katarína - kathryn winter

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Katarína Kathryn Winter

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Page 1: Katarína - Kathryn Winter

Katarína

Kathryn Winter

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ESLOVÁQUIA: NOTA HISTÓRICA

A Primeira Guerra Mundial conduziu à desagregação do Império Austro-Húngaro. Em

seu lugar, surgiu um conjunto de pequenas nações, entre as quais a Checoslováquia.

Acreditava-se que a possibilidade das minorias étnicas construírem os seus próprios

países evitaria guerras futuras. Durante mais de vinte anos, a Checoslováquia

prosperou, como país livre e democrático que era, no coração da Europa. A 15 de Março

de 1939, tropas alemãs ocuparam a Boémia e a Morávia, as zonas checas do país. A

Eslováquia proclamou a independência e tornou-se um estado fantoche controlado pela

Alemanha. Passou a funcionar como um acesso ferroviário e rodoviário para os Alemães

e, após a invasão alemã da União Soviética, tornou-se também um ponto de passagem

para as tropas germânicas. Em compensação, a Eslováquia beneficiou de um

desenvolvimento industrial e comercial notáveis. A polícia estatal eslovaca, a Guarda

Hlinka, colaborou, de forma eficiente, no plano de extermínio dos judeus da Europa,

concebido por Hitler.

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Kathryn Winter baseou-se na sua experiência biográfica para escrever este livro.

Com efeito, teve de fugir das perseguições nazis durante a Segunda Guerra Mundial, tal

como aconteceu com todos os judeus da Eslováquia. No fim do conflito, tinha perdido

toda a família e foi enviada para os Estados Unidos, onde começou uma nova vida.

Atualmente, mora em Berkeley, na Califórnia, sendo autora de vários contos, já

publicados. Este é o seu primeiro romance.

PRÓLOGO

Eslováquia, janeiro de 1942. Os campos que rodeiam T., uma pequena aldeia no

norte, estão cobertos de neve. O comboio de passageiros abranda, à medida que

circunda o lago gelado. Crianças em patins correm para a borda e acenam. Apenas uma

criança está de costas para o comboio e fita os campos desertos.

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Katarína tem 8 anos e a sua vida despreocupada está prestes a sofrer uma enorme

alteração. Os Judeus são alvo de perseguições e a sua família corre perigo. Por isso ela

é enviada para uma quinta, onde se espera que esteja a salvo, e onde aguarda

ansiosamente que a tia venha buscá-la. Os dias transformam-se em semanas, as

semanas em meses, e a tia não regressa. Mas Katarína não abandona nunca a

esperança de que tudo e todos os que ama estejam à sua espera no final da guerra.

Campânulas brancas

Capítulo 1

— Katarína, vem à janela!

É a Eva. Sei o que me quer mostrar. Campânulas brancas. Deve ter corrido para os

campos com a Kristína ao primeiro sinal de degelo do rio. O ano passado gelei os dedos

a esgravatar a neve à procura delas, mas foi a Eva quem teve sorte.

— Olha, encontrei uma. Encontrei a primeira campânula branca!

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Segurou-a para que todos a víssemos: pétalas brancas pendendo de um caule fino

como um fio.

— Ei, Katarína, vem ver!

Podes gritar à vontade, Eva, que não vou à janela. Puxo os cobertores até me

taparem a cabeça. Não quero saber de campânulas brancas!

Há um papel vermelho pregado na porta da nossa casa. Diz: PERIGO!

ESCARLATINA! 26 DE FEVEREIRO DE 1942. DEPARTAMENTO DE SAÚDE. O papel já lá

está há mais de um mês. Não que eu tenha escarlatina. Só a fingir. Acordei uma noite

com a tia Lena a untar-me com uma pomada.

— Que estás a fazer?

— O que é preciso, Katinka. Tenta dormir.

— Para! Cheira mal.

Saí da cama e aninhei-me atrás da poltrona.

— Vem cá. Preciso de te pôr mais pomada.

— Porquê?

Silêncio.

— Se me disseres porquê, deixo-te pôr mais pomada.

Estavam à procura de todos os judeus, a fim de os mandarem para os campos de

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trabalho. A pomada destinava-se a causar erupções na minha pele. De manhã, a tia

dar-me-ia um rebuçado vermelho para causar a mesma impressão na minha boca e

garganta. Com sorte, enganaríamos o médico. Receberíamos, então, um papel

vermelho para afixar na nossa porta. Isto afastaria as pessoas da nossa casa, incluindo

a Guarda Hlinka.

— Isto pode salvar-nos, Katinka.

Salvar-nos? Olhei com atenção para a minha tia. Salvar-nos de quê? Do trabalho?

Por que razão não deveríamos ajudar o nosso país? Hei de perguntar-lho, mas não

agora. Agora tinha de saber outra coisa.

— Quem é ele?

— O que queres dizer com isso?

— Aquele que vais visitar sempre que me mandas para casa da Malka.

Corou. Pelos vistos tinha acertado em cheio.

— Como se chama?

— Teodor. Vais chamar-lhe Tio Teo.

— Tio Teo. Vais casar-te com ele?

Cerrou os lábios, mas não estava zangada. Sei quando está. Havia malícia no seu

olhar.

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— Vais?

— Vou. Agora vem cá, pequena…

— Vais? Vai ser um casamento a sério, com música e danças? Quando?

— Quando esta loucura acabar e voltar tudo ao normal. Katinka, preciso de te pôr

mais pomada.

— Se eu deixar, não vou à escola?

— Não, não vais!

— Durante quanto tempo?

— Não sei. Deixa-te de perguntas. Por favor!

Saí detrás da poltrona. Espreguicei-me.

A tia Lena parecia um passarinho num parapeito de uma janela, a tentar entrar

num quarto quente. Tive a sensação de que podia fazê-la prometer o que quer que

fosse. Deitar-me mais tarde. Um colete de pele de carneiro como o que a Eva usa.

Deixar crescer o cabelo até poder fazer tranças. Comer sonhos uma vez por semana e

nunca mais comer espinafres ou abóbora. Corri para ela e atirei-me ao seu pescoço.

— Não fiques triste, Lena-Pássaro, não me vou portar mal.

Puxei-a para a minha cama.

— Esfrega lá a pomada malcheirosa.

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No início, estar de quarentena era engraçado. A tia Lena lia-me livros, contava-me

histórias dela e da minha mãe, fazia sonhos e pudins de chocolate sempre que lhe

pedia. Jogávamos dominó, fazíamos ginástica no chão, dançávamos ao som de

melodias que trauteávamos, inventávamos paródias que encenávamos. Eu gostava de

parodiar o que tinha acontecido no dia em que o médico me visitara e o tínhamos

enganado.

— Tu fazes de médico, tia Lena.

Ela semicerrava os olhos, fingia fumar cachimbo, abanava a cabeça.

— Há algum problema, doutor?

Suspiros.

— Não é nada de grave, pois não?

— Minha cara senhora… as manchas vermelhas na cara… a língua e a garganta

vermelhas…

— Sim?

Seguia-se uma longa pausa. Por fim, surgia o diagnóstico:

— A criança tem escarlatina.

Nesta altura eu desmaiava. Voltava a mim alguns segundos mais tarde.

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— Que horror, doutor. Tem a certeza?

— Os sintomas são inequívocos.

— Que temos de fazer?

— Vamos interná-la e pô-la de quarentena. Já detetámos um caso de escarlatina.

— Não vou permitir que a Katarína se exponha a …

— Exponha? Mas, minha senhora, ela já contraiu a doença.

— Sim, claro. O que eu queria dizer era que não gostaria de a ver num hospital

superlotado. Eu própria cuidarei dela, aqui em casa.

— Teria de vos pôr de quarentena…

— Sim, claro.

— …sem que ninguém possa entrar ou sair desta casa durante seis semanas.

Como vai conseguir isso?

— Temos provisões suficientes na despensa. O nosso empregado, Janko Trnka,

pode trazer-nos coisas da quinta dele e deixá-las no alpendre.

— Vou trazer-lhes um papel para afixar na porta.

— Sim, doutor.

— Seis semanas. Fui bem claro?

Claro e maravilhoso. Seis semanas sem escola. Vi a tia Lena acompanhar o médico

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à porta, ouvi as campainhas do seu trenó à medida que se afastava e saltei da cama.

— Hurra! Conseguimos!

A tia Lena tapou a minha boca com a sua mão.

— Cala-te! Podem ouvir-nos na rua.

Podiam ouvir-nos mas não podiam ver-nos através da janela coberta de gelo. A

minha tia abraçou-me e atirou-me no ar. Dançámos uma polca até cairmos na minha

cama, tontas e a rir.

Naquela primeira semana, regozijei-me com o facto de Eva e Kristína passarem

pela minha porta bem cedo de manhã. Iam para a escola, enquanto eu ficava

enroscada no meu edredão. Na segunda semana, porém, apetecia-me ir com elas, e na

terceira semana já gritava:

— Tia Lena, por quanto tempo mais tenho de ficar em casa?

Não posso ir à escola mas tenho de fazer os trabalhos de casa na mesma.

Durante duas horas por dia, a tia ensina-me, corrige os meus trabalhos a lápis

vermelho, tal e qual uma professora. Tenho sorte em não ter o violino comigo ou ela

obrigava-me a ensaiar, como dantes, todos os dias, sem cessar. Mas, pouco tempo

antes do início da minha quarentena, quando regressava a casa depois da escola, vi

uma multidão em frente aos correios. O pregoeiro da cidade estava a ler os avisos.

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Artigo 1. Os judeus têm de entregar todos os sobretudos e casacos feitos de pele

ou couro.

Artigo 2. Os judeus têm de entregar todas as peças feitas em ouro, prata, marfim

ou bronze.

Artigo 3. Os judeus têm de entregar os seus instrumentos musicais. Todas as

famílias judias que possuam um piano, um violino, uma flauta, um acordeão, uma

harmónica…

Não ouvi mais. Corri para casa com as novidades.

— Cretinos — murmurou a tia Lena. — Não conhecem quaisquer limites.

No dia em que os instrumentos iam ser levados, fiquei à espera dos polícias à

janela. Quando o que levou o meu violino ia a sair, pedi-lhe:

— Não mude de ideias.

— O que disseste?

— Não traga esse violino de volta. Promete-me?

Duas semanas mais tarde fui atrás dele porque levava o meu trenó. Como chorei!

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Não estava em casa quando levaram o rádio e a grafonola. Só soube depois do

jantar, que era quando ouvíamos música. Nessa noite a minha tia e eu escondemos as

nossas lágrimas por detrás das chávenas fumegantes de leite com mel que bebíamos.

Sem me dar conta, estava a usar a chávena para “tocar” até que ouvi a tia Lena

responder-me da mesma forma. Olhámo-nos ao mesmo tempo e desatámos a rir. As

batidas dela eram mais audíveis do que as minhas. Disse-me que era devido ao facto

de a chávena dela ser mais fina e estar quase vazia. Toquei com o jarro do leite, com a

compoteira do mel e com o açucareiro. Em breve, todas as chávenas, copos e taças

estavam fora das prateleiras e sobre a mesa da cozinha. Batia com os nós dos dedos,

com um garfo, com uma colher de madeira, por fora, na borda, no fundo.

— Vamos deitar água nesta taça. Tape-tape.

— Agora deitamos alguma fora.

— Onde está a tábua de lavar?

— Toma, tenta o batedor de claras.

— Consegues pegar no pilão e no almofariz? Bate, esfrega, arranha.

— Tia Lena, esta velha bacia azul faz mais barulho do que uma orquestra.

Ficámos a pé muito para além da minha hora de deitar, à procura de sons de que

gostássemos, a compor pequenas peças. Cada objeto da casa tinha-se transformado

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num instrumento musical.

Aborreço-me por não fazer nada, mas também não há nada que queira fazer. Será

que vou conseguir ficar a par das minhas colegas nos trabalhos de casa? É uma sorte o

diretor gostar da tia Lena e deixar-me ir à escola da aldeia. Mas será que a tia me vai

deixar regressar quando o aviso PERIGO! ESCARLATINA! for retirado? Ou ensinar-me-á

em casa, como disse ao rabino que faria? Pelo menos não voltarei àquela escola de

uma só sala. Detestava-a. A ideia tinha sido do rabino. “Manda-a para junto de nós”,

dissera à tia Lena em novembro, “para onde ela deve estar. Deixa-a aprender o que é

ser Judeu. Arranjei espaço em minha casa. Temos um professor excelente. O custo é

partilhado pelas cinco famílias judias…”

Doze alunos, um professor, todas as classes concentradas numa só sala. Malka e

eu estávamos na terceira classe. O professor trabalhava com uma classe de cada vez,

enquanto as outras se mantinham ocupadas a copiar passagens de livros, a decorar a

tabuada, palavras difíceis e poemas. Queixei-me à tia Lena do quão enfadonho era e

disse-lhe que preferia estar na escola da Eva. Não lhe disse que as crianças judias

contavam segredos umas às outras e me chamavam pagã. O rabino também era

culpado desta situação. No primeiro dia, entrou carregado de livros. Bíblias. A turma leu

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em voz alta, em hebraico. Eu fingia seguir o texto, mas esqueci-me de que a cabeça se

movia da direita para a esquerda. O rabino reparou.

— Levanta-te, Katarína. Relê as passagens que acabámos de ler.

Fiquei com a cara a arder. Nunca tinha aprendido o alfabeto hebraico.

— Com que então! — exclamou o rabino, cofiando a barba.

— Diz-nos, Katarína, qual é o feriado judaico que se aproxima e como vamos

celebrá-lo?

— O Natal? — arrisquei, entre dentes. Sabia que a resposta estava errada, mas não

me conseguia lembrar do nome do feriado que a família de Malka festejava. A sala

inteira explodiu a rir. Até a minha amiga, a soturna Malka, ria a bom rir. Mas o rabino

não achou graça.

— Com que então! Temos uma pequena pagã entre nós. Uma pequena pagã.

Tive de implorar à tia Lena durante duas semanas que me deixasse voltar à escola

da aldeia. Três dias depois, o rabino tocou à nossa porta.

— Que estás a fazer, Lena? A miúda assim só aprende a ter vergonha de ser judia.

O teu criado goy1, Janko Trnka, sabe mais sobre os nossos feriados e costumes do que

ela. Achas que a tua irmã, que descanse em paz…

1 Termo pejorativo que os judeus utilizam para designar os não judeus.

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— Sim, deixemo-la descansar em paz. Sou eu que educo a Katarína.

— Então ensina-a a ser uma boa judia.

A tia Lena falou em voz baixa. Não pude ouvir o que dizia, mas ouvi a resposta do

rabino.

— O quê? Uma boa pessoa? Que ideias tão modernas! Tem juízo, Lena. Já nos

estão a acontecer desgraças e vem por aí algo pior…

— Não, não vem. O nosso presidente é um padre católico; não deixará as coisas

irem tão longe…

— Surpreendes-me, Lena. Já ouviste falar da Inquisição?

— Isso foi na Idade Média. Estamos no século XX. O mundo civilizado não vai

permitir…

— O mundo civilizado! Devias ver o meu filho de nove anos! Vinha da escola da

aldeia com o nariz a sangrar, as roupas rasgadas e um olho negro. Os colegas batiam-

lhe e os professores civilizados assistiam. Por isso é que abri uma escola para nós,

antes da aprovação da lei. E por isso é que deves mandar a Katarína para junto de nós.

Se alguém avisar o Quartel-General que uma criança judia frequenta a escola pública,

toda a comunidade judia da aldeia será penalizada. Estás a pôr-nos a todos em risco.

Durante algum tempo, o silêncio reinou na sala. Depois, a tia Lena disse:

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— Está bem. Talvez a ensine eu mesma, em casa. A Katarína não se adaptou à

escola de uma só sala e o rabino sabe o que eu penso quanto à religião. Divide as

pessoas, cria sofrimento…

— É verdade, Lena! Todos devíamos ser irmãos! É uma pena que os Alemães não

ouçam o seu poeta Schiller e os Eslovacos não se interessem por ideias liberais. Não

importa o que pensas ou fazes. És judia, tal como ela, e ninguém te deixará esquecê-

-lo.

O rabino tinha razão; na escola da aldeia lembrar-me-iam constantemente que eu

era judia. E na escola judia, lembrar-me-iam que era pagã. Chamavam-me pagã porque

não sabia nada sobre religião, “cenoura” por causa do meu cabelo ruivo, “sardenta”

por causa das minhas sardas. Mas o que faz de mim uma judia? Quando o rabino saiu,

perguntei à tia Lena.

— Na nossa religião, se a mãe for judia, a criança também o é — disse-me.

— Mas a minha mãe não era religiosa, pois não? E nós também não somos.

— Não se trata só de religião, Katinka. Os judeus têm uma história comum, valores

comuns, tradições. É todo um modo de vida.

— Como assim?

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— Como acender velas à sexta à noite ou durante o Hanukkah…

Hanukkah! Era o que eu devia ter respondido quando o rabino me interrogou sobre

o feriado que íamos celebrar.

— O que significa Hanukkah?

— Há mais de dois mil anos, quando os judeus viviam no seu próprio país,

revoltaram-se contra Antíoco, o rei sírio. Os judeus acendem velas para celebrar…

— Mas nós não acendemos velas. Só nos bolos de aniversário. Porque somos

judias?

— Não sei responder, Katinka, e aqueles que sabem estão sempre a dar respostas

diferentes. Já definiram ser judeu como uma religião, uma raça, uma anti raça…

— Uma quê? Não entendo.

— Ninguém entende. Não faz sentido. Nós comemos presunto, não celebramos

feriados religiosos, mas seja o que for que pensemos ou façamos, seremos sempre

judias.

A tia Lena parecia o rabino a falar.

Uma forma de vida, dissera. Malka é judia e a sua “forma de vida” não tem nada a

ver com a minha. A Eva é católica e vive de forma semelhante à minha. Malka diz

sempre “devo…” ou “não devo…”. “Devo jejuar, usar mangas compridas e meias,

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mesmo em pleno verão”. “Não devo comer isto ou usar aqueles pratos”. “Não posso

comer lacticínios com carne”, disse-me uma vez, quando lhe ofereci bolachas com

salame e queijo. “Não tens compota?”

Em casa da Eva comemos pão com manteiga e fiambre, seja em que louça for ou

sem louça. Às vezes, Eva e eu assávamos presunto em espetos e comíamo-los com os

dedos quando esfriavam. Depois da escola, Eva, Kristína e eu andávamos de trenó até

escurecer. Quando me levaram o trenó, elas deixavam-me andar no delas. Malka nunca

vinha connosco: não era suposto ela brincar com as crianças da aldeia, trepar às

árvores, remar no ribeiro, assar batatas no campo. Às sextas, sem trabalhos de casa

que nos preocupassem, brincávamos até à hora de jantar. Malka corria para casa para

se preparar para o Sabbath2.

A forma de vida da Malka não tem nada a ver com a minha.

A primavera está a chegar. Ouço-a. A neve já derrete no nosso telhado, os

pingentes de gelo caem, as botas mergulham em poças. O gelo no lago da Eva já deve

estar demasiado fino para podermos patinar.

Quando o lago gelou em novembro, Eva convidou-nos para patinar. Fui todas as

2 Celebração semanal dos judeus que vai da noite de sexta à noite de sábado.

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tardes. Um dia, depois do Natal, ela disse-me que não me podia convidar mais.

— Porquê? — perguntei. — Passa-se alguma coisa? Estás zangada comigo?

Encolheu os ombros e abanou a cabeça.

— A minha mãe obrigou-me a dizer-to.

— Mas porquê? Que fiz eu?

Eva desatou a chorar, virou-se e correu.

Eu disse à tia Lena.

— Eu sei, Katinka. Aquela mulher disse-mo também.

Fez uma voz esganiçada para imitar a mãe da Eva: “Lamento, Miss Lena. Não é

nada pessoal, a Katarína é bem comportada. Mas sabe, como o meu marido trabalha

para o governo, não podemos ter uma menina judia a patinar na nossa propriedade…”

— Não fiques triste, Katinka — disse na sua voz normal. — Vamos para o rio Orava.

Ajudo-te a arranjar um lugar onde possas patinar. Vou contigo…

— Não — gritei. — Quero estar com as outras crianças. Eu sou como a Eva e a

Kristína. Sou como elas.

Eva chorou e implorou até que a mãe anuiu.

— Está bem, a Katarína pode vir patinar, mas não pode mostrar a cara.

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E eu escondia a cara de tal modo que só se viam os olhos e a ponta do meu nariz.

Sempre que passava um comboio, todas as crianças se aproximavam da borda do

lago para acenar. Às vezes corria com elas, mas Eva puxava-me pela manga para me

lembrar de que não devia mostrar a cara. Então, virava-me, e ficava de costas para o

comboio.

Trovoada. Ouvi-a hoje, ao meio-dia. É o gelo a derreter no rio.

Todas as primaveras, esse som assemelha-se ao de um apito que dá início a uma

corrida — todas as raparigas da aldeia correm para os campos para encontrar a

primeira campânula branca.

Saltei da cama, vesti-me e percorri o corredor em bicos de pés.

— Ei, o que estás a fazer?

A tia Lena apanhou-me a sair, já com o casaco vestido e as botas calçadas. Deve

ter ouvido o soalho a ranger.

— Responde-me. Onde vais?

— Sair, procurar campânulas brancas.

— Volta já para a cama imediatamente.

— Não! Quero ir lá para fora, com as outras crianças. Não quero ficar aqui fechada

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para sempre.

— Não é para sempre, Katarína; são só mais dez dias. Agora volta para a cama; as

pessoas podem ver-te.

— Deixá-las. Deixá-las ver que não estou doente, que me estás a obrigar a ficar na

cama. Deixá-las ver quão má és para mim.

— Tia Lena, mostra-me a notícia do jornal outra vez.

Já sei a história de cor.

Duas páginas amarelecidas que a minha tia guardara durante cinco anos. Uma

avalanche nas montanhas Tatra que matara seis esquiadores. O jornal trazia uma

fotografia deles. O meu pai, moreno e bem-parecido; a minha mãe, loura como a tia

Lena, mas mais bonita. Estão ambos a sorrir. Aposto que eles não me teriam besuntado

com aquele unguento malcheiroso para me fazer passar por doente. Teriam ido ajudar

as pessoas no campo de trabalho e ter-me-iam levado com eles.

— Por que não te besuntaste com o óleo, tia Lena?

— Quem me dera tê-lo feito! Mas achas que o médico me deixaria ficar em casa

aos cuidados de uma enfermeira que ainda não tem oito anos?

Claro que ela tem razão, embora isso não torne as coisas mais fáceis para mim.

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— Quanto tempo falta para eu voltar à escola?

— A nossa quarentena termina dentro de cinco dias, mas não vais voltar à mesma

escola. Vamos mudar de casa; vamos viver com o tio Teo.

— Vamos? É por isso que vocês se têm escrito tanto?

A minha tia assentiu.

— Não quero deixar a Eva.

— Eu sei que é triste, Katinka. É a tua melhor amiga...

— Porque não vem o tio Teo viver connosco?

— É advogado e precisa de ficar na sua aldeia.

— Mas os judeus já não podem ser advogados. É por isso que o tio da Malka teve

de vir viver com eles. Ela disse que não o deixavam exercer.

— O tio Teo tem uma autorização especial do Presidente Tito, uma vez que não há

mais advogados na terra dele.

— E onde é que ele vive? É suficientemente perto para eu poder visitar a Eva?

— Fica a cerca de duas horas de camioneta. Mas a mãe da Eva pode não querer

que ela nos visite muito.

— Por favor, tia, não nos vamos embora!

— Farás amigos na escola nova…

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— Não me vais ensinar em casa, como prometeste ao rabino?

— Não. Vais para a escola pública, porque lá não há outra. Os poucos judeus que lá

vivem são casais idosos com filhos já crescidos.

— Vou-me sentir tão só sem a Eva…

— O tio Teo tem um filho, o Pavel. Tenho a certeza de que vocês os dois…

— Ele não conta. É rapaz.

— Já não é um rapaz, Katinka. Tem vinte e um anos.

— Vinte e um? Isso é um adulto. Então não conta a dobrar.

Duas ou três vezes por semana, depois do último candeeiro da aldeia se apagar, a

tia Lena embrulha-me em roupa e leva-me até ao pátio.

— Respira fundo, Katinka — murmura, — precisas de ar fresco.

Nas três primeiras semanas da quarentena, quando as nossas botas chiavam na

neve gelada, a tia Lena tinha medo que os vizinhos nos ouvissem. Esgueirávamo-nos

para o canto mais escuro e ficávamos lá, muito juntinhas, a observar as estrelas. Agora

que só restam pedaços de neve cinzenta derretida e que já posso usar os meus

chinelos de pele de carneiro lá fora, ela costuma dizer-me:

— Corre até ao poço e volta, Katinka. Precisas de fazer exercício.

Quem me dera ter podido correr naquelas primeiras semanas. Até ao poço, para

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além dele, até às pastagens geladas por detrás dos celeiros. Sonhava poder correr sem

cessar através dos prados, de pular sobre riachos de neve derretida, de deslizar sobre a

neve no rio gelado.

— Anda lá, não sejas preguiçosa.

Agora que as nossas janelas já estão sem gelo e as pessoas já podem espreitar, a

tia Lena obriga-me a ficar na cama ou a sentar-me sossegada junto do fogão. As

minhas pernas parecem feitas de farinha. Não me apetece correr. Já não sonho com

corridas.

O nosso empregado, Janko Trnka, corta lenha para os nossos três fogões, varre o

gelo dos nossos degraus e deixa-nos pão, leite, queijo e ovos da quinta dele. Também

traz as cartas do tio Teo e leva as da tia Lena. Janko é um velho corcunda com um

bócio tão grande que pende do seu pescoço como uma bolsa suja. Hoje, pela primeira

vez desde há muito, pôde entrar na nossa casa. Ouço-o a empilhar troncos na cozinha.

— Janko Trnka — grito do corredor, — viste a minha amiga Malka?

— Foi-se embora — grita numa voz rouca e áspera, — foi-se embora com a família.

Onde estarão eles, pergunto-me. Num campo de trabalho? Não vão deixar Malka

ficar lá por muito tempo, por causa dos seus ‘devo’ e ‘não devo’. “Desculpem, mas não

posso trabalhar. Tenho de ir acender as velas para o Sabbath.” “Desculpem, mas não

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posso beber leite e comer carne ao mesmo tempo. Não há limonada?”

Malka vai voltar e o seu irmão Shaiko também. O que poderia ele lá fazer?

Descascar cenouras? Ajudar a pôr a mesa? Nem sequer em bicos de pés consegue ver

o tampo!

— Tia Lena, por que mandam crianças para os campos de trabalho?

— Não mandam. Só os que tiverem entre dezasseis e trinta anos vão. A família da

Malka deve estar escondida para proteger as duas filhas mais velhas.

— O diretor da escola falou-nos sobre os campos de trabalho. Disse-nos que o

trabalho faz bem a quem o faz, às suas famílias e ao nosso país.

— Que sortudos que somos, triplamente abençoados. Pergunto-me porque não

manda ele para lá as suas três filhas roliças.

— Diz que os trabalhadores ajudam os soldados eslovacos a ficarem livres para

irem ajudar os Alemães a combater os Russos.

— Não é verdade, Katinka. Os jovens estão a ser deportados, mandados para fora

do país contra sua vontade. Só judeus. É racismo.

O racismo perturba sempre a tia Lena. Preocupa-se com os Checos, os Ciganos, os

Protestantes; com as pessoas que perdem os seus empregos ou que não têm um

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salário decente. Foi presa uma vez, na cidade onde vivíamos, por distribuir panfletos

sobre os sindicatos. Já ouvi a mãe da Eva chamar à tia Lena “judia bolchevique e ateia,

sempre com a cabeça no ar.”

— Achas que a Malka vai voltar em breve?

— Não sei. Como nós, podem estar escondidas nesta aldeia. Ou podem ter ido para

a Hungria. Os judeus estão a salvo lá e a mãe da Malka tem família húngara.

— Será que voltam depois da guerra?

Silêncio.

— Voltam, tia Lena?

— Penso que sim. A casa deles é aqui. Katinka, não te estarás a esquecer de algo

importante? Não te lembras de que dia é hoje?

Abano a cabeça.

— É o último da nossa quarentena. Tens estado à espera dele…

— Tia Lena, ainda não tens trinta anos, pois não?

— Só os faço em outubro. Porquê?

— Ainda podem obrigar-te a ir trabalhar para o campo, não podem?

— Esta rusga terminou. Só durou alguns dias. Ficámos mais tempo fechadas para

eles pensarem que tinhas mesmo escarlatina.

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— Vai haver outra rusga? Podem levar-te enquanto estou na escola?

— Ninguém me vai levar. A autorização especial do tio Teo proteger-me-á. Não

ouviste o que eu disse, Katinka? Podemos sair amanhã.

— Lembras-te, tia Lena, de quando o médico me queria mandar para o hospital?

— Nem me fales. Fiquei aterrorizada que ele o fizesse.

— Se ele o tivesse feito, ter-te-iam levado para o campo de trabalho sem mim?

A minha tia abanou a cabeça.

— Não deixavas que te levassem a lado nenhum sem mim, pois não?

— Claro que não.

— Prometes, tia Lena?

Ela veio até à minha cama e beijou o meu queixo.

– Pensa no sítio onde gostarias de ir amanhã.

— Não me interessa. Já não há campânulas brancas.

— Procuramos violetas. E há salgueiros a florir junto ao rio.

Virei-me para a parede.

A tia Lena pegou-me na mão e beliscou as pontas dos dedos, uma a uma.

— Olá, Exordimus. Está com bom aspeto, Princesa Exilobí. Como passa a tia

Chalupka?

Page 28: Katarína - Kathryn Winter

Aňaňaňa, Athlonvěvev. Nomes brincalhões que tinham sido inventados para os

meus dedos quando criança.

Escondi a cara na almofada para me poder rir e depois virei-me para a abraçar.

Page 29: Katarína - Kathryn Winter

Querida Eva

Capítulo 2

15 de abril de 1942

Querida Eva,

Pediste-me para te escrever, sem falta, a contar a festa de casamento da tia Lena.

Não houve festa. Saiu com o tio Teo por umas horas e voltou casada. NÃO houve

música. NINGUÉM dançou. Alguns adultos vieram à noite beber vinho e comer bolo de

semente de papoila que a tia Lena fizera. Foi maçador. Fiquei acordada até às dez.

A casa do tio Teo é cinzenta. Tem um telhado de telhas vermelhas. Há um grande

castanheiro em frente à casa que cobre parte do telhado. No jardim, mesmo junto à

minha janela, está plantada uma nogueira à qual é fácil trepar. Quando acordo de

manhã, vejo pássaros a saltitarem de ramo em ramo e a afiarem os seus bicos.

Page 30: Katarína - Kathryn Winter

O jardim é grande. Quando me vieres visitar, jogaremos às escondidas. Podemos

esconder-nos atrás dos arbustos de groselhas verdes e vermelhas. No barracão

também há montes de esconderijos. Desculpa-me os borrões de tinta. Esta pena não

presta. Preciso de uma nova.

Beijos, beijos, beijos

Katarína

P.S. Amanhã receberei a tua primeira carta.

16 de abril

Querida Eva,

Corri da escola para casa para ler a tua carta, mas ainda não chegou. Vou ter de

esperar até amanhã.

A nossa professora é Miss Sipková. Gosto muito dela. A professora de bordados

tem uma boca grande e grita muito. As raparigas chamam-lhe a ‘Senhora Dragão’.

Partilho a carteira com a Bošena. O pai dela é polícia. Há dois polícias nesta aldeia.

A Bošena é simpática, mas não é a minha melhor amiga. És tu a minha melhor amiga.

Page 31: Katarína - Kathryn Winter

O filho do tio Teo, o Pavel, tem olhos azuis-escuros e cabelo loiro, como a tia Lena.

Trabalha numa serração junto ao rio e só vem a casa aos fins de semana. No último

domingo levou-me ao rio Orava (que também passa nesta aldeia) e ensinou-me a fazer

saltar pedras na água. Enquanto as dele saltam cinco ou seis vezes antes de se

afundarem, as minhas afundam-se logo.

Estava frio. Quando chegámos a casa, a tia Lena fez-nos chocolate quente e

aqueceu água para tomarmos banho. Ainda tenho de ir fazer os trabalhos de casa.

Muitos beijos,

Katarína

17 de abril

Querida Eva,

A tua carta ainda não chegou. Esta é a minha terceira carta. Recebeste as duas

primeiras?

Mostrei a Miss Sipková um poema que escrevi. É sobre o rio Orava e as montanhas

que avisto da minha janela. Fala de como a Eslováquia é bela. A professora disse que o

Page 32: Katarína - Kathryn Winter

poema era muito bonito. Vai mandá-lo para a Amanhecer, para que as crianças de todo

o país o possam ler. Tal como a tua, a nossa escola recebe a revista

às terças.

Temos uma nova criada. Chama-se Anka. Tem dezassete anos. Tem o cabelo

comprido e doirado. Não fala muito comigo. É convencida.

Beijos,

Katarína

P.S. Lembraste-te de pôr selos no envelope?

18 de abril

Querida Eva,

Prometemo-nos escrever todos os dias. Por que não cumpres a tua promessa?

Tens muito que fazer?

Tenho saudades tuas. A tia Lena não me dedica muito tempo. Está sempre a

cozinhar, a fazer pão e bolos, ou a dactilografar documentos no escritório do tio Teo.

Page 33: Katarína - Kathryn Winter

Quando me querem esconder alguma coisa falam em húngaro, como ontem à noite.

Não sabem que percebo quase tudo o que dizem.

Quando a tia e eu vivíamos em Bratislava, vivia uma família húngara no nosso

prédio, no rés-do-chão. Não falavam eslovaco. Eu brincava com as filhas, Ilonka e

Irenka, e aprendi húngaro. Perguntaste-me uma vez por que saímos de Bratislava.

Tivemos de sair porque Hitler queria que a capital da Eslováquia fosse Judenrein, ou

seja, limpa de judeus. E também porque a tia Lena perdeu o emprego. O patrão disse

que ela era comunista.

Beijos,

Katarína

P.S. Bratislava tem a casa mais alta do mundo – tem onze andares. Um dia,

quando formos mais velhas, hei de mostrar-ta. Também te mostrarei a casa onde nasci;

é a casa onde moram a Ilonka e a Irenka. Podemos visitá-las.

Page 34: Katarína - Kathryn Winter

19 de abril

Querida Eva,

Ontem esqueci-me de te dizer por que razão a tia e o tio tinham falado em

húngaro.

Estou sempre a pedir à minha tia que me deixe ir às reuniões da juventude Hlinka.

A Bošena diz-me que aprendem canções e danças, que jogam jogos, que marcham e

ouvem histórias sobre heróis eslovacos. Amanhã vão fazer uma ENORME festa de

aniversário para Adolf Hitler, que não vai lá estar. A Bošena disse que eu podia ir

mesmo que ainda não fosse membro. Pedi à tia Lena para ir e foi quando ela e o tio

começaram a falar (A GRITAR!) em húngaro.

Ele disse “Deixa a criança ir” – ele chama-me sempre a criança – “É bom que a

vejam lá; bom para ela, bom para nós, etc., etc., etc.” A tia Lena discordou “Não

permitirei que ela vá, Teo, há limites…etc., etc., etc.” Não percebi tudo o que disseram,

mas percebi o suficiente para saber que o tio estava do meu lado. Por fim, a tia

concordou em deixar-me ir à próxima reunião, mas NÃO à festa de aniversário de

Hitler.

Por favor, Eva, escreve-me.

Page 35: Katarína - Kathryn Winter

Muitos beijos,

Katarína

22 de abril

Querida Eva,

Todos os dias corro para a carrinha do correio. Ainda não recebi cartas tuas. Esta é

a sexta que te escrevo. Estarás doente?

Ontem a Bošena veio brincar comigo. O tio Teo obrigou-nos a ir lá para fora, para a

chuva. A tia Lena diz que ele já não está habituado a ter crianças em casa. Escreve

documentos importantes e precisa de se concentrar. Quando me vieres visitar, vais ver

a sala de espera dele. É a mais engraçada. Os camponeses não têm muito dinheiro.

Pagam com coisas das quintas deles: ovos, manteiga, queijo, presunto, fiambre.

Também trazem galinhas, galos, gansos, perus, patos, vivos. Enquanto esperam, vêem-

se cabecitas de penas a espreitar dos cestos e das trouxas que carregam atrás das

costas. Às vezes os grunhidos, os grasnares e os cacarejos são tão altos que o tio

Page 36: Katarína - Kathryn Winter

sai do escritório e grita: “Silêncio! O que julgam que isto é? Um celeiro?”

Já não há tinta no tinteiro, tenho de pa…

23 de abril

Querida Eva,

Penso que sei o que aconteceu às tuas cartas. A chefe da estação dos correios fica

com elas porque eu sou nova aqui e ela não sabe quem é a Katarína. Ou então, deu as

cartas a uma outra Katarína desta aldeia, por engano. Vou agora tentar saber porquê.

Beijos,

Katarína

P.S. Os correios estavam fechados. O aviso na porta dizia “O neto de Tomás nasce

hoje. Se Deus quiser, os correios abrem amanhã novamente.” Tomás é o padeiro da

aldeia. A tia Lena diz que a chefe da estação é a parteira da aldeia.

Mais beijos,

Katarína

24 de abril

Page 37: Katarína - Kathryn Winter

Eva!

Fui aos correios mal saí da escola. Não vieram cartas para nenhuma Katarína.

Estou mesmo zangada contigo. Faltaste à promessa de escrever todos os dias. És uma

preguiçosa. Não quero que me escrevas cartas nenhumas. Se me escreveres, não vou

ler nenhuma das tuas cartas. Devolvo-tas.

Katarína

25 de abril

Querida Eva,

Rasga em mil pedaços a carta que te enviei ontem. Lamento mesmo muito ter-me

zangado contigo. O que te disse não era verdade. És a minha melhor amiga. Gosto

muito de ti.

Katarína

Page 38: Katarína - Kathryn Winter

P.S. No caminho de regresso da escola apanhei um ramo de miosótis e atirei-o ao

rio. Disse-lhe que to levasse. Agora, tu, eu e a Kristina voltámos a ser as melhores

amigas do mundo.

28 de abril

Querida Eva,

Nem vais acreditar no que tenho para te dizer. Trouxeram um bacorinho ao tio

Teo. Resfolegava no cesto, com as pernas atadas. De repente, soltou-se e começou a

correr pelo corredor. A Anka e o camponês que o trouxe correram atrás dele, enquanto

a tia Lena se apressava a fechar todas as portas da casa. O desgraçado não parava de

guinchar. Finalmente a Anka apanhou-o. O tio disse ao homem que levasse “aquele

animal” de volta para a quinta, porque não tínhamos onde o guardar. Fiquei com pena.

Era tão rosadinho e limpo que eu teria arranjado lugar para ele no meu quarto.

Beijos,

Katarína

Page 39: Katarína - Kathryn Winter

1 de maio

Querida Eva,

Não te esqueças de que o meu aniversário é este mês. É uma sorte o dia 16 calhar

a um sábado. Como não há escola, podes vir. A Anka e eu levantámo-nos cedo hoje

para ver que telhado tinha o maior mastro enfeitado. Na noite anterior tínhamos feito

uma aposta. Eu achava que o maior era o da Poluška, já que ela é a rapariga mais

bonita da aldeia. A Anka apostava na filha do Presidente da Câmara, por ser a mais

rica. Estávamos ambas enganadas. O mais alto e bonito estava no telhado de Miss

Sipková. Tinha centenas de fitas e bandeirolas, quase todas vermelhas, que volteavam

em roda do poste. Às vezes, o vento apanhava-as e esticava-as o mais que podia; mas

logo voltavam de novo para o abraçar. Tanto a Anka como eu nos pusemos a pensar

sobre quem amaria Miss Sipková tanto. Vai ficar envergonhada na aula, porque todos,

sobretudo os rapazes, nos vamos meter com ela.

Esquece que te disse que a Anka era presunçosa. É muito simpática. A família dela

vive numa quinta e ela vai levar-me lá no seu dia de folga, logo que a escola acabe. A

tia Lena disse que eu podia ir.

Beijos,

Page 40: Katarína - Kathryn Winter

Katarína

P.S. Amanhã não te esqueças de procurar o meu poema na revista Amanhecer.

7 de maio

Querida Eva,

Isto é muito importante.

A tia Lena sabe que eu vou à missa com a Anka, mas não sabe que, todas as

noites depois de ela e o tio Teo se deitarem, a Anka me conta histórias de santos e me

ensina o catecismo. Não digas nada quando vieres cá no sábado.

Beijos,

Katarína

P.S. Diz à Kristina para também vir à minha festa de anos.

7 de maio

Querida Eva,

Page 41: Katarína - Kathryn Winter

Fui à reunião da juventude Hlinka com a Bošena. A chefe do nosso grupo tem

dentes amarelos tão grandes que lhe saem da boca. Disse-me que podia voltar a ir

como convidada da Bošena mas, para ser membro, tinha de levar um cartão timbrado

da Secretaria Central.

Aprendemos uma canção sobre as corajosas raparigas da Juventude Hlinka e

depois marchámos até à praça da aldeia, bradando “Viva Tito! Viva Tuka!” Tuka é o

Primeiro-Ministro.

A nossa diretora, Vojtech Rospačil, diz que todas as crianças eslovacas se deviam

sentir orgulhosas de usar o uniforme da Juventude Hlinka. Pedi à tia Lena para me

comprar um para o meu aniversário.

Beijos,

Katarína

P.S. Estou a tentar entrar para a peça da escola. Faz figas por mim.

Page 42: Katarína - Kathryn Winter

12 de maio de 1942

Querida Eva,

Vou contar-te o segredo mais extraordinário, mas tens de prometer esquecê-lo e

rasgar esta carta depois de a leres. Estou apaixonada pelo filho do tio Teo, o Pavel.

Quando for grande vou-me casar com ele. Não contes nada disto à Kristina. E não te

ponhas com risinhos parvos quando o vires no sábado. Que S. João de Nepomuceno te

impeça de falar. Lembra-te da regra da tia Lena – nada de presentes. Só faltam quatro

dias para nos vermos.

Beijos,

Katarína

P.S. Obrigada por teres feito figas. Miss Sipková escolheu-me para ser a Orquídea

Dançarina na peça da escola. O meu poema também não apareceu na revista

Amanhecer desta semana. Procuraste-o?

Page 43: Katarína - Kathryn Winter

17 de maio

Eva!

Perdeste a melhor festa de anos de sempre. Nunca mais te convido. Esta é

definitiva e absolutamente a minha ÚLTIMA CARTA.

Katarína

20 de maio

ISTO NÃO é uma carta. É só para te dizer que já não és minha amiga. A partir de

agora vou contar os meus segredos à Bošena.

Page 44: Katarína - Kathryn Winter

Santos

Capítulo 3

Todas as noites vou até ao quarto da Anka, em bicos de pés. Conta-me histórias do

Menino Jesus, da Virgem Maria, e fala-me dos santos, a propósito do dia em que se

celebram. Hoje, 13 de junho, é o dia de Santo António.

Começou tudo quando assinalei no calendário da cozinha a data do meu oitavo

aniversário.

— É um dia muito especial, Katarinka — disse ela.

— Lá isso é — respondi. — A minha melhor amiga, a Eva, vem visitar-me e vamos

ficar acordadas até tarde. A tia Lena vai fazer o meu bolo de chocolate favorito…

— Não é essa a razão por que é especial. 16 de maio é a festa de S. João

Nepomuceno.

— É um santo muito importante?

Page 45: Katarína - Kathryn Winter

— Dantes era o santo padroeiro do nosso país, quando se chamava

Checoslováquia. Antes da guerra.

— E agora, não é o nosso santo padroeiro? Será que os santos perdem o emprego

por causa da guerra, tal como aconteceu com os judeus e os comunistas?

— Os eslovacos agora têm o seu próprio país e o seu próprio santo padroeiro, e os

checos têm o deles. Mas S. João ainda é importante. Rezo-lhe sempre que atravesso

uma ponte. E também o faço noutras ocasiões.

— Uma ponte? Porquê?

— Katarína, não vês que estou ocupada? Tenho de ir buscar lenha à arrecadação e

acender o lume para o jantar. Mais tarde respondo-te.

Mais tarde, quando Anka estava a limpar a cozinha, mandaram-me para a cama.

Quando todas as luzes da casa se apagaram, bati à porta do quarto dela.

— Que fazes aqui, Katarína?

— Prometeste dizer-me porque rezas a S. João sempre que atravessas uma ponte.

— Digo-te amanhã.

— Amanhã tens que fazer.

Suspirou e indicou-me a única cadeira do seu quarto.

— Está bem, senta-te lá.

Page 46: Katarína - Kathryn Winter

O quarto de Anka é pequeno. Tem uma cama estreita, uma cómoda, um guarda-

-fatos e uma pequena mesa. As paredes estão cobertas de gravuras de santos. Por

cima da cama está pendurada uma grande cruz de madeira.

— O que te vou contar aconteceu há seiscentos anos. Foi quando João nasceu, na

cidade de Nepomuceno, perto de Praga.

A única luz que iluminava o quarto era a lua. Anka acendeu uma vela e foi buscar

um pacote de pagelas à sua cómoda atafulhada. As pagelas eram figuras de santos.

Na primeira que me mostrou via-se um homem vestido de padre. Por cima da

cabeça dele via-se sete estrelas. Na segunda, o mesmo homem estava numa ponte e

fitava o rio. A terceira mostrava-o com um dedo nos lábios. Na sua outra mão segurava

um aloquete.

— Para que serve o aloquete, Anka?

— João era um padre e era o confessor da Rainha Sofia. O rei queria que João lhe

contasse os segredos de Sofia, mas João não o fez, nem quando foi submetido a

tortura. Por isso, é o santo padroeiro dos segredos e das pontes.

— Das pontes, porquê?

— O rei queria nomear alguém da sua confiança como abade. Todos sabiam que a

escolha do rei era errada, mas ninguém tinha coragem para se opor ao rei, exceto João.

Page 47: Katarína - Kathryn Winter

O rei ficou tão furioso que torturou João com uma tocha ardente. Depois, mandou-o

amordaçar, amarrar a uma roda e deitar ao rio Vltava. Nessa noite sete estrelas

brilharam sobre o local onde João foi afogado.

No dia seguinte não podia deixar de pensar em S. João, no milagre das sete

estrelas e no que significava ser torturado. Nessa noite, esgueirei-me da cama e fui de

novo ao quarto da Anka. Queria saber mais coisas sobre os santos. Contou-me a

história de Santa Catarina.

— Era uma princesa. Bela, forte, inteligente. Não aceitava casar com ninguém,

nem mesmo com o rei, porque já era casada com Jesus. ‘Tortura-me quanto quiseres, ’

disse ao rei, ‘não mudarei de ideias’.

— Santa Catarina vela por ti, Katarinka, é a tua padroeira. Reza-lhe sempre que

estejas em apuros. Também lhe podes pedir favores especiais.

— Posso pedir-lhe que me liberte das minhas sardas?

— Hum… não sei. Deus fez-te com sardas. Não creio que Santa Catarina queira

interferir.

— Mas eu odeio-as! Toda a gente na minha turma faz troça de mim.

— Pede à velha Krasovka. Ela ajuda-te.

Page 48: Katarína - Kathryn Winter

— Ir falar com a Krasovka? Nem pensar. Já estive perto dela no cemitério. Estava

agachada por detrás de um túmulo.

— Não é uma bruxa. Sabe segredos sobre plantas e pássaros e coisas que

desconhecemos. Talvez descubra uma poção para as tuas sardas, se lhe levares uma

salsicha ou duas.

— Tenho medo dela. A Bošena jura que ela é uma bruxa.

— Ajudou uma mulher da minha aldeia. Fez as verrugas dela desaparecerem de

um dia para o outro.

— Nem pensar! Prefiro pedir a Stª Catarina.

Que sorte tenho, pensei, em a ter como padroeira.

— Fala-me de Santo António. Hoje é o seu dia.

— Nada de histórias hoje, Katarinka. Senta-te.

Hoje a Anka está diferente. Está pálida e tem os lábios semicerrados. A cruz que

pende do seu fio de ouro treme sobre a sua blusa de linho bordada.

— Não digas nada sobre o que ouvires.

— Não digo, Anka.

— Jura por S. João de Nepomuceno. Pela pagela do aloquete.

— Juro.

Page 49: Katarína - Kathryn Winter

— Que ele te sele os lábios.

Senta-se a meu lado, na cama, pega na minha mão e põe-na entre as suas.

— Há duas noites tive um sonho.

Fala baixinho, devagar, como se ainda estivesse a sonhar.

— Era um sonho contigo. Eras um cordeirinho a balir…

— Como sabes que o cordeirinho era eu?

— Cala-te, ouve. Sei que eras tu. O cordeirinho chorava, porque se tinha perdido…

— Encontrou o caminho?

— Não sei. Acordei.

Anka parou de falar. O quarto estava em silêncio, exceto pelo barulho que as

pingas de cera faziam sempre que caíam da vela. Será que a Anka não teria mais nada

para me dizer, interroguei-me. O que havia de tão especial no sonho que fez com que

eu tivesse de jurar por S. João?

— Katarína, ontem à noite tive uma visão.

Olhei-a especada.

— Uma visão? Que viste e onde?

— Aqui, no meu quarto. A Mãe Santíssima…

— A Mãe Santíssima veio a esta casa? Viste-a, no teu quarto?

Page 50: Katarína - Kathryn Winter

— Não a vi propriamente, mas senti que estava aqui. Sei sempre quando está

comigo. Sinto-a.

— O que sentes?

— Faz-se silêncio e ouve-se o ruge-ruge de um vestido de seda… Sinto-me tonta,

quente e fria ao mesmo tempo… fico com pele de galinha e as palmas das minhas

mãos a suar… e ontem pela primeira vez ouvi uma voz…

Os meus joelhos estão aos saltos. Puxo os cobertores de Anka para cima deles.

— O que disse a voz?

— Disse-me para te salvar. Para te mostrar o verdadeiro caminho. Não queria vir

trabalhar para uma família judia, mas algo me dizia que tinha de vir. Agora vejo o

porquê. Jesus quer-me aqui.

— Mas, Anka, já sou católica desde que me levaste à missa no domingo.

— Ir à missa ao domingo não chega para fazer de ti uma católica. Precisas de

conhecer as orações, estudar o catecismo, saber coisas sobre a Santíssima Trindade, os

quinze mistérios, os sacramentos… e mais do que tudo, Katarína, tens de acreditar no

filho de Deus, nosso salvador…

— Oh Anka, mas eu acredito, juro!

Page 51: Katarína - Kathryn Winter

A Anka comprou-me um terço e pagelas de santos, como as que ela tem. Escondi-

-as numa meia de lã, na minha cómoda. Ensina-me cânticos e orações católicas, faz-

-me perguntas sobre o catecismo, conta-me coisas sobre santos e visões que teve. A

luz da vela dá-me sono. Às vezes, adormeço na cama dela e volto para a minha em

bicos de pés, de madrugada, quando o galo canta.

Gosto de ser católica. É bom ter todos aqueles santos com quem falar. Quando

perco a minha pulseira ou a minha borracha Santo António ajuda-me a encontrá-las. Os

meus bordados são mais perfeitos desde que Santa Clara me ajuda. Santa Benedita

livrou-me da urticária e S. Vítor protege-me da trovoada.

Quando a tia Lena tem dor de cabeça, rezo a Santo Estêvão.

Às terças à noite a Anka e eu rezamos a Santa Marta.

Pedimos-lhe que transforme a massa que a tia fez num pão do qual ela se orgulhe.

O segredo

Capítulo 4

Page 52: Katarína - Kathryn Winter

Os gansos que estão debaixo da minha janela pertencem aos pais da Bošena.

Reconheço o macho cinzento que os guia e o ganso que coxeia atrás deles a grasnar,

incessantemente, para não ser esquecido e não se perder no caminho. O irmãozinho da

Bošena deve andar por aqui. Compete-lhe olhar pelos gansos.

— Jura!

Nem rasto dele. Debruço-me na janela.

— Jura!

Algo cai de uma árvore. Está descalço, embora estejamos no fim de setembro, e

tem o nariz a pingar.

— Que queres?

— Diz à Bošena que vou ter com ela ao cemitério quando tocarem as vésperas.

Despacha-te.

Nem se mexe. Palerma. Que lhe cresça milho nas orelhas!

Corro para a cozinha. Há roupas empilhadas nas cadeiras, mochilas espalhadas

pelo chão, filas de enlatados na mesa. Mal posso mexer-me.

— Não consegues dormir? — pergunta-me a minha tia.

— Não estou habituada a fazer a sesta. Posso comer uma maçã?

Page 53: Katarína - Kathryn Winter

Na despensa procuro nozes no saco de serapilheira e encho os bolsos. Também

pego numa maçã e num punhado de uvas passas.

Jura olha fixamente as nozes.

— Toma duas. Mando o resto pela Bošena.

Jura deixa os gansos e corre a dar o meu recado.

Deito-me na cama e espero pelo toque de vésperas. Um encontro no cemitério

significa que a Bošena e eu temos um segredo a partilhar. Hoje o segredo é meu.

— Tenho uma coisa para te contar — disse-me a tia Lena quando cheguei da

escola. — É um assunto sério.

Procurei uma pista no rosto da minha tia, mas nunca a tinha visto com tal

expressão.

— O tio Teo perdeu a licença especial que o Presidente Tiso lhe concedeu. Já não

pode trabalhar como advogado e podemos ser deportados.

— Estão a fazer outra rusga?

— As rusgas têm continuado a ser feitas durante a primavera e o verão. Até agora

estávamos protegidos.

— Mas o tio é velho e tu vais fazer trinta anos no mês que vem. Vão querer que

trabalhem nos campos?

Page 54: Katarína - Kathryn Winter

— Estão a levar toda a gente, crianças, velhos. O casal ao fundo da rua…

— O casal de velhos judeus que tu disseste que tinha mudado de casa…foi para o

campo?

— Sim, Katinka.

— Porque não se esconderam se não queriam ir?

— Não é assim tão fácil, Katarína. É preciso conhecer pessoas bondosas e

corajosas, ou pagar muito dinheiro. Aquele casal não foi avisado. A Guarda Hlinka

bateu-lhes à porta e levou-os.

— O tio tem dinheiro?

— Sim, tem. E fomos avisados. Hoje à noite, um lavrador, Husár, vai levar-nos até

outra aldeia – a cerca de uma hora daqui – e vai esconder-nos no seu celeiro.

Celeiro? O meu coração saltou de alegria. Não tinha bordado nem mais uma linha

e agora já não tinha de enfrentar a Senhora Dragão. Em vez de me agitar

nervosamente na minha cadeira, vou poder saltar de uma escada para cima de montes

de feno.

— Não podes sair mais de casa. Se alguma das tuas colegas – a Bošena, ou a

Karla, ou a Terka – aparecerem, mando-as embora. Não podes contar nada a ninguém.

Isto é muito grave. Percebes?

Page 55: Katarína - Kathryn Winter

— S… im…

Estava a pensar na maneira de me encontrar com a Bošena.

— Vou fazer uma mochila com as coisas de que vais precisar e podes juntar-lhes

lápis, papel, jogos, alguns livros – nada que seja volumoso ou pesado.

— E a Anka e o Pavel? Também vêm?

— A Anka vai ajudar a tua professora, a Menina Sipková, enquanto estivermos fora,

e o Pavel não precisa de se esconder. Tem uma licença especial por trabalhar na

serração.

— Quando voltaremos?

— Não sei. Não nos incomodes, a mim ou ao tio Teo, com perguntas. Vai para a

cama e tenta dormir. Chamar-te-ei quando forem horas de partirmos.

— Na próxima semana há ensaios para a peça da escola. Estaremos de volta nessa

altura?

— Katinka…

Ia começar a dizer algo, mas parou. Tinha um ar tão triste que parecia ir chorar.

O toque de vésperas! Assusta-me, embora já estivesse à espera dele. Fecho a

porta do quarto por dentro e salto pela janela. Apanho um atalho: salto a sebe, passo

pelo buraco da vedação do Radko, atravesso a pastagem – depressa, antes que o touro

Page 56: Katarína - Kathryn Winter

me veja – passo pelo pomar do tio Dodák – as maçãs já estão a mudar de cor, em breve

estarão maduras – e, em vez de ir pela ponte, saltito de rochedo em rochedo pelo rio,

corro pela colina acima e chego ao cemitério antes do último toque.

A Bošena já lá está, à espera.

— Rápido!— sussurro. — Não sabem que saí.

— E eu? — Franze o sobrolho. — Julgam que estou a fazer manteiga.

— É muito importante. É o maior segredo de sempre.

Os olhos de Bošena brilham de excitação.

As nossas regras são as seguintes: os grandes segredos só podem ser partilhados

no topo da colina, atrás da capela do cemitério. Aí desenhamos um círculo mágico.

Dentro do círculo estamos sob juramento e temos de dizer toda a verdade, sem omitir

nada. O poder do círculo mágico também afasta os espíritos – estão sempre prontos a

escutar e a bisbilhotar. Se uma de nós trair um segredo, fica sob o efeito de um feitiço.

— Podes tornar-te um ouriço-cacheiro, como o Fučik, o guarda-noturno — advertiu-

me a Bošena — ou um morcego! Lembras-te de quando a sogra do latoeiro

desapareceu durante um mês? A velha Krasovka castigou-a por falar demais.

Transformou-a num bode.

O mundo da Bošena é cheio de magias.

Page 57: Katarína - Kathryn Winter

Tropeça num rochedo e brande o punho para um gnomo que só ela vê. Vira o

balde do leite e persegue um diabinho com a vassoura. Fala com mafarricos que se

sentam em vedações e deita a língua de fora a um corvo – sabe quem ele é,

evidentemente. Quando decidimos tornar-nos amigas, levou-me à colina atrás da

capela e desenhou um círculo. Dentro do círculo jurámo-nos amizade e lealdade

mútuas, para sempre.

Sigo a Bošena colina acima. Tem a trança atada com uma fita – só usa fitas aos

domingos.

— É sobre o Pavel?

— Não.

A Bošena sabe que eu gosto do Pavel. É um dos grandes segredos que revelei

atrás da capela. De outra vez contei-lhe do beijo. O Pavel nunca me prestou muita

atenção, mas, um dia, de repente, pegou em mim e beijou-me no nariz. Isso passou-se

no dia em que obteve uma dispensa de ir para o campo de trabalho por trabalhar na

serração.

Passamos pela capela e chegamos ao topo da colina. A Bošena pega numa pedra

afiada.

— Toma. Desenha o círculo!

Page 58: Katarína - Kathryn Winter

Traço um círculo no chão enquanto ela entoa:

Círculo mágico, mau-olhado,

guarda o nosso segredo bem guardado.

Que nenhum ouvido humano

ouça o segredo da Katarína,

e se eu o revelar

que no inferno vá assar.

Entramos para o círculo. A cara dela é como um recipiente à espera de ser

enchido. A minha garganta aperta-se. Tremo, mexo nos bolsos. As nozes. Tinha-me

esquecido delas.

— Toma — digo à Bošena. — São para o Jura.

Mete-as nos bolsos apertados da sua larga saia de camponesa.

— Então?

O que se passa comigo? Estava tão ansiosa por partilhar o segredo e agora as

palavras enrolam-se na minha garganta como pedaços de pão seco.

— Conta-me!

Page 59: Katarína - Kathryn Winter

— Claro… conto já.

Uma andorinha chilreia por cima de nós. Sigo o seu voo através do céu vermelho,

sobre os telhados da aldeia: vejo a escola, os correios e a oficina do ferrador. Refaço os

meus passos sobre o riacho, por entre o pomar do Dodák, pela pastagem do Radko e

sobre a vedação, até à casa do telhado vermelho, parcialmente escondido pelo

castanheiro. Dentro da casa os meus tios estão a encher as mochilas. Vejo o olhar

preocupado da minha tia e ouço a sua voz:

— Não podes contar a ninguém… ISTO é muito grave… Percebes?

Será que não deveria contar este segredo, nem mesmo à Bošena?

Olho para o rosto rosado da minha amiga, membro da Juventude Hlinka e filha do

polícia da aldeia. Fixa-me atentamente e vejo que a sua expressão oscila entre a

curiosidade e a impaciência.

— O que foi? O gato comeu-te a língua?

De entre todos os sentimentos estranhos que me assaltam há um que se destaca,

mas o que se destaca faz-me sentir ainda pior.

— Bošena…

— Sim?

Page 60: Katarína - Kathryn Winter

— Bošena, eu…eu não posso contar a ninguém!

Ela assente.

— Claro! Só eu é que vou saber.

— Não. Eu não posso partilhar este segredo com ninguém no mundo! — Engulo em

seco e murmuro — Nem mesmo contigo.

— De que estás a falar? Trouxeste-me até aqui para fazeres de mim parva?

— Não, claro que não! Eu quero contar-te, mas sei que não devo.

— Porque não?

Não consigo olhar para ela ou responder-lhe.

— Mas eu sou tua amiga, Katarína. Sempre partilhámos todos os nossos segredos!

Quero tanto contar-lhe! Sinto-me como se uma corrente me levasse por águas

demasiado profundas, como se o facto de contar a Bošena o meu segredo fosse

conduzir-me de volta a terra firme.

— Tens de me contar! Estamos dentro do círculo mágico – estás sob juramento!

Tremo de frio, embora tenha as palmas das mãos húmidas de suor.

Bate com o pé no chão.

— Pela última vez, vais contar-me o segredo ou não?

— Não posso.

Page 61: Katarína - Kathryn Winter

A Bošena fita-me.

— Já não sou tua amiga — grita. — Odeio-te!

Vira-se e corre pela colina abaixo.

Quero chamá-la, pedir-lhe que volte, mas fico apenas a vê-la desaparecer.

Lá em baixo, a aldeia começa a ficar coberta por um véu cinzento e fino; aqui e

acolá uma luz brilha. Sai fumo negro das chaminés, que se mistura com o cinzento.

Dentro do círculo mágico, consigo ouvir as campainhas e os mugidos das vacas

que regressam da pastagem, bem como o estalar do chicote do pastor. Ouço gansos a

grasnar, mães a chamarem pelos filhos, carroças a percorrerem caminhos de terra

batida.

Aparecem as primeiras estrelas. A aldeia está silenciosa, agora. É tempo da

colheita da batata e as famílias dos camponeses comem ao ar livre, em redor de

fogueiras crepitantes.

Os cheiros da madeira queimada, da terra e das batatas assadas pairam no ar e

misturam-se com o cheiro das maçãs maduras, da relva acabada de cortar, das ervas

aromáticas que crescem nas encostas das colinas…

Page 62: Katarína - Kathryn Winter

Está a fazer-se tarde. Devia correr para casa o mais depressa possível, mas não o

faço. Algo me prende àquele lugar.

Será que os demónios e os mafarricos da Bošena estão a castigar-me por não ter

partilhado o meu segredo?

Não consigo sair do círculo mágico.

O celeiro dos Husár

Capítulo 5Consigo ver os rapazes da aldeia a jogarem futebol através das frestas do celeiro

dos Husár. O campo fica mesmo por debaixo do nosso esconderijo. Só preciso de me

encostar à parede e esgueirar-me por entre as tábuas. Já começo a conhecer os

jogadores.

O Anton é o que corre mais depressa. O Stefan tem as pernas mais fortes mas,

muitas vezes, passa a bola à equipa adversária, ou atira-a quase à altura do meu nariz.

O filho dos Husárs, Durik, é um batoteiro. Consigo vê-lo a rasteirar os outros jogadores

Page 63: Katarína - Kathryn Winter

e a jurar que não o fez. O mais velho, Viktor, tenta acabar com os desacatos entre as

equipas.

Hoje é domingo. Aos domingos todos os rapazes e raparigas que são demasiado

novos para jogar vêm apoiar as suas equipas. Ignác, o idiota da aldeia, bate palmas e

apita sempre que alguém marca um golo. As pernas dele são cotos que terminam nos

joelhos. Estica os braços para tentar apanhar a bola que lhe sobrevoa a cabeça.

O pequeno Miruško chora, porque é demasiado novo para jogar. Dá pontapés no ar

enquanto a irmã mais velha tenta limpar-lhe a cara com a camisa. Debaixo da tília, o

preguiçoso Matiš e o seu cão dormem. A tarde está quente. Quente demais para

outubro.

— Tia Lena, que horas são?

— Fala baixo! Já te disseram mil vezes para sussurrares!

Sussurro:

— Que horas são, por favor?

Ela aponta para o relógio.

— Só passaram três minutos desde que me perguntaste da última vez.

— Só três minutos? Estou a ficar doida!

— Já acabaste de ler ‘O Príncipe e o Mendigo’?

Page 64: Katarína - Kathryn Winter

— Já. Já li o livro cinco vezes.

— Decora o próximo capítulo da ‘Abelha Maya’. Decoraste tão bem os três

primeiros.

— Já estou cansada desse livro!

— E que tal decorares outro poema?

— São todos tão parvos!

A tia suspira. Como pode manter-se tão sossegada debaixo daquele monte de

feno, dias a fio, e só mexer os olhos e a cabeça?

— Tia Lena, porque acabaram os jogos de futebol?

— Não sei. Tem estado a chover.

— Mas hoje não está a chover!

— O campo deve estar muito lamacento.

— Não, não está, vejo-o daqui. Olha!

— Katinka, está quieta. Dorme a sesta ou vai visitar o Igor.

Olho de relance para a viga por cima da minha cabeça. O Igor não está lá. Deve

estar cansado de eu estar sempre a observá-lo. Deve estar a fazer uma teia noutro

lado. Ou a rastejar sob o meu cobertor. Ou está na nova barba do tio Teo.

— Não consigo dormir de tarde.

Page 65: Katarína - Kathryn Winter

A tia Lena suspira.

— Vamos brincar às vinte perguntas. Pensa em alguma coisa ou numa pessoa.

— Que jogo estúpido! Outra vez não! Vamos inventar um novo. Ou então conta-

-me uma história. Começaste uma ontem. O que aconteceu quando…

— Manda calar essa criança, Lena, eu vou ficar maluco!

O sussurro do tio Teo parece um sibilo. Há dias em que ele perde a paciência

comigo. Não que possa fazer muita coisa. A tia Lena está deitada entre os dois para o

impedir de me tapar a boca, como ele frequentemente ameaça fazer.

Não faria a sesta mesmo que pudesse. Quando faço a sesta, não consigo dormir de

noite e a noite passa ainda mais devagar. Não há nada para observar, ninguém com

quem falar. Só há ruídos assustadores e o som da tia Lena a dormir, encostada ao tio

Teo. Demasiado longe de mim, que lhe quero tocar.

— Tia Lena, porque está tão escuro?

— Estamos em novembro. Os dias estão a ficar mais pequenos.

O que significa noites mais longas. Mais barulhos assustadores, guinchos de

ratazanas, rostos assustadores que de dia revelam ser uma mochila ou um saco de

papel. Mais tempo para desejar que a noite acabe.

Page 66: Katarína - Kathryn Winter

— Tia Lena…

Lança-me um olhar admoestador.

Se estivéssemos num campo de trabalho, de certeza que não era pior. Estaríamos

ao ar livre, mexer-nos-íamos e falaríamos tanto e tão alto quanto quiséssemos.

Poderíamos gritar. Cantar. Aposto que eles lá cantam e contam histórias à noite, em

redor de uma fogueira. Depois de um dia de trabalho, dormiríamos uma noite

descansada. Não haveria barulhos ou rostos assustadores; nem tosses por causa do pó

do feno; nem gestos furiosos para impedir os insetos de nos picarem. O trabalho não

deve ser assim tão difícil. Pelo menos, não tanto quanto o é o facto de termos de estar

aqui sentados dia após dia, noite após noite, sem mais nada para fazer exceto contar

os minutos que faltam.

Puxo a manga da tia Lena. Pergunto-lhe, através do alfabeto de dedos que

inventámos, quanto tempo passou. Levanta o pulso para que eu veja que só passaram

cinco minutos.

O vento sopra através das frestas das tábuas do celeiro.

Empilhámos as mochilas contra as tábuas, tapámos os buracos com papel de

jornal, mas mesmo assim, sentimos o vento a soprar. Estamos vestidos com gorros,

Page 67: Katarína - Kathryn Winter

luvas e xailes; enterramo-nos ainda mais no feno, mas os meus dentes não param de

bater.

— Tia Lena, como vamos saber que a guerra acabou?

— Os sinos da igreja vão repicar. Todos os sinos de todas as igrejas irão repicar.

— E temos de ficar aqui até lá? Passar o Natal aqui?

— Não, Katinka. Iremos para casa antes disso.

— Em breve?

Não obtive resposta. O que significa que não será cedo. E vai ficar cada vez mais

frio!

— Quero uma bolacha de açúcar.

— Já não há nenhuma.

— Nem uma?

A tia abana a cabeça.

— Onde está a lata dos biscoitos?

O tio senta-se.

— Será que a criança tem fome ou está apenas aborrecida?

A tia encolhe os ombros. Não sabe. Nem eu mesma sei.

Page 68: Katarína - Kathryn Winter

— Lena, explica-lhe que temos de racionar a comida. Pelos vistos ela ainda não

entendeu isso!

— Deixa-a comer os biscoitos, Teo. O Pavel vai trazer novas provisões amanhã.

— E se ele não trouxer? Também preciso de explicar, a ti, que estamos em guerra?

A tia Lena pega na lata e dá-me dois biscoitos. Mastigo-os com a boca aberta para

aborrecer o tio Teo. São salgados e estão secos. Fazem-me sede.

— Onde vais?

— Preciso de beber e de fazer xixi. Por favor, tia Lena, vem comigo.

A minha tia põe-se à escuta de vozes ou passos. Não se ouve nada. Podemos ir.

Rastejamos até à borda da alcova e vamos ao balde de água. Sopro os insetos

afogados e os bocados de feno antes de mergulhar a colher.

Husár e Husárka, a mulher dele, mudam a água quando se lembram.

Também esvaziam o balde sujo. Fica no outro lado do túnel estreito, tão estreito

que temos de rastejar de barriga para baixo. O Pavel escavou o túnel através do feno,

da terceira ou quarta vez em que nos trouxe provisões. Foi ideia da minha tia.

— Precisamos de privacidade, disse. — Não podemos viver como porcos.

— Temos de viver, argumentava o tio Teo. — Rastejar até ao balde faz muito

barulho.

Page 69: Katarína - Kathryn Winter

— Teo, ou mantemos um mínimo de dignidade ou não vale a pena o sacrifício que

estamos a fazer!

O tio cedeu. Segurou a lanterna enquanto Pavel escavava. A tia Lena agradeceu-

-lhes.

— Um presente de aniversário atrasado. Que nunca esquecerei.

Todos a abraçámos. Ninguém se tinha lembrado que ela fazia anos.

Agora temos privacidade, mas tenho medo de sufocar. Inspiro fundo e só expiro

quando chego ao outro lado. Às vezes, tenho a sensação de nem sequer conseguir lá

chegar. É por isso que quero que a tia Lena venha comigo, para ter a certeza de que

não fico presa ou de que não sou engolida por uma ratazana.

Gosto do lado oposto à nossa alcova. Não há feno; apenas um chão de traves de

madeira. Posso pôr-me de pé. Esticar-me. Andar! São cinco passos até ao balde de

água.

A tia Lena sai do túnel coberta de feno.

— Ficas engraçada — rio-me dela. — Pareces uma meda de feno ambulante.

— Pouco barulho, Katinka, podem ouvir-nos!

Page 70: Katarína - Kathryn Winter

Os Husárs colocam uma escada quando nos trazem água para beber e lavar os

dentes. Já não nos trazem baldes para nos lavarmos. Limpamo-nos com bolas de

algodão embebidas em álcool.

Para esvaziar o balde de despejos põem a escada do outro lado e, quando acabam,

escondem-na de maneira que ninguém a possa utilizar.

— Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito…

Os filhos dos Husárs estão a jogar às escondidas com os amigos. O que tem de

procurar os outros conta até vinte enquanto eles se escondem. Veroǐka e Jolanka, as

filhas mais novas, procuram um esconderijo dentro do celeiro.

— Olha. Este é um bom lugar. Cobre-me com feno e procura outro sítio para ti.

— Onde?

— Em qualquer lado!

— Olha, vê!

— O que foi?

— Voltaram a pôr a escada. Fica aqui enquanto eu subo!

O tio Teo sobressalta-se. Aponta para as partes da escada que se veem da nossa

alcova. Uma vez mais Husánka esqueceu-se de tirar a escada!

Page 71: Katarína - Kathryn Winter

— A mãe disse para não subirmos.

— Ela não precisa de saber.

— Castiga-nos se souber.

— Quero lá saber! Eu vou subir.

O tio e a tia entreolham-se. Os olhos dele suplicam-lhe que impeça Vero ǐka de

subir, mas ela não pode fazer nada. A escada oscila. O meu tio manda-nos ficar quietas;

depois senta-se de pernas cruzadas entre as pontas da escada. A última coisa que o

vejo fazer é colocar um molho de feno por cima da própria cabeça.

Ouve-se um grito.

Um grito sucede-se a outro. Ouvem-se passos a descer a escada rapidamente.

— Salva-me, Jesus, salva-me!

— Veroǐka, o que te deu? Estás doida?

— Há um homem lá em cima, com palha a sair-lhe da cabeça…

— O quê?

— …e uns olhos enormes. Juro!

O tio aponta para os seus óculos, que são os olhos que Veroǐka julga ter visto.

Todas as crianças estão agora dentro do celeiro e as perguntas atropelam-se.

— O que aconteceu? — Por que gritou ela? — Que viu?

Page 72: Katarína - Kathryn Winter

Veroǐka chora.

— Diz que há um homem lá em cima, com palha a sair-lhe da cabeça.

— Um boneco de palha! A nossa Veroǐka viu um boneco de palha na alcova.

Quem disse isto foi o Durik.

— Vou espreitar — voluntaria-se. — Alguém quer vir comigo?

A cara do tio Teo está branca como a cal. Tem a boca escancarada. Uma vez mais,

a escada mexe-se. Ficamos petrificados.

— Ei! O que estão a fazer aí? Já para baixo!

Ouve-se a voz de Husárka sobrepor-se às das crianças.

— Há um homem lá em cima, Mamã, eu vi-o…

— Já para baixo, Durik, ou dou-te uma sova, mesmo com esse tamanho!

Ouve-se a escada a ser retirada e Durik a saltar ou a cair.

— Todos daqui para fora!

O celeiro fica vazio. Ainda ouvimos Veroǐka, com a voz trémula, a contar à mãe o

que viu.

O tio abana a cabeça.

— Logo à noite toda a aldeia vai saber.

— Ninguém vai acreditar nela, Teo. As crianças imaginam coisas.

Page 73: Katarína - Kathryn Winter

— O Durik é suficientemente grande para perceber. O rapaz vê um boneco de

palha, a mãe fica histérica, há uma escada escondida e fechada à chave. Ora o rapaz

não é estúpido e vai suspeitar de alguma coisa.

— Acalma-te, Teo. Não podemos ir embora.

— Temos de ir. Não podemos confiar na Husárka. A escada esteve lá toda a

manhã. Qualquer pessoa podia ter subido.

— Teo, não temos para onde ir.

— Temos — quase grito, lembrando-me, em seguida, que tenho de segredar. —

Temos um lugar para onde podemos ir.

Ponho-me entre a minha tia e o meu tio.

— Por favor, vamos para o campo de trabalho. Estaremos ao ar livre. Teremos

casas de banho em vez de baldes fedorentos. Posso brincar com outras crianças, sem

ter de vos aborrecer. Estou farta de estar quieta, de sussurrar e rastejar. Quero que

vamos para o campo.

A tia Lena suspira.

— Não sabes o que dizes.

— Sei. Quero ir. Estamos a apodrecer aqui porque és demasiado preguiçosa para

trabalhar. Odeio-te!

Page 74: Katarína - Kathryn Winter

O tio olha-me especado.

A tia Lena cobre o rosto com as mãos.

Tomei uma decisão: da próxima vez que o Durik vier ao celeiro, grito.

Há crianças que descem a montanha, transportando baldes cheios de bagas:

mirtilos, framboesas, murtas, morangos… Sumos rosa, vermelho e púrpura emprestam

cor aos seus pés descalços, à medida que pisam as bagas espalhadas pelo caminho.

Ignác, o simplório, tenta tocar os baldes que vemos passar.

— Vocês aí! Peguem num balde e juntem-se a nós. Há bagas para apanhar.

— Levantem os ramos de pinheiro do chão. Encontrarão cogumelos tão grandes

como punhos.

— Não posso.

— Que disse ela?

— Não sei. Não consigo ouvi-la.

— Ei, fala mais alto!

— Não posso. Eles podem ouvir-me.

— O quê?

Um jovem debruça-se para me ouvir. É Viktor. Já é um homem, até tem bigode.

Page 75: Katarína - Kathryn Winter

— Quem são eles?

— Tu sabes. A guerra. Estão à nossa procura.

— A guerra? — Viktor bate na anca e ri-se. — A guerra já acabou há muito. Não

precisas de sussurrar. Podes gritar.

Abro a boca para gritar, mas da minha garganta só sai um som rouco.

— Atira-lhe um balde, Stefan. Despacha-te, o verão não dura para sempre.

Um balde rola encosta abaixo. Estico os braços mas não consigo apanhá-lo.

— Despacha-te, está a fazer-se tarde.

Fito o balde branco e vazio.

O sol põe-se por detrás das montanhas.

O balde torna-se cinzento. Continuo a tentar apanhá-lo. Todas as crianças se foram

embora à exceção de Ignác. Bate palmas e guincha. Na escuridão tento agarrar o balde

que já deixei de ver.

Pés. A correr, a atropelarem-se, a mudar de direção. Pés de crianças a jogar

futebol. Lá está Anton, mais rápido do que os outros. E Durik, a rasteirar Stefan. Ignác,

de pé sobre os seus cotos, tenta tocar a bola quando lhe passa sobre a cabeça.

— Ei, tu, vem jogar connosco.

Page 76: Katarína - Kathryn Winter

Eu? Ele quer dizer eu, uma rapariga? Deve ser. Ignác e eu somos os únicos a

assistir.

— De que estás à espera?

Conheço aquele rapaz. É Miruško, já suficientemente crescido para jogar na

equipa.

— Não posso — sussurro, escondendo os cotos que tenho em vez de pernas.

— Lá está ela a sussurrar. Não acredita em nós.

— Ouves aqueles sinos? — grita o preguiçoso Matúš, debaixo da tília. — A guerra

acabou. Por isso estão a repicar.

— Tia Lena, é verdade? Onde está a tia? Ainda agora estava à minha beira, a

bordar.

— Tio Teo – viro-me para ele, — é verdade?

Há pedaços de feno que crescem na cabeça dele. E que lhe saem da boca. Há

aranhas a rastejar nos seus olhos vazios. Quero fugir mas as pernas não mo permitem.

Miruško faz ressaltar a bola.

— Ou te levantas antes de eu contar até dez ou nunca te deixaremos jogar

connosco. Estás a ouvir?

— Estou.

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— Um, dois, três…

Os sinos continuam a repicar. O barulho enche o vale.

Agarro-me a esse som como se fosse uma corda e tento levantar-me.

— Quatro, cinco, seis, sete…

— Para, não consigo!

— Não quê? Oito, nove…

— Não consiiigo!

Uma mão tapa-me a boca.

A cabeça de Ignác, o simplório, é uma bola de futebol que gira, gira, gira…

— Acorda, Katinka. Estás a ter um pesadelo.

A tia Lena esfrega-me a testa para acabar com o pesadelo. As crianças e o prado

desapareceram. Mas os sinos continuam a repicar.

— Tia Lena, aqueles sinos…

— Sim?

— A guerra acabou?

— Não.

— Então, porque repicam?

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— É Natal, Katinka. Estão a tocar para a Missa do Galo.

Encosto a testa às tábuas geladas e olho para a paisagem iluminada pela lua.

Tanto quanto consigo ver, há lanternas a tremeluzir nos caminhos que foram

abertos na neve. Vêm pessoas de todos os lados da aldeia para a igreja.

A Missa do Galo. Dentro da igreja há gente. Há luz. Quem me dera lá estar, com a

Anka; ela contou-me como era. Há mil velas acesas no altar. Os vitrais das janelas

brilham e os halos dourados dos santos reluzem. Os padres e os acólitos têm

paramentos festivos e caminham pela igreja abaixo com os queimadores de incenso.

Os círculos de fumo rodeiam as cabeças dos camponeses de faces coradas e roupas

quentes, dissolvendo-se depois no ar, em nuvens brancas. Os santos parecem querer

pisar essas nuvens. O órgão toca suavemente durante as orações. Depois, como um

pavão que estica a cauda, cresce em sons tão fortes e belos que nos fazem estremecer.

A igreja está cheia de música – o órgão, os sinos, os cânticos dos fiéis. Noite feliz, noite

feliz… entoam, dando as boas vindas a Jesus Salvador.

— Estás a tremer. Vai para debaixo dos cobertores.

— Disseste que não passaríamos aqui o Natal!

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Fito a tia Lena. À luz do luar a pele dela parece amarela. As faces estão cavadas,

os olhos encovados e sem expressão. Algo de afiado se mexe no meu estômago.

Rastejo para debaixo dos cobertores e enfio-me no feno.

— Depois da guerra, irei poder apanhar bagas com as outras crianças?

Ela não responde. Enrosco-me de tal modo que os joelhos me tocam o queixo.

— E quando a guerra terminar — sussurro, — deixas-me jogar futebol com os

rapazes?

Vira-se para mim. Os seus olhos arregalam-se. Volto a ver neles a chama de

antigamente.

— Deixas, tia Lena?

Pela primeira vez desde que viemos para o celeiro, ouço-a rir.

Um riso suave que ninguém mais pode ouvir.

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Rituais de primavera

Capítulo 6— O que se passa? Fala alto, pequena, não te ouço!

O tio Teo está sentado à secretária, a bater com um lápis nos nós dos dedos. Está

aborrecido comigo. Estamos em março, já voltámos do celeiro há dois meses, mas

ainda sussurro.

Tento de novo.

— O jantar está pronto.

Faz uma careta a imitar a minha cara e murmura qualquer coisa. Depois, debruça-

se e grita:

— O jantar está pronto! Foi isso que disseste? Di-lo de maneira que eu ouça!

Encolho-me e tapo os ouvidos. Agarra-me os pulsos e obriga-me a baixar as mãos.

— Vá lá, di-lo em voz alta!

Inspiro com força e grito:

— O jantar está pronto!

— Assim, sim. Agora já te ouço — diz, acenando com a cabeça.

Não me lembro de quanto tempo levei a recuperar a voz. Depois de ter passado

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quatro meses no celeiro, sempre que ouvia o menor ruído dava um salto. Todas as

palavras se assemelhavam a gritos. Estava sempre a mandar calar toda a gente. A tia

Lena tinha muita paciência comigo...

— Já regressámos, Katinka — lembrava-me constantemente. — Já não precisas de

sussurrar. E põe-te direita!

Também me custava não me vergar, com medo de que alguém me visse.

Será que a minha voz estava cada dia mais audível? Assim, de repente? Não me

recordo, mas o tio Teo parecia achar que não.

— Se essa criança continua a palrar sem cessar, não se pode trabalhar!

Está aborrecido. Vejo-o pela forma como continua a bater nos dedos da mão.

— Abre um livro — ordena-me. — E se queres cantar, canta no jardim!

Hoje não posso sair ou ler – há trabalho a fazer. A Anka e eu estamos a fazer os

preparativos para a Páscoa. Estamos a tingir ovos e a decorá-los com motivos

eslovacos. Nas mãos dela tornam-se bonitos. Nas minhas, partem.

— Por favor, Anka, ajuda-me. Quero tingir um ovo que seja mais bonito do que os

outros.

— Ai sim? — diz ela. — Para quem?

Para quem, pergunta, como se não soubesse! Para o Pavel, claro. Já o amava com

Page 82: Katarína - Kathryn Winter

todas as minhas forças antes de irmos para o celeiro, mas agora ainda o amo mais. O

lugar onde o amor nasce dentro de mim deve ter crescido durante o tempo em que

esperava para ouvir os seus assobios – um longo, três curtos – que eram o sinal para

baixar a corda.

Nas noites em que o Pavel vinha, o tio Teo ficava tão impaciente como eu. Só que

eu ficava todos os dias, e o tio só nas noites em que ele vinha. Quando via as estrelas

aparecerem no céu, olhava pelas frestas do celeiro e preocupava-se.

— Nunca se atrasou tanto.

— Que disparate — sussurrava a tia Lena. — Sabes que ele só vem quando

escurece e que leva uma hora para cá chegar.

O Pavel vinha uma vez por semana trazer-nos as provisões de que

necessitávamos, notícias sobre a guerra, e dinheiro para darmos aos Husárs por nos

esconderem no celeiro.

— Deve ter acontecido alguma coisa, Lena, ou ele já estaria cá a esta hora. Os

papéis da licença são uma armadilha. Podem ser revogados a qualquer momento.

Querido Jesus, não deixes que aconteça nada ao Pavel. Esquece tudo o resto que

te pedi e mantém-no são e salvo. Por favor.

Ouvem-se passos. Sustenho a respiração. Seja quem for, não para e não assobia.

Page 83: Katarína - Kathryn Winter

O tio olha para o relógio com a luz da lanterna e geme. Assobios. Mas não é o sinal do

Pavel, é uma canção. Conheço a letra. Só mais uma bebida, minha pombinha, e já me

vou embora…Talvez alguém que regressa da taberna. Prás!

— Jesus Maria!

Seja quem for, acaba de bater contra algo; pragueja e vai-se embora.

Continuamos às escuras e os únicos sons que se ouvem são a nossa respiração e o

tio Teo a descarregar a sua angústia no feno.

De repente, ouvem-se vozes. De homem e de mulher. Devem ter parado mesmo

debaixo do nosso esconderijo. Falam em voz baixa, mas consigo ouvir algumas

palavras. Ele está a pedir-lhe um beijo. Ela nega e ri-se, envergonhada. Noutras

ocasiões quereria ouvir o que têm para dizer, mas agora são um impeditivo para que o

Pavel venha. Pode ser que ele esteja à espera de que eles se vão embora. Silêncio.

Será que estão a beijar-se? Colo o ouvido às tábuas, mas logo me afasto por causa do

vento.

Nenhum de nós ouve os seus passos, mas quando ouvimos finalmente o seu

assobio é como se soasse uma trombeta celeste. O meu coração dispara. O tio desce a

corda. Para esconder a minha excitação, finjo que estou a dormir. O Pavel sobe pela

corda até à nossa alcova. Ouvem-se as saudações e as perguntas do costume. Como

Page 84: Katarína - Kathryn Winter

conseguiu cá chegar? Alguém o deteve? Ainda tem um emprego seguro? Alguém foi lá

a casa perguntar por nós?

— Ninguém — responde Pavel. — As deportações pararam. Ninguém sabe porquê.

— Talvez seja porque já somos tão poucos na Eslováquia. Já não compensa fazer

as viagens de comboio ou pôr a Guarda Hlinka a dirigir a operação.

— Não é uma questão de dinheiro, Lena — diz o tio. — A Guarda trabalharia até de

graça para se ver livre do último judeu.

— Ainda se ouve falar em judeus que são mandados para campos aqui na

Eslováquia, mas desde outubro que nenhum comboio foi para a Polónia. Já são dois

meses, pai. Acho que já é seguro voltarem para casa.

— Para casa?

Belisco-me para ter a certeza de que não estou a sonhar, mas o tio Teo comenta:

— O facto de não haver deportações hoje não quer dizer que não as haja amanhã.

Para já ficamos. Que novidades tens da frente? Eles já avançaram?

O Pavel passa de eslovaco para húngaro para que eu não perceba. Será que

suspeita que eu não esteja a dormir? Mas eu percebo na mesma. Eles são os russos e

parece que não posso saber que os tios querem que eles ganhem a guerra.

Quando o ouço abrir a mochila, sento-me, esfrego os olhos e espreguiço-me.

Page 85: Katarína - Kathryn Winter

— Olá, priminha. Acordei-te?

— Hum…

Apetece-me pôr os braços à volta do pescoço dele, beijá-lo mil vezes, mas em vez

disso, lastimo-me:

— Sim, acordaste.

Debaixo do seu cobertor, o tio acende uma lanterna e ilumina as coisas que o

Pavel trouxe: pão, queijo, uma salsicha, bolachas, um pote de mel, cerejas enlatadas.

Roupa interior limpa. Toalhas. Um livro para cada um de nós.

— Olha, tia Lena! As Viagens de Gulliver!

— Psiu! Calada!

Devia ter ido à “casa de banho” enquanto estávamos à espera do Pavel. Agora

tenho tanta vontade que não posso esperar um minuto. Rolo até à tia Lena e segredo-

-lhe ao ouvido. Ela suspira.

— O Pavel que te leve.

O Pavel? Que ideia!

— Vou sozinha.

— Katinka, não tem importância. Está escuro, ninguém te vê.

Tenho medo de ir sozinha. Deixo que o Pavel vá comigo. Deslizamos de barriga

Page 86: Katarína - Kathryn Winter

colada ao chão e chegamos ao outro lado do túnel sufocados com o pó.

O Pavel põe a minha cabeça dentro do casaco dele para que a minha tosse não se

ouça. Adoro o cheiro do casaco dele, adoro o facto de ter a minha face encostada ao

seu estômago. Continuo a tossir, mesmo quando já não há razão para o fazer.

Pega na minha mão. Andamos em bicos de pés sobre as pranchas de madeira. São

cinco passadas até ao balde. Quando chegamos lá, entro em pânico. Não posso fazê-lo

em frente a ele. Antes morrer. Ou explodir!

— Pavel, por favor… Leva-me de volta.

Desliga a lanterna, afasta-se o mais que pode e vira-se de costas.

Agacho-me sobre o balde. Assim às escuras, o Pavel não me pode ver. Além do

mais, está de costas, mas pode ouvir. Aguento o mais que posso.

O luar permite-me ver os cotovelos dele, levantados. Está a tapar os ouvidos. Para

não ouvir. Nesse momento fico à vontade e, juntamente com o alívio, cresce um

sentimento de amor tão grande que as lágrimas me vêm aos olhos.

— Pavel — sussurro nas suas costas, enquanto ele mantém os ouvidos tapados, —

amo-te, amo-te, amo-te…

Page 87: Katarína - Kathryn Winter

— Para quem é o ovo mais bonito de todos?

— Podes adivinhar, Anka. Vais ajudar-me, não vais?

A Anka ajuda-me. Quando acaba de o tingir, é de longe o ovo mais bonito de todos.

Embrulho-o num lenço bordado e escondo-o na minha cómoda.

No domingo de Páscoa, o tio Teo não vai para o escritório.

— Um dia perdido — resmunga.

A gritaria e os risos começam logo de manhã.

Os “cavalheiros” da aldeia vêm a nossa casa aspergir a tia Lena com perfume.

Perseguem-na à volta da mesa de jantar enquanto ela emite sons agudos e se agacha.

Sempre que a Anka se mostra, fazem-lhe o mesmo, mas, para mim, só sorriem – não

passo da priminha do Pavel.

A tia Lena oferece ovos coloridos de um cesto e serve bebidas.

— À vossa saúde, senhores!

— À sua, cara senhora.

O farmacêutico também aparece. O médico. O pai da Bošena, Švorka, vestido à

paisana. O outro polícia não aparece. E o encarregado da serração também não. A tia

Lena fica preocupada. Será que vão despedir o Pavel, o único empregado judeu?

Page 88: Katarína - Kathryn Winter

— Não será despedido — assegura-lhe o tio Teo. — Não podem despedir um

engenheiro brilhante, enquanto os outros estiverem na guerra.

— O diretor da escola da Katinka também não apareceu.

— Talvez ainda venha.

— E o escroque do Radko também não.

— Está a candidatar-se a Presidente da Câmara. Não pode ser visto com judeus.

— No ano passado o presidente veio. Com o juiz.

— Vieram conhecer-te. Felicitar-nos pelo casamento.

— Vi há dias o veterinário. Levou a mão ao chapéu e disse que viria hoje.

— É um fascista e um sacana. Juntou-se à Guarda Hlinka.

— Estão todos a fazê-lo, Teo, do juiz Bundig ao Andrej, o limpa-chaminés. É

assustador.

A tia olha para o cesto quase cheio de ovos. Por detrás da cortina, observa a rua,

mas não há sinais de nenhum outro homem a dirigir-se a nossa casa.

O Pavel está de férias. Passo dias a pensar que vestido hei de pôr, mas ele nem

olha para mim quando sai do quarto. Oh, Pavel, não vês quanto cresci? Não, não vê.

Está com pressa de ir aspergir as raparigas da aldeia. Dá-me um encontrão e nem

sequer se desculpa. Deita perfume na tia Lena e na Anka, mas nem sequer me põe

Page 89: Katarína - Kathryn Winter

uma gota.

O portão do jardim abre-se. Os rapazes da aldeia andam à procura da Anka. Se a

encontram, levam-na até ao rio e deitam-lhe baldes de água na cabeça. Ou põem-na

debaixo da bomba de água.

— Onde está ela? — perguntam-me. — Sabes?

Abano a cabeça. Procuram-na por todo o lado. Não a veem aninhada atrás dos

arbustos de framboesas. Eu estou mesmo à frente deles, mas nem sequer se importam

comigo. Tento suster as lágrimas.

— Eh, tu aí! O que te faz pensar que vais ficar seca?

Zasran, o vaqueiro da aldeia, está a saltar a vedação, com o cantil de pele de

cabra a tiracolo. Pergunto-me com quem estará a falar. Será que viu a Anka?

— Tu aí, com sardas. Espera até eu te apanhar!

Eu? Não vejo para onde está a olhar porque é zarolho – mas não há mais ninguém

em volta. Deve pensar que eu sou outra pessoa, uma rapariga mais velha. Quando se

aproximar de mim, vai ver que se enganou e ir-se-á embora.

Mas não. Agarra-me o pulso e abre a garrafa que traz com os dentes.

— Não! — grito, tentando libertar-me. — Não!

Corro. Segue-me, a coxear. Ouço-o respirar com força. Corro para a Anka, atrás

Page 90: Katarína - Kathryn Winter

dos arbustos, e grito para que a tia Lena me ouça, mas é o Pavel que quero que me

ouça.

— Não te atrevas a molhar-me!

Atrás de mim a respiração ofegante cessou. O que se passou? Será que ele se

cansou? Terá entornado a água? Espreito por detrás do barracão. O Zasran está

deitado debaixo da nogueira, a observar as nuvens.

— Ouviste? — grito-lhe, saindo detrás do barracão. — Não te atrevas a molhar-

-me!

Senta-se e boceja. Que preguiçoso! Não admira que as vacas fujam para o campo

de milho.

— Não te atrevias, pois não?

Encolhe os ombros. Faço-me tropeçar e caio a seus pés.

— Socorro! Magoei-me!

Grunhe, levanta-se e começa a ir-se embora. Oh, não! Não posso deixá-lo ir-se

embora. Toda aquela gritaria e nem uma pinga de água para mostrar. Todos me vão

gozar: Katarína, estavas a guinchar como um porco. De quem estavas a fugir, de um

fantasma?

— Volta aqui — suplico, a choramingar.

Page 91: Katarína - Kathryn Winter

— Para quê?

— Tenho sede. Vou desmaiar.

Volta-se e diz:

— Vou buscar água a tua casa.

— Não! Tens água contigo, não tens?

Soergo-me e apoio-me no meu cotovelo. De joelhos, dá-me de beber do cantil que

traz. Cheira a vacas, a fumo e a suor. Agarro no pulso dele e entorno o cantil. Um jacto

de água cai-me na blusa e no meu colo.

— Socorro, estás a afogar-me! Para!

O Zasran levanta-se. Sem olhar para trás, salta a vedação e desaparece.

Corro para a rua.

— Olha para mim! Estou toda molhada!

Encharcadas, as raparigas mais velhas da aldeia fogem dos rapazes, enquanto as

mais novas, atrás das cercas, observam.

Onde estás, Pavel? Olha para mim! Já não sou a tua “priminha”. Fui ensopada!

A Poluška, a criada do médico, foge do filho do moleiro. Por que se dá ela ao

trabalho de fugir? Não pode ficar mais molhada do que está… E a Marka? Parece uma

ninfa. Será água ou lágrimas que lhe correm pela cara abaixo?

Page 92: Katarína - Kathryn Winter

— Coitada de ti, Marka. Apanharam-te. A mim também! Olha.

— Apanharam-te — troça. — Que história mal contada! Ainda tens sono...

A Tonka e a Terka, as gémeas da minha sala, gozam-me.

— Que fizeste, Katarína, caíste no tanque?

— Ensoparam-me!

— Quem?

Se soubessem, não paravam de rir.

— Quem?

— Um dos rapazes mais velhos.

— Mentirosa!

Deitam-me a língua de fora e eu faço-lhes orelhas de burro.

O vento é frio. Tremo nas roupas molhadas, mas não quero que sequem. Quero

que o Pavel as veja. Tenho de ir para casa. Ele já deve ter chegado.

Não chegou. Sento-me na cozinha, à espera de ouvir o portão ranger. Quando o

ouço, levanto-me para ir ter com ele, mas vejo a Anka a choramingar. Tem o cabelo

loiro todo molhado e a blusa colada ao peito. Por onde passa deixa poças de água. A

minha blusa está seca. A minha saia, quase. Pavel, onde estás?

Esgueiro-me para a casa de banho. Abro a torneira e ponho um dedo na abertura.

Page 93: Katarína - Kathryn Winter

Não estou a fazer batota – as minhas roupas estavam molhadas; estou apenas a

mantê-las molhadas.

A tia Lena vê-me.

— Katarína, que estás a fazer? Ainda apanhas uma constipação, minha tola! Tira-

-me já essa saia!

Manda-me sentar na cozinha, junto à lareira. A minha saia está a secar por cima do

fogão. Escurece. Os pássaros instalam-se na nogueira.

Tenho um nó na garganta que não se desfaz.

O lindo ovo de Páscoa que ia dar ao Pavel está na minha cómoda, embrulhado no

lenço bordado. Não lho dou. Nem que ele entre agora pela casa dentro e despeje o

frasco de perfume por cima de mim.

Mas ele não regressa. Nem agora, nem depois. E quando regressar? Não vai

prestar-me a menor atenção, nem a mim nem à minha saia. Ou dirá apenas:

— O que aconteceu, sua desajeitada? Entornaste leite por cima de ti?

Via o Pavel mais vezes quando estávamos no celeiro. Nas noites em que ele vinha,

passávamos horas a sussurrar, deitados lado a lado.

— Ainda não adormeceste?

— Já estava a dormir.

Page 94: Katarína - Kathryn Winter

— Com os olhos abertos?

— Estavam fechados.

— Não quando abri os meus. Apanhei-te a olhar para mim.

Finjo ficar ofendida e viro-me de costas para ele. Será que ele se vai importar que

eu amue?

— Estás a tremer.

— Não estou.

— Aproxima-te mais.

— Não.

Mas volto-me de maneira a que ele me possa agarrar.

— Já te apanhei!

Contorço-me. Dou pontapés. Mordo-lhe a mão.

— Amigos?

— Não!

— Queres que te solte?

— Não me importo.

O tio Teo e a Tia Lena estão a dormir. Se há alguém a ver-nos é a aranha, Ivana,

ou um rato. O Pavel belisca o meu nariz. Somos amigos outra vez. Respiro fundo. As

Page 95: Katarína - Kathryn Winter

mãos dele cheiram a madeira verde, a cigarros e à pasta com que as esfrega quando

vem da serração.

— Pobre Katinka — sussurra — deves aborrecer-te imenso; já lá vão três meses,

mas em breve vais para casa.

— Vou?

Tenho estado a pedir para ir todos os dias, há já semanas, mas agora não quero ir.

Quero ficar aqui, com o Pavel, e nunca mais me ir embora.

— Quando?

— Dentro de dias. A tia Lena não queria dizer-te até ter a certeza.

— É a tua última noite aqui?

— Espero que sim.

Espero que não. Em casa vai ser como dantes. Não me verá sequer, nem terá

tempo para mim. Mesmo esta noite será curta. Tem de se ir embora ainda de

madrugada. Vejo as estrelas através das frestas das tábuas. Quem me dera ter um

milhão de mãos para as manter lá, para impedir a alvorada de vir.

O Pavel está a dormir. Os meus lábios estão tão perto da sua face. Será que ele

acordaria se eu …

— São horas de ires para a cama.

Page 96: Katarína - Kathryn Winter

… se eu o beijasse muito ao de leve?

— Ouviste?

— Sim, tia Lena?

— Disse que eram horas de ires para a cama. O teu quarto está quente. A Anka

acendeu a lareira.

— Que horas são?

Não obtenho resposta.

— Que horas são, por favor?

A tia Lena está sentada na mesa da cozinha, a olhar-me. Abana a cabeça.

— Que se passa?

— Katinka, já não estamos no celeiro. Regressámos a casa, lembras-te?

— Eu sei que estamos em casa.

— Então, porque sussurras?

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Uma aranha seca, três bigodes de gato

Capítulo 7

Esta noite é de lua cheia, a primeira desde o Pentecostes.

Tenho de o fazer esta noite.

Ainda falta algum tempo para ficar escuro; este é o dia mais longo do ano. Estou

sossegada ao jantar e mal toco na comida. A tia Lena vê se tenho febre. Sorrio, deito

mais algumas nozes na minha massa e como outra colher. Não quero que a tia se

preocupe porque, se o fizer, e vier ao meu quarto à noite, encontrará uma cama vazia.

Amanhã à noite, o Pavel vem a casa. O meu coração bate mais forte só de pensar

nisso. Desta vez, quando estivermos sentados à mesa, vou sentir os olhos do Pavel

sobre mim. Vai olhar-me como às vezes olha a Anka, quando julga que ninguém está a

observá-lo. Também não é para admirar. A Anka tem dezoito anos, cabelo loiro e faces

rosadas. Aos domingos, quando veste o traje nacional eslovaco, ficam todos a olhar

para ela. Mas amanhã o Pavel só vai ter olhos para mim.

Ajudo a Anka a lavar a louça do jantar. Tremem-me as mãos. Falta uma hora até a

tia Lena me mandar para a cama e duas até eu sair. Como vou conseguir ficar

acordada? Uvas passas! Vou precisar delas no caso de algum duende me tentar

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enganar. Vou levar um bolso cheio e uma fotografia do Pavel. Posso olhá-la durante

horas, mas, se o vir em pessoa, fico com a cabeça à roda. Quero tanto que ele repare

em mim mas, quando o faz, coro, gaguejo, fujo e escondo-me. Só que amanhã não vou

esconder-me. Amanhã vou estar bonita quando ele olhar para mim.

Está a anoitecer. Já se ouvem os pássaros a chilrear na nogueira. À meia-noite, a

lua cheia aparecerá no céu e já sei o que tenho a fazer.

A tia Lena manda-me à despensa buscar pão, queijo e uma maçã, o meu almoço

de amanhã na escola. Pego nas passas e levo-as para o meu quarto, para as esconder.

Na minha cómoda, debaixo de uma pilha de meias de lã, está a caixa. Dentro dela

tenho tudo de que preciso hoje à noite, juntamente com as instruções escritas num

pedaço de papel. Tive tanto medo de ir à bruxa, mas Santa Catarina não ouvia as

minhas orações e a velha Krasovka tem poderes mágicos.

— Não vás de mãos vazias — tinha-me avisado a Anka. — Leva-lhe uma salsicha e

mostra-lha assim que ela te abrir a porta.

A cabana da velha Krasovka fica na orla da floresta e parece prestes a desabar.

Não passa de um amontoado de tábuas. Não tem janelas nem chaminé. No dia em que

fui visitá-la, levei uma salsicha embrulhada numa folha de jornal. Os meus dentes

abanavam todos. Quase voltei atrás três vezes. Quando lá cheguei, a mão tremia-me

Page 99: Katarína - Kathryn Winter

tanto que quase não conseguia bater à porta. De repente, a porta abriu-se de par em

par. O poder dela deve ter-lhe dito que eu estava ali.

— Vai-te embora, espia — guinchou. — Não tens nada a fazer aqui!

Fiquei pregada ao chão. Ela estava toda vestida de preto, curvada sobre uma

bengala. Os olhos eram pequenos e estrábicos, tinha cabelo a crescer-lhe no queixo

pontiagudo, e um longo e enorme nariz. Ainda era mais feia do que eu pensava.

Levantou a bengala e apontou-ma, como se fosse uma varinha mágica.

— Vai-te embora! Não me ouviste?

Não conseguia proferir palavra. Só consegui abanar o jornal e mostrar-lhe a

salsicha. Olhou-a como se fosse uma serpente morta. De repente, a fisionomia alterou-

-se-lhe. Mostrou, num esgar, os dentes salientes. Cheirou a salsicha.

— Quem és, querida? — arrulhou. — Que desejas? Entra, entra.

O cheiro pestilento da cabana deu-me náuseas. Tive medo de vomitar.

Cheirava a carne podre, a queijo bolorento, a naftalina e a outras coisas cujos

odores me traziam lágrimas aos olhos. A única luz provinha de um buraco no teto e de

um velho fogão a lenha que tinha um pote ao lume. Havia prateleiras com garrafas e

campânulas de todos os tamanhos. Algumas delas tinham lá dentro coisas rastejantes.

Page 100: Katarína - Kathryn Winter

Ervas secas aos molhos pendiam do teto. A velha apontou uma cadeira para eu me

sentar.

Gritei. Algo vindo do teto tinha passado pela minha cabeça e pousado no meu

ombro.

— Não te assustes, querida; é o Šigmund. Quer ser teu amigo.

O Šigmund era um corvo. Havia pus no seu olho direito. Um outro pássaro andava

pela mesa, com a perna numa tala.

— Ficarão bons em breve — riu-se para consigo. — A velha Krasovka sabe do seu

ofício.

Prometeu ajudar-me, mas eu teria de voltar mais vezes lá, e de cada vez com uma

salsicha ainda maior. Na minha última visita, ditou-me as instruções a seguir.

— Que disparate — murmurou, quando lhe disse que já tinha mergulhado a cara

numa bacia de vinagre, que já a tinha untado com iogurte e pétalas de rosa molhadas

pelo orvalho.

— Que disparate! Contas cinquenta dias a partir da Páscoa; é o Pentecostes. Na

noite da primeira lua cheia vais fazer tudo o que eu te disser. Quando te olhares ao

espelho de manhã…

— De manhã! Tenho de esperar até…

Page 101: Katarína - Kathryn Winter

— Cala-te e ouve! Só poderás ver-te depois do galo cantar duas vezes, mas antes

que cante a terceira. Não adormeças — avisou-me.

— Mas se…

— Nada de ses, Katarína, isto é magia! Se olhares cedo demais ou tarde demais,

deitas tudo a perder!

— Está bem, está bem, eu espero…

A tia Lena chama-me à cozinha. Às nove horas dá-me um beijo de boas noites e

manda-me para a cama.

Visto a camisa de dormir por cima do meu vestido. No espelho vejo uma

adolescente desajeitada com cabelo ruivo e sardas. Odeio estas sardas! É por causa

delas que o Pavel continua a olhar para a Anka em vez de olhar para mim. E na escola

é “Ó sardenta!” para aqui e para ali. “Sardenta, sardenta, que tens na cara?” “Não vês

que adormeceu debaixo de uma macieira e que os pardais a apanharam?”; “Aquilo são

mas é caganitas de morcego!”; “De mosca!”; “Ovos de aranha!”

A boca contorce-se, o queixo treme. O espelho fica turvo. Espero que ela apareça.

Fica bonita no seu vestido de veludo verde e com o chapéu mole de abas largas. Pele

lisa, faces rosadas, cintura fina. Sou eu daqui a uns anos. “Não vás embora”, peço-lhe,

mesmo se quem me olha é a sardenta, de olhos vermelhos, um nariz borbulhento e

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uma boca a fazer beicinho. Deito-lhe a língua de fora. ”Não vou ver-te mais”, digo-lhe.

“Adeus!”

Não posso ler na cama depois das nove e meia, mas faço-o com uma lanterna

debaixo dos cobertores. Os Contos de Grimm. Leio-os vezes sem conta. Nas minhas

histórias favoritas sou a Princesa em apuros e o Pavel é o Príncipe que vem salvar-me.

Todos os príncipes têm a cara dele; todas as princesas têm a cara que eu queria ter.

O meu nariz toca a página. Ai! Tenho estado a dormitar. Salto da cama e verifico

as horas. Ainda tenho de esperar mais uma hora e um quarto.

Tento ler mais um pouco, mas não estou a prestar atenção. Passo a vida a olhar

para o relógio e a preocupar-me: será que o portão do jardim vai ranger e acordar a tia

Lena? Será que alguém da aldeia vai ver-me? Terei na caixa tudo aquilo de que

preciso? Tiro-a da cómoda e verifico mais uma vez o seu conteúdo: uma aranha seca,

três bigodes de gato, um dente de alho, a cauda de um rato, fezes de morcego, e o

unguento que a velha Krasovka me deu. Releio as instruções pela enésima vez. Já

passa das dez horas. Fecho os olhos e penso no Pavel.

Apaixonei-me por ele desde que o vi, o ano passado, em abril, quando a tia Lena

foi viver para casa do tio Teo. O Pavel e o pai vieram receber-nos ao portão. “Leve

como uma pena”, disse, levantando-me no ar, tão alto que o meu cabelo tocou os

Page 103: Katarína - Kathryn Winter

ramos da nogueira.

— Dá um beijo ao Pavel — encorajou-me a tia. — É da família, é o teu novo primo.

Ele olhava-me, sorria, e eu sentia-me corar até ao pescoço.

— Põe-me no chão — gritei, arrancando uma mão-cheia de folhas novas. — No

chão!

— Olha para ela a corar — disse a tia Lena, a rir.

— Não é verdade — desatei a chorar. — Não estou a corar!

O Pavel pôs-me gentilmente no chão e cobriu as minhas faces com as suas mãos.

Cheiravam a cigarro e a outra coisa – como a resina com que eu costumava esfregar o

arco do meu violino ou a seiva amarela que raspo das árvores. Foi então que o senti

pela primeira vez. Não sabia o que era, mas sabia que não conseguia suportá-lo.

Agarrei-lhe a mão, mordi-a e fugi.

As mãos do Pavel cheiram a massa lubrificante, mesmo depois de ele as ter

esfregado. Só vem a casa aos fins de semana e, às vezes, aos domingos. Esconde uma

barra de chocolate debaixo da minha almofada. Adoro chocolate. Já não se arranja

muito. Quando o tenho, engulo-o num instante, desejando sempre que houvesse mais.

A barra que o Pavel me dá dura quase uma semana. Divido as cinco partes da barra e,

todas as noite, como um quinto. Assim, vou vendo o chocolate desaparecer e, quanto

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mais desaparece, mais feliz fico.

Aos domingos à noite, como o primeiro bocado. O chocolate cola-se à minha

garganta como algodão húmido – o Pavel vai-se embora ao amanhecer. Se tiver sorte,

ainda consigo acordar com o som da sua bicicleta a descer os degraus, ou com o

barulho do portão do jardim. Por detrás das cortinas, vejo-o ajustar a mochila, enfiar as

calças nas botas, montar a bicicleta, e descer a colina. Fico à janela até ele desaparecer

atrás da mata de choupos.

Às segundas, as tulipas estão pálidas, os lilases não têm cheiro, os girassóis estão

tombados. Os livros são enfadonhos, os jogos não têm piada. Depois das aulas, subo

para o meu esconderijo, empoleirado no alto da nogueira, e só desço ao anoitecer. À

noite, como outro bocado do chocolate do Pavel. Ainda falta tanto para acabar, que me

dá vontade de chorar!

Às terças, começo a pensar no fim de semana que passou. Vejo o Pavel por todo o

lado: a desenhar à secretária, a olear a bicicleta no patamar da entrada, a fumar na

cozinha. Penso nas ocasiões em que olhou para mim, no que disse, no que lhe respondi,

e no que desejava ter respondido. Não falo muito com ele, exceto em imaginação. Em

imaginação, dir-lhe-ia à mesa da cozinha “Amo-te; senti tanto a tua falta.”. Mas,

quando ele interrompe as minhas fantasias com uma pergunta do género

Page 105: Katarína - Kathryn Winter

“Já fizeste os trabalhos de casa?”, apenas aceno ou resmungo.

Às terças à noite, o chocolate sabe bem e, depois da terceira dentada, já falta

menos de metade. Começo a pensar no que vestir para o jantar de sexta.

Às quartas, sonho acordada. Vou em bicos de pés ao quarto dele e abraço a sua

almofada. Cheiro as camisolas, os casacos de domingo, os cintos, os cigarros, as caixas

de fósforos. Na casa de banho, passo as cerdas do seu pincel da barba pela minha cara,

abro o frasco da pasta castanha com que esfrega as mãos, destapo o tubo de

brilhantina que usa no cabelo, para o tornar sedoso e brilhante. O cheiro faz-me senti-lo

tão perto de mim que quase o sinto respirar. Sou crescida, bonita e já não tenho

sardas. De braço dado, passeamos junto do rio, vemos o pôr-do-sol, segredamos coisas

um ao outro…

Melros, tordos, piscos, andorinhas, mas de onde vieram eles? Às quintas de

manhã, muito antes da Anka me acordar, fico na cama a ouvi-los. Da cozinha chegam-

me odores de grão moído para fazer o nosso café a fingir, e dos bolos que a tia Lena

está a cozer para o fim de semana.

Às quintas, sinto-me capaz de saltar o riacho no sítio onde fica mais largo e de

fazer saltar no rio as pedras que lanço. Tenho as melhores notas da sala e rio-me se me

chamam “sardenta”. O último pedaço de chocolate é o que sabe melhor. Deixo-o

Page 106: Katarína - Kathryn Winter

derreter lentamente na minha boca. Não era eu que ainda há pouco desejava que

acabasse?

As sextas são dias impossíveis. Entorno o leite, parto os cordões dos sapatos,

quebro as pontas dos lápis, sujo os cadernos com tinta. As pedras fazem-me tropeçar,

esmurro o nariz nas paredes, as portas trilham-me os dedos. Estou sempre a correr

para o espelho para tentar um novo penteado, experimentar um novo vestido. Quando

à noite ponho a mesa, não ponho talher para o Pavel.

— Outro talher — lembra-me a tia Lena. — É sexta.

— É sexta? — pergunto. — Tens a certeza? A semana passou tão depressa!

A Anka ri-se à socapa. A tia Lena sorri.

— Põe um vestido bonito.

— Tenho mesmo?

— Bem, se te der muito trabalho…

Nesta altura já vou a correr para o quarto, para me pôr bonita.

Bonita para o Pavel! Que horas são?

Quase onze! Toca a tirar a camisa de dormir! Ponho alho à volta dos lábios e na

barriga. O unguento da Krasovka é para pôr nos pulsos. Um bigode de gato na minha

meia, não importa o pé. Os sapatos têm de ser calçados ao contrário. Tenho de vestir

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um vestido que tenha bolsos. Num deles, ponho o dente de alho e o unguento; no outro

as minhas instruções e a fotografia do Pavel. As passas! Vão para junto do alho. O resto

das coisas fica dentro da caixa. Ato-lhe um lenço para poder transportá-la e saio.

Giro o fecho da porta devagar. O portão do jardim chia, mas não vejo luzes a

acenderem-se e ninguém me chama. Será melhor ir por detrás dos celeiros? Não, que

acordo os cães. Há muito que a taverna fechou e já ninguém anda por estes lados. O

guarda-noturno, o Fučik vesgo, obriga-me a ser cuidadosa! Com uns golos de

aguardente fica a ver o diabo por todo o lado! Se vir a minha sombra, grita e desata a

fugir – uma excelente maneira de pôr a aldeia no meu encalço. “Katarína, que fazes

aqui a esta hora?” “Onde vais?” “ O que levas nessa caixa?”

Não posso dizer a verdade. A velha Krasovka ameaçou transformar-me numa rã se

o fizesse. Os sapatos calçados ao contrário são uma tortura, mas tenho de continuar.

Estou quase a chegar ao cemitério.

Tenho calor por andar depressa e frio do medo que sinto. Os joelhos tremem-me. O

que é aquilo? Há algo a mexer-se naquele monte de terra. Céus, é um fantasma! É uma

campa recente e o espírito do morto está a pairar sobre o cadáver. Tenho medo, Jesus!

Que faço aqui a meio de noite? Vou mas é para casa. Quero lá saber se o Pavel faz

olhinhos à Anka! Tenho aqui a fotografia dele no meu bolso. Vou olhar para ele e dizer-

Page 108: Katarína - Kathryn Winter

lhe “Pavel, não me interessa se fazes olhinhos à …” Oh, mas ele é tão bonito! Amo-te,

Pavel, amo-te! Tenho mesmo de ir à floresta. Esta noite é lua-cheia, a primeira desde o

Pentecostes; é a minha última oportunidade. O unguento da Krasovka vai afastar de

mim o mau-olhado. Ela disse que afastava e eu acredito. Só o cheiro afasta um milhão

de fantasmas!

Será que consigo correr? Tenho dores, mas consigo. Corro colina acima e colina

abaixo, e só paro para recuperar o fôlego quando chego à floresta. Nunca estive na

floresta à noite. À noite e sozinha. Os dentes tremem-me e leio as instruções com as

mãos a tremer também: “Entrar na floresta, virar à direita, seguir o caminho até à

capela de Santo António... ” É uma subida íngreme. Descanso na capela e procuro um

raio de luar por entre os ramos dos pinheiros. “Dar três voltas à capela. Continuar a

andar. Quando o caminho bifurcar, voltar à direita.” Conheço o caminho. É o que

conduz à capela da Virgem Maria. Não é longe, não mais do…

— Socorro! Socorro!

Algo agarrou o meu vestido e umas garras tentam rasgar os meus joelhos!

— Deixe-me em paz!

Corro para a árvore mais próxima e abraço-me a ela. Consigo ouvir a minha

própria respiração, tão forte que acordaria um urso! Quem me terá agarrado? O diabo?

Page 109: Katarína - Kathryn Winter

Faço o sinal da cruz. “Que a terra te engula!”Será que me persegue? Não ouço cascos

nem me cheira a fogo. Volto a cabeça devagar. Algo mexe nos arbustos. É um pedaço

de tecido. Dou-me conta de que rasguei o vestido. Que vou dizer à tia?

No santuário, ajoelho-me e rezo. Peço perdão à Virgem:

— Mãe Santíssima, faz com que os meus dentes parem de bater, ou ainda partem

e fico como uma velha desdentada. Perdoa-me por ter roubado a última salsicha para a

Krasovka. Já não tinha dinheiro! E precisava das nozes para trocar pela cauda do rato.

Por favor, faz com que a tia Lena não descubra, e faz com que não vá esta noite ao

meu quarto. Prometo que não volto a mentir nem a roubar. Deixo-te a maior parte das

minhas uvas passas. Posso precisar do resto para impedir os duendes de me pregarem

partidas…

Vou até ao carvalho caído e encontro o rochedo com as três cruzes pintadas. Esta

é a árvore que derrubou o lenhador. O rochedo marca o lugar onde encontraram o

corpo. A bruxa disse que o fantasma dele ainda assombra a floresta, mas que não me

preocupasse porque o unguento proteger-me-ia. Tenho de esmagar um dente de alho

no rochedo e saltar o carvalho para trás. Aposto que há algum duende à espreita, à

espera que eu tropece para poder roubar as uvas passas. Que lhe pintem os dentes de

vermelho!

Page 110: Katarína - Kathryn Winter

Esta parte da floresta é densa demais para se poder passear nela; poucas pessoas

o fazem. Mesmo de dia é escura. Tremo. Cheira a raízes, a musgo e a mofo. Tropeço

em raízes, emaranho-me na corriola, mergulho os pés até aos tornozelos em poças de

lama. O trilho desaparece. Avanço, e afasto um ramo do olho enquanto outro se agarra

à minha garganta. Há ramos a agarrarem-se ao meu cabelo e ao lenço onde embrulhei

a caixa. Sinto comichão por todo o corpo por causa dos insetos que descem pelas

minhas costas e sinto um formigueiro no nariz, que acaba de roçar uma teia de aranha.

Será mesmo este o caminho, ou será uma armadilha? Terei entrado sem querer em

terreno proibido, sem hipótese de retorno?

De repente, a floresta abre-se. Uma enorme clareira surge diante de mim,

iluminada pela lua. Numa das extremidades da clareira, vejo o Charco das Bruxas a

brilhar ao luar. Tenho de esperar lá pela primeira badalada da meia-noite antes de fazer

o que me mandaram.

Atravesso a clareira e aninho-me entre as ervas. Que cheiro pestilento! Pergunto-

-me se as bruxas se banham nesta água. Será que bebem dela? Abro o lenço e deixo

cair a caixa. Vai ao fundo, mas volta à superfície e fica a flutuar.

Nuvens negras atravessam a lua, que é agora prateada e subiu mais no céu. Sopra

um vento frio e fiquei com pele de galinha. Ponho o queixo entre os joelhos e coloco os

Page 111: Katarína - Kathryn Winter

braços à volta deles. Tut! Tut! O meu coração para quando vejo raios de luz verde a

brilhar no loureiro. Começo a arfar. Há qualquer coisa a saltar na relva. É uma rã. “Diz-

me, rãzinha, foste outrora uma menina? Será que a Krasovka te castigou por não

guardares um segredo?” Nem sequer quero pensar que isso me vai acontecer.

Vou contar até cem para ajudar a passar o tempo. Um, dois…Que horas serão?

Três, quatro… Aquela árvore tem olhos e boca. Uma boca cruel. Cinco, seis…Aqueles

ramos longos e pontiagudos querem agarrar-me! Sete, oito, nove, dez, onze… Algo

mexe naquele arbusto! Doze… Está outra vez a mexer-se. Tre… Que som é aquele? Há

alguém a respirar por detrás de mim. Salva-me, Santa Catarina! Já parou. Treze,

catorze, quinze, dezasseis… Aquela nuvem parece uma cabeça enorme. A cabeça de

um ogre. Dezassete, dezoito, dezanove… Ali está um rebanho de ovelhas negras a

tentar fugir-lhe. Deza… Onde ia eu, em dezanove? Sim! Dezanove, vinte, vinte e um…

A caixa ainda flutua. Porque será? Será que as bruxas não querem a minha oferta?

Dong! Dong! O relógio da igreja! É meia-noite! Ponho-me de joelhos num salto e

debruço-me sobre o Charco das Bruxas. Faço uma concha com as mãos e mergulho-as

na… será que isto é mesmo água? É grossa como papas de aveia e tresanda! Quase

vomito enquanto a levo à cara. Não consigo! Os meus dedos abrem-se e pedaços de

uma papa escura escorrem de novo para o charco. Ervas daninhas, cheias de visco,

Page 112: Katarína - Kathryn Winter

agarram-se às minhas mãos. Dong! Dong! O tempo está a esgotar-se! Tenho de o

fazer! Agora! Aperto o nariz com força e com a mão que ficou livre salpico, melhor,

besunto a minha cara com aquela porcaria. “Boderes dágicos da noite…” Sufoco. Isto

não dá. Não posso tapar o nariz. Tenho de tentar outra vez. Esta não contou. “Poderes

mágicos da noite” – molhadela – “livrai a minha cara das sardas!” Molhadela,

esfregadela. “Poderes mágicos da noite — esfregadela — “livrai a minha cara das

sardas!” Molhadela, molhadela. “Poderes mágicos da noite…”

O eco da última badalada ainda se ouve quando me deito nas ervas, ofegante.

Tenho comichão na cara mas não posso limpá-la: a velha Krasovka disse-me para não o

fazer. Tenho de a secar à lua e depois as sardas vão-se de vez.

De vez!

As minhas sardas foram-se de vez! De vez! De vez! Só posso ver-me no espelho ao

amanhecer, depois do galo cantar duas vezes, mas sinto que já se foram!

— Foram-se! — grito, aos saltos na clareira, com os braços esticados como asas. —

As minhas sardas desapareceram, sou bela!

Nuvens pálidas deslocam-se no céu, mas não há ogres a uivar nem ramos de

árvores que queiram agarrar-me. Algo se mexe naquele arbusto – um pássaro, ou um

Page 113: Katarína - Kathryn Winter

rato do campo a caminho de casa – e aquelas luzes verdes no loureiro são os olhos de

um mocho. Já passa da meia-noite. É sexta. Hoje à noite…

— Eh, mocho! — grito, com as mãos em volta da boca. — Esta noite o Pavel vem a

casa. Eh! — grito alto para que todos na floresta me ouçam — Hoje o Pavel vai

apaixonar-se por mim!

Rodopio, escorrego e deslizo ao longo do caminho. Toco no rochedo com as três

cruzes pintadas, salto o carvalho caído. A Virgem sorri-me do seu santuário. Atiro-lhe

um beijo com a mão e, depois, corro pela colina acima, atravesso o cemitério, passo as

ruas da aldeia e regresso a casa.

— Sou bela, bela! — grito para a lua do Pentecostes, enquanto abro o portão do

jardim, abraço a nogueira e rodopio, rodopio…

A despedida

Capítulo 8

Page 114: Katarína - Kathryn Winter

— Velha Krasovka, sua bruxa estúpida! Que todas as salsichas se transformem em

excrementos e cresçam no teu nariz!

Foi o que disse quando me vi ao espelho. Estavam lá todas as sardas; não faltava

uma. E aquela bruxa culpou-me!

— Deves ter feito alguma coisa de errado, Katarína — disse — ou a magia teria

resultado.

— Fiz o que me mandaste — Tudo. Tal e qual.

— Adormeceste antes de o galo cantar pela terceira vez, não foi? Isso estragou a

magia. As sardas voltaram…

Aposto que nunca se foram. Tudo o que a magia dela conseguiu foi meter-nos em

sarilhos, a mim e à Anka. Os meus gritos acordaram a tia Lena, que viu o vestido

rasgado, os sapatos enlameados e o limo na minha cara. Fui castigada por ir à floresta

à noite e a Anka ia sendo despedida por me ter dado a ideia. Chorou, disse que nunca

imaginou que eu o fizesse. A tia Lena perdoou-lhe, mas demorou mais tempo a

perdoar-me a mim!

Quando me olho ao espelho, sinto a raiva que senti há três meses. Sou feia, feia.

Amanhã a Zorka vai levar-me a casa da Mariška Plčková. Será que os filhos dela

também vão troçar das minhas sardas?

Page 115: Katarína - Kathryn Winter

A Zorka, que nos traz manteiga de Klietky uma vez por semana, está a falar com a

tia Lena na cozinha. O meu saco está preparado. Não só estou pronta para partir, como

desejosa de o fazer. Vou sentar-me junto do cocheiro e segurar as rédeas. Sou eu que

vou conduzir o cavalo. Quando chorei na semana passada, a Zorka prometeu que mo

deixaria fazer. Nunca mais chorei. Até tenho praticado com um cavalo imaginário.

Hoje de manhã, a tia Lena tem os olhos vermelhos. Está pálida.

A semana passada disse à Zorka que ia ao hospital fazer uma operação e que

depois iria repousar com o tio Teo por uns dias, na montanha. Não queria deixar-me

com ele, porque ele estava muito ocupado e não tinha paciência para me aturar.

Receava que me sentisse sozinha e procurou uma família para ficar comigo. Durante

duas semanas no máximo, pagas adiantadamente. Eu não dava muito trabalho, disse.

Brincava sozinha durante horas e não era esquisita com a comida. Será que a Zorka

podia ir lá levar-me?

— Não posso, minha senhora. Ia dizer-lho. Vamos embora para a semana. Toda a

família vai. O meu irmão e eu vamos trabalhar numa fábrica de munições.

A tia Lena suspirou fundo.

— Pagam-nos muito bem. Há muitos jovens a partir.

Page 116: Katarína - Kathryn Winter

— Tenho pena de não te voltarmos a ver, Zorka. E pena que a Katarína não possa

ficar contigo. Precisa de uma casa temporariamente. Conheces alguma família que a

queira acolher?

— Minha senhora, na aldeia já não há casas disponíveis para gente da sua

condição.

— A Katinka sente-se bem numa quinta. A Anka costuma levá-la.

— Mas está habituada a coisas finas.

— Prefere andar descalça e trepar às árvores.

— Nas nossas quintas, as crianças não têm livros nem brinquedos.

— Não importa. Ela leva os dela.

— A senhora é que sabe. Eu pergunto à Mariška.

— Mariška?

— Mariška Plčková. Ela não vai para a Alemanha. A mãe morreu e ela tem de criar

os nove irmãos mais novos. A Katarína não se sentiria sozinha…

A tia Lena tem razão. Eu gosto de ir à quinta dos pais da Anka. Gosto de trepar às

árvores no pomar do Dodák, correr descalça pelo prado do Radko — se o touro não

estiver por lá — e jogar às escondidas com as minhas colegas dentro e à volta da

arrecadação dos Sledkos. Prefiro cuidar dos gansos no lago com a Tonka, ou aparar a

Page 117: Katarína - Kathryn Winter

relva com a Terka do que fazer os trabalhos de casa. Mas, quando escurece, corro para

casa. Quero jantar com a tia Lena, quero que ela me dê um beijo de boas-noites, e que

me aconchegue na cama ao deitar. Duas semanas é muito tempo. Duas semanas longe

da tia Lena …

O meu queixo começou a tremer e agarrei-me a ela a chorar.

— Pobre menina — disse a Zorka, acariciando-me a cabeça. — Não te preocupes.

Os médicos são espertos e vão tratar bem da tua tia.

Não era a operação que me preocupava. Eu sabia que a minha tia e o tio Teo iam

tentar arranjar documentos falsos para podermos ir para a Hungria. Lá não estavam a

deportar judeus e o tio tinha medo que recomeçassem a fazê-lo na Eslováquia.

— Então, Katinka, não tens vergonha? Acabei de dizer à Zorka que já eras

crescida, e estás a chorar como um bebé.

Senti que ela própria estava prestes a chorar.

— Vou prometer-te uma coisa — disse a Zorka. — Se disserem que podes ficar com

eles, venho buscar-te na carroça com o meu irmão Karol. Podes conduzi-la. Que tal?

Adorei a ideia. Ainda sentia as lágrimas, mas já sorria.

A tia Lena entregou-lhe um envelope cheio de dinheiro e um bilhete para a Mariška

Plčková. O bilhete diz que não sou sobrinha dela, que me adotou. Sou uma órfã cristã.

Page 118: Katarína - Kathryn Winter

Gostei muito da palavra cristã. Não uso a estrela de David e agora não vou mesmo ter

de a usar.

Os olhos da Zorka esbugalham-se.

— Tanto dinheiro! E se o perder?

— Vai seguro. Vou segurá-lo com um alfinete ao casaco da Katarína. Por que

motivo o Karol não entrou?

— Oh, está com as roupas do trabalho e não está apresentável.

— Que disparate, Zorka. Devia entrar e beber qualquer coisa para a viagem. Estás

pronta, Katinka?

— Estou. Só tenho de ir buscar uma coisa ao meu quarto.

Eram duas coisas, afinal. O pacotinho das pagelas e o terço. Levo-os no meu bolso.

A tia pôs na mala os livros que eu queria: As Viagens de Gulliver, O Príncipe e o

Pobre e O Pequeno Lorde Fauntleroy. As crianças da aldeia vão gostar deles, de

certeza. Também levo dominós, cartas e jogos. E, é claro, a minha macaquinha, a

Stefie.

Há um álbum de fotografias numa prateleira da sala de estar. Tiro uma da tia Lena

e junto-a aos santos e ao terço no meu bolso.

— Já podemos ir?

Page 119: Katarína - Kathryn Winter

A tia está a encher uma lata de biscoitos que fez para os miúdos.

— Sim, já podemos ir. Veste o casaco de inverno.

Está quente demais para um casaco de inverno, mas obedeço-lhe. Estou ansiosa

por me sentar no lugar do cocheiro.

A tia Lena põe o envelope dentro do meu casaco e pega no meu saco. Ontem

reparei que lhe tinha enfiado mais algumas camisolas de inverno. Deve estar distraída.

Estamos em setembro e só vou por duas semanas.

— Porta-te bem, Katinka. Não aborreças a Zorka com perguntas a mais.

— Vou indo, minha senhora. Dê-me o saco que já o vou instalando.

— Obrigada.

— Tia Lena, as castanhas estão a começar a cair!

Ela assente com a cabeça.

— Daqui a duas semanas ajudas-me a fazer um colar?

Acena de novo com a cabeça.

— Prometes?

Puxa-me para ela com força. O vestido de lã que usa faz-me comichão no nariz,

mas não a afasto. Gosto do cheiro dela. Sinto-a tremer. De repente tenho medo. Os

soluços dela provocam uma sensação de frio no meu estômago.

Page 120: Katarína - Kathryn Winter

— Pronta?

Uma voz rude. Deve ser o Karol.

— Sim, ela já vai.

A tia Lena tira um lenço do bolso e enxuga as lágrimas. Nunca me olha quando

chora, mas hoje fá-lo. Não consigo perceber o que diz, mas creio que disse “Que sejas

abençoada!”

O cavalo relincha. Estou ansiosa por segurar as rédeas.

— Não te preocupes tanto, tia. É por pouco tempo.

Vira-me de costas e diz:

— Vai, Katinka, vai.

Corro. A Zorka ajuda-me a subir. Só posso segurar as rédeas quando chegar à

estrada.

Vejo a aldeia a desaparecer, casa a casa. Tento ver a tia Lena, mas não consigo.

— Já podes pegar nas rédeas, Katarína.

Não me mexo. Sinto o medo que senti aquando do abraço da tia Lena. Será que

ela me mentiu? Mentiu à Zorka e à Mariška. Será que as camisolas de lã significam que

ela se estava a despedir de mim para …

— Não, não, não!

Page 121: Katarína - Kathryn Winter

— Eh, onde julgas que vais? Karol, segura nela!

— Não te preocupes, Katarína. O tempo passa a correr.

Os joelhos tremem-me. Não consigo chorar. Quero dizer à Zorka que a tia mentiu,

para que ela, zangada, me leve de volta.

— O Karol deixa-te segurar nas rédeas.

O rapaz dá-me as rédeas.

— Abana-as com força e grita Ala! — ordena-me.

As mãos tremem-me e a garganta sufoca de lágrimas. Não consigo gritar.

— Anda lá, não temos o dia todo!

— Calma, calma — sussurra a Zorka.

Mentiu-me. A tia Lena é uma mentirosa. Odeio-a.

Seguro as rédeas com firmeza. As minhas mãos já não tremem. Nunca mais quero

vê-la – enganou-me. Nunca mais!

Já não choramingo. Sinto-me forte. Odeio a tia Lena, odeio-a!

— Ala! — grito, abanando as rédeas. — Ala!

Avançamos.

O cavalo galopa colina abaixo, mas continuo a picá-lo.

Page 122: Katarína - Kathryn Winter

Passamos pelo cemitério, pela capela, pelo moinho. Pelo santuário de Santo

Estêvão. Pela cabana da velha Krasovka. Quero sair dali e nunca mais voltar!

— Ala! — grito, mais alto do que o barulho das rodas.

— Ala, ala! — grito contra o vento.

A espera de Katarína

Capítulo 9Da colina que fica nas traseiras da loja do ferrador, posso observar a estrada que

leva à aldeia. Subo a colina várias vezes ao dia. Estou à espera da tia Lena.

Agora que os choupos ficaram sem folhas, posso observar ainda melhor a estrada,

mas não por muito tempo. O vento frio do outono faz chorar os meus olhos e as franjas

do xaile fustigam-me a cara. Dentro da forja está quente. Ouço-os trabalhar. Gostava

de poder assistir, mas o ferrador não me deixa. Diz que as faúlhas podem cegar-me.

Vem alguém a descer a rua. É uma mulher, mas é baixa demais para ser a tia

Lena. É a bisbilhoteira da Topka. Talvez a tia venha hoje de tarde.

— Eh, Kubo — ouço o ferrador chamar. — Traz aguardente para os pastores.

Page 123: Katarína - Kathryn Winter

As ovelhas descem hoje das montanhas. O inverno aproxima-se. Do topo da colina

consigo vê-las a saltar carreiro abaixo. Os pastores usam fitas coloridas nos chapéus e

tocam flautas de madeira, mas quase não se ouve a música devido aos balidos e aos

latidos. A Mariška Pičková está à espera das três ovelhas da família. Limpou ontem o

redil.

— Eh, Kubo! Diz à minha mulher que vá buscar algumas moedas. Quanto maior a

ovelha, maior a gorjeta!

Se eu não gostasse tanto do Pavel, casava com um pastor. Percorreríamos os

bosques e os prados durante todo o verão, e no inverno ficávamos debaixo de um

edredão enorme. Mas será que um pastor me quereria – ruiva e sardenta?

As ovelhas regressam a casa quando começa a nevar nas montanhas. Em breve

necessitarei das camisolas que a tia Lena pôs no meu saco. Onde estará ela e o que a

demora? Já estarão a fazer as malas para irmos para a Hungria? Será que vamos antes

do Natal? Não, vamos celebrar o Natal na nossa casa de pedra cinzenta. Tenho tantas

saudades dela! Às vezes, finjo que estou em casa, empoleirada na nogueira, a contar

as telhas vermelhas do telhado que estão lascadas…

— Uma, duas, três, quatro, cinco…

Page 124: Katarína - Kathryn Winter

O ferrador está a contar as suas ovelhas à medida que se agitam e balem. Debaixo

do grande carvalho, um cordeirinho mama, com as pernitas a tremer de excitação.

Quereria pegar-lhe e abraçá-lo, correr as mãos pela sua lã.

O ferrador vê-me chegar.

— Mete-as dentro, Kubo, para que não apanhem mau-olhado. Despacha-te,

caramba!

— Brrrrrr, brrrrrrr — chama o aprendiz, à medida que empurra as ovelhas para o

redil.

— Entrem, suas burras! E tu — o homem vira-se para mim — desaparece!

A mão dele faz um sinal para afastar o mau-olhado.

A Mariška Pičková não me deixa ajudá-la, porque sou de uma família fina e não

posso estragar as mãos. Pobre Mariška! A mãe morta, o pai bêbado, e ela, que ainda

não tem vinte anos, a tomar conta sozinha de nove irmãos e irmãs. Leva ao mercado

toda a produção da quinta que consegue vender. Só comemos batatas com soro de

leite coalhado. O dinheiro da tia Lena já acabou há muito, mas eu continuo com eles, a

comer do que eles comem.

Penso que não por muito mais tempo. Estarei de volta a tempo de escolhermos

uma árvore, fazer biscoitos e embrulhar rebuçados para pendurar nos ramos. A tia Lena

Page 125: Katarína - Kathryn Winter

disse que este ano teríamos uma árvore de Natal por causa da Anka, mas ela sabe que

isso também me deixa contente. Quando ela e o tio voltarem, vão de certeza dar aos

Plǎkos todo o dinheiro que lhes devem. Deve ser suficiente para comprar um casaco de

carneira para a Mariška, meias quentes para a Anežka e um livro de leitura para a

Milka. O Miško vai ter as botas altas que está sempre a cobiçar; o Ferko a sua

harmónica, e o Vladko as ferramentas de que necessita para trabalhar. Para os gémeos

Ludo e Ludka, haverá cadernos e lápis coloridos, para a Danka uma boneca, e para o

pequeno Ján traremos sacos de doces da feira.

Vai ser o Natal mais feliz de sempre para todos. Quantos dias faltarão?

— Gosto das decorações que fizeste, Milka. Ensinas-me?

A Milka tem dez anos, um ano mais do que eu. Com os seus braços magrinhos, já

consegue carregar baldes de água do poço para casa.

Quando varre o chão da cozinha, asperge-o primeiro para não levantar pó. Vejo as

gotículas de água a formar desenhos, ornamentos eslovacos do tipo que as mulheres

ostentam nos seus trajes festivos. A Milka fá-los por todo o lado. Depois de bater a

manteiga, dá-lhe uma forma oval e faz-lhe um desenho em cima com uma colher.

Quando fica a seu contento, embrulha a manteiga em folhas de couve e leva-a ao

mercado ou ao presbitério para a vender.

Page 126: Katarína - Kathryn Winter

— Ensinas-me, Milka?

Encolhe os ombros e afasta-se. Todos os irmãos fazem isto quando falo com eles.

As outras crianças da aldeia fogem quando falo com elas, ou as mães e irmãs chamam-

nas para casa.

Quem me dera que o meu cabelo fosse castanho como o da Milka. Fazia uma

trança como ela e punha-lhe uma fita na ponta todos os dias, e não só aos domingos.

As flores do nosso jardim já devem estar murchas e a nogueira sem folhas. Não me

esconderia se a tia me chamasse para limpar os pratos ou arrumar o meu quarto. Oh,

se a tia Lena me chamasse agora, como correria para ela! Esfregava, lavava e secava

todos os pratos do mundo se pudesse vê-la na nossa cozinha a tratar das panelas no

fogão, a provar, a mexer, a abanar a cabeça, a acenar… Quando voltar, vou manter o

meu quarto sempre arrumado – os livros e os jogos na prateleira, os lápis de cor numa

caixa de sapatos, os seixos do rio em frascos de conservas. Ninguém vai mais

escorregar nos meus chinelos, sandálias ou sapatos; vou dobrar as minhas écharpes;

não deixarei os meus lenços e meias pelo chão; pendurarei os meus vestidos

engomados no armário. Alguns já não devem servir-me.

Porque será que os tios não voltam? Será que lhes aconteceu alguma coisa? Será

que não se importam que eu esteja sozinha à espera deles?

Page 127: Katarína - Kathryn Winter

— Pelo rio Hron acima, pelo rio Hron abaixo, o arco-íris mergulha, bebendo das

suas águas…

É domingo à tarde. O Kubo está encostado ao carvalho grande, a tocar acordeão.

Deixo o meu posto de vigia e corro para a música. Algumas raparigas da aldeia, com

blusas e casacos bordados, deram as mãos em círculo e dançam.

— Ninguém rivaliza com o povo eslovaco em espírito, coragem ou valor — cantam

com vozes esganiçadas.

Conheço a letra da canção. Conheço os passos da dança. Abram o círculo, deixem-

-me entrar.

— Venham, Milka, Františka, Ružinka, Zuzka — chama uma das dançarinas. —

Juntem-se a nós!

O meu rosto esboça um sorriso. De ouvidos à escuta, espero que chamem por

mim.

— Pelo rio Hron acima, pelo rio Hron abaixo, o arco-íris mergulha, bebendo das

suas águas…

Aproximo-me. O círculo aperta-se.

Penso muitas vezes que vejo os meus tios na estrada e que corro ao seu encontro.

Corro até me aproximar e ver que não são eles. Ontem tive a certeza de que vi a tia a

Page 128: Katarína - Kathryn Winter

chegar à aldeia. Era uma mulher da altura dela, que carregava uma mala e vestia

roupas citadinas. Caminhava por entre os choupos. Saltei, corri, desci a colina aos

tropeções. Enquanto me acercava mais dela, continuava a parecer a tia Lena. Quando

finalmente a olhei de frente, vi que se tratava de uma estranha.

— Para de me olhar fixamente, menina — ralhou. — Vai-te embora!

Fiquei ali, a arquejar, sem desviar os olhos da cara dela. A mulher soprou para a

manga, que é o que se faz para afastar o mau-olhado. Fê-lo por causa do meu cabelo

ruivo. Benzeu-se e continuou a andar.

Também continuei a andar. Voltei para a quinta, mas só chorei quando cheguei ao

estábulo, junto da Svetlana. A Svetlana tem olhos castanhos grandes e doces. Cheira

bem e o seu bafo é quente. Sento-me no banco da ordenha, encosto o nariz ao seu

flanco e choro até adormecer. Quando acordo, sinto-me bem. Corri de novo para o topo

da colina para observar a estrada.

— Ouviste? Agora é a vaca do moleiro!

Do lado de lá do regato, há rapazes a cortar erva para levarem para casa em sacos

de serapilheira. Andam devagar, foice em punho, trocando mexericos. Não me veem

atrás do salgueiro.

Page 129: Katarína - Kathryn Winter

— É a quarta vaca a morrer desde que ela chegou — diz o Martin, o filho do

ferreiro.

— Dizem que o cavalo do Shelík se empina quando ela atravessa a rua!

— É verdade! A cabrinha do Topka salta sempre que ela passa por casa dele.

— A carroça do Lobák virou-se no outro dia. Não viram nenhuma pedra. Ele diz que

ela lhe lançou um feitiço!

— Lançou pois! A avó Lobáková jura!

Senti muitos arrepios nos meus braços, mas queria saber mais.

O Martin viu-me sair de trás da árvore. Ficou de boca aberta. Apontou-me um dedo

trémulo. Os cortadores de erva ficaram hirtos. Só os seus olhos seguiam o dedo de

Martin.

— Eh, rapazes, de que estão a falar?

A minha voz quebra o feitiço. Largam as foices e os sacos e desatam a correr para

a aldeia.

A Mariška Pičková não quer que eu vá com ela à igreja. Não gosta que as pessoas

olhem e lhe façam perguntas.

— Basta que rezes em casa — diz-me.

Page 130: Katarína - Kathryn Winter

Todos os dias, depois do jantar, ajoelho-me com os Plǎkos aos pés da Virgem de

madeira e dizemos as nossas orações. Fico ajoelhada na cozinha mesmo depois de

todos se terem ido deitar. Rezo para que a tia Lena volte. Como também não gosto de

ir para a cama, fico. O quarto onde durmo é frio e sinto-me sozinha. O quarto quente

fica do outro lado da cozinha. É onde dorme a Mariška. Numa cama dormem ela, o

pequeno Ján e as outras quatro irmãs. Noutra cama dormem o pai e os quatro irmãos.

As camas deles são tábuas sobre barris. Não têm colchões; só feno e peles de ovelha,

mas, como estão todos juntos, não devem ter frio.

Às vezes peço-lhe que me deixe dormir com eles, mas ela nem sequer me ouve!

Sou uma hóspede; tenho de dormir sozinha, numa cama condigna. É a cama onde a

mãe dela morreu. Enrosco-me debaixo do abafo de lã e, até adormecer, falo com a

minha macaquinha, a Stefie. Também falo com a Nossa Senhora e o Menino Jesus. No

quadro por cima da cama, o Menino parece mais novo do que o Ján e está sentado ao

colo da sua mãe.

Quem me dera poder sentar-me no colo da Mãe Divina. Tem uma cara triste e

esguia como a da tia Lena quando estávamos escondidos no celeiro.

— Vi-te na feira, Mariška, toda ataviada com a tua saia dos domingos.

Page 131: Katarína - Kathryn Winter

Hoje à noite as mulheres da aldeia vêm até casa dos Plǎkos preparar penas para

almofadas. Sentam-se no chão da cozinha e começam a espirrar à vez. A Mariška tem

sacos cheios que servirão de dote para as irmãs, embora não acredite que alguma

delas venha a casar.

— São pobres demais — diz.

Mandaram-me para o quarto frio, para a cama. Mas, através de uma frincha na

porta, posso observar as mulheres a trabalhar e ouvir as suas bisbilhotices. Os dedos

mexem-se com rapidez, arrancando barbas, amaciando as penas. Há tufos de penugem

a voar pela cozinha toda – como a neve do pisa-papéis de vidro que o tio Teo tem na

secretária.

Zofka, a parteira, pisca o olho.

— A nossa Mariška esta…atchim!…va a falar com o Kubo.

A Mariška fica vermelha. Deve estar apaixonada por ele.

A mulher do Stelík acredita que o aprendiz de sapateiro namora uma rapariga de

uma aldeia vizinha.

— Um bom partido — comenta.

— Ele merece melhor — diz a Topka. — Ouvi umas coisas. Sabem que ela…

Page 132: Katarína - Kathryn Winter

O círculo de lenços floridos aperta-se e as vozes são demasiado baixas para eu

poder ouvir o que dizem. A Tinka Lobáková conta histórias acerca de uma cigana ruiva,

uma bruxa da aldeia da irmã. A Topka diz que ouve gemidos vindos da chaminé à meia-

noite. A mulher do moleiro vê diabinhos a saltar de sacos de serapilheira.

— Por falar em diabos — diz a mulher do Stelík — o avô Stelík viu alguns nos

bosques, na noite em que passou pelo atalho, vindo da feira.

— Depois de beberem demais, as pessoas veem coisas estranhas.

— Talvez tenha visto guerrilheiros.

— Tinham chifres e caudas longas e negras. Ele jura.

— Diabo, guerrilheiro, é tudo igual! — diz a Topka. — Um quer fazer mal à nossa

alma; o outro, ao nosso país.

— Algumas pessoas pensam de forma diferente. Dizem que os guerrilheiros

querem salvar o nosso país.

— De quem, Zofka?

— Dos alemães.

— O quê? Temos muita sorte em tê-los como amigos. São bons para nós. Vê o que

aconteceu à Polónia, à França, à Holanda, à Bélgica…

Page 133: Katarína - Kathryn Winter

— A Topka tem razão. Não há filas para o pão na Eslováquia; ninguém está a

bombardear-nos.

— Mas foram eles que começaram a guerra…

— Cala-te, Zofka. E diz a essas pessoas que pensam de forma diferente que estão

a ser traidoras.

— Que Deus nos valha! No sítio onde o meu primo mora, os guerrilheiros estão a

pilhar quintas e a roubar mantimentos.

— Na aldeia da minha irmã raptaram duas crianças. Mantenham as vossas em

casa depois de escurecer.

— Só deviam raptar aquela miúda estranha que a Mariška tem em casa. Ouviram

como ela assustou a irmã do Padre Chrupák? — perguntou a Tinka Lobáková. — Aquela

que veio visitá-lo no Natal. Diz que a miúda lhe saltou para a frente na estrada e que

não parava de olhar para ela.

— E a mania que ela tem de estar sempre no cimo da colina — comentou a mulher

do ferreiro. — Ainda lá cria raízes!

— Que fará ela lá em cima?

— Não és a única a querer saber isso. Tem havido muitas coisas estranhas nesta

aldeia ultimamente!

Page 134: Katarína - Kathryn Winter

— O meu marido diz que ela não é uma criança normal.

— Ai não é, não.

— Não a queria nem por todo o dinheiro do mundo.

As outras mulheres assentiram.

— Mostra-nos o bilhete que a tia te mandou, Mariška. Lê-o de novo.

A Mariška foi ao armário buscar o bilhete. “Vou para o hospital fazer uma operação

e procuro uma família que albergue a nossa menina. É uma órfã cristã que adotámos

quando os pais dela morreram numa avalanche há sete anos.”

A Mariška não sabe ler. Decorou o bilhete à força de o ouvir ler pelo padre e pelo

pregoeiro da aldeia. “Disseram-me que eram uma família respeitável que precisava de

algum dinheiro extra. Dentro do casaco da menina está um envelope com o montante

equivalente a vinte coroas por dia para duas semanas.”

— Vinte coroas! — exclamou a mulher do Stelík.

— Nada mau para…

— Deixa-a acabar. Continua, Mariška.

“Espero regressar dentro de dez dias, duas semanas no máximo. Se não puder

fazê-lo, pagaremos a dobrar cada dia extra que a Katarína ficar convosco.”

— Santos santíssimos, Mariška, vais ficar rica. A rapariga já cá está há três meses.

Page 135: Katarína - Kathryn Winter

— Não ficarei rica, mas precisamos bem do dinheiro. Somos tantos a comer…

— Então, não precisas de mais um. Livra-te dela, Mariška.

— Mas a mulher pode voltar, Topka. A Katarína diz que os tios a vão levar para

casa no Natal.

— A mim parece-me que a tia morreu no hospital.

— Ora! Se alguma vez lá esteve.

Não esteve. Os meus tios foram viajar. Descobri-o na tarde em que vim mais cedo

da escola e vi as cortinas fechadas e as gavetas da escrivaninha abertas. Espalhados

pelo chão estavam papéis, fotografias, roupas. Quando me viram, ficaram petrificados

como estátuas. O tio recompôs-se mais depressa. Gritou-me que fosse para o meu

quarto.

Passado algum tempo, a tia Lena sentou-se junto de mim, na minha cama.

— Katinka, eu ia dizer-te que o tio Teo e eu vamos viajar por uns dias…

— Eu sei. Vão arranjar papéis falsos para podermos ir para a Hungria.

Ficou sem fala.

— Katarína, como soubeste?

Oh, não! Tinha acabado de revelar o meu segredo. Só podia confessar-lhe que

sabia muito mais húngaro do que parecia.

Page 136: Katarína - Kathryn Winter

— Quando aprendeste? Onde?

— Em Bratislava, com a Ilonka e a Irenka. Com as criadas que tínhamos. Contigo e

o tio a falarem.

Abanou a cabeça.

— Durante todo este tempo sabias e fingiste não saber?

Pensei que ia ralhar-me, mas não o fez.

— Bem, minha macaquinha, também tenho um segredo a confessar. Sabia que ias

ao quarto da Anka à noite.

— Quem te disse?

— Ninguém. Uma noite vi que a tua cama estava vazia. Ia bater à porta da Anka

quando ouvi a tua voz. Estavas a recitar uma passagem do catecismo.

— Mas não entraste.

— Algo me deteve. Voltei ao quarto e contei ao tio.

— Ficou zangado? O que disse?

— Disse que a Anka estava a ensinar-te algo de útil e aumentou-a.

Desatámos a rir. Quando parámos, ela disse-me:

— Não estaremos muito tempo ausentes; duas semanas no máximo. Durante esse

tempo, ficarás numa quinta…

Page 137: Katarína - Kathryn Winter

— Com os pais da Anka?

— Não. Com pessoas que não sabem muito sobre ti ou sobre nós. Dir-lhes-emos

que és uma órfã católica adotada. Isso não te levanta problemas, pois não? Aprendeste

bem as tuas lições.

Continuou a falar. Disse que depois da guerra seria ela a ensinar-me religião. A

nossa religião.

— Já o deveria ter feito há muito — lamentou-se.

O que o rabino dissera era verdade. Ser judia consistia, para mim, em ter vergonha

de o ser. Era por isso que nem sequer queria usar a Estrela de David.

Deixei de a ouvir. Pensava em patinhos, pintainhos amarelos, em andar de

carroça, e brincar às escondidas com amigos novos. Dez dias inteirinhos numa quinta…

— Livra-te dela, Mariška, só traz sarilhos.

Faz o que a Topka te diz. Leva-me para casa! Mas, se os tios ainda não tiverem

voltado, o que será de mim? Talvez não tenham conseguido os papéis, ou tenham tido

que ir buscá-los a outro lado. Ou talvez estejam num campo de trabalho. O ferreiro

estava a dizer ao Kubo que há um, pequeno, aqui perto. De certeza que os deixam vir

passar o Natal.

Page 138: Katarína - Kathryn Winter

Ajoelho-me a rezar. À luz do luar, a Nossa Senhora do quadro ainda se parece mais

com a tia Lena. Subo para a cama e beijo as dobras do seu manto. Beijo também os

braços rechonchudos do Menino Jesus que ela tem ao colo.

Mesmo que quiséssemos, não poderíamos esquecer-nos de que é Natal, já que os

porcos fogem, a guinchar, da faca que os espera. Tapo os ouvidos com o cachecol,

mas, mesmo assim, ainda os ouço. As carroças estão nos barracões, cobertas de

serapilheira, e os trenós estão lá fora. Deslizam tão suavemente que só se ouvem

devido às campainhas dos arreios do cavalo.

Agora demoro mais a subir a colina. A neve já chega aos tornozelos e, quando me

afasto do caminho, afundo-me até aos joelhos. Tudo em redor é branco. Os coelhos só

se distinguem porque lhes vemos as pegadas na neve. O nosso jardim também deve

estar branco e as flores geladas.

O pai da Mariška trouxe ontem um pinheiro, pequeno e esguio. Ela diz que pouco

tem para lhe pendurar e menos ainda para lhe pôr aos pés.

— Vai haver muitos presentes — disse-lhe. — Este Natal vai haver presentes para

todos.

Vou dar à tia Lena um terço. Talvez se sinta um pouco perturbada quando o vir.

Ensiná-la-ei a amar Jesus e a Virgem Maria e, todas as noites, ajoelhar-nos-emos a

Page 139: Katarína - Kathryn Winter

rezar a Ave-Maria juntas…

— Padre Chrupák, posso fazer-lhe uma pergunta?

Tenho estado escondida, atrás da porta da sacristia, à espera que ele entre para as

orações da noite.

— Quem está aí?

— Sou eu, a Katarína. A rapariga que está em casa dos Plǎkos.

— O que queres?

— Tenho nove anos e gostava de me preparar para a Primeira Comunhão.

— Porque não fizeste ainda a Primeira Comunhão?

Não respondo.

— És católica?

— Creio na Santíssima Trindade, na Virgem Maria, …

— Preciso da tua certidão de batismo.

— Não tenho. Ou seja, não a tenho aqui.

— Preciso de autorização.

— Por favor, Senhor Padre, estou à espera há tanto tempo…

— Escreve à tua tutora a pedir autorização. Sabes escrever?

— Sei.

Page 140: Katarína - Kathryn Winter

— Eu escrevo-lhe. Está no hospital, não está?

Olho fixamente para as minhas botas.

— Está, não está?

Agarro as mãos atrás das costas para as impedir de tremer.

— Responde-me! Está ou não está?

— Está! — grito. — Está!

Está, está, está. As palavras ressoam na minha cabeça, seguem-me até à porta.

Corro sem parar pela rua do cemitério acima e ajoelho-me na capela do Salvador.

— Jesus, menti. Menti a um padre.

Olho para o nosso Salvador, pregado numa cruz. A agonia que sofreu pelos nossos

pecados. Pelos meus pecados. Odeio a tia Lena por me fazer mentir.

— Cordeiro de Deus, amo-te tanto.

O sangue desce da sua coroa e goteja pelas têmporas abaixo.

— Menti a um padre, Jesus, e dentro de uma igreja.

Uma coroa de espinhos. Pregos que atravessam as mãos e os pés. Como deve

doer-lhe.

Agora há duas estradas para a aldeia. A que observo da colina e o próprio rio, que

está totalmente gelado. Não está escorregadio e pode-se andar sobre ele, a pé ou a

Page 141: Katarína - Kathryn Winter

cavalo, porque há camadas de neve a cobrir o gelo. Só está escorregadio nos sítios

onde as crianças abriram clareiras, para poderem deslizar. Ficam em fila indiana, à

espera de vez. Eu também gostava de o fazer, mas, se me aproximo, as crianças

atiram-me bolas de neve. Fazem-nas grossas e atiram-nas diretamente à minha cara.

Só faltam alguns dias para o Natal. Através da janela do ferreiro vejo uma árvore

toda iluminada, coberta de algodão e com os ramos vergados sob o peso dos

rebuçados que deles pendem. O tio Teo e a tia Lena devem ter ido para casa

diretamente, para preparar tudo. Eu sei que atrapalho a minha tia quando ela está a

fazer bolos.

Podem vir por qualquer uma das estradas – a que observo da colina ou o rio

gelado. Da colina não avisto a estrada do rio. Talvez já estejam em casa dos Plǎkos e eu

aqui à espera.

Escorrego pela colina abaixo e corro para a quinta.

A noite passada acordei com barulhos vindos da cozinha. Ouvi a porta a abrir e

depois passos e sussurros. A Mariška estava a chorar. Ou será que sonhei? A Mariška

disse que sonhei, mas, então, porque tem os olhos tão vermelhos esta manhã e porque

me olha de forma tão estranha?

Através da frincha da porta vejo a Topka e o ferreiro. Não ouvi o que ela dizia,

Page 142: Katarína - Kathryn Winter

mas ouvi parte do que ele dizia: … “devem ter sido eles…o genro da Topka…sim, é

verdade…papéis falsos…problemas para todos nós.” Até os sussurros dele se ouvem.

A Mariška diz alguma coisa, mas a Topka responde:

— Não, amanhã! Logo de manhã!

Foi então que começou a chorar.

O ferreiro suavizou:

— Bom, mais um dia ou dois não faz diferença. Mais ninguém sabe. Fica calada,

Topka, ouviste?

A Topka esqueceu-se de sussurrar e disse alto:

— No dia a seguir ao Natal. Prometes?

Encostei o ouvido ao buraco da fechadura.

Ouvi a Mariška sussurrar:

— Prometo.

A Mariška não me deixa sair. Esperei pela tia Lena ontem, todo o dia. Roguei aos

Plǎkos que me deixassem ir com eles à missa. Não me deixaram. Segui-os em segredo,

com o lenço quase a tapar-me a cara. Na igreja não conseguia estar quieta. Não parava

de pensar na tia Lena. Imaginava-a a chamar-me no pátio dos Plǎkos. Corri para casa,

mas não estava ninguém à minha espera.

Page 143: Katarína - Kathryn Winter

As minhas coisas estão arrumadas, estou pronta para ir embora. Os tios devem

estar a vir. Já vejo a Anka a arranjar espaço na despensa para mais uma travessa de

biscoitos e o tio Teo a trazer achas de lenha para aquecer os quartos toda a noite. A tia

Lena não descansa. Tem a cara muito afogueada por estar tão atarefada junto do

fogão.

Amanhã é véspera de Natal.

Hoje é véspera de Natal.

A Mariška não quer que eu saia. Diz que os meus tios sabem o caminho para a

quinta e que não preciso de ficar naquela colina ventosa todo o dia. Não seria todo o

dia, disse-lhe. Eles vêm cedo, a tempo de chegarmos a casa antes do anoitecer!

A Anka não vem com eles; estará à nossa espera em casa. Vai observar da janela a

nossa chegada. Aposto que as mãos lhe tremem de excitação, como as minhas. Vou ao

estábulo abraçar a nossa vaquinha e depois despeço-me de todos. Tenho de me

despachar ou não chego a tempo!

Já passa da meia-noite. Não vieram.

A Mariška repetia sem cessar:

— Eu sabia, eu sabia.

Mas eu sei por que motivo eles não vieram. Disse-lhe o que aconteceu.

Page 144: Katarína - Kathryn Winter

A tia Lena e o tio Teo partiram cedo, mas esqueceram-se do dinheiro que lhe

deviam ou de algum dos presentes. Quando finalmente vinham, o tempo mudou e

prenunciava uma tempestade. Ora, eles não podiam viajar com uma tempestade, pois

não? Também eles ficaram tristes. Ninguém tocou no jantar ou abriu presentes ou

esperou pelos sinos da meia-noite. Foram cedo para a cama, para se levantarem cedo.

Vêm amanhã, dia de Natal, antes do pequeno-almoço. Teremos o dia todo para

festejar. E todos os dias que se lhe seguirão.

Nenhum som emana da forja. É dia de Natal. O sol escorrega por detrás das

montanhas. As sombras adensam-se. A estrada estende-se, branca e vazia, por entre

os choupos.

O pregoeiro

Capítulo 10

O que é aquilo? Um tambor? Deve ser o Velká Huba – Boca Grande – com alguma

proclamação oficial. Mas porquê hoje? Só costuma vir às sextas.

Page 145: Katarína - Kathryn Winter

A Mariška disse que eu não podia sair de casa. Mas se o Velká Huba voltou de

novo, a proclamação deve ser muito importante. Tenho de descobrir o que ele tem para

anunciar.

Vou tomar um atalho – o caminho por detrás dos celeiros. É escorregadio e cheio

de covas, com neve alta dos dois lados. Apresso-me para chegar a tempo ao armazém

principal da aldeia. É a segunda paragem dele.

O que o detém? Porque não vem? O que o demora? O pregoeiro foi à escola – sabe

ler e escrever – e, a troco de um copo de aguardente, vai, às vezes, a casa de algum

camponês ajudar a ler ou escrever bilhetes e cartas. É por isso que, à terceira paragem,

já articula mal as palavras e ninguém percebe o que ele diz. À quarta, já canta canções

obscenas e esquece-se completamente das notícias. Quando se esquece de parar em

todos os locais, como devia, é porque está deitado debaixo de alguma árvore, ou

dentro de algum celeiro, a ressonar.

Tom, tom, trom-ti-tom! Lá vem ele. Pela forma como caminha, já bebeu a sua

conta. As crianças que o seguem não estão interessadas nas notícias – só querem ouvir

o tambor e poder tocar nos botões dourados do uniforme. E ele quer que todos o

vejam. É baixo e tem as pernas arqueadas. Sobe os degraus do armazém, enche o

peito e continua a tocar.

Page 146: Katarína - Kathryn Winter

Todas as portas se abrem e as pessoas assomam às janelas. Os camponeses,

enfiados em casacos e xailes de carneira, vêm a correr dos caminhos e por entre as

vedações de madeira.

Tom, tom, tomtomtomtrrrrrrrr!

Os paus do tambor mexem-se tão depressa que parecem desenhar um arco.

Quando os últimos retardatários se juntam à multidão, Velká Huba dá três toques com

força e faz-se silêncio.

— A-hem! — pigarreia.

Depois cospe para a neve. Todos o fixam enquanto procura o rolo de pergaminho

dentro do casaco. Mas o que realmente tira é o cantil. Desaperta a rolha devagar, bebe

um trago, aperta-a novamente e enfia o cantil dentro do casaco. Vai para falar mas

muda de ideias. Volta a tirar o cantil, a desapertar a rolha. Outro trago, nova

enroscadela.

— Ei, Huba! Despacha-te!

— Quem falou? Stelík? Já não se pode molhar uma garganta seca? Eu não fico

sentado à lareira o dia todo!

— As notícias, Huba! — grita o Kubo. — O que há de tão importante que não podia

esperar até sexta? Conta lá!

Page 147: Katarína - Kathryn Winter

Guarda o cantil e tira o pergaminho.

— Todos os impostos devem ser pagos até ao fim do mês. Quem não o fizer…

— Já nos leste isso na sexta-feira passada.

— Pois já. Queria ter a certeza de que tinham ouvido. Chama-se a atenção do

público para o facto de terem sido vistos guerrilheiros na floresta a norte do velho

moinho. Os guerrilheiros…

— Santos! Quando…

— Silêncio! Continua, Huba.

— Os guerrilheiros são servidores do demónio. Quem os ajudar, está a ajudar o

inimigo. Em tempo de guerra, o castigo para isso é o fuzilamento. Se alguém tiver

informações sobre pessoas simpatizantes da causa, ou das atividades dos guerrilheiros,

e não as fornecer, será também fuzilado!

Depois de olhar as caras aterrorizadas em seu redor, Huba guardou os

pergaminhos com um ar de satisfação.

— Desejo-vos um bom dia, em nome do Conselho Regional.

A multidão ficou em silêncio durante alguns momentos.

Depois, começaram todos a gritar.

— Que a Virgem Santíssima nos proteja!

Page 148: Katarína - Kathryn Winter

— Os vermes rodeiam-nos!

— Que os traidores ardam todos no inferno!

Tentei encontrar um rosto conhecido.

— Avó Lobáková, o que são guerrilheiros?

Pisca os olhos assustados e afasta-se de mim.

— Milka, os guerrilheiros são mesmo servos do Diabo?

A Milka Plǎková morde os lábios e segue o pregoeiro. Pergunto o mesmo à mulher

do ferreiro. Põe as mãos à cinta e olha-me de soslaio.

— São os teus tios e tias. Vieram buscar-te!

Os aldeões riem-se.

— O que é que ela perguntou?

— Quer saber quem são os guerrilheiros.

— Como se não soubesse!

— Aposto que espia para eles. Só tem havido problemas na aldeia desde que ela

cá chegou!

— Uma cigana, a deitar-nos mau-olhado!

— Deus está a castigar-nos pela cobiça da Mariška!

— Ouçam-me — gritou uma mulher. — Descobri a verdade.

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Todos os olhares se voltam para a Topka. Está de pé nos degraus onde esteve o

pregoeiro.

— Descobri a verdade sobre esta rapariga. Não é nenhuma órfã cristã. Mentiram à

Mariška.

Está quase apoplética.

— É uma assassina de Cristo!

Todos se viram para mim. Quero fugir, mas os joelhos não me obedecem. Fico

paralisada.

Strelík sobe os degraus e coloca-se junto da Topka.

— Os judeus são inimigos do povo eslovaco. Estamos a dar guarida a uma inimiga.

Vamos expulsá-la da aldeia e já!

A Topka assente.

— Eu estava sempre a dizer à Mariška “Livra-te dela”, mas ela não me dava

ouvidos.

— O meu marido tem razão. Passava a vida a dizer que ela não era normal.

— Como descobriste, Topka?

— Aquele casal que eles apanharam, com os papéis falsos. Foram…

— Aqueles de há dois meses?

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— Sim.

— Fuzilaram-nos.

— Deportaram-nos para a Polónia.

— Não, mandaram-nos para um campo de trabalho aqui, na Eslováquia.

— Estão a apodrecer na cadeia.

— Eles não interessam. Como sabes que ela não é uma órfã cristã?

— O meu genro descobriu. Viu registos. É judia.

— Levem-na já para o Quartel-General. De que estão à espera?

— Não a deixem fugir.

De repente, o Kubo falou mais alto.

— Esperem. Ouçam.

— Não é altura para discursos. Estamos em perigo.

— Eu também não quero ser fuzilado, mas não entremos em pânico. Vai nevar e

não chegaremos a tempo ao Quartel-General.

— Mas nunca fecha.

— As pessoas importantes não vão lá estar. Entregamo-la ao porteiro? Temos de

ter a certeza de que ela fica bem entregue. A Mariška e eu vamos lá levá-la amanhã de

manhã, sem falta.

Page 151: Katarína - Kathryn Winter

— Sem falta! Já ouvi isso antes. Há dez dias.

Stelík concordou que no dia seguinte era melhor.

— Mas frisa bem que os Plǎkos foram enganados e que precisavam do dinheiro.

— E não digas que já sabíamos. Diz que acabámos de descobrir.

— Tudo isto por causa daquela…

Uma bola de neve atinge-me na boca. A dor faz-me saltar.

A estrada está gelada. Caio constantemente. As bolas de neve continuam a atingir-

me nas costas. Cubro a cabeça com as mãos. Já não me atingem as bolas nem as

pragas.

Dentro do estábulo, fecho o trinco. Há sangue a escorrer do meu lábio.

A vaquinha olha-me com olhos ternos e sonhadores.

Sento-me no banco da ordenha e choro, desesperada, encostada ao seu flanco.

Page 152: Katarína - Kathryn Winter

O Quartel-General

Capítulo 11

— Levanta-te, Katarína. Temos de partir em breve.

Lá fora está escuro. Porque me acorda a Mariška? Onde vamos?

Mergulho nos cobertores. O meu estômago aperta-se. Sei que não quero ir, antes

sequer de me lembrar aonde. Vamos ao Quartel-General. A Topka e os outros

obrigaram a Mariška a prometer que me levaria lá.

Enquanto me visto, ela põe as coisas que vou levar numa trouxa. A Stefie está

escondida debaixo das almofadas. Meto-a no bolso do meu casaco. O terço também.

Campainhas de trenó. É o Kubo. A Mariška dá-me um pedaço de pão escuro e

amargo e uma chávena de soro de leite coalhado.

— Toma, bebe. Temos muito que andar.

No outro quarto, a Milka dorme com as irmãs e com o pequeno Ján. Quem me dera

poder ficar com eles.

Está frio. O Kubo põe um cobertor em cima da égua. Levanta-me no ar para me

sentar e ajuda a Mariška. O vento sopra através do meu casaco. Ainda bem que estou

Page 153: Katarína - Kathryn Winter

apertada entre os dois.

A égua abana a cabeça, impaciente por partir. Olho pela última vez para a casa e

para o pátio. Não pude despedir-me de ninguém. Quando voltar da guerra a buscar as

minhas coisas, vou trazer-lhes muitos presentes.

Lembro-me do que as pessoas disseram ontem acerca de eu ser uma inimiga, mas

eu amo o meu país. Amo Jesus. Porque sou uma inimiga?

— Mariška, vão fuzilar-me no Quartel-General?

— Claro que não, idiota. Que ideia!

— Então, o que me vão fazer?

— Não sei. Devem mandar-te para um campo de trabalho. Há um aqui perto.

— Fazer o quê?

Encolhe os ombros.

Talvez encontre lá os meus tios. E a Malka. Fecho os olhos e adormeço no ombro

da Mariška. Quando dou por mim, ouço-a dizer:

— O que vão fazer com ela?

— Sei lá — responde o Kubo — mas não te preocupes. Estás a fazer o que deves.

— Porque haveriam de mandar uma criança para um campo? O que pode ela lá

fazer? Varrer, limpar, ajudar na cozinha?

Page 154: Katarína - Kathryn Winter

— Ouvi coisas más sobre os da Polónia. Os soldados contam coisas nas quais nem

acredito.

Que coisas, que histórias? Quero perguntar-lhes, mas não consigo. Ficariam

furiosos se soubessem que estou a ouvi-los. Mãe Misericordiosa, olha pelos meus tios.

Não deixes que nada de mal lhes aconteça.

O sol já vai alto, mas ainda tenho frio. O Quartel-General é um monstro que cresce

a cada minuto que passa e estou a ir ao encontro das suas garras. Num conto de fadas,

um príncipe garboso como o Pavel viria em meu auxílio, mas nos campos brancos não

há sinais dele.

“Não tens fé, Katarína? Não aprendeste nada?” É a voz da Anka. “O único príncipe

é Jesus. Ele ama-te. E tens uma padroeira que te protege. Reza-lhe.”

Começo a rezar a Santa Catarina e a pedir-lhe que me salve do Quartel-General.

Adormeço de novo e acordo com a voz da Mariška a mandar o Kubo parar a carroça.

— Não consigo fazer isto! — diz.

— Acalma-te, pombinha. O que se passa contigo? Não podemos levá-la de volta.

— É uma criança. Não está certo.

— Há tanta coisa que não está certa. O que vamos fazer?

Page 155: Katarína - Kathryn Winter

— Escondê-la. Durante o inverno. Talvez na primavera tudo já tenha terminado.

— Escondê-la onde? Na tua casa?

— Na arrecadação, talvez.

— Os teus irmãos descobrem e dão o alarme.

— Eu fecho-a à chave.

— O teu pai mata-te se descobrir. E eu dei-lhes a minha palavra.

— Não posso entregá-la. O meu coração diz-me que não devo.

— Tens um coração meigo, pombinha. Vamos parar na estalagem e falar melhor

sobre o assunto. Se a levarmos de volta, não podemos fazê-lo de dia.

A Mariška limpa os olhos com o lenço. Apetece-me abraçá-la, mas digo, antes, a

Santa Catarina:

— Fizeste-a mudar de ideias e salvaste-me do Quartel-General. Querida Santa

Padroeira, obrigada mil vezes. Não deixes a Mariška ter problemas por minha causa. E

outra coisa. Tenho de ficar fechada sozinha na arrecadação? Há lá ratos, aranhas,

ratazanas. Por favor, dá-lhe outra ideia. Por favor.

Page 156: Katarína - Kathryn Winter

Stefie

Capítulo 12

Estás acordada, Stefie? Dormiste bem? Eu não. A Matilda manteve-me acordada.

Ou melhor, os filhotes dela e os seus guinchos. Mudou-os para um buraco novo, entre

as batatas e o milho. Não ouviste? Imagina – tenho de ir ao balde. Se uma fada me

aparecesse e me concedesse um desejo, seria não ter nunca mais de ir ao balde.

Ouve: estão a tirar a égua. Deve ser quinta. A Mariška vai à feira. Porque tens

esses olhos tristes, Stefie? Ela volta à noite, e antes de ir para casa vem despejar o

balde e trazer-me de comer. Estás com fome? Claro! Tenho uma surpresa. Fecha os

olhos. Guardei um pedaço de salsicha. Comê-la-emos devagar. A Mariška diz que já não

há mais e que só volta a haver no próximo Natal. Toma, come. Abre a boca, Stefie; já

estás toda suja na cara. Que cómico! Eu também ficava toda besuntada depois de

meter a cara na tigela onde se misturava a massa. A tia Lena costumava meter-se

comigo e dizer:

— Katinka, vai à casa de banho e olha-te ao espelho.

Podia-se adivinhar o bolo que ela estava a fazer pelas marcas na minha cara. Se

fossem castanhas, era de chocolate; se fossem amarelas…

Page 157: Katarína - Kathryn Winter

Estás a chorar, Stefie! Porquê? Não quis troçar de ti. És bonita, mesmo com as

marcas de salsicha na cara. Vou beijá-las uma a uma! Esta, debaixo do teu nariz,

aquela, no teu queixo, e esta e essa e aquela!

Já não aguento mais. Vem comigo. Vamos contar até dez e sair para fora destas

peles de carneiro. Um, dois… olha! Está tanto frio que consigo ver a minha respiração.

Nã… oooo! Não saio daqui. Vamos esquecer-nos que temos de ir. Tenta dormir mais um

pouco.

Aposto que a Mariška gostava de dormir mais um pouco hoje de manhã. Ela e o

Kubo voltaram ontem à noite à arrecadação. Pergunto-me o que fariam, ela e o Kubo,

em cima dos sacos de serapilheira. Os barulhos que fazem! E que conversa! Minha

pomba, diz ele. Oh, Kubo, diz ela. Ei, Stefie, vamos jogar um jogo. Vamos fingir que

somos eles! Tu falas baixinho, fazes de Kubo; eu faço de Mariška. Começas tu.

“Vem, pombinha, deixa-me aquecer-te.”

“Ainda não, Kubo, ela ainda não está a dormir.” É a tua vez, Stefie.

“Está pois. Não a ouves ressonar?”

“Estou preocupada, Kubo.”

“Connosco? Ela não pode – ” Esqueci-me de mudar a minha – quer dizer, tens de

falar baixo, Stefie. Assim: “Connosco? Não te preocupes. Ela não nos denunciará.”

Page 158: Katarína - Kathryn Winter

“Estou preocupada com ela. Alguém pode descobrir.”

“Avisei-te disso, lembras-te? Algum dos miúdos já cá veio?”

“Não, mas costumavam vir. Agora que a mantenho fechada, eles fazem-me

perguntas.”

“Tal como eu temia. Mas a guerra deve estar a acabar. Aposto que acaba na

próxima primavera.”

“Temos de encontrar outro lugar para ela, Kubo.”

“Temos é de encontrar outro lugar para ti, Mariška. Aqui, ao pé de mim.”

Risos, risos, risos. É a tua vez, Stefie.

“Chega-te mais para mim, pombinha. Deixa-me tocar-te.”

“Ai!”

“Ah…Assim está melhor…”

“Oh, Kubo…”

Oh, Kubo, oh, Kubo, e os barulhos recomeçam. Está demasiado escuro para ver o

que estão a fazer, e, além do mais, tenho de manter os olhos fechados, fingir que estou

a dormir. Mas a Mariška tem razão. Lembras-te, Stefie, de quão zangada a Milka ficou

no outro dia? “Porque não posso lá ir?” gritou para a Mariška. “Julgas que sou alguma

cigana? Pensas que te vou roubar uma couve ou um punhado de grãos de aveia?”

Page 159: Katarína - Kathryn Winter

Disse à Mariška que não fazia mal se a Milka entrasse – ninguém me veria por

detrás destes sacos, barris e latões, mas ela diz que as pessoas notariam um cheiro

diferente. Devem ser as peles de carneiro. Ficam ensopadas sempre que não chego a

tempo ao balde.

A Mariška diz que temos de rastejar até ele durante o dia. Ela preocupa-se que

alguém nos veja, agora que o gelo da janela está a derreter. Não precisa de se

preocupar. Há já algum tempo que não ando nada, de noite ou de dia. Se ela não me

obrigasse a fazer exercício, as minhas pernas pareceriam fermento.

Sabes, Stefie, este foi o primeiro quarto que vi quando vim para Klietky, para casa

dos Plǎkos. Tens os olhos arregalados. Queres saber mais? Está bem, eu conto-te e

depois vou ao balde. Ajuda-me a ir, está bem, Stefie?

Não me lembro quase nada da viagem até aqui. Adormeci no lugar do cocheiro e

só acordei quando alguém disse “Chegámos a casa.” “A casa?”, murmurei,

pestanejando para a camponesa à minha frente. Nunca tinha visto este pátio cheio de

tralha ou a cabana com o telhado inclinado. Depois lembrei-me. A rapariga devia ser a

Mariška Plčková e estávamos em Klietky, na casa dos Plǎkos. Lembrava-me de ter

deixado a tia Lena de manhã e desatei a chorar. A Mariška disse-me “Não te preocupes,

Katarína, a tua tia vai ficar boa; daqui a duas semanas já estás de novo com ela.” Como

Page 160: Katarína - Kathryn Winter

podia eu acreditar nisso, Stefie? A tia Lena tinha mentido à Zorka e à Mariška. Se

fossem só duas semanas, não precisava de ter posto roupas de inverno no meu saco. A

tia também me mentiu.

A Mariška pegou-me na mão:

— Vamos lavar essa cara suja de lágrimas antes de os outros chegarem.

Fomos até ao poço, em redor do qual havia um muro que me dava pela cintura.

Em cima do muro, preso a uma corda, estava um balde. A Mariška mergulhou o balde

no poço. Ouvi-o bater na água e depois ouvi a água transbordar à medida que ela o

içava. “Faz uma concha com as mãos, Katarína.” Mergulhou uma caneca de folha na

água e começou a deitá-la na minha mão.

“Ouch!” A água gelada parecia fogo nas minhas mãos. Olhei para elas. Estavam

vermelhas, e tinham grandes marcas também vermelhas.

— Isso foi de segurares as rédeas. Amanhã já estarão melhores.

Humedeceu a ponta de uma das suas saias na caneca e limpou-me a cara.

As rédeas lembraram-me de novo a viagem, a tia Lena, a minha casa. O meu

queixo começou a tremer.

— O quê? Outra vez a chorar? Estavas tão bonita!

O nó na minha garganta sufocava-me. Precisava de estar sozinha e chorar.

Page 161: Katarína - Kathryn Winter

— Tenho de…onde fica…o…o

A Mariška pegou no meu pulso e começou a andar. Os meus olhos estavam

demasiado marejados de lágrimas para verem, mas, a julgar pelo cheiro, devíamos

estar a passar pelo estábulo. A Mariška apontou para um anexo.

— É ali. Estarei no pátio a dar de comer à porca.

Entrei e fechei a porta com um fio. Que cheirete! Comecei a vomitar. Não havia

assento, só um buraco no chão. Ajoelhei-me e debrucei-me sobre ele. Quase dei com a

cara num monte de vermes.

Dei um salto e fui chorar lá para fora. Quando parei de chorar, regressei ao pátio. A

Mariška estava lá, e dirigia-se para a pocilga com um balde. Eu ouvia resfolgar e

guinchar, mas não via a porca. Pregada à parede estava uma gamela com um espaço

aberto por cima. Logo que a Mariška despejou o balde na gamela, a porca enfiou o

focinho no buraco e sorveu o jantar.

— Vamos vendê-la duas semanas antes do Natal — disse a Mariška. — É quando se

matam os porcos.

Pobre porca! Deve ser por isso que não a deixam sair. É mais fácil pensar em

matança quando só se vê um focinho cobiçoso.

O destino do animal fez-me chorar de novo. A Mariška suspirou:

Page 162: Katarína - Kathryn Winter

— Queres dar de comer às galinhas? Esta manhã esqueci-me delas.

Sabes, Stefie, ela não se tinha esquecido. Só queria que eu não pensasse mais na

tia Lena.

Fomos até à arrecadação. Esta arrecadação, Stefie. A Mariška tirou uma chave

grande do bolso da saia e abriu a porta. Uma rajada de ar frio e bafiento deteve-me à

entrada. Estava escuro aqui dentro. Pouco a pouco, pude ver latões, barris, e sacos de

serapilheira junto às paredes. Também vi coisas que pendiam do teto e que não

identifiquei. Não queria lá entrar, nunca! Sairia daqui com aranhas no cabelo e ratos a

roerem-me as canelas.

A Mariška encheu uma vasilha com grãos de milho.

— Chama as galinhas, Katarína.

— Como se chamam?

Riu-se.

— Não têm nomes. Chama-as por sons.

Assim fiz e elas vieram. Havia galinhas por todo o lado, com as asas a bater e os

pés amarelos a correr para mim.

Comecei a girar à medida que distribuía os grãos de milho. Os grãos caíam em

volta de mim em círculos dourados. Imaginava que era uma princesa cativa e que as

Page 163: Katarína - Kathryn Winter

galinhas eram cavaleiros enfeitiçados vindos em meu auxílio. Logo que fizessem

desaparecer os círculos dourados, estaria de novo no meu reino e as galinhas voltariam

a ser cavaleiros garbosos. Continuei a deitar milho e elas continuaram a debicá-lo, mas,

quando acabei, os círculos dourados que me rodeavam desapareceram e tudo

continuou como dantes: eu continuava longe de casa e as galinhas continuavam

galinhas, com a cabeça de lado, à espera de mais milho.

Eh, Stefie, o que foi aquilo? Ontem ouvimos o mesmo ruído. A Mariška diz que é a

guerra a aproximar-se, mas parece-se mais com o degelo do rio. Ela não mo diz porque

sabe que eu choraria, que quereria ir procurar campânulas brancas e brincar com as

outras crianças no rio.

Lembras-te do que acontece quando o gelo derrete, Stefie? As crianças afogam a

Deusa do inverno, Morana. Atiram-na para a água e vêem-na desfazer-se. Depois, todos

se dão as mãos e cantam porque a Morana se foi embora e a primavera chegou!

Mas a Mariška está enganada. Eu não quero sair. Quero ficar contigo, debaixo das

peles de carneiro. Não tenho medo nem me sinto sozinha. Jesus está comigo e Santa

Catarina toma conta de nós. Vou dizer-te um segredo. Prometes guardá-lo? Que S. João

Nepomuceno te ajude.

Page 164: Katarína - Kathryn Winter

Às vezes, à noite, quando estás a dormir, a Nossa Senhora aparece-me. Sei que

não acreditas. Pensas que ela nunca viria a um lugar destes. Tens razão, nunca vi uma

imagem dela numa arrecadação, mas juro-te que não estou a inventar. Quando ela está

comigo, sei-o, mesmo antes de a ver. Fico com pele de galinha e tremuras, mas são

sensações diferentes das que tenho quando estou com gripe. Ouço o ruído da seda do

seu vestido, mesmo que ela não ande. Flutua… qual é a palavra certa? A Milka passava

a vida a dizê-la no dia em que a aprendeu na aula de Religião e Moral. Já sei! Levita! E

tão perto de mim (mesmo por cima da arca onde se guardam os nabos) que sinto a sua

respiração na minha cara…

Olha, Stefie, temos uma visita. Olá, ratinho, onde está a tua família? Gostas da tua

nova casa? Acho que a Matilda quer comer a nossa salsicha. Damos-lhe um bocadinho?

Olha para os bigodes dela a mexerem! Se é nossa convidada, temos de lhe oferecer

alguma coisa. Olha, lá fugiu outra vez! Assustou-se com o barulho do gelo a partir-se.

Ouves? O tempo está a ficar mais quente, embora a água que a Mariška nos deixa

ainda gele de noite.

Stefie, sabes o que isso significa? O Kubo disse que a guerra acabava na

primavera. E que as estradas estarão desimpedidas. Os tios podem voltar. Já não estou

zangada com a tia Lena. Ela não sabia que iriam demorar tanto. A Mariška diz que

Page 165: Katarína - Kathryn Winter

devem estar escondidos, ou que estão num campo de trabalho. Porque tens esse olhar

assustado, pequenina? Por causa das histórias que o Kubo contou sobre os campos da

Polónia? Nem penses nisso. E não penses também que eles foram para a Hungria sem

nós. Vão vir buscar-nos logo que possam.

Porque estás tão triste? Não queres deixar a Mariška? Estás preocupada com a

Matilda? Vamos voltar para casa. Gostava de ter trazido comigo todos os nossos

amigos, mas só pude trazer-te a ti.

Ei, cara de salsicha, anima-te! Havemos de voltar a acordar na nossa cama, a ver

os pássaros na nogueira, a esperar que a tia Lena nos chame para o pequeno-almoço e

que o Pavel volte no fim de semana. Já te disse muitas vezes que o amo. As tuas

orelhas estão a crescer. Queres que te conte novamente o que aconteceu da primeira

vez que o vi?

Foi no jardim. Levantou-me tão alto que a minha cabeça tocou nos ramos da

árvore. Os tios riam-se de me ver corada e eu gritava para ele me pousar no chão.

Quando o fez, mordi-lhe a mão. Foi a partir daí que…

Oh, Stefie! Que horror! Eu bem te disse que me obrigasses a ir. Agora é tarde

demais. Já estou toda molhada. Deixa-te de sorrisos parvos. Olha para ti! Não passas

de uma luva com cabeça de macaca. Não te atrevas a troçar de mim!

Page 166: Katarína - Kathryn Winter

Oh… as peles estão encharcadas. Estão a ficar frias, frias, e em breve ficaremos a

tremer debaixo delas, sem nada que nos aqueça. Oh, Stefie, porque deixaste isto

acontecer?

Deves estar esfomeada. Eu estou. Podia comer uma batata crua. Queres tentar?

Estás a torcer o nariz. Eu sei que já tentámos, e que tu não conseguiste. A verdade é

que as batatas estavam geladas. Era inverno. O que terá acontecido à Mariška? Estará

doente? Aposto que não se pode esgueirar porque está sempre gente à beira dela,

como da última vez. Eh, ouves o meu estômago a fazer barulho? Vamos procurar

batatas.

Ouço passos. É a Mariška. Anima-te. Não vais ter de passar a noite cheia de fome.

Vai para debaixo das peles. Aposto que a Mariška acha que já sou crescida demais para

falar contigo.

— Por que demoraste tanto? Estamos…Estou à espera há horas.

— Não pude vir mais cedo. Pega, aqui tens pão.

A voz dela treme. Terá estado a chorar? Vejo que tem um olho semicerrado e a

cara inchada.

— O que aconteceu?

— Come, que já te conto.

Page 167: Katarína - Kathryn Winter

Como o pão azedo e escuro e escondo um bocado para a Stefie. O queixo da

Mariška treme.

— O que aconteceu?

— O meu pai bateu-me. Diz que há rumores… de que estou a esconder alguém na

arrecadação. Queria vir ver. Disse-lhe que tinha perdido a chave. Ficou ainda mais

furioso. Diz que se não a encontrar até amanhã, deita a porta abaixo.

— Achas que o fará?

— Faz de certeza, mas não amanhã. Amanhã vai à feira montar as barracas.

Depois vai à taverna e gasta o dinheiro que ganhou. Vem para casa bêbado, grita,

pragueja, cai redondo e ressona até ao dia seguinte.

— E quando acordar? Vai cá vir?

Desata a chorar de novo. Queria abraçá-la, mas afasta-me dela.

— Katarína — diz numa voz que nem parece dela — tens de ir embora.

— Ir embora? Para onde?

Ela não responde.

— Por favor…

Paro de repente. A tia Lena cedia, às vezes, se eu implorasse muito, mas a

Mariška não pode. Pode apanhar uma sova do pai. Pode morrer!

Page 168: Katarína - Kathryn Winter

— Quando tenho de partir?

— Depois de amanhã. Cedo.

Passa por nós uma ratazana. Será uma neta da Matilda?

— O que vais dizer aos meus tios quando perguntarem por mim?

— Eles não voltam. Não antes de a guerra acabar. Parece que estão num campo

de trabalho.

— Talvez tenham voltado, para descansar.

— Não os procures na tua aldeia, Katarína. As pessoas sabem quem tu és e levam-

te logo ao Quartel-General.

Quartel-General já não é uma palavra que soe mal. É melhor do que ficar na rua ou

na floresta As bagas ainda estão verdes e os guerrilheiros raptam as crianças se elas

ficarem fora até tarde.

— Leva só um pequeno saco. Vou dar-te banho e empresto-te roupa da minha

irmã. Se a usares, ninguém te prestará atenção. Há muitos órfãos e ciganas a bater às

portas.

A tia Lena costumava dar-me moedas para dar às ciganas, mas nalgumas casas

eram recebidas com pedras ou cães.

— Tenho muita pena de que o teu pai te tenha batido. Dói-te muito?

Page 169: Katarína - Kathryn Winter

Recomeça a chorar e choro com ela.

— Já estamos na primavera, Katarína. Já está mais quente lá fora do que aqui.

Amanhã cozo-te pão e um pombo para levares. E também tenho algum dinheiro que

poupei…

Desta vez deixa que a abrace e abraça-me também.

— Tenho de voltar. Katarína. Vou rezar por ti.

Podes sair, Stefie.

A Mariška já se foi.

Ouviste o que ela disse; por isso é que tens esse olhar preocupado, parecido com o

que a tia Lena às vezes fazia. Não comeces a chorar, nada de choradeiras. Temos a

nossa santa padroeira e muitos outros santos a olharem por nós. Todos eles amam as

crianças. E também temos o Quartel-General. Não é nenhum monstro. Não passa de

uma história que inventaste.

O Quartel-General é uma casa. Uma casa com quartos quentes e seguros. Há lá

gente a viver. Não nos vão fazer mal, Stefie. Prometo-te…

Page 170: Katarína - Kathryn Winter

Sete vozes

Capítulo 13

Jovem guardadora de gansos

Fui a primeira a vê-la.

Vinha pela estrada abaixo com o saco e atravessou o prado onde eu estava a

guardar os gansos. Tinha um ar esquisito. Cabelos cor de laranja e pintas castanhas por

toda a cara. Trazia um lenço às flores, como aqueles que se vendem nas feiras, um

casaco sujo, uma saia de tecido caseiro, e sapatos de gente fina. A idiota fazia de conta

que nunca tinha calçado outros sapatos!

Parou nos charcos para ver os gansos. Vi que me observava.

Quando me olhou, deitei-lhe a língua de fora. Sorriu e aproximou-se. Levantei a

minha vara.

— Podias dizer-me, por favor — pediu a pateta, como se fosse uma senhora! —

Podias dizer-me…

— Põe-te a andar, mendiga! Põe-te a andar com o teu saco sujo e os teus piolhos

fedorentos!

Primeira dona-de-casa

Page 171: Katarína - Kathryn Winter

O meu marido não estava em casa.

Estava nos campos, a lavrar com os bois.

Era cedo. Deixei o pequenino no berço e fui ao celeiro.

Algo me chamou a atenção.

Debaixo de um monte de feno estava um corpo. Pequeno. Uma criança.

Ora, ora, pensei, apanhei-te. O meu mais velho. Fingia que ia à escola e, afinal,

estava era a dormir em cima do feno! Avancei devagarinho e estava quase a deitar-lhe

a mão quando, de repente, a criatura deu um salto! Não era o meu filho. De todo! Era

uma rapariga e tinha um aspeto medonho. O cabelo parecia fogo e tinha feridas por

toda a cara.

Gritámos ao mesmo tempo.

Foi rápida. Quando dei por mim, já tinha atravessado o pátio e estava a escalar a

vedação.

Não fui atrás dela. Não vestida como estava! Perguntei-me como teria entrado.

Porque não teria o cão ladrado?

Perto da casota dele encontrei restos de um pombo cozido. Aquela vagabunda

tinha subornado o nosso cão. Que a terra a engula!

Parteira

Page 172: Katarína - Kathryn Winter

Vi-a na igreja.

Não posso ir à missa de manhã cedo, porque tenho os netos comigo. Vou mais

tarde: a meio da manhã ou à tarde. Ninguém está lá a essas horas. Às vezes, ouço o

sacristão a resmungar, enquanto desempenha as suas tarefas, mas nesse dia não foi

ele que ouvi. Foi a voz de uma criança. Era tão novinha que não podia guardar gansos.

Estava ajoelhada aos pés de Santa Catarina. Não me viu; observei-a por detrás do

pilar.

Quem seria? Assisti aos partos de todas as crianças da aldeia (algumas já são

avós) e nunca vi nenhuma com esta cor de cabelo. Não é filha nem neta de ninguém

daqui. Tinha um saco sujo. Deve ser órfã, pensei; tão pequena e já sozinha, na estrada.

Os olhos de Jesus encorajaram-me. O Sagrado Coração, todo bondade e amor, pedia-

me que abrisse o meu. “Fica com esta órfã”, dizia. “Tem pena da pequenina, precisa de

uma casa…”

Quase o fiz, mas, que Deus me perdoe, não consegui. Já não sou nova e preciso de

saúde para cuidar dos quatro que a minha filha me deixou, que Deus a tenha. Vi que

era uma criança doente, pela cara. Traria doenças à nossa família. — Não, Senhor —

sussurrei — não posso; tem piedade de mim…— Rezei por ela e prometi uma esmola

farta na missa de domingo.

Page 173: Katarína - Kathryn Winter

Segunda dona-de-casa

Não é muda, a miúda. Fala quando quer. E também não é tímida. Diria que é

atrevida. Estava eu sentada na varanda fora da cozinha, a descascar batatas para o

jantar quando, de repente, a vi.

— Minha senhora — disse — posso ajudá-la com as batatas. Posso varrer o pátio,

bater manteiga, mungir, ir buscar água ao poço…

Ri-me.

— Podes? Não pareces ter força nem para levantar uma chávena. De quem és

filha?

Olhei-a de cima a baixo. Uma pequenota de sardas com um saco às costas. O tipo

de bordado da blusa dela era igual ao que fazem em Klietky, que fica a dois dias daqui.

O casaco era de carneira, estava usado e sujo, mas os sapatos…

— Eh, roubaste esses sapatos?

Olhou-me com os olhos muito abertos e virou-se, pronta a ir embora.

— Desculpa — disse eu. — Não sabia que estava a falar com uma senhora.

É uma pena, pensei a vê-la ir, porque bem preciso de ajuda. Talvez fosse mais

forte do que aparentava e não parecia precisar de muito alimento.

— Eh, volta aqui — chamei-a. — Há trabalho!

Page 174: Katarína - Kathryn Winter

Voltou a correr. Pôs o saco no chão e agradeceu-me. Os olhos brilhavam-lhe e já

não parecia feia. No entanto, a maneira de falar mostrava que não era daqui.

Perguntei-lhe novamente:

— De quem és filha?

Ficou calada.

— Perdeste a língua?— gritei. — Não ouviste? Responde!

— Sou filha de Deus — retorquiu.

Atrevida, não acham? Deve ter muitos motivos de vergonha para se esconder...

Aqueles sapatos. Deve ter dedos leves; era preciso estar de olho nela constantemente.

Não, não vale o trabalho.

— Se não sabes falar, pega no teu saco e põe-te a andar!

Não se mexeu.

Dei-lhe três batatas.

— Toma, coze-as nos campos. Não venhas mais aqui.

Meteu duas batatas no saco e ficou com a outra na mão.

À medida que se afastava, vi-a limpá-la à saia e comê-la, como se fosse uma

maçã.

Soldado alemão

Page 175: Katarína - Kathryn Winter

Mandei-a parar. Nem sequer estava de serviço naquele dia.

O Heinrich gritou-me “Porquê preocupares-te com uma criança, Fritz?”

Mas preocupei-me. Os guerrilheiros podem achar-se muito espertos a enviar

crianças com munições pela estrada fora, mas eu não sou propriamente estúpido.

Descobri, na minha última folga, o que a guerra faz às crianças. “Papá, sabes que o

Messerschmidt Bf 109G tem um motor de 1.475 cavalos? Sabes que voa a 620

quilómetros à hora? Papá, sabes que o Focke-Wulf…o Dornier…o Heinkel…o Stuka…”

Estava a aprender coisas sobre a nossa Força Aérea através do meu filho, uma criança

que ainda andava no infantário quando eu fui servir na frente.

Suspeitava que a miúda tivesse granadas de mão dentro do saco, porque quando o

apalpei senti umas coisas duras e redondas. Afinal, eram batatas cruas e a cabeça de

um macaco boneco. O macaco tinha um botão na orelha: Stefi, dizia. Fabricado em

Berlim. Quanto ao resto, tinha dois vestidos, camisolas de inverno, e coisas do género.

Os vestidos eram de bom corte e modernos. Os lenços eram macios, tinham

monograma e eram rematados a croché. Também tinha uma Bíblia. Pagelas de santos.

A fotografia de uma mulher.

— Quem é?

— A minha tia.

Page 176: Katarína - Kathryn Winter

Estudei a cara da fotografia. Cabelo loiro, olhos inteligentes, um nariz delgado. Um

bonito exemplo de uma mulher de raça ariana. Um pouco magra demais para o meu

gosto, mas nunca se sabe!

— Onde está a tua tia?

— Doente. Muito doente. No hospital. Mandou-me para casa de uns primos.

— Onde arranjaste os vestidos que tens no saco?

— Foram-me dados por pessoas para quem ela trabalha e que já não os querem.

— Mostra-me os teus papéis!

Não tinha, como a maioria dos aldeões. Quando lhes perguntamos por eles, ficam

a olhar para nós com um olhar vago e a tresandar a aguardente barata.

— Estás a mentir!— gritei.

Nem sequer se mexeu. Continuou a murmurar e a desfiar o terço.

Deixei-a ir, mas voltei a chamá-la.

Havia algo nela que a tornava suspeita. A maneira de falar não tinha nada a ver

com o dialeto local. Não era camponesa, mas queria fazer-se passar por uma. Porquê?

E porque levava aquelas duas batatas? Não eram próprias para comer na viagem e,

como presentes, eram ridículas. Seriam ocas? Teriam explosivos, uma mensagem

codificada, diamantes, cianeto?

Page 177: Katarína - Kathryn Winter

Desatei o nó do saco, abri as batatas com o dedo e esmaguei-as.

A miúda pegou nos bocados do chão, mesmo com lama.

Examinei cuidadosamente tudo o trazia.

Quando peguei no boneco, achei que havia dentro dele uma mensagem. A

rapariga servia de mensageira dos guerrilheiros. Estava a fazer de mim palhaço!

Furioso, rasguei o boneco e arranquei-lhe a cabeça. Gritou e atirou-se a mim com os

punhos cerrados. A mim, um soldado alemão de uniforme! Podia mandar prendê-la

imediatamente, mas na minha cabeça já ouvia as piadas da caserna. “ Ouviram? O Fritz

foi atacado por uma rapariguinha!” “Mostra-nos as tuas feridas, Fritz; já estão a sarar?”

“”Fritz, ainda vais receber uma medalha do Führer pela tua bravura em combate…”

Pois. Pois. Já conheço os rapazes. Deixei-a ir.

Não havia nada dentro da cabeça do macaco. Atirei-o, para a sarjeta, juntamente

com a luva rota. Ela correu atrás deles e pegou-lhes, com um choro tal que parecia um

uivo.

Já ouvi muitos tipos de choro nestes últimos anos, mas não conseguia suportar o

dela. Parecia a nossa cadela quando foi atropelada por um carro. Tive de a mandar

abater para acabar de vez com a agonia dela e com a minha. C’os diabos, ou a miúda

parava de chorar, ou eu…

Page 178: Katarína - Kathryn Winter

— Cala-te! — gritei-lhe. — Ordeno-te!

Esta miúda não é normal. Tem a idade do meu filho e ainda está tão agarrada a

um brinquedo… Deve ser a guerra que faz isto às crianças.

— Para de fazer tanto barulho! O teu macaco não passa de um pedaço de pano

com serradura dentro. Dá-mo cá!

Tive de lho arrancar. A fungar, seguiu-me até à caserna.

Nem eu mesmo acredito, mas a verdade é que o fiz. O soldado raso Fritz passou a

sua primeira tarde de folga em duas semanas a remendar um boneco, sentado no seu

beliche.

Fiz um belo trabalho.

Quando acabei, ergui-o para que ela o visse.

— Estás a ver? Está como novo. Perfeito. Ninguém diria que foi remendado.

Nunca vi um sorriso tão feliz.

Lembrei-me das batatas que ela apanhara da lama e dei-lhe um pedaço de

salsicha que tinha comprado no mercado negro. Um pedaço? Não, dei-lha toda. Toda!

Dei-lhe o diabo da salsicha! Fui eu que disse que não era estúpido?

O limpa-chaminés

Alguém me chamava:

Page 179: Katarína - Kathryn Winter

— Andrej, Andrej, és tu? Espera por favor!

Voltei-me. Vi uma criança com um saco a balouçar nas costas, a correr pela rua na

minha direção. Pensei que alguém devia estar a precisar desesperadamente de limpar

a chaminé. A chamar-me mesmo antes de eu começar o dia de trabalho! Quando

chegou à minha beira, estava sem fôlego, mas continuou a falar.

— És tu, Andrej, és mesmo tu! Estou tão contente. Viste-os? Estão perto?

— Acalma-te, miúda. Diz-me onde moras e vou lá logo que possa. Vou beber um

copo à taverna, só um, e depois…

— Não se trata de nenhuma chaminé. Eu não moro aqui. Sou a Katarína. Lembras-

te de mim?

Sim…já a tinha visto em algum lado, mas vou a tantas aldeias, a tantas casas…

— Vinhas muitas vezes a nossa casa. Era a cinzenta, com o telhado de telhas

vermelhas. Eu sentava-me na nogueira e via-te trabalhar. Lembras-te? Conheces a tia

Lena. Eu sou a sobrinha dela, a Katarína.

— Pois és. Só não te reconheci porque estás diferente.

Trazia sapatos da cidade, mas o resto da roupa era de camponesa: uma grande

saia de pregas, um casaco de carneira, e um lenço às flores a tapar-lhe o cabelo

vermelho.

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— Onde arranjaste essas roupas?

— Foi a Mariška que mas deu. Eram da Milka.

— Mariška, Milka…quem são elas?

— Oh, Andrej, fala-me deles primeiro! Estou ansiosa por ouvir.

— Ouvir o quê? Sobre quem?

— Sobre a tia Lena e o tio Teo. Onde estão?

— Onde estão? O que te faz pensar que sei onde estão?

— Claro que sabes. Só estás a brincar comigo. Já voltaram? Mandaram buscar-me?

Que criança estranha! Sempre a achei estranha, pendurada naquela nogueira, a

cantar sozinha horas a fio.

— Andrej…

Calou-se. Deixou cair o saco.

— Como é que havia de saber onde eles estão?

Encolheu os ombros.

— Sei lá. Vais a tantos lados, falas com tantas pessoas, ouves tantas coisas.

Alguém falou deles? Por favor, tenta lembrar-te de alguma coisa!

É engraçado, pensei, nem era preciso implorar. Se eu soubesse deles, lembrava-

-me. Também ando à procura desses malditos judeus. Não são só as chaminés que

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precisam de ser limpas; é o meu país. Que lata a desta miúda, a passear livremente em

plena luz do dia!

— Deves lembrar-te — disse-lhe. — Os teus tios devem ter-te dito qualquer coisa

quando se foram embora. Não te deixaram na estrada ao abandono, pois não?

Disse-me que lhe tinham falado de uma viagem, uma viagem de dez dias, duas

semanas, no máximo, mas que ainda não lhe tinham dado notícias, e já se tinham

passado seis meses.

— E tens estado na rua o tempo todo? O inverno todo?

Abanou a cabeça.

— Onde estiveste?

— Numa aldeia, com uma família de camponeses.

— ‘Uma família de camponeses!’. — Cuspi. — Quem? Como se chamam?

Calou-se.

— Responde-me!

Estava a tremer mas a boca dela permanecia fechada. Enterrei os dedos nos

ombros dela e abanei-a tanto que me contou tudo.

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Tinha estado em Klietky, com os Plǎkos. A tia dela dera-lhes vinte coroas por dia

por duas semanas adiantadas, e tinha-lhes prometido dobrar a quantia por cada dia

extra que ela lá ficasse.

— Judas gananciosos! Fazem tudo por dinheiro!

— Não, não! — soluçou a miúda. — A Mariška não sabia que a tia Lena era minha

tia verdadeira. Julgava que eu era uma órfã cristã adotada. Mandou-me embora quando

descobriu a verdade.

— “Mandou-me embora!” — resmunguei, enojado.

Uma boa eslovaca tê-la-ia entregue à Guarda Hlinka, mas ela deixara-a escapar.

Tinha-lhe até dado roupas de camponesa.

— Quem te levou aos Plǎkos? Quem te falou deles?

Silêncio de novo. Nem tentei fazê-la falar. Em breve dir-me-á tudo o que preciso de

saber!

— E onde vais agora?

— Não sei. Vou continuar a procurá-los.

Não vais a lado nenhum, pensei, a tua busca terminou.

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Mas como conseguir que ela me siga até à aldeia? Não vai querer ir comigo, tem

medo de mim. Também não a posso arrastar, aos pontapés e aos gritos, até ao Quartel-

General.

— Tens comida?

— Alguma. Uma salsicha.

— Isso não chega. — disse-lhe, a pensar onde ela a teria arranjado. — Se quiseres

encontrar os teus tios, ainda tens de andar muito. E uma pessoa fica com fome, a

andar. Sei isso por experiência própria. Vem comigo à aldeia que eu ajudo-te a arranjar

comida.

Abanou a cabeça.

— Porquê? — ri-me. — Tens medo de mim por eu ter gritado? Bem sabes que não

foi por mal. Conheces-me!

Mantinha a cabeça baixa. Só se via o padrão florido do lenço.

— Eu costumava ir a tua casa, não costumava? E a tua tia nunca foi forreta com a

aguardente que me dava. “Toma mais um copo, Andrej. Os telhados são frios.” Era uma

mulher simpática, a tua tia. Não te preocupes, havemos de a encontrar.

Olhou para cima.

Sorri e estendi-lhe a minha mão.

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— Anda lá.

A mão dela ainda tremia ao aproximar-se da minha. Estava quase a agarrá-la, mas

ela recuou.

Muito bem, decidi, vou sozinho. Chego lá em vinte minutos e demoro alguns

minutos mais a fazer o meu relatório. Se ela ficar aqui, ótimo. Se se for embora,

apanhamo-la com facilidade.

— Se preferires, espera por mim aqui. Senta-te neste rochedo que não me demoro.

Vou buscar-te pão, maçãs e queijo.

Encolheu os ombros.

— Trago-te doces, também. Bolo de semente de papoila.

— Bolo de semente de papoila?

A cabeça dela ergueu-se como o faz um cogumelo depois da chuva.

— Sim, sim, quentinho, a sair do forno, com nozes e passas. Como o que a tua tia

fazia.

Chegou-se mais ao rochedo.

— Esperas por mim?

Acenou que sim.

Comecei a dirigir-me para a aldeia.

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Convidado de casamento

Íamos na carroça para o casamento do meu sobrinho. Os meus sete filhos

pequenos, o meu filho casado, a mulher dele, os três filhos deles, a minha mulher, os

padrinhos do meu sobrinho, a professora primária. A carroça ia tão cheia que os nossos

braços e pernas até iam de fora. Estávamos de bom humor, a contar piadas, a cantar e

a passar a garrafa de mão em mão.

A minha mulher e as minhas filhas levavam vestidos finos, toucados de contas e

fitas nos cabelos. Até as éguas tinham grinaldas de flores à volta da cabeça, contas

coloridas nas orelhas e bandeirinhas entrançadas nas caudas.

Tínhamos acabado de sair da aldeia há pouco tempo quando o meu mais novo

gritou:

— Eh, parem os cavalos! Olhem só, está vivo!

O meu filho casado, que ia sentado no lugar do cocheiro, pensou que tinha

acontecido alguma coisa. Puxou as rédeas com tanta força que os que viajavam atrás

caíram da carroça. Deixá-lo! O chão já não estava lamacento e ainda não tinha pó.

Sacudi as calças. Quando finalmente me pus de pé e endireitei a pena do meu chapéu,

as crianças já faziam magote junto da berma da estrada e gritavam-nos que fôssemos

ter com elas.

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Vi uma rapariga a brincar com um macaco, encostada a uma rocha. Nunca tinha

visto um macaco. Só em fotografias. Mas sabia que os ciganos tinham macacos. Este

era pequeno e estava embrulhado num xaile, como um bebé. Uma coisa amorosa.

Mexia-se, coçava as orelhas, acenava-nos, brincava com as franjas do xaile, escondia-

-se e espreitava para ver se estávamos a observá-lo. As crianças saltavam de alegria,

desafiavam-se mutuamente a tocar-lhe, mas quando estavam prestes a fazê-lo, fugiam

a gritar. Até as mais corajosas.

Estavam todos a divertir-se, à exceção da professora primária. Olhava fixamente

para a rapariga e para o macaco. De repente, bateu as palmas como se estivesse na

sala de aula.

— Não é um macaco vivo — anunciou — é um boneco. É uma luva com cabeça de

macaco. Só isso!

As crianças gritavam:

— Está vivo, está vivo!

Pisquei o olho à professora. Queria que deixasse as crianças divertir-se, mas ela

interpretou-me mal. Ficou vermelha e gritou ainda mais.

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A rapariga olhava para nós com os olhos vermelhos e a face molhada de lágrimas.

Tinha provavelmente apanhado uma sova do pai, cigano como ela, e tinha vindo

esconder-se ali. Fui buscar uma moeda que tinha na minha bolsa e atirei-lha.

— Tira o xaile! — ordenou a professora. — Quero ver o macaco todo!

A rapariga tirou o xaile e vimos que era, de facto, uma luva com cabeça de

macaco. A professora olhou-nos, triunfante, e regressou à carroça. As crianças ficaram.

Continuavam interessadas. Queriam fazer como a rapariga: pegar na luva e tentar os

truques todos. Alguns conseguiram mas nenhum o fazia tão bem como a ciganita.

— Eh — disse à minha mulher. — Vamos levá-la ao casamento. Vai ser um bom

divertimento.

A minha mulher achou que eu era maluco. Não faz mal. Pensa isso muitas vezes.

— Queres que os teus filhos apanhem piolhos ou pulgas?

— Não são diferentes dos deles!

— E onde vais pô-la e ao saco? Já estamos a cair da carroça.

Pisquei o olho.

— Deixamos ficar a professora e levamos a cigana.

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Algumas das crianças devem ter ouvido a nossa conversa porque começaram a

gritar e a implorar tanto que tive de tapar os ouvidos. Não sei o que as faria mais

felizes: levar a rapariga ou deixar a professora, mas gostavam da ideia.

— Queres vir connosco, ciganita?

Sorriu.

— Vamos a um casamento e de certeza que vão gostar do teu macaco. Vai ganhar

muitas moedas.

Mas ela não podia ir connosco. Estava à espera de alguém. Tinha de ficar ali.

As crianças não desistiram. Disseram-lhe que havia pãezinhos com salsichas

quentes; bolos cheios de maçãs, nozes, uvas-passas, canela e compota de alperce…

Disseram-lhe que podia encher os bolsos e a barriga e que ninguém prestaria atenção.

Reparei que estava quase a ficar convencida.

— Vai haver música e danças — disse-lhe. — Os melhores violinistas desta zona.

— Danças? Música?— perguntou.

De repente, os olhos dela brilharam. Pegou no macaco e meteu-o dentro do

casaco. Pôs o saco às costas e as crianças seguiram-na até à carroça, a bater palmas. A

ciganita era tão miudinha que a carroça nem parecia levar mais uma pessoa. Os

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miúdos empoleiravam-se nela e à volta dela. Mal se lhe via o nariz, mas ela parecia não

se importar.

Bem, quem quer que seja que ela esperava não a vai encontrar. Não faz mal. É

preciso ser tolo para confiar numa cigana.

O plano de Deus

Capítulo 14

— Olha.

A Anka aponta o dedo para um edifício isolado.

— Deve ser o orfanato.

Santa Catarina, que faço? Não quero ir para lá, mas também não quero continuar a

andar sem destino. Podes ajudar-me?

Gosto da chuva fina de maio na face, mas tenho os sapatos encharcados porque

pisei uma poça. E estou muito cansada. A caminhada desde a estação de comboios foi

longa e monótona. Não vi montanhas nem riachos, nem sequer aldeias. Só campos

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lavrados e cinzentos. Até as roupas dos camponeses desta região são tristonhas, com

poucos bordados e cores. Bamboleiam-se enquanto caminham, carregados de sacos.

São escuros e desajeitados como os corvos que debicam sementes por entre os sulcos.

— K—R—M—A—N—O—V—D—O—M—L—A—S—K—Y—

A Anka soletra as letras do edifício branco e quadrado.

— É aqui.

Dom Lasky, o Lar de Amor, tem dois andares e está rodeado por uma vedação com

pontas de ferro. Do lado de lá da estrada, há um cemitério, a meio de uma colina.

— Diz aqui — a Anka está a olhar para uma tabuleta ferrugenta pregada a um

poste de iluminação — Orfanato e Lar de Terceira Idade protestante, fundado pela

família Krmanov no ano…

Aperto a mão dela e ela aperta a minha.

— Vais ficar bem, Katarína. Vais fazer novos amigos e as Irmãs vão ser simpáticas

contigo.

Espero que não me aceitem. Quero voltar com a Anka para a aldeia dela.

— Que vais dizer-lhes?

— A verdade. Têm de saber que estão a correr um risco. Se alguém descobrir que

albergam uma criança judia…

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— Mas eu não sou judia, Anka, sabes que não! Eu acredito em tudo o que me

ensinaste!

— É melhor não dizeres nada sobre isso ou põem-te na rua!

— Porquê?

— Já te disse, é um orfanato protestante. Esta é uma região protestante.

— Não vão deixar-me rezar à Virgem Maria?

— Não. E não lhes peças!

— Então porque me trouxeste para aqui?

Silêncio.

— Porquê? E se eles não me aceitarem, o que fazemos?

— Não sei. Não podes voltar para casa comigo.

Lembro-me das caras brancas dos pais da Anka quando me viram à porta deles.

Não, realmente não posso voltar para casa da Anka. Mas, se eles não me aceitarem no

orfanato, terei de voltar à estrada sozinha? Terei de ir esconder-me no cemitério? À

meia-noite as campas abrem-se. Haverá dedos ossudos à minha procura, almas a

vaguear na escuridão, fantasmas a pairar sobre os túmulos…

— Anka, vamos entrar.

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Ela vê se estou bem, arranja-me o lenço e belisca-me as faces, com força.

— É para ficares mais rosada. Como estás pálida, podem pensar que estás doente.

O portão está fechado. A Anka benze-se, diz uma oração e toca a campainha.

Uma mulher alta, vestida de azul-escuro, aparece no pátio. A touca branca

engomada aconchega-lhe a cabeça como uma concha. Tira uma chave enorme do

bolso do avental e abre o portão.

— Boa tarde, Irmã.

— Bem-vinda. Trazes-nos uma órfã?

Sorri para mim. Olho para o lado. Em breve, a Irmã saberá a verdade e já não

sorrirá. Vai ficar pálida como a mãe da Anka e dizer:

— Porque a trouxeste para aqui? Vai meter-nos em sarilhos. Leva-a embora!

A Anka brinca nervosamente com o xaile.

— Há um problema, Irmã. Posso falar consigo?

Seguimos a Irmã pelo pátio fora. Na entrada da casa estão duas mulheres vestidas

de preto. A que está de pé grita e agita o punho para alguém que não vejo. A outra está

sentada e resmunga algo que não entendo. A cabeça está inclinada para a frente e as

mãos tremem-lhe no regaço, como passarinhos assustados. Agarro a mão da Anka com

força quando passamos por elas. Subimos um lanço de escadas e seguimos por um

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corredor longo e escuro. A Irmã para em frente a uma porta e vira-se para mim. É nova,

tem as faces coradas e as sobrancelhas escuras unidas.

— Eu sou a Irmã Mara. Como te chamas?

Fixo o chão de pedra.

— Podes falar — diz a Anka.

Eu sei que posso, mas que nome vou dizer? O meu nome verdadeiro ou o falso que

está nos papéis?

— Vá lá, não faças esperar a Irmã.

— Katarína — murmuro.

Este nome manteve-se.

— E que idade tens, Katarína?

— Farei dez anos dentro de duas semanas.

— Muito bem, espera neste banco enquanto eu e a…

— Anka. Anna Karolína Krupčiková.

— … enquanto eu e Menina Krupčiková conversamos.

A Anka dá-me o meu saco e avisa-me para não falar com ninguém.

Nunca mais ouvira o nome completo da Anka desde que viera a primeira vez a

nossa casa. Vinha trabalhar para nós. Estávamos a jantar na cozinha, o tio Teo, a tia

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Lena, o primo Pavel e eu, quando ouvimos bater à porta. Na soleira da porta estava

uma rapariga do campo com cabelo loiro e olhos castanhos. Quando vi o saco aos pés

dela, percebi que devia tratar-se da criada nova por quem esperáramos toda a tarde.

— Sou a Anka. Anna Karolína Krupčiková.

A tia Lena levantou-se.

— Bem-vinda, Anka. Já pensávamos que não vinhas.

— A égua adoeceu. Tive de vir a pé.

A pé desde a aldeia dela! Era uma rapariga de palavra, uma criada em quem a tia

Lena podia confiar. E nova. Os judeus não podiam ter criadas com menos de quarenta

anos, mas na nossa região não eram assim tão severos.

A porta abre-se e vejo a Irmã Mara. Passa por mim sem se deter. Tem a cara

pálida, já não sorri. Desce as escadas. A Anka deve estar sozinha na sala. Estou para ir

ter com ela quando ouço passos. A Irmã Mara voltou com outra Irmã e um homem de

batina preta. Entram na sala e fecham a porta.

Fecho os olhos e penso na tia Lena. Penso nela a cozer pão, penso nos cheiros

bons da nossa cozinha, mas só inalo o cheiro a hospital deste longo e negro corredor.

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Não quero ficar aqui! Mãe Santíssima, porque deixaste a Anka trazer-me aqui, a um

orfanato protestante? Estás zangada comigo? Porquê?

Barulho de pés, murmúrios. Há duas raparigas em bicos de pés na entrada.

Encosto-me à parede e sustenho a respiração.

— Olha, uma rapariga nova!

Vêm observar-me de perto. Olho para os meus sapatos enlameados.

— Olha, Vlasta, tem cabelo ruivo e sardas.

Não esfregam botões para dar sorte, como faziam no sítio de onde venho. Não

dizem “Fora, Fora, Fora”, como na aldeia dos Plăkos. Só me olham e soltam risadinhas.

— Vens para ficar?

Mantenho-me calada.

— Como te chamas? Eu sou a Betka. Não tenho mãe nem pai. E tu?

É pequena, loira e tem olhos azuis. Deve ter seis anos.

— Então, tu tens?

Jesus, por favor, manda-as embora.

— Porque é que ela não me responde, Vlasta?

A Vlasta tem cabelo castanho claro e parece ter o dobro da idade da Betka. Tem

uma trança comprida e grossa, como eu sempre quis ter.

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— De onde és?

Ajuda-me, meu padroeiro!

— Quantos anos tens?

Vou mostrar dez dedos. Assim ficarão a saber e não tenho de falar. Mas será essa

a idade que está nos papéis falsos? Não me recordo. Mostro dez dedos.

— Diz-nos como te chamas — ordena a Vlasta. — Não sabes?

A minha face escalda.

— Não sabes?

A Vlasta atira a trança para trás das costas.

— Eh, Betka, já ouviste falar de tal coisa? Uma rapariga que não sabe como se

chama.

— Há uma igual no sítio de onde venho. É muda.

— Talvez ela também seja. Ouves? — pergunta-me a Vlasta.

Aceno que sim.

Os olhos dela semicerram-se.

— Então porque não respondes? És boa demais para nós?

Abano a cabeça.

— Espantalha convencida!

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— Convencida!

A Betka deita a língua de fora.

— É estúpida demais para falar. Cresceu numa pocilga, com porcos.

— Com porcos — ecoa a Betka. — Oink, oink.

— Ainda tem marcas de porcaria na cara, veem?

— Claro, marcas de porcaria…

A porta abre-se.

— Vlasta! Betka! Voltem para a sala de estudo imediatamente.

A Irmã Mara bate palmas como se estivesse a enxotar um par de gansos. As

raparigas fogem do átrio.

— Disseste-lhes alguma coisa?

Abano a cabeça.

— Fizeste bem. Não digas nada. Nem uma palavra a ninguém.

Volta à sala de onde viera. Cerro o meu punho e dou um murro no banco. Muda.

Chamaram-me muda. E convencida. Ela é que é convencida, aquela Vlasta, a agitar a

trança de um lado para o outro, a pavonear-se. Criada numa pocilga, eu? Se ela voltar,

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eu digo-lhe onde fui criada. Estou farta de ter de me manter calada. Farta. Se continuar

a fazê-lo, os meus lábios acabarão por se colar.

Durante três dias só grunhi, choraminguei, gesticulei. Foi uma ideia estúpida da

Anka. “A criança é surda-muda”, disse às pessoas no comboio. “Vou levá-la para uma

instituição”. Logo a seguir, uma cegonha voou de um pântano. “Olha, Anka, uma

cegonha!”, gritei. Os olhos da Anka quase saltavam das órbitas. Todos os passageiros

baixaram os deles. Olharam para os sapatos e começaram a mexer nos sacos. A Anka

enfiou-me noutro compartimento, mas ficou com medo que fizessem queixa de nós. As

mãos tremiam-lhe sempre que entregava os meus papéis para serem inspecionados.

Havias de morrer de medo, Vlasta, se lá estivesses. Até molhavas as cuecas. Eram

só umas horas de comboio, tinha dito a Anka. Demorámos três dias. Muitas pontes e

túneis tinham sido destruídos. Os guerrilheiros faziam-no para salvar o nosso país. Não

acreditem no que as pessoas vos dizem – eles não têm chifres nem caudas negras e

compridas. O meu primo, o Pavel, é belo como um príncipe, e é um guerrilheiro. É um

segredo que a Anka me contou quando saímos do comboio.

Tivemos de esperar por barcos, de atravessar montanhas. Sempre que nos

aproximávamos de uma ponte que ainda não tinha sido destruída, parávamos de falar.

O comboio andava a passo de caracol e todos pareciam feitos de pedra. Só os seus

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lábios se moviam. Rezavam a S. João Nepomuceno. Uma vez chegados ao outro lado,

voltava a tagarelice. Todas as línguas se soltavam. Todas menos a minha.

Pergunta-me o que quiseres, Betka. Eu sei falar. Não tens mãe nem pai. Eu

também não. Os meus pais morreram numa avalanche, nas Montanhas Tatra. Mas não

é por isso que aqui estou. Eu tenho a tia Lena, que é como uma mãe para mim. A Anka

trouxe-me porque… está agora a dizer-lhes porquê. Está a pedir-lhes que fiquem

comigo, mas eles podem não querer correr o risco.

A Anka é católica. Eu também sou. Acredito em tudo o que ela me ensinou. Íamos

à missa juntas todos os domingos. A tia Lena sabia. Mas não sabia que eu ia à igreja

todos os dias ao vir da escola, que gastava a minha mesada em velas, que apanhava

flores no nosso jardim — aquelas que não podia colher — para pôr nas alminhas que

encontrava pelo caminho.

Não sei onde está a minha tia. Foi de viagem com o tio Teo e disseram-me para

esperar por eles em casa dos Plăkos. A tia Lena disse-lhes que eu era uma órfã católica,

mas alguém descobriu a verdade e contou à Mariška, a filha mais velha. Tive de vir

embora. De madrugada, a Mariška levou-me pelo carreiro que ficava atrás dos celeiros

até aos arredores da aldeia. Chorámos ambas.

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— Que Deus te acompanhe, Katarína. Vou rezar por ti.

Comecei a andar de aldeia em aldeia. Trabalhei para comer e, às vezes, deixavam-

me passar a noite junto ao fogão da cozinha. Ou esgueirava-me para um celeiro. Não

sei quantos dias passaram.

Uma manhã encontrei o Andrej, o limpa-chaminés da nossa aldeia. Fiquei tão

contente por o ver que o abracei, apesar de estar coberto de fuligem. O Andrej

conhecia os meus tios. Pensei que tinha notícias deles. Quando lhe perguntei por eles,

mudou de semblante. Cuspiu. Até a saliva dele era escura.

— Diz-me onde estão. Aposto que sabes.

Enterrou os dedos nos meus ombros e não parava de me sacudir.

— Hás de falar, miúda, hás de falar!

De repente, mudou de atitude. Disse que me ajudaria a encontrar a tia Lena.

Disse-me que esperasse por ele, que me traria pão, maçãs, bolo de sementes de

papoila. Acenei com a cabeça mas não prometi.

Depois de ele partir, encostei-me a um rochedo e tirei a Stefie da minha trouxa.

“Não tenhas medo”, disse-lhe, “o Andrej não nos fará mal. Vai trazer-nos doces e

coisas de que gostas…”

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Uns aldeões, que iam a passar de carroça, julgaram que eu era uma cigana a falar

com um macaco verdadeiro. Iam para um casamento e levaram-nos com eles.

O casamento foi divertido. As pessoas insistiam comigo “Come, miúda, come, não

precisas de roubar, pega no que quiseres!” Não me importei que me tomassem por

uma cigana. As ciganas são bonitas. E comi imenso. Enchi os bolsos de bolachas e

nozes, e meti dois pães de passas no meu saco. Mas, quando a última carroça partiu de

madrugada, fiquei de novo sozinha. “Mãe Santíssima, que vou fazer?” rezei. Procurei

um lugar onde a Virgem pudesse aparecer-me. Pensava que, se rezasse muito e por

muito tempo, ela havia de me aparecer ou de me enviar um sinal.

Soube qual era o lugar certo logo que o vi – era igual ao das pagelas que a Anka

me dera: uma clareira semiescondida por pinheiros, com uma nascente a brotar das

rochas. Ajoelhei-me com o meu terço e comecei a rezar Ave-Marias.

Da primeira vez, não aconteceu nada. Porém, quando rezava pela segunda vez,

senti-a. Estava com pele de galinha, sentia um frio na minha cabeça, um zumbido nos

ouvidos, todos os sinais de quando ela está perto. Ao mesmo tempo, um passarinho

amarelo começou a chilrear. Pus-me à escuta. Será que queria dizer-me alguma coisa?

“Ajuda-me a encontrar o meu ninho… Perdi-me…” As palavras não me saíam da

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cabeça. De onde vinham? De uma canção? Não, vinham de um poema que a Anka me

ensinara, sobre um rouxinol. Canto de noite, choro de dia, por favor sê minha guia…

Imaginei que a Anka estava a meu lado, a recitá-lo. Era uma sensação tão real que até

conseguia ouvir a respiração dela e sentir o perfume dos botões de camomila que ela

usava para lavar o cabelo. Era isso: o pássaro era um sinal da Virgem Maria, e estava a

dizer-me o que fazer. Devia ir ter com a Anka, que estava de volta a Nárobki com a

família.

Comecei a andar, melhor, a correr. Nem parei para descansar. Ela costumava

levar-me à quinta deles no verão, nas suas folgas. O pai, no seu fato domingueiro,

esperava-nos na estrada. A mãe estava na cozinha, a colocar pratos de bolos na mesa.

Os irmãos e as irmãs da Anka — Leo, Petík, Batko, Cilka, e Lydia — ficavam tão

excitados quanto eu. Balançávamo-nos nas cordas do celeiro, saltávamos da escada

para o monte de feno, andávamos de mula sem sela, jogávamos às caçadas e

lutávamos uns com os outros. Havia sempre um bezerro para cuidar e pequenos

pintainhos amarelos para embalar nas minhas mãos. Hoje à noite, quando estiver com

eles, vou diverti-los com a Stefie.

Já era noite quando cheguei a casa dela. Espreitei pela janela e vi-os a jantar.

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A luz de uma candeia a óleo bruxuleava, projetava sombras na parede e iluminava

as caras deles, uma a uma. Lá estava a Anka, com os cabelos louros a cair nos ombros.

O Leo e o Petík estavam a empilhar batatas fumegantes nos pratos e o meu estômago

até se virou. A Lydia, com um bigode de soro de leite coalhado, estava a dar de comer

ao pequeno Batko. A cabeça do pai estava inclinada e só lhe via a cara de lado. A mãe

estava de costas para a janela.

Que surpresa quando me vissem! Na minha cabeça já estava a abraçá-los, a

sentar-me entre a Anka e a Lydia, e a encher a boca de batatas e presunto. Dei a volta,

passei por debaixo da janela, subi os degraus em bicos de pés e abri a porta, devagar e

com delicadeza.

— Katarína! — gritou a Lydia, pondo-se de pé.

O pai mandou-a calar. Porque me olhava daquela maneira? Não me reconheceria?

A mãe virou-se e benzeu-se.

— Jesus, Maria! Que aspeto! O que estás a fazer aqui? O que queres?

Os meus joelhos cederam. Não consegui suster as lágrimas. A Anka amparou-me,

abraçou-me e não parava de dizer que estava muito feliz por me ver. Perguntei-lhe

pelos meus tios e ela disse-me que não tinha notícias deles. A última vez que tivera

notícias tinha sido antes do Natal.

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— E o Pavel? Sabes onde está? — perguntei-lhe.

Sussurrou-me que sim, que sabia, e disse-me que depois me contaria. Conseguia

ouvir os pais dela a dizerem “Ela não pode ficar aqui, vai arranjar-nos sarilhos, alguém

pode vê-la e denunciar-nos…”

A Anka implorou-lhes. Será que iam mandar embora uma criança com fome? Que

iam deixá-la andar sozinha pela rua, à noite? Eu não era uma criança qualquer. Era a

Katarína, uma amiga que tinha sido muitas vezes uma hóspede bem-vinda naquela

casa. Estava em perigo e precisava de ajuda. Será que lhe iam fechar a porta na cara?

Que se olhassem no mais íntimo das suas almas e dos seus corações cristãos.

O pai cedeu.

— Só por dois dias. No celeiro.

Dois dias viraram duas semanas, enquanto a Anka tentava arranjar-me

documentos falsos.

— Aprende o teu novo nome, Katarinka. A tua certidão de nascimento diz que te

chamas Katarína Lemanová. É um nome tipicamente eslovaco. E és protestante.

— O que é isso?

Eu não queria ser protestante, nem mesmo que fosse só em documentos falsos.

— Leva-os de volta, Anka. Eu sou católica.

Page 205: Katarína - Kathryn Winter

— Tens sorte em eu os ter arranjado. São caros e difíceis. Custam três gansos

gordos.

— Será que, por mais uma galinha, mudavam a religião?

— Não, não mudavam. Ouve, Katarína. Vou levar-te para um orfanato.

— Um orfanato! Onde?

— Fica a umas horas daqui…

— É longe demais. Como é que a tia Lena me vai encontrar?

— Eu digo-lhe onde estás.

— E visitas-me, Anka? Prometes?

— Não posso prometer isso, mas, em breve, estarás de volta. Logo que a guerra

acabe.

— Quando me dizes onde está o Pavel? Disseste-me que me dirias.

— Quando sairmos daqui.

— E quando saímos?

— Amanhã.

— Vamos a pé?

— Não, vamos de comboio.

— Ótimo, adoro comboios.

Page 206: Katarína - Kathryn Winter

Os pais da Anka pediram-lhe para não ir. Descreveram-lhe tudo o que podia

acontecer: guerrilheiros a mandar pontes e túneis pelos ares, comboios a

despenharem-se em ravinas, pessoas enterradas vivas debaixo de montanhas.

— Se te apanham com esses papéis falsos, estás feita. Vais ser acusada de traição

por teres ajudado o inimigo.

A Anka não lhes deu ouvidos. De manhã, pediu ao Petík que aparelhasse a égua

para nos levar à estação de comboio da cidade mais próxima. Enquanto passámos pela

aldeia dela, eu ia embrulhada num cobertor, como uma múmia, debaixo da palha, na

parte de trás da carroça.

Na plataforma ficámos longe das pessoas. Dava a mão à Anka e procurava

pequenos sinais de fumo branco e um ponto negro com o olhar. Adorava ver o pontinho

negro transformar-se no grande e sibilante monstro que era o comboio. Ficava sempre

com pele de galinha.

A Anka apertou-me a mão e sussurrou:

— Lembra-te de que tens de fingir que és surda-muda. Não quero que fales com

ninguém ou que te façam perguntas. Não ouves, não falas.

Assenti. Não sabia que ia ser tão difícil. Às vezes precisava tanto de falar que

puxava pela manga da Anka e lá íamos as duas pelo corredor até à casa de banho.

Page 207: Katarína - Kathryn Winter

Uma vez lá dentro, com o barulho das rodas a abafar o som da minha voz, podia falar à

vontade. Muitas vezes, queria chorar. A Anka dizia-me para não chorar, para pensar nos

santos, na sua coragem e fé.

— Confia em Deus, Katarína. Se Ele te faz sofrer, é por uma boa razão. Deus tem

um plano…

— De quem és filha?

Está uma mulher diante de mim com um balde e uma esfregona.

— De onde és?

Sinto a boca a tremer.

— Não chores, filha, as Irmãs são boas. Vão cuidar de ti até ao dia em que casares.

Desaparece no corredor.

— Coitadinha — ouço-a murmurar. — Ruiva e sardenta. Quem a quererá?

Quem me quererá? O Pavel, pateta. E não fico aqui por muito tempo. Vou-me

embora logo que a guerra acabe. Será que a Betka vai ficar aqui até casar? Vai crescer

neste lugar escuro e fedorento? Será que ela sabe o que é viver numa casa, num

quarto próprio, com uma tia Lena?

Page 208: Katarína - Kathryn Winter

Deve ser horrível ser órfão e protestante. Se ela fosse católica, pelo menos tinha

uma mãe no céu. Ela tem, mas não sabe. Alguém tem de lhe falar da Mãe Divina, dos

santos. Talvez ficasse menos pálida e triste… Sentir-se-ia rodeada por uma enorme

família, cheia de tias e tios para olharem por ela. E teria um santo padroeiro só dela,

um que não tivesse de partilhar com ninguém.

Jesus, mandaste a Anka salvar-me. Manda alguém salvar a Betka e a Vlasta,

também. Todas as crianças do orfanato. Lembras-te do que disseste sobre o bom

pastor e as ovelhas tresmalhadas? Estas crianças são como ovelhas perdidas. Como eu

o era, no sonho da Anka. Alguém tem de lhes falar da Sagrada Família, dos santos, dos

quinze mistérios, dos sacramentos. Será por isso que estou aqui? Queres que o faça?

Será por isso que a tia Lena ainda não voltou e a Mariška me mandou embora? Será por

isso que tudo aconteceu como aconteceu?

Santa Catarina, sabias disto? Ajudas-me? Tens de me ajudar. Ainda bem que

trouxe as pagelas comigo. A Anka disse-me para não o fazer, mas fi-lo. Estão dentro de

uma peúga, no meu saco. Sei histórias sobre santos e milagres, cânticos e orações

católicos, sei de cor as perguntas e respostas do catecismo. Querida padroeira, fica

comigo, não me deixes um só minuto. Faremos o nosso trabalho em segredo, enquanto

as Irmãs dormem. Quem me dera poder escondê-lo da Mãe Santíssima, para lhe fazer

Page 209: Katarína - Kathryn Winter

uma surpresa no Dia da Assunção. Não seria uma prenda maravilhosa? Estaria sentada

no Seu trono, vestida para o Seu dia festivo, e ouviria as crianças a cantar a Ave-Maria.

Quando olhasse para baixo, veria, com surpresa, que as vozes vinham de um orfanato

protestante…

— Não, Irmã. O Lar de Amor Krmanov não pode fechar as suas portas a uma

criança…

— E as outras crianças à nossa guarda? O nosso dever é para com elas.

— O nosso dever é para com todas as crianças. Não esqueçamos a caridade, a

compaixão, o amor…

Estão aos gritos naquela sala, a tentar decidir. Não sabem que não são eles que

decidem. Jesus quer-me aqui. É o plano de Deus.

Estou assustada e feliz, ao mesmo tempo. A Mãe Divina não está zangada comigo;

quer que lhe reze. Tenho o terço no meu bolso. É uma sorte esta saia ter um bolso

fundo. Assim, posso tocar nas contas sempre que quiser – mesmo durante as orações

protestantes que as Irmãs me obrigarão a recitar. Não tem importância. No meu

coração direi as minhas e, em breve, não serei a única. A Vlasta, a Betka e todas as

Page 210: Katarína - Kathryn Winter

raparigas do orfanato vão rezar comigo Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é

convosco…

O lar de amor Krmanov

Capítulo 15

Como posso salvar as órfãs, Senhor, se elas não falam comigo?

A Irmã Mara aconselha-me a não me importar, porque demora alguns dias até as

crianças falarem com uma órfã nova. Mas não se trata só de falar. À hora das refeições,

ninguém se quer sentar à minha beira e as que estão perto de mim apertam o nariz e

olham para o lado.

É a terebintina. No dia em que cheguei, a Irmã Mara tentou pentear-me com um

pente fino. Gritei. Ela também:

— Katarína, estás cheia de piolhos!

Page 211: Katarína - Kathryn Winter

Sentou-se num banco e esfregou o meu couro cabeludo com terebintina. Também

eu tive de tapar o nariz. A terebintina cheira muito mal e faz arder os olhos.

Quando terminou, a Irmã pôs uma toalha à volta da minha cabeça.

— Vou levar-te à sala de estudo para conheceres as outras crianças.

Levantei-me. No espelho da casa de banho vi uma turca com um turbante

amarelo, olhos vermelhos e um nariz encarnado e brilhante.

— Oh, não! — gritei. — Não quero que me vejam assim! Por favor, Irmã, esconda-

me em qualquer lado!

Riu-se. Disse-me que todas as órfãs têm piolhos quando vêm para o lar. Agarrei-

-me à torneira, mas ela soltou os meus dedos e arrastou-me consigo, aos gritos, até à

sala.

— Esta é a Katarína Zemanová — apresentou-me, usando o meu nome falso. — É

uma órfã de Uhovce.

Apesar da luz pálida, conseguia ver as crianças sentadas numa mesa do

comprimento da sala. Ninguém se mexeu ou falou.

— Guardem os vossos cadernos e ponham a mesa para o jantar. Sejam simpáticas

com a Katarína. Deixem-na ajudar.

Page 212: Katarína - Kathryn Winter

A Irmã saiu. Vi que os olhares se dirigiram para mim como alfinetes. Fiquei de

costas para a porta. Como se fosse uma borboleta pregada num quadro.

— Terebintina! — gritou alguém. — A nova tem piolhos.

— Ponham-na daqui para fora. Cheira mal!

— Uhovce, ouviram? Cresceu com os porcos.

— Tem marcas de sujidade por toda a cara.

— Quem é capaz de se sentar à beira dela ao jantar?

— Eu não!

— Eu não!

— Eu não!

Estavam todas a gritar. Tiraram tigelas de metal da prateleira e começaram a

bater-lhes com colheres. Baixei-me e tapei os ouvidos, mas o barulho era cada vez

maior. Começaram a rodear-me. “Santa Catarina”, murmurei, “salva-me!”

A porta à qual me encostei cedeu. Caí sem sentidos.

— Estás acordada?

Estou deitada numa cama estreita, num quarto pequeno e limpo. A Irmã Mara

sacode o termómetro.

Page 213: Katarína - Kathryn Winter

— Desmaiaste, Katarína. Trouxe-te para o meu quarto.

Lembrei-me da sala de estudo. Das crianças a bater em tigelas de metal. Da minha

prece a Santa Catarina. Uma vez mais, ela tinha-me salvo.

— Sonhaste com a tua tia? Estavas a chamá-la.

— Sonhei, Irmã. No meu sonho vi uma aldeia. Em baixo estava a nossa casa. O

nosso jardim. Tudo no sonho parecia enorme. As tulipas eram enormes como árvores;

as margaridas e os junquilhos eram tão grandes que podíamos sentar-nos neles. Na

cozinha, a tia Lena e a Anka estavam a pôr a mesa. “Tia Lena”, gritei, “voltei, deixa-me

entrar!” Não me ouviu. “Tia Lena”, gritei, batendo com as mãos na janela, “sou eu, a

Katinka.”

Ela olhou e sorriu. “Olha, Anka”, disse apontando para mim, “que linda borboleta.”

Quero escrever um diário secreto, mas o único sítio onde posso estar sozinha é no

barracão velho e semidestruído. E não posso lá ficar muito tempo, senão dão pela

minha falta.

A minha cama fica à beira da janela. Quando for noite de lua cheia, poderei

escrever na cama mesmo depois das luzes se apagarem e poderei também olhar para

as minhas pagelas. Ninguém me verá. O colchão é como uma cama suspensa: tem uma

Page 214: Katarína - Kathryn Winter

reentrância no meio, porque aí, a palha já se transformou em pó. Doem-me as costas

de tanto roçar as molas.

As raparigas ainda não me falam. Lembras-te, Jesus, da surpresa que queria

preparar para a Tua Mãe? Pôr as meninas protestantes a cantar a Ave-maria no Dia da

Assunção? Por favor, faz com que elas falem comigo ou não poderemos fazê-lo!

Odeio este lugar. Cheira a hospital. Parece um hospital. O dormitório das raparigas

podia ser uma enfermaria. Tudo é branco e há dez camas de cada lado. Não há

bordados pendurados nas paredes nem sequer quadros. Há um – um! Tento não olhar

para ele, mas fixa-me em todos os quartos onde vou. É um homem zangado com olhos

de louco.

— Quem é? — perguntei à Irmã no dia em que cheguei. — É o Sr. Krmanov?

Deixou cair o pente fino que estava a passar pelos meus cabelos e apertou as

mãos.

— Meu Deus, ainda bem que ninguém te ouviu. Quem acreditaria que és

protestante se não conheces Martinho Lutero?

Martinho Lutero. É então para ele que estas pobres órfãs olham, mas não por

muito mais tempo. O Martinho Louco vai sair das paredes e vai ser substituído pelos

belos e suaves rostos dos santos. No nosso dormitório, poremos Santa Inês, padroeira

Page 215: Katarína - Kathryn Winter

das jovens. Na sala de estudo ficará S. Bento, padroeiro dos estudantes. Santa Marta

ficará na cozinha. S. Jerónimo, padroeiro dos órfãos, ficará no átrio.

Sempre que posso, esgueiro-me até ao barracão e ajoelho-me no altar imaginário

que construí à Virgem Maria. Passado algum tempo o cheiro a bolor já não me

incomoda. Rezo as minhas orações e sinto o odor das velas, do incenso e das rosas.

Todas as manhãs, a campainha acorda-nos às seis horas. Às sete já estamos

penteadas, vestidas, e já fizemos as camas. A casa de banho tem uma fila de seis

torneiras com um lavatório comum. As raparigas mais velhas, as que têm entre doze e

catorze anos, arranjam-se primeiro e depois ajudam as mais novas. Apressamo-nos a

chegar à sala antes dos rapazes. Não sei porquê.

Comemos papas de aveia e café de malte ao pequeno-almoço, com pão seco. Das

oito às dez fazemos tarefas domésticas. As aulas começam às dez e um quarto. O

Irmão Martin senta-se no topo da mesa comprida e dita do único livro que temos para

cada matéria. Aprendemos história eslovaca, gramática, aritmética e religião. De tarde,

decoramos o que ele nos ditou de manhã.

Ao meio-dia, as duas Irmãs trazem uma enorme panela de comida para a sala.

Alinhamo-nos, segurando tigelas de metal nas mãos, e recebemos uma colher cada. Às

Page 216: Katarína - Kathryn Winter

quatro da tarde, voltamos a tomar café e uma fatia de pão com um bocadinho de

compota de ameixa. Lembro-me de que a Božena espalhava uma camada de dois

centímetros no pão dela. Depois, as raparigas sentam-se em volta de um cesto de

roupas e remendam, cosem ou fazem peças novas. Só depois do jantar é que se liga a

luz.

Sempre que pode, a Irmã Mara chama-me ao seu quarto para me ensinar orações

e cânticos protestantes que preciso de saber. Não gosto de os aprender, mas gosto de

estar com ela, no seu quartinho pequeno e limpo.

Pedi-lhe que me guardasse a Stefie. Não tenho onde a esconder no dormitório e,

de qualquer forma, não poderia falar com ela à noite por causa das outras raparigas.

Nunca vou ao quarto da Irmã Johanna. Não gosta de mim e o sentimento é mútuo.

Depois de jantar há um curto serviço. A última campainha toca às oito e meia.

Debaixo dos cobertores, desfio o meu terço e rezo a Nossa Senhora. Depois, até

adormecer, imagino que estou em casa à espera que a tia Lena me venha dar um beijo

de boas-noites.

É sábado. Dia de banho. As raparigas alinham-se três a três. As três que estão à

espera de entrar tiram a roupa. Olho para o lado.

Page 217: Katarína - Kathryn Winter

Penso nos banhos de sábado em casa: a lenha a crepitar no fogão, a casa de

banho a fumegar… e eu imersa em sais perfumados, a cantar, a não querer, nunca, sair

dali…

Saem três raparigas da banheira. Entram as próximas três. A Irmã Johanna, a

cozinheira e uma ajudante lavam uma rapariga cada. As caras delas estão vermelhas

do esforço. Primeiro as mãos; depois os pés; os sovacos; atrás das orelhas; as plantas

dos pés; a barriga, os joelhos. Panos com sabão castanho lavam traseiros e caras. As

raparigas gritam, fecham os olhos por causa da ardência do sabão, voltam as cabeças,

mas nada demove quem as lava.

A tia Lena deixava-me lavar sozinha. Só vinha acrescentar água quente, esfregar-

-me as costas e, no fim, lavar-me o cabelo. A última lavagem tinha sempre botões de

camomila encharcados em água da chuva.

— Despacha-te, Katarína, despe-te. A Marta, a Betka e tu são a seguir.

Não me mexo. Não me vou pôr nua à frente das outras.

O roupão de veludo enorme…A tia Lena embrulhava-me nele e friccionava-me até

secar…a cara, o pescoço, as orelhas, devagar…depois com força por todo o corpo até o

deixar rosado e a formigar. O cheiro da camomila…

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— Eh, o que se passa contigo? — grita a Irmã Johanna, com as mãos nas ancas. —

Não gostas de te lavar?

A água está preta. Já deve estar fria porque as raparigas que acabaram de sair têm

os lábios roxos e estão a tremer.

— Responde, rapariga.

— Sim, gosto — resmungo. — Em água limpa e sozinha.

Olha-me de soslaio. Fica com a boca torta.

— Perdão, Vossa Alteza. Esqueci-me do quão especial sois.

Agarra-me pelos pulsos, leva-me pelo corredor fora e empurra-me para o

dormitório.

— Ficas aqui, sozinha, e sem jantar.

Ouço a chave girar na fechadura. Começo a chorar, mas em breve gosto de estar

sozinha. Só estou sozinha quando vou até ao barracão. Agora posso ver todas as

pagelas e espalhá-las pela minha cama.

Pela primeira vez, desde que vim para o orfanato, posso ver o rosto dos que amo

em plena luz do dia. Quem me dera que as outras pudessem vê-los comigo.

Jesus, porque não me ajudas?

Page 219: Katarína - Kathryn Winter

Uma rapariga falou comigo hoje. Chama-se Olga. Diz que as outras a odeiam

porque gagueja. É uma das mais velhas – tem quase treze anos – e quer ser minha

amiga.

Sou tão feliz! Amanhã faço dez anos. Sonhei que estava em casa a festejar. No

meu último aniversário, a tia Lena encheu a casa de lilases. Cresciam ao longo da

vedação e floresciam nesta altura do ano. Sentia as corolas húmidas roçarem a minha

cara sempre que passava pelo portão. No dia 16 de maio, a minha tia deixava-me

sempre dormir até tarde, mesmo que fosse dia de escola. Trazia o meu pequeno-

-almoço favorito à cama: cacau com natas batidas e bolo de semente de papoila.

À tarde deixava-me convidar amigos e comíamos bolo de chocolate, feito por ela,

gelado, e bebíamos groselha. Não deixava que os meus amigos trouxessem prendas ou

que eu mostrasse as que recebera.

— Lembra-te, Katinka, que a maior parte das crianças é pobre. Os pais não podem

dar-lhes o que tu tens.

Recebia as prendas na véspera, ao jantar. Livros, jogos, puzzles, cadernos para

colorir, um vestido novo ocasionalmente. No ano passado tive o melhor de sempre – a

Stefie. Acordei hoje com o cheiro de lilases. Não quero separar-me dele…

Page 220: Katarína - Kathryn Winter

Ontem sofri todo o dia. Tinha muitas saudades da tia Lena e de casa.

Disse à Olga que fazia anos. Encolheu os ombros e percebi que nunca se tinham

importado com os aniversários dela.

Depois do jantar, a Irmã Mara mandou-me chamar. Disse-me:

— Katarína, fazes dez anos. Parabéns. Sei que deves estar habituada a receber

prendas, mas as nossas crianças só recebem prendas no Natal.

Tirou algo do bolso do avental embrulhado num guardanapo.

— Guardei-te um pedaço de bolo — disse. — Come-o aqui e não digas nada a

ninguém.

Desatei a chorar porque tinha saudades de casa e gostava muito da Irmã Mara.

A Irmã Johanna mandou-me chamar. Será que aquele estranho que eu vi lhe

trouxe uma mensagem da tia Lena? Desato a correr. Quando chego ao escritório, o

homem já não está lá. A Irmã Johanna está a gritar com a Irmã Mara.

— Eu disse-te que não resultava usar um nome falso. A verdade revela-se na

maneira de ela falar, nos modos, nas expressões.

Vira-se para mim:

— E tu? O que pensas que estás a fazer? Vais meter-nos em sarilhos!

Olho para a Irmã Mara, que fica calada.

Page 221: Katarína - Kathryn Winter

— Tens de te comportar como uma órfã de Uhovce. Não percebes isso?

— Não, não percebe. Nunca lá esteve — responde a Irmã Mara por mim.

A Irmã Johanna olha-a furibunda.

— Foi uma escolha infeliz. Pensaste que uma rapariga do meio dela podia alguma

vez fazer-se passar por uma campónia?

— Admito que sim. Peço desculpa. Quando a Katarína aqui chegou e me perguntou

se o Martinho Lutero era o Senhor Krmanov, fiquei preocupada com a sua ignorância.

Então, achei melhor fingir que vinha de um local muito ermo.

— Esta é uma lição para ti, Katarína. Uma mentira leva a outra e acabamos por

tropeçar. Que Deus te ajude! Em Uhovce as pessoas sorvem a sopa e nunca ouviram

falar do alfabeto.

Encolho os ombros. Não é culpa minha. Por que razão me ralha a Irmã Johanna?

— Sinto-me como se tivesse a palavra mentirosa estampada na cara. O Inspetor

viu-a sair do barracão e perguntou-me quem ela era. Disse-lhe que era uma órfã de

Uhovce, e que era uma campónia. Pensei que ela teria juízo suficiente para se ir

embora, mas não. Vem direita a nós e faz uma vénia, como se fosse uma duquesa.

“Sou a Katarína”. Depois vai à frente e segura a porta para passarmos. Senti a cara a

escaldar e pensei logo noutra mentira para encobrir a primeira, que Deus me perdoe.

Page 222: Katarína - Kathryn Winter

Fiquei tão embaraçada que lhe disse “Estamos a ensinar regras de cortesia às

raparigas, Inspetor. A Katarína está a praticar o que aprendeu.”

A Irmã Mara riu-se.

— É sem dúvida uma bela ideia. As raparigas deviam aprender regras de boa

educação.

— Uma bela ideia, sem dúvida. Estamos a ensinar regras de cortesia enquanto o

exército se aproxima cada vez mais.

Estou ansiosa por dizer à tia Lena que as boas maneiras me meteram em sarilhos.

E tenho de me lembrar de sorver a sopa.

Hoje a Betka falou comigo. Disse que as outras também me falariam se eu

deixasse de ser amiga da Olga. Que faço, Jesus? Sei que queres ajudar-me, mas será

que tenho de virar as costas à Olga? Não gostaste que S. Pedro te tivesse voltado as

costas. Pensa noutra hipótese, por favor.

— Olga, para de empurrar!

— N— nós chegámos pr—primeiro!

— E depois? Nunca ninguém te visitou. A ti e à tua amiga das manchas. Será que

os porcos de Uhovce vieram vê-la?

Page 223: Katarína - Kathryn Winter

A Olga e eu lutamos por espaço ao longo da vedação. O cotovelo da Vlasta está

cravado nas minhas costelas, mas não largo as barras de metal. Meto a cara por entre

as grades e observo a estrada.

Aos domingos, os dormitórios estão abertos. Podemos levar as visitas lá acima e

sentar-nos nas camas. As que nunca têm visitas, como a Olga e eu, ficam a olhar com

olhos esbugalhados as guloseimas que saem dos cestos: bolos de canela, nozes,

rebuçados, maçãs, fitas coloridas, lápis. Mais tarde, trocam-se alguns dos presentes. O

Joško, que é meio cigano, esculpe uma flauta e troca-a por uma salsicha. A Olga copia

duas páginas de trabalho de casa e troca-as por um pau de licor. Se a Vlasta me

falasse, eu faria qualquer uma das suas tarefas da manhã por um pedaço do bolo de

semente de papoila que a tia lhe traz. Daria ao Šebesta (que molha a cama) a minha

porção de manteiga, em troca de um alperce seco. A Olga fica lá em baixo, à espera.

Não tem parentes, mas acha que o tutor dela pode vir. Ou que alguém da aldeia se

lembrará dela.

Adoro a Irmã Mara. Para poder estar junto dela, chego a oferecer-me para fazer

tarefas extra. Do que mais gosto é de trabalhar na cozinha, onde posso cheirar e provar

a comida. A comida deles.

Page 224: Katarína - Kathryn Winter

Seis dias por semana, há duas grandes panelas no fogão, uma para o orfanato e

outra para o lar de terceira idade. À segunda, são feijões; à terça, massa; à quarta,

nabos; à quinta, ervilhas; à sexta, lentilhas. Aos sábados, há massa com couve. Aos

domingos comemos comida fria: chá e pão com manteiga.

A comida que eu gosto de cheirar e provar não está nas panelas grandes. Está nas

pequenas: vegetais com natas, molhos, fruta cozida. Às vezes, está uma galinha, ou um

pato, ou um coelho a assar no forno. Coisas que as pessoas trazem das suas quintas. A

comida deles é a da cozinheira e do pessoal.

O cheiro da boa comida faz-me fazer coisas malucas. Queimo os dedos nos molhos

a ferver, os dedos e a língua nos biscoitos que tiro dos tabuleiros. A Irmã Mara finge

não ver, mas eu sei que ela vê. Quando a cozinheira não está, deixa-me “limpar” os

tachos e as taças, antes de os mergulhar em água e sabão no lava-louça.

A Irmã Mara gosta de mim. Às sextas, depois de limpar o quarto dela, encontro

uma surpresa que me deixa sempre – uma maçã ou um doce. E, por duas horas de

trabalho extra ao sábado, posso tomar banho em água limpa, sozinha.

A Olga foi-se embora, duas semanas depois de nos termos tornado amigas. O tutor

mandou-a buscar. Como ela fez treze anos, acha que já pode mandá-la para criada de

servir. Tenho saudades dela. Não tenho ninguém com quem falar. A Olga disse que

Page 225: Katarína - Kathryn Winter

vinha ver-me aos domingos se não tivesse de trabalhar. Agora, já tenho alguém que me

visite.

Pobre Olga, nem quis olhar quando lhe mostrei os meus santos. Tinha medo que as

Irmãs descobrissem. Eu disse-lhe que não se preocupasse porque era o plano de Deus,

mas, mesmo assim, ela não olhou.

A Irmã Johanna mandou-nos para o celeiro para encher os colchões com palha

fresca. Os colchões são sacos de serapilheira fechados nas pontas, com uma abertura

ao meio para enfiar a palha. Antes de sairmos, advertiu-nos:

— Lembrem-se primeiro de virar os sacos do avesso e de sacudir toda a palha

velha para fora.

Estou a sacudir o meu quando vejo um bando de pássaros coloridos a voar. Fico

petrificada. São as pagelas que eu tinha escondido no interior do colchão. Uns

segundos mais tarde, todas aquelas cabeças santas estão espalhadas pelo celeiro:

Santa Úrsula. Santa Verónica e S. Sebastião estão aos meus pés. Aos pés da Betka está

Santa Teresa. Santa Catarina escorrega pelo nariz da Marta e S. Pedro repousa no

ombro da Vlasta. Para onde quer que olhe, sejam sacos de serapilheira ou montes de

palha, há olhos de santos a observar-me.

Page 226: Katarína - Kathryn Winter

Sinto-me demasiado aturdida para me mexer. As raparigas também, mas não por

muito tempo. Acotovelam-se umas às outras, e tentam chegar às pagelas.

— Traz-me todas essas figuras patetas — ordena a Vlasta — Vou mostrá-las às

Irmãs e ao Irmão.

Mas não sai logo com elas. Acho que quer vê-las primeiro.

Finjo que estudo, mas só penso no que aconteceu hoje de manhã no celeiro. A

qualquer minuto a porta vai-se abrir. Serei chamada ao escritório e mandada embora.

Jesus, dá-me outra oportunidade.

E Ele deu-ma.

Tinha posto palha a mais no meio do meu colchão. À noite, mal fechei os olhos,

rolei para o chão.

As raparigas riram-se de mim, mas não por muito tempo. Também elas

começaram a cair dos seus colchões inclinados. Caíam raparigas de minuto a minuto. A

Betka começou a contar. Em breve, eu levava uma enorme vantagem sobre as outras.

O enchimento de palha destinava-se a impedir as minhas costas de roçarem nas molas.

Neste momento, estava a atirar-me para fora da cama.

Page 227: Katarína - Kathryn Winter

Rimo-nos tanto que duas raparigas molharam a cama. A Vlasta esqueceu-se de

que não falava comigo e veio ajudar-me a alisar o colchão. Tentámos distribuir a palha

pelos quatro cantos do colchão e no centro tentámos espalmá-lo. Depois disse-me,

entregando-me as pagelas:

— Toma. Não vou denunciar-te se nos contares tudo sobre os santos.

As outras raparigas também vieram para a minha cama e comecei por lhes contar

a história de Santa Catarina, a minha padroeira.

A guerra

Capítulo 16

Hoje colámos papel nas janelas para que os aviões não detetem luzes quando

largarem as bombas. O Irmão Martin disse que tínhamos de cumprir as regras, embora

pensasse que ninguém iria bombardear um orfanato. No entanto, fiquei preocupada.

Como pode um piloto ver o letreiro do edifício lá do céu?

Page 228: Katarína - Kathryn Winter

Agora que já todos me falam, fazem-me perguntas a que não sei responder.

Ninguém acredita que eu venha de Uhovce. Um dos rapazes, o Šebesta, aquele que

molha a cama, perguntou se eu era judia. O tio dele trabalha para o governo. Quando o

visita, aos domingos, traz sempre o uniforme da Guarda Hlinka.

As raparigas gostaram da ideia de fazermos uma surpresa à Mãe Divina no Dia da

Assunção, 15 de agosto. Temos muito tempo para nos prepararmos. A Vlasta contou

dez semanas. À noite rezamos a Ave-maria juntas, mas só temos um terço para passar

de mão em mão. A Marta, a órfã coxa, teve uma ótima ideia. Vamos surripiar algumas

espigas de milho e feijões secos e enfiá-los numa linha. Molhamo-los primeiro para

ficarem macios. Cada dez grãos serão separados por um feijão. Assim, todas as

raparigas poderão ter o seu próprio terço.

Uma vez por semana, ao jantar de domingo, há manteiga na mesa. Trazem-na

pelas escadas das traseiras para que os idosos não vejam. A Irmã Mara diz que eles não

viram nem provaram manteiga desde que a guerra começou.

Alguns dos ocupantes do lar de idosos não são velhos. Ou são loucos, ou não têm

Page 229: Katarína - Kathryn Winter

para onde ir. O Samuel, por exemplo, senta-se todos os dias junto da porta. Parece

calmo, mas vejo que há nele algo de selvagem. A Vlasta diz que quando ele começa a

gritar e a bater nos outros são precisos cinco homens para o segurar. Os olhos dele são

de uma cor verde clara, como os de um gato. Sempre que passo por ele, tenho medo

de que me salte.

A Kača também é doida, mas não tenho medo dela. Os gritos dela são menos

assustadores do que o riso da Ratenica. Alguns estão demasiado fracos ou doentes

para sair da cama. O Cupek é zarolho e chora todo o dia como um bebé. O velho Hrnec

toca música com os dois dentes que lhe restam. A Helen tem a cabeça ao contrário e

não para de se mexer.

Ao domingo, depois do jantar, vamos ao lar de idosos para o serviço religioso da

noite. O Irmão Martin conduz as orações. Eu finjo repetir, mas as que digo são católicas

e desfio o terço sob a mesa. Quando começam os cânticos, a Vlasta e eu temos

dificuldade em nos manter sérias. A Kača guincha, a Ratenica ri, o Cupek funga, um

velhinho qualquer coaxa como uma rã e a Magdaléna Doida canta o que lhe apetece!

Depois, vamos deitar-nos. Esperamos que as luzes se apaguem e, no sussurro

mais alto que consigo fazer, conto às raparigas as histórias das pagelas. Adoram os

Page 230: Katarína - Kathryn Winter

cartões e as histórias, e penso que gostam, também, de partilhar algo que as Irmãs

desconhecem.

Estou no escritório do Irmão Martin. Os seus olhos faíscam e tem a cara vermelha.

— Katarína, senta-te. Tenho notícias que vais adorar ouvir.

Dou um salto. De quem, o quê, quando: quero saber tudo. Uma mensagem? Um

papel?

Olha-me, surpreendido, e suspira.

— As notícias não são sobre a tua família. São sobre a guerra.

Aproxima-se de mim e sussurra:

— As Forças Aliadas desembarcaram na Normandia.

Engulo a custo. Não são as notícias que esperava. O que são as Forças Aliadas?

Onde fica a Normandia? Em vez de perguntar, sorrio, mas ele lê-me a mente.

— Os Aliados lutam contra a Alemanha, tal como os russos.

A voz dele mal se ouve.

— São ingleses, americanos, canadianos – vêm de países longínquos. Estão em

França, Katarína, perto de nós. Estão do nosso lado. Eles…

Do nosso lado. É isto que eu acho confuso. A Eslováquia está do lado da Alemanha.

Page 231: Katarína - Kathryn Winter

Se a Alemanha perder a guerra, a Eslováquia também perde. Será que o Irmão Martin

quer que o seu próprio país perca a guerra?

— São excelentes notícias, Katarína. A guerra deve estar a acabar. Já não terás de

te esconder.

Estas notícias sussurradas sabem-se através de uma estação de rádio proibida. O

Irmão podia ser preso se soubessem que a escuta. Vê-se que confia muito em mim. O

que diria ele se soubesse que eu tinha querido ir à festa de anos de Hitler? Que me

tinha regozijado, juntamente com os meus companheiros de classe, com “a queda de

outro país perante o poderio alemão”, conforme nos anunciara o diretor da escola?

— Vou pedir às Irmãs que te deem trabalho no escritório uma vez por semana.

Assim posso manter-te informada. Se acontecer algo de muito especial, mando chamar-

te. Agora volta para a sala de estudo e não deixes transparecer nada.

Não fui para a sala. Fui para o barracão. Precisava de estar sozinha, de pensar.

Os judeus são inimigos do estado eslovaco. Toda a gente o sabe. Ensinam-no logo

na escola, ouvimo-lo na rádio, em convívios, nas ruas, vemo-lo escrito nas paredes,

pintado nos cartazes. Costumava ressentir-me do facto de os meus tios quererem que

os russos ganhassem a guerra. Isso fazia deles inimigos do meu país, tal como os

Page 232: Katarína - Kathryn Winter

eslovacos diziam que os judeus o eram. O Irmão Martin é cristão. Adora a Eslováquia.

No entanto, também quer que os russos ganhem a guerra. Será que se pode querer

isso e continuar a ser um bom eslovaco?

Disse-lhe que tinha chorado durante dias quando a Guarda Hlinka não me aceitou

como membro.

— Katarína, nem acredito no que ouço — disse-me.

— Eu queria ser uma boa eslovaca.

Abanou a cabeça.

— Pobre criança, lavaram-te mesmo o cérebro. Pensei que os teus tios te tivessem

explicado, mas ainda bem que não o fizeram. Teria sido perigoso para vós.

Perguntei-lhe como podia amar o seu país e querer que ele perdesse a guerra.

— O país e a política não são a mesma coisa. Muitos eslovacos não concordam que

o nosso país se tenha aliado à Alemanha. Alguns aliaram-se aos guerrilheiros russos

das montanhas e lutam por…

— O meu primo Pavel é um guerrilheiro — disse sem pensar.

Achei que era bom que ele soubesse.

— Deus o abençoe. Vamos rezar por ele, Katarína. Rezar por todos os homens e

mulheres corajosos que lutam por uma Checoslováquia livre. Que Deus os proteja.

Page 233: Katarína - Kathryn Winter

No dia em que me falou das Forças Aliadas, o Irmão disse-me para não deixar

transparecer nada. Pela cara dele, posso ver como vai a guerra. Nos dias de boas

notícias (DBN), a cara dele brilha de satisfação. Sobe as escadas duas a duas e brinca

connosco. Nos dias de más notícias (DMN), franze o sobrolho, resmunga e caminha

curvado como um velho. Hoje vi logo que algo de mau acontecera. Os alemães

mataram 649 aldeões franceses, entre os quais 190 crianças, acusados de terem

ajudado o inimigo.

29 de junho (DBN): o Exército Vermelho tem estado a rechaçar sistematicamente

os alemães.

6 de julho (DMN): alguns dos nossos (dele, meus, e da tia Lena) foram executados.

13 de julho (DBN): o Exército Vermelho continua a avançar na Frente Oriental.

20 de julho (DBN): o Irmão Martin estava tão excitado que mal podia respirar:

“Hitler mo-morreu. Uma bo-bomba foi colocada no seu escritório por um dos seus

oficiais!”

21 de julho (DMN): os lábios do Irmão mal se mexem quando diz “Afinal, o malvado

ainda está vivo. A bomba não o matou e o oficial corajoso foi fuzilado”. O Irmão Martin

ergue os olhos ao céu e murmura “Ajuda-me a compreender os teus

desígnios, Senhor!”

Page 234: Katarína - Kathryn Winter

Recitei-lhe o poema que escrevi sobre a Eslováquia. A Amanhecer, a revista

semanal que era lida em todas as escolas, nunca o publicou. O editor enviou uma nota

à minha professora, perguntando-lhe porque não tinha escolhido um poema escrito por

“um dos nossos”. Sabia, pelo meu nome de família, que eu era judia. A Menina Sipková

não me disse. Trouxe o bilhete para a tia Lena ver e chorou muito, disse-me a minha

tia. Aposto que a minha professora também está do nosso lado.

Mantive a promessa de surpreender a Virgem Maria no Dia da Assunção.

Escolhemos a pagela mais bonita da Virgem para o altar que lhe erguemos, e

colámo-la a uma caixa de cartão que decorámos com papel colorido. Pusemo-la num

pedestal – o banquinho com que os pequeninos chegam aos lavatórios. Quando a Betka

e eu surripiámos grãos de milho e feijões para fazer os terços, também tirámos duas

velas. A Vlasta deu-nos fósforos que tirara da cozinha à socapa. De tarde, levei três

pequeninas a colher dentes de leão e outras sementes que encontrámos entre o celeiro

e a arrecadação. As mais velhas enfiaram-nas em grinaldas e pusemo-las à volta da

imagem. A Marta juntou lindas flores de papel que tinha feito.

Depois de as luzes se apagarem, acendi as velas. Ajoelhámo-nos e sussurrámos

cinquenta Ave-Marias, contadas nos nossos terços improvisados. No fim, cantámos a

Page 235: Katarína - Kathryn Winter

Ave-Maria suficientemente baixo para as Irmãs não ouvirem, mas suficientemente alto

para a Virgem ouvir no céu.

Não consigo deixar de pensar no Irmão Martin. Se ele soubesse o que estávamos a

fazer, 15 de agosto teria sido um DMN para ele. Só que, desta vez, a culpada seria eu e

não a guerra.

27 de agosto (DBN): o comandante alemão em Paris rendeu-se. O General de

Gaulle percorre as ruas em triunfo. A multidão aclama-o, doida de alegria.

29 de agosto (DBN): no escritório, ouvi um discurso num aparelho de rádio que

nunca vira antes. Na mesa estava um mapa da Eslováquia aberto. Só lá estavam o

Irmão Martin e a Irmã Johanna. A cara dele estava vermelha e a da Irmã Johanna

branca.

Um minuto depois, todo o pessoal do orfanato acorreu a ouvir a notícia. Tinha

havido uma sublevação nacional na Eslováquia. Os guerrilheiros tinham tomado a

cidade de Banská Bystrica e tinham proclamado uma República Checoslovaca livre. O

Irmão mostrava as zonas no mapa. Alguns sorriam, outros franziam o sobrolho.

Quando o discurso terminou, uma orquestra tocou uma melodia. Parecia-me

familiar, mas não me lembrava do nome.

Page 236: Katarína - Kathryn Winter

— Levem todas as crianças para a sala de estudo, depressa.

O Irmão Martin já estava à porta.

— Digam-lhes o que aconteceu. É altura de saberem quem são os seus verdadeiros

heróis.

— Calma — gritou-lhe a Irmã Johanna. — Não os confunda. A sua revoltazeca será

esmagada dentro de dias.

Ele fulminou-a com o olhar.

— Dentro de dias, os guerrilheiros estarão aqui para nos libertar!

A Irmã Mara elevou a voz.

— Vamos esperar, Irmão Martin, para ver o que acontece.

Ele suspirou.

Mais tarde perguntei-lhe que melodia tinham tocado na rádio.

— É o Hino Nacional da Checoslováquia. Não te lembras?

É proibido tocá-lo ou cantá-lo no Estado Eslovaco Independente. Ouvi-o pela última

vez aos quatro anos.

Fantasio muitas vezes sobre o Pavel. Basicamente imagino o seguinte:

Page 237: Katarína - Kathryn Winter

O Pavel conduz um grupo de guerrilheiros (a cavalo e a pé, com estandartes) numa

batalha. Lutam (com armas, espadas, punhos) com o inimigo – os alemães e os maus

eslovacos (pessoas que conheço – a Irmã Johanna, o diretor da minha escola, o limpa-

chaminés – ou das quais só ouvi falar – o nosso Presidente Tiso e os seus ajudantes).

Contra todas as expectativas os guerrilheiros vencem. Os bons eslovacos como nós

festejam. O Pavel pega em mim como da primeira vez, quando fiquei com o cabelo

preso na nogueira. Mas, desta vez, não lhe grito que me ponha no chão. Quero que

todos me vejam nos braços do nosso herói. “É o meu primo Pavel”, grito para que todos

me ouçam. “O nosso libertador. O meu amor.”

5 de setembro (as melhores BN de sempre): vi o Irmão Martin a subir as escadas

três a três. A Rádio Bruxelas anunciou que os alemães se tinham rendido.

6 de setembro (D de muito MN): falso alarme. A Alemanha não se rendeu.

O Irmão Martin parece mais encolhido cada dia que passa; até está mais pálido. A

Irmã Johanna, pelo contrário, traz as faces rosadas e está muito expansiva.

Soldados alemães invadiram a Eslováquia e estão a tentar esmagar a sublevação.

Estou morta de medo pelo Pavel e triste por ver o Irmão Martin sofrer tanto.

Page 238: Katarína - Kathryn Winter

Quando a Irmã Johanna está no escritório, o Irmão Martin cala-se. O mesmo não

acontece com a Irmã Mara. Penso que ouvem as emissões radiofónicas em conjunto,

em segredo. Quando os exércitos aliados chegaram à Normandia, o Irmão dissera que a

guerra terminaria em breve. Agora diz que a insurreição terminará em breve também:

— São os corpos deles contra os tanques alemães. Não têm qualquer hipótese.

— Estão acabados, Katarína, derrotados. Lutaram com tanta coragem!

A voz dele é rouca, tem os olhos vermelhos e inchados.

— 29 de outubro vai ser lembrado como um dia triste na história eslovaca.

Fecha os olhos. Correm-lhe duas lágrimas pelas faces pálidas.

Estou no barracão à espera da Irmã Mara e do Irmão Martin. Têm algo importante

a dizer-me.

O Irmão olha em volta para se certificar de que ninguém está a ouvir-nos.

— Katarína — começa, sentado de esguelha num arado ferrugento — como sabes,

os alemães ocuparam a Eslováquia. A Gestapo está à procura de judeus por todo o

lado, mesmo em hospitais e orfanatos. Recomeçaram a deportá-los para campos fora

do país…

O meu estômago contrai-se. Será que vão mandar-me embora, como fez a

Mariška Plǎková, porque se tornou perigoso albergar-me?

Page 239: Katarína - Kathryn Winter

A Irmã Mara toma as minhas mãos trémulas nas suas.

— Não te preocupes, Katarína; certificar-nos-emos de que estás a salvo. Nós os

dois estamos a pensar em formas de te escondermos se cá vier a Gestapo. Contamos-

-te o nosso plano dentro de dias.

Fico no barracão mesmo depois de terem saído.

Adoro-os. Depois da tia Lena e do Pavel, são as pessoas que mais adoro.

Todos dão pulos de alegria. Uma senhora rica convidou todos os órfãos para ir,

este sábado, ver um filme à cidade e comer um gelado.

Eu não dou pulos de alegria. A Irmã Johanna diz que não posso ir à cidade e que

não devo mostrar a cara. “Não deve mostrar a cara” foi o que dissera a mãe da Eva,

quando não quis que me vissem na propriedade deles. Disse à Irmã que me taparia de

tal forma que só se veriam os meus olhos e a ponta do nariz, mas ela retorquiu:

— No sábado finges que estás doente.

Esta manhã, quando as raparigas se vestiam para sair, fingi que me doía a barriga.

Estava tão zangada que sentia mesmo dores, mas acabei por ter um dia maravilhoso.

Passei a tarde a ajudar a Irmã Mara na lavandaria. Passámos a roupa lavada pela

calandra, dobrámo-la, e contámos histórias uma à outra.

Page 240: Katarína - Kathryn Winter

A Irmã Mara tentou animar-me. Disse-me que o filme era sobre produção de pneus

na Província do Norte. Eu não precisava que me animassem. Estava feliz por a ter só

para mim. É nova e bonita e cora com facilidade. Cora muito na presença do Irmão

Martin. Diz que talvez deixe a congregação e constitua família depois da guerra.

Falei-lhe da tia Lena, do tio Teo e da Anka. Disse-lhe que o Pavel não me

interessava muito, mas ela desconfiou. Sorriu e abanou o dedo. Contei-lhe coisas sobre

a nossa casa, sobre a sala de espera cheia de aves domésticas que punham o tio Teo

doido. A Irmã não parava de rir e eu também não. Ri-me tanto que acabei por cair no

cesto de lençóis dobrados. O Irmão veio saber qual era a graça. Não conseguimos

contar-lhe, mas ele riu-se na mesma. Já não nos apetecia trabalhar mais. Às quatro

horas sentámo-nos os três a comer biscoitos e ameixas estufadas.

Quem me dera que os outros saíssem todos os sábados!

Tenho estado a contar os dias que faltam até ao Natal.

— Que presentes recebeste o ano passado? — perguntei à Vlasta.

— As raparigas receberam aventais — disse-me. — Os rapazes receberam abafos

para as orelhas.

Parei de contar os dias que faltavam.

Page 241: Katarína - Kathryn Winter

A Irmã Mara viu-me coçar a cabeça. Sentou-me num banco e aplicou-me outro

tratamento para os piolhos. Desta vez já ninguém presta atenção à turca de nariz

vermelho e turbante amarelo. Tresandando a terebintina, junto-me ao grupo que faz os

trabalhos de casa na mesa comprida. Levantamos as cabeças quando ouvimos vozes

estranhas e passos pesados no corredor. A porta abre-se. Dois alemães de uniforme

entram acompanhados pela Irmã Mara e pelo Irmão Martin. Sinto-me desfalecer. O

Sebesta pisca-me o olho e escreve no seu caderno: GESTAPO.

Um dos alemães deve ser um oficial graduado. Parece saído da capa de uma

revista: tem as botas polidas, luvas de couro preto e um boné de pala com as insígnias

do Reich. A minha mão direita procura o terço no bolso. A outra tira a toalha da cabeça

e chuta-a para debaixo da mesa.

— Levantem-se, meninos.

A voz da Irmã Mara treme e a sua face está mais branca do que a touca. Diz-nos

para nos colocarmos em duas filas, uma frente à outra. O oficial examina

minuciosamente as nossas caras, acena, tira lentamente as luvas. A Betka é a primeira

da minha fila. Eu sou a penúltima.

— Como te chamas?

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Fala eslovaco com uma pronúncia marcada e, às vezes, não entende o que lhe

respondem. O soldado a seu lado traduz para alemão.

Eu chamo-me Katarína Lemanová, repito incessantemente, entre as Ave-Marias,

uma órfã de Uhovce, mas o que ouço é a Irmã Johanna a dizer “A verdade não se

esconde debaixo de um nome falso. Tudo a revela – a maneira dela falar, os modos, as

expressões…”

— Onde nasceste?

O oficial está a dirigir-se para o lugar onde me encontro. O Irmão Martin segue-o

com uma pasta cheia de documentos, que contém as nossas certidões de nascimento.

O oficial olha de soslaio para o órfão que está a interrogar, depois para a certidão de

nascimento. Vê cada documento a contraluz, para se certificar de que não é falso. Em

breve verá que o meu é.

— Qual é a tua religião? Porque estás aqui?

Faltam poucas crianças para chegar à minha vez. Sou protestante, dir-lhe-ei. Estou

aqui porque os meus pais morreram. Que mais perguntará? Responderei

acertadamente? “Deves extrair disto uma lição, Katarína; uma mentira conduz a outra

até que tropeçamos, e então que Deus te valha.” Mãe Santíssima, doce Jesus, meu

santo padroeiro, guiai-me…

Page 243: Katarína - Kathryn Winter

— Que estás tu a fazer aqui, eh? Onde está o teu pai, cigano?

O oficial está a interrogar o Jožko. O Irmão tenta responder por ele, mas o oficial

manda-o calar com um gesto das luvas pretas.

— Ora diz lá. Onde está ele?

O Jožko desata a chorar. Jura que o pai não é cigano, que morreu, e que os pais

morreram antes de ele nascer.

A Irmã Mara fica vermelha. Alguns dos rapazes mais velhos riem-se à socapa.

— Com que então uma cegonha largou-te do céu? Mas assim sei que não és

cigano. Eles mentem melhor.

É melhor eu não mentir. Tropeço e meto os Irmãos em apuros. Vou dizer-lhe que

sou católica, ou melhor, que nasci judia, mas que a Anka me salvou. Jesus quer que eu

O ajude a salvar estes órfãos e por isso estou aqui. Não se zangue com os Irmãos. Eles

tinham de me receber. Era o plano de Deus…

— O que é isto? Que cheiro pestilento é este?

O oficial, prestes a interrogar a rapariga antes de mim, começa a abanar o nariz

com as luvas.

— O cheiro mau — traduz o soldado. — O oficial quer saber de onde vem.

A Irmã Mara adianta-se.

Page 244: Katarína - Kathryn Winter

— É esta criança … uma órfã abandonada que nos trouxeram da aldeia…— diz,

apontando para mim.

— Terebintina — interrompe o Irmão Martin. — Ela tem piolhos e estamos a

desinfetá-la.

— Deve ser o unguento — continua a Irmã Mara. — A tinha dela é muito difícil de

tratar.

— Rua com ela — grita o oficial, antes mesmo que o soldado acabe de traduzir. —

Fora!

— Levem a criança daqui para fora! — ordena o soldado.

A Irmã Mara apressa-se a obedecer. Agarra-me pelo pulso e leva-me embora. No

fim do corredor, cai de joelhos.

— Obrigada, meu Deus — murmura, abraçando-me.

Tem as faces molhadas e os ombros tremem-lhe. Aperta as minhas mãos e põe-se

de pé abruptamente.

— Foge para o barracão, Katarína, e fica lá até eu te mandar chamar.

— Sim, Irmã.

— E, Katinka — chama-me Katinka, como a tia Lena — reza.

Page 245: Katarína - Kathryn Winter

Libertada

Capítulo 17

Neste momento há bombardeiros a sobrevoar-nos. Parecem maiores do que os que

costumamos ver. O ruído que fazem também é diferente. O Irmão Martin acha que são

americanos.

Um dos bombardeiros voa mais baixo, num trajeto diferente dos outros. De

repente, vemos fogo a sair dele e cai um objeto escuro por entre o fogo. O objeto

transforma-se num enorme guarda-chuva branco e flutua no céu.

Em breve ouvimos jipes alemães a passarem pelo orfanato na direção do

paraquedas caído. Há soldados com cães pela trela a seguir o rasto. Olho o homem

minúsculo que balouça no céu e penso no quão assustado e só deve sentir-se.

— Eh, piloto! — grito. — Estou feliz por estares vivo. Rezo por ti.

Page 246: Katarína - Kathryn Winter

— Cala-te — sussurra-me o Irmão Martin. — Ele não te ouve, mas os que andam na

estrada ouvem.

Aperta o meu ombro e murmura:

— Também estou a rezar por ele. Que Deus esteja com ele!

Ouvi a Irmã Mara e o Irmão Martin a falar. Milhares de guerrilheiros eslovacos e

russos morreram na insurreição.

Querido Deus, toma conta do Pavel. Está sempre um frio de gelar nas montanhas e

este é o fevereiro mais frio dos últimos anos. As orelhas dele já devem estar vermelhas

e congeladas. Se estivesse com ele, havia de as esfregar até aquecerem, beijaria os

flocos de neve nas suas pálpebras até os derreter, e far-lhe-ia chá com canela e brandy.

O Pavel está vivo; eu sei que está.

Desde que a Gestapo veio ao orfanato procurar ciganos e judeus, tenho estado a

pensar no plano de Deus. Será que ele quer mesmo que eu salve os órfãos

protestantes?

O que teria acontecido se eu não tivesse piolhos e não cheirasse a terebintina? Ou

se a resposta do Jožko não tivesse sido tão engraçada? Que teriam feito aos Irmãos por

nos esconderem? Eu adoro a Irmã Mara e o Irmão Martin. São o exemplo de pessoas

Page 247: Katarína - Kathryn Winter

boas e corajosas que a tia Lena admirava. Será que Deus não os receberia no céu por

serem protestantes? Ou que não receberia a tia Lena por ser judia?

Tenho estado a pensar no rosário que desfio sobre a mesa enquanto rezo orações

protestantes; nas pagelas que escondo no colchão; nas histórias de santos que conto às

raparigas depois de as luzes se apagarem. Estou a enganar o Irmão Martin e a Irmã

Mara enquanto eles correm um risco enorme para me salvar. Será que Deus quereria

isso?

O rabino tinha dito à tia Lena que, quaisquer que fossem os nossos atos ou

crenças, éramos judias e nunca ninguém ia deixar-nos esquecê-lo. Nunca compreendi o

que fazia de mim judia. Era como ter uma deformidade horrível que só os outros viam.

Uns dias antes do Natal, a Irmã Mara pediu-me para ir à lavandaria. Ela e o Irmão

estavam lá e acolheram-me a sorrir. Na tábua de passar a ferro havia várias velas, dois

ovos, um pote de mel e um prato com nozes e rebuçados.

— É o Hanukkah — disse a Irmã Mara. — O teu feriado, Katarína. Gostaríamos que

nos falasses sobre ele e de o celebrar contigo.

— Sabemos que os judeus acendem velas — disse o Irmão — mas precisamos de

saber quantas e de que mais necessitamos — acrescentou.

Page 248: Katarína - Kathryn Winter

A Irmã passou-me os fósforos.

— Acende as velas, Katarína. Queríamos ouvir-te dizer uma prece em hebraico.

Não consegui falar. Em língua alguma. O meu queixo começou a tremer, o quarto

começou a andar à roda e caí num monte de toalhas a soluçar. Só mais tarde

compreendi porquê.

Os únicos feriados religiosos que alguma vez celebrara, ou quisera celebrar, eram

cristãos. Tudo o que era judeu era feio, vergonhoso, como a grande estrela amarela

que tínhamos de usar. Quando os Irmãos me fizeram aquele pedido, a surpresa foi tão

grande que os meus joelhos tremeram. Daí as lágrimas.

Pensaram que eu poderia ensiná-los a celebrar o feriado, mas eu sei tanto a esse

respeito como eles: não sei quantas velas se acendem e nem sequer sei uma palavra

de hebraico. Chorei por ter vergonha de não ser suficientemente judia para saber.

Também eram lágrimas de alegria. Os Irmãos gostavam tanto de mim como eu

deles, para se terem dado a todo aquele trabalho. Queria, acima de tudo, devolver-lhes

aqueles sorrisos felizes e tudo o que conseguia era chorar com a cara enfiada num

monte de toalhas. Chorei por não conseguir parar de chorar.

Nessa noite, a Irmã Mara também limpou algumas lágrimas da sua própria face.

Deve ter pensado nas saudades que eu tivera de casa e da tia Lena.

Page 249: Katarína - Kathryn Winter

As grandes estrelas amarelas eram um símbolo de vergonha que todos os judeus

deveriam usar. Os três casais mais velhos da minha aldeia usavam-nas. Os meus tios

também. Eu recusei usar uma e quase consegui levar a minha avante.

Duas semanas antes de ir ficar com os Plăkos, os dois polícias da aldeia – um dos

quais era o pai da Božena – o Škvorka – veio falar com a minha tia sobre a necessidade

de eu usar a estrela de David. Via quão difícil era para ela dizer-me o que tinha de me

dizer.

— Katinka, tens de usar a Estrela de David. Há muito que devias usá-la, mas o

Škvorka tem fingido que não repara. Diz que te tem poupado até agora por seres a

única criança na aldeia. Mas agora já não pode fingir mais. Tem de responder perante

os superiores dele na Guarda Hlinka.

Em cima da mesa da cozinha estava uma estrela. Não uma estrela pequena e

bonita, debruada a azul, como aquela que os judeus eram obrigados a usar quando a

tia Lena e eu deixámos Bratislava. Esta estrela amarela era grande e feia.

— Não vou usá-la — gritei. — Não sou judia. Não quero ser judia.

Nessa noite, a Anka coseu uma estrela no meu casaco.

Page 250: Katarína - Kathryn Winter

Mais tarde, fui ter com ela para me ensinar mais coisas sobre o catolicismo. Falou-

me da Anunciação, um dos cinco Mistérios Gozosos do terço.

Na manhã seguinte levei os livros da escola bem apertados contra a estrela. A

cada passo que dava, sentia-a aumentar de tamanho, como se as suas seis pontas se

tivessem transformado em tentáculos de polvo por debaixo dos meus livros. Acabei por

a arrancar e calcar com o salto do sapato. Depois rezei à minha santa padroeira para

que os polícias não dessem conta.

Já não acredito que Deus me mandou para o orfanato para salvar os órfãos

protestantes. Deve ter-me mandado para aqui para me salvar dos alemães. Quando

disse ao Irmão Martin que tinha querido aderir à Juventude Hlinka, ele tinha comentado:

— Pobre pequena, devem ter-te lavado bem o cérebro.

Se me tinham lavado o cérebro em relação à Guarda Hlinka, também o tinham

feito em relação à minha condição de judia. Talvez eu não fosse a coisa horrível que

quiseram fazer-me pensar que era. A tia Lena disse que, depois da guerra, ia ensinar-

me a nossa religião. Vou fazê-la cumprir a promessa. Acender velas, comer rebuçados,

mel e nozes é muito tentador, e deve haver outros feriados igualmente bons. Tenho de

conhecer o que é que os outros sabem que eu sou.

Page 251: Katarína - Kathryn Winter

Já não ensino orações católicas às raparigas. Rezo a Deus, a Jesus, à Virgem Maria,

e à minha santa padroeira, mas o terço e as pagelas estão enterrados fora do barracão,

sob uma cruz que marquei na parede.

O andar de cima está fechado. Os órfãos estão a viver com os idosos no rés-do-

chão. Quando ouvimos as sirenes, fugimos todos para a cave.

Temos de dormir dois a dois. Um velho e uma criança em cada cama. Eu durmo

com a Helen. Cheira bem, mas não para de tremer. É a doença dela. Faz tremer a

própria cama e tenho dificuldade em adormecer. Quando finalmente adormeço, acordo

com o riso histérico da Ratenica.

As duas Irmãs não têm tempo para as crianças. Tomam conta dos doentes, dos

velhos e, agora, dos soldados feridos. À noite, os soldados tocam melodias tristes nas

harmónicas. Muito diferentes das que tocavam e ao som das quais marchavam no início

da guerra.

Ficar sentado na cave é aborrecido. Especialmente para os mais novos. Pu-los a

desenhar caras nos dedos e a atribuir-lhes nomes. Inventamos histórias e encenamos

peças usando os dedos como personagens. A tia Lena e eu fazíamo-lo quando eu era

pequena. Chamamos ao polegar Exordimus porque é muito forte, importante e

Page 252: Katarína - Kathryn Winter

independente. É o único rapaz e é muito traquina. É o oposto da Princesa Exilobí,

tímida, magra e cor-de-rosa. O dedo do meio, a tia Chalupka, é a chefe da família e olha

por todos. O dedo anelar chama-se Atlonvévev e o indicador Aňaňaňa… não sei

porquê… A tia e eu inventávamos sons estúpidos até chorarmos de riso…

Ontem passámos horas na cave. Pensei que se tinham esquecido de dar o sinal de

que o perigo tinha passado, e esperava ansiosamente poder esgueirar-me para o

orfanato.

Subi dois lanços de escadas até à sala de estudo e consegui ver, através do papel

rasgado na janela, que havia soldados a caminhar pela estrada suja da colina por cima

do cemitério. Nos últimos dois dias, há sempre tropas a passar de um lado para o outro.

Os soldados parecem muito cansados e os cavalos também. O Irmão Martin diz que se

trata de um contingente do exército húngaro em retirada.

De repente, ouvi barulho. Os aviões baixavam repentinamente. Pareciam monstros

com asas a largar ovos pretos das entranhas. O chão tremeu sob os meus pés. As

janelas abanaram. Através de nuvens de fumo negro pude ver cavalos a empinarem-se

e soldados espalhados por todo o lado. Os cavalos feridos agitavam-se no chão. Havia

soldados a cair e a rolar até ao sopé da colina. Fiquei pregada ao chão.

À noite tremi mais do que a Helen. Ela diz que gritei durante o sono.

Page 253: Katarína - Kathryn Winter

Hoje estou de volta ao rés-do-chão e observo o cemitério. Vejo corpos por cima das

campas, dobrados sobre as placas fúnebres. Alguns soldados feridos foram trazidos

para cá; outros rastejaram até aqui. Agora, as orações e as pragas que ouvimos são em

eslovaco e em húngaro.

O Irmão Martin dá-nos aulas sempre que pode, uma ou duas vezes por semana.

Damos de comer aos soldados feridos, refrescamos-lhes as frontes, limpamos,

esfregamos, despejamos baldes sujos. Os soldados eslovacos pedem-nos que lhes

leiamos cartas antigas de casa. O Peter sabe ler mas, como tem os olhos vendados, não

pode. Talvez não volte a ver.

— És tu, Katarína?

— Sou, Peter.

— Lês-me a carta?

Abro-a cuidadosamente – está tão gasta nas dobras. Tenho medo que se desfaça

nas minhas mãos.

“Querido filho, quando voltas…?”

O Peter já sabe a carta de cor. Eu também. Tem quatro páginas, mas geralmente

não leio tudo, porque a Kača chama-me da cozinha:

Page 254: Katarína - Kathryn Winter

— Katarína, onde estás? Há trabalho para fazer. Vem cá imediatamente.

A velha Kača tornou-se um general. Planeia, organiza, ordena. À noite vemos a

Ratenica imitar o que ela faz. Também imita as Irmãs e alguns dos velhos: o tio Hrnec,

o Cupek Zarolho, a Magdaléna Louca.

A Magdaléna pinta a cara e canta canções ciganas. O velho Hmrec toca tambor

numa panela ferrugenta. Só para o Samuel o mundo não mudou. Senta-se à porta,

tenso, como se fosse uma mola pronta a saltar.

Os soldados húngaros foram-se embora. A língua que ouvimos agora, além do

eslovaco, é o alemão.

O Irmão Martin amaldiçoa em voz baixa o comandante alemão por ter colocado a

sua artilharia no nosso pátio. Tornou-nos num alvo, disse.

Quando os primeiros soldados alemães apareceram, pensei que tinha de me

esconder, mas a Irmã Mara disse que não era necessário, que eles estavam demasiado

ocupados a salvar a própria vida, e que nem se preocupariam com a minha. Um dos

soldados, Otto, gosta de me balouçar nos seus joelhos. Diz que lhe lembro a filha

Ingelein. Também é ruiva e sardenta.

Page 255: Katarína - Kathryn Winter

Devia odiá-lo, mas parece tão cansado, nada parecido com o oficial que veio

inspecionar o orfanato. Rezo para que os russos e os americanos matem os nossos

inimigos, mas também para que Otto possa voltar para a filha.

O que eu temia aconteceu. Sem aviso prévio, o Samuel saltou sobre a Magdaléna

Louca e tentou sufocá-la.

Foram precisos cinco homens para o agarrar. O Samuel guinchou, deu pontapés e

gesticulou em todas as direções, como se estivesse diante de um monstro que só ele

via. Os seus olhos verdes e selvagens tinham uma luz tão intensa que tive de fechar os

meus. A Irmã Johanna deu-lhe uma injeção no braço. Em breve estava no chão, a

chupar o dedo. Sinto-me triste. Se ao menos alguém conseguisse convencê-lo de que

não há monstros a atacá-lo... Mas será que passaria a ouvir os sons que não estão na

cabeça dele? Será que passaria a ouvir as sirenes que nos fazem acocorar na cave, à

espera que as bombas expludam?

O Irmão Martin sobe os degraus dois a dois, a assobiar o velho hino checoslovaco.

Corro atrás dele.

— Não, Irmão Martin. Alguém pode ouvi-lo.

Volta-se para mim e sorri.

— Está de bom humor. Porquê?

Page 256: Katarína - Kathryn Winter

Pisca-me o olho e despenteia-me.

— É o primeiro dia de primavera, Katarína. Não sabias?

Os sons da artilharia tornam-se cada dia mais longínquos. Tivemos a primeira

visita civil em semanas: a tia da Vlasta. Todos a rodeámos à procura de notícias. Olhou

em volta para ter a certeza de que nenhum inimigo estava a ouvir e sussurrou:

— Estão a chegar. Podemos vê-los da nossa aldeia. Devem estar a aparecer.

O Irmão abraçou-a e desatou a assobiar o hino novamente. Diante de toda a gente.

— A assobiar o hino checoslovaco. Alguém devia fazer queixa dele.

Estamos na despensa, a arranjar batatas e nabos para o jantar.

— Porque não o denuncias, Šebesta? O teu tio está na Guarda Hlinka.

— O tio dele deve estar cheio de medo. Quando os russos aqui chegarem, ele e os

amigos dele vão ser pendurados numa árvore.

— Cala-te, cigano estúpido. Tu é que estavas cheio de medo quando cá veio a

Gestapo.

O Emil põe-se entre o Šebesta e o Jožko para os afastar. Os outros continuam a

encher os cestos. As batatas parecem bolas de neve. Os meus dedos estão hirtos com

o frio.

Page 257: Katarína - Kathryn Winter

— Porque é que o Irmão Martin quer que os alemães percam a guerra? — pergunta

a Vlasta — Eles estão do nosso lado.

— Os bons eslovacos querem que os russos ganhem — diz-lhe o Jožko. — Os

colaboradores, como o tio do Šebesta, são lacaios dos alemães.

O Šebesta atira uma batata ao Jožko. Este faz-lhe orelhas de burro.

— Estás a dizer que a Guarda Hlinka e o nosso Presidente são maus eslovacos?

Também costumava pensar sobre isso. Chegava a casa, vinda dos três ou quatro

encontros da Guarda a que assisti, inchada de orgulho. A tia Lena aborrecia-se com a

minha tagarelice patrioteira. Por isso é que nunca convidei para casa nenhuma das

minhas amigas. Tinha medo de que os sentimentos da tia pelos heróis eslovacos

transparecessem na cara dela.

— Os russos são eslavos, como nós. Não é natural que os combatamos.

O Emil tem razão. A família tem um grande significado num orfanato, mas não

para o Šebesta.

— Esperem só até cá chegarem aqueles bolcheviques do Anticristo. Arrancam-vos

as unhas só de ouvir falar em Jesus.

A Betka encolhe-se e esconde as mãos nos bolsos.

— E os húngaros? Não são da nossa família.

Page 258: Katarína - Kathryn Winter

— Esses? Mudam de ideias sempre que a maré vira.

— Os húngaros não, cabeça de couve! Os italianos é que são os traidores.

— Não lhe dês ouvidos, só tem palha na cabeça. São os romenos que são vira-

-casacas.

A Betka suspira.

— Tantos exércitos! Talvez até se confundam e se esqueçam de quem estão a

combater.

O Emil levanta-a do chão.

— Deve ser isso mesmo. Três vivas à Betka, a órfã mais sensata do Lar de Amor

Krmanov.

— Vamos levar os nabos à cozinha — lembra-nos a Vlasta — ou a Kača ainda nos

mata.

Tarde demais. Já aí vem a Kača, a brandir o punho e a resmungar.

Há muito que a artilharia alemã deixou o nosso pátio. As ambulâncias já levaram

os feridos. Mesmo assim, continuamos a sussurrar e a andar em bicos de pés pelos

corredores longos e desertos. Algo está para acontecer. Os Irmãos param

Page 259: Katarína - Kathryn Winter

frequentemente de fazer as suas tarefas e põem-se à escuta. Duas ou três vezes por

dia, sobem a colina por cima do cemitério e perscrutam o horizonte.

— Levantem-se todos e venham ver! Chegaram!

Saltamos da cama e seguimos o Irmão Martin até à sala de estudo.

— Já não precisamos disto — diz, arrancando o papel das janelas. — Precisamos de

luz.

Será um cortejo nupcial aquela coluna que vemos na estrada por cima do

cemitério? Homens com chapéus de pele e camisas garridas e cintadas saltitam em

carroças, agitando bandeiras vermelhas. Os cavalos, três por carroça, trotam

rapidamente. O Irmão Martin abre as janelas. Ouvimos canções. Vozes de homens.

Campainhas de arreios. Onde estão as mulheres, pergunto-me, e porque não há

crianças?

— Onde está a noiva, Irmão Martin? Porque não está aqui?

— Está pois. — Ri-se, erguendo-me nos seus braços. — A noiva é a Eslováquia. Foi

libertada. Os nossos irmãos russos chegaram!

O Lar de Amor Krmanov está cheio de soldados russos. Há risos e canções todo o

dia e durante uma parte da noite. Até os coxos estão alegres. Há já dias que a Betka e

Page 260: Katarína - Kathryn Winter

os órfãos mais pequenos quase não pisam o chão. Todos lhes querem pegar ao colo. Às

vezes, um soldado quer beijar a Irmã Mara, mas o Irmão Martin abana o dedo e grita

“Não bebes mais vodka.” Todos querem vodka. Ouvi a cozinheira queixar-se de que

tem de ter tudo o que contenha álcool fechado a sete chaves. Mesmo o polidor de

móveis.

Os soldados passam o tempo todo connosco. Contam-nos histórias e anedotas em

russo. Não compreendemos, mas adoramos ouvi-los. A língua deles parece a dos

pássaros. Ensinam-nos canções, truques mágicos, a tocar balalaicas, mas nada os faz

mais felizes do que dar-nos presentes. Dão-nos rebuçados, moedas, selos, postais,

canetas, lápis, e continuam a revistar os bolsos à procura de mais coisas para nos

darem.

A Vlasta guarda ciosamente um pincel de barba usado. O Jožko gaba-se de uma

chave ferrugenta. O Šebesta já gosta dos russos. Mostra-nos a sua coleção de

granadas. Eu gosto particularmente da minha fotografia do tio Stalin. Quando vou para

a cama, ponho-a na minha almofada. Beijo o seu bigode farfalhudo e aninho-me contra

ele até adormecer.

Chorámos quando os russos partiram. Agora temos soldados romenos, mas não

temos muito em comum com eles. Sentam-se em círculos fechados no chão, a jogar

Page 261: Katarína - Kathryn Winter

cartas, e olham-nos desconfiados quando passamos por eles. Tentamos não nos cruzar

com eles.

Voltamos a viver no andar de cima, no orfanato. Fico contente por ter uma cama

só para mim. O assunto de conversa, depois das luzes se apagarem, são os rapazes. As

raparigas mais velhas não pensam em mais nada. A Vlasta desmaia só de pensar no

Emil. A Marta suspira pelo Šebesta, aquele que molha a cama. Agora já não molha, mas

os rapazes brincam com ele por os seus lençóis estarem húmidos de manhã. Quando

lhe digo que isso não faz sentido, eles riem-se e fazem caretas entre si.

O Jožko é engraçado, mas não gosto de ninguém que ainda use calções. Amo o

Pavel.

Um dia ele construirá para mim um mastro de maio e será o mais alto da aldeia.

Nessa noite nem sequer dormirei. Estarei à escuta dos seus passos no telhado e dos

barulhos na chaminé. Na manhã do dia 1 de maio, as fitas longas e coloridas ondularão

ao vento para que todos vejam. “Vejam aquele mastro. É o da Katarína. O Pavel deve

amá-la muito…”

Page 262: Katarína - Kathryn Winter

Voltámos à rotina: aulas, tarefas, orações. Pergunto constantemente ao Irmão

Martin:

— Já acabou a guerra? Posso ir para casa? Ainda andam atrás dos judeus?

— Não — responde ele — a guerra ainda não acabou, mas não virão à procura de

judeus no orfanato. Esta parte do país já foi libertada.

— A minha aldeia foi libertada?

— Sim, antes de nós.

— Porque não posso ir para casa?

— Tem paciência, filha. Não há transporte de civis, mas havemos de encontrar

uma forma. E, Katarína, já não precisas de mentir aos teus colegas. Podes dizer-lhes

que és judia.

Eis o que seria uma notícia bombástica para os meus colegas convertidos ao

catolicismo. Acho que vou esperar para lhes dizer. À noite, ouço a Marta, na cama

pegada à minha, a rezar à Virgem Maria.

Não se veem autocarros ou carros; só jipes do exército. No entanto, não deixo de

vigiar a estrada. Não há telefone (as linhas estão cortadas), mas continuo à espera de

Page 263: Katarína - Kathryn Winter

que ele toque. Há semanas que não temos correio, mas continuo à espera de uma

carta da tia Lena. E, todas as noites, sonho com a minha casa.

Ontem sonhei que estava num palco e que tinha de dançar ao som de uma música

que todos ouviam menos eu. Lembrei-me do que tinha acontecido quando a minha

escola levou à cena uma peça no centro cultural da aldeia. A nossa professora, a

Menina Sipková, deu-me o papel da Orquídea Dançarina. Eu tinha de escolher a

coreografia e a música. Escolhi a valsa — O Danúbio Azul — da coleção do tio Teo.

O espetáculo da tarde começou bem. Estava à espera de entrar e tentava ver a tia

Lena na plateia quando a Menina Sipková veio dizer-me, em lágrimas, que não poderia

dançar porque o padre se sentara no disco e o partira ao meio. A peça tinha de ser

interrompida.

— Mas porquê? — retorqui. — Ponham outro disco.

— É tarde demais para aprender uma coreografia nova…

Não ouvi o resto. Nunca sigo nenhuma coreografia. Movo-me apenas ao som da

música. Corri para a arrecadação e tirei o primeiro disco que encontrei. Em seguida fui

dançar. Não acho que tenha dançado bem, e a música era enfadonha, mas a Menina

Sipková gostou.

Page 264: Katarína - Kathryn Winter

— Temos sorte. A maior parte dos discos naquele caixote são exercícios de

repetição. Podias ter tido que dançar ao som da tabuada ou de lições de fonética.

Antes do espetáculo da noite, consegui encontrar o disco certo, já que algumas

pessoas da aldeia tinham gramofones.

Dancei bem. O Pavel estava na plateia.

Perguntei-me se, no meu longo vestido branco, pareceria a mulher que, dentro de

dez anos, teria a idade certa para casar com ele.

Estou no quarto da Irmã Mara, para termos uma conversa. Não estava a sorrir

quando me pediu para ir ter com ela e pensei que fosse por causa da banheira que me

esquecera de limpar.

A Irmã manda-me sentar à mesa enquanto anda pelo quarto. Estou quase a

oferecer-me para fazer trabalho extra no sábado, quando ela toma uma cadeira e

começa a falar.

— Katarína, tenho uma coisa importante a dizer-te. Ouve com atenção.

Mexo-me nervosamente na minha cadeira.

— Sabemos como estás ansiosa por ir para casa e tivemos notícias da…

— Tiveram notícias da tia Lena! Ela vem buscar-me?

Page 265: Katarína - Kathryn Winter

— Acalma-te, filha. A tua tia não pode chegar cá. Não vai haver transportes para

civis durante semanas.

Afundo-me na cadeira. De que serve a libertação se não podemos ir para casa ou

ter notícias de casa?

A Irmã Mara enxuga as lágrimas que me caem pela face e que não pude reprimir.

— Pedi-te que viesses para te falar do Sergiu. Sabes, aquele oficial romeno muito

simpático. O Irmão Martin falou-lhe de ti e talvez possas ir para casa num comboio

militar.

— Quando? O que é um comboio militar?

— São dois camiões e um carro que vão visitar os soldados aos hospitais.

Soubemos pelo Sergiu que vão passar perto da tua aldeia e o Irmão pediu-lhe…

— Quando…Quando partem?

A Irmã Mara sorri.

— Logo que consigam os camiões. Talvez depois de amanhã.

As paredes do quarto ondulam, abraço a Irmã e ambas rimos. De repente, fica

séria.

— Katarína, tens de te preparar, com a ajuda de Deus, para uma coisa...

A sua voz é tão baixa que me inclino para a ouvir.

Page 266: Katarína - Kathryn Winter

— É possível que a tua tia não esteja em casa.

— Claro que está! A minha aldeia foi libertada antes de nós. Está em casa com o

tio Teo. O Pavel também lá está e a Anka. Já regressaram todos.

— Rezo por isso, Katarína, mas nem sempre entendemos os desígnios de Deus.

Também tens de rezar e pedir-lhe que te dê força e te guie…

Quero correr para fora do quarto e contar às raparigas. E aos rapazes também. E

aos idosos. Tenho de deixar um bilhete com a minha morada para a Olga. Há tanto

para fazer! Presentes! Tenho de arranjar presentes para levar para casa. Vou pedir às

raparigas que me ajudem a fazer alguns. …E tenho de preparar as minhas coisas:

engraxar os sapatos pretos, engomar o meu melhor vestido. O terço! Tenho de ir

buscar o terço e as pagelas que ainda estão no barracão.

— Estás a ouvir, Katarína? O oficial depois volta cá. Se for da vontade de Deus, ele

traz-te de volta.

— Eu espero lá por eles. Se for preciso, fico com a Menina Sipková, a minha

professora. Mas não vai ser preciso, estão todos em casa à minha espera.

A Irmã suspira e pega-me na mão.

— Está bem, Katarína. Só quero que saibas que o Irmão Martin e eu gostamos

Page 267: Katarína - Kathryn Winter

muito de ti. Terás sempre um lar junto de nós.

Só agora penso que terei de me despedir dela. Dela e do seu quartinho

confortável, para onde me trouxe no meu primeiro dia aqui, quando desmaiei. Acordei

nesta cama com ela a olhar para mim. Depois de amanhã já não verei o seu rosto ou

ouvirei o seu riso. Nem consigo pensar nisso.

— Irmã Mara, eu adoro-a, e hei de vir visitá-la com a tia Lena logo que possa.

A Irmã Mara limpa os olhos.

— Toma o teu macaquinho, Katarína.

Estendo as mãos para Stefie e deixo-as cair.

— Irmã, as crianças não têm brinquedos. Deixo-lhes este como recordação.

— É muito generoso da tua parte, mas com tantos dedos a mexer-lhe não durava

uma semana. Leva-o. Ias sentir a falta dele. Ambos partilharam maus bocados.

Ela tem razão. Senti saudades da Stefie mal a ofereci.

— Vamos tratar das tuas coisas. Precisas de meias de lã, luvas, botas. Nas

montanhas faz frio.

Sinto-me impaciente. Estou ansiosa por ver as montanhas e o meu rio, o Orava.

Deve estar a transbordar por causa do gelo derretido. E os salgueiros ao longo das

margens já estarão a dar flor. Flores pálidas e diáfanas.

Page 268: Katarína - Kathryn Winter

— Posso ir, Irmã?

Ela assente.

Corro para a porta. Subo à sala de estudo, desço ao lar de idosos, vou ao barracão,

à cave, à lavandaria, regresso à sala e repito-me constantemente que não é um sonho,

que é tudo verdade. Vou deixar o orfanato. Vou para casa!

Orava, o meu rio

Capítulo 18

Esta manhã, um ano e dois dias depois da minha entrada no orfanato, deixei o Lar

de Amor Krmanov.

Vamos passar a noite num acampamento militar. Penso que os oficiais estão

zangados com o Sergiu por ele me ter trazido. Ouvi-os gritar em romeno e, pelos

olhares que me lançavam, percebi que era eu o motivo da discussão. Tenho medo de

que o obriguem a levar-me de volta para o orfanato.

Page 269: Katarína - Kathryn Winter

O quarto que me deram para dormir deve ser a enfermaria. Está tudo limpo e

cheira a tintura de iodo. Faz-me lembrar o dormitório das raparigas no orfanato e de

como me senti quando lá entrei, pela primeira vez. Filas de camas brancas alinhavam-

se contra paredes brancas. Não havia quadros, livros ou brinquedos. Era como uma

enfermaria de hospital, pensei na altura. Mas, esta manhã, quando me despedi, senti

que estava a sair de um lugar quente e acolhedor. Pensei na órfã que iria agora ocupar

a minha cama e tive ciúmes. Era a minha cama!

Estou cansada. Andámos muitas horas em estradas aos solavancos. Nos pontos de

controlo, o Sergiu grita, agita papéis e consegue fazer-nos passar antes de todos os

outros grupos. O nosso comboio militar é pequeno: dois camiões e um carro de

comando. Viajo com o tio Sergiu – foi ele que me pediu que lhe chamasse assim – no

carro da frente. Os camiões vêm atrás.

O Sergiu grita, em romeno, com o nosso motorista, o Niku. Comigo fala

meigamente, em eslovaco. Sabe muitas palavras, mas não consegue ordená-las

sintaticamente: “Dormir agora vais?” Para se certificar de que percebo o que diz,

recorre a gestos: mastiga ar, bebe de uma termos imaginária. Quando preciso de ir à

casa de banho, puxo-lhe pela manga. Ele faz sinal ao motorista e este para nos

Page 270: Katarína - Kathryn Winter

arbustos mais próximos. Às vezes, demoramos até encontrar alguns. Só há campos

desertos e planos à nossa volta. É tudo tão monótono que hoje quase adormecia.

Aposto que as raparigas no orfanato também estão cheias de sono. Ontem à noite,

ficámos acordadas até tarde a fazer planos. A Vlasta, a Betka e a Marta vão vir passar o

Natal connosco todos os anos. A Olga também virá, se puder. As dezassete raparigas

virão todas, com a Irmã Mara, passar as férias, já a partir do próximo verão. Como

vamos arranjar espaço para todas elas ao mesmo tempo? A tia Lena vai conseguir, vai

querer conseguir. E o tio Teo? Naquela excitação toda, até me esqueci dele. O tio não

vai gostar da ideia.

Vem aí alguém. É o Sergiu, com um cobertor debaixo do braço.

— Toma. Abre cobertor.

Dentro do cobertor está um embrulho feito com papel de jornal.

— Penso que muito dele gostar vais.

Quando vejo o que é, abraço-o.

— Gosto muito, tio Sergiu. Obrigada!

É chocolate. Durante dois anos não o cheirei, nem o vi, nem o provei. A última vez

que comi chocolate foi o Pavel que mo deu. Deixou-o debaixo da minha almofada.

Page 271: Katarína - Kathryn Winter

Estamos a meio caminho de casa. O Sergiu mostrou-me o trajeto no mapa. A

distância que cobrimos em dois dias, medida pelos meus dedos, é igual à que falta

cobrir. Só faltam dois dias para chegar a casa!

Estamos numa estalagem que tinha uma tabuleta a dizer “COMPLETA”. Mas o

Sergiu não prestou atenção à tabuleta. Depois de alguns embrulhos terem sido

passados por debaixo da mesa, e de muita conversa em voz baixa, conseguimos um

quarto ótimo com camas fofas. Jantámos ganso assado, enquanto aos outros hóspedes

eram servidas batatas cozidas com couve. Puxei o meu prato para mim, para afastar

dele os olhares cobiçosos.

O Sergiu nunca está cansado. Às vezes, desaparece nas cidades e depois regressa

com mimos – aguardente e cigarros para os homens, doces para mim. Nunca diz o que

arranja para ele, mas vejo que hoje tem um relógio novo.

Não gosto de ficar sozinha com o motorista, o Niku. Fica especado a olhar para

mim. Ontem beliscou-me a cara. Hoje, a perna. Tem dedos gordos, pegajosos e

peludos. Não digo ao Sergiu. Pode achar que foi má ideia trazer-me. Os outros quatro

soldados são reservados. Quando paramos para comer ou descansar, o Niku vai ter

com eles. Falam baixo mas riem alto. Aposto que contam anedotas sujas.

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Ao meio-dia parámos para comer na berma da estrada. O Sergiu mostrou-me uma

fotografia da filha, Klara. Tem cinco anos, cabelo escuro, encaracolado, e olhos negros

e vivos como o pai.

— É bonita — digo. — Deve ter muitas saudades dela.

Acenou que sim. Depois perguntou-me se eu era feliz no orfanato e se as Irmãs

eram boas para mim. Disse-lhe que a Irmã Mara e as raparigas viriam todas passar o

verão a nossa casa.

— Surpresa grande família tua, não? — disse ele.

Pensei nas raparigas, alinhadas para o almoço de terça e no que iriam comer:

guisado. Costumava odiar as terças por causa disso. Hoje estou a comer uma salsicha

saborosa e na próxima terça já estarei a saborear sonhos de alperce com sementes de

papoila. Vou pedir à tia Lena que os faça todos os dias, para sempre.

Ontem, para jantar, vesti o vestido bonito que a Irmã Mara me deu. Disse-lhe que

tinha muitos em casa, mas ela lembrou-me que já não me serviriam.

O Pavel já deve ter regressado das montanhas. Será que vai notar o quanto cresci?

Será que, quando achar que ninguém está a ver, me vai olhar da maneira que olhava

para a Anka?

Pavel, só faltam dois dias para te ver!

Page 273: Katarína - Kathryn Winter

Não vou ver o Pavel dentro de dois dias. Avançamos como tartarugas.

A paisagem já não é plana – há montanhas, florestas, castelos em encostas

escarpadas, rios tumultuosos. O meu coração bate mais depressa e só me apetece

gritar “Mais depressa!” Mais um túnel bombardeado. Mais uma ponte bombardeada.

Mais esperas. Mais caminhadas.

O comboio militar dividiu-se. O Niku levou-nos, ao Sergiu e a mim, até ao rio e

voltou para trás. Boa viagem! Algumas horas antes, quando o Sergiu nos tinha deixado

sozinhos, o cretino beliscou-me o traseiro. Quando o Sergiu voltou, trazia dois relógios.

O que resta da ponte à nossa frente parece-se com um monstro com a barriga

aberta e com as entranhas saídas a pairar sobre a água. Temos de atravessar numa

jangada, poucos de cada vez. Há muita gente à espera de atravessar: soldados russos e

eslovacos, operários, homens de fato domingueiro e pasta, camponeses com trajes

coloridos e animais. Além das galinhas, dos gansos e dos patos a espreitar das trouxas,

vejo um vitelo, um potro, três cabras e dois porcos.

O Sergiu nem parece o mesmo. O Sergiu de antigamente já estaria do outro lado

do rio. Talvez não se atreva a gritar nem a negociar por causa dos russos. Reparei que

tirou os dois relógios.

— Bonita — diz ele, olhando para as montanhas de cumes nevados. — Como casa.

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Como Roménia.

Quando viu que eu apenas cheirava o chocolate que me tinha dado, perguntou:

— Tu não comer? Não gostar?

Disse-lhe que o estava a guardar para a tia Lena, para o bolo que ela me vai fazer

para o meu décimo primeiro aniversário.

De cada vez que a jangada regressa, toda a gente quer entrar. Mas o Sergiu não se

mexe. Deve ter saudades de casa e da família.

Ontem, depois de atravessarmos o rio, o Sergiu alugou os serviços de Matej, um

pastor, para nos levar por atalhos nas montanhas. Estávamos a subir um caminho

escarpado quando ouvimos as sirenes nas cidades em baixo. Perguntámo-nos o que

teria acontecido. Quando escureceu, o Matej levou-nos para a sua cabana, para passar

a noite. Dormimos no chão, apenas com peles de carneiro a cobrir-nos. Hoje dói-me o

corpo todo. Está escuro. A única luz provém de uma abertura no teto. Um círculo azul.

Já deve ser tarde mas não há sinais do Matej ou do Sergiu. Como iremos para casa?

Sempre a pé? Quando lá chegarmos, este vestido já não me servirá.

Há uma caneca de leite, pão escuro e queijo fumado no chão. Deve ser o meu

pequeno-almoço. Igual ao jantar de ontem. Antes de conhecer o Pavel, queria casar

Page 275: Katarína - Kathryn Winter

com um pastor. Queria tocar música em fujaras, flautas que nós mesmos

entalharíamos, brincar às escondidas nos prados, acampar junto de fogueiras sob as

estrelas, recitar poemas de amor um ao outro. Mas nunca imaginei dormir no chão ou

comer a mesma coisa duas vezes seguidas. Ou que o meu pastor fosse como o Matej:

alto, curvado, com dentes salientes e cabelo pegajoso. Ou que cheirasse como ele.

Esqueçamos a poesia. O Matej mal fala. Grunhe.

Onde está o Sergiu? O que o detém? De hoje a uma semana são os meus anos.

Não chegaremos a casa a tempo! Se ele não vier enquanto conto até vinte, desato a

correr e só paro diante do portão do jardim da nossa casa.

Antes de começar a contar os minutos, olho lá para fora. O Sergiu vem a subir a

encosta. Caminha como se tivesse molas nos sapatos. Quando me vê, grita:

— A Alemanha render-se! Por isso sirenes. A guerra na Europa acabar!

Corro para os seus braços abertos.

O Sergiu deixou-me numa quinta por dois dias enquanto visita soldados romenos

num hospital. Quando eu ia começar a chorar, ele lembrou-me que essa era a razão da

sua viagem.

Page 276: Katarína - Kathryn Winter

A quinta pertence a Ján Hulák e à mulher. Vivem com eles a mãe de Ján e os seus

cinco irmãos e irmãs. Chamam à sogra Velha Huláčka e à nora Nova Huláčka.

A casa tem um aspeto estranho, diferente das da minha aldeia. Esta é construída

com tijolos, como as das cidades, mas não tem casa de banho. A esposa disse-me para

usar o anexo durante o dia. Durante a noite, não preciso de ir tão longe. Qualquer lugar

ao longo da vedação serve.

Os quartos também têm um aspeto diferente. Não há crucifixos nem figuras de

santos, nem nichos. Há caras de homens com bigode e barba e letreiros a dizer

TRABALHADORES DE TODO O MUNDO, UNI-VOS! A RELIGIÃO É O Ó – (qualquer coisa)

DO POVO! E há outro letreiro a dizer para as pessoas se libertarem das cadeias.

Quando hoje de manhã o Sergiu deixou a quinta, e eu achava que todos tinham

saído, pus-me a vaguear. Quando abri a porta de um dos barracões, alguém gritou. Foi

a Velha Huláčka, que estava a rezar de joelhos, diante de uma imagem da Virgem, com

um terço na mão. Ficou feliz por ver que era apenas eu. Disse-me que os filhos eram

católicos devotos e que agora são comunistas. Não a deixam ir à igreja ou rezar.

— Faço-o às escondidas.

Do outro lado da imagem da Virgem está a fotografia de um homem de barba.

— Karl Marx — diz ela.

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Deve ser alguém da família mas não se parece com eles. Deve ser um tio da

América. Disse-lhe que no orfanato também rezava às escondidas. Só nunca pensei em

pôr a fotografia do Martinho Lutero do outro lado da imagem da Virgem!

Ao jantar, os jovens falaram do que faziam. O pai, que sorvia a sopa, virou-se para

mim. Queria saber coisas da minha família, que tipo de trabalho fazia o meu tio.

Quando lhe disse o que fazia o tio Teo, franziu o sobrolho. Quando mencionei a Anka,

quis saber se era minha irmã. Quando lhe disse que era a nossa criada, deu um murro

na mesa, tão forte que as tigelas saltaram.

— Não é vossa criada, não! Vais ter de varrer o chão, fidalga, e a tua tia vai ter de

fazer o pão dela!

A minha tia faz sempre o pão, mas tive medo de lho dizer.

Nessa noite, a Velha Huláčka veio ao quarto que partilho com o Sergiu. Disse-me

que o Ján me queria fora de casa.

— Não posso ir embora sem o tio Sergiu. Será que é por eu ser judia que tenho de

ir embora?

— Não, minha pomba. É por causa de a Anka ser tua criada. Ele acha que tu és

uma capitalista.

Page 278: Katarína - Kathryn Winter

Uma quê?

— Não te preocupes com ele. Eu trato bem de ti até ele vir.

Despacha-te, Sergiu. Despacha-te a voltar.

O Sergiu regressou passados dois dias. Quando lhe contei que o Ján Hulák nos

queria fora de casa porque achava que eu era uma capitalista, riu-se tanto que teve de

se apoiar numa cadeira para não cair.

Jantámos bem: carne de faisão com sonhos de batata e couve vermelha. O

lavrador não parava de olhar para o relógio que o Sergiu lhe dera e de encher o seu

copo de cerveja. Sorria para mim e ofereceu-se para nos alojar indefinidamente. Fiquei

feliz por ouvir o Sergiu responder:

— Obrigado, mas dever sair amanhã de manhã.

O Ján convidou o Sergiu para jogar cartas com ele e com os irmãos depois do

jantar. Disse que de manhã nos levaria à cidade mais próxima.

Acordo quando o Sergiu vem ao meu quarto.

— Tio Sergiu, já ouviste falar do Karl Marx? É alguém famoso?

— Sim. Muito famoso.

— Porquê? O que fez?

Page 279: Katarína - Kathryn Winter

O Sergiu puxa uma cadeira para junto da minha cama.

— Ele não faz nada. Pensa. Muito. Morto já muitos anos.

— É um herói eslovaco?

— Não. Nasceu na Alemanha. Ele e o Engels inventaram o comunismo. Diziam

“Fora capitalistas! Trabalhadores fora com ricos! Todos ter meios produção…”

Não ouço mais nada porque adormeço.

— Sergiu, olha as cegonhas na chaminé!

Ainda bem que voltámos a viajar. Esta manhã, o Hulák levou-nos à cidade mais

próxima. As crianças têm bicicletas novas e brilhantes, e chamam umas pelas outras.

Os pássaros conversam nos ramos dos castanheiros. As casas parecem pintadas de

fresco e têm bonitos jardins à frente. Cortinas de renda branca realçam canteiros de

gerânios laranja, rosa e púrpura.

Quando viramos a esquina, vemos uma rua completamente diferente. Tem janelas

partidas e portas entaipadas, com estrelas de David pintadas. Não se vê nem se ouve

ninguém. Apenas alguns gatos magricelas a procurar comida nos latões de lixo

entornados. Os letreiros das lojas têm caracteres hebraicos.

— Tio Sergiu, devem ter vivido aqui judeus.

Page 280: Katarína - Kathryn Winter

Agarra-me pelo casaco e começa a andar tão depressa que tenho de correr para o

acompanhar.

— Porque não voltaram? A cidade foi libertada, não foi?

— Não estão com tanta pressa como tu.

— Ainda estarão nos campos de trabalho?

Encolhe os ombros.

— Durante quanto tempo mais lá vão ficar? Se a guerra acabou, porque não

podem vir para casa?

— Não sei! — grita-me. — Cala-te, pões-me maluco.

Voltámos à outra rua, a das casas pintadas, mas mesmo nela continuo a ver as

casas destruídas. O que terá acontecido às pessoas que lá moravam? “Deportados para

a Polónia”. “Num campo de trabalho na Eslováquia”. “Fuzilados”. “A apodrecer numa

cadeia”. São vozes de Klietky, vozes de aldeãos a falar daquele “casal apanhado há

dois meses”. Começo a correr, sem ver nada por causa das lágrimas. Vou contra uma

parede.

— Porque não deixam os judeus em paz? Porquê? O que fizemos nós?

O Sergiu aperta-me o ombro e só tira a mão quando paro de chorar.

À noite encontro uma nota na minha almofada. Diz “DESCULPA GRITAR CONTIGO.”

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Temos esperado por barcos, caminhado por montanhas, ficado em estalagens, e

montado em tudo o que o Sergiu consegue arranjar. Agora é uma carroça puxada por

bois. Não há nada mais lento. Preferia andar. Sinto-me tão impaciente que o Sergiu tem

de me impedir de saltar.

Outro rio. Outra ponte destruída. O camponês vira a carroça ao contrário e põe os

nossos sacos no chão.

— Esperem pelo barco. Vem algumas vezes ao dia — diz-nos.

Não há mais ninguém à espera. O Sergiu senta-se num tronco e estuda o mapa.

— Este rio chama-se Orava — diz.

— Disseste Orava, tio Sergiu? — pergunto. — Orava, o meu rio! Estou em casa! —

grito, pondo-lhe os braços à volta do pescoço.

Mergulho as mãos na água fria. Estas ondinhas que passam pelos meus dedos

atravessavam a minha aldeia. A aldeia da Eva também. Ela pode ter visto este mesmo

ramo a flutuar. Talvez a Božena, a Karla, e a Terka tenham tentado apanhá-lo. Estão

sempre à procura de paus para enxotar os gansos.

— Tio, vê como aquele ramo se desloca depressa! Quem me dera que pudéssemos

ficar pequenos, como nos contos de fadas, para podermos viajar nele.

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— Rio vai contrário. Caminho nosso bom. Chegar lá.

— Quando, tio Sergiu? Quando?

— Breve. Nós perto.

Mostra-me o mapa. A distância entre o sítio onde estamos e a minha casa é da

largura do polegar do Sergiu.

— Que montanha é aquela? Vem no mapa?

Quando me responde, fico tonta.

— A minha aldeia fica no vale a seguir a essa montanha. Vemo-la da janela da

cozinha. Talvez a tia Lena esteja agora a olhar para ela.

O Sergiu pega numa pedra e atira-a ao rio. Procuro um seixo para o fazer saltar na

água. Faço-o saltar quatro vezes antes de se afundar. Vou desafiar o Pavel para um

concurso de pedras saltitonas.

Está a chover. Estamos numa estalagem e conseguimos dois quartos pelo preço de

um. Quando o Sergiu veio perguntar-me se queria tomar o pequeno-almoço, disse-lhe

que tinha dores de estômago. Não era verdade. Fiquei zangada com ele porque, ontem

à noite, disse que não viajaríamos com chuva. Que estúpido!

Page 283: Katarína - Kathryn Winter

É estranho. É domingo e não ouço sinos de igreja a tocar. A Anka deve estar na

igreja e o Pavel a dormir. Aos domingos nunca se levanta antes do meio-dia. E a tia

Lena…se ela soubesse que chego dentro de dois dias e que dentro de três festejaremos

o meu aniversário… Se não fosse esta estúpida chuva, já estaria em casa amanhã. A

distância no mapa é igual à largura do meu dedo mínimo.

Oxalá não chova muito este verão. Tenho de mostrar o Charco das Bruxas à Irmã

Mara e às raparigas, levá-las a apanhar amoras, andar com elas de jangada, ir ao

castelo velho.

Pobre Betka, pobre Vlasta. Nunca saem para se divertir, só para trabalhar no pátio

ou ajudar nas compras. A esta hora devem estar a cantar cânticos com os velhos…. A

Kača deve estar a gritar, o velho Hrnec a coaxar como uma rã, a Magadaléna doida a

desafinar….Sempre que penso nisso, rio-me mas, agora, estou a chorar. Será por causa

da chuva? Ou do sonho que tive a noite passada?

No sonho aproximava-me e afastava-me cada vez mais de casa. A tia Lena estava

à janela, mas, de repente, a cara dela era a da Irmã Johanna. O que estava ela a fazer

na nossa casa? E porque tinha a casa uma grade com pontas de ferro? A nossa casa

tem um portão verde com lilases à volta!

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Só de pensar nesse sonho fico com dores de estômago. Afinal, não menti ao

Sergiu.

— Aqui descansar.

— Aqui? Podemos descansar em casa. Podemos vê-la daquela colina.

— Ficar aqui esta noite. Dormir aqui.

— Tio Sergiu, olha para o mapa. Vês como estamos perto?

— Não chegar assim. Cansados, sujos. Hoje chega.

— Ouve, tio. Sei exatamente onde estamos. Aqui é onde os meus tios estavam

escondidos, o celeiro. Estamos a uma hora de casa.

— Amanhã de manhã melhor.

— Sergiu…

— Cala-te agora. Ficar à noite aqui.

Chorei, implorei, chamei-lhe nomes. Arrastou-me até à próxima estalagem. Não

quis jantar com ele. Foi sozinho. Fechou-me a porta à chave porque disse que tinha

medo que eu fosse sozinha para casa!

Ainda bem que as janelas dão para os campos. Assim não me verá sair. E, se vier

Page 285: Katarína - Kathryn Winter

atrás de mim, não me há de encontrar. Não vou pela estrada. Subo a colina, desço do

outro lado, e chego a casa em metade do tempo.

O saco pode ficar – a Anka ou eu vimos buscá-lo depois. Ou o Sergiu leva-o

amanhã. Só levo o chocolate e a Stefie, um em cada bolso do meu casaco. Não a deixo

para trás. Deixo um bilhete ao Sergiu? Não. Quando vir a janela aberta, vai perceber.

Saltei da janela, embora fosse mais alta do que parecia. Não há luar, mas hei de

encontrar o caminho. Quando chegar ao topo da colina, vou ver as imensas luzes

acesas da minha aldeia.

A janela é mais alta do que julgava. Mas posso saltar. Já saltei de lugares mais

altos no celeiro da Karla e no pomar do Tio Dodák. Um, dois, três! Ai, o meu tornozelo!

Não vi aquela estúpida rocha. Não admira. Não há luar. Só algumas estrelas e nuvens

pretas. Mas hei de encontrar o caminho. As luzes desta aldeia iluminam este lado da

colina e o outro estará iluminado pelas luzes da minha aldeia.

Um caminho. Este. Não, aquele. Não interessa. Só tenho de chegar ao cimo da

colina. Tenho de ter cuidado com as pedras, com a bosta das vacas, com as poças de

água suja, com os cardos. Quem me dera que fosse lua cheia, como no dia em que fui

ao Charco das Bruxas. Que medo tive naquela noite! Que pateta fui. Como se só as

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minhas sardas impedissem o Pavel de se apaixonar por mim. Por uma miúda

escanzelada como eu.

O Sergiu não se riu quando lhe contei como a velha Krasokva me enganou. Hoje, a

minha tagarelice entra-lhe por um ouvido e sai-lhe pelo outro.

— Tu não voltar orfanato. Klara uma irmã para tu.

Gostava de ter uma irmã, uma irmãzinha para brincar comigo… Hei de pedir à tia

Lena que me deixe visitá-los no próximo verão… Espero que ele queira que eu vá…

Gritei com ele e chamei-lhe nomes, e agora estou a fugir… Mas eu sei que me vai

perdoar. Amanhã virá festejar connosco o meu aniversário…

Amanhã, para o meu aniversário, a tia e eu traremos braçadas de lilases do jardim.

Vou surpreendê-la com o chocolate e ela vai fazer o meu bolo favorito. O Pavel vai lá

estar. A Anka e o tio Teo também. A Božena vai perceber por que motivo não lhe podia

contar o meu segredo. A Eva também lá estará. A mãe vai deixá-la vir porque a guerra

acabou. Ai! Magoei-me noutra estúpida pedra. E ainda por cima no mesmo pé. Dói-me

tanto que mal posso andar. Não vejo nada. Já não há estrelas no céu. Aquelas nuvens

negras anunciam chuva. Por favor, meu Deus! Que não chova antes de eu chegar a

casa. E que não troveje. Tenho muito medo.

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A colina é mais escarpada do que parecia, e maior, mas estou a chegar. Mais um

bocado e já verei a minha casa! Só de pensar nisso fico toda arrepiada. Ninguém sabe

quão perto estou, quão depressa vou chegar. O que estarão a fazer? Sentados à mesa,

depois do jantar, a conversar?

Não! Hoje é terça. A tia Lena está a fazer massa para cozer pão. O cabelo dela está

coberto com um lenço azul e o da Anka está apanhado numa trança… Estão

debruçadas sobre a bacia azul, a peneirar farinha, a esmagar batatas cozidas… Não

vão ouvir-me logo tocar à porta, mas depois de eu tocar várias vezes, vão-se

entreolhar. A Anka virá à porta …”Quem é esta rapariga? … O que quer? Será a … Não

pode ser. Esta é crescida demais” … Mas quando a Anka se aproximar, os seus olhos

abrir-se-ão de espanto. “Jesus, Maria! É a Katarína. Voltou!”

Só devem faltar oito passos para o topo. Dez no máximo. Seis… cinco… quatro…

três… Finalmente! Consegui! Lá está a minha aldeia. Deve ser ela. Mas não tem luzes

acesas! Não há luzes em todo o vale, exceto as que deixei para trás.

Como pode ser? Vem cá, Stefie. Olha! Será que nos perdemos na escuridão? Será

que subimos a colina errada? Devo ter-me enganado na hora. Deve ser mais tarde do

que julgava. Devem estar todos a dormir na aldeia. Parece-me ver uma luz, por cima da

padaria. Deve ser o Tomáš a cozer o pão.

Page 288: Katarína - Kathryn Winter

Não consigo andar mais. Dói-me o tornozelo. Que fazemos? Rolamos encosta

abaixo? Se o fizéssemos, aterraríamos algures entre o pomar do Dodák e a pastagem

do Radko. Está escuro como breu. Rolaríamos por cima de rochas, cardos, estrume de

vaca…e por cima do touro que o Radko deixa à solta no pasto…

Estás a abanar a cabeça. Não te importam as pedras nem os touros. Queres é

chegar a casa. Mas, sabes, Stefie, há mais uma coisa: não queria dizer-te mas tenho de

o fazer. Lembras-te da cidade por onde passámos, a dos jardins bonitos e das

cegonhas? Lembras-te da rua com as casas vazias, as janelas partidas, as portas

entaipadas, os letreiros em hebraico… Não tapes os ouvidos, escuta-me. As pessoas

que lá viviam não voltaram a casa. Olha para mim! Pode não haver ninguém à nossa

espera em casa… a tia Lena… abraça-me, pequenina… pode não ter voltado…

Estás a tremer. Chega-te para mim, mete-te no meu casaco. Para de chorar. O que

eu quero dizer é que pode ainda não ter chegado ninguém…Podem vir de longe e bem

viste como é difícil chegar cá… Deve ter sido isso que preocupou o Sergiu, por isso não

queria que viéssemos esta noite. Não chores, ele enganou-se. Esquece o que te disse.

Já chegaram, mas é tarde. Já não vejo aquela luz e não saberia em que direção rolar.

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Vamos voltar à aldeia que tinha luzes. O Sergiu ainda não deve ter voltado e

podemos lavar-nos e meter-nos na cama antes de ele voltar. Quem me dera que ele

aqui estivesse. Enrolaria o seu casaco à nossa volta para nos manter quentes e ajudar-

-nos-ia a descer. Quando voltar ao quarto esta noite, vou pedir-lhe que me tire as dores

do tornozelo. Amanhã iremos para casa. Juntos. Quero que ele atravesse o portão do

jardim connosco.

Tens fome. Queres chocolate? Só um bocadinho? Não, Stefie, estou a guardá-lo.

Sabes bem porquê. Tens a cara cheia de nódoas de salsicha, as que te dei às

escondidas dos Plǎkos. Amanhã terás manchas castanhas por teres enfiado a cara na

tijela do bolo de chocolate. Tem paciência. Não terás fome por muito tempo. Aposto

que o Sergiu nos guardou o jantar. Hoje é ele a dar-nos um mimo, amanhã seremos

nós. Comerá do pão da tia Lena, o melhor pão do mundo. Às quartas, sai fresquinho do

forno do Tomáš.

Partiremos cedo. Quando chegarmos, a tia Lena ainda estará em roupão, o mesmo

que vestia na manhã em que parti. Vai ouvir o portão a ranger, olhar para fora e correr

pelos degraus abaixo. Vamos abraçar-nos tanto que o meu nariz vai ficar com comichão

por causa da lã do roupão, tal como aconteceu há já quase dois anos.

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O jardim estará a acordar e cheirará a terra húmida e a lilases.

Depois, o portão irá de novo ranger: é a Anka que vem da padaria com a nossa

forma de pão…

Recordações

Capítulo 19

O gelo pintou bonitas flores brancas na nossa janela e, através das suas folhas de

cristal, posso ver as raparigas da nossa aldeia a levarem cestos para a casa do padeiro.

Vão pela colina acima, silenciosas, na manhã gelada. Os seus narizes estão

vermelhos, como vermelhas são as fitas das suas tranças, quais borboletas gigantes

pousadas.

— Ei, Božena!

A Božena não me ouve. Está a tirar o xaile dos ombros e a enrolá-lo à volta do

cesto. A massa tem de ser mantida quente ou não haverá pão para comer!

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A Karla, com o irmãozito agarrado às saias, não tem lenço nem xaile. A tremer,

agarra o cesto e tenta mantê-lo quente.

Lá vai a Poluska, a criada do médico, com um casaco de peles que herdou da

patroa. O cesto dela está embrulhado num cobertor de lã e coberto com um tecido

rendado.

Ouço o barulho familiar do portão do nosso jardim e vejo a Anka sair para a rua.

Está à espera de uma amiga.

— Vai, Anka, despacha-te! — grito-lhe.

Já consigo cheirar o pão fresco que vamos comer ao jantar. Cresce-me a água na

boca, só de pensar na casca estaladiça e dourada.

— Não deixes o fogo esmorecer — lembra a minha tia à Anka durante o jantar. — É

terça. Temos de preparar a massa para o pão.

Há troncos a crepitar no enorme fogão da cozinha enquanto o meu inimigo, o

relógio, me diz que a hora de deitar se aproxima.

— Tia Lena, posso ficar a pé a ver?

Não responde.

Será que ela sabe que o bolo de noz encolheu porque eu estava sempre a provar a

Page 292: Katarína - Kathryn Winter

massa enquanto a mexia? Na quarta, quando me chamou para limpar a louça, será que

me viu escondida atrás da arrecadação? Estará zangada comigo por surripiar a galinha

que ia ser o nosso jantar de domingo?

O meu quarto é frio à noite. Fica longe da cozinha quente e do seu cheiro a maçãs

verdes e a cravo-da-índia.

— Tia Lena, posso ficar acordada até mais tarde?

A tia Lena ata um lenço azul à cabeça, arregaça as mangas da blusa às pintinhas

e, a sorrir, acena afirmativamente. Sento-me num lugar confortável perto do fogão e

espero que elas comecem.

A Anka não se esquece de atar o cabelo numa trança. Com as mãos limpas, coloca

a bacia azul num banco de madeira. A bacia é velha e o esmalte está lascado nalgumas

partes, que assumem desenhos imaginados por mim: uma cabeça de galo, um cavalo-

-marinho, uma bruxa com um chapéu pontiagudo, um dragão, dois macacos com as

caudas entrelaçadas e, com a ajuda das minhas unhas, o perfil severo do diretor da

nossa escola.

Enquanto a Anka segura uma peneira sobre a bacia, a tia Lena inclina o saco da

farinha. Dentro da bacia cresce, lentamente, uma montanha branca.

— Já chega — diz, quando o cume da farinha ultrapassa a borda da bacia.

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Devolve o saco à Anka, que lhe entrega um outro. Desta vez, é uma montanha

escura que se eleva junto da montanha branca. A escura é sempre mais alta, a não ser

que estejamos a festejar um aniversário ou um feriado.

À medida que a Anka levanta a peneira, a montanha escura segue-a. A minha tia

vira-se para espirrar. Quando olho para cima, parece uma velhota! Tem um lenço

branco e os cabelos dela também estão brancos. Tem sobrancelhas e pestanas

brancas, e um bigode branco orna-lhe o lábio superior. A Anka pisca-me o olho.

Também está coberta de farinha. Bate na armação de madeira da peneira e os bocados

de farinha demasiado grandes para passarem pela rede saltam.

— Basta! — diz a “velhota”, com uma voz familiar.

Esvazia uma panela de batatas cozidas dentro da bacia e amassa-as com os

dedos. Os grumos grossos e desiguais espalham-se pelo sopé das duas montanhas

como se aquele fosse um campo acabado de arar.

— Água, por favor!

A tia Lena cava poços na massa enquanto a Anka deita água de um jarro. Os poços

transbordam. Agora há poças, lagos, e riachos à procura de um caminho por entre os

grumos grossos e irregulares.

— Não te esqueças do adubo! — lembro à minha tia.

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— Do quê?

— Do fermento. E do sal.

Do gelo, penso para mim.

A Anka mete a mão dentro do frasco de vidro e pega nas sementes de alcaravia.

Os seus dedos longos parecem os tentáculos de um monstro em busca da presa. As

sementes, encolhidas a um canto, são agarradas. O monstro não pode sair do jarro

porque engordou com a presa. Enrosca-se e contorce-se, num esforço para sair.

Quando finalmente sai pela abertura estreita, deixa escapar algumas das suas presas.

Passarinhos voar vão,

Mas ainda hoje voltarão,

Se a chuva tiverem afastada,

Dar-vos-ei semente dourada,

Passarinhos, passarinhos, voar vão…

A Anka recita isto de um fôlego e, levantando o braço, abre a palma da mão e atira

as sementes para a bacia. Um bando de pássaros voa até ao teto e deposita-se depois

nas encostas e campos do alguidar azul.

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Com gestos largos e circulares, a tia Lena dissolve a paisagem numa pasta

amarela

e grossa. A pasta agarra-se-lhe aos dedos e trepa-lhe pelo braço em direção à manga

da blusa às bolinhas.

O suor escorre-lhe pelas têmporas e desenha sulcos nas suas faces empoeiradas.

Os movimentos tornam-se mais rápidos e mais fortes. A Anka segura a bacia, enquanto

esta treme no banco oscilante. As formas no esmalte ganham vida. A crista do galo

treme, o cavalo-marinho rodopia, os dois macacos fazem vénias, o chapéu da bruxa

anda para cima e para baixo, o dragão sacode a crina. E o diretor da escola? Quem me

dera vê-lo, mas está do outro lado do alguidar. Nem me atrevo a sair donde estou.

Começam a aparecer bolhas na massa, bolhas que dão estalidos ao rebentar. A tia

Lena não pode parar. Parece tensa. As bolinhas da blusa sobem cada vez mais alto, ao

ritmo da respiração. A mão dela mexe-se tão depressa que já não consigo distingui-la

no meio da massa amarela. A cara da Anka está vermelha. Parece ir largar a bacia e

desatar a chorar.

De repente, acontece: o fermento, uma coisa macia e saltitante, cai. A tia Lena

suspira e a Anka limpa os olhos com a manga e aperta-me o nariz.

Depois de uma tarefa tão árdua merecemos uma recompensa.

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— Podemos comer o bocado que sobrou do bolo de noz, tia?

A tia não olha para mim. Está a olhar para a massa.

Sorri-lhe, debruça-se sobre ela e dá-lhe palmadinhas.

— Tia, o bolo vai ficar seco!

Não me ouve. Manda-me ir buscar um pano limpo.

— O bonito, o bordado.

— O que eu não posso usar — protesto.

Pega no pano e cobre a massa. Pede à Anka que vá buscar o meu cobertor e põe-

-no à volta da bacia.

— Espero que seja suficientemente quente — murmura.

A Anka e eu também falamos por murmúrios e andamos em bicos de pés mas,

mesmo assim, somos postas fora da cozinha. Detesto aquela massa estúpida!

Na manhã seguinte, a Anka e eu mal respiramos quando a tia Lena destapa o

alguidar e levanta o pano.

Será que a massa cresceu? A tia vai ficar de bom ou mau humor para o resto do

dia?

Graças a Deus, as notícias são boas! A massa cresceu tanto que quase

transbordou o alguidar.

Page 297: Katarína - Kathryn Winter

— Tia…

— Sssh.

Leva um dedo aos lábios. Não posso falar ou aquela criatura sensível assusta-se.

Pega-lhe ternamente, coloca-a num tabuleiro, e dá-lhe uma forma oval. Mergulha

uma pena em gema de ovo e pintalga a massa com uma camada brilhante. Um pano

polvilhado de farinha cobre o cesto no qual se aninha gentilmente a massa. O nome da

tia Lena é posto numa plaquinha, que é colocada em cima do pano. A plaquinha é

finalmente coberta pelas dobras do pano.

— Vai, Anka! Diz ao Tomáš que, se queimar o pão, queimo-lhe o bigode!

A Anka leva o cesto embora.

A casa parece vazia. Ainda é cedo; não há pressa para começar as tarefas

domésticas. A tia descansa na mesa da cozinha e bebe uma chávena de café. Uma

sensação se calor invade-me e cresce dentro de mim. Perdoo-lhe por ter dado

palmadinhas e sorrido para a massa, por a ter coberto com o pano bordado e com o

cobertor da minha cama. Abraço-a. Faz-me uma festa no braço e beija-me o nariz.

Page 298: Katarína - Kathryn Winter

— Santa Marta — murmuro — faz com que a massa da tia Lena se transforme no

pão mais bonito da aldeia!

A porta da rua abre-se. Corro para a janela e, através das flores pintadas a gelo,

vejo as raparigas a subir a colina.

Epílogo

Katarína regressou à sua aldeia. Só encontrou a professora, a Menina Sipková,

para lhe dar as boas vindas. A professora disse-lhe que a maior parte dos seus

companheiros de turma e respetivos pais tinham morrido num incêndio ateado pelos

alemães, como retaliação por suspeita de atividades guerrilheiras nas imediações.

Em casa da professora, Katarína esperou um ano pela tia Lena. Continuou à

espera, mesmo depois de saber que ela tinha morrido de febre tifoide em Auschwitz.

Page 299: Katarína - Kathryn Winter

Só onze por cento das crianças judias da Europa que estavam vivas em 1939

sobreviveram à guerra. A criança que inspirou o livro Katarína já é adulta e vive numa

pequena cidade universitária da Califórnia. Escreve histórias e ensina música a

crianças.

O seu mundo, para sempre perdido, continua vivo na sua memória.

Kathryn Winter

Katarína

Porto, 2007