revista peruana serviu de inspiração para Dorrit Harazim e Mario Sergio Conti, um

dos primeiros colaboradores da piauí, na criação do modelo da revista.

4.4 Nó 01: Tempo de investigação

Durante a conversa com os repórteres da revista sobre seus processos criativos,

todos eles ressaltaram a importância do tempo para a produção da reportagem. Por isso,

tornou-se essencial discutir sobre o fator tempo no jornalismo.

O tempo da investigação jornalística é o período pelo qual o jornalista cumpre as

etapas do processo de produção da notícia, o que inclui a apuração da informação e a

construção do texto. Antes da análise do modo de produção da revista piauí, é preciso

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compreender a lógica da velocidade no jornalismo e a rapidez como um dos pilares da

profissão.

4.4.1 Velocidade como fetiche do jornalismo

Vivemos num tempo maluco em que a informação é tão rápida que exige

explicação instantânea e tão superficial que qualquer explicação serve (Luiz

Fernando Veríssimo).

Segundo o teórico Nelson Traquina (2013, p. 35), o fator tempo condiciona todo

o processo de produção das notícias, porque o jornalismo é marcado por horas de

fechamento. O autor afirma que, enquanto o valor da “objetividade” continua a provocar

imensa polêmica, o valor do imediatismo reina incontestável, ainda mais com a

emergência do cibermedia.

As notícias são vistas como um “bem altamente perecível”, valorizando assim

a velocidade. O imediatismo age como medida de combate à deterioração do

valor da informação. Os membros da comunidade jornalística querem as

notícias tão “quentes” quanto possível, de preferência “em primeira mão”.

Notícias “frias” são notícias “velhas”, que deixaram de ser notícia

(TRAQUINA, 2013, p. 35).

Para a teórica Sylvia Moretzsohn (2002), a velocidade é um fetiche no jornalismo

porque “chegar na frente” torna-se mais importante do que “dizer a verdade” e a estrutura

industrial da empresa jornalística está montada para atender a essa lógica, até porque,

como já foi dito neste trabalho, o jornalismo acompanhou o desenvolvimento do sistema

capitalista cuja premissa é “tempo é dinheiro”.

A velocidade é um fetiche, no sentido marxista, segundo o qual o produto do

trabalho, tão logo assume a forma de mercadoria, passa a ter “vida própria”, a

valer por si, escondendo a relação social que lhe deu origem. No jornalismo,

passa a ser o principal “valor notícia”: antes de tudo, importa chegar na frente

do concorrente, e alimentar o sistema com dados novos, num continuum

vertiginoso a pautar o trabalho nas grandes redações, que, além dos tradicionais

produtos impressos diários, oferecem simultaneamente serviços de informação

em “tempo real” (MORETZSOHN, 2002, p. 12).

O “dizer a verdade” pode ser entendido como a compreensão da complexidade

dos fatos do cotidiano e isso, devido à lógica da rapidez, nunca foi prioridade para o

jornalismo mesmo antes da era digital. O jornalismo impresso sempre teve como lema a

“informação em primeira mão”, o que para a autora é uma atitude irracional:

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59

A verdade costuma ficar submetida à necessidade da veiculação de notícias em

primeira mão, trazendo como resultado, frequentemente, a divulgação de

informações falsas ou apenas parcialmente verdadeiras, com consequências às

vezes catastróficas. Hoje, na era do “tempo real”, essa contradição atinge

níveis que apontam para uma aparente irracionalidade no processo de produção

da notícia. Afinal, que sentido haveria em investir na última palavra em

tecnologia se o que interessa não é a qualidade da informação, mas sim “chegar

mais rápido que o concorrente”? (MORETZSOHN, 2002, p. 11).

Para a autora (2002, p. 128), o jornalismo aposta em “prognósticos” como valor

de atualidade e não respeita as regras que exigem um distanciamento e, portanto, uma

desaceleração para a apuração rigorosa da notícia. Além disso, para sustentar a lógica da

notícia transmitida instantaneamente, o jornalismo não se preocupa com a necessidade de

veicular a informação correta e contextualizada.

Evidentemente, há diferenças de ritmo, conforme o tipo de veículo para o qual

se trabalha, mas o importante será perceber como a lógica do “tempo real”

afeta a prática do jornalismo como um todo, radicalizando a “corrida contra o

tempo” que sempre marcou a profissão. Mais ainda: que as exigências do

mercado financeiro, e de quem nele atua, passam a ser o relógio do noticiário

em geral (2002, p. 130).

A partir do depoimento de Mariana Mainenti Gomes, repórter do portal

Investnews54, da Gazeta Mercantil, reproduzido por Moretzsohn (2002, p. 131), é possível

entender o funcionamento das redações com a premissa da rapidez:

A orientação para o repórter é nunca ficar com a informação “parada”: ao

receber uma notícia, deve automaticamente repassá-la. O repórter pode ir atrás

dos detalhes depois, mas antes, deve divulgar o material que acabou de receber.

É muito frequente, no entanto, que isto [a busca de detalhes, e mesmo a

checagem] não aconteça. Para se apurar uma notícia é preciso um mínimo de

tempo – muitas vezes o volume de releases, balanços de empresas e

documentos que chegam à mesa do repórter, e cuja divulgação tem de ser feita

o mais rapidamente possível, não permite a apuração de mais detalhes sobre a

notícia divulgada inicialmente.

Desta forma, a consequência de um jornalismo rápido é uma apuração imprecisa

e passível ao erro. O que é confirmado pela repórter:

Erros (...) são mais passíveis de acontecer no veículo on line porque a pressão

imediata sobre o repórter é maior do que no impresso: pensa-se duas vezes

antes de dar um telefonema para checar uma informação (...) porque sabe-se

que a consequência desse cuidado será instantaneamente refletida na tela do

assinante, em forma de um “vazio” de notícias. [...] No raro o resultado era um

material incompleto, fragmentado, baseado em um jornalismo declaratório e

oficialesco, pela falta de tempo para se checar e aprofundar informações

(MORETZSOHN, 2002, p. 132 e 135).

54 Criada em novembro de 2000, a InvestNews foi considerada a maior distribuidora de conteúdo editorial

sobre economia e negócios da América Latina. A empresa saiu do mercado em junho de 2009 e era

especializada na cobertura da infraestrutura do negócio das empresas brasileiras.

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60

Ainda segundo a autora, o fetiche da velocidade provoca um processo de

simplificação do mundo operado todos os dias pela imprensa. Ela afirma que os conflitos

da sociedade poderiam ser explorados em sua complexidade, no entanto, os temas são

simplificados a partir dos estereótipos (bandidos versus cidadão do bem, por exemplo), o

que reproduz o senso comum.

Para Moretzsohn (2002), a valorização da informação instantânea põe em xeque

o próprio sentido de mediação exercida pelo jornalismo. Na época, a autora ainda não

vivenciara a explosão das redes sociais e das notícias falsas. Seria, justamente, na

atualidade que a discussão sobre a mediação do jornalista ganharia força. A partir do

momento em que as redes sociais dão voz para qualquer pessoa qual seria a necessidade

de um jornalista como porta-voz da sociedade?

A mediação jornalística ganha um novo sentido quando todos têm um lugar de

fala e há informação demais ou até mesmo a desinformação. A partir deste novo cenário,

é necessário investigar a realidade com mais tenacidade e, consequentemente, sem o

fetiche da velocidade. Acompanhar o ritmo frenético das redes é analisar o mundo de

maneira rasa e, muitas vezes, equivocada.

Para Salles (2011, p. 40), o tempo de criação é um ato permanente que não é

vinculado ao tempo de relógio e a criação é resultado de um estado de total adesão do

criador. É certo que o jornalista tem o tempo limite, um deadline, para a entrega de um

produto. Porém, é perceptível que o tempo tornou-se um inimigo da profissão e não um

aliado. Por isso, o primeiro aspecto a ser analisado na revista piauí é o fator tempo. A

partir dele, desencadeiam-se outros fatores que serão vistos adiante, como o acaso e a

continuidade.

4.4.2 A charrete da piauí

À medida que a reportagem de fôlego foi se tornando mercadoria de luxo nas

redações, a charrete da piauí, à primeira vista tão na contramão do curso do

mundo, de certa forma reinventou a roda. A aposta na apuração paciente e

minuciosa, que requer coleta exaustiva das informações, contato demorado

com as personagens e capacidade de observação [...] representou um oásis

no semiárido da imprensa brasileira (Fernando de Barros e Silva).

O jornalista Bernardo Esteves escreve sobre Ciência e Meio Ambiente na revista

há oito anos. Anteriormente, ele foi editor do jornal de ciência Ciência Hoje Online e

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repórter da revista Superinteressante. É doutor em Histórias das Ciências pela

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Para esta análise, Esteves escolheu as reportagens “Os seixos da discórdia”,

publicada na edição nº 88, de janeiro de 2014. O texto é sobre a descoberta arqueológica

no Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, que mudaria a história da ocupação da

América. A segunda publicação é “O colecionador”, publicada na edição nº 108, de

setembro de 2015. A reportagem conta a história do entomólogo Vitor Becker, que possui

a maior coleção de mariposas do Brasil, com 300 mil exemplares, no centro de pesquisa

que ele construiu na Serra Bonita, no sul da Bahia, área preservada da Mata Atlântica.

Para a produção de cada reportagem, o jornalista teve dois meses. Porém, o tempo

pode variar. A piauí já teve matéria com o tempo de apuração de duas semanas e outra

que durou um ano. Mas em média, as matérias têm o mínimo de dois meses entre o

começo da apuração e a publicação.

Durante este tempo, o jornalista pesquisa sobre a pauta (ler livros sobre o assunto)

e entrevista pessoas. A entrevista será pessoalmente, principalmente, se a reportagem for

um “perfil55”, gênero muito apreciado pela revista. Os repórteres usam o programa Skype

(conversa online) ou o telefone para entrevistas complementares.

Depois da ideia inicial da pauta proposta pelo repórter ou editor, o repórter

levanta o tipo de personagem que pretende falar para marcar a entrevista. Se

for um perfil, entra em contato com a figura para saber se ele se dispõe a ser

perfilado. Até porque nem todo mundo fica à vontade com esta ideia.

Geralmente, a gente faz perfil com acesso ao perfilado (ESTEVES, 2015).

A reportagem “O Colecionador”56 é um exemplo de um perfil:

A pauta foi uma sugestão do João Moreira Salles que tomou conhecimento da

existência dele [Vitor Becker]. Eu acho um cara fascinante. Digno de um perfil.

Um cara muito pouco conhecido e eu nunca tinha ouvido falar dele. A piauí

costuma jogar luz em personagens não conhecidos. É um caso típico. João

falou dele e eu entrei em contato, vi o site da reserva dele, liguei e conversei.

E achei que tinha uma história boa que valeria a pena. E aí marquei uma visita

(ESTEVES, 2015).

Bernardo Esteves teve a oportunidade de permanecer uma semana na Bahia para

a realização da entrevista com Vitor Becker. A partir disso, pôde conhecer melhor não só

o perfilado, mas o ambiente que o cerca, o que é essencial para a construção de uma

55 Autor do livro Perfis e como escrevê-los (2003), Sérgio Vilas Boas descreve o perfil como a possibilidade

de o jornalista focalizar apenas alguns momentos da vida de uma pessoa. Para o autor, o que se deve ter em

vista no perfil é a pessoa e a experiência humana. 56 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-colecionador/>. Acesso em 07. Ago. 2018.

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narrativa aprofundada57, principal proposta da revista. O repórter relata que não

conseguiu observar o ambiente tão bem como queria porque foi em uma época chuvosa.

Tive um azar porque fui em julho, tempo chuvoso. Lá também é uma pousada

e parte dos hóspedes são ecoturistas e vão lá para fazer trilha e observação da

mata. Então pouca coisa aconteceu. Não fiquei caminhando que era uma coisa

que eu esperava fazer. É um perfil que eu acho pouco movimentado

(ESTEVES, 2015).

A partir do relato de Victor Becker, o repórter ouviu vinte pessoas, incluindo

amigos e outros pesquisadores de mariposa e borboleta do Brasil. A maioria das

entrevistas foi por telefone ou Skype. Além de encontros presenciais com pesquisadores

estrangeiros que colaboraram com Becker. O repórter foi ao Museu Nacional (Rio de

Janeiro) para verificar como a coleção de mariposas e borboletas era guardada após o

perfilado afirmar que não queria que a sua coleção pessoal fosse doada a esse museu após

a sua morte. Viajou ainda para São Paulo para conhecer a coleção do Museu de Zoologia

da Universidade de São Paulo (USP) e para entender o processo de captação de recurso

público para manter uma coleção como a de Becker.

A partir do percurso de Bernardo Esteves percebe-se que houve a checagem\

comprovação do que foi dito pela fonte, no caso o entomólogo. Ou seja, não basta a fala

do perfilado. É preciso confirmar (checar) ou contrastar o que foi dito. Isso torna a

apuração da reportagem extensa e, consequentemente, há a necessidade de um intervalo

de tempo expressivo para isso. A checagem do declaratório, geralmente, não é uma

preocupação dos veículos. Até porque isso demanda tempo e dinheiro.

Sobre o fator “dinheiro”, no caso específico da piauí, conforme declarações de seu

Publisher, o cineasta João Moreira Salles, os anúncios não bastam para sustentá-la.

Entretanto, a revista segue circulando e mantém seu padrão de alto custo – com apurações

que demandam viagens nacionais e internacionais – graças à sua fonte de financiamento

privilegiada:

João Moreira Salles integra uma das famílias mais ricas do Brasil – em 2013

foi avaliada como a mais rica –, proprietária do Itaú Unibanco, além de ter

participação em outros empreendimentos milionários, como a Companhia

Brasileira de Metalurgia &Mineração (CBMM). [...] piauí, portanto, usufrui

de condições excepcionais em termos de subsídio financeiro. Enquanto um dos

principais requisitos para a sobrevivência no campo jornalístico é a conquista

de capital econômico, a revista não precisa, necessariamente, disputá-lo. Há o

interesse de que ela se sustente – os anúncios publicitários estão presentes em

suas páginas, como em qualquer outra publicação – e há também a busca por

mais leitores e anunciantes. Entretanto, enquanto essas fontes não bastam, a

revista segue sendo subsidiada com o aporte financeiro de Salles (CANIÇALI,

2015, p. 9).

57 A narratividade é um nó da rede que será visto posteriormente.

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Além do jornalismo, é comum o apoio financeiro em outras áreas do

conhecimento. É o que explica Salles (2017) ao discutir o contexto de restrições e

possibilidades no que se diz a respeito às questões financeiras na arte e na ciência. A

autora cita Palermo (2007, p. 227-228) que narrou sobre a doação para o Instituto de

Pesquisa Social de Frankfurt:

Primeiro ponto a ser destacado é a independência econômica de que gozava.

Sua fundação aconteceu graças à disponibilidade de um rico mecenas,

Hermann Weil, que com uma respeitável doação tornou possível a existência

de uma instituição autônoma nos objetivos e modalidades do seu trabalho;

disponibilidade obviamente devida ao fato de se encontrar, entre os três

fundadores do Instituto, seu filho Felix (PALERMO apud SALLES, 2017, p.

181).

Já na ciência, a autora cita Gentili e De Masi (2007, p. 76) que afirma que a

Estação Zoológica de Nápoles tinha quase todos os seus projetos eram financiados por

diversos governos e entidades científicas.

No artigo “Arte ou indústria?”, Jean Renoir problematiza a questão “Os filmes são

uma arte ou uma indústria?”. O autor afirma que essa pergunta lhe é feita frequentemente

e explica que a classificação em uma ou em outra é complexa, justamente, porque uma

não anula a outra. O pensamento dicotômico entre arte e indústria vem de uma ideia

imaculada da arte sem um investimento industrial, ou seja, financeiro. É essa a discussão

proposta por Salles ao mostrar os exemplos de grandes projetos artísticos e científicos

que têm como pano de fundo um apoio financeiro. Assim como os projetos jornalísticos.

Assim, para responder a tal questionamento, Renoir mostra que não devemos

dividir o mundo em classificações definidas. O que podemos deduzir que a resposta de

Renoir para a questão é “arte ou indústria” é que há indústria na arte e há arte na indústria.

Com isso quero dizer que dividia o mundo e a vida que o anima em rodelinhas

e quadradinhos dentro dos quais arrumava os seres e as coisas, os sentimentos

e as percepções. [...] Não me vinha à ideia que o sapateiro pudesse ter o gênio

da música e que o poeta pudesse ser um magnífico perito em investir dinheiro

na Bolsa (RENOIR, 1991, p. 143).

Voltando para a revista piauí, o resultado desse investimento financeiro e temporal

é uma abordagem mais ampla sobre a pauta, com a possibilidade de escutar mais pessoas

sobre o mesmo assunto, é uma narrativa que pode explicar com mais detalhes as nuances

da realidade ao leitor. Com a checagem do declaratório, o jornalismo se aproxima do fato

como ele é ou da “verdade factual”. Além de conseguir mostrar o contexto da declaração,

o que também é raro no jornalismo de hoje. Ao contar sobre o seu processo de produção,

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Bernardo Esteves falou sobre o impacto desta percepção aprofundada para o jornalismo

no qual atua e a importância do tempo para conseguir realizar isso:

No jornalismo tradicional você tem uma declaração que aparece desprovida de

qualquer contexto. Fulano disse isso. E às vezes você explica para o leitor o

que você perguntou para o seu entrevistado e que ambiente ele estava e quem

mais estava em volta. Ou seja, que circunstâncias eram aquelas. Isso qualifica

um pouco o que ele diz. Ajuda a atenuar, a aguçar, ajuda a qualificar melhor.

Acho que é um jornalismo que ajuda a dar contexto. Tenta valorizar o relato,

tenta valorizar os recursos e tem um lado bem sensorial das matérias. Cores,

cheiros, sons. Na área que eu cubro, acho isso fundamental. O jornalismo

diário é muito baseado em resultados e não explica direito os passos pelos quais

os pesquisadores passaram para chegar àquelas conclusões. Quando você tem

tempo e espaço para escrever sobre isso, você pode dar este contexto.

Mostrar os bastidores da produção de conhecimento. Isso é rico para entender

como funciona a ciência e de onde vem as convicções do cientista. Isso

qualifica melhor o texto jornalístico. Não dá para você fazer isso no noticiário

diário. Isso é algo reflexivo, que exige você parar e pensar na construção da

narrativa. Você pode injetar doses disso no jornalismo diário. Essas

características são bem-vindas em qualquer jornalismo. Seria adorável poder

juntar todas estas características, mas entendo que não há tempo para sentar e

pensar. Em alguns casos, é bem mais complicado (ESTEVES, 2015. Grifo

nosso).

Sem o fetiche da velocidade, os jornalistas da piauí podem se debruçar sobre o

texto para a construção da narrativa por dias. Esteves demora, em média, duas semanas

para o processo da escrita que inclui ainda um momento de reler as anotações e as

transcrições das gravações que realizou durante a apuração. Além da releitura dos

fichamentos dos livros e artigos que leu sobre o assunto da pauta. Após esse processo, o

repórter realiza uma triagem do material para, então, fazer um mapa estrutural da

reportagem e parte para a construção do texto. Após este período, o texto segue para a

edição, mas poderá voltar para o repórter para que faça mudanças.

Às vezes, eu preciso refazer alguma coisa. Varia de caso para caso. Texto vai

e volta com alguns pedidos ou não. Varia muito de quem edita. “Isso aqui não

está claro”. “Desenvolva mais”. “Não entendi”. “Aqui ficou confuso”

“Melhora este parágrafo”. Alguém que leu com cuidado e sugere “Se você

descrevesse este cara com mais detalhe”. É uma edição\ colaboração. Às vezes,

as sugestões são pertinentes. Outras vezes, não. Outras vezes, você pode

querer contestar (ESTEVES, 2015).

Bernardo comenta ainda que “No fundo você entroniza isso. Você passa a olhar

para a sua matéria-prima como histórias que podemos contar. [...] Boas histórias e

circunstâncias que permitam que elas sejam contadas do jeito que a gente gosta de contar”

((ESTEVES, 2015).

4.4.3 O caminho da reportagem

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Cada repórter entrega a reportagem pronta para um editor. Além de João Moreira

Salles, a revista possui mais três editores. Após a edição (em que poderá haver diálogo

entre o repórter e o editor, como foi visto na fala de Bernardo Esteves), o texto é enviado

para três profissionais: a secretária de redação, um revisor e um checador. O revisor

preocupa-se com o cumprimento das regras gramaticais e do manual de redação

jornalística. Já o checador irá confirmar todas as informações para que o texto ganhe

precisão. Na entrevista com a repórter Paula Scarpin, ela explicou a importância do papel

do checador na revista:

O papel do checador é duvidar de toda informação que o repórter escreve. Ele

refaz a pesquisa duvidando dos dados do repórter. É importante que ele duvide.

Por exemplo: Uma matéria com o nadador Cesar Ciello. Ele mede tanto, pesa

tanto, ele usa um maiô da marca tal. Será que Ciello tem 23 anos quando a

matéria vai sair. Ou ele terá 24? A checagem vai confirmar todas estas

informações. Quantas fontes a repórter usou para ter certeza disso? Tem que

ter precisão. E, geralmente, é isso mesmo porque o repórter sabe muita coisa

sobre o assunto (SCARPIN, 2016).

Enquanto isso, o departamento de arte está com um rascunho do texto procurando

imagens para ilustrar. Depois do texto revisado e checado, a secretária de redação

consolida as três versões (a sua leitura, a do revisor e a do checador). Ela devolve com as

marcas de revisão e checagem para o repórter e para o editor. Eles releem tudo, fazem

eventuais alterações pedidas pela checagem, e enviam novamente para a secretária de

redação uma versão final.

A partir disso, a reportagem pode ser lida online. Logo depois, o texto vai para

diagramação. Depois de diagramado, já no tamanho real da página de papel, com a

imagem aprovada, o texto é lido em papel por mais dois revisores (não os mesmos que já

leram antes). O editor responsável ainda aprova o material para depois ser enviado para

a gráfica.

O caminho da reportagem mostra a preocupação da revista com a precisão dos

fatos. O processo é lento e passa por muitas pessoas (trabalho em equipe), o que demanda

tempo. É possível afirmar que a qualidade do produto, no caso a revista, é diretamente

proporcional ao tempo de maturação dos processos jornalísticos de apuração, escrita,

edição, revisão e checagem. Não se pode afirmar que a revista nunca errou ou nunca irá

errar, até porque o jornalismo é um trabalho subjetivo e passível ao erro. Porém, o número

de imprecisões certamente é menor do que em veículos em que não há o processo de

checagem e que não tem o tempo como aliado.

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4.4.4 A importância do acaso

Como foi visto, o tempo faz a diferença na hora da apuração porque o repórter

terá a possibilidade de entrevistar mais pessoas e checar as informações. Além disso, o

tempo pode abrir brechas para o acaso, como foi o caso da construção do perfil do ex-

presidente do Uruguai, Pepe Mujica, feito pela repórter Carol Pires, publicado na revista

na edição 73, de outubro de 2012, com o título “El Viejo Tupamaro58”. Carol trabalhou

na piauí de 2012 a 2016. Atualmente, é colaboradora do New York Times en Español e

redatora do programa Greg News, na HBO.

Durante a entrevista para a presente pesquisa, Carol afirmou que o repórter ao

apurar precisa “deixar espaço para ser surpreendido” o que seria o mesmo que afirmar

que o repórter pode perceber a importância do acaso.

Eu fiz contatos prévios, como sempre faço antes de viajar, com a assessoria do

Mujica, com a mulher dele, a senadora Lucía Topolansky, mais alguns

políticos aliados e adversários, jornalistas, e cientistas políticos. É o básico.

Uma vez no local da apuração, esses contatos prévios vão te sugerindo novas

entrevistas, te apresentando a outras pessoas interessantes para a composição

do seu perfil, então é bom deixar espaço para ser surpreendido. Conheci

amigos, inclusive um amigo de infância do Mujica, num dia que havia

reservado para andar pelo bairro onde ele mora (PIRES, 2015).

Salles (2011, p. 42) explica que “aceitar a intervenção do imprevisto implica em

compreender que o artista poderia ter feito aquela obra de modo diferente daquele que

fez. Admite-se, assim, que outras obras teriam sido possíveis”. Assim como no jornalismo

quando uma informação transmitida ao público poderia ser totalmente diferente devido

ao tempo que o repórter teve para investigá-la.

Carol afirma que a ideia inicial era um perfil bem-humorado como ela achava que

era o ex-presidente:

[M]as o que eu encontrei foi um presidente velho, de um país envelhecido,

perdendo seus amigos. Acho que achei um trunfo em meio à adversidade. O

texto tem um tom melancólico e algo de ensaístico por trás da reportagem, que

também usa o Mujica para explicar o Uruguai. Gosto muito desse perfil

(PIRES, 2015).

O acaso fez com que a repórter construísse o perfil do ex-presidente em meio a

mortes de idosos próximos a Mujica, o que permitiu que realizasse um comparativo com

a situação do próprio país:

Sua única irmã havia morrido na quarta-feira. Era a caçula, tinha 71 anos. Uma

semana depois, no dia 15 de agosto, ele era esperado no Hipódromo Nacional

de Maroñas, em Montevidéu, e estava atrasado. Pepe Mujica, presidente do

58 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/el-viejo-tupamaro/>. Acesso em 07. Ago. 2018.

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Uruguai, soube, logo que acordou, da morte da mãe de um companheiro de

militância política e decidiu encontrá-lo antes da agenda oficial. Pela segunda

vez em sete dias ia a um velório (PIRES, ARQUIVO ELETRÕNICO59, 2012).

Logo em seguida, a reportagem descreve a situação política do Uruguai:

O país, além de ser menor que o Rio Grande do Sul, tem população pequena

(há dez anos mantém-se na faixa de 3 milhões) e envelhecida. São 19% os que

têm mais de 60 anos (no Brasil são 11%). Soma-se ao cenário a alta emigração

de jovens, em busca de empregos no exterior. Os quadros políticos do Uruguai

também carecem de renovação. As principais figuras da oposição hoje são ex-

presidentes ou herdeiros de famílias que se revezavam no poder antes de a

Frente Ampla chegar à Presidência, em 2005 (PIRES, ARQUIVO

ELETRÕNICO, 2012).

Já a repórter Paula Scarpin escolheu duas reportagens cujos personagens

principais são frutos do acaso. Justamente por não sofrer a pressão do relógio, os

repórteres da piauí podem aprofundar as histórias e, consequentemente, descobrir fatos

novos e interessantes para a reportagem. Segundo Salles (2008, p. 132), “erro e acaso

interagem com o processo que está em curso, propondo problemas que provocam a

necessidade de solução. [...] Estamos falando de importantes desencadeadores do

mecanismo de raciocínio responsável pela introdução de ideias novas”.

Paula é repórter da piauí desde 2007 e escolheu para a análise as reportagens “A

miss de nariz sútil”, publicada na edição nº 33, de junho de 2009, e “No país dos caubóis”,

publicada na edição nº 109, de outubro de 2015. A primeira reportagem apresenta a

história de jovens que enfrentam procedimentos cirúrgicos arriscados em busca de um

padrão de beleza exigido por concursos, como o Miss Brasil. O segundo texto mostra os

bastidores da festa do Peão de Boiadeiro de Barretos, interior de São Paulo, uma das

principais competições de rodeio do país.

Na construção da reportagem “A miss de nariz sútil”60, Paula tinha, inicialmente,

um tema vago e amplo. “Por que você não faz um apanhado do concurso de miss? Algo

meio retrô. Hoje em dia, a maioria das meninas quer ser modelo. Por que miss?”, disse a

sua colega de redação na época, a jornalista Daniela Pinheiro. A partir desta ideia, Paula

iniciou sua pesquisa ainda sem uma pauta definida, ainda tateando as pistas sobre o

assunto.

Após algumas pesquisas, ela decidiu que sua pauta seria sobre a história do

surgimento do concurso no Brasil. Descobriu que quem inventou o concurso de miss

universo foi uma marca de maiô chamada catalina. E por acaso, o único lugar que

59 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/el-viejo-tupamaro/>. Acesso em 02. Ago. 2018. 60 Disponível em <http://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-miss-do-nariz-sutil/>. Acesso em 07. Ago. 2018.

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produzia catalina no mundo era o Brasil e era em Petrópolis. A repórter decidiu então

fazer a trajetória da miss Petrópolis.

Porém, como não corria contra o relógio, Paula pôde explorar mais o assunto e

passou a participar de fóruns na internet sobre concursos de miss. A partir disso, ela

encontrou outros personagens interessantes para a sua pauta:

Na piauí, a gente fica muito tempo mergulhada no assunto e comecei a

descobrir fóruns na internet de missólogos, pessoas que se interessam por miss.

Na verdade, este termo é usado em dois sentidos diferentes. Um cara que

prepara a miss (entende tudo do concurso e sabe esteticamente como deve ser

uma miss) e os caras que se interessam muito sobre o assunto. [...] O assunto

que só se falava nestes fóruns era sobre a miss Rio Grande do Sul. Ela é eleita

quase um ano antes do Miss Brasil para poder ficar um ano só se preparando

para o concurso. No fórum, falava como a miss Rio Grande do Sul tinha

mudado tragicamente desde que ela tinha sido eleita. Eu comecei a procurar

fotos dela no Google e vi que mudaram muito o nariz dela. Ela virou outra

pessoa. O nome dela é Bruna Felizberto e o seu preparador era o Evandro Razi

(SCARPIN, 2016).

Paula queria conversar com Bruna Felizberto, mas não sabia direito como

encontrá-la. Devido à cirurgia que mudou o seu nariz, a miss estava reclusa e não dava

entrevistas. Como as reportagens da revista são longas, além da trajetória da miss

Petrópolis [a repórter não tinha desistido desta pauta], a jornalista decidiu entrevistar

cirurgiões plásticos para entender melhor sobre a recorrência da procura desses

profissionais por parte das garotas que querem se tornar misses. Muitos estavam no Rio

Grande do Sul e foi para lá que a repórter foi:

Eu marquei com vários cirurgiões plásticos que eu sabia que estavam operando

miss. E assim que eu cheguei ao Rio Grande do Sul, eu deixei minhas coisas

no hotel e fui entrevistar um cirurgião plástico. Fui falar com eles antes de falar

com os missólogos. E eu cheguei à sala de espera e ela [Bruna Felizberto]

estava lá. [...] Quando entrei e a vi na sala de espera, eu nem sentei porque me

deu tanto nervoso. Eu entrei no banheiro e mandei uma mensagem para uma

amiga minha: você não vai acreditar quem está aqui? Na hora que eu sai do

banheiro, ela tinha ido para a consulta e estava a mãe dela. Aí eu comecei a

falar com ela. Estou fazendo uma reportagem para a revista piauí, que ela não

conhecia (SCARPIN, 2016).

Pode-se afirmar que o acaso mudou o percurso da criação da reportagem. A

repórter encontra a personagem ao acaso e decide contar a sua história. A pauta mudaria

a partir daquele encontro inesperado.

Mudou minha pauta complemente porque a minha pauta agora era a Bruna.

Essa era a história. Eu contei a história do concurso miss universo, a história

do catalina, mas eu precisava de um fio condutor. E eu tendo esta história que

envolve a indústria das plásticas. Essa história era ouro. Quando eu parti para

esta pauta jamais eu imaginaria que teria uma história tão legal. E até hoje ela

é uma das minhas matérias que mais deu repercussão. Assim que a gente

publicou, a matéria passou uma semana na Folha online porque era uma

história muito interessante (SCARPIN, 2016).

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69

Com a mudança da pauta, Paula construiu uma reportagem que foi além e

apresentou uma realidade assustadora que seria a obsessão dos missólogos por cirurgia

plástica:

Seguidor da metodologia venezuelana, o missólogo não acredita em beleza

natural. Na minha frente, apontou para uma candidata cujos traços finos

lembravam um pouco Ieda Maria Vargas, gaúcha que trouxe o primeiro título

de Miss Universo para o Brasil, em 1963, e sentenciou: “Essa é linda, mas eu

demolia e transformava num monumento.” (SCARPIN, 2009).

Já na reportagem “No país dos caubóis”61, a repórter tinha o desafio de escrever

sobre o universo do rodeio. Paula conta que essa era uma realidade que não conhecia e a

única referência que tinha era o fato de que o irmão de um dos editores da revista era

assessor de imprensa do cantor sertanejo Michel Teló.

Era um universo que eu não entendo nada, comecei do zero. Adoro isso de não

saber nada. A sugestão veio do editor: liga para meu irmão e pede para ele te

dar um panorama. Liguei para o Miguel e perguntei o que ele poderia falar

sobre o universo do rodeio. Falei que era a primeira conversa que estou tendo

e que não sabia de nada. Ele falou que entendia super pouco. Ele é carioca,

além de tudo. Ou seja, não era deste universo, mas entrou por motivos de

trabalho. Ele falou que conhecia um cara que era locutor e tinha amigos do

meio sertanejo. Ele é de Barretos e entende tudo deste meio. Só que ele faz a

abertura de show e pode ser um cara que pode te ajudar (SCARPIN, 2016).

A repórter entra em contato com o locutor sem saber que ele seria o personagem

principal da sua história. Inicialmente, ele seria apenas a fonte que apresentaria o universo

do rodeio para a jornalista. Na primeira conversa que teve pessoalmente com o locutor, a

repórter percebeu que ele poderia ser um ótimo personagem para a reportagem.

Para contar a história “No país dos caubóis”, Paula Scarpin pôde acompanhar o

locutor por dois meses e, assim, conheceu a rotina e os bastidores da festa de peão de

Barretos. O fato de o repórter poder permanecer por muito tempo com o personagem de

uma reportagem é algo inusitado no jornalismo. Tanto que, muitas vezes, o repórter

precisa explicar o seu modo de trabalho para a fonte para que não ocorra nenhum

constrangimento ou mal-entendido:

As pessoas não estão acostumadas com o tipo de jornalismo que a piauí faz e

a gente fica muito tempo junto. Então a pessoa confunde, ela acha que é sua

amiga. Raramente, eu faço uma única entrevista com uma pessoa. Com o

Cuiabano [o locutor], de repente, estava oito horas com ele. Só nós dois. Cria

uma certa intimidade. E ele achou que eu era amiga dele. Nestas situações, eu

sinto que é o meu dever alertar. [...] Falei que ele era o personagem principal

da matéria, sim. E que tem uma série de implicações. Eu não sou sua assessora

de imprensa. Eu não vou falar só a sua versão da história. [...] Era muito difícil

lembrar o tempo todo para o Cuiabano que a gente não era amigo. Ele saía do

rodeio e vinha discutir a performance dele comigo. Fiquei na festa do peão

direto. Com ele e com a mãe dele. Após a matéria, ele continua me ligando e

61 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/no-pais-dos-caubois/>. Acesso em 07. Ago. 2018.

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disse que o pessoal do New York Times estava atrás dele. Porque a piauí acaba

pautando porque são assuntos que não estão no radar. Quando chegou a revista

para ele, ele falou que leu três vezes. A primeira vez, ele odiou. Ficou com

muita raiva de mim. Não gostou da abertura da reportagem porque mostrou ele

frágil, ele doente. A segunda vez, ele entendeu e a terceira, ele adorou

(SCARPIN, 2016).

Paula construiu a reportagem sobre o mundo do rodeio a partir da vivência com o

personagem.

Era início de julho, o auge da temporada, e Cuiabanno Lima, o mais requisitado

locutor de rodeios do país, vinha numa maratona de 22 eventos nos últimos

trinta dias. Longe das atenções do Brasil litorâneo, as festas em que os peões

competem para ver quem consegue se equilibrar com mais destreza sobre um

touro ou um cavalo bravo galvanizam as cidades do interior – além das

competições de montaria, reúnem tradições circenses, manifestações religiosas

e apresentações de cantores sertanejos. Entre março e novembro, período em

que é quase impossível conseguir um espaço na agenda de Cuiabanno,

acontecem cerca de 1 800 rodeios numa área que vai do Paraná a Rondônia, de

Mato Grosso do Sul a Minas Gerais. Em muitas cidades, a competição de

montaria, associada a alguma festa local, é o principal evento do ano

(SCARPIN, 2015, ARQUIVO ELETRÔNICO62).

Mais uma vez, o tempo de produção influencia no resultado da reportagem. A

partir da vivência de muitos dias no rodeio, a repórter consegue descrever detalhadamente

sobre o universo sem o conhecimento prévio sobre o assunto.

4.4.5 A especialidade do repórter

Pode-se afirmar que o repórter produzirá um texto com mais detalhes e com mais

semelhanças com o real a partir de uma vivência (tempo) considerável com as fontes e o

ambiente da pauta. Isso irá acontecer mesmo que o profissional não tenha uma

especialidade no assunto. É o caso de Paula Scarpin, que afirma que, geralmente, os

repórteres da piauí têm uma especialidade, mas ela não tem nenhuma. “Um editor falou

que eu era especialista em gente. Eu gosto de assunto que tenho que mergulhar em um

universo que quanto mais diferente de mim, melhor” (SCARPIN, 2016).

Ao contrário de ser generalista - o adjetivo que geralmente é destinado aos

jornalistas que escrevem sobre tudo, mas não são especialistas em nada - o repórter da

piauí é especializado no que escreve. Seja porque realizou cursos acadêmicos sobre o

assunto, como Bernardo Esteves que é doutor em Histórias da Ciência e escreve sobre o

tema, seja porque tem um tempo e uma experiência expressiva no meio jornalístico, como

62 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/no-pais-dos-caubois/>. Acesso em 28. Set. 2018.

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é o caso de Malu Gaspar, seja porque realiza uma imersão profunda no assunto, como é

o caso de Paula Scarpin.

Por exemplo, rodeio. A primeira coisa que eu vejo é a biblioteca da USP para

saber tudo o que se escreveu sobre o assunto. Fiz uma matéria sobre a

transposição do Rio São Francisco, então eu baixei várias teses, imprimi tudo

e grifei muita coisa. Eu sou assim (2016).

A pauta da segunda reportagem escolhida por Bernardo Esteves para esta pesquisa

surgiu, justamente, do acompanhamento do repórter de temas relacionados à Ciência,

como o início da ocupação da América. O jornalista afirma que desejava escrever sobre

o tema há muito tempo, mas esperava um fator novo para isso. Até que foi publicado um

artigo importante com dados novos, em abril de 2013. Neste momento, Esteves pôde

propor a sugestão de pauta para a revista.

As matérias grandes da piauí a gente pode sempre tentar dar um panorama

exaustivo, mostrar a matéria por muitos ângulos. Uma coisa é uma matéria de

jornal com 4, 5 mil toques. Você não consegue contar esta história toda que é

cheia de meandros. Então eu pensei que agora era a hora. Tem este artigo como

gancho.

Bernardo pôde acompanhar a história por trás do artigo cientifico publicado. Ou

seja, pôde, literalmente, traduzir a Ciência para o jornalismo.

Lourdeau conduziu as escavações do sítio da Toca da Tira Peia, uma área

escavada de 25 metros quadrados e 2,5 metros de profundidade. A densidade

de achados arqueológicos não foi grande: entre 2008 a 2011, saíram dali apenas

113 peças interpretadas como artefatos indiscutíveis. Os resultados começaram

a ser publicados no ano passado no Journal of Archaeological Science, revista

americana mais prestigiosa da área. O trabalho concluiu que alguns artefatos

encontrados têm pelo menos 22 mil anos. Se o resultado for aceito pela

comunidade de arqueólogos, será o mais antigo indício da presença humana no

continente americano (ESTEVES, ARQUIVO ELETRÔNICO63, 2014).

A familiaridade com o tema fez o repórter aprofundar a discussão da reportagem.

Conversou com diferentes especialistas que o fizeram criar o “panorama exaustivo” sobre

a temática. Além de visitar o local das escavações na Serra da Capivara, no Piauí, o

jornalista conversou pessoalmente e por Skype com diferentes pesquisadores e participou

de uma conferência que reuniu centenas de pesquisadores. Alguns se tornaram seus

personagens.

Tive a sorte que neste momento [momento da apuração] estava acontecendo,

dali a um mês, um congresso e todos os personagens estariam lá. E, sobretudo,

os críticos norte-americanos que nem sempre são ouvidos nas matérias

brasileiras, mas elas deveriam porque este material sempre era contestado, mas

pouquíssimas vezes, alguém ligava ou passava email para estes caras. E eles

estavam todos reunidos lá no congresso. Eu convenci meu chefe a pagar as

despesas e foi muito rico para a matéria (ESTEVES, 2015).

63 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/os-seixos-da-discordia/>. Aceso em 02. Ago.

2018.

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Já a repórter Malu Gaspar costuma acompanhar os temas políticos na piauí. A sua

carreira iniciou como repórter de cidades da Folha de S. Paulo em São Paulo. Ela foi

correspondente do jornal nos Estados Unidos aos 25 anos e depois repórter da sucursal

de Brasília. Em Brasília, passou a trabalhar para a revista Veja como repórter em 2000.

Como repórter, sempre se interessou por coberturas desafiadoras, em que a tônica

fosse oferecer informações exclusivas a partir de investigações apuradas, fosse o assunto

uma grande epidemia (como a de sarampo, em 1997), um movimento político (a onda de

invasões dos sem-terra, no início dos anos 2000) ou um crime do colarinho branco (como

as investigações sobre o dinheiro desviado da prefeitura de São Paulo pelo ex-prefeito

Paulo Maluf, ou o escândalo do desvio de dinheiro do TRT paulista).

Tornou-se chefe da sucursal da revista Exame no Rio de Janeiro, em 2005, onde

se especializou na cobertura econômica. Foi editora da revista Veja no Rio de Janeiro, de

2010 a 2015. Escreveu o livro-reportagem Tudo ou Nada (Record, 2014), que conta a

história da trajetória do empresário Eike Batista. Para a presente análise, escolheu a

reportagem “Em águas profundas”, publicada na edição 107, agosto de 2015, e o perfil

“O delator”, publicado na edição 117, junho de 2016.

Com toda a sua bagagem profissional, Malu se dedica na piauí a um tema

especifico. A operação Lava Jato. Para ela, esse é o diferencial da revista. Além do fato

de ter tempo para uma grande investigação. A repórter já permaneceu por quatro meses

na produção de uma reportagem.

É muito prazeroso estar na piauí porque você tem tempo. Você pode ir e voltar

no assunto. Aos poucos você vai percebendo que é um barato fazer matérias

aprofundadas. Porque quando a matéria sair, as pessoas vão entender melhor

as coisas. Porém, é difícil você estar cobrindo um assunto como a Lava Jato

com matérias de três em três meses: você tem que escolher bem o seu alvo.

Você escolhe um cara que depois não dá nada. Qual é a graça? Tudo isso é

delicado e impõe desafios (GASPAR, 2016).

Para a construção do perfil “O delator”, Malu afirma que foi essencial o contato

permanente da repórter com a fonte, no caso o ex-senador Delcídio do Amaral. A repórter

pôde assistir junto de Delcídio à transmissão da sessão da Câmara que aprovou o

impeachment da presidente Dilma Rousseff. Delcídio, que era líder do governo petista,

realizou uma delação premiada que envolve a presidente Dilma em esquema de

corrupção.

Desde que cheguei à piauí, eu estava atrás de delatores. Fiz contato com vários

advogados e amigos de delatores [da Operação Lava Jato]. Ninguém topava.

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Já conhecia o Delcídio desde 2003. Trabalhei em Brasília e cobria pela Veja o

Congresso. Ele virou a minha fonte. Mesmo quando foi para o Rio, mantive

conversas com ele. [...] Aí propus pra ele: eu quero que o Senhor me conte

porque decidiu delatar. Eu fiz duas entrevistas com ele e aconteceu o

impeachment [da presidente Dilma Rousseff]. A ideia foi do Fernando [diretor

da revista] de acompanhar Delcídio durante a sessão do impeachment. E foi

incrível. Depois de sete horas que eu passei com ele, eu pensei: “Essa é a

matéria”. Esse cara olhando para o impeachment e pensando: “Eu ajudei”. E

bebendo e revendo a vida e chorando. É ele e a decisão dele se confrontando

no meio de um fato histórico (GASPAR, 2016).

A trajetória da repórter abriu portas para que ela conseguisse uma entrevista

exclusiva que se tornou um perfil revelador, devido às frases de desabafo de Delcídio que

estão por todo o texto. Algo que é incomum no jornalismo tradicional que costuma

publicar frases oficiais que, geralmente, são produzidas por assessorias de imprensa e

repassadas por porta-vozes.

De repente, como quem se dá conta da gravidade do momento [votação do

impeachment de Dilma Rousseff na Câmara de Deputados], Delcídio inclinou

o corpo para a frente e, com os olhos ainda fixos na tevê, apoiou os cotovelos

sobre os joelhos, passou as mãos no rosto, olhou para mim de soslaio e

confessou estar ansioso: “Sabe o que é? Querendo ou não, eu sou protagonista

nessa confusão aí. Eu ajudei a enterrar” (GASPAR, 2016, ARQUIVO

ELETRÔNICO).

Em outro momento da reportagem, Delcídio declara sua indignação ao Partido dos

Trabalhadores (PT) que não prestou solidariedade a sua prisão: “Você não imagina a

decepção que eu tive. Arrumei dinheiro, nomeação, fiz favores para dois terços do

Senado. E de repente nego estava ali me xingando. Foi duro” (GASPAR, 2016, ARQUIVO

ELETRÔNICO). A partir dessas e de outras falas, percebe-se que o contato mais pessoal da

repórter com o entrevistado permitiu que a reportagem fosse mais descritiva e contasse

com depoimentos menos formais e mais elucidativos.

4.4.6 O ato comunicativo

Para Fuentes (1989 apud Salles, 2011), o processo de criação mostra-se, também,

como uma tendência para o outro. Está em sua própria essência a necessidade de seu

produto ser compartilhado. No jornalismo, esta necessidade torna-se um fim. O

jornalismo é compartilhamento de informação.

Segundo Salles, o ato comunicativo se dá por diálogos do autor com o outro na

tentativa de uma produção assertiva com o seu diálogo interno. Este outro poderá ser

alguém próximo. Um confidente, por exemplo. Na literatura, há as trocas de cartas de

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Mário de Andrade com outros escritores, por exemplo. Isso também é usual no

jornalismo. Bernardo Esteves costuma compartilhar o seu processo de produção com

outros jornalistas. Além do diálogo com o editor, as suas ideias são debatidas

informalmente com os colegas de redação:

Conversar com as pessoas, com os colegas de redação sobre a matéria. Nas

conversas de bar, perguntam no que estou trabalhando. Às vezes, só de contar

o que eu estou fazendo, já me ajuda a por ordem nas ideias e na tentativa de

falar para uma pessoa que nunca ouviu falar sobre aquilo já deixa as coisas

claras. Aí que você vai entendendo que não pode falar isso antes daquilo. Você

tem os nós, os pontos (ESTEVES, 2015).

Paula Scarpin relata que costuma expressar para os amigos as primeiras

impressões que teve durante a apuração por meio de conversar pelo aplicativo Whatsapp.

Assim, pode recuperar depois as informações para compor as descrições da reportagem.

Tenho que prestar atenção porque sei que vou descrever tudo aquilo. É difícil

porque, por exemplo, nesta reportagem sobre o rodeio, eu fiquei muito tempo

com o Cuiabano e fui naturalizando as coisas. Às vezes, eu fico lendo o que eu

falava para as pessoas no começo. Por exemplo, eu precisava ficar quatro horas

no rodeio e eu estou sempre no Whatsapp. Eu sempre estou conversando com

os meus amigos e vou contando as coisas. Então, eu procuro este histórico de

conversas para ver o que no começo estava me impressionando. Porque tem

uma hora, por exemplo, no rodeio tem muitos fogos de artificio. No final, eu

já não estava mais ligando para aquilo. Mas no primeiro rodeio que eu fui, eu

prestei atenção nisso. Então, para uma pessoa que não sabe é muito importante

dizer. (SCARPIN, 2016).

Assim, por meio do diálogo com os amigos, a reportagem contou com a descrição sobre

a queima de fogos:

Festa do Peão de Barretos deste ano começou no dia 19 de agosto, com a

tradicional queima de fogos. A partir do dia 20 o público já ocupava o Parque

do Peão. Quem chega pela entrada principal dá de cara com uma estátua de

caubói que tem 27 metros de altura e é tratada por toda a população local pela

alcunha de “Jeromão”, por ter sido construída numa das gestões do atual

presidente e organizador do evento, Jerônimo Muzetti (SCARPIN, 2015).

Já Malu Gaspar afirma que quando aparecem dúvidas durante o processo de

construção da reportagem costuma usar a estratégia de chamar o editor para uma conversa

ou para tomar um café. Ela acredita que a equipe da revista é formada por pessoas com

muita experiência que, assim como ela, já passaram por vários veículos. Por isso, há uma

troca de conhecimento e diálogo entre eles, porém respeitando a autonomia de cada

profissional.

É, justamente, desta troca de informações com o outro que surgem novas ideias

para a construção da reportagem.

A entrada de novas ideias propõe um conceito de criação no contexto de

interconexões e não isolamento, que também sustentam o conceito de rede. As

interações da rede são responsáveis pela proliferação de novas possibilidades:

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ideias se expandem, percepções são exploradas, acasos e erros geram novos

caminhos, etc. (SALLES, 2015, p. 6).

A experimentação do repórter nos momentos de criação é um lugar para uma

possível análise dos erros e acertos do processo da elaboração da reportagem. Ao

experimentar, o jornalista busca novos caminhos que se distanciam de um padrão ou

formato pré-estabelecido. No caso da piauí, esta ruptura é feita quando o jornalista se

propõe a narrar.

Durante as entrevistas para o presente trabalho, os repórteres relataram a

influência das narrativas literária e cinematográfica para a composição de suas

reportagens. Desta forma, o próximo nó será sobre a narratividade.

4.5 Nó 02: A narratividade

A narrativa em si representa um modo de ordenamento da experiência humana, de

construção da realidade, e é a partir da personagem que isso se concretiza. É o que explica

Piccinin (2012, p. 68) ao afirmar que o olhar mais imediato sobre a narrativa é aquele que

a vê como a história resultante da sucessão de eventos e estado de coisas mediado por

personagens. Na perspectiva de Gai (2009), tem-se a necessidade de narrar para

compreender a experiência que se vivencia, ou seja, é por meio da narrativa que se forma

a visão dos fatos e do mundo:

Aquele que narra transforma uma experiência em linguagem, atividade que,

por sua vez, leva à compreensão e ao entendimento da experiência em si.

Mesmo o simples relato pressupõe a experiência, seja em relação ao fato

propriamente dito, seja em relação à constituição psicológica ou mental de

quem narra. É de acordo com esses dispositivos vivenciais que resultará a visão

do fato, e também do mundo, apresentada pela narrativa (GAI, 2009, p. 137).

É através da narrativa que se constitui e atribui sentido às situações do cotidiano,

de maneira que “narrar é organizar sistematicamente algo que já está lá” (PICCININ,

2009, p. 61). Para Genette (1976, p. 23-27), a narrativa sempre está relacionada a um

acontecimento real ou fictício realizado por uma pessoa ou uma personagem.

4.5.1 A narrativa literária

A narrativa literária, como sinônimo de texto narrativo, “pode ser sustentada pela

linguagem articulada, oral ou escrita, [...] está presente no mito, na lenda, na fábula, no

conto, na novela, na epopeia, na história, na tragédia, no drama, na comédia” (BARTHES,

1972, p. 19). Pode-se ir além e afirmar que “a narrativa está presente em todos os tempos,

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em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história

da humanidade. Não há em parte alguma, povo algum sem narrativa” (BARTHES, 1972,

p. 19).

Assim, é característica da literatura, ao usar o modo narrativo, criar histórias,

dramas envolventes, relatos históricos críveis, embora não necessariamente verdadeiros.

Então, “entendemos por narrativa todo discurso que nos apresenta uma história

imaginária como se fosse real, constituída por uma pluralidade de personagens, cujos

episódios de vida se entrelaçam num tempo e num espaço determinados” (D’ONOFRIO,

1995, p. 53). A narrativa, dessa maneira, localiza a experiência humana no tempo e no

espaço. As grandes obras de ficção que transformam a narrativa em uma forma de arte

chegam muito perto de revelar “puramente” a estrutura profunda do modo narrativo em

expressão (BRUNER, 2002, p 14-16).

O crítico literário Antonio Candido (1998) afirma que os recursos utilizados pelo

escritor de ficção são compostos pela energia da sua imaginação e por sua linguagem

poética. Ele afirma que há sim referências no real, mas que elas são transfiguradas pela

imaginação do autor:

É perfeitamente possível que haja referência indireta a vivências reais [no texto

literário]; estas, porém, foram transfiguradas pela energia da imaginação e da

linguagem poética que visam a uma expressão ‘mais verdadeira’, mais

definitiva e mais absoluta do que outros textos (CANDIDO, 1998, p. 14).

O mesmo já tinha sido apontado por Forster (1974, p. 34-35) ao afirmar que “um

romance é baseado nos fatos “+ ou – X”, sendo a incógnita o temperamento do

romancista, e essa incógnita sempre modifica o efeito dos fatos e, algumas vezes, os

transforma inteiramente”.

O escritor Émile Zola é referência de como um autor pode se utilizar de uma

observação profunda da realidade para compor a sua obra. O romancista, por exemplo,

recolhe os elementos do seu romance mediante o estudo e a observação direta e

intencional da realidade, de modo a conhecer com exatidão as condições de trabalho, os

anseios e os dramas das suas personagens (AGUIAR E SILVA, 1974, p. 239). Ao

observar a realidade, o autor literário acaba por analisá-la intencionalmente o que

representa uma atitude de espírito comum a todo romancista:

[...] todo aquele que sente dentro de si a vocação de escrever romances, sabe

como o seu olhar sobre o mundo e sobre os homens jamais é distraído,

prescrutando sempre por detrás dos rostos, dos gestos e dos hábitos, a vida

secreta das almas, imaginando cenas e aventura com as pessoas com que

convive, com que viaja, etc. Do cabedal das suas observações e das suas

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experiências, hão-de nascer e alimentar-se as personagens e as situações

romanescas (AGUIAR E SILVA, 1974, p. 239).

O fato de as personagens estarem situadas em acontecimentos observados pelos

romancistas, ação que se entrecruza com a história narrada, proporciona um caráter

dinâmico à obra. O romance apresenta personagens situadas num determinado contexto,

em certo lugar e em certa época, mantendo entre si mútuas relações de harmonia, de

conflito etc. (AGUIAR E SILVA, 1974, p. 240).

4.5.2 A narrativa cinematográfica

Para Bill Nichols todo filme é um documentário. Na verdade, segundo o autor,

existem dois tipos de filme: documentários de satisfação de desejos e documentários de

representação social. O primeiro é o que chamamos normalmente de ficção e o segundo

de não ficção. Esse último se aproxima do jornalismo devido à capacidade de ambos

transmitirem uma impressão de autenticidade.

Esses filmes [documentários de representação social] representam de forma

tangível aspectos de um mundo que já ocupamos e compartilhamos. Tornam

visível e audível, de maneira distinta, a matéria de que é feita a realidade social,

de acordo com a seleção e a organização realizadas pelo cineasta. Expressam

nossa compreensão sobre o que a realidade foi, é e o que poderá vir a ser

(NICHOLS, 2013, p. 26).

Ainda segundo Nichols, os filmes de não ficção oferecem-nos um retrato ou uma

representação reconhecível do mundo pela capacidade de registrar situações e

acontecimentos com fidelidade. Ao mesmo tempo, encontramos histórias que nos

permitem ver o mundo de uma nova maneira.

Os documentários mostram aspectos ou representações auditivas e visuais de

uma parte do mundo histórico. Eles significam ou representam os pontos de

vista de indivíduos, grupos e instituições. [...] Quanto desses aspectos da

representação entra em cena varia de filme para filme, mas a ideia de

representação é fundamental para o documentário (2013, p. 30).

Documentário também é um relato narrativo. Nichols afirma que a estrutura de

muitos filmes de não ficção faz uso tanto de técnicas narrativas como da retórica. “A

narrativa aperfeiçoa a ideia de fim, voltando-se para os problemas e dilemas propostos no

início, resolvendo-os” (2013, 127).

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Arlindo Machado afirma que muito embora a literatura e o cinema suportem uma

base narrativa aparentemente comum, no cinema não se “conta” propriamente uma

história:

“Contar” implica uma relação de anterioridade do fato narrado, de que o

narrador se faz porta-voz em um momento posterior [...] Ora, a narrativa

cinematográfica é sempre vivida pelo espectador como um presente virtual.

Num certo sentido, não há passado no cinema: quando as luzes se apagam e o

filme começa a ser projetado, a história começa “de fato” a suceder diante dos

nossos olhos, [...] nós estamos “lá” como testemunhas e tudo é imediato

(MACHADO, 2007, p. 19).

Para Arlindo Machado, uma “instância narradora” só pode existir na estrutura do

filme como uma lacuna, para que o espectador ocupe o seu lugar. “Assim, qualquer que

seja a instituição do sujeito que se põe em circulação no cinema, ela deve poder colocar

o espectador no centro de processo de significação” (2007, p. 20). Evidencia-se, assim, a

importância do receptor na construção da narrativa fílmica.

Ainda conforme Machado (2007), a ideia de um “narrador” não comanda apenas

a orientação da câmera, mas os processos de montagem e sonorização de um filme,

posicionando o espectador numa certa relação com o mundo representado. Ou seja, a

narrativa cinematográfica tem diferentes recursos para a construção do chamado “ponto

de vista” da história. Tais técnicas também podem ser apreendidas na narrativa

jornalística, como na edição de um texto, por exemplo.

4.5.3 Narratividade no jornalismo

As narrativas jornalísticas também são construídas a partir de recursos literários ou

cinematográficos em suas estruturas. Sodré (2009, p. 144) afirma que isso acontece

quando o jornalista se comporta como um narrador e dá cores de aventura romanesca ao

seu relato para captar ainda mais a atenção do leitor.

Para entender como o jornalista se comporta enquanto narrador é necessário

observar as características do narrador apontadas Benjamin (1987) e do narrador

midiático evidenciadas por Sodré (2009) e por Santiago (2012). Para Benjamin (1987, p.

198-199), a principal característica do narrador clássico é a capacidade de sua narrativa

intercambiar experiências com o receptor, de maneira que o ato de narrar advenha da

experiência do narrador.

Para o autor, não há narrativa sem a experiência, então, o narrador

necessariamente precisa experimentar algo para contar uma história. Assim, Benjamin

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(1987) aponta para dois tipos de narradores, fundamentalmente. O narrador como um

viajante que experimentou diferentes realidades e voltou para contar sobre elas e aquele

sujeito experiente que conhece as histórias e as tradições de seu povo e se propõe a narrá-

las.

Já o narrador midiático se distancia da ideia benjaminiana porque não narra sobre

suas experiências, mas colhe informações de terceiros para construir sua narrativa. A

principal diferença defendida por Benjamin entre narrar (narrador benjaminiano) e

informar (narrador midiático) é que os fatos em uma informação já chegam

acompanhados de uma explicação. Já na narrativa, o leitor é livre para interpretar a

história como quiser, e, com isso, o episódio narrado ganha uma amplitude que não existe

na informação (BENJAMIN, 1987, p. 203).

Assim, o narrador midiático é, na verdade, um grande observador da vivência dos

outros. A partir dela, constrói a sua narrativa. “A figura do narrador [midiático] passa a

ser basicamente a de quem se interessa pelo outro (e não por si) e se afirma pelo olhar

que lança ao seu redor, acompanhando seres, fatos e incidentes (e não por um olhar

introspectivo que cata experiências vividas no passado)” (SANTIAGO, 2012, p. 42-44).

Ao passo que o narrador clássico introduz suas experiências na narrativa, o midiático se

afasta (muitas vezes se esconde) da narração para enaltecer a voz da pessoa observada. A

“sabedoria” da narrativa midiática não advém do narrador, e sim da ação daquele que é

observado. A sua essência não deixa de ser a experiência, mas ela não é vivida, e sim

observada.

Se falta à ação representada o respaldo da experiência, esta, por sua vez, passa

a ser vinculada ao olhar. A experiência do olhar. O narrador que olha é a

contradição e a redenção da palavra na era da imagem. Ele olha para que seu

olhar se recubra de palavra, constituindo uma narrativa (SANTIAGO, 2012, p.

51).

Assim, na narrativa midiática, é evidenciada a figura daquele que é observado,

pois é a partir do olhar sobre ele que será construída a narrativa. Mostra-se, então, a figura

da pessoa que será entrevistada para a composição do texto jornalístico. Ou seja, o

narrador midiático enaltece a figura da pessoa, e, para isso, ele se junta ao leitor como

dois observadores da ação.

Na reportagem, há espaço para a ação dramática e descrições de ambientes e

pessoas, características que se assemelham à narrativa literária. Segundo Sodré e Ferrari

(1986), a reportagem é um desdobramento da notícia, mas com foco no “quem” e no “o

quê” entre as perguntas clássicas do jornalismo: quem, o quê, como, quando, onde, por

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quê. Ou seja, muito mais do que alongar a notícia, o essencial da reportagem está no

interesse humano.

Nas condições de sofrimento de um indivíduo, filtradas pelas impressões de

um outro indivíduo, projetavam-se as dificuldades de uma nação em luta pela

vida. A humanização do relato, pois, é tanto maior quanto mais passa pelo

caráter impressionista do narrador. Diretamente ligada à emotividade, a

humanização se acentuará na medida em que o relato for feito por alguém que

não só testemunha a ação, mas também participa dos fatos. O repórter é aquele

“que está presente”, servindo de ponte (e, portanto, diminuindo a distância)

entre o leitor e o acontecimento. Mesmo não sendo feita em primeira pessoa, a

narrativa deverá carregar em seu discurso um tom impressionista que favoreça

essa aproximação (SODRÉ; FERRARI, 1986, p. 15).

A reportagem necessita, então, de características como a predominância da forma

narrativa; a humanização do relato; o texto de natureza impressionista e mantendo ao

mesmo tempo a busca pela objetividade dos fatos narrados. Neste caso, o sentido da

palavra objetividade é sinônimo de precisão: “[R]esultado do uso competente de um

conjunto de técnicas (de observação e captação) que servem aos fundamentos da

linguagem jornalística, para que nela seja preservada a natureza asseverativa, sua

principal característica” (CHAPARRO, 2007, p. 13).

4.5.4 Narratividade na revista piauí

O texto narrativo é a marca da revista piauí. A narratividade do texto determina a

forma como os repórteres apuram os fatos. Ou seja, a oportunidade que eles têm de

experimentar, como afirma Salles, novas formas de reportar sobre os acontecimentos.

Sobre o processo de apuração de um texto narrativo, a repórter Paula Scarpin

explica que “Quando eu saio para a rua para fazer uma apuração, é outra coisa. É o olhar,

é o interesse. O produto é tão diferente, mas o trabalho é mais diferente ainda”

(SCARPIN, 2016).

Na presente pesquisa, os jornalistas foram questionados como seria o momento

da apuração para a construção de um texto narrativo. Todos eles afirmaram que a

apuração precisa ser diferenciada e que o olhar do repórter estará atento para detalhes

que, muitas vezes, são despercebidos pelo jornalista que não escreve textos narrativos.

Tais detalhes auxiliam o repórter na construção da história da reportagem e,

consequentemente, organizam melhor os fatos para o leitor. Até porque, como foi visto

anteriormente, a narrativa tem o poder de organizar a realidade. Porém estes detalhes

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precisam ser checados porque não há espaço para a imprecisão e, muito menos, para a

ficção.

A jornalista Eliane Brum é referência no jornalismo brasileiro quando o assunto é

a construção de reportagens narrativas. Durante suas passagens no jornal Zero Hora, de

Porto Alegre, e na revista Época, de São Paulo, escreveu diversas reportagens premiadas

que ganharam o formato dos livros-reportagem A vida que ninguém vê (2006), que reuniu

reportagens publicadas no jornal gaúcho, e O olho da rua (2008), que contou com

reportagens da revista Época. Sempre quando a repórter é questionada sobre o processo

de construção das suas reportagens, afirma que o trabalho de apuração delas é redobrado

justamente devido aos detalhes que narra. Ela costuma usar o termo “bom jornalismo”

para este tipo de apuração:

O bom jornalismo é aquele que se faz apurando todos os detalhes, atravessando

a rua e mudando de ângulo várias vezes, sempre aberto para o espanto. Aquele

que se ouve um pássaro cantar vai descobrir que pássaro era aquele, se diz que

fazia sol no dia em que aconteceu um crime é porque checou com três sites de

meteorologia diferentes para ter certeza de não errar, além de ouvir várias

pessoas apenas sobre este detalhe específico. É na precisão dos detalhes, na

quantidade de nuances, na reprodução do ritmo e da fala e no respeito pelas

palavras do outro que a reportagem se faz substantiva e comprova sua

qualidade e relevância. Na reportagem, não há milagre, e o talento para

escrever não salva ninguém da preguiça. O cara pode ser um prêmio Nobel da

literatura que, se apurou mal, vai escrever um texto ruim. E, sim, o bom

jornalismo se aplica a tudo o que é da vida (BRUM; ARQUIVO

ELETRÔNICO64, 2014).

Questionado sobre o tipo de jornalismo que a revista piauí apresenta ao leitor, o

repórter Bernardo Esteves prefere denominar como Jornalismo Narrativo:

Jornalismo narrativo é que a gente gosta de fazer. Tem um lema, inspirado no

jornalismo americano que tem esta frase: ‘Show, don’t tell’. Descreva e deixe

o leitor chegar a uma conclusão. Eu narro, não dito regras. É uma tradição

muito legal do jornalismo narrativo. A gente [piauí] não inventou. Tem uma

raiz comum do que muitos chamam de jornalismo literário. Acho o termo um

pouco datado. O termo jornalismo narrativo é mais aberto e mais abrangente.

Utilizar recursos da narração. Contar uma história. Eu estou falando de

construir personagens, construir tensão [...] Você vai conduzindo a narrativa

para um certo ponto. Aí depois você corta e vai para uma cena diferente. Você

pode pensar na estrutura da coisa em larga escala. A possibilidade de alternar

espaço, tempo e personagens. Posso construir os antagonismos. São recursos

interessantes que no jornalismo convencional aparecem bem mais palidamente

(ESTEVES, 2015).

O pensar narrativo antecede a construção do texto em si. O repórter vai para a

pauta com a clareza de que é preciso contar uma história. Bernardo explica que, assim, a

narrativa já vai ganhando formato, em alguns casos, no momento das conversas com as

64 Disponível em <https://jornalismoliterarioblog.wordpress.com/2014/02/11/entrevista-com-eliane-brum-

jornalismo-literario/>. Acesso em 07. Ago. 2018.

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fontes (a apuração) e, principalmente, antes de escrever a reportagem. Sobre isso, o

repórter comenta: “No meu roteiro de entrevista tem sempre uma pergunta assim: ‘Me

conta uma vez que’. Se é um perfil, eu pergunto para o perfilado: ‘Me conta a história do

dia em que você estava naquele lugar’. Sempre isso” (ESTEVES, 2015).

As experimentações do repórter Bernardo Esteves podem ser vistas já no seu

diário de bordo65 da entrevista para a reportagem “O colecionador”. Ou seja, o olhar

diferenciado para a construção da narrativa está, como já foi visto, em todos os momentos

da criação. O repórter inicia as anotações com percepções sobre o entomólogo Vitor

Becker.

Assim, ele escreve: “Na risada, o movimento do queixo é levemente

dessincronizado com o som” (ESTEVES, 2015). Logo em seguida, uma descrição do

vestuário de Becker: “calça social, camisa polo e casaco”. Há ainda descrições do

ambiente na hora da entrevista: “Lá fora, uma bruma branca espaça impedia que

enxergássemos alguns metros adiante”. E: “A mata permeava pela bruma que ganhava

ares meio artísticos”. Todas estas observações não são usuais no jornalismo e podem

trazer um diferencial para o texto. Desta forma, as descrições são uma marca do

jornalismo narrativo e elas servem para auxiliar o autor a contar a história, possibilitando

o leitor uma nova lente para o real ali representado.

Outro exemplo é o início da reportagem “Os seixos da discórdia”, em que

Bernardo narra o momento em que o arqueólogo Antoine Lourdeau encontra os seixos,

fator que originou a produção do artigo cientifico e que motivou a reportagem. O repórter

não estava na cena, mas o momento foi recuperado na fala do pesquisador em uma

conversa com o repórter. Por não estar presente, Bernardo explica que não deu muitos

detalhes da cena que narrou:

Pedi para ele [O arqueólogo francês Antoine Lourdeau] descrever a hora em

que achou a pedra e que ele ganhou o dia. Eu não estava lá. Eu estava com ele

em uma mesa de restaurante. Ele evocando isso. Eu até narro como se ele

estivesse no campo, mas não dou detalhes porque eu não estava lá com ele. Aí

depois eu digo na reportagem que ele estava me contando isso num encontro

urbano (ESTEVES, 2015).

Assim ficou a abertura da reportagem:

O arqueólogo francês Antoine Lourdeau escavava um sítio na Serra da

Capivara, no sul do Piauí, quando se deparou com um seixo grande. Só

conseguia ver uma face da pedra. Tinha tamanho e formato ideais para ser

empunhada pela mão de um adulto. Suspeitou que tivesse sido transformada

para ser usada como ferramenta, talvez para produzir um gume. Pegou um

65 Anexo 4.

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pincel e uma colher de pedreiro para desenterrar o objeto delicadamente. Pouco

a pouco, revelou o outro lado do seixo onde, de fato, havia várias lascas

retiradas. Lourdeau não teve dúvida. “Era um instrumento maravilhoso, um

trabalho muito fino”, contou. “Ganhei o dia.” [...] Num restaurante próximo à

praia de Boa Viagem, no Recife, o francês explicou (ESTEVES, 2014).

Nos rascunhos disponibilizados por ele para a pesquisa, anotações que

antecederam a reportagem “O colecionador”, perceber-se que Bernardo pensou a

construção da reportagem narrativamente. O repórter escreveu títulos numerados que

apresentam situações da história e informações que serão desenvolvidas em cada

parágrafo. Exemplo: 1. VB [Vitor Becker] mostra a coleção aos australianos. Assim,

Bernardo inicia o texto desta forma: “No final de junho, um casal de australianos

acompanhado do filho visitou o entomólogo Vitor Becker em sua propriedade na Serra

Bonita, ao sul da Bahia, numa área preservada da Mata Atlântica” (ESTEVES, 2015, p.

38).

O rascunho de Bernardo66 é formado por vários blocos que sinalizam para uma

sequência dos parágrafos que vão aparecer na reportagem, dando uma ideia de possível

controle sobre o tempo da narrativa e, ao mesmo tempo, um sentido de mobilidade, já que

ele poderá escolher qual o fato que se tornará a primeira cena (abertura) ou a última

(fechamento) da reportagem.

Entretanto, como a narrativa é jornalística e não literária, por exemplo, é ainda

necessário um texto objetivo, no sentindo de clareza. Com isso, o repórter não tem total

liberdade para sequenciar sua história. Como se o leitor de jornal não fosse tão

compreensível como o da literatura para uma narrativa que não requer explicações. O

relato de Bernardo sobre a escolha da abertura da reportagem “O colecionador” mostra,

justamente, esta restrição que o repórter tem ao escrever.

A estrutura desta matéria [O colecionador] ficou menos clara para mim. Tinha

esta cena que era da visita da coleção [de mariposas] que acabou abrindo a

matéria. Que era boa, mas eu não estava muito empolgado com ela. Eu achava

que eu podia abrir com a cena que eu usei no final. Ele falando do Adoniram

Barbosa. Eu não abri porque precisava explicar muita coisa. Precisava explicar

como é que pega mariposa. Tinha muito pré-requisito. Precisava de um

exemplo bom do que eu falei genericamente. A cena é sugestiva, mas depois

eu tenho que explicar um monte de coisa que vai travar. Quem é esse cara.

Quem está fazendo isso. Eu não cheguei a começar o texto com esta versão.

De cara, eu vi que funcionaria melhor de outra forma (ESTEVES, 2015).

Ao observamos a reportagem publicada, a citação de Adoniran Barbosa: “As

mariposas quando chega o frio\Fica dando vorta em vorta da lâmpida pra si isquentá” foi

66 Anexo 5.

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utilizada já no final do texto quando o jornalista já havia, em um parágrafo anterior,

explicado sobre o procedimento de coletar mariposas.

Há, assim, uma preocupação do repórter de como sua narrativa deve ser construída

para o melhor entendimento do leitor. Bernardo afirma que a estrutura do texto é

premeditada para que o repórter, além da informação, possa emitir sensações ao leitor,

como o suspense ou momentos de tensão. Algo que a narratividade permite.

Às vezes, eu antecipo para dar uma recarga na voltagem da reportagem quando

sinto que a narrativa está meio arrastada. Um bloco que estaria mais adiante,

eu antecipo. A hora de montar isso no texto parece muito com a montagem de

um documentário. São blocos que às vezes são intercambiados. Você sente que

tem um momento que está mais agitado, dependendo da matéria, você pode

antecipá-lo no texto. Uso dois ou três dias para pensar a estrutura. Eu não

começo a escrever antes de terminar a apuração. Eu começo a fazer um mapa.

Eu não gosto de escrever sem ter este mapa. Como se eu escrevesse uma frase

para cada parágrafo do texto. Eu vou escrevendo e vou rabiscando para ter uma

ideia de que eu estou progredindo (ESTEVES, 2015).

No texto “O colecionador”, Bernardo explica que a história não lhe possibilitou muitos

momentos de tensão narrativa:

Foi mais difícil criar tensão. O momento de maior tensão foi um cara que

aparece afirmando que ele usou recursos públicos para fazer a coleção dele.

Isso aparecia mais adiante no texto e eu antecipei para dar um choque e para

trazer um pouco de desconforto. Mostrar que não é todo mundo que gosta deste

cara. Olha só o cara super colecionador de mariposas, super ativista ambiental.

Mas tem uma ciumeira acadêmica. Gente que estuda a mesma coisa e fica

mordido (ESTEVES, 2015).

O repórter explica que os recursos narrativos servem para trazer o leitor para a

cena. São detalhes não verbais que revelam tanto ou mais que as declarações. Porém,

Bernardo adverte que esses detalhes devem compor o texto na medida em que fazem o

texto andar para frente. Ou seja, na medida em que revelam e trazem algum elemento

relevante para o entendimento da história.

Preciso ficar de olho. Às vezes, o cara está falando, falando, e o assunto não

está tão interessante, e eu começo a anotar cenas e detalhes do ambiente. Se

ele está vestindo de alguma forma que revele o caráter dele. Se ele está muito

desleixado, deslocado. Detalhes do escritório, da paisagem. Se ele fala muito

pausado. Se ele demora. Detalhes que vão ser mais difíceis resgatar das

gravações, que se você não anotar ali na hora, passam (ESTEVES, 2015).

Já Carol Pires relatou para a presente pesquisa que escreveu a reportagem “O

casamento do ano”, publicada na edição 86, de novembro de 2013, imaginando-a como

um roteiro cinematográfico. Pautada por seu editor para escrever um perfil sobre a criação

do partido político Rede, teve que mudar de foco quando o Tribunal Superior Eleitoral

(TSE) negou o registro do partido.

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Então, no meio da apuração, tive que embicar a reportagem para outro lado. O

resultado foi uma reportagem que eu escrevi imaginando ser um roteiro: o que

aconteceu naquelas horas que ela levou para tomar a decisão de se filiar ao

PSB e ser vice do Campos. Lembrando que ela corria contra o tempo porque

para se candidatar no ano seguinte os políticos devem estar filiados ao partido

pelo qual serão candidatos pelo menos um ano antes do pleito. E entre o dia

que a criação da Rede foi rejeitada e esse prazo faltava pouquíssimo tempo,

uns 3 dias, se me lembro bem (PIRES, 2015).

Pode-se conferir que a reportagem tem características semelhantes ao roteiro com

as descrições da cena e com diálogos:

Marina Silva estava sentada em uma mesa nos fundos do restaurante do seu

hotel, na Vila Olímpia, bairro rico de São Paulo, embrulhada em um xale

vermelho-alaranjado. A manhã estava clara, mas fazia frio na cidade na última

terça-feira de outubro. Marina conversava com o deputado Walter Feldman,

como ela recém-filiado ao PSB, quando seu assessor de imprensa se

aproximou. “O Estadão hoje pôs vocês dois na capa”, avisou. Os dois eram

Marina Silva e o governador de Pernambuco, Eduardo Campos. “Você está de

língua de fora”, completou o assessor.– Humm… de língua pra fora? –

perguntou Marina, espaçando as sílabas. – É simpático… a foto mais famosa

do Einstein é de língua pra fora – contemporizou Feldman. – Bem, agora a

gente tem que ter cuidado até para respirar – ela disse. O assessor Nilson de

Oliveira riu discretamente e disse que Marina havia ficado com cara de marota

na foto. – Mas eu não sou uma pessoa marota – ela rebateu, acentuando o “não”

(PIRES, 2013, ARQUIVO ELETRÔNICO67).

Além da construção do texto em si, a edição também tem marcas da narrativa

cinematográfica até porque um dos editores é o cineasta João Moreira Salles. É o que

narra Bernardo Esteves sobre a edição da reportagem “O colecionador”:

Ele [João Moreira Salles] é um documentarista, antes de ser um jornalista.

Então ele tem muito esta consciência da estrutura. Às vezes temos um papo até

antes de escrever a matéria, na hora de pensar a estrutura. Ou depois. Ele é um

editor que gosta bastante de dar sugestões desse tipo. Exemplo: este bloco que

você colocou na página seis vai funcionar muito melhor se você trouxer para a

página dois. Ou antecipa isso daqui. Ou retarda isso daqui ou desenvolve isso.

[...] Nas mariposas [A reportagem “O colecionador”] foi mais sugerido. A

gente conversava, eu refazia o texto em função do que ele tinha dito.

Rabiscava. Ele leu umas três ou quatro versões [...] Nas conversas com o editor,

você mexe e corta. O texto da mariposa saiu com 25 mil toques a menos. Devo

ter mandado com 70 mil e ele saiu com 45. Mas eu já sabia. (PIRES, 2013,

ARQUIVO ELETRÔNICO).

Não só a edição, mas todo o processo demonstra que o principal direcionador da piauí é

contar uma história, assim como o documentário ou o romance literário.

Para Malu Gaspar, a criação do texto narrativo é a parte literária da produção da

reportagem da piauí:

Vou começar com a melhor cena para que o leitor grude no meu texto e não

largue. É a parte mais literária. Não é da informação mais importante para a

67 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-casamento-do-ano/>. Acesso em 29. Set. 2018.

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menos importante. É a história. Você precisa contar aquela história da melhor

maneira possível. É um propósito diferente da Veja, da Folha. Você quer que

o cara leia até o final e são matérias enormes. Nem sempre a gente consegue,

mas o objetivo é esse. Se você coletar um monte de declaração vai ficar

maçante e talvez não revele o que você precisa revelar (GASPAR, 2016).

Assim, a jornalista faz algo incomum no jornalismo tradicional e inicia a

reportagem “Em águas profundas” com um diálogo de um depoimento da CPI da

Petrobras que desencadeou na Operação Lava Jato.

O senhor acha que vocês estão acima da lei, que podem fazer o que bem

entendem, desde que paguem propina a agentes públicos?” A primeira

pergunta endereçada ao depoente que comparecia à Comissão Parlamentar de

Inquérito da Petrobras na tarde de 27 de maio caiu no vazio. Sentado num dos

cantos da longa mesa da comissão, junto aos dois advogados que o

acompanhavam, o empresário Carlos Eduardo Schahin limitou-se a responder

o que havia ensaiado: “Por orientação dos nossos advogados, eu vou ficar em

silêncio.” Seria assim diante de todas as outras indagações que lhe seriam feitas

(GASPAR, 2015, ARQUIVO ELETRÔNICO68, Grifo nosso).

O diálogo do depoimento tem uma pergunta forte que serviu para chamar a

atenção do leitor para o conteúdo da reportagem, assim tornou-se uma boa abertura para

o texto. Além disso, a passagem mostra que o empresário Schahin silenciou diante da

Comissão, mas quatro semanas depois, como mostra a reportagem, decidiu conceder uma

entrevista para Malu Gaspar e contou sobre aquele momento:

“Eu tenho 70 anos, comecei aos 22. Trabalho feito um condenado, para chegar

ao final da vida e ser chamado para uma CPI da Petrobras...E aqueles ladrões

me chamam de quadrilheiro! Perguntaram se eu não tinha vergonha de chegar

em casa e encarar minha mulher e meus filhos sendo um mau-caráter, um cara

sujo, um sem-vergonha que joga contra o Brasil. E eu ali dizendo que não tinha

nada a declarar. Foi uma humilhação”, disse arregalando os olhos azuis

(GASPAR, 2015, ARQUIVO ELETRÔNICO).

Durante a entrevista para o presente trabalho, Malu Gaspar relata que essa

reportagem foi a sua primeira para a revista piauí e que precisava trazer algo novo para o

cenário do noticiário sobre a operação Lava-Jato. A repórter apostou em uma pauta sobre

os bastidores dos acontecimentos:

A gente conseguiu costurar as histórias de personagens mais ou menos

conhecidos, mas que não estavam muito bem situados no noticiário. Como que

se dá o submundo da política em meio a uma CPI. Eram informações cruas que

mostram como as coisas realmente acontecem. No geral, diante do repórter a

pessoa não vai falar isso. Eu lido com pessoas complicadas. Eu falo para a

pessoa: “Eu quero contar a sua história. Sua história é importante devido ao

contexto político”. O cara vê na entrevista uma utilidade para ele (GASPAR,

2016).

68 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/em-aguas-profundas/>. Acesso em 26. Set. 2018.

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Como foi visto, Malu tem a formação no jornalismo tradicional com passagem

pelos principais veículos do país. Por isso, o olhar diferenciado para um texto narrativo

foi um aprendizado. A partir da produção do seu primeiro livro-reportagem Tudo ou nada

(Record, 2014), aprofundou a sua leitura de outros livros do gênero, o que representou

um aprendizado que usa até hoje na revista piauí. Ela cita os autores Gay Talese e José

Hamilton Ribeiro como grandes referências para a construção de narrativas jornalísticas:

Eu não tinha este olhar. [...] Eu não tinha muito isso de prestar atenção aos

detalhes. Várias vezes o editor da Veja questionava que estava faltando um

pouco de cor nos meus textos. No jornal você não tem tempo. Você nem presta

atenção nisso e essa foi a minha formação. Fiquei seis anos na Folha e fiz

algumas matérias um pouco mais elaboradas. Já na Veja já tinha uma exigência

maior de escrever mais. Eu comecei a aprender a fazer isso. Quando fui

escrever o livro, eu li muito livros de reportagens. Gay Talese e José Hamilton

são mestres em colocar você dentro da cena. Exercício que fez toda a diferença

para eu estar na piauí. E depois quando você chega com calma e sabe que o

seu resultado precisa ser esse, você fica de olho. Eu anoto a cena, não anoto o

que o cara está falando. Isso eu gravo (GASPAR, 2016).

Malu acrescenta que as descrições são essenciais no texto narrativo. Elas ajudam

a contar a história e, muitas vezes, revelam a impressão do repórter sobre a cena. Elas

precisam ser reveladoras porque senão correm o risco de se tornarem decorativas. A

repórter dá como exemplo as descrições usadas no perfil “O delator”.

Na tela, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, explicava aos deputados a

dinâmica da votação. Delcídio mantinha a postura aparentemente relaxada,

mas seu semblante estava tenso. Por vezes o olhar ficava estático, grudado na

tevê, mas ele não parecia prestar atenção. Talvez fosse cansaço, visível pelas

olheiras profundas. Mas também podia ser incredulidade (GASPAR,

ARQUIVO ELETRÔNICO69, 2016).

Sobre a descrição acima, Malu afirma que teve um pouco de interpretação do que

presenciava. Como se tentasse imaginar o que se passava na cabeça do perfilado. Ao

mesmo tempo, por conhecer bem o personagem e a história, Malu se sentiu à vontade

para isso.

Para Carol Pires a apuração do texto narrativo torna-se orgânica para o repórter

com o tempo e com a experiência. Porém, notar este tipo de detalhe pode ser uma

armadilha quando a descrição representar informações irrelevantes para a reportagem.

Não tem que detalhar cada comida posta na mesa a não ser que aquilo fosse

um banquete e o cara só quis comer cream cracker, ou se, ao contrário, o cara

fosse um glutão, um extravagante, e defendesse a causa dos descamisados. A

roupa importa se é excêntrica ou se alguém está overdressed fora de ocasião.

Eu fiz um perfil curto sobre o Dr Rey fazendo campanha de rolex e terno Gucci

na 25 de março. Nesse caso achei que valia dizer. A Marina usa uns colares

indígenas que para ela têm significados metafísicos. Então explica um pouco

da personalidade dela. O Mujica de sandália na cúpula do MERCOSUL, vale.

69 Disponível em <http://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-delator-delcidio-do-amaral/>. Acesso em 07.

Ago. 2018.

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Mas pouco importa se o senador fulano de tal estava com a gravata verde ou

vermelha quando te disse que é a favor ou contra o impeachment do presidente

(PIRES, 2015).

Carol Pires usa procedimentos literários na hora de escrever uma reportagem

narrativa. Ela conta que toma emprestadas dos grandes ficcionistas as técnicas narrativas

para aplicar a informação real que coleta ao longo da apuração. Assim como Santiago

(2012) descreveu o narrador midiático. Além disso, acompanha jornalistas que, assim

como ela, escrevem textos narrativos.

Como fonte de inspiração, eu gosto muito dos livros do García Márquez porque

são escritos com a cabeça dele de repórter. E leio muita crónica (não confundir

com a crônica que conhecemos no Brasil). Crónica é como os latino-

americanos de língua espanhola chamam o jornalismo narrativo. O Juan

Villoro, escritor mexicano, define a crónica como um ornitorrinco, um animal

estranho que mais parece uma junção de distintas partes de vários animais. A

crónica é isso, uma reportagem com pedaços de entrevista crua, com técnica

de literatura, alma de ensaio. [...] Também tento acompanhar todas as revistas

narrativas do continente – Etiqueta Negra no Peru (de onde a Dorrit Harazim

e o Mario Sergio Conti se inspiraram para criar o modelo da piauí), Gatopardo

do México, e várias outras, como a Esquire latino-americana e a Rolling Stone

argentina. Hoje os jornalistas narrativos não devem em nada à ficção. Como

eu escrevo muito sobre política e é um tema árido para escrever em formato

narrativo, também fico bem atenta ao que escreve o Jon Lee Anderson, a

Larissa McFarquar, o Philip Gourevitch e o David Remnick, todos da New

Yorker (PIRES, 2015).

Entender alguns dos procedimentos recorrentes nos relatos dos jornalistas, a partir

da perspectiva de refletir sobre a produção jornalística a partir da prática dos próprios

jornalistas, é compreender também a construção do jornalismo narrativo e todas as suas

implicações para o leitor. A narrativa carrega em si a capacidade de compreensão do

mundo. Mas não só isso. O entendimento das diversas facetas de um mundo em sua

complexidade.

A partir da passibilidade de ter o tempo como aliado e por meio da experimentação

do repórter, o jornalismo pretende encarar o desafio de decodificar esta complexidade.

No próximo capítulo, a partir da rede de criação da agência Lupa, será apresentada uma

nova frente: a checagem. Algo que já foi visto como essencial na reportagem, mas agora

como um produto fim.

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5. A REDE DE CHECAGEM DA AGÊNCIA LUPA

A discussão proposta por este capítulo será sobre a rede de checagem da Agência

Lupa e o combate à desinformação. Será observado também como a imprensa brasileira

reagiu diante do fenômeno da pós-verdade. O tema é contemporâneo e a discussão é

atualizada frequentemente a partir das criações de projetos e iniciativas de combate às

notícias falsas no Brasil e em outros países.

Porém, as iniciativas pioneiras no Brasil foram influenciadas pelo movimento de

checagem de outros países antes mesmo do início do período classificado como o da pós-

verdade. No Brasil, a checagem como produto final surge nas eleições de 2014 com o

objetivo de averiguar as declarações dos presidenciáveis. Só alguns anos depois é que o

movimento ganha força e lugar nas principais redações brasileiras na tentativa de

combater as notícias falsas e a desinformação.

5.1 A checagem nos EUA

A checagem é um dos pilares do jornalismo moderno. As redações costumavam

com mais frequência do que hoje empregar profissionais para a checagem interna das

matérias produzidas por repórteres. Com o crescimento do jornalismo online e o fetiche

da velocidade, o checador perdeu espaço nas redações. Como foi visto no capítulo

anterior, a revista piauí, objeto deste estudo, é um exemplo de veículo que ainda mantém

esta dinâmica da checagem interna.

Segundo Lucas Graves (2016, p. 7), em seu livro Deciding what’s true: the rise

of political fact-checking in American Journalism (2016), as referências aos revisores

aparecem pela primeira vez em periódicos norte-americanos no início do século XIX. Os

departamentos de verificação de fatos surgiram em revistas americanas nos anos de 1920

e 1930. Graves relata ainda que as rotinas de checagem interna respondem ao imperativo

de eliminar a mentira, não chamar a atenção para isso. Diferente das agências de

checagem, objeto deste estudo, que fazem exatamente o oposto, dão destaque para a

mentira.

Com o tempo, após quase o abandono da prática de checagem nas redações,

grupos de jornalistas resgataram o conceito e passaram a usar a checagem como um

produto, ou seja, o diferencial na produção da notícia. Lucas Graves afirma que grupos

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de fact-checking inventaram um novo estilo de notícias políticas, que busca revitalizar a

tradição da “busca pela verdade” no jornalismo, fazendo com que figuras públicas

prestem contas do que dizem. Na prática, os jornalistas passaram a classificar como falsas

ou não as declarações de pessoas públicas, principalmente, políticos.

Se os verificadores de fatos fazem alguma diferença real no discurso público é

frequentemente debatido. Mas seu sucesso na construção de uma nova

instituição jornalística não pode ser negado. Praticamente todas as

organizações nacionais de notícias nos Estados Unidos oferecem algum tipo

de checagem política de fatos hoje (GRAVES, 2016, p. 6).

Ainda segundo o autor, a partir da criação das principais agências de checagem,

dezenas de mídias americanas, sites independentes ou com recursos de um jornal, se

especializaram no novo gênero. A maioria delas tornou-se estabelecida a partir de 2010.

Desde então, as redações em todo o país abraçaram a checagem. As principais redes de

transmissão da televisão americana (ABC, CBS, NBC e CNN, Fox e MSNBC) oferecem

regularmente verificações dos fatos no ar. A Associated The New York Times, uma das

maiores empresas de comunicação dos Estados Unidos e dona do New York Times, Boston

Globe, entre outros, investiu pesadamente no novo gênero e oferece checagem para as

campanhas políticas.

Os novos verificadores de fatos investigam alegações que estão nas notícias e

publicam os resultados como uma nova história. O movimento de checagem

de fatos pede aos repórteres políticos que façam algo que pode ser bastante

inconveniente para eles: desafiar figuras públicas ao divulgar seus erros,

exageros e enganos. Ele pede que eles intervenham em debates políticos

acalorados e decidam quem tem os fatos do lado deles. “Depois de ser treinado

durante anos para não tomar partido, agora você terá que escolher o lado certo”,

instrui um manual de treinamento para jornalistas novatos no gênero

(GRAVES, 2016, p. 8).

Graves (2016, p.28) relata que o primeiro site com jornalistas profissionais

dedicados ao fact-checking nos Estados Unidos foi o FactCheck.org, lançado em 2003.

É uma organização sem fins lucrativos, fundada pelo veterano repórter político Brooks

Jackson e pela acadêmica de comunicações Kathleen Hall Jamieson.

Jackson havia começado a produzir segmentos de checagem de fatos como

correspondente político uma década antes na CNN. [...] Um site foi concebido

como um projeto para a eleição de 2004, mas se mostrou inesperadamente

popular e se tornou um empreendimento anual. [...] Hoje uma equipe editorial

de seis pessoas, assistida por estagiários de graduação, produz cerca de cinco

checagens por semana. Estas muitas vezes investigam múltiplas reclamações

relacionadas a uma controvérsia política atual. [...] Ao contrário de muitos

colegas mais novos, o FactCheck.org não usa um sistema de classificação ou

medidor para avaliar a verdade das alegações políticas, mas suas verificações

descrevem o engano político em linguagem contundente e, muitas vezes,

fornecem vereditos nitidamente redigidos (GRAVES, 2016, p. 29).

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A partir de 2014, o grupo passa a se especializar na checagem do declaratório de

“grandes atores políticos dos EUA”, ou seja, funcionários do governo, candidatos

eleitorais e organizações partidárias. No entanto, também investiga rumores online e

temas relacionados à política. O site não oferece publicidade e dependeu inicialmente do

apoio da Fundação Annenberg, fundação familiar que fornece financiamento e apoio a

organizações sem fins lucrativos nos Estados Unidos e em todo o mundo.

Em 2010, o grupo começou a aceitar doações privadas, porém o site não recebe

dinheiro de corporações, sindicatos ou grupos de lobistas. Como será pontuado adiante,

a transparência na obtenção de recursos é um dos pilares das agências de checagem. O

FactCheck.org possui vários prêmios de jornalismo e já foi indicado para o Prêmio

Pulitzer, a principal honraria do jornalismo norte-americano.

Atualmente, a checagem política de fatos tornou-se um marco na divulgação de

notícias profissionais nos Estados Unidos. A eleição de Donald Trump, em 2016, foi um

impulsionador da checagem e o grupo opera não apenas durante as eleições, investigando

alegações questionáveis onde quer que surjam, de mensagens do Facebook a discursos

no plenário do Congresso.

Cada vez mais, os verificadores de fatos têm suas próprias regras, rotinas e

instruem um manual de treinamento para jornalistas novatos, elaboram suas

próprias conferências e promovem incansavelmente seu estilo de jornalismo.

“A checagem de fatos não é uma novidade. É um lugar para ficar”, declarou o

editor da PolitiFact na primeira cúpula global de “fact-checking de 2014”

(GRAVES, 2016, p. 8).

Criada em 2007, a PolitiFact recebeu o Prêmio Pulitzer por sua cobertura da

campanha presidencial em 2008. A iniciativa é um projeto conjunto do jornal St.

Petersburg Times (atualmente, Tampa Bay Times) e da empresa Congressional

Quarterly, mídia que produz publicações sobre o Congresso americano. Tanto o Times

quanto o PolitiFact operam como veículos de mídia comerciais, apoiados por anúncios.

5.2 Oportunidades diante da crise

Graves (2016, p. 10) relata que os profissionais do fact-checking buscam

reportagens políticas mais assertivas e que esse novo estilo de jornalismo oferece uma

janela para mudanças no ecossistema de notícias, já que, segundo as agências de

checagem, os jornalistas não controlam mais o acesso à esfera pública e perderam a

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capacidade de decidir as novidades. Para os checadores, o trabalho da checagem tem a

função de revitalizar o campo jornalístico.

As organizações estudadas aqui [as agências de checagem] nasceram em um

setor em crise, atormentado por desafios econômicos, tecnológicos e

profissionais, testemunhas e produtos do que tem sido chamado “colapso em

câmera lenta do modelo de trabalho industrial no jornalismo”. [...] Os

verificadores de fatos praticam uma espécie de jornalismo neste momento, mas

também afirmam revitalizar o que é vital para o auto entendimento do campo

(GRAVES, 2016, p. 11).

Mais uma vez, Graves (2016, p. 13) afirma que a iniciativa do fact-checking faz

parte de um grupo alternativo ao mainstream da mídia atual. Porém, a autoridade dos fact-

checking depende, em parte, da rede de meios de comunicação convencional que os citam.

Ação semelhante também acontece com a Agência Lupa, como será visto adiante, já que

ela vende checagem para a mídia tradicional.

Outra questão apresentada por Graves é que os checadores operam em uma zona

difícil entre exatidão e verdade. Principalmente na política, em que a mentira é uma ação

rotineira. Assim, o ato de checar declarações atrai os jornalistas para fora do solo de fatos

concretos e os direciona para um território mais confuso de avaliação, interpretação e

opinião. Daí a importância da checagem para diferenciar os fatos e os valores. No caso, a

importância do fact-checking em uma época de pós-verdade.

O mundo do trabalho jornalístico que emerge aqui oferece poucas evidências

para a existência de fatos incontestáveis ou verdade absoluta. Isso não

significa, no entanto, que o objetivo do jornalismo em separar os fatos dos

valores seja inútil. Pelo contrário, o trabalho dos verificadores de fatos não

partidários atesta todos os dias o valor de um compromisso prático com a

objetividade. [...] Uma investigação justa e honesta nos aproxima do

significado da verdade (GRAVES, 2016, p. 14).

Assim, o fact-checking denota cada vez mais a um gênero de “análise de notícias”,

que envolve um conjunto de regras mais ou menos padronizado para pesquisa e

apresentação. Alguns checadores atuam com as declarações de figuras políticas, enquanto

outros se concentram em erros da imprensa.

5.3 A checagem no Brasil

No Brasil, as agências de checagem ganharam força a partir de 2014, com o

surgimento dos blogs “Preto no Branco”, do jornal O Globo, e “Truco!”, iniciativa da

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Agência Pública70. Eles tinham o mesmo objetivo das agências americanas e da argentina

Chequeado, o primeiro site da América Latina dedicado a checagem dos discursos

políticos. No caso, as brasileiras verificaram as declarações dos candidatos à presidência

do Brasil, em 2014.

Em 2015, o cenário ainda era tímido para a checagem no Brasil, quando surgiram

a agência Lupa, criada pela idealizadora do blog “Preto no Branco”, e a agência Aos

Fatos. Lupa e Aos Fatos fazem parte da rede internacional de checadores, The

International Fact-Checking Network (IFCN), com sede nos Estados Unidos. O grupo

costuma debater os rumos e os desafios da checagem. Segundo a IFCN, existem, hoje em

dia, cerca de 140 plataformas de checagem no mundo associadas à rede.

A partir desta rede, os checadores costumam seguir princípios éticos de

comportamento. São eles: a transparência plena da sua metodologia, ou seja, detalhar para

o público a forma como a checagem é realizada; a transparência plena do seu

financiamento; apartidarismo; comprometimento com a correção, caso haja um erro na

checagem; e transparência na informação das fontes.

5.3.1 Novas iniciativas

Nos últimos anos, novas iniciativas de checagem surgiram no Brasil e no mundo.

Um levantamento71 publicado pelo Duke Reporters’ Lab indica que há 114 times de

checagem atuando em 47 países. Na primeira vez que a entidade fez um censo da

categoria – em abril de 2014 – havia apenas 44 plataformas de checagem ativas em todo

o mundo.

Os Estados Unidos é o país com mais projetos de checagem em funcionamento –

contribuiu para o boom do setor em 2016, ano de eleição presidencial. Atualmente, são

43 plataformas de checagem. A América e a Europa são os continentes com mais

checadores. A maioria deles não tem qualquer vínculo com outros meios de comunicação.

São ONGs ou iniciativas de fact-checking ligadas a universidades.

No Brasil, diante do cenário de desinformação crescente, os veículos da imprensa

tradicional criaram núcleos de checagem ou aderiram a projetos colaborativos de

70 A Agência Pública é uma agência de jornalismo investigativo e independente. Foi fundada em 2011 pelas

repórteres Marina Amaral, Natalia Viana e Tatiana Merlino. Atualmente é dirigida por Marina Amaral e

Natalia Viana. 71 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2017/03/02/checagem-de-fatos-em-alta-114-

plataformas-estao-ativas-em-47-paises/>. Acesso em 23. Ago. 2018.

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checagem. Como foi visto, o objetivo das primeiras agências foi averiguar os discursos

de agentes públicos. Já as novas iniciativas têm uma abordagem diferente que seria checar

as informações que circulam pelas redes sociais (Facebook, Whatsapp e Twitter). Assim,

principalmente no ano de 2018, uma verdadeira onda de checagem se espalhou pelos

principais meios de comunicação brasileiros. O presente trabalho apresentará em seguida

algumas dessas novas iniciativas.

O jornal Estado de São Paulo criou em 2018 o blog “Estadão Verifica”, iniciativa

produzida por jornalistas do Estadão que fazem checagem de fatos e desmonte de boatos.

Assim como o site UOL, que criou o “UOL Confere”, em 2017, com o mesmo objetivo.

Já o jornal Folha de S. Paulo, sob o nome “Folha Informações”, passou a publicar

checagem de informações recebidas de leitores por meio do aplicativo Whatsapp ou por

e-mail.

O portal G1 lançou uma seção de fact-checking chamada “É ou não é”. Trata-se

de uma editoria para analisar falas de políticos e outras personalidades públicas e também

para checar sistematicamente as notícias e informações espalhadas pelas redes sociais e

sites. Porém, a seção foi desativada em 2018 para dar espaço ao projeto “Fato ou Fake”,

da empresa Globo. Além do G1, participam da apuração equipes da Época, O Globo,

Extra, Valor, CBN, GloboNews e TV Globo. A proposta é que jornalistas façam um

monitoramento diário para identificar postagens e conteúdos suspeitos muito

compartilhados nas redes sociais, especialmente o Whatsapp.

Ainda em 2018, o projeto de verificação colaborativo “Comprova” reuniu

jornalistas de 24 veículos de comunicação brasileiros para descobrir e investigar

informações enganosas, inventadas e falsas durante a campanha presidencial de 2018.

Liderada pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e pelo projeto

americano First Draft News da Universidade de Harvard, a ação tem o objetivo de

combater a desinformação no ambiente digital.

As redações que fazem parte desta coalizão são: AFP, Band News, Band TV,

Canal Futura, Correio do Povo, Exame, Folha de S.Paulo, GaúchaZH, Gazeta Online,

Gazeta do Povo, Jornal do Commercio, Metro Brasil, Nexo Jornal, Nova Escola, NSC

Comunicação, O Estado de S. Paulo, O Povo, Poder360, Rádio Band News FM, Rádio

Bandeirantes, revista Piauí, SBT, UOL e Veja.

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O “Comprova” vem atuando antes mesmo das eleições de 2018. Os internautas

podem enviar informações sobre as eleições para serem checadas pelo grupo. As

checagens são publicadas nas redes sociais e na página do projeto72.

Pode-se afirmar que é positivo o fato de os principais veículos da imprensa

tradicional estarem preocupados com a checagem e realizarem mobilizações para isso,

principalmente em um ano de disputa eleitoral em um país polarizado politicamente como

o Brasil. Mas com as mesmas características do jornalismo que busca objetividade em

um campo marcado pela subjetividade e tendências ideológicas.

Porém, é interessante perceber que não são exigidos das empresas de mídia

tradicional princípios éticos de comportamento estabelecidos por redes internacionais de

checagem, como a transparência plena do seu financiamento e o apartidarismo, por

exemplo. Diferentemente das agências independentes como a Lupa e o Aos Fatos que

fazem parte da rede internacional de checadores, The International Fact-Checking

Network (IFCN) e precisam cumprir essas regras.

5.3.2 A checagem e as redes sociais

Como foi observado anteriormente, as notícias falsas têm como principal via de

compartilhamento as redes sociais. O Facebook é considerado um dos principais vetores

de notícias falsas da internet. A plataforma, então, buscou, nos últimos anos, atuar para

combater as chamadas fake news.

Em 2016, o Facebook iniciou uma parceria com agências de checagem de fatos

de 14 países, inclusive o Brasil. Aqui, a colaboração foi com as agências Lupa e Aos

Fatos, por elas fazerem parte da rede internacional de checadores, The International Fact-

Checking Network (IFCN). A partir de 2018, as duas agências têm acesso às notícias

denunciadas como falsas no ambiente do Facebook e foram encarregadas de fazerem a

checagem da veracidade do conteúdo. Modelo semelhante ao que a plataforma adota nos

Estados Unidos, onde garante ter diminuído em 80% a distribuição de notícias falsas.

Segundo o Facebook, o objetivo da iniciativa é que as páginas que publicam

quantidades significativas de fake news tenham seu alcance reduzido. Os administradores

dessas páginas ou autores de postagens consideradas falsas serão notificados da

verificação e do resultado da análise de autenticidade de conteúdo.

72 Disponível em <https://projetocomprova.com.br/>.

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Porém, o projeto do Facebook sofreu rejeição logo quando começou a funcionar

no Brasil. Grupos que se autodenominam liberais ou grupos de direita promoveram

ataques contra os profissionais das agências Lupa e Aos Fatos. Os profissionais foram

acusados de serem incapazes de fazer uma checagem isenta por serem “esquerdistas”. Ou

seja, apresentarem um viés político da esquerda.

Alguns jornalistas foram agredidos nas redes sociais, receberam ameaças e

intimidações, tiveram a vida pessoal e até mesmo informações sobre familiares expostas

no mundo virtual. O Facebook respondeu às críticas e se manifestou em defesa dos

profissionais da checagem:

O Facebook é um espaço para todas as ideias, mas não para a disseminação de

notícias falsas. Nossos parceiros são certificados pela International Fact-

Checking Network (IFCN), uma organização apartidária, cujo selo garante que

os verificadores estão comprometidos com a imparcialidade e a transparência

de suas fontes de informação e metodologia de checagem (FACEBOOK,

ARQUIVO ELETRÔNICO73, 2018)

No mesmo ano, a plataforma anunciou em comunicado que desativou 196 páginas

e 87 contas acusadas de fazer parte de uma rede digital de desinformação, no Brasil.

Segundo o Facebook, a iniciativa é parte dos esforços para reprimir perfis enganosos antes

das eleições de outubro de 2018. O Movimento Brasil Livre (MBL), um dos principais

vetores de disseminação de notícias falsas (como já foi visto neste trabalho) foi um dos

principais afetados pela medida e classificou como censura a atitude da plataforma.

Grupos de esquerda também criticaram a atitude do Facebook e das agências de

checagem que retiram do ar páginas com conteúdos falsos. O site brasil247, portal que se

denomina progressista, também teve seu conteúdo classificado como “falso” e foi

advertido pelo Facebook por isso. Como defesa, produziu uma matéria com o título “O

submundo das ‘agências de checagem’: dinheiro dos bancos e conflito de interesses74”,

em que acusa a agência Lupa. Segundo o texto, ela “está integrada aos interesses de

grandes grupos financeiros\mineradores como pertence à mesma empresa de um veículo

de comunicação que deveria acompanhar!”. A referência é ao investimento na agência

por parte de João Moreira Salles e à hospedagem do site da Lupa na página do grupo

UOL-Folha. Em entrevista, a criadora da Agência Lupa, Cristina Tardáguila, explica que

73 Disponível em <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2018/06/19/rejeicao-a-

checagem-de-fatos-no-brasil-surpreende-facebook.htm>. Acesso em 23. Ago. 2018.

74 Disponível em <https://www.brasil247.com/pt/247/midiatech/358354/O-submundo-das-

%E2%80%98ag%C3%AAncias-de-checagem%E2%80%99-dinheiro-dos-bancos-e-conflito-de-

interesses.htm> Acesso em 27. Ago. 2018.

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não há relação entre a agência Lupa e o portal de notícias e o jornal e a transparência

financeira da agência, um dos pré-requisitos do IFCN, será detalhado mais adiante.

Esse é um ponto muito importante de ser explicado. A Lupa é uma empresa da

qual eu sou dona, meu marido tem uma parte muito pequena da agência.

Estamos no site da piauí por uma questão financeira. No momento de lançar a

Lupa era muito custoso construir um site do zero. Como eu trabalhei cinco

anos na piauí antes do O Globo - ajudei a montar o site da piauí -, perguntei se

não poderia ficar encubada no site da revista por um tempo. A Lupa fica

encubada no site da piauí apesar de serem empresas, redações e estruturas

administrativas diferentes. Não tenho ideia do que a piauí está fazendo e a piauí

não tem ideia do que eu estou fazendo. [...] Eu alugo o espaço dentro do site

da piauí. Por conta disso, a Agência Lupa está dentro do site da Folha e do

UOL, mesmo sendo empresas completamente diferentes, com redações

diferentes. Não há qualquer elo. É apenas um espaço por economia de recurso

(TARDÁGUILA, 2018, ARQUIVO ELETRÔNICO).75

Sobre a acusação de censura, Tardáguila afirmou que a medida do Facebook foi

uma espécie de penalização para os distribuidores de notícias falsas:

O que é importantíssimo destacar é que não existe nenhum tipo de censura ou

retirada de conteúdo identificado como falso. O que existe é uma espécie de

penalização com a redução de entrega de conteúdos considerados falsos no

Facebook. O que para quem efetivamente defende ou luta contra a

desinformação deveria receber como algo bem visto, porque de nada serve um

conteúdo de má qualidade atrapalhando o seu feed de notícias

(TARDÁGUILA, 2018, ARQUIVO ELETRÔNICO).

Como foi visto, depois da ação do Facebook, as agências de checagem receberam

críticas de grupos da direita e da esquerda, o que reafirma o apartidarismo da checagem.

O Facebook lançou ainda o curso online e gratuito contra desinformação e notícia

falsa. O chamado “Vaza, Falsiane” é voltado principalmente para jovens e docentes da

educação básica e de cursos universitários, mas está aberto ao público em geral. O projeto

tem o objetivo de ampliar as ferramentas de que as pessoas dispõem a fim de analisar de

forma consciente as informações que consomem e também tem o objetivo de

conscientizar sobre a responsabilidade ao publicar e compartilhar conteúdos. “Vaza,

Falsiane” é uma iniciativa dos professores de jornalismo Ivan Paganotti (Fiam-Faam),

Leornardo Sakamoto (PUC-SP) e Rodrigo Ratier (Faculdade Casper Líbero). O curso

reúne 11 vídeos, 16 testes online, quatro galerias de imagens e um farto material didático.

A plataforma Facebook, em uma parceria com a agência Aos Fatos, investiu ainda

no primeiro “robô checador” que usa inteligência artificial para o Messenger (aplicativo

de mensagens instantâneas do Facebook) chamado “Fátima76”. Assim, quando o usuário

75 Disponível em <https://www.jornalopcao.com.br/entrevistas/nao-temos-como-monitorar-a-proliferacao-

de-informacao-falsa-que-circula-pelo-whatsapp-127684/>. Acesso em 24. Ago. 2018. 76 Disponível em <https://aosfatos.org/noticias/aos-fatos-e-facebook-unem-se-para-desenvolver-robo-

checadora/>. Acesso em 23. Ago.2018.

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entra na página do Aos Fatos no Facebook pode usar o Messenger para conversar com o

robô Fátima para auxiliá-lo no processo de verificação de conteúdo online. A seguinte

mensagem aparece para o usuário: Olá! Eu sou a Fátima, a robô checadora do Aos Fatos.

Estou aqui para ajudar. Você quer checar uma notícia, um boato do WhatsApp, um vídeo

ou uma imagem?

De maneira diferente, o robô também atende aos usuários da rede social Twitter.

Quando o usuário compartilha uma notícia falsa, o robô Fátima responde que o conteúdo

é falso.

Em seguida, o Facebook realizou parceria com a Agência Lupa e criou o “projeto

Lupe!77”, o também robô checador capaz de ajudar eleitores brasileiros a checar

informações em tempo real na página da Lupa no Facebook. No “Lupe!”, o usuário

poderá fazer buscas de checagens por candidatos (à Presidência e governos de SP, RJ e

DF), por partidos, temas e por determinados períodos de tempo. Na busca por assuntos,

deverá digitar uma palavra-chave e aguardar que o bot confronte esse termo com todo o

acervo de checagens da Lupa.

Até o final desta pesquisa, o aplicativo Whatsapp apresentou medidas tímidas de

combate à desinformação, que teria o sentido de ajudar os usuários a identificar conteúdo

suspeito. Uma delas é que, agora, sempre que alguém encaminha alguma foto, link ou

mensagem, o receptor desse conteúdo é avisado de que aquilo foi encaminhado e não foi

originalmente digitado pela pessoa que enviou. O objetivo é fazer com que a pessoa

desconfie daquilo que recebeu.

Outra mudança anunciada pelo aplicativo foi limitar o encaminhamento de

mensagens aos usuários. Assim, a restrição aplicada determina que uma mesma

mensagem somente poderá ser compartilhada a no máximo cinco chats por vez. Até então,

os usuários tinham a possibilidade de encaminhar mensagens a 250 contatos

simultaneamente.

A falta de medidas assertivas do Whatsapp é problemática se considerarmos que

as agências de checagem não conseguem monitorar o aplicativo. Em entrevista, a criadora

da Agência Lupa, Cristina Tardáguila, afirmou que sua equipe não consegue monitorar

as informações vindas do aplicativo e isso é um problema grave:

Esse é o maior desafio, anos luz à frente dos outros problemas que envolvem

a divulgação e compartilhamento de informação falsa. Temos, na redação da

Lupa, algumas ferramentas, pelas quais conseguimos monitorar o que está se

77 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2018/08/15/lupe-chatbot-assistente-facebook/>.

Acesso em 23. Ago. 2018.

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destacando em termos de popularidade no Twitter, no Facebook e no Google.

São ferramentas que conseguem monitorar a velocidade do avanço de uma

mentira. No WhatsApp não existe essa possibilidade. Não temos como

monitorar a proliferação de uma informação falsa, de um áudio falso ou de

qualquer conteúdo que circula pelo WhatsApp. Isso é um problema enorme!

Nós debatemos muito sobre o Twitter, Facebook e Google, quando na verdade

o maior problema nas eleições deste ano no Brasil será o WhatsApp. [...]

Vamos ver se conseguiremos que o WhatsApp colabore de alguma forma

(TARDÁGUILA, ARQUIVO ELETRÔNICO78, 2018).

Apesar de medidas tímidas, o Whatsapp anunciou, em 2018, uma iniciativa

interessante para combater as notícias falsas. A empresa vai oferecer bolsas de estudos

para que pesquisadores se dediquem a entender o fenômeno. A princípio a empresa vai

oferecer 20 bolsas no valor de US$ 50 mil. A partir das conclusões das pesquisas, o

Whatsapp pretende testar novos recursos para minimizar a circulação de boatos na

plataforma. Até o final do presente trabalho, a plataforma não havia anunciado as

pesquisas em questão.

Já a rede social Twitter divulgou, em 2018, medidas para evitar fake news nas

eleições do mesmo ano. Um dos focos foi a verificação de contas de candidatos e partidos,

de modo a coibir perfis falsos que possam divulgar informações e causar confusão nos

eleitores. Além dessa verificação, a própria rede social organizou sessões de perguntas e

respostas com os candidatos, com o intuito de facilitar o contato direto entre os candidatos

e seus eleitores.

5.4 A agência Lupa

A agência Lupa se autodenomina a primeira agência de fact-checking do Brasil.

A Lupa é uma agência de notícias. Vende suas reportagens (checagens) para publicação

em outros meios de comunicação. Repete o que fazem agências internacionais como

Reuters, AFP, EFE ou Bloomberg, por exemplo.

Em dois anos de trabalho, a agência publicou mais de 700 postagens e, nelas,

analisou o grau de veracidade de mais de 2.100 frases. Até agosto de 2018, havia feito

mais de 80 colunas semanais no jornal Folha de S.Paulo e comentado na rádio CBN –

78 Disponível em <https://www.jornalopcao.com.br/entrevistas/nao-temos-como-monitorar-a-proliferacao-

de-informacao-falsa-que-circula-pelo-whatsapp-127684/>. Acesso em 24. Ago. 2018.

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100

em entradas ao vivo – nada menos do que 500 afirmações feitas por políticos e

poderosos.

O jornal Folha de S.Paulo, a revista Época e os portais Yahoo! e Metrópoles, do

Distrito Federal, são clientes fixos da Lupa e têm direito a publicar ao menos uma coluna

com material inédito por semana. Além deles, nos últimos dois anos, a agência levou seu

trabalho á rádio CBN e a uma série de jornais: Correio (BA), Gazeta do Povo (PR), O

Liberal (SP), A Crítica (AM), Correio Braziliense (DF) e O Tempo (MG). Além disso, a

checagem foi testada em diferentes formatos para o site Catraca Livre e para o canal de

TV GloboNews.

Em 2015, a Lupa começou com quatro pessoas. Hoje tem 15 funcionários. A

agência disponibiliza as checagens no site e nas redes sociais Facebook e Twitter. Além

de coluna semanal na Folha de S. Paulo, na rádio CBN, na revista Época, no site

Metrópoles, em Brasília (DF), fora algumas colaborações esporádicas em outros meios.

A sua história é tão recente quanto o uso do termo checagem no jornalismo

brasileiro. A Lupa surgiu após o bem-sucedido blog “Preto no Branco”, no site do jornal

O Globo. A jornalista Cristina Tardáguila, criadora da agência, foi quem sugeriu a ideia

para o jornal carioca do blog “Preto no Branco”, que averiguou os discursos políticos dos

candidatos à presidência do país, em 2014.

Tardáguila conheceu o trabalho de checagem em 2013, quando era subeditora de

política do O Globo. O primeiro contato foi em um evento da Fundação Gabriel García

Márquez79, em que o site de checagem argentino Chequeado disputou o prêmio García

Márquez de Jornalismo, na categoria de inovação, com o trabalho de checagem do

discurso da ex-presidente Cristina Kirchner nas eleições argentinas.

Eu lembro que na plateia fiquei muito emocionada com a apresentação do

projeto no prêmio. Eu pensei que o Brasil passaria por uma eleição presidencial

em 2014 e vivíamos na mesma polarização que a Argentina estava. O Brasil

precisa de uma negócio desse. Sugeri para O Globo que a gente fizesse um

blog idêntico ao Chequeado para ser aplicado nas eleições presidenciais de

2014. E esse é o “Preto no Branco”. Ele efetivamente existiu de agosto a

outubro. É o primeiro blog de fact-checking do Brasil (TARDÁGUILA, 2016).

O “Preto no Branco” representou um diferencial na cobertura do O Globo nas

eleições de 2014. Segundo Tardáguila, o blog realizou 370 checagens nos quase noventa

dias de campanha presidencial. O resultado desta apuração mostrou que mais de 50% das

79 A Fundação Gabriel García Márquez para o Novo Jornalismo Ibero-Americano (FNPI) incentiva novas

práticas jornalísticas sob a inspiração dos ideais do escritor e jornalista Gabriel García Márquez. Disponível

em <http://www.fnpi.org/>. Acesso em 07. fev. 2017.

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101

informações divulgadas pelos candidatos tinham problemas. Elas foram consideradas

exageradas, insustentáveis e até falsas. Para divulgar esses dados, o blog usou as redes

sociais do jornal O Globo, Twitter e Facebook.

No final das eleições, o pessoal das mídias sociais do O Globo me procurou

com o relatório de como é que tinha sido a performance. Eles estavam muito

chocados e disseram que na história da conta (e é uma conta que divulga todas

as histórias do país) dos 20 twitters mais compartilhados e favoritados, 15 eram

do “Preto no Branco” [...] Ali eu tive certeza absoluta de que o “Preto no

Branco” foi um conteúdo muito importante nas eleições [...] Eu juntei a

sensação que tive que era um produto que despertava a curiosidade do grande

público com o fato de que os pequenos jornais tinham o interesse de comprar

isso. Aí começa a nascer a ideia da Lupa (TARDÁGUILA, 2016).

A experiência de Tardáguila é extensa. Além do jornal O Globo, a jornalista

trabalhou na agência de notícia espanhola (EFE); publicou o livro-reportagem A arte do

descaso (2016), uma narrativa jornalística sobre o roubo de obras de arte do Museu da

Chácara do Céu, no Rio de Janeiro, e atuou, durante cinco anos, na revista piauí.

Foi a partir de uma conversa informal com o publisher da revista, João Moreira

Salles, que surgiu a parceria entre a piauí e a jornalista para a criação da agência Lupa.

Cristina já havia proposto ao jornal O Globo a ampliação do blog “Preto no Branco”. A

ideia era passar a checar outras editorias, além da de política.

No final de 2014, teve um encontro de checadores na Argentina. Eu fui para lá

achando que eu estava “abafando” com a cobertura política do O Globo. E vi

que os caras estavam anos luz na frente. Eles não fazem só política, fazem

saúde, fazem cidades, ciência. Eu voltei para o Brasil muito encantada com o

que vi na América Latina e nos EUA (TARDÁGUILA, 2016).

Com a crise econômica, o jornal carioca não investiu na ideia de Tardáguila. O

projeto de uma agência de checagem estava na gaveta até a conversa com João Moreira

Salles:

O João Moreira Salles me perguntou o que tinha acontecido com o “Preto no

Branco”. Ele falou que era um produto maravilhoso que tinha dado certo. Aí

eu tive um estalo e falei “vamos fazer na piauí”. Ele respondeu: “Não! A piauí

é diferente disso. A piauí tem apurações que demoram três meses, com um

texto de 50 mil toques. E você é imediatez, é o Twitter”. Eu falei que seria uma

agência, não a piauí, mas é algo correlato à piauí. A gente burilou durante

vários meses a ideia de uma agência. Aí nasce a Lupa (TARDÁGUILA, 2016).

A recém-criada agência é independente da revista piauí. Segundo Tardáguila, não

existe interferência editorial, administrativa ou jurídica nas decisões da Lupa. O que é em

comum com a revista é o financiamento de Moreira Salles e o publicador (o site).

Além da editora, Cristina Tardáguila, a equipe da Lupa é formada pelo repórter

Chico Marés, que trabalhou na Gazeta do Povo e é mestre em Jornalismo Interativo pela

City, University of London; pela jornalista Clara Becker, que mora em Buenos Aires e é

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coautora dos livros The Football Crónicas e Los Malos; pela economista Claudia Strack,

responsável pelo setor administrativo e financeiro da agência; pelo gerente de marketing

Douglas Silveira; pela jornalista Flávia Campuzano, que possui MBA em Marketing pela

FGV e é responsável pela área de novos negócios; pelo repórter Leandro Resende, que

trabalhou no Vasco da Gama, no jornal O Dia e na rádio CBN; pela jornalista Natalia

Leal, que possui MBA em gestão de pessoas pela FGV e foi repórter e editora no jornal

Zero Hora e chefe de reportagem no Diário Catarinense; a estagiária Nathália Afonso;

Pauline Mendel que é responsável pelas mídias sociais; Rafhael Kapa, que é jornalista e

professor, foi repórter da Lupa entre 2015 e 2016 e hoje ministra as oficinas de checagem

no projeto Lupa Educação; Plínio Lopes, que é repórter e já trabalhou na rádio BandNews

FM e tem experiência em jornalismo de dados; Carolina Lima, que é analista de mídias

sociais e Fernanda da Escóssia, que é ombudsman (ouvidora) da Lupa durante as eleições

de 2018 e trabalhou em O Povo, Folha de S. Paulo e O Globo e leciona no IBMEC Rio.

5.4.1 Lupa Educação

Com o objetivo de popularizar a verificação de fatos, a agência Lupa criou, em

2017, o programa Lupa Educação. Trata-se de uma iniciativa que tem por objetivo

capacitar pessoas no uso das técnicas de checagem. “Não importa a idade e a formação

acadêmica. Qualquer um pode ser um checador”, afirma o site do projeto.

Segundo a agência Lupa, o programa consiste em palestras e oficinas realizadas

pelos jornalistas da Lupa fora da redação, em empresas e instituições de ensino situadas

no Rio de Janeiro e em outros estados. Quem participa desses encontros conhece os

bastidores da produção da Lupa e pode aprender a checar conteúdos específicos.

O programa Lupa Educação sai do papel depois de seis meses de estudo e

planejamento estratégico e vem se alinhar com perfeição ao movimento

internacional de capacitação e treinamento em checagem levado a cabo por

diversas entidades internacionais. Entre elas, destacam-se a International Fact-

Checking Network (IFCN), que reúne mais de 100 plataformas de checagem

em todo o mundo – diversas delas com braços de treinamento, e os projetos

First Draft News e Google Trust Project, que envolvem meios de

comunicação, universidades e empresas digitais interessados em elevar a

credibilidade em meio digital (AGÊNCIA LUPA, ARQUIVO

ELETRÔNICO80, 2017).

80 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2017/03/28/lupa-educacao/>. Acesso em 24. Ago.

2018.

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103

O projeto Lupa Educação já realizou diversas palestras pelo país. Ofereceu

oficinas em instituições de ensino como a Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ), o Ibmec, a Facha, o IESB e a PUC-Rio.

Além de colégios de ensino médio e faculdades, o Lupa Educação abrange o

treinamento em redações de veículos de comunicação. O projeto já passou pela Veja.com

e a Rede Globo. Assim, há um treinamento tanto para profissionais da área quanto para

não-jornalistas.

5.4.2 Aprimoramento do debate público

O diretor de redação da revista piauí, Fernando Barros e Silva, é um dos

conselheiros consultivos da Lupa. Em um depoimento sobre a agência, Fernando lembra

que a checagem é parte de qualquer boa reportagem e que todo repórter é ou deveria ser

também um checador. Entretanto, a atenção a esse aspecto na atividade jornalística

sempre foi insuficiente:

Num momento em que a própria reportagem se vê atrofiada, a ideia de que a

checagem precisa ser minuciosa, exaustiva e, mais do que isso, que deve estar

introjetada na cultura e nas engrenagens das redações - tende a se transformar

em mais um item decorativo dos manuais de boas intenções da profissão. É por

isso que eu vejo na Lupa uma iniciativa muito oportuna. Não apenas para

revelar as meias verdades do poder, em sentido amplo, mas como um

instrumento de inspeção do próprio jornalismo e das nossas insuficiências

crônicas (BARROS E SILVA, ARQUIVO ELETRÔNICO)81

Um dos principais objetivos da agência de checagem é contribuir para aprimorar

o debate público. Desta forma, tem atuado nas principais discussões do país. As

abordagens são em temas variados.

Geralmente, são as pautas do cotidiano, política, saúde, comportamento, etc. Com

a expansão da forma de comunicar da população, reflexo do surgimento das redes sociais,

o debate está em todos os lugares e em todos os assuntos, o que remete à discussão da

pós-verdade e das notícias falsas.

A Lupa enxerga isso e pretende participar deste debate com a checagem das

informações. “Focar na boa informação que pode contribuir para melhorar a vida do

cidadão. Consequentemente, você melhora a qualidade do debate. O debate fica menos

burro e menos apaixonado [...] A checagem vem para contribuir sempre”

(TARDÁGUILA, 2016).

81 Disponível em: <http://piaui.folha.uol.com.br/lupa/nossos-apoiadores/. Acesso em Dez. 2016.

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5.5 A rede de criação da Agência Lupa

Após a apresentação da Agência Lupa, o presente trabalho analisará a rede de

criação e os respectivos nós (Salles). Como já citado, a Agência Lupa faz parte da rede

internacional de checadores, The International Fact-Checking Network (IFCN) e segue

princípios éticos de comportamento. Os nós da rede de criação são, justamente, essas

diretrizes porque elas são o diferencial e são essenciais para uma informação de

qualidade. O primeiro nó analisado é a transparência, que inclui a metodologia da

checagem, das fontes, do financiamento da empresa e o apartidarismo. O segundo nó é o

erro no processo de produção da checagem e sua correção.

5.6 Nó 3: A transparência

5.6.1. A transparência da metodologia

A transparência da metodologia da prática jornalística pode servir para combater

as notícias falsas. Foi o que aconteceu na Universidade de Harvard que desenvolveu o

projeto Frontline82, uma ação que visa à transparência da investigação jornalística,

fornecendo acesso ao material fonte original. Assim, a iniciativa vem disponibilizando

online as transcrições completas de suas entrevistas e os vídeos sem edição. A equipe usa

o software de código aberto para tornar os vídeos pesquisáveis por texto, para que os

espectadores possam encontrar facilmente imagens sobre assuntos específicos.

A ação americana é semelhante á uma das principais diretrizes das agências de

checagem, a transparência da metodologia. A metodologia de checagem da agência pode

se acessada no site da Lupa83, no item “como fazemos nossa checagem”. Ou seja, o

público pode entender a forma como a checagem é realizada. A Lupa segue uma

metodologia de trabalho própria, desenvolvida com base nas plataformas de fact-checking

implantadas na argentina Chequeado e na americana Politifact.

Nós somos totalmente transparentes com relação à nossa metodologia de

trabalho, à nossa fonte de financiamento, com relação às fontes que usamos

nas nossas reportagens. Temos e aplicamos a nossa política de correção pública

sempre que identificamos um eventual erro. E somos auditados com relação ao

nosso apartidarismo. Todos os anos, temos que mandar um monte de

82 Disponível em <https://niemanreports.org/articles/can-extreme-transparency-fight-fake-news-and-

create-more-trust-with-readers/>. Acesso em 02. Out. 2018. 83 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2015/10/15/como-fazemos-nossas-checagens/>.

Acesso em 24. Ago.2018.

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105

documento para a IFCN para provar que nós executamos esses cinco pontos.

Com isso, recebemos um selo de membro verificado da IFCN. É um selo verde

que aparece no site da Lupa para atestar a qualidade do nosso produto

(TARDÁGUILA, 2018, ARQUIVO ELETRÔNICO84)

Conforme informado no site da agência, a metodologia da Lupa tem oito passos e

começa com a observação diária do que é dito por políticos, líderes sociais e celebridades,

em jornais, revistas, rádios, programas de TV e na internet. Suas afirmações são a matéria-

prima das checagens produzidas pela agência.

Ao selecionar a declaração em que pretende trabalhar, a equipe da Lupa adota três

critérios de relevância. Dá preferência a afirmações feitas por personalidades de destaque

nacional, a assuntos de interesse público (que afetem o maior número de pessoas possível)

e/ou que tenham ganhado destaque na imprensa ou na internet recentemente. Preocupa-

se com “quem fala”, “o que fala” e “que barulho faz”.

5.6.2 A checagem de opiniões

A Lupa afirma em sua metodologia que não checa opiniões, não faz previsões de

futuro, não aponta tendências, não avalia conceitos amplos. Mas, o que é observado no

cenário brasileiro é justamente a opinião (ou posicionamento político ou ideológico) que

se confunde com o fato, a chamada pós-verdade. Essa realidade se torna um desafio para

as agências de checagem.

Ao mesmo tempo em que se afirma que não se checa opinião, as agências não se

abstêm de verificar declarações compartilhadas na internet carregadas de opinião. Porém,

mesmo checando tais declarações polêmicas, que em muitos casos são pedidos dos

leitores, a Lupa reafirma a sua metodologia de não checar opinião e afirma que verifica

apenas declarações passíveis de checagem. Um exemplo foi a checagem “Comitê da ONU

e Lula: imprecisões e verdades, no mar de opiniões ‘inchecáveis85’”, em que averiguou

declarações de pessoas ou grupos públicos sobre o assunto. Já no início do texto afirma

que a agência analisou as declarações passíveis de checagem:

A metodologia de checagem da Lupa é clara: não são “checáveis” frases que

contenham opiniões, conceitos amplos e/ou previsões de futuro. Desde a

última sexta-feira (17), quando o Comitê de Direitos Humanos da Organização

das Nações Unidas (ONU) emitiu um comunicado sobre o ex-presidente Luiz

84 Disponível em <https://www.jornalopcao.com.br/entrevistas/nao-temos-como-monitorar-a-proliferacao-

de-informacao-falsa-que-circula-pelo-whatsapp-127684/>. Acesso em 27. Ago. 2018. 85 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2018/08/23/lula-onu-comite/>. Acesso em 24. Ago.

2018.

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Inácio Lula da Silva, muito do que se falou sobre o assunto se encaixava em

ao menos um desses quesitos – impossibilitando a verificação. Para além disso,

abaixo você encontra uma série de frases que a Lupa avaliou e, sob os

parâmetros da metodologia da agência, considerou passíveis de checagem

(AGÊNCIA LUPA, ARQUIVO ELETRÔNICO, 2018).

Assim, foi classificado como “Falso” o que declarou o Movimento Democracia

Participativo no Facebook que afirmava: “Um dos membros desse comitê [de Direitos

Humanos da ONU] é um brasileiro petista, Paulo Sérgio Pinheiro”. A conclusão da

checagem afirma que:

O diplomata Paulo Sérgio Pinheiro não é membro do Comitê de Direitos

Humanos da ONU. O comitê tem 18 membros, nenhum deles é brasileiro.

Desde sua criação, em 1977, nenhum brasileiro foi eleito para o órgão. O nome

de Pinheiro tampouco consta na atual relação de filiados do PT. Pinheiro tem

uma longa carreira em instituições nacionais e internacionais. Atualmente, é

presidente da comissão independente internacional de investigação sobre a

República Árabe da Síria, ligada ao Conselho de Direitos Humanos ONU –

que não tem ligação com o Comitê de Direitos Humanos da ONU. Antes disso,

ele foi Secretário de Estado de Direitos Humanos entre 2001 e 2002, integrante

da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados

Americanos (OEA) entre 2004 e 2011, como relator dos direitos das crianças,

e coordenador da Comissão Nacional da Verdade. Apesar de não ser membro

do comitê, Pinheiro concedeu entrevista à Folha de S. Paulo na qual diz que o

Brasil é obrigado a seguir suas recomendações. “O Brasil ratificou tratado

internacional, tem que cumprir, não tem conversa. Esse governo que está aí

poderia ter denunciado a ratificação, mas não fez”, disse. Ele qualificou o

processo contra Lula como um “coquetel de ilegalidades”. A Lupa enviou um

email ao endereço informado na página de Facebook do Movimento

Democracia Participativa, que não havia retornado até a publicação desta

checagem (AGÊNCIA LUPA, ARQUIVO ELETRÔNICO, 2018).

A Lupa também avaliou como “Falso” o que declarou o senador do PT, Lindberg

Farias, que afirmou no Twitter: “ONU reconhece violações contra Lula”. A explicação

da checagem foi a seguinte:

No comunicado emitido pelo comitê da ONU no dia 17 de agosto, o texto é

claro. Diz que os pedidos apresentados pela entidade “não significam que o

comitê já tenha encontrado violações (dos direitos humanos)” no caso de Lula.

Textualmente em inglês: “This request does not mean that the Committee has

found a violation yet”. Procurado, Lindbergh não retornou (AGÊNCIA LUPA,

ARQUIVO ELETRÔNICO, 2018).

Percebe-se ainda que há uma busca de equilíbrio entre o número de declarações

checadas proferidas por figuras públicas com posicionamentos políticos e ideológicos da

direita e da esquerda. Esse equilíbrio reflete a preocupação da agência em reafirmar o seu

apartidarismo, tema que será retomado adiante.

5.6.3 Checagem além do declaratório

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A agência também busca verificar a qualidade de produtos e serviços, além da

veracidade de anúncios publicitários, slogans e imagens. Um exemplo foi o

acompanhamento86 dos preços de diversos produtos em lojas online para checar se os

descontos da Black Friday (ação americana que foi reproduzida no Brasil) são realmente

verdadeiros. Com as perguntas “Teve desconto mesmo?” e “Em que produtos?”, a equipe

da Lupa analisou cerca de 50 itens postos à venda em oito lojas diferentes. Acompanhou

a evolução de seus preços e mostrou o resultado desse levantamento para o público.

Assim, o leitor pôde acompanhar que alguns produtos como computadores ou

eletrodomésticos não estavam realmente em promoção. Ou seja, a informação do site de

compra era falsa.

Voltando para a metodologia da checagem, uma vez decidida a declaração que

será checada, o repórter da Lupa faz um levantamento de “tudo” o que já foi publicado

sobre o assunto. Consulta jornais, revistas e sites. Depois, se debruça sobre bases de dados

oficiais e inicia o processo de garimpo de informações públicas. Na ausência delas ou

diante da necessidade de saber mais sobre o assunto a ser checado, o repórter da Lupa

recorre às Leis de Acesso à Informação e/ou às assessorias de imprensa. Ainda pode ir a

campo, levando consigo os meios tecnológicos que julgar necessários para a apuração:

foto, áudio ou vídeo.

Para concluir seu trabalho, o repórter pode recorrer à análise de especialistas para

contextualizar o assunto e evitar erros de interpretação de dados. Com tudo isso em mãos,

solicita posição oficial daquele que foi checado, dando-lhe tempo e ampla oportunidade

para se explicar. Ao cumprir os oito passos de sua metodologia, a Lupa entrega a seus

leitores um texto objetivo, repleto de links que o ajudarão a reconstituir o caminho

percorrido pelo checador e a entender suas conclusões. A agência acredita que é o leitor

quem checa o checador, dando-lhe todo o instrumental para isso.

Percebe-se que o processo de checagem descrito é semelhante à apuração

convencional do jornalismo. Tardáguila observa que a checagem é, na verdade, uma volta

ao jornalismo na sua essência: “As pessoas têm direito a ter informações fidedignas e

checáveis para poder se posicionar seja na sua vida pública ou privada. Isso é o serviço

do jornalismo na sua essência. A checagem é uma volta absurda à essência”

(TARDÁGUILA, 2016).

86 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2017/11/24/black-friday-2017/>. Acesso em 24.

Ago. 2018.

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5.6.4 As etiquetas

Juntamente com o texto, as checagens são classificadas em etiquetas que sinalizam

a veracidade ou não da informação. São elas: Verdadeiro (A informação está

comprovadamente correta); Verdadeiro, mas (A informação está correta, mas o leitor

merece um detalhamento); Ainda é cedo para dizer (A informação pode vir a ser

verdadeira, ainda não é); Exagerado (A informação está no caminho correto, mas houve

exagero de mais de 10% e de menos de 100% frente ao total real); Subestimado (Os

dados reais são ainda mais graves dos que o mencionado. A informação foi minimizada

de 10% a 100%); Contraditório (A informação contradiz outra difundida pela mesma

fonte antes); Insustentável (Não há dados públicos que comprovem a informação); Falso

(A informação está comprovadamente incorreta); De olho (Etiqueta de monitoramento).

As etiquetas evidenciam que existem variáveis subjetivas no resultado de um

processo de checagem mesmo que ele busque a objetividade. Isso mostra a complexidade

do trabalho investigativo da realidade e a inconsistência de uma classificação dualista

entre verdadeiro ou falso. É preciso buscar uma análise que mostre os meandros que estão

entre estas duas alternativas. O que pode representar, muitas vezes, uma dissonância com

os leitores. Principalmente aqueles com pensamentos polarizados entre esquerda ou

direita, como é o caso do Brasil atual. Tardáguila comenta sobre essa discordância com

os leitores abaixo:

A Lupa usa oito etiquetas entre o verdadeiro pleno e o falso pleno em que a

gente tenta usá-las de forma a ser o mais claro possível com relação à nossa

conclusão. Óbvio que gera muito polêmica. Às vezes as pessoas discordam das

etiquetas, o que é ótimo, porque estão exercitando a sua cidadania. Só que

jornalismo não é matemática. Jornalismo não é física. As pessoas às vezes

exigem que o fact-checking tenha uma ciência. Na verdade tentamos ser o mais

objetivo possível dentro das humanas. Nem na física é possível ser objetivo.

Dependendo do olhar a partir de determinado fenômeno se vê uma coisa

diferente. Por isso que temos as etiquetas e as definições muito claras sobre

quando cada uma delas é empregada. É óbvio que isso gera polêmica. É óbvio

que gera chateação. Mas é do jogo. Nós checadores estamos acostumados com

isso (TARDÁGUILA, ARQUIVO ELETRÔNICO87, 2018).

A agência informa que não há nada que impeça a Lupa de criar novas etiquetas

nem de eliminar alguma existente. A partir do seu segundo aniversário (em novembro de

2017), a Lupa passou a publicar reportagens em que faz uma nova checagem das frases

87 Disponível em <https://www.jornalopcao.com.br/entrevistas/nao-temos-como-monitorar-a-proliferacao-

de-informacao-falsa-que-circula-pelo-whatsapp-127684/>. Acesso em 24. Ago. 2018.

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etiquetadas como “de olho”. O intuito é ver se houve alguma evolução nas promessas

analisadas.

Um exemplo foi a checagem “E as promessas de Temer, Crivella, Alckmin, Pezão

e Doria?88”, em que a agência reavaliou algumas frases que receberam a etiqueta “De

olho” desses cinco políticos. No final das contas, a proposta era avaliar se algumas

promessas ditas saíram realmente do papel. Uma prática jornalística importante que não

é muito costumeira na imprensa tradicional.

O resultado da análise em 2017 mostrou que o governador Luiz Fernando Pezão

não cumprira a promessa que foi destaque na imprensa em 2014 para melhorar o sistema

de transporte do estado do Rio de Janeiro. O governador afirmou “Queremos comprar

mais quatro barcas novas para colocar na Ilha do Governador e melhorar o transporte ali”.

Assim, a análise da checagem foi a seguinte:

Em janeiro de 2016, quase dois anos depois dessa fala, a Lupa constatou que a

promessa de Pezão ainda não havia saído do papel e deu um “de olho” nessa

promessa. Naquele mês, dados da concessionária CCR Barcas indicavam que

o número de embarcações havia permanecido inalterado entre dezembro de

2014 e dezembro de 2015, com um total de 24 barcas na frota (sendo algumas

delas alugadas). De lá para cá, a crise fiscal do RJ se agravou e, atualmente,

segundo a concessionária, há 19 barcas em operação, razão pela qual a Lupa

decidiu trocar a etiqueta dessa frase de Pezão para Falso (AGÊNCIA LUPA,

2017, ARQUIVO ELETRÔNICO89).

5.6.5 Transparência das fontes

As fontes citadas nas checagens da Lupa são disponibilizadas para o leitor por

meio de links no próprio texto. Assim, é possível averiguar as informações que o

jornalista consultou para a produção da apuração. A checagem das promessas dos

políticos citada acima, por exemplo, possui vários links para a comprovação das fontes.

A checagem da fala de João Dória, na época prefeito de São Paulo, “Chegamos a

R$ 255 milhões em doações do setor privado para o município de São Paulo em 88 dias

de gestão”, classificada como a etiqueta “Exagerado”, possui sete links.

O primeiro link direciona o leitor para uma matéria do portal G1 com o título

“Iniciativa privada doou R$ 255 milhões à Prefeitura de SP, diz Dória”. Ou seja, a matéria

jornalística é resultado de uma declaração do prefeito, o que é muito comum no

88 Disponível em <http://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2017/11/16/e-as-promessas-de-temer-crivella-

alckmin-pezao-e-doria/>. Acesso em 24. Ago. 2018. 89 Disponível em <http://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2017/11/16/e-as-promessas-de-temer-crivella-

alckmin-pezao-e-doria/>. Acesso em 27. Ago. 2018.

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jornalismo, o chamado “jornalismo declaratório”. Na matéria citada não há

questionamento deste valor declarado pelo gestor.

A Lupa explica que realizou uma checagem (segundo link) três dias depois da

declaração e classificou a fala com a etiqueta “De olho”, uma vez que, até aquele

momento, segundo o Portal da Transparência da cidade de São Paulo, o município havia

recebido 21 doações – doze delas sem valores claramente discriminados e 9 somando R$

4,2 milhões. Esse total ficava bem distante dos R$ 255 milhões mencionados pelo

prefeito.

A etiqueta da checagem mudou para “Exagerado” quando a Lupa voltou a

consultar a tabela mais atualizada do Portal de Transparência (terceiro link). A tabela

mostrou que, nos meses de janeiro, fevereiro e março, que compreendem os primeiros 88

dias de gestão de Doria, foram registradas 106 doações publicadas no Diário Oficial

(quarto link). A soma das doações concluídas nesses três meses é R$ 20,9 milhões. Ou

seja, cerca de 8% dos R$ 255 milhões mencionados pelo prefeito. A checagem

disponibiliza o quinto link com a tabela completa com todas as doações.

Em nota (sexto link), a prefeitura de São Paulo informou que registrou um total

de R$ 286,8 milhões, somatório de repasses apenas anunciados e de fato finalizados, no

dia 13 de abril – depois dos 88 dias mencionados por Dória. Segundo a prefeitura,

algumas doações anunciadas em fevereiro “só foram efetivadas, com publicação no

Diário Oficial, em março, abril, ou até mesmo maio.” De acordo com o Decreto Municipal

n.º 40.384, de 2001 (sétimo link), a administração municipal de São Paulo é obrigada a

manter registros atualizados dos seus projetos de parceria.

Os links das fontes disponibilizados mostram o caminho percorrido pelo

jornalista. A variedade de fontes consultadas para a checagem de apenas uma frase mostra

que o trabalho de apuração no jornalismo não é simples e rápido. É necessário tempo e,

muitas vezes, perspicácia do profissional para lidar com dados públicos. Porém, é

perceptível que é uma ação totalmente possível.

5.6.6 Transparência do financiamento

O modelo de negócio da Lupa está disponível no site da agência com o link “Como

a gente se financia”90. Lá, há informações sobre o apoio financeiro da Editora Alvinegra,

90 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2015/10/15/como-funciona-nosso-modelo-de-

negocios/>. Acesso em 27. Ago. 2018.

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empresa fundada por João Moreira Salles para publicar a revista piauí, por cerca de três

anos. “Em contrapartida a esse repasse financeiro mensal, se compromete a publicar todas

suas checagens em seu próprio site (hospedado no portal da revista) e, assim, irrigar o

ambiente digital da publicação com novos leitores”, afirma a agência.

Outra linha de receita da Lupa é o programa Lupa Educação que oferece palestras

e workshops sobre fact-checking a estudantes e profissionais de qualquer formação.

Também faz treinamentos in-company (treinamento de colaboradores de empresas).

Em seu primeiro ano de existência, o Lupa Educação ofereceu nada menos do

que 24 workshops – uma média de dois por mês – e capacitou mais de 3 mil

pessoas em todo o país. Teve como clientes a Veja.com, a NSC e a TV Globo.

Entre as palestras e oficinas que ministrou, a maioria foi presencial, mas a Lupa

também foi convidada pelo Knight Center/Universidade do Texas a fazer um

MOOC, curso online que contou com o apoio do Google e da Associação

Nacional de Jornalistas (ANJ) e que reuniu 2.860 alunos (AGÊNCIA LUPA,

2018, ARQUIVO ELETRÔNICO).

O terceiro braço financeiro da agência são projetos associados a plataformas

digitais como o Facebook e o Google. O site informa que em dezembro de 2017, a Lupa

recebeu um repasse de aproximadamente R$ 90 mil do Google para realizar parte das

trilhas e os memes que estão disponíveis no site educativo www.fakeounews.org, uma

parceria da agência com o Canal Futura em favor da educação digital.

Já em 2 de abril de 2018, a Lupa anunciou o Projeto Lupe!, para construção de um

chatbot e a gravação de uma série de boletins audiovisuais com checagens focadas no

período eleitoral. O Lupe! teve um apoio financeiro do Facebook no valor de R$ 250 mil.

Em 10 de maio de 2018, a Lupa foi contratada e passou a integrar o time internacional do

Third Party Fact-checking Project, do Facebook, em que passa a checar diariamente o

grau de veracidade de conteúdos publicados na plataforma.

Em seu primeiro ano de vida (2016), somando os contratos comerciais

assinados com meios de comunicação do Brasil e os repasses feitos pela

Editora Alvinegra, a Lupa dispôs de um orçamento anual de aproximadamente

R$ 1 milhão. Em seu segundo ano de vida (2017), somando os contratos

comerciais e as oficinas ministradas, o orçamento foi de aproximadamente R$

1,4 milhão. Até agosto de 2018, a Lupa não havia recebido qualquer apoio

financeiro de ONGs, institutos, fundos ou entidades de cooperação nacional ou

internacional. Pelo segundo ano consecutivo, havia passado por uma rigorosa

auditoria internacional e sido reconhecida como um dos membros verificados

da International Fact-checking Network (IFCN) (AGÊNCIA LUPA, 2018,

ARQUIVO ELETRÔNICO).

5.6.7 Apartidarismo.

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No artigo “Pós-política e corrosão da verdade”, Eugênio Bucci afirma que a

verdade factual dos jornais precisa está desvinculada da esfera política:

Trata-se de uma desvinculação categórica, uma cisão de método: uma coisa é

a esfera abrangida pela política; outra, bem distinta, é aquela em que os fatos

são apurados, investigados, pesquisados, narrados, historiados. Reside na

política o engenho especial de se apropriar dos fatos a partir de representações

ou relatos elaborados em outros domínios, inclusive no jornalismo, mas a

função de localizar e apontar a verdade, bem como a função de difundi-la, não

tem seu lugar no domínio político. A política se vale – e deve mesmo se valer

– da verdade factual, mas, para tanto, precisa ir buscá-la fora de seus domínios.

(BUCCI, 2018, p.25)

Na página da Lupa na internet há um link “Quais são os riscos do fact-checking”.

Um deles é “parecer partidário e pouco transparente”. Logo em seguida, a agência explica

que não apoia nem se associa a nenhum partido politico ou organização sindical. Afirma

ainda que checa o governo e oposição, em níveis federal, estadual e municipal.

Ao entrar na Lupa, os funcionários da agência assinam um termo jurídico em

que se comprometem a seguir os cinco princípios éticos da International Fact-

checking Network (IFCN), bem como a se abster de integrar partidos políticos

ou entidades político-partidárias. São também oficialmente desaconselhados a

manter qualquer posicionamento público frente a polêmicas envolvendo

política, economia ou sociedade (AGÊNCIA LUPA, 2018, ARQUIVO

ELETRÔNICO91).

Cristina Tardáguila afirma que a associação da Lupa com a marca piauí, já que

estão hospedadas no mesmo site, trouxe ganhos para a agência. “A marca piauí é muito

forte e foi muito bem construída ao longo de dez anos. A piauí nunca teve grandes erros.

Nem grandes vacilos. Aparentemente, não é classificada nem como esquerda e nem como

de direita. Isso para o fact-checking é fundamental” (TARDÁGUILA, 2016).

O apartidarismo foi fundamental para a cobertura da Lupa no impeachment da

presidente Dilma Rousseff, por exemplo, trabalho que foi um dos indicados ao Prêmio

Gabriel García Márquez de Jornalismo, da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano

(FNPI), na categoria inovação.

Durante a votação do impeachment no Congresso Nacional, entre abril e maio de

2016, a equipe de jornalismo da Lupa preparou dois “tuitaços” (postagens na rede social

Twitter) em tempo real para divulgar as ocorrências judiciais dos 513 deputados e dos 81

senadores que decidiram sobre o impeachment. Cada vez que um parlamentar declarava

o seu voto, a Lupa “twittava” sobre a incidência ou não de ocorrências judiciais.

91 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2015/10/15/os-riscos-do-fact-checking/>. Acesso em

28. Ago. 2018.

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O resultado da checagem mostrou que 299 deputados têm ocorrências na Justiça

e\ou no Tribunal de Contas, com 76 condenados e ao menos 79 parlamentares alvos de

inquérito na Operação Lava Jato, totalizando 1.130 ocorrências. Sobre os senadores, o

total de 47 têm ocorrências na Justiça e\ou nos Tribunais de Contas, com 15 condenados

e ao menos 13 parlamentares alvos de inquérito na Operação Lava Jato, totalizando 277

ocorrências.

Segundo a Agência Lupa, o total de 593 tweets tiveram mais de 5 milhões de

visualizações e mais de 159 mil interações. As ações contaram com a participação de

influenciadores digitais, artistas, políticos e formadores de opinião. Além disso, os

“tuitaços” foram destaques na mídia como Folha de S. Paulo, O Globo, Estadão, entre

outras.

5.7 Nó 4: A correção do erro

É certo que o compromisso do jornalismo é com a veracidade da informação.

Assim, o erro é quase um tabu. Ou seja, os veículos preferem não falar sobre isso e a

retratação diante de uma desinformação é escassa e, muitas vezes, irrelevante aos olhos

do leitor.

Os grandes veículos, como a Folha de S. Paulo e o Estadão, dispõem de políticas

internas ou orientações editoriais para lidar com erros e providenciar suas retificações.

Porém, a falta de interesse em abordar o assunto está ligada ao fato de que, como foi visto,

os meios de comunicação têm a verdade como sinônimo de credibilidade e,

consequentemente, como moeda de troca com o público. Eugênio Bucci (2000) classifica

como “autossuficiência ética” a indisposição do jornalismo nacional para discutir ou

exercer autocrítica.

Entre os meios impressos, os jornais dispõem de seções onde identificam erros

cometidos em edições anteriores e anunciam suas correções. Entretanto, esse

processo nem sempre se mostra eficiente, seja porque não há uma política clara

de qualidade nos jornais, seja porque a percepção de erro dos profissionais não

é tão apurada. Um terceiro fator: pouco interessa a uma empresa dar tanta

transparência de seus deslizes diretamente aos seus clientes, no caso, os leitores

(CHRISTOFOLETTI; PRADO, 2007, p. 2).

E o que acontece quando um grupo responsável pelo monitoramento do erro

também erra? Cristina Tardáguila constata o óbvio na afirmação abaixo. Os jornalistas

também erram e não são os donos da verdade: “Os checadores são jornalistas que

trabalham para buscar o melhor dado possível naquele momento sobre determinado

assunto. Eles não são donos da verdade. São, obviamente, passíveis de erro”.

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As agências de checagem têm um modo especifico de abordar o erro. Quando há

a constatação de um erro, a Lupa se compromete a alterar a checagem, dando destaque à

nova classificação, bem como divulga em suas redes sociais a correção do erro.

No fact-checking da Lupa, não se deleta o que foi ao ar. Corrige-se. Este é um dos pontos do código de ética da International Fact-checking Network (IFCN), rede mundial de checadores da qual a Lupa faz parte. Nos posts, a Lupa deixa entre parêntesis e em cinza (a informação errada). Em seguida, redige a correta. Se for necessária a troca de etiqueta, isso é publicamente informado no texto da correção. Todos os clientes da Lupa que tiverem republicado a informação incorreta são contratualmente obrigados a fazer correções. A agência também informa sobre seus erros de forma clara e ampla em suas redes sociais (AGÊNCIA LUPA, 2015, ARQUIVO ELETRÔNICO92).

5.7.1 O erro na checagem

O erro no jornalismo é danoso, porém a falha na checagem pode acarretar em

críticas até mais severas a um modo de trabalho que ainda é recente no cenário brasileiro.

Até porque o fact-checking ainda constrói sua credibilidade junto aos leitores.

A Lupa vivenciou um momento de instabilidade diante da opinião pública ao

checar informações sobre a entrega de um terço abençoado pelo Papa Francisco ao ex-

presidente Lula, que está preso na Polícia Federal, em Curitiba.

A Lupa recebeu diversos pedidos, via Facebook, para averiguar a frase “Papa

enviou terço a Lula”. Inicialmente, a informação recebeu a etiqueta de “Falsa”:

Durante a tarde do dia 12, o site Vatican News, agência de notícias mantida

pela Secretaria de Comunicação da Santa Sé, publicou uma nota negando que

o objeto religioso levado por Grabois tinha sido efetivamente enviado pelo

Papa a Lula. Segundo o texto, a visita do argentino tinha caráter

exclusivamente pessoal, e o objeto havia sido apenas abençoado pelo Pontífice.

O mesmo conteúdo foi distribuído pelas redes sociais da agência. Como se

tratava de uma fonte oficial do Vaticano, a Lupa e diversos outros checadores

do Brasil consideraram que a informação de que o terço teria sido enviado pelo

Papa era falsa (AGÊNCIA LUPA, 2018, ARQUIVO ELETRÔNICO93).

Logo após a publicação da análise da Lupa, o Vatican News modificou a nota que

foi usada como a principal fonte da checagem para justificar a etiqueta “Falsa”. A Lupa

precisou elaborar uma nota de esclarecimento sobre o assunto e modificou a etiqueta para

“De olho” para acompanhar os desdobramentos da história:

A Lupa procura contato com a Vatican News e o Vaticano. Espera um

posicionamento oficial sobre o ‘envio’ do terço do Papa a Lula – e não apenas

a bênção dele. Diante dessa espera, às 16h30 de hoje (13), optamos por alterar

92 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2015/10/15/na-lupa-ha-espaco-para-contestacoes-e-

correcoes/>. Acesso em 28. Ago. 2018. 93 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2018/06/13/esclarecimento-lupa-terco-lula/>.

Acesso em 28. Ago. 2018.

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a etiqueta inicial aplicada, “falso”, para “de olho”. Trata-se da classificação

usada para monitoramentos. Assim sendo, esta passa a ser a classificação da

Lupa até que o Vaticano faça um esclarecimento oficial e definitivo sobre o

desejo do Pontífice em dar um terço ao ex-presidente (AGÊNCIA LUPA, 2018, ARQUIVO ELETRÔNICO).

Porém, mesmo explicando o ocorrido, a agência recebeu críticas por uma

checagem incorreta principalmente porque classificou como fake news as páginas no

Facebook que replicaram a notícia sobre o terço do site oficial do ex-presidente Lula.

Após a troca de etiquetas, a Lupa voltou atrás e desclassificou as páginas como notícias

falsas.

Como se pode ver, o terreno da checagem política é movediço. Principalmente

diante da polarização política em que o país se encontra, em que as discussões que

poderiam ser saudáveis ganham status de polêmica. Neste caso, a checagem sempre irá

desagradar um lado e alguém.

Diante deste cenário, entre agosto e novembro de 2018, a Lupa contou com uma

profissional exercendo a função de ombudsman durante a cobertura eleitoral de 2018, o

que evidencia uma marca do aspecto comunicativo exposto por Salles anteriormente.

O cargo de ombudsman é algo inédito em uma agência de checagem. Ou seja,

uma jornalista exclusivamente dedicada a ouvir a crítica dos

leitores/ouvintes/espectadores da agência e repassá-la à redação, de forma a aprimorar o

trabalho oferecido. A jornalista e professora universitária Fernanda da Escóssia foi a

escolhida para ocupar o cargo.

Com essa medida, mostramos que estamos abertos às críticas, que queremos

aprimorar nosso serviço e que, ao mesmo tempo, estamos dispostos a ser

avaliados de forma profissional. Poucos meios de comunicação do Brasil têm

a figura do ombudsman em seus quadros. No mundo do fact-checking, seremos

os primeiros. Isso mostra o tamanho do nosso comprometimento

(TARDÁGUILA, 2018, ARQUIVO ELETRÔNICO94).

A função da ombudsman foi ler todas as checagens feitas pela Lupa entre agosto

e novembro de 2018; acompanhar a postagem da agência nas redes sociais e avaliar sua

pertinência; produzir um relatório interno semanal sobre as manifestações dos leitores via

e-mail; publicar uma coluna semanal na seção “Ombudsman” do site da Lupa, com a

avaliação da cobertura feita pela agência; manter-se apartidária nas análises feitas,

seguindo o código de ética da IFCN; manter-se apartidária nas redes sociais durante o

período de contratação e defender a importância da checagem de fatos.

94 Disponível em <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2018/08/16/lupa-ombudsman-2018/. Acesso em 29.

Ago. 2018.

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Desta forma, apesar do erro ser quase inerente ao trabalho subjetivo do jornalista,

a decisão de incluir uma profissional para realizar uma autocrítica do trabalho jornalístico

é positiva. Algo que atende ao que foi dito antes por Eugênio Bucci sobre a indisposição

do jornalismo nacional para discutir ou exercer autocrítica. Porém, ainda é cedo para

afirmar o impacto disso para a profissão e para os leitores imersos na era da pós-verdade.

Após a explanação sobre a agência Lupa e sobre as iniciativas do fact-checking

no Brasil e no mundo, é perceptível que há um movimento para atender às novas

perspectivas de atuação no campo jornalístico que incluem a checagem dos fatos. É um

novo que volta às origens e resgata o pilar da apuração. E, consequentemente, com isso o

jornalismo busca enfrentar a desinformação.

Porém, esse movimento ainda é tímido e tem como desafio conquistar a

credibilidade do público desacreditado com a imprensa e que está imerso em um ambiente

barulhento de informação em excesso.

Além disso, quando se fala em pós-verdade, estão em jogo as emoções e crenças

além do fato em si. Com isso, além de uma checagem de fatos, os grupos de checadores

se deparam com o chamado “viés da confirmação”, quando a pessoa acredita em uma

notícia falsa porque tem a necessidade de confirmar as suas próprias certezas. Para essas

pessoas não existirá checagem que prove o contrário.

Assim, nas considerações finais deste trabalho, haverá uma discussão sobre como

o jornalista pode dialogar com público temas caros à sociedade e à democracia.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise da rede de criação da revista piauí e da agência Lupa possibilitou uma

reflexão crítica que foi além dos objetos de pesquisa escolhidos. Ela proporcionou uma

reflexão sobre os desafios do jornalismo na atualidade a partir da prática da profissão. Ou

seja, a partir da investigação da construção da reportagem/checagem e não do produto

final.

A importância disso é o entendimento de que, muito além de reportar sobre os

acontecimentos do cotidiano, o jornalismo constrói e recupera a verdade factual (Bucci)

e o fato histórico. Porém, sustentar o fato está cada vez mais difícil em meio à existência

de uma verdadeira indústria da desinformação, como foi visto. A dificuldade reside no

fato de que, ao contrário da informação bem apurada, a desinformação é simples e barata,

o que permite que fake news sejam transformadas em memes, gifs ou vídeos

compartilhados nas redes sociais de forma incontrolável.

Porém, o que realmente dificulta o combate à desinformação é o que Morin (1998)

classifica como imprinting cultural que marca os humanos com o selo da cultura, primeiro

familiar e depois escolar, prosseguindo na universidade ou na profissão, que age como

um poder imperativo criador das crenças não contestadas e verdades absolutas.

O poder imperativo\proibitivo conjunto de paradigmas, crenças oficiais,

doutrinas reinantes, verdades estabelecidas, determinam os estereótipos

cognitivos, preconceitos, crenças estúpidas não contestadas, absurdos

triunfantes, rejeições de evidências em nome da evidência, e faz reinar, sob

todos os céus, os conformismos cognitivos e intelectuais (MORIN, 1998,

p.34).

Ambientada no imprinting cultural, a sociedade acredita com mais facilidade nas

notícias que reafirmam suas crenças e suas verdades estabelecidas mesmo que as

informações contidas nelas sejam comprovadamente falsas. É o chamado “viés da

confirmação” citado anteriormente. “As notícias falsas só existem porque as pessoas

precisam de notícias, verdadeiras ou não, para alimentar as próprias certezas” (FERRARI,

2018, p. 62).

Morin afirma ainda que o imprinting cultural “determina a desatenção seletiva,

que nos faz desconsiderar tudo aquilo que não concorde com as nossas crenças, e o

recalque eliminatório, que nos faz recusar toda informação inadequada às nossas

convicções, ou toda objeção vinda de fonte considerada má” (FERRARI, 2018, p. 35).

Isso pode ser semelhante ao que acontece com a checagem política que tem dificuldade

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de penetração em ambientes com pensamentos extremistas direitistas ou esquerdistas. Ou

seja, as pessoas que estão ambientadas no imprinting não aceitam com facilidade as

checagens que revelam informações contrárias à sua crença.

Em seu livro Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano

autoritário brasileiro (2017), Márcia Tiburi (2017, p. 24) classifica como fascista alguém

que não se dispõe a escutar, que não fala para dialogar, mas apenas para mandar e

dominar.

O fascista não consegue relacionar-se com outras dimensões que ultrapassem

as verdades absolutas nas quais ele firmou seu modo de ser. Sua falta de

abertura, fácil de reconhecer no dia a dia, corresponde a um ponto de vista fixo

que lhe serve de certeza contra pessoas que não correspondem à sua visão de

mundo preestabelecida.

Para a autora, o país vivencia um autoritarismo na vida cotidiana em que é inviável

a abertura até a uma simples conversa. “Os indivíduos estão fechados em seus pequenos

universos previamente formados e informados de tudo o que supõem saber” (TIBURI,

2017, p. 27). Tiburi (2017, p. 37) aposta no diálogo como uma prática que deveria ser a

base de uma ética do dia a dia:

O diálogo é mais ainda [complicado] porque não nos ocupamos em prestar

atenção no que pode ser um diálogo, ele mesmo um modo de conversar cheio

de potências e que facilmente se cancela se não insistimos nele. Não o

experimentamos [o diálogo] na microfísica do cotidiano onde tanto poderia

nos ser dito acerca de uma potência de transformação em termos macrofísicos.

O diálogo entre o singular e o geral – entre o que somos (ou queremos ser) e o

que nos rodeia – nos faria bem. Precisaríamos pensar mais, isso é certo, mas

vivemos no vazio do pensamento, ao qual podemos acrescentar o vazio da ação

e o vazio do sentimento. O vazio é o estranho ethos de nossa época.

O diálogo também é apontado por Morin quando afirma que há falhas no

aparentemente implacável determinismo do imprinting. Ele aponta para três

possibilidades desse enfraquecimento: a existência de vida cultural e intelectual dialógica;

o calor cultural e a possibilidade de expressão de desvios ou brechas.

O autor afirma que a pluralidade e a diversidade dos pontos de vista são condições

para a dialógica cultural:

São, justamente, essas diversidades de ponto de vista que o imprinting inibe e

a normalização reprime. [...] Essas condições aparecem nas sociedades que

permitem o encontro, a comunicação e o debate de ideias. [...] O intercâmbio

das idéias produz o enfraquecimento dos dogmatismos e intolerâncias, o que

resulta no seu próprio crescimento. (MORIN, 1998, p. 38-39).

Morin ressalta ainda a necessidade do encontro de ideias antagônicas para a

criação de uma zona de turbulência que abre uma brecha no determinismo cultural.

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Assim, as ideias contrárias podem estimular entre indivíduos e grupos interrogações,

insatisfações, dúvidas, reticências e busca.

Morin (1998, p. 40) afirma ainda que a dialógica cultural favorece o calor cultural

e juntos criam condições de autonomia de espírito:

Assim como o calor se tornou uma noção fundamental no devir físico, é preciso

dar-lhe um lugar de destaque no devir social e cultural, o que nos leva a

considerar, onde há “calor cultural”, não há um determinismo rígido, mas

condições instáveis e movediças. Do mesmo modo que o calor físico significa

intensidade\multiplicidade na agitação e nos encontros entre partículas, o

“calor cultural” pode significar intensidade\multiplicidade de trocas,

confrontos, polêmicas entre opiniões, idéias, concepções. E, se o frio físico

significa rigidez, imobilidade, invariância, vê-se então bem que o

abrandamento da rigidez e das invariâncias cognitivas só pode ser introduzido

pelo “calor cultural”.

As condições ditas acima por Morin favorecem o surgimento dos desvios ou

brechas e transformações nos determinismos que pesam sobre o conhecimento. “Basta

por vezes uma pequena brecha no determinismo, permitindo a emergência de um desvio

inovador ou provocado por um abcesso de crise, para criar as condições iniciais de uma

transformação que pode eventualmente tornar-se profunda” (1998, p. 44).

Pode-se afirmar que iniciativas como a revista piauí e a agência de checagem

Lupa, assim como outros modelos semelhantes, são brechas ou rupturas (MORIN, 1998)

no imprinting porque produzem narrativas jornalísticas complexas.

A complexidade permite, como afirma Morin (2003, p. 100), um caráter

multidimensional de qualquer realidade. Diferentemente da visão simplista e bipolar

comum ao jornalismo, como afirma Nelson Traquina (TRAQUINA, 2013, p. 45):

A maneira de ver dos membros da tribo jornalística privilegia uma visão

bipolar – o mundo é estruturado em polos opostos: o bem e o mal, o pró e o

contra etc. As regras de objetividade, bem como a vontade de simplificar e\ou

estruturar o acontecimento de forma dramática, explicam esta visão bipolar.

Na reportagem da piauí a complexidade é percebida quando o repórter mostra

diferentes ângulos de um fato ou diferentes facetas de um personagem com o objetivo de

entender a verdade factual com mais clareza.

Isso só é possível com uma investigação aprofundada e com a representação de

diferentes pontos de vistas e diferentes vozes sobre um assunto, o que possibilita a

construção de um diálogo e não apenas de um discurso no jornalismo.

A diferença entre discurso e diálogo importa aqui. No primeiro a escuta serve

à fala, no segundo, a fala serve à escuta. O diálogo não é a conversa entre

iguais, não é apenas uma fala complementar, uma conversa amistosa, mas a

prática real da escuta em que a dúvida, a pergunta, existe para abrir a si próprio

e abrir o outro (TIBURI, 2017, p. 47).

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Para Cremilda Medina, a entrevista jornalística não pode ser tratada apenas como

uma técnica, mas como um diálogo em que haja uma interação humanizada entre o

entrevistador e o entrevistado:

Desenvolver a técnica da entrevista nas suas virtudes dialógicas não significa

uma atitude idealista. No cotidiano do homem contemporâneo há espaço para

o diálogo possível [...] Sua maior ou menor comunicação está diretamente

relacionada com a humanização do contato interativo: quando ambos

entrevistado e entrevistador saem alterados do encontro, a técnica foi

ultrapassada pela “intimidade” entre o EU e TU. Tanto um como outro se

modificaram, alguma coisa aconteceu que os perturbou, fez-se luz em certo

conceito ou comportamento, elucidou-se determinada autocompreensão ou

compreensão do mundo. Ou seja, realizou-se o Diálogo Possível (MEDINA,

1986, p. 7).

Percebe-se que o diálogo só é possível com um contato direto entre jornalista e

fonte. Como foi visto na rede de criação da revista piauí, é preciso tempo para uma

imersão do repórter junto ao entrevistado.

Assim, pode-se afirmar que os repórteres da piauí conseguem executar a dialogia

citada por Medina e por Tiburi. Nos relatos dos repórteres para o presente trabalho, é

nítido o envolvimento deles com as fontes. Como quando Malu Gaspar relata sobre a sua

relação com o perfilado Delcídio de Amaral ou quando Paula Scarpin fala sobre a

convivência com o locutor Cuiabano. Todos eles ressaltam o tempo de convivência com

as fontes como o diferencial para a produção da reportagem.

Ainda segundo Morin, a complexidade estaria não apenas nos desenvolvimentos

científicos como é comum de se pensar, mas estaria presente também no cotidiano e foi

captada muito bem pela narrativa literária. Como foi visto, a revista piauí tem como um

dos pilares, justamente, a narratividade.

Esta complexidade [do cotidiano] foi apreendida e descrita pelo romance do

século XIX e do início do século XX. Quando nessa mesma época a ciência

tenta eliminar o que é individual e singular, para só reter leis gerais e

identidades simples e fechadas, quando afasta mesmo o tempo da sua visão do

mundo, o romance, pelo contrário (Balzac em França e Dickens na Inglaterra),

mostra-nos seres singulares nos seus contextos e no seu tempo. Mostra que a

vida mais quotidiana é, de facto, uma vida onde cada um representa vários

papéis sociais, segundo o que é na sua casa, no seu trabalho, com amigos e

desconhecidos. Vê-se que cada ser tem uma multiplicidade de identidades,

uma multiplicidade de personalidades nele próprio, um mundo de fantasmas e

de sonhos que acompanha a sua vida. [...] tudo indica que não é

simplesmente a sociedade que é complexa, mas cada átomo do mundo

humano (MORIN, 2003, p. 83-84. Grifo meu).

Segundo Medina (2008, p. 26), o desafio de pensar o jornalismo como narrativa

complexa estaria na possibilidade de narrar sobre o cotidiano por meio de reportagens

que recuperam a experiência humana e trazem a cena viva em contraponto à abstração

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das ideias.

Assim, o repórter observa o real através “da lente da complexidade, onde são

muitos os fatores interativos que compõem processual e dinamicamente a realidade”

(PEREIRA LIMA, 2014, p. 13). Para isso, ele “investiga o real e capta o significado da

rede de fatores e forças que configuram um momento e uma situação da realidade. [..] E

apresenta sua reprodução desse real de um modo narrativo peculiar” (PEREIRA LIMA,

2014, p. 13).

A complexidade está também na checagem. Como foi visto nas etiquetas da

agência Lupa, por exemplo, que mostram as variáveis de classificação de um fato. Ou

seja, o verdadeiro ou o falso possuem nuances que precisam ser explicadas e

contextualizadas para o leitor.

Até porque, segundo a teórica Pollyana Ferrari, a checagem está relacionada com

a complexidade da vida. “Checar fatos, sair das bolhas e ir contra padrões enlatados

podem nos salvar, pois a vida é bem mais rugosa [...] A vida é mais rizomática do que

cartesiana” (2018, p. 164).

Desta forma, após a construção da rede de criação da revista piauí e da Agência

Lupa, puderam-se identificar os componentes necessários para a construção de uma

narrativa complexa no jornalismo. Os nós de criação apontados durante o trabalho são as

condições para a complexidade em questão. Assim, é preciso deixar de lado o fetiche da

velocidade e apostar em apurações demoradas. Ao mesmo tempo, é necessária uma aposta

na experimentação (Salles) do repórter ao dialogar com as técnicas narrativas

emprestadas da literatura e do cinema para melhor reportar sobre o fato.

É indicada ainda a transparência da metodologia do trabalho do jornalista. Além

da transparência de suas fontes e apartidarismo para o fortalecimento da credibilidade

diante do público. Por fim, a reparação do erro e a autocrítica para melhorar o diálogo

com aqueles que consomem as notícias. Todas essas ferramentas podem fomentar uma

oposição às crenças e verdades estabelecidas ou estereótipos presentes nas notícias falsas

e no ambiente do imprinting cultural.

Desta forma, pode-se afirmar que a complexidade é bem-vinda no jornalismo

principalmente em uma sociedade polarizada (dualista) porque ela abre caminho para o

diálogo. A partir da construção de narrativas complexas, o jornalismo poderá combater a

desinformação e restabelecer o diálogo tão caro à democracia.

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ANEXOS

Anexo 1

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Anexo 2

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Anexo 3

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Anexo 4

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Anexo 5