katia cilene da silva santos a antinomia da teoria do ......a antinomia da teoria do conhecimento de...
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA
Katia Cilene da Silva Santos
A antinomia da teoria do conhecimento de
Schopenhauer
(Versatildeo corrigida)
Satildeo Paulo 2017
Katia Cilene da Silva Santos
A antinomia da teoria do conhecimento de
Schopenhauer
(Versatildeo corrigida)
Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do
Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e
Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo para obtenccedilatildeo do
tiacutetulo de Doutora em Filosofia
Orientador Prof Dr Eduardo Brandatildeo
Satildeo Paulo 2017
Autorizo a reproduccedilatildeo e divulgaccedilatildeo total ou parcial deste trabalho por qualquer meio
convencional ou eletrocircnico para fins de estudo e pesquisa desde que citada a fonte
Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo
Serviccedilo de Biblioteca e Documentaccedilatildeo
Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo
Santos Katia Cilene da Silva
S237a A antinomia da teoria do conhecimento de
Schopenhauer Katia Cilene da Silva Santos
orientador Eduardo Brandatildeo - Satildeo Paulo 2017
240 f
Tese (Doutorado)-Faculdade de Filosofia Letras
e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo
Departamento de Filosofia Aacuterea de concentraccedilatildeo
Filosofia
1 Schopenhauer 2 Antinomia da faculdade de
conhecimento 3 Metafiacutesica 4 Teoria do
conhecimento 5 Idealismo I Brandatildeo Eduardo
orient II Tiacutetulo
Folha de Avaliaccedilatildeo
SANTOS Katia Cilene da Silva A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer 2017 Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e
Ciecircncias Humanas Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2017
Aprovado em
Banca Examinadora
Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________
Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________
Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________
Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________
Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________
Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________
Dedico este trabalho agrave minha famiacutelia Luzia Artur Toni Jane Adriano Fernando Nadja Daniel
Luiz Fernando Arthur e Alessandro
Agradecimentos
Agradeccedilo ao meu orientador professor Dr Eduardo Brandatildeo por me
acompanhar desde o mestrado com sua forma especial de orientar Foi muito importante na minha trajetoacuteria ateacute aqui sua liberdade de pensamento e sua
abertura a diferentes horizontes e alternativas As anaacutelises sem preconceitos as correccedilotildees fundamentais as sugestotildees pertinentes e as indicaccedilotildees agudas e certeiras resultaram todas as vezes em um pensamento mais claro e um texto
melhor Agradeccedilo muito especialmente ao professor Dr Newton da Costa pela
generosidade com que me ajudou em vaacuterios momentos da minha pesquisa Sou grata pelas diversas duacutevidas que me sanou pelas indicaccedilotildees bibliograacuteficas e pelas orientaccedilotildees em questotildees de loacutegica Mas sou grata sobretudo por me
receber com hospitalidade pelos conselhos que me ensinaram sabedoria e pela solicitude com que sempre me atendeu
Agradeccedilo tambeacutem agrave professora Dra Macia Luacutecia Cacciola pela leitura criacutetica do texto da minha prova de qualificaccedilatildeo As correccedilotildees e os pontos falhos que me apresentou foram importantes para que eu repensasse os rumos do meu
trabalho e reavaliasse meus caminhos Agradeccedilo ainda ao professor Dr Joseacute Eduardo Baioni pelas relevantes
indicaccedilotildees bibliograacuteficas Por fim agradeccedilo ao CNPq pelo subsiacutedio financeiro de 2015 ateacute o teacutermino
da pesquisa
Nosso ponto de vista objetivo eacute realista e
portanto condicionado na medida em que tomando os seres naturais como dados daiacute
abstrai que a existecircncia objetiva deles pressupotildee um intelecto no qual se encontrem primeiro
como representaccedilatildeo mas o ponto de vista subjetivo e idealista de Kant tambeacutem eacute condicionado na medida em que emerge da
inteligecircncia a qual ela mesma tem a natureza como pressuposto e somente pode surgir como
resultado do desenvolvimento desta ateacute o seres animais
Schopenhauer
RESUMO
SANTOS Katia Cilene da Silva A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer 2017 240 p Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e
Ciecircncias Humanas Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2017
Resumo Este trabalho versa sobre a antinomia da faculdade de conhecimento tambeacutem conhecida como paradoxo de Zeller que Schopenhauer refere no primeiro livro de O mundo como Vontade e representaccedilatildeo Essa questatildeo tem sido bastante discutida na histoacuteria do pensamento schopenhaueriano e
permanece ainda hoje como um problema em aberto Desde os primeiros leitores de Schopenhauer a antinomia da faculdade de conhecimento foi apontada como
um problema de soluccedilatildeo difiacutecil quando natildeo impossiacutevel e explicada de maneiras diversas Algumas vezes apontou-se a heterogeneidade das teorias sobre as
quais o pensamento schopenhaueriano se ergue em outras a antinomia foi atribuiacuteda a erros de interpretaccedilatildeo da filosofia kantiana por vezes remeteram-na a um dualismo em que se chocam materialismo e idealismo ou realismo e
idealismo e haacute ainda outras visotildees Nesta tese propomos uma interpretaccedilatildeo alternativa que toma as dificuldades da filosofia schopenhaueriana como
constitutivas e sem pretender justificaacute-la nem impugnaacute-la busca sua compreensatildeo a partir das questotildees teoacutericas com as quais o filoacutesofo se defrontou Como resultado encontramos que Schopenhauer evidencia a insuficiecircncia tanto
do idealismo quanto do realismo para a explicaccedilatildeo completa e correta do mundo bem como a muacutetua exigecircncia entre ambos A complementaridade entre os
pontos de vista opostos do idealismo e do realismo impotildee que sejam articulados embora sua combinaccedilatildeo origine os diversos problemas presentes na obra schopenhaueriana entre os quais estaacute a antinomia da faculdade de
conhecimento Adicionalmente analisamos outras questotildees e dificuldades que surgiram no pensamento de Schopenhauer algumas mencionadas pelo filoacutesofo
outras natildeo
Palavras-chave Schopenhauer Antinomia da faculdade de conhecimento Metafiacutesica Teoria do conhecimento Idealismo
ABSTRACT
SANTOS Katia Cilene da Silva The antinomy of Schopenhauers theory of knowledge 2017 240 p Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e
Ciecircncias Humanas Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2017
Abstract This work deals with the antinomy of the faculty of knowledge also known as Zellers paradox to which Schopenhauer refers in the first book of The
world as Will and representation This question has been much discussed in the history of Schopenhauers thought and still remains today as an unsolved
problem Since the early readers of Schopenhauer the antinomy of the faculty of knowledge was pointed out as a problem of difficult solution if not impossible and explained in different ways At times the heterogeneity of the theories on
which Schopenhauers thought stands has been pointed out other times the antinomy was attributed to errors in the interpretation of Kantian philosophy for
many times referred to a dualism in which collide materialism and idealism or realism and idealism and there are still other viewpoints In this thesis we propose an alternative interpretation which takes the difficulties of
Schopenhauers philosophy as constitutive and not pretending to justify or contest it we search for an understanding from the theoretical questions with
which the philosopher faced As a result we find that Schopenhauer evidences the inadequacy of both idealism and realism for the complete and correct explanation of the world as well as the mutual demand between them The
complementarity between the opposing viewpoints of idealism and realism demands they to be articulated although their combination gives rise to the
various problems present in Schopenhauers work among which is the antinomy of the faculty of knowledge In addition we analyzed other issues and difficulties that arose in Schopenhauers thought some mentioned by the philosopher
Keywords Schopenhauer Antinomy of the faculty of knowledge Metaphysics
Theory of knowledge Idealism
Lista de abreviaturas
Traduzimos do alematildeo as citaccedilotildees das obras de Schopenhauer Indicamos em notas de rodapeacute
as localizaccedilotildees dos fragmentos transcritos nas ediccedilotildees originais utilizadas e tambeacutem em
traduccedilotildees referenciadas em portuguecircs ou espanhol Traduzimos as citaccedilotildees da obra de Ernst
Cassirer da ediccedilatildeo em espanhol da Fondo de Cultura Econoacutemica Retiramos as citaccedilotildees de
Criacutetica da Razatildeo Pura da ediccedilatildeo portuguesa da Calouste Gulbenkian e indicamos a
paginaccedilatildeo original da Koumlniglich Preuβischen Akademie der Wissenschaften Outros casos
seratildeo informados em notas de rodapeacute
WWV I = Die Welt als Wille und Vorstellung erster Band [Ediccedilatildeo alematilde Die Welt als Wille
und Vorstellung I und II Gesamtausgabe Muumlnchen Deutschen Taschenbuch 2011 (Nach
den Ausgaben letzter Hand herausgegeben von Ludger Luumltkehaus) ediccedilatildeo brasileira O
mundo como vontade e representaccedilatildeo 1ordm tomo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo notas e iacutendices de
Jair Barboza Satildeo Paulo UNESP 2005 (essa ediccedilatildeo seraacute referida como MI)]
KkP = Kritik der kantischen Philosophie [Ediccedilatildeo alematilde Die Welt als Wille und Vorstellung I
und II Gesamtausgabe Muumlnchen Deutschen Taschenbuch 2011 (Nach den Ausgaben letzter
Hand herausgegeben von Ludger Luumltkehaus) ediccedilatildeo brasileira Criacutetica da filosofia kantiana
Traduccedilatildeo de Wolfgang Leo Maar e Maria Luacutecia Mello e Oliveira Cacciola Satildeo Paulo Nova
Cultural 1988 (essa ediccedilatildeo seraacute referida como CFK)]
WWV II = Die Welt als Wille und Vorstellung zweiter Band [Ediccedilatildeo alematilde Die Welt als
Wille und Vorstellung I und II Gesamtausgabe Muumlnchen Deutschen Taschenbuch 2011
(Nach den Ausgaben letzter Hand herausgegeben von Ludger Luumltkehaus) ediccedilatildeo brasileira
O mundo como vontade e representaccedilatildeo 2ordf tomo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo notas e iacutendices de
Jair Barboza Satildeo Paulo UNESP 2015 (essa ediccedilatildeo seraacute referida como MII)]
UumlSF = Uumlber das Sehn und die Farben [Ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke Band III Kleinere
Schriften StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 2012 (Textkritisch bearbeitet und
herausgegeben von Wolfgang Frhr von Loumlhneysen) ediccedilatildeo brasileira Sobre a visatildeo e as
cores um tratado Traduccedilatildeo de Erlon Joseacute Paschoal Nova Alexandria Satildeo Paulo 2003 (essa
ediccedilatildeo seraacute referida como VC)]
UumlV = Uumlber die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde [Ediccedilatildeo alematilde
Saumlmtliche Werke Band III Kleinere Schriften StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 2012
(Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von Wolfgang Frhr von Loumlhneysen) ediccedilatildeo
espanhola De la cuaacutedruple raiacutez del principio de razoacuten suficiente Traduccioacuten y proacutelogo de
Leopoldo-Eulogio Palacios Madrid Gredos 1981 (essa ediccedilatildeo seraacute referida como CR)]
WN = Uumlber den Willen in der Natur [Ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke Band III Kleinere
Schriften StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 2012 (Textkritisch bearbeitet und
herausgegeben von Wolfgang Frhr von Loumlhneysen) ediccedilatildeo espanhola Sobre la voluntad en
la naturaleza 1ordf ed 3ordf reimpr Traduccioacuten de Miguel de Unamuno Proacutelogo y notas de
Santiago Gonzaacutelez Noriega Madrid Alianza 1987 (essa ediccedilatildeo seraacute referida como VN)]
PP I = Parerga und paralipomena I [Ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke Band IV
StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 1986 (Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von
Wolfgang Frhr von Loumlhneysen) As traduccedilotildees dos textos utilizados seratildeo indicadas em notas
de rodapeacute]
PP II = Parerga und paralipomena II [Ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke Baumlnde V1 V2
StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 1986 (Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von
Wolfgang Frhr von Loumlhneysen) As traduccedilotildees dos textos utilizados seratildeo indicadas em notas
de rodapeacute]
KrV= Kritik der reinen Vernunft [Ediccedilatildeo alematilde Kantrsquos Gesammelte Schriften
Herausgegeben von der Koumlniglich Preuβischen Akademie der Wissenschaften 2 Auflage
Band III Berlin Georg Reimer 1904 ediccedilatildeo portuguesa Criacutetica da razatildeo pura 5ordf ed
Traduccedilatildeo de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujatildeo Introduccedilatildeo e notas de
Alexandre Fradique Morujatildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001 (essa ediccedilatildeo seraacute
referida como CRP)]
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo13
Capiacutetulo 1 ndash Introduccedilatildeo agrave antinomia da faculdade de conhecimento
11 ndash Apresentaccedilatildeo teoacuterica e histoacuterica da antinomia da faculdade de conhecimento17
12 ndash Outras questotildees presentes na filosofia schopenhaueriana23
13 ndash Investigaccedilatildeo acerca do conceito da antinomia da faculdade de conhecimento30
14 ndash Investigaccedilatildeo acerca dos conceitos das outras questotildees presentes na filosofia de
Schopenhauer41
15 ndash Estrutura histoacuterica da metafiacutesica de Schopenhauer o debate sobre a coisa em si44
16 ndash Desvelando o dilema e os conceitos envolvidos70
Capiacutetulo 2 ndash A construccedilatildeo do lado externo do mundo idealismo transcendental
21 ndash Philosophia prima
211 ndash O princiacutepio maacuteximo do conhecimento77
212 ndash Formas da sensibilidade intuiccedilotildees puras e sujeito da voliccedilatildeo85
213 ndash Dianoiologia91
214 ndash Teoria da razatildeo107
22 ndash O conhecimento filosoacutefico118
23 ndash Criacutetica de Schopenhauer ao idealismo de Kant123
24 ndash Idealismo schopenhaueriano e fisiologia do conhecimento131
25ndash Fundamentos do mundo como representaccedilatildeo134
Capiacutetulo 3 ndash A constituiccedilatildeo do lado interno do mundo metafiacutesica
31 ndash A Vontade como o em si do indiviacuteduo141
32 ndash A Vontade como o em si do mundo149
33 ndash Objetivaccedilatildeo da Vontade161
34 ndash Relaccedilotildees da Vontade com o intelecto e o ceacuterebro166
35 ndash Discoacuterdia da Vontade consigo mesma e teleologia172
36 ndash Fundamentos do mundo como Vontade182
Capiacutetulo 4 ndash Interpretaccedilotildees paradigmaacuteticas e anaacutelise pessoal
41 ndash Recepccedilatildeo da filosofia schopenhaueriana187
42 - Apreciaccedilotildees criacuteticas da antinomia da faculdade de conhecimento197
43 ndash Soluccedilotildees apologeacuteticas da antinomia da faculdade de conhecimento206
44 ndash Anaacutelise pessoal217
Referecircncias228
- 13 -
Introduccedilatildeo
Querer resolver todos os problemas e
responder a todas as interrogaccedilotildees seria
atrevida filaacuteucia e presunccedilatildeo tatildeo
extravagante que isso bastaria para se tornar
imediatamente indigno de toda a confianccedila
Kant
O tema de que se ocupa esta tese eacute uma questatildeo muito interessante Um
pensador de espiacuterito tatildeo vivo e de ideias tatildeo importantes na tradiccedilatildeo filosoacutefica como Arthur
Schopenhauer foi levado a reconhecer e a relatar no seu sistema o que entendeu ser uma
antinomia da faculdade de conhecimento Ao fazecirc-lo poreacutem ele indicou que sua filosofia
infringira o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo que estaacute na base do conceito de antinomia Embora
ele tenha justificado o problema pela bifurcaccedilatildeo dos pontos de vista do fenocircmeno e da coisa
em si a soluccedilatildeo natildeo foi convincente e as discussotildees iniciadas com seus contemporacircneos
ainda hoje subsistem Em 1869 seu amigo e disciacutepulo Julius Frauenstaumldt publicou um artigo
intitulado ldquoArthur Schopenhauer und seine Gegnerrdquo na revista Unsere Zeit deutsche Revue
der Gegenwart1 no qual informa sobre diversas criacuteticas de que a filosofia schopenhaueriana
foi alvo Frauenstaumldt menciona muitos opositores e muitas objeccedilotildees ao pensamento de
Schopenhauer entre as quais estaacute a antinomia da faculdade de conhecimento Menciona
tambeacutem a reaccedilatildeo do filoacutesofo a vaacuterias acusaccedilotildees de contradiccedilatildeo em cartas nas quais manifesta
revolta em ser chamado de contraditoacuterio
O espanto que as contradiccedilotildees provocam se deve a que desde a defesa
feita por Aristoacuteteles do princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo no livro Γ da Metafiacutesica a presenccedila de
antinomias aporias ou paradoxos em qualquer teoria equivale a uma condenaccedilatildeo O princiacutepio
de natildeo contradiccedilatildeo eacute uma das principais leis da loacutegica claacutessica entendidas como necessaacuterias e
suficientes para o pensamento correto e sua violaccedilatildeo tem sido vista como um erro capaz de
impugnar todo um sistema teoacuterico Apesar disso a presenccedila de contradiccedilotildees eacute muito comum
na Histoacuteria da Filosofia Diversos autores tiveram em algum momento uma contradiccedilatildeo ou
1 FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart
Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 686-707
- 14 -
outro problema loacutegico apontado no desenvolvimento de suas ideias A lista de exemplos seria
extensa mas basta lembrarmos o conhecido debate sobre a concepccedilatildeo kantiana de coisa em si
no qual diversos pensadores refletiram sobre a contradiccedilatildeo que significava sustentar a
existecircncia de um objeto irrepresentaacutevel na base de todas as representaccedilotildees Um filoacutesofo da
magnitude de Kant numa das questotildees mais importantes de toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica
precisou lidar com uma dificuldade ligada ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo O caso de
Schopenhauer talvez seja uacutenico na Histoacuteria da Filosofia porque seus opositores acusaram a
presenccedila de contradiccedilotildees paradoxos e antinomias em todas as frentes de seu pensamento O
proacuteprio filoacutesofo mencionou aleacutem da antinomia da faculdade de conhecimento outras trecircs
oposiccedilotildees decorrentes de suas ideias a saber entre a necessidade que rege a conduta humana
e a liberdade na negaccedilatildeo da Vontade entre mecanicismo e finalismo na natureza e entre a
contingecircncia no decorrer da vida do indiviacuteduo e a necessidade moral que intimamente a
determina
Nesta pesquisa natildeo buscamos redimir a filosofia schopenhaueriana
tampouco condenaacute-la Natildeo temos a pretensatildeo desmedida de destrinchar todas as questotildees que
ela suscita para entatildeo atribuir-lhe este ou aquele selo A perspectiva que adotamos eacute a de que
as dificuldades decorrentes do princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo podem indicar a necessidade de
uma abordagem diferente na qual natildeo se procure eliminaacute-las a qualquer custo ou invalidar a
teoria em que ocorrem Caso a violaccedilatildeo do princiacutepio seja inevitaacutevel os problemas talvez natildeo
sejam de ordem discursiva ou loacutegica mas tenham raiacutezes em profundas questotildees filosoacuteficas
Atualmente pensadores das loacutegicas paraconsistentes entre eles o professor Newton da Costa
tecircm evidenciado que as contradiccedilotildees natildeo satildeo aberraccedilotildees e que existem domiacutenios do discurso
onde elas satildeo inexpugnaacuteveis como a Medicina e o Direito Nessas loacutegicas mostrou-se
possiacutevel manter sistemas contraditoacuterios sem se incorrer em trivialidade isto eacute sem que se
deduzam quaisquer foacutermulas ou teoremas em uma teoria contraditoacuteria dada Com os
princiacutepios norteadores de um novo ramo dentro das loacutegicas paraconsistentes a loacutegica
paraclaacutessica argumentamos nesta tese que a filosofia schopenhaueriana embora
inconsistente natildeo eacute trivial
Com esse objetivo no primeiro capiacutetulo deste trabalho apresentamos a
antinomia da faculdade de conhecimento e investigamos sua natureza e o mesmo fazemos
com relaccedilatildeo a outras questotildees semelhantes Com base no discernimento de alguns conceitos
loacutegicos deliberamos sobre qual deles descreveraacute melhor cada um dos problemas de que
- 15 -
tratamos Expomos a trama conceitual do debate poacutes-kantiano sobre a coisa em si para
ressaltar as questotildees agraves quais Schopenhauer precisava responder bem como para iluminar as
suas opotildees teoacutericas Ao final do capiacutetulo trazemos agrave tona o dilema que estaacute na base da
metafiacutesica e da teoria do conhecimento schopenhauerianas bem como os conceitos nele
envolvidos
No segundo capiacutetulo examinamos a teoria da representaccedilatildeo e
explicitamos o mecanismo de produccedilatildeo desse lado do mundo pelo sujeito do conhecer
Detalhamos o modo como Schopenhauer encaixa as peccedilas do quebra-cabeccedila que se tornou o
problema do conhecimento apoacutes as discussotildees sobre a coisa em si Mostramos que o ponto
central da soluccedilatildeo que ele elabora eacute o princiacutepio de razatildeo suficiente por meio do qual responde
a todas as questotildees que se encontravam abertas naquele debate Ressaltamos essas relaccedilotildees e
indicamos como elas manifestam seu posicionamento especiacutefico frente ao idealismo
transcendental Expomos a concepccedilatildeo de Schopenhauer acerca do conhecimento filosoacutefico
algumas das criacuteticas que ele faz ao idealismo kantiano e a relaccedilatildeo que ele estabelece entre o
seu proacuteprio idealismo e a fisiologia com o objetivo de clarificar os caminhos que seu
pensamento vai urdindo Ao final destacamos os contornos do mundo como representaccedilatildeo
tal como concebido pelo filoacutesofo e trazemos agrave luz os seus fundamentos
O terceiro capiacutetulo trata da metafiacutesica schopenhaueriana na qual a coisa
em si eacute deduzida como o lado interno do mundo Apresentamos a argumentaccedilatildeo acerca da
Vontade como essecircncia do indiviacuteduo humano bem como sua extensatildeo posterior ao mundo
como um todo animado e inanimado Retratamos a objetivaccedilatildeo da Vontade sublinhando o
processo de refinamento das suas manifestaccedilotildees no decurso tempo e apontamos suas relaccedilotildees
com o intelecto e o ceacuterebro Discutimos as concepccedilotildees de autodiscoacuterdia e de teleologia e
finalizamos com uma reflexatildeo sobre os fundamentos do mundo como Vontade O quarto e
uacuteltimo capiacutetulo abrange algumas das mais relevantes apreciaccedilotildees histoacutericas da antinomia da
faculdade do conhecimento e da filosofia schopenhaueriana como um todo Delineamos a
recepccedilatildeo das obras de Schopenhauer por seus contemporacircneos destacamos algumas das
avaliaccedilotildees criacuteticas da antinomia da faculdade de conhecimento bem como outras
apologeacuteticas e apresentamos nossas conclusotildees Neste uacuteltimo item refletimos sobre a
complementaridade dos pontos de vista do idealismo e do realismo e concluiacutemos pela
necessidade de manter ambas as perspectivas A explicaccedilatildeo do mundo com base somente em
uma delas eacute vista como insuficiente por Schopenhauer e ainda que decirc origem a
- 16 -
inconsistecircncias sua junccedilatildeo natildeo torna seu pensamento trivial
Por fim queremos esclarecer que o tiacutetulo desta tese natildeo se refere apenas
agrave antinomia da faculdade de conhecimento mas agrave teoria do conhecimento de um modo mais
amplo porque a questatildeo envolve diferentes aspectos da filosofia de Schopenhauer De fato a
antinomia se relaciona com o intelecto mas tambeacutem com a Vontade e com a filosofia da
natureza schopenhaueriana O nuacutecleo estaacute na origem do conhecimento suas condiccedilotildees de
possibilidade e seu mecanismo interno de funcionamento que satildeo questotildees ligadas agrave
faculdade de conhecer no entanto a antinomia tambeacutem se refere ao surgimento do suporte
material do intelecto ligado agrave Vontade e ao desenvolvimento e aperfeiccediloamento fenomecircnicos
dela
- 17 -
Capiacutetulo 1 ndash Introduccedilatildeo agrave antinomia da faculdade de conhecimento
11 ndash Apresentaccedilatildeo teoacuterica e histoacuterica da antinomia da faculdade de conhecimento
No sect 7 do primeiro livro de O mundo como Vontade e representaccedilatildeo
(doravante O Mundo) Schopenhauer identifica um problema na sua filosofia ao qual ele
denomina antinomia da faculdade de conhecimento (Antinomie in unsern
Erkenntniβvermoumlgen)2 Esse problema desponta nos desdobramentos de duas teses
fundamentais de seu pensamento a saber a concepccedilatildeo de que todo o mundo conhecido se
reduz a representaccedilatildeo do sujeito e a de que as objetivaccedilotildees da Vontade base metafiacutesica de
tudo o que existe apresentam um progresso no tempo Essas teses fazem parte dos alicerces
da filosofia schopenhaueriana e sua confrontaccedilatildeo foi interpretada como levando a uma
contradiccedilatildeo tanto pelo filoacutesofo quanto por diversos comentadores de sua obra
De acordo com Schopenhauer o universo empiacuterico consiste em
representaccedilatildeo de um sujeito cognoscente de modo que todos os seres animados bem como
toda a natureza inanimada dependem de um intelecto e somente podem existir por meio dele
Nas palavras do filoacutesofo o mundo eacute ldquo[] simplesmente representaccedilatildeo e como tal exige o
sujeito cognoscente como portador de sua existecircncia []rdquo3 Essa relaccedilatildeo de implicaccedilatildeo entre o
sujeito e o mundo como representaccedilatildeo eacute radicalizada pela conexatildeo intriacutenseca entre a
faculdade cognoscitiva e o corpo material que lhe daacute suporte pois o ceacuterebro eacute apontado por
Schopenhauer como o oacutergatildeo no qual se situa o conhecimento Para ele o espaccedilo como
condiccedilatildeo da extensatildeo dos corpos o tempo como forma da sucessatildeo dos eventos e a lei de
causalidade como reguladora das transformaccedilotildees na natureza satildeo as bases da constituiccedilatildeo do
sujeito congnoscente e possuem uma origem cerebral Ernst Cassirer sublinha esse aspecto
2 WWV I ersters buch sect7 p 65 M I Livro I sect7 p 76
3 WWV I ersters buch sect7 p 64 M I Livro I sect7 p 75
- 18 -
ressaltando que Schopenhauer formula sua teoria do conhecimento sobre uma concepccedilatildeo que
eacute ao mesmo tempo metafiacutesica e fisioloacutegica
O ldquomundordquo que assim nasce existe somente na representaccedilatildeo e para a
representaccedilatildeo eacute pura e exclusivamente um produto do ceacuterebro Nunca se
poderaacute afirmar com a energia necessaacuteria sublinhar-se com forccedila o bastante
essa condicionalidade fisioloacutegica Sem o olho natildeo existiria jamais o mundo
das cores sem o ceacuterebro jamais existiria o mundo dos corpos no espaccedilo o
mundo das mudanccedilas e das dependecircncias causais no tempo O intelecto que
possui como seu patrimocircnio aprioriacutestico e original todas essas relaccedilotildees e
formas encontra-se absolutamente condicionado por fatores fiacutesicos eacute a
funccedilatildeo de um oacutergatildeo material subordinado portanto a este e sem o qual
seria tatildeo impossiacutevel como o ato de segurar sem a matildeo4
Da perspectiva de sua metafiacutesica contudo Schopenhauer sustenta a
existecircncia de uma gradaccedilatildeo nas objetivaccedilotildees da Vontade ancorada na complexidade e no
aperfeiccediloamento crescentes dos seres da natureza que culmina no animal cognoscente A
investigaccedilatildeo da natureza baseada na lei de causalidade diz o filoacutesofo leva necessariamente agrave
concepccedilatildeo de que ldquo[] no tempo cada estado da mateacuteria superiormente organizado sucedeu a
um mais rudimentar isto eacute que animais surgiram antes dos homens peixes antes dos animais
terrestres plantas antes destes o inorgacircnico antes de todo orgacircnico []rdquo5 Todos esses seres
seriam orientados por um princiacutepio de afirmaccedilatildeo em virtude do qual sua existecircncia teria
como uacutenico objetivo garantir agrave Vontade sua proacutepria objetivaccedilatildeo Em funccedilatildeo disso o
aprimoramento no decurso do tempo se daria no sentido de afirmarem a Vontade de modo
cada vez mais eficaz o que teria sido alcanccedilado com o ser humano Com efeito a razatildeo e o
conhecimento abstrato presentes apenas na humanidade seriam os instrumentos mais
eficientes para a satisfaccedilatildeo do querer individual Natildeo obstante a possibilidade de uma tal
gradaccedilatildeo exige que se admita a existecircncia de um processo temporal no qual uma longa cadeia
de causas e efeitos tenha transformado a natureza e sofisticado o mundo desde o inorgacircnico
ateacute o ceacuterebro dotado de razatildeo
A questatildeo que surge ao se confrontarem os dois aspectos expostos eacute
notada e descrita por Schopenhauer
Assim de um lado vemos necessariamente a existecircncia do mundo inteiro
dependente do primeiro ser cognoscente por mais imperfeito que possa ser
de outro lado tambeacutem necessariamente esse primeiro animal cognoscente eacute
completamente dependente de uma longa cadeia anterior de causas e efeitos
4 CASSIRER E El problema del conocimiento III 1ordf ed 4ordf reimpr Traduccioacuten de Wenceslao Roces Meacutexico
Fondo de Cultura Econoacutemica 1993 p 497 (grifos do autor) 5 WWV I ersters buch sect7 p 64 M I Livro I sect7 p 75
- 19 -
na qual ele entra como um pequeno elo Esses dois pontos de vista
contraditoacuterios aos quais na verdade fomos conduzidos com a mesma
necessidade podem de fato nomear-se novamente antinomia da nossa
faculdade de conhecimento e situar-se como contrapartida daquela
encontrada no primeiro extremo da ciecircncia da natureza []6
Para o filoacutesofo a questatildeo eacute dissolvida considerando-se que o espaccedilo o
tempo e a causalidade referem-se unicamente agrave representaccedilatildeo e natildeo ao nuacutecleo do mundo agrave
coisa em si A chave para essa soluccedilatildeo seria a compreensatildeo de que o tempo estaacute associado ao
conhecimento ou seja se eacute certo que natildeo havia conhecimento antes do intelecto natildeo haveria
tambeacutem tempo algum Ao surgir como atributo do primeiro ser cognoscente somente entatildeo eacute
que o tempo traria as noccedilotildees de passado e futuro infinitos bem como a representaccedilatildeo de uma
cadeia causal anterior Como ele explica
[] assim como o primeiro presente tambeacutem o passado de onde ele proveacutem
depende do primeiro sujeito cognoscente e sem ele nada eacute embora a
necessidade conduza a que esse primeiro presente natildeo se apresente como o
primeiro isto eacute como natildeo tendo nenhum passado como matildee e como o iniacutecio
do tempo mas sim como consequecircncia do passado conforme o princiacutepio
do ser no tempo da mesma forma que o fenocircmeno que preenche o passado
se apresenta como efeito de estados preacutevios que o preencheram segundo a
lei de causalidade7
Essa resposta elaborada por Schopenhauer no entanto natildeo remediou os
problemas aiacute encontrados pelos historiadores e filoacutesofos posteriores e a questatildeo passou agrave
Histoacuteria da Filosofia como uma falha um paradoxo descoberto por Eduard Zeller 8
Em 1875
na obra Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz Zeller expocircs a formulaccedilatildeo da
antinomia que tem sido a mais citada No seu livro ele afirma que quando confrontamos as
partes do sistema schopenhaueriano somos conduzidos agrave conclusatildeo de que o mundo resulta
da representaccedilatildeo a qual por sua vez resulta de um oacutergatildeo material que pressupotildee o mesmo
mundo Nas palavras dele
Encontramo-nos portanto no ciacuterculo evidente de que a representaccedilatildeo deve
ser um produto do ceacuterebro e o ceacuterebro um produto da representaccedilatildeo e que
este uacuteltimo natildeo seja o limite extremo da sua concepccedilatildeo mas apenas
enquanto ele eacute representado eacute um subterfuacutegio vazio pois somente enquanto
6 WWV I ersters buch sect7 p 65 M I Livro I sect7 p 76 Schopenhauer se refere nessa passagem ao que ele
chama de antinomia quiacutemica que natildeo discutiremos neste trabalho De acordo com o filoacutesofo a ciecircncia quiacutemica
tem como objeto o primeiro estado da mateacuteria que tenta encontrar pelo meacutetodo da causalidade Poreacutem estaria
condenada ao fracasso pois mesmo que um tal primeiro estado fosse encontrado ficaria inexplicado o modo
como teria podido sofrer alguma mudanccedila na ausecircncia de um outro estado diferente dele que pudesse dar
origem agrave primeira mutaccedilatildeo Cf WWV I ersters buch sect7 p 63-64 M I Livro I sect7 p 74-75 7 WWV I ersters buch sect7 p 66 M I Livro I sect7 p 77
8 Em verdade natildeo se pode falar em descoberta uma vez que o proacuteprio Schopenhauer menciona essa dificuldade
como de resto algumas outras que discutiremos adiante
- 20 -
mateacuteria somente ldquoenquanto se torna representadordquo eacute que pode existir
corporalmente o oacutergatildeo que gera as representaccedilotildees Aqui se situa uma
contradiccedilatildeo para cuja soluccedilatildeo o filoacutesofo nem minimamente contribuiu9
Como afirma Maria Luacutecia Cacciola em Schopenhauer e a questatildeo do
dogmatismo trata-se de uma criacutetica claacutessica agrave teoria da representaccedilatildeo schopenhaueriana que
foi por isso qualificada como contraditoacuteria10
De fato tanto antes quanto depois de Eduard
Zeller diversos comentadores apresentaram e discutiram essa dificuldade entre eles Kuno
Fischer Johannes Volkelt e Ernst Cassirer Jaacute em 1871 Julius Frauenstaumldt disciacutepulo e amigo
do filoacutesofo publicou seu Schopenhauer-Lexicon no qual haacute um verbete sobre a antinomia da
faculdade de conhecimento sob o nome de ldquoantinomia fisioloacutegicardquo (die physiologische
Antinomie)11
Ainda antes dele Adolf Cornill e Rudolf Seydel tocam no problema em 1856 e
1857 respectivamente O primeiro em sua obra Arthur Schopenhauer als
Uebergangsformation von einer idealistischen in eine realistische Weltanschauung12
atribui-
o a um dualismo que dilaceraria o sistema O segundo o remete a um hiato entre a teoria do
conhecimento schopenhaueriana e sua metafiacutesica na obra Schopenhauers Philosophisches
System13
Existem ainda muitas outras obras dedicadas a Schopenhauer que aludem
agrave antinomia natildeo necessariamente de modo criacutetico tanto escritas no passado como no
presente Dentre elas estatildeo diversas teses de doutorado alematildes datadas do final do seacuteculo
XIX ao iniacutecio do XX como por exemplo a de Dmitry Tzerteleff Schopenhauerrsquos
Erkenntniss-Theorie eine kritische Darstellung14
defendida na Universidade de Leipzig em
1879 Aleacutem dessa haacute a de Hugo Otczipka Kritische Bemerkungen zur Weltanschauung
Schopenhauers15
tambeacutem defendida na Universidade de Leipzig em 1892 e a de Otto
9 ZELLER E Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz Muumlnchen Didenbourg 1875 p 713
(traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 10
CACCIOLA M L Schopenhauer e a questatildeo do dogmatismo Satildeo Paulo EDUSP 1994 p 77 11
Cf FRAUENSTAumlDT J Schopenhauer-Lexicon ein Philosophisches Woumlrterbuch Erster Band Leipzig
Brockhaus 1871 p 37 et seq 12
CORNILL A Arthur Schopenhauer als Uebergangsformation von einer idealistischen in eine realistische
Weltanschauung Heidelberg Georg Mohr 1856 13
SEYDEL R Schopenhauers Philosophisches System Leipzig Breitkop und Haumlrtel 1857 14
TZERTELEFF Dmitry Schopenhauerrsquos Erkenntniss-Theorie eine kritische Darstellung Inaugural-
Dissertation zur Erlangung der philosophischen Doktorwuumlrde der Phiosophischen Fakultaumlt der Universitaumlt
Leipzig Leipzig G Reusche 1879 p 35 et seq 15
OTCZIPKA Hugo Kritische Bemerkungen zur Weltanschauung Schopenhauers Der Hohen philosophischen
Fakultaumlt der Universitaumlt Leipzig als Inaugural-Dissertation zur Erlangung der Doktorwuumlrde Leipzig-Reudnitz
Oswald Schmidt 1892 p 150 et seq
- 21 -
Suckau intitulada Schopenhauers falsche Auslegung der Kantischen Erkenntnistheorie Ihre
Erklaumlrung und Ihre Folgen16
defendida em Weimar em 191217
Uma das mais interessantes e profiacutecuas anaacutelises da teoria do
conhecimento schopenhaueriana eacute a realizada por Ernst Cassirer De acordo com esse
pensador Schopenhauer tenta realizar a intermediaccedilatildeo entre dois mundos a saber o da
metafiacutesica do ponto de vista do idealismo alematildeo e o das ciecircncias naturais apoiado
especialmente na psicologia francesa e na teoria fisioloacutegica das cores de Goethe Esse seria
um caraacuteter sui generis do pensamento de Schopenhauer que o teria levado agrave bifurcaccedilatildeo de
dois caminhos e de duas metas completamente diferentes em funccedilatildeo dos quais haveria
surgido uma antinomia jaacute na proacutepria formulaccedilatildeo do problema do conhecimento18
Cassirer considera que o fato de Schopenhauer apoiar sua teoria da
representaccedilatildeo sobre as ciecircncias naturais e natildeo sobre a loacutegica e a matemaacutetica assegura-lhe um
lugar especial entre os poacutes-kantianos mas em contrapartida envolve sua filosofia num
problema insoluacutevel Diferentemente dos outros disciacutepulos de Kant em Schopenhauer a
investigaccedilatildeo natildeo expotildee apenas a trajetoacuteria do conhecimento no sentido que vai do intelecto ao
objeto mas tambeacutem no inverso do mundo conhecido ao intelecto Schopenhauer portanto
teria decidido fundamentar sua visatildeo acerca da formaccedilatildeo do conhecimento natildeo somente em
uma operaccedilatildeo intelectual transcendental como os outros idealistas alematildees mas sustentando-
se tambeacutem no fisioloacutegico Sua intenccedilatildeo ao fazer isso teria sido a de rechaccedilar a construccedilatildeo
teoacuterica de tipo panteiacutesta em que um ser absoluto e originaacuterio engendra o mundo ao mesmo
tempo em que revela a si proacuteprio No entanto na concepccedilatildeo de Cassirer aiacute estaria o erro
fundamental de Schopenhauer pois o processo natildeo poderia ser entendido como a
manifestaccedilatildeo de uma entidade no tempo mas somente no sentido de uma emanaccedilatildeo loacutegica A
dificuldade de harmonizar o meacutetodo transcendental de Kant que se ocupa das verdades e da
validade ideal dos juiacutezos com as questotildees proacuteprias do lado empiacuterico da teoria fisioloacutegica seria
responsaacutevel por grande parte dos problemas da filosofia schopenhaueriana A partir daiacute um
ciacuterculo vicioso resultaria da derivaccedilatildeo dos juiacutezos com base nas coisas e escreve Cassirer
16
SUCKAU Otto Schopenhauers falsche Auslegung der Kantischen Erkenntnistheorie Ihre Erklaumlrung und Ihre
Folgen Dissertation zur Erlangung der Doktorwuumlrde bei der philosophischen Fakultaumlt der Groszligherzoglich
Hessischen Ludwigs-Universitaumlt zu Gieszligen Weimar R Wagner Sohn 1912 p 39 et seq 17
No quarto capiacutetulo deste trabalho delineamos a recepccedilatildeo da filosofia de Schopenhauer e algumas das
apreciaccedilotildees tanto criacuteticas quanto apologeacuteticas que a antinomia da faculdade do conhecimento recebeu 18
CASSIRER E op cit p 493
- 22 -
[] esse ciacuterculo vicioso tem necessariamente de produzir-se tatildeo logo o
problema da filosofia criacutetica saia de seu campo proacuteprio e verdadeiro isto eacute
tatildeo logo perguntemos natildeo por uma dependecircncia ideal com respeito a
verdades mas por uma dependecircncia real do sujeito com respeito ao objeto e
vice-versa19
No fundo do sistema schopenhaueriano haveria um ciacuterculo do anterior e
do posterior no tempo que estaria na base da teoria do conhecimento do filoacutesofo e seria
tambeacutem a origem da antinomia O proacuteprio Schopenhauer teria admitido aiacute uma circularidade
vendo-se obrigado a conceber o intelecto tanto como prius quanto como posterius20
Com
base nisso seriacuteamos forccedilados a concluir que o espaccedilo estaacute na cabeccedila e simultaneamente a
cabeccedila estaacute nele assim como que o tempo estaacute em noacutes e que tambeacutem estamos nele Do
mesmo modo a proacutepria derivaccedilatildeo do mundo como representaccedilatildeo no espaccedilo e no tempo
exigiria a existecircncia anterior de certos dados primaacuterios que na realidade jaacute seriam obra do
intelecto como no caso da intuiccedilatildeo dos objetos realizada pela retina
O ciacuterculo vicioso surgiria igualmente quando se analisa a exposiccedilatildeo
schopenhaueriana do ponto de vista metafiacutesico O intelecto juntamente com o ceacuterebro seria
um produto tardio da Vontade sua uacuteltima e superior objetivaccedilatildeo Nessa perspectiva o tempo
o espaccedilo e a causalidade que satildeo as condiccedilotildees do devir teriam de surgir posteriormente como
atributos do sujeito Entatildeo diz Cassirer
[] deveria estar claro segundo a proacutepria metafiacutesica de Schopenhauer que
natildeo pode haver nenhuma classe de objetivaccedilotildees da vontade anteriores ao
intelecto mas somente para este Soacute para o sujeito cognoscente e sua forma
de reflexatildeo se fragmenta o em si simplesmente unitaacuterio da vontade em uma
pluralidade de graus de objetivaccedilatildeo e na seacuterie ascendente do devir21
Em resumo natildeo se poderia apontar nenhuma origem material do
intelecto nenhuma demonstraccedilatildeo que apresentasse a derivaccedilatildeo dele a partir de outro ser ou
essecircncia Somente seria possiacutevel realizar algo desse tipo recorrendo-se a uma
autodeterminaccedilatildeo ou automovimento de um ser absoluto O proacuteprio Schopenhauer como
mostra Cassirer apontou o problema das metafiacutesicas geneacuteticas evidenciando que o princiacutepio
de razatildeo natildeo tem validade fora da experiecircncia e que portanto natildeo se pode supor nenhuma
causalidade entre a coisa em si e o fenocircmeno No entanto o filoacutesofo teria cometido o mesmo
erro no tocante agrave relaccedilatildeo entre Vontade e conhecimento na medida em que o princiacutepio de
razatildeo eacute utilizado para mostrar a origem uacuteltima do intelecto A filosofia schopenhaueriana
19
Ibidem p 510 (grifos do autor) 20
Ibidem p 512 21
Ibidem p 517 (grifos do autor)
- 23 -
como um todo resultaria entatildeo numa metafiacutesica geneacutetica de fundamento bioloacutegico22
12 ndash Outras questotildees presentes na filosofia schopenhaueriana
Aleacutem do nosso objeto de pesquisa podem-se mencionar ainda outras
questotildees entre elas trecircs contradiccedilotildees que foram expressamente referidas por Schopenhauer e
que adiante discutiremos Algumas das dificuldades que notamos nos parecem ser superficiais
ou aparentes enquanto outras talvez tenham raiacutezes mais profundas Em contextos superficiais
encontram-se embaraccedilos que natildeo comprometem a integridade do conjunto e podem ser
conciliados com suas premissas baacutesicas Em niacuteveis mais internos haacute aqueles que poderatildeo
estar radicados nas fundaccedilotildees do sistema Segundo pensamos no decurso da formulaccedilatildeo da
sua filosofia Schopenhauer acaba se deparando com diversos problemas que precisa resolver
tomando por base seu pensamento uacutenico Essa tarefa no entanto natildeo eacute nada faacutecil pois as
soluccedilotildees precisam ser harmonizadas com um mundo que possui dois lados mutuamente
excludentes Enquanto representaccedilatildeo o mundo se caracteriza pela necessidade em virtude de
ser construiacutedo pelo princiacutepio de razatildeo suficiente mas ao mesmo tempo tem sua essecircncia em
algo totalmente oposto uma Vontade imanente absolutamente livre cega e sem objetivo Em
funccedilatildeo disso constantemente surgem contrastes conflitos e oposiccedilotildees insuspeitadas que nem
sempre podem ser levadas a bom termo
Essa visatildeo natildeo eacute nova na histoacuteria da recepccedilatildeo da filosofia de
Schopenhauer e natildeo nos parece estar ultrapassada A tiacutetulo de exemplo mencionamos uma
obra do seacuteculo XIX e outra do XXI ambas com concepccedilotildees similares A primeira delas eacute a de
Louis Ducros intitulada Schopenhauer les origines de sa meacutetaphysique de 1883 que analisa
o pensamento schopenhaueriano na perspectiva da Vontade23
Esse autor delineia a trajetoacuteria
de construccedilatildeo da metafiacutesica do filoacutesofo que admite a presenccedila da coisa em si e a define como
22
Ibidem p 520 23
DUCROS L Schopenhauer les origines de sa meacutetaphysique ou les transformations de la chose en soi de
Kant a Schopenhauer Paris Germer Bailliegravere amp Co 1883
- 24 -
Vontade comparando-a com as de Kant Fichte e Schelling Nas filosofias destes uacuteltimos
conforme Ducros a vontade tomada como coisa em si tambeacutem ocupa um papel fundamental
tanto quanto na de Schopenhauer Sua conclusatildeo poreacutem eacute de que o pensamento deste uacuteltimo
eacute repleto de contradiccedilotildees devidas agrave combinaccedilatildeo de duas linhas teoacutericas antagocircnicas a saber
um idealismo criacutetico e um realismo dogmaacutetico24
Entatildeo ele escreve
Leiam o primeiro livro de O Mundo como representaccedilatildeo e vontade em
nome dos princiacutepios do criticismo Schopenhauer demonstra que o mundo
natildeo eacute senatildeo uma representaccedilatildeo menos que isso uma ilusatildeo do espiacuterito natildeo
se poderia ser mais idealista Abram o segundo livro e perceberatildeo uma
linguagem totalmente diferente os princiacutepios criacuteticos satildeo abandonados
ressuscitam-se as realidades elevam-nas ao posto de substacircncias de coisas
em si em uma palavra apresenta-se tanto dogmaacutetico e afirmativo no seu
realismo que se criticou quanto negativo no seu idealismo25
A segunda obra Aporie und Subjekt die erkenntnistheoretischen
Entfaltungslogik der Philosophie Schopenhauers26
foi publicada por Martim Booms em 2003
e analisa a teoria do conhecimento de Schopenhauer com base no conceito de sujeito Para
Booms a filosofia schopenhaueriana eacute repleta de aporias e de contradiccedilotildees que a seu ver
natildeo satildeo devidas agrave irracionalidade da Vontade mas ao subsolo loacutegico da sua concepccedilatildeo de
sujeito Com essa perspectiva ele argumenta que a filosofia schopenhaueriana se rebela
contra seus proacuteprios fundamentos Nas palavras dele
Um trabalho filosoacutefico que se ocupa da filosofia de Schopenhauer se vecirc em
face de enormes problemas de orientaccedilatildeo logo que algo atinge a
determinaccedilatildeo de um possiacutevel princiacutepio ou entatildeo um ponto de acesso um
dos mais notaacuteveis de todos os planos (ndash considerando o niacutevel de conteuacutedo
(11) o plano teoacuterico formal e o argumentativo (12) assim como a
correspondente delimitaccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica complementar (13) e a
histoacuteria da recepccedilatildeo (14) ndash responsaacutevel pela caracteriacutestica do pensamento de
Schopenhauer) consiste em sua anunciada heterogeneidade em uma
divergecircncia e polaridade entre pontos de vista e abordagem metoacutedica
distintos os quais por meio da permanente produccedilatildeo de mediaccedilotildees mantecircm
sua filosofia em um permanente estado de tensatildeo e com isso conduzem a
inegaacuteveis aporias ciacuterculos viciosos mudanccedilas de perspectiva e demoliccedilatildeo de
argumentaccedilotildees[]27
Do nosso ponto de vista haacute certos problemas que se situam na superfiacutecie
do edifiacutecio teoacuterico schopenhaueriano e que podem ser descritos de modo geral como
conclusotildees que o sistema natildeo permitiria logicamente extrair embora o filoacutesofo o faccedila Um
24
Ibidem p 150 25
Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 26
BOOMS Martin Aporie und Subjekt die Erkenntnistheoretischen Entfaltungslogik der Philosophie
Schopenhauers Wurzburg Koumlnigshausen amp Neuman 2003 27
Ibidem p 16 (traduccedilatildeo nossa)
- 25 -
exemplo de tais dificuldades eacute a suposiccedilatildeo de poder expressar o enigma do mundo por meio
do conhecimento abstrato A formulaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo suficiente28
como forma uacutenica
do conhecimento29
cujas raiacutezes em uacuteltima instacircncia possibilitam apenas perguntar pelas
razotildees e responder ao ldquoporquecircrdquo das coisas30
contrasta com a pretensatildeo da filosofia
schopenhaueriana que embora seja fruto de uma das figuras dele do principium rationis
sufficientis cognoscendi pretende demonstrar o ldquoquecircrdquo do mundo seu mais iacutentimo interior Ou
seja se o princiacutepio de razatildeo somente pode expressar a necessidade de um fundamento para
tudo o que existe o enigma do mundo jamais poderia ser desvelado por meio dele nem
poderia ser traduzido em conceitos Em suma a essecircncia do mundo natildeo poderaacute ser encontrada
seguindo-se as relaccedilotildees causais que constituem a representaccedilatildeo tampouco se forem
oferecidas as razotildees de conhecimento dos juiacutezos verdadeiros Eacute necessaacuterio um conhecimento
de tipo diferente pode alcanccedilaacute-la a saber o esteacutetico ou o eacutetico mas nunca o racional De fato
afirma Schopenhauer ldquo[] a essecircncia iacutentima do mundo a coisa em si nunca pode ser
encontrada pelo seu meacutetodo [do princiacutepio de razatildeo] poreacutem tudo o que com ele se pode
alcanccedilar eacute sempre dependente e relativo apenas fenocircmeno natildeo a coisa em si[]rdquo31
Uma segunda dificuldade pode ser apontada no tocante ao conhecimento
do sujeito acerca de seu proacuteprio interior Conforme Schopenhauer nossa vontade individual
nos daacute a conhecer de modo imediato o processo interno da causalidade pois a lei de
motivaccedilatildeo eacute ela mesma vista por dentro32
Em Da quaacutedrupla raiz do princiacutepio de razatildeo
suficiente (doravante Da quaacutedrupla raiz) Schopenhauer afirma sobre esse ponto que ldquoA
atuaccedilatildeo do motivo natildeo eacute conhecida por noacutes apenas como satildeo todas as outras causas de fora e
de modo indireto mas ao mesmo tempo de dentro de modo totalmente imediato e portanto
em sua completa forma de accedilatildeordquo33
Em contraste com isso poreacutem no item intitulado
ldquoAstronomia Fiacutesicardquo de Sobre a Vontade na Natureza o filoacutesofo discorre sobre as diferenccedilas
que se notam entre causas e efeitos conforme se ascende na escala progressiva dos seres e
28 No segundo capiacutetulo abordaremos o princiacutepio de razatildeo suficiente de modo detido 29
Existe tambeacutem o modo de conhecimento esteacutetico no qual se abandona o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e
alcanccedilam-se as Ideias entendidas como graus de objetivaccedilatildeo da Vontade e formas eternas das coisas Para
Schopenhauer elas satildeo refletidas pela obra de arte cuja contemplaccedilatildeo leva agrave intuiccedilatildeo imediata da vida e da
natureza por um indiviacuteduo transformado em puro sujeito do conhecer Haacute tambeacutem o conhecimento obtido pela
conversatildeo eacutetica que descortina a essecircncia da Vontade e leva a negaacute-la Natildeo obstante o conhecimento filosoacutefico
natildeo eacute do mesmo tipo do esteacutetico ou do eacutetico mas tem de seguir o princiacutepio de razatildeo suficiente do conhecer Eacute
segundo Schopenhauer a apresentaccedilatildeo in abstracto do que foi conhecido in concreto 30
UumlV sect4 p 15 CR sect4 p 33 31
WWV I ersters buch sect7 p 67 M I Livro I sect7 p 78 32
UumlV sect43 p 173 CR sect43 p 208 33
UumlV sect43 p 173 CR sect43 p 208
- 26 -
que determinam uma perda progressiva da compreensibilidade do processo de causaccedilatildeo34
A
maior inteligibilidade possiacutevel da causalidade estaacute nos processos mecacircnicos em que causas e
efeitos satildeo qualitativamente homogecircneos Quando a causa eacute de uma natureza e o efeito de
outra a conexatildeo causal vai deixando progressivamente de ser evidente Como ele explica
Aquela relaccedilatildeo inversa em que se esclarecem a causalidade e a Vontade
aquele modo alternante de avanccedilar e recuar de ambas deriva de que quanto
mais uma coisa nos eacute dada como simples fenocircmeno isto eacute como
representaccedilatildeo mais clara se mostra a forma a priori da representaccedilatildeo isto eacute
a causalidade assim eacute na natureza inanimada mas inversamente quanto
mais imediatamente a Vontade nos eacute consciente mais retrocede a forma da
representaccedilatildeo a causalidade como eacute conosco mesmos Assim quanto mais
um lado do mundo se aproxima mais perdemos o outro de vista35
Por conseguinte quanto mais a Vontade se manifesta nos fenocircmenos
mais incompreensiacuteveis eles satildeo porque se afastam da causalidade O princiacutepio de razatildeo
suficiente do devir estaria assim em uma relaccedilatildeo inversa de compreensibilidade com a
Vontade o que entra em conflito com o caraacuteter mais conhecido atribuiacutedo agrave vontade
individual em funccedilatildeo da lei de motivaccedilatildeo A questatildeo que se abre entatildeo eacute a de saber como
podemos conhecer melhor e mais profundamente algo sem o intermeacutedio da forma intelectual
responsaacutevel pelo conhecimento Mais que isso como a lei de motivaccedilatildeo pode ser a
causalidade vista por dentro se elas deveratildeo se excluir mutuamente
Apesar de serem complicadores da filosofia de Schopenhauer esses
impasses natildeo adentram profundamente no seu pensamento e talvez possam ser dissolvidos
com algum esforccedilo e boa vontade intelectual Haacute alguns outros no entanto cuja resoluccedilatildeo natildeo
eacute tatildeo simples e que o proacuteprio filoacutesofo admitiu terem sido resolvidos apenas imperfeitamente
Com efeito Schopenhauer assinala o que entende serem trecircs oposiccedilotildees (Gegensaumltze)36
imputadas por ele agrave distinccedilatildeo entre representaccedilatildeo e Vontade A primeira estudada por noacutes em
dissertaccedilatildeo de mestrado ocorre entre a afirmaccedilatildeo da existecircncia de uma accedilatildeo livre no mundo
fenomecircnico no momento de negaccedilatildeo da Vontade e a necessidade que rege todas as accedilotildees
humanas No fim de contas considerando-se o conjunto das colocaccedilotildees do filoacutesofo sobre essa
questatildeo sua filosofia refletiria um fato presente no proacuteprio mundo e na Vontade mesma
definida como autoconflitante e autodestrutiva Embora possa ser explicada a contradiccedilatildeo
34
WN p 411 ss VN p 138 ss 35
WN p 418 VN p 146 36 A exposiccedilatildeo desses problemas pode ser conferida em PP I Transzendente Spekulation uumlber die anscheinende
absichtlichkeit im Schicksale des Einzelnen p 271 Especulacioacuten transcendente sobre los visios de
intencionalidade en el destino del individuo In Los designios del destino Estudio preliminar traduccioacuten y notas
de Roberto Rodriacutegues Aramayo Madrid Tecnos 1994 p 44
- 27 -
acaba natildeo sendo dissolvida e permanece tanto no mundo quanto no discurso
A segunda oposiccedilatildeo estabelece simultaneamente o nexus effetivus e o
nexus finalis na natureza ou seja o mecanicismo e o finalismo que ocorrem ao mesmo tempo
nos fenocircmenos naturais37
Schopenhauer sustenta que entre objetos naturais distantes no
espaccedilo e heterogecircneos entre si haacute uma espeacutecie de compatibilidade que parece ser orientada
por algum tipo de finalidade Tal finalidade poreacutem natildeo pode ser explicada por processos
mecacircnicos e lineares que satildeo o escopo do princiacutepio de razatildeo nem pelo conceito de causa que
ele estabelece pois este natildeo se coaduna com a admissatildeo de um ser que se origine ou se
organize a si mesmo Dessa concepccedilatildeo da causalidade inclusive decorrem todas as diversas
criacuteticas que Schopenhauer tece ao conceito de causa sui Aleacutem disso por ser cega e sem
objetivo final a Vontade natildeo permitiria a afirmaccedilatildeo de uma teleologia na natureza Natildeo
obstante essa teleologia eacute afirmada como existente pelo filoacutesofo e explicada metaforicamente
A terceira oposiccedilatildeo mencionada por Schopenhauer concerne ao contraste
entre a contingecircncia dos acontecimentos da vida individual e a necessidade moral que a
determina38
De acordo com ele embora embotada e sem finalidade a Vontade originaria um
todo coerente e ordenado na vida humana No iacutentimo das pessoas e sem o seu conhecimento
ela dirigiria todas as accedilotildees em funccedilatildeo de seus proacuteprios fins de maneira que os eventos
isolados e aparentemente desconexos das trajetoacuterias de vida individuais concorreriam para
uma manifestaccedilatildeo uniforme do ser como um todo Por conseguinte haveria uma contradiccedilatildeo
entre a vida do indiviacuteduo constituiacuteda por uma seacuterie de acontecimentos fortuitos e os fins
morais da Vontade que ele perseguiria independentemente de seu proacuteprio consentimento No
fim de contas sem que soubesse o ser humano estaria sendo conduzido pela Vontade agrave meta
final de negaccedilatildeo de si mesma39
Poreacutem como eacute evidente tais ideias satildeo completamente
opostas agrave de uma Vontade obtusa sem fim e sem alvo um dos pilares da filosofia
schopenhaueriana
Outra dificuldade de consequecircncias significativas foi apontada por
Eduardo Brandatildeo em sua tese de doutorado intitulada A concepccedilatildeo de Mateacuteria na obra de
Schopenhauer40
Brandatildeo evidencia o modo como o filoacutesofo incorreu em contradiccedilotildees e
incoerecircncias de importantes desdobramentos na formulaccedilatildeo da sua visatildeo a respeito da
37
Ibidem loc cit ibidem loc cit 38
Ibidem loc cit ibidem loc cit 39
Ibidem p 272 ibidem p 44-45 40
BRANDAtildeO E A concepccedilatildeo de mateacuteria na obra de Schopenhauer Satildeo Paulo Humanitas 2008
- 28 -
mateacuteria Segundo esse autor o iniacutecio do processo se deu com as mudanccedilas realizadas por
Schopenhauer em sua teoria da representaccedilatildeo pelas quais a noccedilatildeo de mateacuteria passou a ter dois
sentidos O primeiro sentido consiste na definiccedilatildeo de mateacuteria como Stoff enquanto
determinada no tempo e no espaccedilo e identificada com os estados perceptiacuteveis da causalidade
O segundo sentido eacute o da mateacuteria enquanto Materie indeterminada fora do tempo e do
espaccedilo que passa a constituir a substacircncia que estaacute na base dos acidentes representados pela
mateacuteria como Stoff41
Essa reformulaccedilatildeo diz Brandatildeo acabou por obscurecer as relaccedilotildees entre
Vontade e mateacuteria bem como a ligaccedilatildeo desta uacuteltima com o sujeito cognoscente De um lado
a mateacuteria passaria a se confundir com o absoluto medida em que em diversas passagens
Schopenhauer afirma ser absolutum aquilo que nunca surge nem perece aquilo cujo quantum
nunca se altera que satildeo tambeacutem caracteriacutesticas da mateacuteria como Materie Nessa perspectiva
o filoacutesofo teria chegado ao mesmo resultado dos poacutes-kantianos que ele criticava assim como
agrave substacircncia tal como pensada por Espinosa42
De outro lado no tocante agraves relaccedilotildees entre
mateacuteria e sujeito cognoscente a reformulaccedilatildeo da teoria da representaccedilatildeo por Schopenhauer
teria levado a uma mudanccedila na noccedilatildeo de objeto Segundo Brandatildeo o mundo como
representaccedilatildeo deixa de ser entendido a partir da correlaccedilatildeo entre sujeito e objeto e passa a ter
dois polos distintos a saber sujeito e mateacuteria como Stoff Isso no entanto desloca a noccedilatildeo de
objeto que passa entatildeo a ser superposta agrave de mateacuteria Na opiniatildeo de Brandatildeo o
estabelecimento dos dois sentidos para o conceito de mateacuteria em O mundo como vontade e
representaccedilatildeo tomo II complementos (doravante O MundoII) foi importante para que a
noccedilatildeo de mundo mantivesse um traccedilo idealista Sem isso a filosofia de Schopenhauer recairia
em um materialismo jaacute que a uacutenica mateacuteria admitida seria a posteriori ou seja Stoff com
riscos agrave atribuiccedilatildeo de um sentido moral ao mundo No entanto o conceito de mateacuteria tambeacutem
teria sido pensado por Schopenhauer contra os idealistas do seu tempo daiacute a importacircncia de
colocaacute-la como visibilidade da Vontade Assim conclui Brandatildeo
Seguindo a liccedilatildeo de Lebrun talvez fosse entatildeo mais correto enxergar na
noccedilatildeo de Materie de Schopenhauer uma estrutura aporeacutetica em que cada
lado eacute realccedilado conforme o inimigo a ser combatido se o materialismo a
mateacuteria eacute abstraccedilatildeo ens rationis fenocircmeno se o idealismo absoluto ―
Berkeley incluso ― o fenocircmeno a mateacuteria o objeto precisa ser algo em si
41
BRANDAtildeO E ldquoA concepccedilatildeo de mateacuteria em Schopenhauer e o absolutordquo In SALLES JC (Org)
Schopenhauer e o Idealismo Alematildeo Salvador Quarteto 2004 p 52 42
Ibidem p 50
- 29 -
como ocorre nos Complementos de O Mundo43
Essa duplicidade de perspectiva bem como as transformaccedilotildees e
deslocamentos conceituais realizados por Schopenhauer na teoria da representaccedilatildeo teriam
repercutido na sua filosofia como um todo com efeitos profundos
Esta estrutura aporeacutetica tem suas caracteriacutesticas proacuteprias a Materie eacute
causalidade abstrata atividade abstrata mas tambeacutem inerte imoacutevel eacute dada a
priori mas soacute surge como abstraccedilatildeo No limite eacute preciso natildeo perder de vista
que se a lectio purissima sobre a mateacuteria ensina a imaterialidade da mateacuteria
que ela eacute um substrato loacutegico meramente acrescentado pelo pensamento
como o permanente dos fenocircmenos haacute em contrapartida passagens em que
ela parece de fato concreta44
Outra consequecircncia que segundo pensamos poderia ser daiacute extraiacuteda eacute a
de que no fim de contas a filosofia de Schopenhauer apresenta-se como um dualismo e natildeo
como um monismo Com efeito monista eacute aquela filosofia na qual haacute apenas um ser uma
substacircncia uma uacutenica essecircncia agrave qual tudo se refere seja no mundo animado seja no
inanimado A princiacutepio a Vontade seria essa substacircncia uacutenica pois eacute descrita como ldquotudo no
todordquo o α e o υ de toda a existecircncia e do proacuteprio mundo Poreacutem como entender o monismo
schopenhaueriano frente agraves caracteriacutesticas atribuiacutedas agrave mateacuteria como Materie conforme a
exposiccedilatildeo da obra de Eduardo Brandatildeo Schopenhauer declara sua filosofia como a exposiccedilatildeo
de um pensamento uacutenico no qual aparece a Vontade como a verdadeira substacircncia
subjacente ao mundo como um todo Quaisquer objetos existentes animados ou inanimados
satildeo vistos por essa filosofia como manifestaccedilatildeo desse ente uacutenico razatildeo pela qual teriacuteamos de
afirmar que se trata de um pensamento monista Todavia eacute possiacutevel perceber traccedilos de
dualismo no pensamento de Schopenhauer quando a mateacuteria eacute tratada como o absoluto ou
mesmo quando o intelecto se alccedila ao posto de superioridade que eacute necessaacuterio para negar a
Vontade a substacircncia primordial Agrave primeira vista esses poderiam parecer problemas
marginais que apenas realccedilariam o peso da mateacuteria ou do conhecimento no universo
conceitual schopenhaueriano como um todo No entanto eacute bastante embaraccediloso que mateacuteria e
conhecimento se coloquem mesmo que em circunstacircncias especiacuteficas em situaccedilatildeo de
igualdade com a Vontade
43
BRANDAtildeO E A concepccedilatildeo de mateacuteria na obra de Schopenhauer Satildeo Paulo Humanitas 2008 p 329-330
(grifos do autor) 44
Ibidem loc cit (grifos do autor)
- 30 -
13 ndash Investigaccedilatildeo acerca do conceito da antinomia da faculdade de conhecimento
Para uma boa compreensatildeo das questotildees mencionadas que satildeo de
naturezas distintas apresentaremos nossas opccedilotildees conceituais acerca de cada um delas De
fato verificamos frequentes divergecircncias nesse tocante tanto nas obras de Schopenhauer
quanto de seus comentadores o que prejudica o entendimento do nosso tema A questatildeo que
nos ocupa por exemplo eacute vista por Schopenhauer indistintamente como contradiccedilatildeo e como
antinomia45
Portanto eacute necessaacuterio explicitar com clareza onde estatildeo problemas para entatildeo
direcionarmos a atenccedilatildeo aos pontos exatos De nossa parte concordamos com Bacon quando
afirma que a verdade emerge mais rapidamente do erro do que da confusatildeo46
Os conceitos de contradiccedilatildeo paradoxo e antinomia satildeo definidos com
caracteriacutesticas especiacuteficas embora correlacionadas De um modo geral eacute possiacutevel definir a
contradiccedilatildeo como a atribuiccedilatildeo a um sujeito ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto de
qualidades ou relaccedilotildees mutuamente excludentes Todas as formas em que ela pode se
manifestar satildeo apoiadas no princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo pressuposto tambeacutem nas definiccedilotildees
de paradoxo e de antinomia O princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute entendido na loacutegica claacutessica
como uma das leis maacuteximas do pensamento ao lado dos de identidade e do terceiro excluiacutedo
os quais em conjunto satildeo considerados as condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para o
pensamento correto Embora natildeo tenham sido aceitos sem criacuteticas jaacute que em diversos
momentos ao longo da Histoacuteria questionou-se se teriam o estatuto de leis e se deveriam
mesmo ter primazia na loacutegica os trecircs princiacutepios foram admitidos em geral como
fundamentais
De uma perspectiva informal antinomia e paradoxo satildeo noccedilotildees anaacutelogas
e podem ser definidos como argumentos aparentemente corretos cujas premissas satildeo
aceitaacuteveis mas natildeo a conclusatildeo Em conformidade com essa posiccedilatildeo a maioria dos manuais e
dicionaacuterios de Loacutegica apresentam paradoxo e antinomia como sinocircnimos Natildeo obstante de
45
Schopenhauer escreve ldquoDiese zwei widersprechenden Ansichten auf jede von welchen wir in der That mit
gleicher Notwendigkeit gefuumlhrt werde koumlnnte man allerdings wieder eine Antinomie in unserm
Erkenntniᵦvermoumlgen nennen [hellip]rdquo Cf WWV I ersters buch sect7 p 65 M I Livro I sect7 p 76 46
BACON F The New organon New York Cambridge University Press 2000 Book II Aphorism XX p 130
- 31 -
um ponto de vista formal e mais rigoroso natildeo se pode entendecirc-los como conceitos idecircnticos
Eacute o que afirma o loacutegico Newton da Costa ao definir uma antinomia formal como sendo
aquela evidenciada em uma teoria formalizada que se mostre trivial metateoacuterica ou
epistemologicamente Paradoxo formal por seu turno eacute a derivaccedilatildeo de dois teoremas
contraditoacuterios em uma teoria formalizada Como explica Da Costa pela definiccedilatildeo usual da
loacutegica claacutessica ldquo[uma teoria] T eacute antinocircmica se e somente se nela se puder derivar um
paradoxordquo47
Embora natildeo tencionemos formalizar a filosofia Schopenhauer optamos
por natildeo considerar antinomia e paradoxo como sinocircnimos Natildeo obstante natildeo nos ateremos
estritamente agraves noccedilotildees formais de paradoxo e antinomia expostas por Da Costa se bem que os
conceitos que manteremos se aproximam claramente dos que ele propotildee Segundo pensamos
nosso propoacutesito nesta tese exige que preservemos no conceito de antinomia a marca das
discussotildees realizadas por Kant na Criacutetica da razatildeo pura por ser esse o entendimento que
Schopenhauer explicitamente adota Kant chama de antinomias os resultados teoacutericos do
conflito das leis da razatildeo surgidos no uso empiacuterico dessa faculdade48
Para ele na condiccedilatildeo
maacuteximas para a orientaccedilatildeo do entendimento acerca da totalidade do conhecimento do mundo
as ideias da razatildeo satildeo regulativas mas natildeo possuem validade empiacuterica As antinomias
consistem na contraposiccedilatildeo de teses e antiacuteteses que supostamente afirmariam verdades
empiacutericas relacionadas agrave totalidade incondicionada do mundo Por serem derivadas da
proacutepria razatildeo seriam naturais e inevitaacuteveis Nas palavras de Kant as antinomias originam-se
[] quando se aplica a razatildeo agrave siacutentese objetiva dos fenocircmenos aiacute pretende eacute
certo e com muita aparecircncia fazer valer o seu princiacutepio da unidade
incondicionada mas em breve se enreda em tais contradiccedilotildees que se vecirc
forccedilada a desistir da sua pretensatildeo em mateacuteria cosmoloacutegica49
Natildeo nos interessa discutir todas as implicaccedilotildees da teorizaccedilatildeo kantiana
sobre esse ponto mas apenas ressaltar sua conceituaccedilatildeo e mostrar o modo como teses e
antiacuteteses se contrapotildeem Para isso ressaltamos uma caracteriacutestica fundamental das antinomias
entendidas desse modo a saber embora sejam mutuamente excludentes tanto as teses quanto
as antiacuteteses satildeo legiacutetimas e demonstraacuteveis logicamente Nesse sentido Kant afirma que
Quando natildeo nos limitamos a aplicar a nossa razatildeo no uso dos princiacutepios do
entendimento aos objetos da experiecircncia mas ousamos alargar esses
47
DA COSTA N Ensaio sobre os fundamentos da loacutegica 3ordf ed Satildeo Paulo Hucitec 2008 p 221 48
KvR A406B433 ndash A408B435 CRP p 379-380 49
KvR A407B433 CRP p 379 (grifos do autor)
- 32 -
princiacutepios para aleacutem dos limites desta experiecircncia surgem teses sofisticas
que da experiecircncia natildeo tecircm a esperar confirmaccedilatildeo nem refutaccedilatildeo a temer e
cada uma delas natildeo somente natildeo encerra contradiccedilatildeo consigo proacutepria mas
encontra mesmo na natureza da razatildeo condiccedilotildees da sua necessidade a
proposiccedilatildeo contraacuteria poreacutem infelizmente tem por seu lado fundamentos de
afirmaccedilatildeo igualmente vaacutelidos e necessaacuterios50
Exporemos somente a primeira antinomia a tiacutetulo de exemplo pois o
procedimento kantiano em relaccedilatildeo agraves outras eacute o mesmo A primeira antinomia da razatildeo tem
como tese a proposiccedilatildeo ldquoO mundo tem um comeccedilo no tempo e eacute tambeacutem limitado no espaccedilordquo
e como antiacutetese ldquoO mundo natildeo tem comeccedilo nem limites no espaccedilo eacute infinito tanto no tempo
como no espaccedilordquo51
Cada uma delas eacute provada indiretamente pela refutaccedilatildeo da sua contraacuteria
Assim Kant busca a prova da tese por meio das consequecircncias que se podem extrair da
admissatildeo da antiacutetese segundo a qual o mundo natildeo eacute limitado no tempo nem no espaccedilo Por
um lado no caso de natildeo ser limitado no tempo um instante determinado exigiria um decurso
infinito de tempo e de estados sucessivos dos objetos antes que pudesse ser dado No entanto
diz Kant a infinitude dessa seacuterie anterior seraacute pensada como nunca concluiacuteda o que tornaria
impossiacutevel a proacutepria existecircncia do mundo Com isso um iniacutecio em um ponto do tempo torna-
se condiccedilatildeo necessaacuteria para a existecircncia do mundo52
Por outro lado se for admitida a
infinitude no espaccedilo o mundo teraacute de ser pensado como um todo infinito de objetos
simultacircneos Esse todo poreacutem soacute pode ser pensado por noacutes como siacutentese sucessiva das
partes e natildeo poderiacuteamos englobaacute-lo em uma intuiccedilatildeo com limites determinados A siacutentese
sucessiva das partes de um mundo infinito no espaccedilo precisaria ser completada e isso por sua
vez exigiria um tempo infinito para a enumeraccedilatildeo de todas as coisas que se justapotildeem Daiacute
conclui o filoacutesofo ldquo[] um agregado infinito de coisas reais natildeo pode considerar-se um todo
dado nem portanto dado ao mesmo tempo O mundo natildeo eacute pois infinito quanto agrave extensatildeo
no espaccedilo antes encerrado em limites []rdquo53
De modo semelhante a antiacutetese eacute provada pela refutaccedilatildeo da tese
Supondo-se que o mundo possui um iniacutecio eacute preciso admitir que houve um tempo vazio em
que natildeo existia Entretanto nada poderia surgir em um tempo vazio na medida em que natildeo se
poderia distinguir uma parte sua de outra tampouco a existecircncia de algo da natildeo existecircncia No
tocante ao espaccedilo admitindo-se que o mundo tem limites teraacute de ser suposto um vazio
ilimitado onde ele entatildeo se encontraraacute situado Nesse caso poreacutem o mundo estaria em
50
KvR A421B449 CRP p 389 (grifos do autor) 51
KvR A426B454 ndash A427B455 CRP p 392-393 52
KvR A426B454 CRP p 392 53
KvR A428B446 CRP p 394 (grifos do autor)
- 33 -
relaccedilatildeo com algo que natildeo eacute propriamente um objeto jaacute que fora dele mesmo natildeo haacute nenhum
E diz Kant ldquo[] semelhante relaccedilatildeo natildeo eacute nada e consequentemente tambeacutem eacute nada a
limitaccedilatildeo do mundo pelo espaccedilo vazio portanto o mundo natildeo eacute limitado quanto ao espaccedilo
quer dizer eacute infinito em extensatildeordquo54
Kant conclui acerca das quatro antinomias que nas duas primeiras as
contradiccedilotildees surgem porque o espaccedilo o tempo e a simplicidade satildeo pensados como coisas em
si quando satildeo na verdade conceitos com idealidade transcendental Em virtude disso o
mundo em si acabaria sendo convertido em objeto de conhecimento o que eacute impossiacutevel e
assim tanto as teses quanto as antiacuteteses seriam falsas Nas duas uacuteltimas antinomias por seu
turno as teses e as antiacuteteses seriam verdadeiras mas referentes a realidades distintas a saber
as teses aos nuacutemenos e as antiacuteteses aos fenocircmenos Como resultado Kant encontra que o
conflito de leis da razatildeo pura produz as antinomias as quais se configuram como a
formulaccedilatildeo de duas vias teoacutericas distintas que apresentam o mundo com caracteriacutesticas
excludentes mas que possui cada uma as suas justificaccedilotildees Enquanto derivadas da proacutepria
constituiccedilatildeo da razatildeo satildeo resultados naturais e natildeo podem ser extintas ou completamente
dissolvidas
O conceito de paradoxo possui uma raiz antiga (παπάδοξα) como
opiniatildeo que contraria os conhecimentos comumente aceitos como verdadeiros Do ponto de
vista informal trata-se de um argumento de vaacutelido mas cuja conclusatildeo natildeo pode ser aceita
porque implica um problema loacutegico ou de natureza empiacuterica Nas histoacuterias da loacutegica e da
filosofia verificaram-se e discutiram-se diversos tipos de paradoxos e a tiacutetulo de uma
organizaccedilatildeo miacutenima lanccedilaremos matildeo da classificaccedilatildeo feita por Da Costa55
Este teoacuterico
destaca em primeiro lugar os paradoxos loacutegico-matemaacuteticos que se relacionam com as
noccedilotildees formais da loacutegica e da matemaacutetica Um dos exemplos mais conhecidos desse tipo eacute o
ldquoparadoxo das classesrdquo apontado por Russell na loacutegica de Frege Nesse paradoxo surge um
problema com a classe de todas as classes que natildeo satildeo membros de si mesmas quando se
indaga se ela eacute ou natildeo membro de si mesma Caso a resposta seja afirmativa a classe de todas
as classes que natildeo satildeo membros de si mesmas teraacute um membro que eacute membro de si mesmo
Se a resposta for negativa a classe de todas as classes que natildeo satildeo membros de si mesmas natildeo
conteraacute a si mesma embora devesse conter pois seria uma classe que natildeo conteacutem a si mesma
Por conseguinte qualquer opccedilatildeo que se faccedila resultaraacute paradoxal
54
KvR A429B457 CRP p 395 55
DA COSTA N op cit p 225
- 34 -
O segundo tipo de paradoxos eacute o semacircntico derivado do uso da
linguagem cujo exemplo mais tiacutepico eacute o chamado ldquoparadoxo do mentirosordquo Nesse caso o
paradoxo surge da anaacutelise da proposiccedilatildeo ldquoEsta sentenccedila eacute falsardquo Por um lado se a
considerarmos verdadeira o que ela afirma eacute verdade e ela seraacute simultaneamente falsa pois
eacute isso que assevera Por outro lado se a considerarmos falsa aquilo que ela afirma natildeo eacute
verdadeiro e portanto a sentenccedila estaraacute negando sua falsidade e afirmando sua verdade Em
ambos os casos a verdade da proposiccedilatildeo ldquoEsta sentenccedila eacute falsardquo implica a proacutepria falsidade e
vice-versa O uacuteltimo grupo de paradoxos envolve conceitos e conhecimentos empiacutericos como
o conhecido ldquoparadoxo de Aquiles e a tartarugardquo formulado Zenatildeo de Eleia para negar a
realidade do movimento Nesse paradoxo estaacute envolvida a ideia de divisibilidade infinita do
espaccedilo um conceito apreensiacutevel apenas pela razatildeo sem correspondecircncia intuitiva Segundo a
formulaccedilatildeo claacutessica Aquiles e uma tartaruga apostam corrida e partem simultaneamente mas
com um metro de vantagem dado ao animal Embora Aquiles seja muito mais veloz quando
avanccedila o metro dado agrave tartaruga esta avanccedila dez centiacutemetros quando o heroacutei percorre esses
dez centiacutemetros a tartaruga corre um centiacutemetro e assim sucessivamente Por conseguinte
mesmo avanccedilando infinitamente a distacircncia entre ambos nunca seraacute igual a zero e Aquiles
jamais alcanccedilaraacute a tartaruga
De acordo com Da Costa pode-se solucionar um paradoxo de dois
modos diferentes Um deles eacute o negativo em que se prova que sua conclusatildeo eacute na verdade
uma falaacutecia formal ou material Caso se trate de uma falaacutecia formal deve-se demonstrar que o
argumento possui uma forma loacutegica invaacutelida caso se trate de uma falaacutecia material deve-se
provar que uma das premissas eacute factualmente falsa A segunda maneira positiva de se
solucionar um paradoxo eacute mostrando que sua conclusatildeo eacute realmente verdadeira Em suma
para resolver um paradoxo seria necessaacuterio reduzi-lo a falaacutecia ou justificar sua conclusatildeo
O conceito de aporia estaacute relacionado aos anteriores e se define por ser
uma dificuldade teoacuterica cuja soluccedilatildeo eacute muito trabalhosa ou impossiacutevel A forma em que
aparece pode ser a de uma antinomia ou de um paradoxo e o que a distingue eacute a exigecircncia de
grandes esforccedilos para seu desenlace ou a inexistecircncia de qualquer saiacuteda Os modos pelos
quais uma aporia poderia ser resolvida satildeo os mesmos que resolveriam um paradoxo isto eacute
sua reduccedilatildeo a falaacutecia ou a justificaccedilatildeo da sua conclusatildeo No entanto no caso especiacutefico das
aporias a resoluccedilatildeo demandaria esforccedilos teoacutericos excessivos e a revisatildeo dos princiacutepios
baacutesicos das teorias Normalmente segundo Da Costa as aporias satildeo solucionadas pela via
- 35 -
negativa mostrando-se que se tratam de falaacutecias ou que possuem uma premissa falsa para
que assim se evite uma revisatildeo completa dos fundamentos da teoria em questatildeo56
Portanto a
soluccedilatildeo positiva delas natildeo eacute tarefa faacutecil pois requer grandes mudanccedilas como a transformaccedilatildeo
completa do sistema formal em que se apoia ou a reestruturaccedilatildeo de teorias
Com base no exposto acima julgamos que a antinomia da faculdade de
conhecimento natildeo se revela uma contradiccedilatildeo um paradoxo e nem mesmo uma antinomia No
nosso entender como mostraremos a seguir trata-se mais propriamente de um tipo especial
de circulus in probando que envolve a possibilidade do conhecimento e sua relaccedilatildeo com o
tempo Na verdade a questatildeo natildeo eacute simples de ser decidida pois em termos latos o problema
poderia ser enquadrado em qualquer das noccedilotildees apresentadas mesmo com as diferenccedilas que
apontamos Todavia uma escolha deve forccedilosamente ser feita se quisermos compreender a
fundo e precisamente o problema com o qual nos ocupamos Para isso utilizaremos a
exposiccedilatildeo e a argumentaccedilatildeo anteriores como os apoios de que necessitamos para tornar nossas
opccedilotildees menos arbitraacuterias
Em primeiro lugar parece-nos que o problema da teoria do conhecimento
de Schopenhauer natildeo pode ser entendido como contradiccedilatildeo De fato o filoacutesofo escreve que ldquoa
existecircncia do mundo inteiro depende do primeiro ser cognoscenterdquo e tambeacutem que ldquoo primeiro
animal cognoscente depende de uma longa cadeia precedente de causas e efeitosrdquo57
isto eacute
subordina-se agrave existecircncia do mundo como representaccedilatildeo Quando analisamos esse problema
do ponto de vista do desrespeito agrave norma loacutegica baacutesica de que a conclusatildeo deve ser
consequecircncia das premissas isto eacute se as premissas forem verdadeiras que a conclusatildeo
tambeacutem o seja notamos que natildeo se aplica a esse caso O que temos aqui satildeo duas conclusotildees
provindas de dois lados distintos do pensamento schopenhaueriano tomado como um todo
Cada uma das conclusotildees tem suas ilaccedilotildees proacuteprias que satildeo suficientes para justificaacute-lo de
modo que natildeo se observam premissas verdadeiras levando a uma conclusatildeo falsa De modo
semelhante natildeo haacute a atribuiccedilatildeo simultacircnea ao primeiro ser cognoscente de qualidades ou
relaccedilotildees mutuamente excludentes Natildeo se afirma por exemplo que o mundo da representaccedilatildeo
depende e natildeo depende dele simultaneamente O mesmo se pode afirmar em relaccedilatildeo ao
desrespeito ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo segundo o qual um enunciado natildeo pode ser
tomado como verdadeiro e como falso a um soacute tempo e sob aspectos idecircnticos De fato
ambas as proposiccedilotildees da antinomia natildeo estatildeo em uma oposiccedilatildeo direta ou seja natildeo se pode
56
DA COSTA N op cit p 226 57
WWV I ersters buch sect7 p 65 M I Livro I sect7 p 75
- 36 -
dizer que uma eacute a negaccedilatildeo exata da outra
Uma possibilidade diferente seria a anaacutelise de cada sentenccedila da
antinomia como uma proposiccedilatildeo condicional Na primeira a existecircncia do animal
cognoscente (A) seria o antecedente do qual decorreria o consequente a existecircncia do mundo
como representaccedilatildeo (M) A rarr M Na segunda os termos estariam trocados e o mundo como
representaccedilatildeo seria o antecedente enquanto o primeiro animal seria o consequente M rarr A
Natildeo obstante a contradiccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo condicional resulta do rompimento da relaccedilatildeo
de implicaccedilatildeo entre o antecedente e o consequente isto eacute caso aconteccedila de o antecedente ser
verdadeiro e o consequente ser falso Portanto soacute poderiacuteamos falar em contradiccedilatildeo caso no
discurso schopenhaueriano estivesse afirmado ao lado das duas proposiccedilotildees da antinomia
que o animal cognoscente em algum momento existiu mas natildeo mundo como representaccedilatildeo
A ˄ notM ou inversamente que o mundo da representaccedilatildeo existe mas natildeo o animal
ognosente M ˄ notA A rigor A rarr M e M rarr A natildeo se contradizem
No nosso entender a antinomia da faculdade de conhecimento natildeo deve
tambeacutem ser enquadrada entre os paradoxos em sentido rigoroso Como jaacute expusemos
paradoxo formal eacute a derivaccedilatildeo de dois teoremas contraditoacuterios em uma teoria formalizada
mas nossa anaacutelise anterior demonstrou que os dois enunciados da antinomia natildeo estatildeo em
uma relaccedilatildeo de contraditoriedade Tomando em consideraccedilatildeo o conceito mais geral de
paradoxo talvez se pudesse afirmar que as duas conclusotildees paralelas satildeo paradoxais na
medida em que o argumento de cada uma possui premissas verdadeiras mas conclusotildees
inaceitaacuteveis quando comparadas entre si Poreacutem como estamos buscando uma precisatildeo
crescente do nosso objeto de estudo cremos que esse conceito de paradoxo eacute muito amplo a
ponto de abranger distintas classes de problemas o que natildeo nos auxilia
Aleacutem disso segundo pensamos nenhum dos tipos de paradoxos que
examinamos possui a forma da antinomia da faculdade de conhecimento Os paradoxos
loacutegicos-matemaacuteticos envolvem autocontradiccedilatildeo trazendo como consequecircncia que a atribuiccedilatildeo
de qualquer dos valores de verdade V ou F agraves proposiccedilotildees envolvidas resultaraacute sempre em
uma proposiccedilatildeo falsa Por exemplo no caso do paradoxo das classes de Russel se
respondermos afirmativamente agrave questatildeo de saber se a classe de todas as classes que satildeo natildeo
membros de si mesmas pertence a si mesma teremos uma proposiccedilatildeo falsa pois a classe de
todas classes que natildeo satildeo membros de si mesmas teraacute um membro que natildeo pertence a ela isto
eacute uma classe que eacute membro de si mesma Se respondermos negativamente a classe de todas
- 37 -
as classes que natildeo satildeo membros de si mesmas natildeo conteraacute a si mesma mas entatildeo seu caraacuteter
universal seraacute posto em xeque pois haveraacute um membro que deveria estar dentro dela e
todavia estaacute fora Nesse exemplo a resposta agrave pergunta sobre a classe de todas as classes natildeo
admite resposta verdadeira e eacute essa outra forma de conceituar a contradiccedilatildeo a saber se o
valor de verdade resultante de uma foacutermula eacute sempre falso No entanto o problema da
antinomia da faculdade de conhecer natildeo se assemelha a esse caso Se tomarmos como
verdadeira cada conclusatildeo em separado veremos que ldquoa existecircncia do mundo inteiro depende
necessariamente do primeiro ser cognoscenterdquo eacute uma proposiccedilatildeo perfeitamente consistente
consigo mesma natildeo levando a valores de verdade falsos nem implicando verdade e falsidade
simultacircneas O mesmo se pode dizer de ldquoo primeiro ser cognoscente depende de uma longa
cadeia de causas e efeitos que o precederdquo Na verdade os problemas surgem quando se
colocam ambas as sentenccedilas lado a lado
Considerando os paradoxos semacircnticos a relaccedilatildeo loacutegica estabelecida
entre as proposiccedilotildees envolvidas eacute ligeiramente diferente embora tambeacutem vejamos um tipo de
autocontradiccedilatildeo envolvida Tomando o exemplo do paradoxo do mentiroso observamos que a
verdade da proposiccedilatildeo ldquoEsta sentenccedila eacute falsardquo (S) acarreta sua proacutepria falsidade enquanto sua
falsidade acarreta a proacutepria verdade Com efeito se a proposiccedilatildeo eacute verdadeira o que ela
afirma deve ser falso e o resultado pode ser expresso assim (S)Vrarr(S)F Do mesmo modo
se o que a proposiccedilatildeo afirma eacute falso ela deve ser verdadeira (S)Frarr(S)V Mais uma vez natildeo
eacute esse o tipo de oposiccedilatildeo que se percebe na antinomia da teoria do conhecimento de
Schopenhauer Cada parte dela natildeo implica a proacutepria verdade e falsidade simultaneamente
nem mesmo a junccedilatildeo de ambas implica
No tocante aos paradoxos empiacutericos a semelhanccedila com o nosso objeto
de estudo parece ser maior pois a dificuldade loacutegica surge pela impossibilidade de se pensar
claramente a questatildeo como numa espeacutecie de interrupccedilatildeo do pensamento frente a um impasse
que envolve tambeacutem conhecimentos empiacutericos O exemplo do paradoxo de Aquiles e a
tartaruga evidencia uma necessidade decorrente do proacuteprio intelecto de continuar realizando
a divisatildeo da extensatildeo ao infinito embora a velocidade de Aquiles imponha ao pensamento a
ideia de que ele deve se sobrepor agrave divisibilidade contiacutenua do espaccedilo e ultrapassar a tartaruga
Contudo no nosso entendimento natildeo eacute exatamente isso o que comparece no nosso objeto de
estudo Realmente pensar que o mundo eacute dependente do primeiro ser cognoscente e que ao
mesmo tempo o primeiro ser cognoscente depende da existecircncia do mundo natildeo leva a um
- 38 -
impasse desse tipo eacute algo que se pode pensar ainda que somente tomando cada proposiccedilatildeo de
modo separado Os problemas surgem quando as pensamos juntas mas a possibilidade que
existe aqui de se considerar cada porccedilatildeo do problema estaacute excluiacuteda no caso dos paradoxos
empiacutericos pois eles se configuram como um todo indivisiacutevel
Sob a perspectiva do conflito de leis que eacute o conceito que adotamos para
antinomia tambeacutem natildeo se verifica algo semelhante no nosso objeto As antinomias no
sentido kantiano satildeo teses e antiacuteteses contraditoacuterias ou contraacuterias que surgem do conflito da
razatildeo pura consigo mesma Aparentemente esse seria o caso pois assim como as antinomias
kantianas as duas proposiccedilotildees conflitantes da teoria do conhecimento de Schopenhauer tecircm
cada uma sua justificaccedilatildeo loacutegica Por um lado das teses acerca do mundo tomado como
representaccedilatildeo decorre necessariamente que ele soacute pode existir com apoio no sujeito por
outro das teses que sustentam a Vontade como o em si do mundo decorre tambeacutem
necessariamente que ela se objetiva numa trajetoacuteria de refinamento ateacute chegar ao ceacuterebro
humano No entanto ambas as proposiccedilotildees natildeo estatildeo entre si na mesma relaccedilatildeo em que estatildeo
as teses e antiacuteteses das antinomias formuladas por Kant nas quais uma eacute sempre a negaccedilatildeo
expliacutecita da outra Aleacutem disso natildeo se observa um conflito propriamente entre leis da razatildeo ou
de outra coisa mas sim uma discrepacircncia entre duas formas de descrever e explicar o mundo
isto eacute entre dois discursos distintos um pelo lado da representaccedilatildeo e outro pelo lado da
Vontade As antinomias kantianas derivam da constituiccedilatildeo da razatildeo pura satildeo como ilusotildees
naturais e inevitaacuteveis A de Schopenhauer por seu turno eacute o resultado de um modo duplo de
compreender o mundo
Eacute importante ainda analisarmos a antinomia do ponto de vista do que se
entende por peticcedilatildeo de princiacutepio ou ciacuterculo vicioso pois eacute assim que ela foi entendida em
grande parte das vezes No sect 92 de Manual dos cursos de loacutegica geral Kant afirma que se
comete peticcedilatildeo de princiacutepio quando se toma por imediatamente certa uma proposiccedilatildeo que na
verdade precisa ser provada O ciacuterculo vicioso eacute ligeiramente distinto pois nele a proposiccedilatildeo
que deve ser provada eacute colocada como seu proacuteprio fundamento58
No Oacuterganon de Aristoacuteteles
encontramos uma discussatildeo mais detalhada desses conceitos Nos Analiacuteticos Anteriores esse
filoacutesofo distingue dois tipos de provas a saber as que se datildeo pela proacutepria natureza do objeto e
as que exigem o recurso a outros fatores Exemplo das primeiras satildeo os princiacutepios e das
segundas tudo o que eacute subordinado a eles Conforme Aristoacuteteles entatildeo comete-se uma
58
KANT I Manual dos cursos de loacutegica geral 2ordf ed Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e guia de leitura de Fausto
Castilho Campinas UNICAMP Uberlacircndia UFU 2003 p 269
- 39 -
peticcedilatildeo de princiacutepio quando se tenta provar por si mesma uma verdade que precisa apoiar-se
em outros dados59
Nos Toacutepicos ele resume as cinco formas em que se pode incorrer em
peticcedilatildeo de princiacutepio postulando-se aquilo mesmo que se quer demonstrar postulando-se
universalmente o que se quer provar em um caso particular postulando-se em casos
particulares o que se quer provar em geral postulando-se a conclusatildeo por partes e
postulando-se afirmaccedilotildees que se implicam mutuamente60
Em siacutentese diz Aristoacuteteles na
peticcedilatildeo de princiacutepio o que se faz eacute limitar-se a afirmar que algo eacute se eacute61
Segundo nos parece
natildeo podemos enquadrar nosso objeto de estudo em peticcedilatildeo de princiacutepio ou em ciacuterculo vicioso
pois como jaacute dissemos ele surge como consequecircncia de proposiccedilotildees situadas em partes
distintas da filosofia schopenhaueriana Por conseguinte nenhuma eacute posta como fundamento
de si mesma nem eacute provada com recurso apenas a si mesma mas cada uma delas eacute resultante
de sua argumentaccedilatildeo correspondente
Nos Analiacuteticos Posteriores Aristoacuteteles menciona um tipo de
argumentaccedilatildeo circular em que as premissas natildeo satildeo anteriores e mais conhecidas do que a
conclusatildeo como seria de se esperar62
Na sua explicaccedilatildeo o argumento eacute circular porque
Eacute impossiacutevel que as mesmas coisas sejam relativamente agraves mesmas coisas
anteriores e posteriores ao mesmo tempo a menos que estes termos se
concebam de outro modo e que digamos que uns satildeo anteriores e mais
claros para noacutes e os outros anteriores e mais claros em absoluto sendo
justamente deste modo que a induccedilatildeo gera o conhecimento63
O argumento circular natildeo eacute necessariamente vicioso Se premissas e
conclusotildees forem reciacuteprocas diz Aristoacuteteles poderatildeo ser convertidas entre si e entatildeo a
demonstraccedilatildeo seraacute possiacutevel Conforme o filoacutesofo um processo semelhante a uma geraccedilatildeo
circular pode servir para exemplificar e ilustrar esse tipo de demonstraccedilatildeo
[] quando a terra for molhada eleva-se necessariamente um vapor uma
vez produzido este vapor forma-se uma nuvem formada a nuvem produz-
se a chuva e uma vez ter chovido a terra fica necessariamente molhada Era
precisamente este o nosso ponto de partida de modo que fechamos o ciacuterculo
pois dado qualquer um destes termos outro se segue e deste um outro e
59
ARISTOacuteTELES Organon III Analiacuteticos Anteriores Traduccedilatildeo de Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees
1986 Livro II 16 64b p 214-215 60
ARISTOacuteTELES Organon V Toacutepicos Traduccedilatildeo de Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees 1987 Livro VIII
13 163a p 314-315 61
ARISTOacuteTELES Organon III Analiacuteticos Anteriores Traduccedilatildeo de Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees
1987 Livro II 16 65a p 215 62
ARISTOacuteTELES Organon IV Analiacuteticos Posteriores Traduccedilatildeo de Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees
1987 Livro I 3 72b-73a p 17 et seq 63
Ibidem Livro I 3 72b p 18-19
- 40 -
deste outro o primeiro64
Segundo pensamos a antinomia da faculdade de conhecimento65
causa
admiraccedilatildeo porque o animal cognoscente aparece em dois pontos distintos da mesma seacuterie
temporal No primeiro ele eacute o iniacutecio do mundo aquele que traz consigo pela primeira vez as
formas necessaacuterias para a construccedilatildeo de toda e qualquer representaccedilatildeo a saber o tempo o
espaccedilo e a lei de causalidade No segundo no mesmo mundo da representaccedilatildeo ele ocupa um
ponto avanccedilado em um processo temporal que vai no sentido do aperfeiccediloamento das
objetivaccedilotildees da Vontade no qual o mais complexo e perfeito eacute posterior ao mais simples e
rudimentar Por conseguinte de um lado esse animal cognoscente deve ser anterior agraves
plantas aos peixes e aos animais inferiores jaacute que seu intelecto eacute condiccedilatildeo da existecircncia
deles De outro ele eacute posterior agraves mesmas plantas peixes e animais inferiores jaacute que eacute um
animal mais perfeito e portanto ulterior no tempo
De acordo com o exposto entendemos que a antinomia da faculdade de
conhecimento forma uma imagem semelhante agravequela exposta por Aristoacuteteles na sua
exposiccedilatildeo do argumento circular A imagem construiacuteda pela antinomia como um todo eacute a de
um ciacuterculo formado pelo princiacutepio de razatildeo suficiente que tem origem no intelecto do animal
cognoscente mas que deveraacute originaacute-lo por sua vez na gradaccedilatildeo progressiva dos seres
naturais Cada proposiccedilatildeo em separado situa esse animal em um ponto distinto da mesma
linha temporal de um lado no iniacutecio do tempo que coincide com o iniacutecio do mundo como
representaccedilatildeo de outro num posto avanccedilado do desenvolvimento gradativo dos seres da
natureza o qual exige por seu turno que o tempo jaacute tenha iniciado e transcorrido ateacute ali
Portanto no exato momento em que abriu os olhos o primeiro animal cognoscente iniciou
uma sucessatildeo temporal para o futuro infinitamente Para abrir os olhos contudo precisou de
uma cadeia causal anterior que somente poderia surgir com o transcurso do tempo atributo
de seu proacuteprio intelecto Simplificadamente poderiacuteamos dizer que nesse ciacuterculo o animal
engendra o mundo e o mundo engendra o animal assim como a aacutegua da terra gera a chuva e
esta molha a terra no argumento de Aristoacuteteles Em verdade de acordo com a filosofia
schopenhaueriana a ideia de que o mundo como representaccedilatildeo tem iniacutecio com o animal
cognoscente eacute algo baacutesico um ponto paciacutefico A dificuldade maior eacute a segunda proposiccedilatildeo
porque ela perturba indiretamente a construccedilatildeo teoacuterica da Vontade e introduz nela um
64
Ibidem Livro II 96a p 142 65
Embora estejamos argumentando que o problema natildeo tem a forma de uma antinomia preservaremos esse
nome para designaacute-la pois assim foi que Schopenhauer a nomeou
- 41 -
processo temporal Quando o filoacutesofo escreve que a objetivaccedilatildeo mais simples precede a mais
complexa estaacute afirmando que a Vontade depende de alguma forma do tempo e que admite
um processo que postula a existecircncia dele antes mesmo de existir aquilo que eacute sua condiccedilatildeo
de possibilidade
14 ndash Investigaccedilatildeo acerca dos conceitos das outras questotildees presentes na filosofia de
Schopenhauer
Aleacutem da antinomia da faculdade de conhecer Schopenhauer aponta
tambeacutem as trecircs contradiccedilotildees que jaacute mencionamos acima Natildeo discutiremos a primeira sobre a
liberdade uma vez que jaacute nos dedicamos a ela em dissertaccedilatildeo de mestrado66
A segunda eacute a
existecircncia simultacircnea de mecanicismo e finalismo questatildeo cujo cerne natildeo estaacute propriamente
na possibilidade de que os fenocircmenos naturais sejam regidos ao mesmo tempo por causas
finais e causas eficientes Na verdade um primeiro problema se encontra na dificuldade de se
explicar o funcionamento dos corpos orgacircnicos por meio do princiacutepio de razatildeo suficiente que
soacute prevecirc causaccedilotildees mecacircnicas e lineares mas natildeo as finais Uma causalidade final exige a
pressuposiccedilatildeo de um conceito regulador uma ideia uma organizaccedilatildeo do corpo de si para si
algo que a lei de causalidade que implica somente accedilatildeo e reaccedilatildeo natildeo admite Um segundo
problema estaacute em que a Vontade sendo definida como um impulso cego e sem objetivo final
natildeo poderia apresentar uma finalidade nas suas objetivaccedilotildees No nosso entendimento o
embaraccedilo que daiacute se origina natildeo possui um caraacuteter loacutegico mas transparece na dificuldade de
se aplicar essas concepccedilotildees de Vontade e de causalidade agrave diversidade do mundo empiacuterico
Ao que nos parece a afirmaccedilatildeo simultacircnea de mecanicismo e finalismo natildeo resulta em
qualquer inconveniente e ambos poderiam ser inferidos do funcionamento dos mesmos seres
orgacircnicos O fato eacute que essa realidade custosamente encontraria explicaccedilatildeo na filosofia
schopenhaueriana
66
Cf SANTOS K C S O problema da liberdade na filosofia de Arthur Schopenhauer Dissertaccedilatildeo
(Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Departamento
de Filosofia Orientador Prof Dr Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo 2010
- 42 -
A terceira contradiccedilatildeo indicada por Schopenhauer eacute a que ocorre entre a
contingecircncia aparente dos eventos que ocorrem na trajetoacuteria de vida dos indiviacuteduos e o teacutelos
que parece guiaacute-la Nesse caso a finalidade afirmada como subjacente agrave vida humana eacute ainda
mais discutiacutevel em funccedilatildeo de seu aspecto moral O que aqui se assevera eacute que o indiviacuteduo
estaria independente de seu proacuteprio conhecimento buscando os fins morais da Vontade
identificados com a negaccedilatildeo de si mesma Pareceria entatildeo que estamos realmente diante de
uma contradiccedilatildeo em sentido estrito porque a Vontade eacute apresentada simultaneamente como
sendo moral e natildeo moral Apesar disso acreditamos que essa contradiccedilatildeo eacute inofensiva em
relaccedilatildeo ao pensamento schopenhaueriano como um todo e embora o filoacutesofo discorra sobre a
moralidade do destino individual em todo um ensaio dos Parerga e paralipomena67
ele o faz
advertindo expressamente que satildeo meras especulaccedilotildees sem qualquer fundamento filosoacutefico
Em relaccedilatildeo aos paradoxos que apresentamos no item 12 pensamos que
satildeo tambeacutem objeccedilotildees de menores consequecircncias O primeiro deles atine ao que eacute ou natildeo
possiacutevel dentro dos pressupostos schopenhauerianos realizar-se mediante o discurso
filosoacutefico Com efeito Schopenhauer se propotildee descobrir o segredo mais iacutentimo do mundo
desvendar seu enigma o que soacute poderia ser feito a rigor com recurso a um conhecimento de
tipo esteacutetico ou eacutetico que natildeo seguem o princiacutepio de razatildeo suficiente O proacuteprio filoacutesofo
afirma curiosamente que ldquo[] a simples razatildeo de conhecimento permanece na superfiacutecie e
somente pode dar o conhecimento de o que algo eacute mas natildeo por que eacuterdquo68
No entanto sua
filosofia enquanto expressatildeo in abstrato do que ocorre in concreto soacute pode ser estruturada
por meio do principium sufficientis cognoscendi com o qual apenas se poderia expor
abstratamente o mundo como representaccedilatildeo mas nunca desvendar o iacutentimo da Vontade
Segundo pensamos trata-se de uma conclusatildeo assombrosa eacute verdade mas natildeo deixa de ser
meritoacuteria a tentativa de dizer o maacuteximo que se possa saber e afirmar acerca da essecircncia das
coisas Ao que nos parece natildeo se trata de uma contradiccedilatildeo nem de uma antinomia mas de
um paradoxo no sentido informal que apresentamos as premissas dos sistema satildeo aceitaacuteveis
mas natildeo essa conclusatildeo
O uacuteltimo paradoxo que discutiremos diz respeito ao conhecimento
67
Cf PP I Transzendente Spekulation uumlber die anscheinende absichtlichkeit im Schicksale des Einzelnen
Especulacioacuten transcendente sobre los visios de intencionalidade en el destino del individuo In Los designios
del destino Estudio preliminar traduccioacuten y notas de Roberto Rodriacutegues Aramayo Madrid Tecnos 1994 68
WWV I ersters buch p sect 15 115 M I Livro I sect 15 p 122 (grifos do autor)
- 43 -
possiacutevel ao sujeito a partir do seu proacuteprio interior do seu proacuteprio querer69
Como dissemos
para Schopenhauer a vontade individual daacute acesso imediato ao interior do funcionamento da
lei de causalidade possibilitando um conhecimento mais profundo dos fenocircmenos por meio
da relaccedilatildeo imediata com a Vontade Ao lado disso o filoacutesofo sustenta que os fenocircmenos que
mais manifestam esta uacuteltima satildeo os mais incompreensiacuteveis em funccedilatildeo da heterogeneidade
completa entre as causas e os efeitos que aiacute se apresenta Ao que nos parece esses fenocircmenos
em que a Vontade eacute mais evidente deveriam tambeacutem ser os mais conhecidos para noacutes posto
que nesse caso poderiacuteamos enxergar ldquoatraacutes dos bastidoresrdquo70
O que notamos nesse caso eacute a
tentativa de unir os dois modos diferentes de conhecimento pela vontade e pelo princiacutepio de
razatildeo os quais poreacutem estatildeo em descompasso Em algumas passagens Schopenhauer afirma
que mesmo sendo mais profundo o conhecimento da vontade individual eacute obscuro Poreacutem
continua a indagaccedilatildeo sobre como um conhecimento ldquopor dentrordquo da causalidade pode ser ao
mesmo tempo obscuro e o melhor Trata-se tambeacutem de um paradoxo no sentido geral que
apontamos na medida em que temos uma conclusatildeo inaceitaacutevel partindo de premissas
coerentes do sistema
Para finalizar a discussatildeo sobre este uacuteltimo ponto observaremos somente
que no texto ldquoPensamentos acerca do intelecto em geral e em todas as suas relaccedilotildeesrdquo de
Parerga e Paralipomena Schopenhauer afirma que o intelecto eacute formado originalmente para
voltar-se para fora Quando dirige a atenccedilatildeo ao seu interior para conhecer-se a si mesmo cai
em uma total obscuridade um vazio total71
Na condiccedilatildeo de sujeito do conhecimento natildeo
pode voltar-se a si mesmo e conhecer-se e ainda que pudesse natildeo encontraria nada jaacute que
esse sujeito natildeo eacute nada em si mesmo mas somente uma aparecircncia cuja forma eacute o tempo
Certamente o sujeito cognoscente pode conhecer-se como vontade poreacutem Schopenhauer
esclarece que esse conhecimento natildeo se refere a si mesmo mas a outra coisa diferente dele
que no entanto situa-se dentro A vontade por seu turno natildeo eacute capaz de autoconhecimento
pois como ele escreve no texto mencionado acima ldquo[] em si e por si eacute algo que apenas
quer e natildeo algo que conhece como tal ela natildeo conhece nada portanto tambeacutem natildeo a si
69
Natildeo nos debruccedilaremos sobre as questotildees envolvidas no conceito de mateacuteria O leitor interessado pode
conferir BRANDAtildeO E A concepccedilatildeo de mateacuteria na obra de Schopenhauer Satildeo Paulo Humanitas 2008 70
UumlV sect 43 p 173 CR sect 43 p 208 71
PPII Kap 3 sect32 p 57-58 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de
Miguel Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 32 p 240
- 44 -
mesma O conhecimento eacute uma funccedilatildeo secundaacuteria e intermediaacuteria que natildeo corresponde
imediatamente a ela o primaacuterio na sua essecircnciardquo72
15 ndash Estrutura histoacuterica da metafiacutesica de Schopenhauer o debate sobre a coisa em si
Uma das possibilidades de se abordar o pensamento schopenhaueriano
com de resto de qualquer filoacutesofo eacute analisando suas origens histoacutericas Como afirma Victor
Goldschmidt em A religiatildeo de Platatildeo haacute basicamente dois modos de se interpretar um
pensamento filosoacutefico a saber investigando seu tempo loacutegico ou seu tempo histoacuterico73
No
primeiro caso ele explica o objeto de estudo eacute sua verdade e pede-se ao filoacutesofo que ofereccedila
razotildees no segundo investigam-se suas origens e interrogam-se suas causas74
Nossa
investigaccedilatildeo seraacute feita na perspectiva do tempo loacutegico do pensamento schopenhaueriano
meacutetodo que esse autor chama de dogmaacutetico e cujo objetivo eacute compreender uma filosofia
tendo em conta a intenccedilatildeo do pensador Apesar disso natildeo seraacute inuacutetil lanccedilar um olhar sobre os
iniacutecios do filosofar de Schopenhauer considerando-se que ao buscar as motivaccedilotildees que lhe
deram origem poderemos compreender melhor a estrutura em que foi erigido isto eacute seu
tempo loacutegico Combinando ambas as perspectivas a dogmaacutetica e a geneacutetica podemos
adquirir uma visatildeo coerente do conjunto tentando colher na medida do possiacutevel os
benefiacutecios dos dois meacutetodos como expostos por Goldschmidt
Enfim o meacutetodo dogmaacutetico examinando um sistema sobre sua verdade
subtrai-o ao tempo as contradiccedilotildees que eacute levado a constatar no interior de
um sistema ou na anarquia dos sistemas sucessivos provecircm precisamente
de que todas as teses de uma doutrina e de todas as doutrinas pretendem ser
conjuntamente verdadeiras ldquoao mesmo tempordquo O meacutetodo geneacutetico pelo
contraacuterio potildee com a causalidade o tempo aleacutem disso o recurso ao tempo e
72
PPII Kap 3 sect32 p 58-59 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de
Miguel Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 32 p 241 (grifos do autor) 73
GOLDSCHMIDT Victor Tempo histoacuterico e tempo loacutegico na interpretaccedilatildeo dos sistemas filosoacuteficos In A
religiatildeo de Platatildeo Traduccedilatildeo de Ieda e Oswaldo Porchat Pereira Prefaacutecio introdutoacuterio de Oswaldo Porchat
Pereira Satildeo Paulo Difusatildeo Europeia do Livro 1963 p 139 et seq 74
Ibidem p 139
- 45 -
a uma ldquoevoluccedilatildeordquo permite-lhe precisamente explicar e dissolver essas
contradiccedilotildees75
Natildeo pretendemos poreacutem realizar uma investigaccedilatildeo exaustiva da gecircnese
do pensamento de Schopenhauer mas apenas ressaltar certos aspectos que poderatildeo ser
instrutivos para a compreensatildeo da nossa questatildeo Ensaiaremos uma investigaccedilatildeo semelhante
de certo modo ao que Thomas Kuhn descreve no texto intitulado ldquoEstrutura histoacuterica da
descoberta cientiacuteficardquo da obra A tensatildeo essencial76
Nesse texto Kuhn argumenta que toda
descoberta cientiacutefica possui uma estrutura histoacuterica que a torna possiacutevel evidenciando um
processo longo e que envolve diversas pessoas De acordo com ele se natildeo se compreende
essa estrutura interna passa-se por cima dos desenvolvimentos teacutecnicos dos conceitos e teses
implicados no advento da descoberta adquirindo-se uma visatildeo simplista da Histoacuteria Eacute
bastante interessante o fato de que Schopenhauer tambeacutem manifeste absoluta clareza sobre a
complexidade histoacuterica dos desenvolvimentos teoacutericos como se pode ler no capiacutetulo 4 de O
MundoII sobre o conhecimento a priori77
Naturalmente natildeo estamos lidando com
nenhuma descoberta cientiacutefica Mas segundo pensamos a filosofia schopenhaueriana pode
ser encarada como um sistema de pensamento cujas conexotildees sistemaacuteticas e conceituais
assim como as das descobertas cientiacuteficas dialogam com aspectos teacutecnicos da discussatildeo
filosoacutefica do seu momento histoacuterico
No caso especiacutefico do problema ao qual nos dedicamos haacute uma parte da
histoacuteria do Idealismo Alematildeo de importantes consequecircncias em relaccedilatildeo agrave escolha da
abordagem e do meacutetodo por Schopenhauer Trata-se da discussatildeo a respeito do lugar da coisa
em si na filosofia criacutetica de que participaram diversos pensadores contemporacircneos de Kant
dentre os quais F Heinrich Jacobi Karl L Reinhold Gottlob Ernst Schulze Sigismund J
Beck e Salomon Maimon Schopenhauer natildeo esteve alheio a esse debate como atestam as
menccedilotildees a esses filoacutesofos que podem ser encontradas em suas obras bem como a discussatildeo
75
Ibidem p 139-140 (grifos do autor) 76
KUHN T A tensatildeo essencial Traduccedilatildeo de Rui Pacheco e revisatildeo de Artur Mouratildeo Lisboa Ediccedilotildees 70 1989
p 209-222 77
Na observaccedilatildeo a respeito do 4ordm predicado da mateacuteria (sobre a essecircncia dela) Schopenhauer menciona a
interaccedilatildeo histoacuterica intrincada que se observa entre teorias e pensadores Aponta predecessores de algumas das
mais importantes contribuiccedilotildees de Kant agrave filosofia por exemplo Priestley teria adiantado a parte referente agrave
Dinacircmica dos Princiacutepios metafiacutesicos da ciecircncia da natureza Kaspar F Wolff teria antecipado a diferenciaccedilatildeo
entre liacutequidos e soacutelidos da mesma obra de Kant e tambeacutem as ideias de Goethe sobre a metamorfose das plantas
Maupertius teria antecedido Kant na idealidade do espaccedilo e na existecircncia meramente fenomecircnica de tudo o que
conhecemos Do mesmo modo a teoria sobre a origem do sistema planetaacuterio de Laplace teria sido antecipada em
cinquenta anos por Kant e a gravitaccedilatildeo universal tida como descobrimento de Newton teria sido exposta por
Robert Hooke agrave Sociedade Real inglesa em 1666 Schopenhauer conclui sua exposiccedilatildeo com a seguinte frase ldquoA
histoacuteria da queda de uma maccedilatilde eacute tatildeo sem fundamento quanto um conto de fadas popular e sem nenhuma
autoridaderdquo Cf WWV II Kap IV p 65-66 MII cap IV p 60-63
- 46 -
que realiza sobre a questatildeo em Fragmentos para a Histoacuteria da Filosofia78
A maneira especial
em que edifica sua metafiacutesica e sua teoria do conhecimento evidencia as marcas dessa
polecircmica tornando interessante a reconstituiccedilatildeo da trama teoacuterica em que diversos conceitos
foram sendo lapidados e que na nossa interpretaccedilatildeo contribuiu para que seu sistema fosse
edificado como foi Embora possa ser duvidoso que o filoacutesofo a tenha compreendido tal como
exporemos aqui esperamos que nossos resultados a torne ao menos plausiacutevel79
A caracterizaccedilatildeo da metafiacutesica imanente de Schopenhauer em que a
coisa em si eacute apresentada como um lado do mundo que eacute um e o mesmo mundo da
representaccedilatildeo assim como a construccedilatildeo da experiecircncia pelo princiacutepio de razatildeo suficiente satildeo
maneiras de o filoacutesofo se posicionar no debate sobre a causaccedilatildeo do fenocircmeno pelo nuacutemeno e
sobre o lugar destinado a este uacuteltimo na filosofia Como veremos Schopenhauer procura
evitar os erros que Kant teria cometido sem prescindir do conceito de coisa em si
negligenciado pelos poacutes-kantianos Como afirma Alexis Philonenko em Schopenhauer
critique de Kant a separaccedilatildeo entre coisa em si e fenocircmeno eacute vista por Schopenhauer ao
mesmo tempo como o maior meacuterito de kantiano e como uma oportunidade de fechar a porta
violentamente aos poacutes-kantianos Antes de Schopenhauer a coisa em si havia sido ignorada
e escreve Philonenko ldquoSem tecirc-los lido [os textos Kant] atentamente nesse ponto a canalha
filosoacutefica havia descartado os textos e sonhado um kantismo sem coisa em si Ele mirava
entatildeo Reinhold S Maimon enquanto escutava Bardili Schulze Kiesewetterrdquo80
Natildeo
obstante como dissemos natildeo nos debruccedilaremos extensamente sobre essa histoacuteria que na
verdade jaacute foi bastante investigada e que de qualquer modo natildeo nos caberia expor de modo
minucioso81
O contexto do debate remete a 1785 quando Friedrich Heinrich Jacobi
78
Cf PP I Fragmente zur Geschichte der Philosophie sect 13 Fragmentos para a histoacuteria da filosofia Traduccedilatildeo
apresentaccedilatildeo e notas de Maria Luacutecia Cacciola Satildeo Paulo Iluminuras 2003 sect 13 79
Em geral comentadores que buscam as origens do pensamento de Schopenhauer procuram semelhanccedilas e
derivaccedilotildees de suas teses e conceitos a partir de pensadores contemporacircneos dele como Fichte e Schelling Nosso
propoacutesito eacute totalmente diferente mas o leitor interessado poderaacute encontrar uma interessante visatildeo alternativa agrave
nossa em ZOumlLLER Guumlnter German realism the self-limitation of idealist thinking in Fichte Schelling and
Schopenhauer In AMERIKS Karl (ed) The Cambridge Companion to German Idealism Cambridge
Cambridge University Press 2006 p 200-218 Nesse texto Zoumlller apresenta a proximidade entre as filosofias de
Fichte Schelling e Schopenhauer comparando-as no tocante agraves concepccedilotildees de real e ideal racional e irracional
conhecimento e voliccedilatildeo Explora aleacutem disso o que entende serem elementos de realismo em cada um deles
mostrando o que pode ser pensado como uma genealogia do pensamento de Schopenhauer 80
PHILONENKO A Schopenhauer critique de Kant Paris Les Belles Lettres 2005 p 250 (traduccedilatildeo nossa) 81
Uma histoacuteria pormenorizada pode ser encontrada em BONACCINI Juan Adolfo Kant e o problema da coisa
em si no Idealismo Alematildeo sua atualidade e relevacircncia para compreensatildeo do problema da Filosofia Rio de
Janeiro Relume Dumaraacute Natal UFRN Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia 2003
- 47 -
iniciou uma polecircmica que ficou conhecida como a ldquoquerela do panteiacutesmordquo
(Pantheismusstreit) e com ela um movimento que daria origem ao Idealismo Alematildeo o
chamado Spinoza-Renaissance A obra Sobre a doutrina de Espinosa em cartas o senhor
Moses Mendelssohn provocou uma disputa sobre Lessing morto em 1781 a quem Jacobi
acusou de espinozista o que significava entatildeo ser panteiacutesta e ateu Mendelssohn e outros
defendendo Lessing e o Iluminismo que ele representava fizeram frente a Jacobi e pediram a
intervenccedilatildeo de Kant Poreacutem ao entrar no debate depois de muita insistecircncia Kant posicionou-
se tanto contra Mendelssohn que lhe parecia um racionalista acriacutetico quanto contra Jacobi
cujas ideias lhe pareciam apenas fantasias82
Como se sabe a resposta kantiana se deu com o
texto O que quer dizer orientar-se no pensamento publicado na Berlinische Monatsschrift
em 1786 Para Jacobi no entanto a defesa que Kant elaborou significou o lanccedilamento de uma
nova questatildeo83
Em ldquoSobre o idealismo transcendentalrdquo escrito como apecircndice da obra
David Hume e a crenccedila idealismo e realismo Jacobi apresenta a emblemaacutetica aporia da coisa
em si notada por ele no sistema kantiano a qual orientou toda a discussatildeo Conforme Ernst
Cassirer Jacobi ldquo[] propotildee com brilhante sagacidade novos problemas e capta dificuldades
destinadas a determinar por muito tempo a forma da filosofia []rdquo84
No apecircndice
mencionado Jacobi expotildee o problema que nota na argumentaccedilatildeo kantiana citando lado a
lado passagens da esteacutetica transcendental e da criacutetica ao quarto paralogismo da razatildeo pura
sobre a idealidade Um esclarecimento adicional nesse ponto eacute interessante De acordo com
Paul Franks Jacobi lecirc a filosofia kantiana com uma motivaccedilatildeo e uma perspectiva particulares
a saber um fasciacutenio pela consideraccedilatildeo de seacuteries de condiccedilotildees infinitas85
Tanto a ideia de que
uma seacuterie pudesse ser infinita quanto a de que pudesse ser suprimida eram para ele fonte de
uma perplexidade que pode explicar muito de sua argumentaccedilatildeo Como escreve Franks
Jacobi procurava um ponto de vista estaacutevel como se sua proacutepria vida
dependesse disso Por isso a paacutegina do tiacutetulo de seu livro sobre Espinoza
trazia o lema ldquoδορ microοι πος ζηοrdquo (ldquoDecirc-me um ponto de apoiordquo) Eu suspeito
que ele tenha sido fortemente atraiacutedo pela ideia racionalista de
inteligibilidade infinita de uma serie finita que termina na causa sui Mas
ele comeccedilou a acreditar que essa ideia natildeo valia nada Desde que natildeo pocircde
viver com nenhuma das outras opccedilotildees sua soluccedilatildeo radical foi abandonar a
proacutepria ideia de razatildeo como condiccedilotildees explicativas e de razatildeo humana como
82
BECKENCAMP J Entre Kant e Hegel Porto Alegre EDUPUCRS 2004 p 13 83
Ibidem p 19 84
CASSIRER E op cit p 32 85
FRANKS P All or nothing systematicity and nihilism in Jacobi Reinhold and Maimon In AMERIKS Karl
(ed) The Cambridge Companion to German Idealism Cambridge Cambridge University Press 2006 p 97
- 48 -
a capacidade de compreender por que as coisas existem e satildeo como satildeo86
As passagens que Jacobi seleciona da criacutetica ao quarto paralogismo
expotildeem o pensamento de Kant acerca da possibilidade de harmonizaccedilatildeo numa perspectiva
dualista do idealismo transcendental com o realismo empiacuterico87
Nos fragmentos citados por
Jacobi Kant escreve que sem ir aleacutem da consciecircncia de si mesmo o idealismo transcendental
permite a admissatildeo da existecircncia da mateacuteria pois sendo esta uma representaccedilatildeo exterior
trata-se de mero fenocircmeno Jacobi ressalta o trecho em que Kant afirma ser a mateacuteria uma
intuiccedilatildeo chamada exterior apenas porque se refere ao espaccedilo que eacute a forma da sensibilidade
externa e natildeo porque os objetos mesmos sejam exteriores uma vez que o proacuteprio espaccedilo eacute
interno ao sujeito Na sequecircncia dos textos citados por Jacobi Kant argumenta acerca da
impossibilidade de se conhecer o objeto transcendental referente aos fenocircmenos O uacutenico que
se poderia fazer diz Kant nessas passagens seria admitir que a causa dos fenocircmenos estivesse
fora do sujeito o que natildeo permitiria poreacutem afirmar que essa exterioridade remetesse a um
objeto do tipo dos fiacutesicos pois a realidade destes se funda na consciecircncia imediata ou seja
natildeo eacute transcendente88
Kant reconhece a ambiguidade em se falar de algo ldquofora de noacutesrdquo jaacute que a
expressatildeo serve para designar tanto uma coisa em si como um fenocircmeno exterior preferindo
entatildeo para indicar este uacuteltimo denominaacute-lo ldquocoisa no espaccedilordquo89
Assim ficaria mais claro que
o acircmbito que estaacute sendo referido eacute o da representaccedilatildeo e que a possibilidade de se ter
consciecircncia imediata dos objetos representados se refere a objetos no espaccedilo que satildeo eles
proacuteprios somente representaccedilotildees e contecircm apenas o que neles eacute representado Determinaccedilotildees
semelhantes poreacutem natildeo poderiam ser feitas em relaccedilatildeo ao objeto transcendental nem ao
sujeito cognoscente uma vez que ambos remeteriam a um fundamento desconhecido natildeo
podendo ser chamados portanto nem de mateacuteria nem de ser pensante
No tocante agrave esteacutetica transcendental Jacobi cita passagens em que Kant
se refere agrave idealidade transcendental do tempo A argumentaccedilatildeo kantiana sobre esse ponto
mostra que a realidade do tempo natildeo deriva das alteraccedilotildees que percebemos nos objetos
empiacutericos o que faria parecer que de algum modo ela adveacutem de fora Na verdade essa
86
Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 87
JACOBI F H Excertos de Uumlber den transzendentalen Idealismus Traduccedilatildeo de Leopoldina Almeida In GIL
Fernando (coord) Recepccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant (1786-1844) Lisboa
Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1992 p 102-103 88
Ibidem p 102 89
Ibidem p 103
- 49 -
realidade proveacutem de o tempo ser a forma real da intuiccedilatildeo interna tendo portanto uma
realidade subjetiva90
A representaccedilatildeo do tempo entatildeo deve ser tomada como modo de se
representar o sujeito enquanto objeto e essa eacute sua realidade A visatildeo habitual a respeito do
tempo toma as alteraccedilotildees dos objetos empiacutericos como manifestaccedilotildees da realidade dele mas
diz Kant sem a sucessatildeo que ele significa as proacuteprias alteraccedilotildees desapareceriam Os objetos
tomados por reais desse modo seriam determinaccedilotildees internas ao sujeito e natildeo possuiriam de
fato existecircncia em si seriam como um jogo de representaccedilotildees91
Da mesma maneira as leis
a ordem e a regularidade percebidas nos fenocircmenos da natureza seriam determinaccedilotildees
advindas do sujeito a priori natildeo sendo entatildeo reais no sentido comum A proacutepria experiecircncia
seria forjada desse modo e o entendimento seria a faculdade agrave qual cabe a legislaccedilatildeo da
natureza
A partir dos fragmentos que cita Jacobi conclui haver uma
incompatibilidade entre as afirmaccedilotildees de que os objetos causam impressotildees nos sentidos
provocando sensaccedilotildees e originando as representaccedilotildees e de que do objeto transcendental nada
se sabe Para ele os objetos que causam as impressotildees natildeo podem ser os empiacutericos que natildeo
se estendem aleacutem da representaccedilatildeo e ao mesmo tempo do objeto transcendental nada se
pode a rigor dizer O fenocircmeno escreve Jacobi ldquo[] natildeo pode estabelecer relaccedilatildeo alguma
entre essas tais representaccedilotildees e qualquer objetordquo92
No entanto ele continua mesmo sendo
estranho afirmar no acircmbito da filosofia kantiana que os objetos transcendentais
impressionam os sentidos e provocam representaccedilotildees essa pressuposiccedilatildeo eacute fundamental para
a doutrina Pois ele afirma
[] a palavra sensibilidade fica privada de todo e qualquer significado se natildeo
se entender por ela um meio distinto e real entre o real e o real um meio
efectivo de alguma coisa para alguma coisa e se no seu conceito natildeo
estiverem contidos os conceitos de estar separado e estar conectado de ser
ativo e ser passivo de causalidade e dependecircncia como determinaccedilotildees reais
e objectivas []93
Por conseguinte a admissatildeo de um objeto que natildeo seja meramente
fenocircmeno a agir sobre os sentidos eacute absolutamente necessaacuteria para que as representaccedilotildees e os
conceitos tenham validade objetiva isto eacute para que natildeo sejam pura e simplesmente jogo de
representaccedilotildees No entanto como o acesso agrave coisa em si eacute fechado pelo pensamento kantiano
90
Ibidem p 104 91
Ibidem p 105 92
Ibidem p 106 93
Ibidem p 106 (grifos do autor)
- 50 -
dela natildeo se poderia dizer nem mesmo que estaacute pressuposta Daiacute a ceacutelebre sentenccedila de Jacobi
ldquo[] eu ficava continuamente perplexo porque natildeo podia penetrar no sistema sem aquele
pressuposto e com ele natildeo podia aiacute permanecerrdquo94
Na formulaccedilatildeo de Cassirer
Ao longo de toda a Criacutetica da razatildeo pura percebe-se esse dualismo entre
pressupostos realistas e idealistas entre suas premissas objetivo-metafiacutesicas
e metodoloacutegico-conceituais Natildeo se pode prescindir de nenhuma delas na
construccedilatildeo do mundo especulativo kantiano embora cada uma delas se
encontre diretamente em oposiccedilatildeo agrave outra95
Mesmo se admitirmos uma causa transcendental dos fenocircmenos diz
Jacobi natildeo haveraacute como saber onde ela se situa nem sua relaccedilatildeo com o efeito Aleacutem disso ele
prossegue aquilo que daacute a forma agrave representaccedilatildeo que daacute a ela feiccedilatildeo de objeto estaacute fundado
em uma espontaneidade que ao fim eacute ancorada em uma faculdade desconhecida a saber
uma ldquo[] faculdade cega de estabelecer conexotildees progressivas e regressivas a que chamamos
imaginaccedilatildeordquo96
No fim de contas todo e qualquer conhecimento seria reduzido agrave consciecircncia
das representaccedilotildees das ligaccedilotildees de conceitos e de princiacutepios gerais que constituem o proacuteprio
sujeito A validade dessas determinaccedilotildees eacute entatildeo meramente relativa dada apenas pela sua
conexatildeo em uma consciecircncia transcendental No entanto Jacobi pergunta ldquo[] como eacute
possiacutevel combinar o pressuposto de objetos que causam impressotildees nos nossos sentidos
suscitando desse modo representaccedilotildees com uma doutrina que pretende anular todas as bases
em que se apoia este pressupostordquo97
No segundo prefaacutecio ao seu diaacutelogo David Hume e a crenccedila idealismo e
realismo escrito trinta anos depois da primeira ediccedilatildeo de 1797 Jacobi apresenta o problema
em outra perspectiva bastante interessante Nesse texto ele discorre a respeito da distinccedilatildeo
entre razatildeo e entendimento que teria sido feita de modo errocircneo e ambiacuteguo inclusive por ele
mesmo98
Jacobi argumenta que uma distinccedilatildeo rigorosa entre entendimento e razatildeo estaacute
pressuposta na separaccedilatildeo radical entre ser humano e animal a qual natildeo seria uma diferenccedila
meramente de graus mas de natureza O animal mesmo o mais inteligente possuiria somente
entendimento e natildeo perceberia nada aleacutem do sensiacutevel enquanto o ser humano em funccedilatildeo da
94
Ibidem p 107 (grifos do autor) 95
CASSIRER E op cit p44-45 96
JACOBI F H Excertos de Uumlber den transzendentalen Idealismus Traduccedilatildeo de Leopoldina Almeida In GIL
Fernando (coord) Recepccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant (1786-1844) Lisboa
Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1992 p 108 97
Ibidem loc cit 98
JACOBI F H David Hume et la croyance ideacutealisme et reacutealisme Dialogue Introduit traduit et annoteacute par
Louis Guillermit Paris Librarie Philosophique J Vrin 2000 p 127
- 51 -
razatildeo teria a possibilidade de conhecer o suprassensiacutevel O ponto central da visatildeo de Jacobi e
ao mesmo tempo o nuacutecleo de sua criacutetica agrave filosofia kantiana eacute que se a razatildeo apoiar-se
somente no sensiacutevel como sua pedra de toque acabaraacute por se tornar uma faculdade que
produz meras ficccedilotildees Para ele Kant apenas deu continuidade agrave tradiccedilatildeo de Aristoacuteteles cuja
influecircncia determinou que a razatildeo fosse entendida como uma faculdade de geraccedilatildeo de
conceitos e abstraccedilatildeo e nessa condiccedilatildeo fosse subordinada ao entendimento Entatildeo o
conhecimento imediato teria sido submetido ao mediato a percepccedilatildeo agrave reflexatildeo na verdade
ldquoo modelo agrave coacutepia o ser agrave palavrardquo99
Kant diz Jacobi inverteu as posiccedilotildees de razatildeo e
entendimento e permitiu a conclusatildeo de que passando por entre a sensibilidade e elevando-se
acima dela nunca se poderia alcanccedilar o suprassensiacutevel com a razatildeo ou com outra faculdade
qualquer
Natildeo obstante o caminho para se alcanccedilar o suprassensiacutevel existiria e
seria completamente diferente Como afirma Victor Delbos em De Kant aux postkantiens
ldquoJacobi sustenta que noacutes podemos atingir a realidade do mundo exterior como a dos objetos
suprassensiacuteveis mas pelo sentimento a intuiccedilatildeo ou a feacute de qualquer modo por uma
faculdade que natildeo se reporte ao entendimento loacutegicordquo100
No mesmo sentido Cassirer escreve
que ldquoA explicaccedilatildeo soacute eacute para ele um meio um caminho ateacute uma meta o fim proacuteximo mas
nunca o fim uacuteltimo Seu fim uacuteltimo eacute o que natildeo se pode explicar o indissoluacutevel o imediato o
simplesrdquo101
Jacobi admite que esse fim uacuteltimo possa ser alcanccedilado nas accedilotildees tal como
fundamentado na Criacutetica da Razatildeo Praacutetica isto eacute que somente no acircmbito praacutetico eacute que a
razatildeo poderia ultrapassar o entendimento e alcanccedilar o suprassensiacutevel Do ponto de vista da
razatildeo teoacuterica poreacutem Kant estabeleceu que o suprassensiacutevel natildeo pode ser alcanccedilado a partir
do sensiacutevel ao qual unicamente o intelecto se dirige
Todavia no entender de Jacobi com o mesmo procedimento que se
garantia isso eliminava-se a possibilidade de todo e qualquer conhecimento A depuraccedilatildeo
extrema da sensibilidade teria levado a uma dissoluccedilatildeo completa de toda possibilidade de
conhecer na medida em que ela deixava de ser faculdade de uma verdadeira percepccedilatildeo Com
isso o que os sentidos apresentam deixa de ser visto como verdadeiro e ateacute mesmo a mateacuteria
torna-se simples representaccedilatildeo e fenocircmeno Portanto escreve Jacobi ldquo[] o idealismo
99
Ibidem p 128 (traduccedilatildeo nossa) 100
DELBOS V De kant aux postkantiens Introduction par Alexis Philonenko Preface de Maurice Blondel
Paris Aubier 1992 p 141 (traduccedilatildeo nossa) 101
CASSIRER E op cit p 33
- 52 -
transcendental ou criticismo kantiano que devia comeccedilar tornando possiacutevel a verdadeira
ciecircncia deixa ao contraacuterio a ciecircncia se perder na ciecircncia o entendimento no entendimento
todo conhecimento sem exceccedilatildeo num abismo universal[]rdquo102
Partindo do sensiacutevel e sem
deixar espaccedilo a uma faculdade superior a essa esfera o que se consegue eacute apenas girar em
falso sobre o que pode ser objeto de intuiccedilatildeo sem nunca escapar ao ciacuterculo fechado da
experiecircncia Mais do que isso ao fim e ao cabo mesmo a ciecircncia empiacuterica se perderia jaacute que
o objeto conhecido natildeo poderia ser atrelado a nada que natildeo fosse o proacuteprio sujeito Em
resumo na exposiccedilatildeo de Cassirer
ldquoDeduzimosrdquo conclusotildees de suas premissas passamos de um elo a outro na
cadeia das deduccedilotildees para a frente e para traacutes avanccedilando ou retrocedendo ao
infinito sem que toda essa cadeia nos subtraia do vazio sobre o qual se
prende Por esse caminho das deduccedilotildees e conclusotildees natildeo chegaremos
jamais a um ponto originaacuterio sobre o qual possamos afirmar solidamente a
raiz de nosso conhecimento Assim pois ou nos vemos obrigados a negar
totalmente o postulado dessa proveniecircncia ou temos de buscar outro
caminho para dar-lhe realizaccedilatildeo descobrindo outro oacutergatildeo espiritual por meio
do qual possamos verdadeiramente alcanccedilar este objetivo103
O amigo e disciacutepulo de Kant Karl L Reinhold influenciou esse debate
embora de modo indireto Julgando estar oferecendo contribuiccedilotildees agrave filosofia criacutetica acabou
por evidenciar uma lacuna dela ao procurar uma saiacuteda para a ausecircncia de uma fundaccedilatildeo
soacutelida na teoria do conhecimento kantiana Cassirer informa a esse respeito que dentre os
primeiros partidaacuterios de Kant Reinhold figurava como o melhor inteacuterprete de suas ideias e
como aquele que havia oferecido autecircntica soluccedilatildeo aos problemas postos pela Criacutetica da
Razatildeo Pura104
Natildeo obstante ele forneceu ainda mais razotildees para que fossem apontadas as
falhas e o dualismo da filosofia kantiana Nesse sentido afirma Paul Franks
Reinhold tornou-se kantiano para responder agrave necessidade levantada por
Jacobi de um uacutenico ponto de vista estaacutevel que conectasse adequadamente
razatildeo e feacute Mas ele tambeacutem foi convencido por Jacobi de que tal ponto de
vista deveria ter o monismo sistemaacutetico do espinozismo E isso levou
Reinhold involuntariamente a minar o dualismo kantiano por meio do
proacuteprio procedimento que desenvolveu para defendecirc-lo105
Reinhold encontra na noccedilatildeo de representaccedilatildeo o fundamento que busca e
no tocante agrave coisa em si entende que embora tenha de estar pressuposta eacute desnecessaacuterio
102
JACOBI F H David Hume et la croyance ideacutealisme et reacutealisme Dialogue Introduit traduit et annoteacute par
Louis Guillermit Paris Librarie Philosophique J Vrin 2000 p 131 (traduccedilatildeo nossa) 103
CASSIRER E op cit p 33 (grifos do autor) 104
Ibidem p 50-51 105
FRANKS P op cit p 102 (traduccedilatildeo nossa)
- 53 -
discorrer sobre ela para embasar uma teoria da faculdade representativa Como explica
Delbos ldquoSem duacutevida ele evita dizer que as coisas em si nos afetam que elas fornecem a
mateacuteria de nossas sensaccedilotildees contudo da natureza da representaccedilatildeo ele tenta deduzir tanto a
impossibilidade de que as coisas em si sejam representadas quanto a necessidade de sua
existecircnciardquo106
A representaccedilatildeo diz Reinhold eacute distinta tanto do sujeito representante quanto
do objeto representado e eacute somente a ela que a teoria deve se ater ou nas palavras de
Cassirer ldquoO que se trata de indagar natildeo satildeo os fundamentos fiacutesicos ou metafiacutesicos dos
conteuacutedos aniacutemicos mas o que sejam esses conteuacutedos e as ordenaccedilotildees constantes em que se
enquadremrdquo107
Na concepccedilatildeo de Reinhold haacute uma diferenccedila inexpugnaacutevel entre o objeto
da representaccedilatildeo e a pura e simples representaccedilatildeo108
No seu entender esse era um ponto
paciacutefico da discussatildeo pois tanto os idealistas quanto os ceacuteticos estariam de acordo no tocante
agrave distinccedilatildeo entre a mera representaccedilatildeo o ser representante e o objeto representado Para ele
esse poderia ser o ponto inicial da investigaccedilatildeo com o que se tornaria inoacutecuo entrar no debate
acerca do que satildeo e de como existem os objetos fora do sujeito Entatildeo ele afirma ldquo[] como
eu quero simplesmente conhecer a diferenccedila que se admitiu acontecer na proacutepria consciecircncia
sem me meter com o seu fundamento situado fora da consciecircncia natildeo entro em conflito com
nenhum partido acerca do nome que a cada um lhe apetecer dar-lherdquo109
Do mesmo modo a
investigaccedilatildeo que busca encontrar a natureza e a estrutura da consciecircncia natildeo precisaria passar
pela alma mas somente pelas condiccedilotildees internas de possibilidade da representaccedilatildeo Como
escreve Cassirer ldquo[] Reinhold distingue agora a determinaccedilatildeo da funccedilatildeo do conhecimento
enquanto tal do problema da substacircncia a que esta funccedilatildeo pode ser inerente e dos objetos
externos que devem se acrescentar a ela para pocirc-la em atividaderdquo110
Seguindo essa linha de raciociacutenio Reinhold argumenta que a coisa em si
eacute absolutamente irrepresentaacutevel Mais que isso seria contraditoacuterio representaacute-la pois
equivaleria agrave representaccedilatildeo de um objeto sem as uacutenicas formas em que isso poderia se dar
Para ele a mateacuteria da representaccedilatildeo e sua forma jamais podem apresentar-se agrave consciecircncia
106
DELBOS V op cit p 144 (traduccedilatildeo nossa) 107
CASSIRER E op cit p 51 (grifos do autor) 108
REINHOLD K L Excertos de Briefe uumlber die kantische Philosophie e de Versuch einer neuen Theorie des
menschlichen Vorstellungsvermoumlgen Traduccedilatildeo de Irene Borges Duarte In GIL Fernando (coord) Recepccedilatildeo
da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant (1786-1844) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste
Gulbenkian 1992 sect VII p 180 109
Ibidem loc cit (grifos do autor) 110
CASSIRER op cit p 55
- 54 -
isoladamente pois a separaccedilatildeo de mateacuteria e forma aniquilaria a proacutepria representaccedilatildeo111
O
objeto tomado como distinto da representaccedilatildeo somente pode surgir nesta como algo
representado isto eacute na forma dada por ela Portanto ele natildeo poderia aparecer-nos como coisa
em si isto eacute ldquo[] sob a forma que lhe correspondesse independentemente de toda a
representaccedilatildeo que seria indicada pela mera mateacuteria da representaccedilatildeo e que seria
necessariamente diferente da forma da representaccedilatildeordquo112
A mateacuteria da representaccedilatildeo seria
distinta tanto da proacutepria representaccedilatildeo quanto do objeto resumindo-se agraves modificaccedilotildees da
faculdade representativa as quais seriam determinadas de algum modo pelo objeto sem no
entanto confundirem-se com ele113
Na explicaccedilatildeo de Cassirer
O ser dado da mateacuteria natildeo significa senatildeo uma coisa a saber que sua
natureza especiacutefica natildeo pode se derivar das puras leis formais do
conhecimento o modo como se daacute isto eacute o processo mediante o qual o
dado se cria traz consigo pelo contraacuterio a ideia de uma causa transcendente
que eacute a que ldquodaacuterdquo algo ideia que necessariamente se deve descartar desde
logo laacute onde se trata simplesmente de definir as condiccedilotildees ldquointerioresrdquo da
representaccedilatildeo114
Por conseguinte a coisa em si soacute seria representaacutevel com a exclusatildeo da
forma da representaccedilatildeo o que eacute inconcebiacutevel Apesar disso para Reinhold o conceito
intelectual de coisa em si natildeo pode ser simplesmente eliminado mas tem de permanecer como
conceito de um objeto em geral um ente loacutegico ainda que natildeo dotado de realidade115
De
acordo com isso natildeo se poderaacute pensaacute-la como algo individualizado e realmente existente
pois desse modo seraacute transformada em representaccedilatildeo No entanto diz Reinhold a coisa em si
tambeacutem natildeo pode ser negada sendo ela o proacuteprio objeto naquilo que natildeo pode ser
representado o fundamento exterior da mateacuteria da representaccedilatildeo Da coisa em si pode-se
dizer que natildeo eacute representaacutevel natildeo adicionando a ela nenhum predicado positivo mas tambeacutem
que eacute indispensaacutevel agrave representaccedilatildeo jaacute que sem ela natildeo haveria a mateacuteria tatildeo necessaacuteria
quanto a forma Assim a coisa em si natildeo seria um ente real mas o conceito mais abstrato de
algo que natildeo pode ser representado um sujeito sem predicados Reinhold entatildeo extrai o
seguinte axioma ldquoAquilo que natildeo possa ser representado sob a forma da representaccedilatildeo eacute
111
REINHOLD op cit sect XVII p 191 112
Ibidem p 192 113
Reinhold ilustra este ponto do seguinte modo ldquoQuem quiser ter uma imagem intuitiva da diferenccedila entre
mateacuteria e objeto de uma representaccedilatildeo pense numa aacutervore a uma distacircncia que torne impossiacutevel divisar qual a
sua espeacutecie forma e tamanho assim como as suas qualidades mais proacuteximas Aproxime-se entatildeo pouco a
pouco da aacutervore nessa mesma proporccedilatildeo a sua representaccedilatildeo iraacute adquirindo mais e mais mateacuteria A mateacuteria da
sua representaccedilatildeo ir-se-aacute modificando aumentando enquanto que o objeto em si permaneceraacute sempre o mesmordquo
Ibidem sect VX p 183 (grifos do autor) 114
CASSIRER op cit p 68 (grifos do autor) 115
REINHOLD op cit sect XVII p 193
- 55 -
absolutamente irrepresentaacutevelrdquo116
O princiacutepio da consciecircncia definido como a conexatildeo de
elementos distintos na unidade de um intelecto seraacute o alicerce uacuteltimo da filosofia elementar
de Reinhold que natildeo poderia ser suprido por nenhuma coisa em si Por meio desse princiacutepio
a representaccedilatildeo eacute deduzida da consciecircncia que eacute diz Cassirer ldquo[] o fundamento da filosofia
elementar fundamento que natildeo pode sem incorrer em um ciacuterculo vicioso apoiar-se por sua
vez em nenhum outro princiacutepio filosoficamente demonstraacutevelrdquo117
Gottlob E Schulze tambeacutem acrescentou ideias importantes ao debate Em
seu texto Aenesidemus oder uumlber die Fundamente der von dem Hrn Prof Reinhold in Jena
gelieferten Elementar-philosophie publicado em 1792 ele critica a obra de Reinhold em uma
perspectiva ceacutetica visando atingir a filosofia de Kant No fim de contas como mostra
Cassirer o ceticismo de Schulze e o pensamento de Reinhold movem-se no mesmo terreno a
saber o de encontrar o primeiro princiacutepio evidente da filosofia e que com base nos seus
proacuteprios fundamentos a criacutetica kantiana deveria fornecer118
Schulze insiste no erro que
significa pressupor a coisa em si como fundamento dos fenocircmenos o que implicaria utilizar a
causalidade para aleacutem da experiecircncia isto eacute indevidamente Com Schulze o impasse jaacute
apontado por Jacobi fica ainda mais claro e evidente a coisa em si teria necessariamente de
estar pressuposta mas ao mesmo tempo natildeo se poderia afirmar absolutamente nada sobre
ela como por exemplo que existisse que causasse os fenocircmenos e nem mesmo isto a saber
que estivesse realmente pressuposta Permanece entatildeo de fundo e difusamente a questatildeo de
saber em que se apoiaraacute a aparecircncia fenomecircnica sem algo que seja de algum modo sua
fundaccedilatildeo Nesse sentido Schulze escreve em sua obra Kritik der theoretischen Philosophie
Se por conseguinte o que a criacutetica da razatildeo alega saber acerca dos
fundamentos da experiecircncia eacute um conhecimento real teraacute de reputar como
absolutamente falsa sua afirmaccedilatildeo de que toda visatildeo verdadeira de nosso
espiacuterito se circunscreve simplesmente aos objetos da experiecircncia Ao
contraacuterio se essa afirmaccedilatildeo fosse exata toda visatildeo das fontes da experiecircncia
como um todo teria de ser considerada como uma vazia aparecircncia119
No Aenesidemus Schulze descreve de modo claro e expliacutecito o embaraccedilo
que surge na filosofia criacutetica em funccedilatildeo da afirmaccedilatildeo de que a coisa em si tem de estar
necessariamente pressuposta na base de todo fenocircmeno e simultaneamente que os
conhecimentos possiacuteveis agrave sensibilidade ao entendimento e agrave razatildeo referem-se somente agrave
116
Ibidem p 195 (grifos do autor) 117
CASSIRER op cit p 61(grifos do autor) 118
CASSIRER op cit p 81 119
Apud CASSIRER op cit p 89
- 56 -
experiecircncia Para ele se for realmente assim deve-se concluir que todo conhecimento eacute
apenas aparecircncia para aleacutem da qual absolutamente nada se pode afirmar120
Nesse caso
resume Cassirer ldquoO resultado da Criacutetica da razatildeo pura consiste em que soacute podemos chegar a
um conhecimento seguro e necessaacuterio dos objetos da experiecircncia e que bdquotodo conhecimento
das coisas baseado no simples e puro entendimento ou na razatildeo pura eacute mera aparecircncia‟rdquo121
No entanto conforme Schulze a conclusatildeo de Kant eacute contraacuteria a isso pois este natildeo admite
que as representaccedilotildees sejam vazias e as apresenta como a uniatildeo da mateacuteria que seria externa
com a forma interna ao sujeito Assim as intuiccedilotildees natildeo seriam vistas como mera aparecircncia
por Kant e a existecircncia de objetos externos que afetam os sentidos seria aquilo que garantiria
o realismo empiacuterico ao lado do idealismo transcendental Nas palavras de Schulze
Embora pois a criacutetica da razatildeo afirme que todas as propriedades que
constituem a intuiccedilatildeo de um corpo apenas pertencem ao seu fenocircmeno natildeo
pretende com isso ter transformado o conhecimento sensorial em pura
aparecircncia ou ter anulado em absoluto o conhecimento da realidade
objectiva de certos objetos exteriores a noacutes antes deriva o que haacute de
acidental e mutaacutevel no nosso conhecimento da influecircncia destes objetos
sobre a alma humana122
A investigaccedilatildeo transcendental teria entatildeo de encontrar um fundamento
para a experiecircncia que natildeo fosse ele mesmo objeto de experiecircncia123
Embora Kant inicie a
Criacutetica da razatildeo pura afirmando que todo conhecimento comeccedila com objetos que afetam os
sentidos no desenvolvimento do seu pensamento ele tornaria essa afecccedilatildeo impossiacutevel Na
interpretaccedilatildeo de Delbos isso para Schulze significa que ldquoEm consequecircncia a proposiccedilatildeo
inicial da Criacutetica resulta desmentida pela Criacutetica mesmardquo124
Segundo Schulze Kant parte no
entanto da certeza da existecircncia de coisas em si que afetam os sentidos fundamentando com
ela os limites da faculdade de conhecer Soacute assim eacute que teria podido explicar e tornar
compreensiacutevel a origem dos objetos da experiecircncia e ao mesmo tempo demonstrar a
necessidade de uma fonte interna das representaccedilotildees distinta daquela fonte externa Na
concepccedilatildeo de Schulze resultam daiacute uma peticcedilatildeo de princiacutepio e uma anulaccedilatildeo de resultados
A proacutepria criacutetica da razatildeo avanccedila a proposiccedilatildeo todo o conhecimento
humano comeccedila com a influecircncia de objectos objectivamente existentes
sobre os nossos sentidos e estes objectos proporcionam o primeiro ensejo
120
SCHULZE G E Excerto de Aenesidemus Traduccedilatildeo de Sara Seruya In GIL Fernando (coord) Recepccedilatildeo
da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant (1786-1844) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste
Gulbenkian 1992 p 259-260 121
CASSIRER E op cit p 88 (grifos do autor) 122
SCHULZE GE p 261 (grifos do autor) 123
CASSIRER E op cit p 88 124
DELBOS op cit p 147 (traduccedilatildeo nossa)
- 57 -
para que nosso acircnimo se manifeste natildeo soacute sem qualquer prova e como
proposiccedilatildeo em si totalmente assente e incontestavelmente certa e refutando
portanto os fantasmas do cepticismo e do idealismo atraveacutes de uma
proposiccedilatildeo aceite a modo de peticcedilatildeo cuja verdade ambos negavam mas
tambeacutem os seus proacuteprios resultados anulam completamente a verdade dessa
proposiccedilatildeo admitia a modo de peticcedilatildeo125
Schulze critica ainda a aplicaccedilatildeo do conceito de causalidade agraves coisas em
si como um uso indevido de um conceito puro Os objetos fora do sujeito teriam de ser
capazes de agir sobre ele isto eacute possuir causalidade sobre nosso intelecto para que
formaacutessemos representaccedilotildees deles Nesse caso poreacutem a causalidade seria atributo dos
objetos na condiccedilatildeo de coisas fora de noacutes e em si o que se oporia a todo o edifiacutecio da criacutetica
kantiana e faria as consequecircncias se voltarem contra as premissas126
O mesmo ocorre com a
categoria da existecircncia que natildeo pode ser aplicada a objetos que estejam fora do tempo No
entanto diz Schulze embora seja certo que o objeto para aleacutem das representaccedilotildees natildeo eacute uma
intuiccedilatildeo ele natildeo pode por isso ser um mero nada isto eacute ldquodeve ser algo de realiter distinto e
independente das mesmasrdquo127
o que estaacute completamente excluiacutedo do sistema kantiano Natildeo
se poder aplicar a esse algo os conceitos de causa ou de existecircncia e escreve Schulze ldquo[] se
eacute certa a deduccedilatildeo transcendental das categorias que a criacutetica da razatildeo apresentou tambeacutem eacute
errado e falso um dos princiacutepios fundamentais da mesma que todo o conhecimento comeccedila
com a acccedilatildeo de objectos objectivos sobre o nosso acircnimordquo128
Por conseguinte Kant deveria
ter demonstrado que o intelecto natildeo eacute a fonte uacutenica de todo conhecimento e explicado o
porquecirc disso
No mesmo sentido jaacute argumentado por Jacobi Schulze conclui que a
criacutetica kantiana acaba por demolir a possibilidade de todo e qualquer conhecimento
verdadeiro Sobre isso Cassirer afirma que ldquoNa trajetoacuteria dos pensamentos fundamentais
desenvolvidos na obra Aenesidemus haacute plena clareza sobre um ponto a saber o de que toda
duacutevida ilimitada toda duacutevida que recai sobre a totalidade do saber destroacutei-se a si mesma e
perde seu proacuteprio sentido e razatildeo de serrdquo129
Para que natildeo se reduza a mera aparecircncia o
conhecimento teraacute entatildeo de receber sua realidade de algo externo ao puro intelecto130
No
entanto ao se defender a incognoscibilidade da coisa em si e ao mesmo tempo a causalidade
como um princiacutepio subjetivo de conexatildeo de representaccedilotildees natildeo se poderaacute pressupor uma
125
SCHULZE op cit p 261 (grifos do autor) 126
Ibidem p 262 127
Ibidem p 263 128
Ibidem loc cit 129
CASSIRER E op cit p 79 (grifos do autor) 130
SCHULZE G E op cit p 264
- 58 -
accedilatildeo causal entre estas e algo distinto delas ldquoPoisrdquo diz Schulze ldquoo que me eacute totalmente e em
todos os seus atributos e propriedades desconhecido tambeacutem dele natildeo posso saber que
existe que se encontra realmente em uma ligaccedilatildeo comigo e que eacute capaz de efectuar ou
produzir algordquo131
Como resultado todo o conhecimento humano teraacute de ser considerado mera
aparecircncia e o idealismo radical que natildeo concede existecircncia real aos fenocircmenos natildeo estaraacute
refutado132
A contribuiccedilatildeo de Jacob S Beck a essa discussatildeo estaacute na sua
argumentaccedilatildeo tambeacutem em diaacutelogo criacutetico com Reinhold sobre o verdadeiro princiacutepio do
conhecimento Como informa Cassirer Beck considera que aquelas contradiccedilotildees e
dissonacircncias que parecem surgir no texto kantiano satildeo resultado natildeo da incompatibilidade
entre as ideias mas do modo exigido pela exposiccedilatildeo que deve ser paulatina e observar a
adaptaccedilatildeo do leitor a um ponto de vista totalmente novo133
A origem e o fundamento de todo
o conhecimento seria o ato original de representar jaacute descrito por Kant mas cujo ponto
central natildeo teria sido ainda adequadamente evidenciado134
Beck julga importante para isso
diferenciar as categorias que ele entende como representaccedilotildees originais dos simples
conceitos de objetos Ao se pensaacute-las como conceitos eacute que surgiriam o problema de saber
como a representaccedilatildeo se liga ao objeto e com isso todas as duacutevidas com relaccedilatildeo agrave coisa em
si Segundo Cassirer Beck revela de modo magistral a totalidade do sistema kantiano e
demonstra que natildeo haacute qualquer relaccedilatildeo entre a coisa em si e o objeto do conhecimento
tratando-se entatildeo de um problema vazio pois o proacuteprio nexo que aiacute se busca por assim dizer
natildeo tem nada dentro Como ele afirma
O autecircntico meacutetodo kantiano o meacutetodo transcendental natildeo consiste
simplesmente em deslocar agrave oacuterbita da consciecircncia os elementos que ateacute
agora se situavam na oacuterbita das coisas mas se apoia sobre a ideia de que a
separaccedilatildeo e a divisatildeo que serve de base a tudo isso responde a um conceito
falso e contraditoacuterio135
Sem que se perceba esse ponto fundamental da teoria kantiana diz Beck
natildeo se esclarece o modo como as categorias formam a base dos conceitos e os tornam
131
Ibidem loc cit 132
Ibidem p 265-266 133
CASSIRER op cit p 92 134
BECK J S Exerto de Erlaumluternder Auszug aus den Schriften des Herrn Professor Kant (Extracto elucidativo
dos escritos do Sr Prof Kant) Traduccedilatildeo de Ana Maria Benite In GIL Fernando (coord) Recepccedilatildeo da Criacutetica
da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant (1786-1844) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1992 p
283 135
CASSIRER op cit p 95
- 59 -
compreensiacuteveis O princiacutepio maacuteximo do conhecimento natildeo seria uma representaccedilatildeo
conceitual mas um postulado concebido como o ldquorepresentar originariamenterdquo136
Esse ato
de representar natildeo se identificaria com a representaccedilatildeo de um objeto qualquer que jaacute seria um
conceito determinado e com caracteriacutesticas essenciais Seria antes algo como uma
representaccedilatildeo original da geometria por exemplo que natildeo se ocupa da explicaccedilatildeo do espaccedilo
nem o busca em outra ciecircncia mas simplesmente o postula137
Delbos explica que Beck
concordava com a tese kantiana de afecccedilatildeo dos sentidos mas natildeo realizada por coisas em si e
sim por fenocircmenos O princiacutepio dessa afecccedilatildeo natildeo proviria de quaisquer tipos de entidades
mas do ato mesmo de representar Nas palavras de Delbos ldquo[] esse ato ligando
sinteticamente as representaccedilotildees segundo o princiacutepio de causalidade torna-as objetivas por
um tipo de reconhecimento originaacuterio e constitui assim os fenocircmenos pelos quais somos
afetadosrdquo138
O espaccedilo segundo Beck eacute ele proacuteprio a siacutentese originaacuteria do homogecircneo isto eacute
uma representaccedilatildeo primordial natildeo existente antes mas criada nesse mesmo ato que eacute mais
exatamente um intuir Para exemplificar esse ponto Beck afirma que
A representaccedilatildeo do espaccedilo eacute muito diferente deste representar original pois
ela jaacute eacute conceito Tenho um conceito de linha recta isto eacute algo de diferente
de traccedilar eu uma linha recta (sintetizar originariamente) Tenho tambeacutem o
conceito de um bi-acircngulo rectiliacuteneo embora neste caso natildeo haja
representaccedilatildeo original139
De acordo com isso a perspectiva correta a ser adotada eacute a de que o ato
de unificaccedilatildeo do muacuteltiplo na unidade da consciecircncia natildeo eacute dado por meio de um conceito A
conexatildeo do muacuteltiplo seria dada por um ato que natildeo estaria presente de antematildeo em nenhum
objeto e por meio do qual seriam formados esse mesmo objeto e o proacuteprio muacuteltiplo Entatildeo
diz Cassirer para Beck bastaria abrir os olhos do entendimento ldquoisto eacute restabelecer as
condiccedilotildees a que se ajusta a possibilidade da experiecircncia a uacutenica acerca da qual cabe emitir
juiacutezos sobre objetos para que se evaporem como vazios fantasmas de nossa proacutepria fantasia
as formas que no iniacutecio nos amedrontavamrdquo140
O esquematismo transcendental eacute outra atividade originaacuteria chamada por
Beck de reconhecimento original141
que tambeacutem natildeo conduz a um conceito de objeto mas a
outro tipo de representaccedilatildeo primordial a saber o tempo Como ele explica ldquoEacute atraveacutes desta
136
BECK op cit p 283 137
Ibidem loc cit 138
DELBOS op cit P 149 (traduccedilatildeo nossa) 139
BECK op cit p 284 140
CASSIRER op cit p 96 141
BECK op cit p 285
- 60 -
fixaccedilatildeo do tempo que eu fixo aquela siacutentese original e obtenho o conceito de uma determinada
forma []rdquo142
Natildeo se poderia falar em um muacuteltiplo dado antes da siacutentese originaacuteria e do
reconhecimento ou seja antes que o entendimento originalmente crie aquela unidade objetiva
sinteacutetica Perder essa perspectiva seria perder a clareza e cair em constantes embaraccedilos ldquopoisrdquo
diz Beck ldquofaccedila ele o que fizer nunca mais conseguiraacute achar uma conexatildeo entre a
representaccedilatildeo e o objetordquo143
Cassirer contribui para o esclarecimento desse ponto
Nesta expressatildeo de sua ideia fundamental Beck natildeo faz outra coisa que
seguir as indicaccedilotildees do proacuteprio Kant quem ao reduzir a unidade analiacutetica do
ldquoconceptus communisrdquo agrave unidade sinteacutetica da apercepccedilatildeo assinala esta
expressamente como o ldquoponto mais altordquo a que se deve referir todo o
emprego do entendimento inclusive toda a loacutegica e a filosofia
transcendental Nesta natildeo se trata de predicar ldquonotas caracteriacutesticasrdquo de uma
existecircncia dada ou de um conceito dado mas de determinar o conceito
mesmo de objeto com todas as caracteriacutesticas que lhe satildeo proacuteprias mediante
uma ldquoatribuiccedilatildeo originaacuteriardquo144
Por conseguinte o uso do entendimento eacute anterior aos conceitos isto eacute a
siacutentese da representaccedilatildeo eacute anterior agrave anaacutelise conceitual Assim pensando diz Beck ningueacutem
teraacute de se preocupar com a constituiccedilatildeo do sujeito ou do objeto pois estaraacute claro que os
conceitos ancoram-se no representar originaacuterio Em suma ele escreve ldquoUsando as palavras da
Criacutetica isso quer dizer portanto a unidade analiacutetica da consciecircncia (no conceito) pressupotildee
uma unidade original sinteacutetica (no acto originaacuterio de representar) ou tambeacutem toda anaacutelise soacute
eacute possiacutevel apoacutes uma siacutenteserdquo145
Desse modo para Beck eacute necessaacuterio que se escolha de
antematildeo se o objeto seraacute colocado no iniacutecio ou no fim da investigaccedilatildeo pois a contraposiccedilatildeo
estrutural entre essas perspectivas determinaraacute todo o restante Como explica Cassirer
O decisivo e determinante para todas as conclusotildees posteriores a que se
chegue eacute saber se a reflexatildeo filosoacutefica toma o conceito de objeto como ponto
de partida ou como meta No primeiro caso haacute para noacutes uma realidade
existente por si formada por relaccedilotildees e ordenaccedilotildees fixas tudo o que
podemos dizer acerca delas ao atribuir-lhes existecircncia no tempo e no
espaccedilo grandeza e nuacutemero substancialidade e causalidade seratildeo
simplesmente predicados dedutivos que a posteriori atribuiacutemos a essa
realidade [] Em seu sentido criacutetico natildeo cabe indagar o que o objeto
desligado de toda relaccedilatildeo com qualquer saber possiacutevel eacute em si e para si mas
apenas o que para o saber mesmo significa o postulado da validade
objetiva146
142
Ibidem loc cit 143
Ibidem p 286 144
CASSIRER op cit p 99 (grifos do autor) 145
BECK op cit p 287 146
CASSIRER op cit p 97 (grifos do autor)
- 61 -
Assim como Kant Beck considera que o entendimento eacute uma faculdade
de pensar natildeo de intuir o que significa que representa os objetos atraveacutes de conceitos Na sua
concepccedilatildeo a representaccedilatildeo conceitual de um objeto exige um ponto de referecircncia e exige
tambeacutem que ele seja subsumido em determinadas caracteriacutesticas Diferentemente na
representaccedilatildeo original o entendimento engendra a unidade objetiva sinteacutetica que deve ser
entatildeo transferida para a unidade analiacutetica de um conceito para que possa ser dada a
representaccedilatildeo de um objeto147
Interpretar o tempo o espaccedilo e a realidade das coisas como se
fossem dados antes da siacutentese originaacuteria do entendimento segundo Beck eacute falso e contraacuterio
ao que o pensamento criacutetico se propocircs Daiacute proviriam inclusive os pensamentos vagos
confusos e ininteligiacuteveis que lhe foram atribuiacutedos ldquoPoisrdquo ele escreve
se o espaccedilo for um dado antes da representaccedilatildeo original potildee-se a questatildeo de
o que ele eacute e somos portanto levados a consideraacute-lo como um absurdo
existente Igualmente nos surge a questatildeo da essecircncia das coisas (Sachheit)
se natildeo atendermos agrave representaccedilatildeo original desta categoria148
A dificuldade estaria em natildeo se poder expor a representaccedilatildeo original a
natildeo ser por meio de conceitos Por isso Beck considera necessaacuterio insistir na afirmaccedilatildeo de
que o princiacutepio supremo do entendimento eacute o postulado da representaccedilatildeo originaacuteria Com
isso natildeo surgiriam duacutevidas sobre a constituiccedilatildeo do sujeito dos objetos ou das relaccedilotildees entre
um e outros uma vez que diz ele ldquoNatildeo eacute numa articulaccedilatildeo de conceitos que aqui se pensa
mas numa composiccedilatildeo originaacuteria que previamente possibilita todos os conceitosrdquo149
Inverter
as posiccedilotildees seria confundir-se e natildeo atinar em que a filosofia criacutetica corresponde explica
Cassirer ldquo[] ao pensamento que daacute firmeza e compreensibilidade a qualquer conceito por
ele empregado ao reduzi-lo ao uso originaacuterio do entendimento []rdquo150
Dessa forma eacute
fundamental ao pensamento criacutetico a convicccedilatildeo de que a realidade natildeo pode existir sem as
relaccedilotildees dadas pela unidade sinteacutetica da consciecircncia que satildeo justamente as que criam os
nexos objetivos e necessaacuterios151
Salomon Maimon envolvendo-se tambeacutem na polecircmica caminha no
sentido de uma maior precisatildeo e de um aprofundamento acerca da perspectiva correta a ser
adotada para a compreensatildeo da filosofia kantiana A questatildeo principal a que nos remetem
suas reflexotildees liga-se ao modo como a siacutentese do muacuteltiplo poderaacute gerar a objetividade de um
147
BECK op cit p 286 148
Ibidem loc cit 149
Ibidem p 287 150
CASSIRER op cit p 99 151
Ibidem loc cit
- 62 -
ponto de vista real e natildeo apenas formalmente Segundo Cassirer esse filoacutesofo parte do
conceito de objetividade e se afasta das disputas sobre a coisa em si considerada por ele
apenas como o conceito simboacutelico de algo contraditoacuterio e irrealizaacutevel Para Maimon os
problemas surgiratildeo somente se se quiser dar um caraacuteter real e positivo agrave coisa em si
pretendendo-se fundamentar e garantir a objetividade por meio dela Nas palavras de Cassirer
ldquo[] seja esse siacutembolo o que se queira natildeo se pode duvidar de que o que eacute e significa
bdquoobjetividade‟ para o saber pode determinar-se e avaliar-se partindo do proacuteprio saberrdquo152
Maimon refletiu sobre esse ponto em sua obra Versuch uumlber die transzendentalphilosophie
de 1790 buscando uma soluccedilatildeo que harmonizasse as exigecircncias do ceticismo do dogmatismo
e do criticismo Na investigaccedilatildeo kantiana acerca da possibilidade dos juiacutezos sinteacuteticos a
priori ele vislumbra toda uma seacuterie de questotildees filosoacuteficas tradicionais embutidas no
problema mais geral de estabelecer a ligaccedilatildeo entre os planos formal e material do
conhecimento Nesse sentido afirma Paul Franks
Maimon discerniu uma uacutenica estrutura nos problemas fundamentais da
filosofia medieval da primeira filosofia moderna e da kantiana ldquoA questatildeo
quid juris [isto eacute a questatildeo sobre a legitimidade de aplicar as formas do
entendimento ao que eacute sensivelmente dado abordada na deduccedilatildeo
transcendental de Kant] eacute uma e a mesma importante questatildeo que foi tratada
por todos os filoacutesofos predecessores a saber a explicaccedilatildeo da concordacircncia
entre alma e corpo ou a explicaccedilatildeo da origem do mundo (em relaccedilatildeo agrave sua
mateacuteria) a partir de uma inteligecircnciardquo153
O objetivo e o subjetivo segundo Maimon distinguem-se como o
mutaacutevel e o imutaacutevel no conhecimento bastando entatildeo que se separem na consciecircncia os
conteuacutedos permanentes dos variaacuteveis O que permanece invariaacutevel na faculdade de conhecer
seria o objetivo e o que muda junto com ela seria o subjetivo desaparecendo entatildeo as
questotildees sobre o modo como sujeito e objeto se vinculam No dizer de Cassirer ldquoOs dois
termos natildeo podem portanto logicamente isolar-se um do outro nem caracterizar-se cada um
por si com base no que possam representar fora da capacidade de conhecer Apenas se coloca
e se pode colocar como problema bdquoreal‟ a relaccedilatildeo entre ambosrdquo154
Na medida em que o
fundamento do conhecimento eacute absolutamente incognosciacutevel diz Maimon natildeo importa se eacute
situado fora ou dentro do sujeito A justificaccedilatildeo da divisatildeo entre o que eacute objetivo e o que eacute
subjetivo tem de ser buscada portanto no proacuteprio conhecimento ldquoAssimrdquo escreve Cassirer
152
Ibidem p 108 (grifos do autor) 153
FRANKS P op cit p 105-106 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 154
CASSIRER op cit p 109 (grifos do autor)
- 63 -
encontramos por exemplo que prescindindo de todas as ideias que
possamos formar sobre a origem das percepccedilotildees dos sentidos ou da intuiccedilatildeo
do espaccedilo o momento do espacial representa o ldquoobjetivordquo com respeito agrave
qualidade sensorial das sensaccedilotildees por ser conhecido como o relativamente
estaacutevel em contraposiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees das impressotildees transmitidas pelos
sentidos155
O ponto central da discussatildeo no entender de Maimon eacute o de explicitar a
legitimidade da aplicaccedilatildeo das categorias aos objetos bem como a formulaccedilatildeo das proposiccedilotildees
a priori referidas a elas Em Versuch uumlber die transzendentalphilosophie em uma complexa
argumentaccedilatildeo repleta de conceitos matemaacuteticos esse filoacutesofo expotildee sua maneira de ver como
se daacute aquela aplicaccedilatildeo156
De fato como afirma Franks a atenccedilatildeo de Maimon agraves ciecircncias
exatas mais precisamente agrave fiacutesica matematizada eacute uma caracteriacutestica que o diferencia de
outros poacutes-kantianos157
Com efeito para Maimon a representaccedilatildeo sensiacutevel deve ser
entendida como um certo quantum de extensatildeo ou de grau de intensidade chamado por ele de
diferencial Assim por exemplo a representaccedilatildeo da cor vermelha natildeo deve ser entendida
como extensa ou como algo de natureza matemaacutetica mas como um ponto fiacutesico ou entatildeo
como o diferencial de uma extensatildeo ou de um grau finito de qualidade158
Por conseguinte os
elementos da percepccedilatildeo natildeo se distinguiriam pela grandeza mas por algo qualitativo e
determinado Cassirer explica que uma vez que o tempo e o espaccedilo satildeo apenas esquemas de
uma possiacutevel diferenccedila entre objetos esse elemento qualitativo eacute o que tornaria possiacuteveis as
distinccedilotildees no interior da extensatildeo159
De outra perspectiva segundo Maimon apenas por si
mesmas as representaccedilotildees sensiacuteveis natildeo constituem nenhuma consciecircncia que surge somente
pela atividade de pensar Para ele eacute certo que as representaccedilotildees sensiacuteveis satildeo assimiladas
passivamente mas a consciecircncia que temos delas indica uma accedilatildeo do sujeito e natildeo o saber
passivo de algo externo Entatildeo ele escreve
A palavra representaccedilatildeo (Vorstellung) usada pela primitiva consciecircncia
induz aqui em erro pois na verdade natildeo se trata de uma representaccedilatildeo isto
eacute de um mero acto de tornar presente o que natildeo eacute presente mas muito mais
de uma apresentaccedilatildeo (Darstellung) isto eacute de apresentar como existente o
que anteriormente natildeo era160
A consciecircncia de algo exigiria a accedilatildeo da imaginaccedilatildeo pela qual muacuteltiplas
155
Ibidem p 110 156
MAIMON S Excerto de Versuch uumlber die transzendentale Philosophie Traduccedilatildeo de Maria Helena
Rodrigues de Carvalho In GIL Fernando (coord) Recepccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos
sobre Kant (1786-1844) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1992 p 223 et seq 157
FRANKS P op cit p 105 158
MAIMON S op cit p 223 159
CASSIRER op cit p 125-126 160
MAIMON S op cit p 223 (grifos do autor)
- 64 -
representaccedilotildees sensiacuteveis singulares seriam reunidas e ordenadas segundo o tempo e o espaccedilo
Esse seria o modo de surgimento de uma intuiccedilatildeo empiacuterica numa espeacutecie de adiccedilatildeo contiacutenua
de diferenciais de intensidade ou de extensatildeo ateacute que se chegasse agravequele exigido pela
consciecircncia Eacute como no caso do movimento acelerado em que as velocidades somam-se
paulatinamente e determinam uma velocidade maior161
Natildeo obstante essa adiccedilatildeo natildeo
ocorreria pela comparaccedilatildeo entre as representaccedilotildees mas diz Maimon ldquo[] apenas pelas leis
gerais da natureza de Newton nomeadamente que nenhum efeito pode ser anulado por si
proacuteprio sem um efeito que lhe eacute contraacuteriordquo162
A funccedilatildeo do entendimento nesse processo eacute a
de relacionar os objetos jaacute dados na intuiccedilatildeo por meio dos seus conceitos puros Numa
palavra
A sensibilidade portanto fornece os diferenciais a uma determinada
consciecircncia a imaginaccedilatildeo extrai deles um objeto finito (determinado) da
intuiccedilatildeo o entendimento extrai da relaccedilatildeo destes diversos diferenciais que
satildeo seus objetos a relaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis resultantes163
Na concepccedilatildeo de Maimon os nuacutemenos satildeo exatamente esses
diferenciais enquanto os objetos formados a partir deles satildeo os fenocircmenos Portanto natildeo se
pode afirmar que cada objeto em si tenha um diferencial ou que se refira a um diferencial
mas somente que as relaccedilotildees entre os diversos diferenciais podem ser dadas nas intuiccedilotildees164
ldquoEsses nuacutemenosrdquo diz Maimon ldquosatildeo ideias da razatildeo que como princiacutepios servem para a
explicaccedilatildeo da gecircnese dos objetos segundo certas regras do entendimentordquo165
A diferenciaccedilatildeo
entre duas qualidades sensiacuteveis seria dada como relaccedilatildeo entre diferenciais ou ideias da razatildeo
a priori Este ponto eacute complicado e exige um esclarecimento maior Cassirer observa com
razatildeo que o conceito de diferencial de Maimon parece carregar uma imprecisatildeo sendo
entendido como algo subministrado pelos sentidos como conceitos da razatildeo ou ideias e ainda
como princiacutepios da aplicaccedilatildeo objetiva do entendimento Ele esclarece entatildeo que o conceito de
diferencial possui muacuteltiplas relaccedilotildees pois
Participa da sensaccedilatildeo somente enquanto esta em suas diferenccedilas
quantitativas e em suas gradaccedilotildees oferece agrave consciecircncia antes de tudo o
fenocircmeno da diversidade Mas ao colocar-se a partir de agora a tarefa de
compreender esse fenocircmeno ldquodadordquo manifesta-se ao mesmo tempo a
necessidade de transcender acima disso passando da intuiccedilatildeo e da percepccedilatildeo
empiacutericas a seus ldquoelementosrdquo natildeo intuiacuteveis E nesse processo ao
161
Ibidem p 224 162
Ibidem loc cit 163
Ibidem loc cit 164
Ibidem p 224 165
Ibidem loc cit
- 65 -
remontarmo-nos dos objetos empiacutericos aos princiacutepios de seu nascimento a
diversidade sensorial se converte em uma diversidade racional o
conhecimento dos fenocircmenos se converte em um conhecimento das leis
numecircnicas sobre o qual aqueles fenocircmenos descansam166
Delbos contribui tambeacutem agrave compreensatildeo desse ponto afirmando que
para explicar a presenccedila de um objeto que natildeo sabemos como se produz Maimon retoma o
conceito leibniziano de uma atividade espiritual que age anteriormente a toda consciecircncia
clara O dado puro e simples eacute a ideia de um limite de uma seacuterie dada do qual podemos nos
aproximar como de uma raiz irracional sem jamais atingi-la Assim escreve Delbos Maimon
declara que ldquodo ponto de vista da filosofia criacutetica deve-se falar da coisa em si como a aacutelgebra
fala de radic-a natildeo para determinar com ele um objeto mas para manifestar a impossibilidade de
um objeto correspondente a esse conceitordquo167
Caso um conceito puro do entendimento fosse utilizado por exemplo
para distinguir entre o vermelho e o verde a questatildeo de saber como pode um conceito puro
ser aplicado agrave sensibilidade seria mantida Um conceito puro apenas proporciona a regra e
aponta a gecircnese de um objeto sendo o pensar sua uacutenica funccedilatildeo que eacute a produccedilatildeo da unidade
na multiplicidade Nas palavras de Cassirer
O intelecto em virtude de sua funccedilatildeo caracteriacutestica e peculiar deduz as
diferenccedilas entre as coisas da diversidade dos princiacutepios de que nascem Sua
forma fundamental se situa com efeito na definiccedilatildeo geneacutetica de tal modo
que soacute pode conceber o objetivamente dado sob a forma e conforme a regra
de seu nascimento168
De acordo com isso para Maimon o entendimento natildeo pode pensar
nenhum objeto como jaacute originado mas apenas como estando em formaccedilatildeo processo que ele
denomina ldquodiscorrecircnciardquo169
O termo usado por Maimom eacute flieβend que daacute a ideia de uma
corrente um fluxo que verte num determinado sentido considerado por ele como a
caracteriacutestica da intuiccedilatildeo tanto a priori quanto a posteriori A regra do entendimento que
unifica o muacuteltiplo na intuiccedilatildeo poreacutem natildeo seria dada desse modo mas de uma uacutenica vez170
Esse eacute um ponto importante da concepccedilatildeo de Maimon que evidencia uma visatildeo profunda da
gecircnese da intuiccedilatildeo Ele diferencia a maneira como a intuiccedilatildeo eacute construiacuteda em conexatildeo com
dados externos determinados enquanto o entendimento por seu turno pensa a partir de
166
CASSIRER op cit p 129-130 (grifos do autor) 167
DELBOS op cit p 148 (traduccedilatildeo nossa) 168
CASSIRER op cit p126 169
MAIMON S op cit p 225 170
Ibidem loc cit
- 66 -
conceitos puros e indeterminados Tomando um triacircngulo como exemplo ele explica que o
entendimento pensa a regra de uma soacute vez mas essa regra envolve apenas a relaccedilatildeo geral
entre lados ficando indeterminada a grandeza de cada um deles Diferentemente a construccedilatildeo
do triacircngulo soacute poderaacute ser executada de modo determinado Como ele escreve
Temos pois aqui uma determinaccedilatildeo que natildeo estava contida na regra e que
estaacute necessariamente presa agrave intuiccedilatildeo esta pode mesmo com a manutenccedilatildeo
da mesma regra ou da mesma relaccedilatildeo ser diferente em diferentes
construccedilotildees Consequentemente este triacircngulo em vista de todas as
possiacuteveis construccedilotildees natildeo deve jamais ser pensado pelo entendimento como
jaacute formado mas em formaccedilatildeo isto eacute por discorrecircncia Em contrapartida a
faculdade da intuiccedilatildeo [que de facto eacute regular (regelmaumlβig) mas sem o
discernimento da regra (regelverstaumlndig)] natildeo pode representar regra ou
unidade alguma no muacuteltiplo mas sim o proacuteprio muacuteltiplo deve por isso
pensar os seus objetos natildeo em processo mas como jaacute surgidos171
Daiacute resulta que a intuiccedilatildeo possui uma ordenaccedilatildeo que natildeo ocorre por meio
de nenhuma regra isto eacute sua forma tem de ser pensada como jaacute terminada realizada Assim
fica claro segundo Cassirer que ldquo[] o entendimento natildeo se limita a submeter a suas regras a
priori algo dado a posteriori mas ao contraacuterio o faz nascer conforme a essas regras mesmas
o que constitui a uacutenica maneira de responder agrave questatildeo quid jurisrdquo172
De acordo com isso a sensibilidade natildeo opera qualquer tipo de ligaccedilatildeo a
qual se deve agrave imaginaccedilatildeo No entanto a ligaccedilatildeo realizada por esta se daacute em geral designando
a simultaneidade ou a sucessatildeo de objetos sem especificaacute-los A imaginaccedilatildeo diz Maimon
relaciona os objetos representando um como o antecedente e outro como o consequente no
tempo e no espaccedilo por exemplo mas natildeo determinando a cada um seu lugar especiacutefico de
antecedente ou de consequente Os conceitos puros estabeleceriam somente relaccedilotildees de
unificaccedilatildeo do muacuteltiplo mas para isso precisariam que os distintos elementos fossem
pensados simultaneamente reciprocamente ou unilateralmente173
Entatildeo segundo Maimon
quando o entendimento relaciona partes do muacuteltiplo de forma simultacircnea origina-se daiacute um
conceito pensado natildeo somente em relaccedilatildeo agrave forma mas tambeacutem agrave mateacuteria o que significa que
esta deve de algum modo determinar a simultaneidade da representaccedilatildeo Outra possibilidade
seria o surgimento de um conceito ldquo[] onde a mateacuteria e a forma satildeo da mesma espeacutecie e
consequentemente produzidos por um Actus uacutenico do entendimentordquo174
Esse seria o caso dos
conceitos de causa e efeito cuja identidade de espeacutecie determinaria que quando a primeira eacute
171
Ibidem p 226 (grifos do autor) 172
CASSIRER op cit p 128 173
MAIMON S op cit p 226 174
Ibidem p 227
- 67 -
posta o segundo necessariamente tem de secirc-lo Que uma causa tenha de ter um efeito natildeo
seria algo contido na definiccedilatildeo mas seria a proacutepria definiccedilatildeo desse conceito175
Daiacute decorre que as conexotildees de muacuteltiplos satildeo realizadas pelo
entendimento a partir de formas a priori as quais poreacutem por serem regras gerais soacute por
meio de intuiccedilotildees poderatildeo ser percebidas e adquirir seu significado Para que se possa
afirmar por exemplo que um objeto eacute causa de outro eacute exigida uma regra geral que
estabeleccedila uma dependecircncia entre dois elementos distintos isto eacute que vincule de um modo
especial os objetos de duas intuiccedilotildees No entanto a pura e simples regra natildeo informaraacute
especificamente qual eacute causa e qual eacute efeito O mesmo poderia ser dito de quaisquer
conceitos pois diz Maimon ldquo[] a sua essentia nominalis eacute determinada enquanto sua
essentia realis permanece duvidosa ateacute ter sido apresentada na intuiccedilatildeordquo176
Portanto a
realidade do conceito de causalidade eacute descoberta quando o entendimento encontra na
intuiccedilatildeo uma representaccedilatildeo que sempre traz outra consigo diferente de si A forma dos juiacutezos
hipoteacuteticos que estabelece o conceito da dependecircncia de um consequente em relaccedilatildeo a um
antecedente seria nesse caso aplicada a dois objetos quaisquer Nesse sentido escreve
Maimon
A dependecircncia pode portanto ser concebida sem referecircncia a objetos
determinados (como a forma dos juiacutezos hipoteacuteticos na loacutegica) a causa e o
efeito poreacutem natildeo podem ser concebidos sem referecircncia a objetos
determinados isto eacute a regra do entendimento dos juiacutezos hipoteacuteticos refere-se
meramente a objetos determinaacuteveis mas natildeo determinados a realidade
objetiva dos mesmos poreacutem soacute pode ser demonstrada pela aplicaccedilatildeo a
objetos determinados da intuiccedilatildeo177
Segundo Maimon eacute desse modo que a experiecircncia comprova a
possibilidade dos conceitos do entendimento e que inversamente os conceitos do
entendimento tornam a experiecircncia possiacutevel De um lado os conteuacutedos materiais das
intuiccedilotildees permitem que se note o elemento formal presente nelas isto eacute as formas da
sensibilidade e os conceitos puros que satildeo portanto inatos De outro as conceitos puros e os
juiacutezos natildeo podem ser concebidos empiricamente e isso demonstra que devem ser ligados agrave
experiecircncia para ganharem sentido178
A possibilidade das intuiccedilotildees seria como a da
construccedilatildeo de um triacircngulo isto eacute anterior agrave experiecircncia e em si Nas palavras de Maimon
175
Ibidem loc cit 176
Ibidem loc cit 177
Ibidem p 228 178
MAIMON S op cit p 230
- 68 -
Quando por exemplo se emite esse juiacutezo vermelho eacute diferente de verde
imagina-se na intuiccedilatildeo primeiro vermelho e em seguida verde depois do
que se comparam os dois e daqui resulta este juiacutezo Mas como eacute que
havemos de tornar concebiacutevel essa comparaccedilatildeo Natildeo pode ocorrer durante a
representaccedilatildeo do vermelho e a representaccedilatildeo do verde179
Por conseguinte todos os conceitos e juiacutezos seriam problemaacuteticos ateacute
que tivessem uma aplicaccedilatildeo concreta e sua possibilidade estaria nessa relaccedilatildeo com
experiecircncia Como ele explica
Uma figura (espaccedilo limitado) eacute possiacutevel em si Para compreender isto tenho
de construir uma figura particular por exemplo um ciacuterculo um triacircngulo
etc Estas figuras particulares poreacutem soacute satildeo possiacuteveis atraveacutes do conceito
geral de figura porque natildeo satildeo pensaacuteveis sem ele mas a inversa natildeo eacute
verdadeira porque uma figura [conceito] tambeacutem eacute possiacutevel sem esta
determinaccedilatildeo particular180
Eacute nesse sentido que se poderia afirmar que o entendimento produz por
meio de regras gerais os objetos que seratildeo pensados depois por um conceito Para isso
segundo Maimon satildeo necessaacuterias a intuiccedilatildeo a mateacuteria do pensamento e as formas deste que
satildeo as condiccedilotildees dos objetos181
Conforme a exegese de Cassirer na concepccedilatildeo maimoniana
se a intuiccedilatildeo se referisse diretamente a um objeto externo dado poderia ser tomada como
simples quimera poreacutem o objeto de que se trata natildeo deve ser tomado como dado mas sim
como pensado Nesse caso diz Cassirer a intuiccedilatildeo deve ser entendida ldquo[] como aquela
modificaccedilatildeo da capacidade de conhecimento que natildeo se refere a nada fora de si mesma como
seria a relaccedilatildeo da representaccedilatildeo a seu objeto mas eacute por si mesma o objeto sobre o qual
recairdquo182
A indagaccedilatildeo acerca da legitimidade da aplicaccedilatildeo dos conceitos agrave mateacuteria
intuitiva eacute respondida segundo Maimon com a consideraccedilatildeo de que os conceitos natildeo satildeo
aplicados diretamente agrave intuiccedilatildeo mas agrave forma a priori do tempo Sobre esse ponto ele afirma
que ldquo[] a eacute a e natildeo eacute b natildeo porque aquele tenha uma determinaccedilatildeo material que este natildeo
tem (porque este na medida em que eacute algo a posteriori natildeo pode ser subsumido na regra a
priori) mas porque tem uma determinaccedilatildeo formal que b natildeo temrdquo183
A determinaccedilatildeo formal
nesse caso eacute o anteceder ou suceder no tempo que eacute comum a ambos os objetos os quais
agem como o antecedente e o consequente de um juiacutezo condicional Na visatildeo de Maimon
179
Ibidem loc cit 180
Ibidem loc cit 181
Ibidem p 232 182
CASSIRER op cit 115 (grifos do autor) 183
MAIMON S op cit p 233 (grifos do autor)
- 69 -
ldquoPor este processo o entendimento tem capacidade natildeo soacute de pensar objetos em geral mas de
conhecer objetos determinadosrdquo184
Com essa argumentaccedilatildeo estaria respondida a questatildeo de saber com que
direito se aplicam os conceitos a priori aos objetos sem conceitos a priori natildeo poderiacuteamos
pensar objetos apenas intuiacute-los Do mesmo modo sem intuiccedilotildees poderiacuteamos pensar objetos
em geral mas natildeo conheceriacuteamos objetos determinados Por conseguinte sem a concorrecircncia
de ambas essas fontes nenhum objeto poderia ser de fato conhecido A faculdade de julgar
entendida como a capacidade de descobrir o geral no particular ou de subsumir o particular no
geral realizaria a mediaccedilatildeo entre intuiccedilotildees e conceitos Sem ela diz Maimon teriacuteamos as
partes integrantes de um juiacutezo ldquo[] mas natildeo teriacuteamos nenhum meio de levar isto a cabo de
uma forma justa porque os conceitos gerais ou regras a priori e os objectos particulares da
intuiccedilatildeo a posteriori satildeo absolutamente heterogecircneosrdquo185
Natildeo obstante o fundamento dessa
aplicaccedilatildeo da faculdade de julgar seria desconhecido embora a aplicaccedilatildeo mesma seja tomada
como fato da intuiccedilatildeo Poreacutem o importante natildeo seria provar e explicar essa aplicaccedilatildeo mas
compreender sua possibilidade por meio de um conhecimento a priori186
Em suma como
escreve Cassirer ldquo[] a Criacutetica da razatildeo pura entende por experiecircncia pelo conhecimento a
posteriori natildeo um conhecimento determinado pelas coisas em si mas um conhecimento natildeo
determinado pelas simples leis da capacidade de conhecerrdquo187
No fim de contas a questatildeo quid juris sobre a possibilidade de
aplicaccedilatildeo dos conceitos agrave intuiccedilatildeo seraacute sempre problemaacutetica na medida em que natildeo se pode
explicar exatamente o modo como a aplicaccedilatildeo se daacute Um conceito pode certamente ser
tornado intuitivo e ganhar um significado mas do ponto de vista contraacuterio o de explicar a
origem de um conceito de significado conhecido o problema seria insoluacutevel Nas palavras de
Maimon ldquo[] como eacute que se haacute-de conceber que o entendimento possa decidir com certeza
apodiacutectica que um conceito de relaccedilatildeo por ele proacuteprio pensado (a coexistecircncia necessaacuteria de
dois predicados) tenha de ser encontrado num dado objetordquo188
A separaccedilatildeo radical dada no
sistema kantiano entre sensibilidade e entendimento natildeo permitiria resposta agrave questatildeo pois
assim as regras do entendimento natildeo teriam como se aproximar dos objetos dados189
184
Ibidem p 233-234 (grifos do autor) 185
Ibidem p 234 186
Ibidem loc cit 187
CASSIRER op cit p 117 188
MAIMON S op cit p 237 189
Ibidem p 239
- 70 -
Portanto diz Maimon somente admitindo que entendimento e sensibilidade provenham da
mesma fonte como fazem Leibniz e Wolff pode-se resolver a questatildeo eacute preciso que espaccedilo e
tempo sejam tomados como conceitos do entendimento para que seja possiacutevel submetecirc-los agraves
regras deste uacuteltimo
16 - Desvelando o dilema e os conceitos envolvidos
No pano de fundo da discussatildeo acerca da coisa em si e da sua suposta
afecccedilatildeo sobre os sentidos subjaz uma questatildeo antiga e profunda Conhecemos o mundo e
ajuizamos sobre ele poreacutem natildeo logramos provar a verdade do nosso conhecimento isto eacute a
seguranccedila inequiacutevoca do que afirmamos com relaccedilatildeo agraves coisas A resposta a esse problema
exige que se apresente alguma forma de alicerce para o pensamento algo em que se apoie e
que o faccedila ser algo mais do que ficccedilatildeo A dificuldade nos parece estar em que a soluccedilatildeo
demanda a muacutetua adequaccedilatildeo entre duas esferas heterogecircneas a saber o mundo da
experiecircncia com seus objetos concretos determinados singulares e o mundo teoacuterico com
seus conceitos abstratos universais e suas relaccedilotildees gerais Acrescenta-se a isso que essa
heterogeneidade foi tradicionalmente pensada como enraizada na distinccedilatildeo entre corpo e
alma tomados como substacircncias separadas com implicaccedilotildees natildeo soacute teoacutericas mas tambeacutem
morais e religiosas Aleacutem disso desde Platatildeo e sua ldquosegunda navegaccedilatildeordquo consolidou-se o
distanciamento entre um mundo mais real e verdadeiro cuja caracteriacutestica fundamental estava
na sua idealidade e um mundo ilusoacuterio e falso ligado agrave concretude aos sentidos e ao
empiacuterico
Apesar de toda a distacircncia entre Platatildeo e Hume o resultado geral da
argumentaccedilatildeo deste uacuteltimo acerca da causalidade nos parece ter reforccedilado a concepccedilatildeo do
primeiro de que natildeo haacute conhecimento verdadeiro do mutaacutevel do empiacuterico Rebaixado ao
estatudo de crenccedila sem necessidade loacutegica nem garantia empiacuterica com Hume o saber
humano afastou-se mais da possibilidade de alcanccedilar uma correspondecircncia autecircntica em
- 71 -
relaccedilatildeo agraves coisas Ou na formulaccedilatildeo de Maimon tornou-se mais difiacutecil responder agrave questatildeo
ldquoquid jurisrdquo A filosofia criacutetica kantiana conseguiu pela descriccedilatildeo minuciosa do mecanismo
de produccedilatildeo do conhecimento recuperar a esperanccedila de que o intelecto pudesse encontrar
certezas por meio de investigaccedilatildeo Para noacutes o prodiacutegio da descoberta de Kant nesse ponto
foi apontar a accedilatildeo por meio da qual o intelecto fabrica o mundo por assim dizer Por um lado
esse achado solucionou o problema da ausecircncia de necessidade e de correspondecircncia do saber
em relaccedilatildeo aos objetos pois a necessidade mesma e os proacuteprios objetos descobriram sua
origem no sujeito cognoscente Natildeo se precisava mais buscar a necessidade e a
correspondecircncia alhures jaacute que se situavam no nosso intelecto do mesmo modo que os
objetos Por outro lado poreacutem a fabricaccedilatildeo intelectual do mundo trouxe outras questotildees tatildeo
difiacuteceis quanto aquela inicial
Na nossa interpretaccedilatildeo Kant e os pensadores de sua eacutepoca debruccedilaram-
se sobre a tarefa de sustentar a construccedilatildeo do mundo pelo sujeito conscientes de que sem
isso a questatildeo de Hume natildeo seria resolvida Tornou-se entatildeo imperioso demostrar claramente
o processo que tornaria vaacutelidos do ponto de vista objetivo as intuiccedilotildees e os conceitos uma
vez que sua origem seria subjetiva Kant acrescentou um terceiro termo a essa problemaacutetica
ao apontar para uma realidade por traacutes dos fenocircmenos produzidos pelo intelecto ainda que
atribuindo a ela uma posiccedilatildeo incerta no seu sistema Com isso a soluccedilatildeo daquela questatildeo
passou a ter de levar em conta novos aspectos o estatuto da experiecircncia empiacuterica entendida
agora como aparecircncia os detalhes do mecanismo de constituiccedilatildeo da realidade pelo sujeito
cognoscente o estatuto daquilo que estaacute por traacutes do fenocircmeno e a relaccedilatildeo entre ambos
A dificuldade entatildeo se aprofunda porque se eacute verdade que o sujeito
institui o mundo dos fenocircmenos natildeo pode fazecirc-lo a partir de si mesmo e o contato com algo
que garanta a realidade empiacuterica tem de ser descoberto Ao mesmo tempo poreacutem fecha-se o
acesso agraves coisas em si mesmas e o conhecimento humano fica inexpugnavelmente limitado agrave
esfera fenomecircnica Com efeito de um lado sem um fundamento para sua realidade o
conhecimento da experiecircncia seraacute fictiacutecio de pleno direito jaacute que natildeo passaraacute de produto de
um sujeito que natildeo conhece nada para aleacutem disso mesmo ou seja do fenocircmeno portanto de
uma aparecircncia De outro lado poreacutem o modo como Kant responde a Hume impede que algo
possa ser dado como subjacente aos fenocircmenos A rigor natildeo se pode nem mesmo postular a
existecircncia desse ser embora a afirmaccedilatildeo de que exista uma aparecircncia sem algo que apareccedila
seja absurda e insustentaacutevel
- 72 -
De acordo com isso ao que nos parece cada um dos filoacutesofos poacutes-
kantianos apresentados no item anterior realiza sua contribuiccedilatildeo endossando ou criticando
Kant mas de qualquer modo se enfrentando com essas dificuldades postas por sua filosofia
Jacobi evidencia que no sistema teoacuterico kantiano o exterior natildeo eacute realmente externo pois um
objeto no espaccedilo estaacute no fim de contas dentro do sujeito Sua argumentaccedilatildeo segundo
pensamos natildeo eacute tatildeo ingecircnua ou simploacuteria como pareceu a muitos pois toca em um ponto
importante que eacute o de saber como uma intuiccedilatildeo pode ser exterior sem se referir a algo em si
nem a algo fora do sujeito Eacute com razatildeo que duvida de que a mateacuteria dos fenocircmenos possa ser
criada sem que se saia da consciecircncia Eacute com razatildeo tambeacutem que questiona a ideia de uma
faculdade da sensibilidade sem a admissatildeo de impressotildees externas sobre os sentidos A uacutenica
saiacuteda coerente segundo Jacobi seria reconhecer que o sensiacutevel soacute conduz ao sensiacutevel e que a
demonstraccedilatildeo da validade objetiva do conhecimento demanda uma faculdade distinta
superior que leve ao suprassensiacutevel Sem isso tudo o que se faz eacute girar em falso sobre um
plano irreal que natildeo se refere a nada para aleacutem de si mesmo
Reinhold buscou um ponto de certeza incontestaacutevel a partir do qual a
teoria do conhecimento pudesse ser deduzida sem que fosse necessaacuterio invocar a coisa em si
Realmente eacute um ponto paciacutefico do pensamento criacutetico a concepccedilatildeo de que todo conhecimento
eacute representaccedilatildeo e esta era entatildeo um bom iniacutecio para um sistema Parece-nos que depois de
Reinhold os esforccedilos se concentraram no sentido de demonstrar que a representaccedilatildeo poderia
ser esclarecida e validada a partir de si mesma Para isso foi fundamental sua ecircnfase em que
mateacuteria e forma natildeo poderiam ser separadas na representaccedilatildeo sem extingui-la Schulze por
sua vez sublinhou que natildeo se pode admitir o surgimento do fenocircmeno por uma causalidade
da coisa em si sobre o sujeito e que isso deixa a aparecircncia sem nenhum ponto de apoio O
fundamento da experiecircncia contudo natildeo pode ser a proacutepria experiecircncia que eacute produto do
sujeito de modo que todo o sistema do conhecimento desmorona e toda representaccedilatildeo se
mostra vazia sem objetividade simples ficccedilatildeo
Com o intuito de dissolver a separaccedilatildeo entre a consciecircncia e os objetos
Beck traz agrave luz o ato originaacuterio pelo qual o fenocircmeno eacute composto pelo sujeito Sua
argumentaccedilatildeo mostra que a experiecircncia depende de uma siacutentese do muacuteltiplo anterior a toda e
qualquer anaacutelise conceitual Nessa linha de raciociacutenio evidenciando-se a falsidade da
separaccedilatildeo entre a consciecircncia e os objetos a investigaccedilatildeo da adequaccedilatildeo entre uma e outros se
torna inuacutetil isto eacute natildeo cabe a pergunta pela validade objetiva Beck entatildeo direciona os
- 73 -
holofotes para o ato originaacuterio de representar com o qual se formam todos os objetos
reforccedilando a importacircncia do tempo e do espaccedilo no processo Maimon por fim tambeacutem
evidencia o modo como a siacutentese do muacuteltiplo poderaacute gerar objetividade para assim resolver a
questatildeo ldquoquid jurisrdquo Para ele objetivo e subjetivo natildeo podem ser isolados e o problema real
acerca do conhecimento eacute o de saber qual a relaccedilatildeo que entre eles medeia O objetivo remete
agraves formas do sujeito estaacuteveis durante todo o processo de conhecer e o subjetivo remete agraves
sensaccedilotildees mutaacuteveis e inconstantes A sensibilidade natildeo fornece diretamente intuiccedilotildees ao
pensamento mas miacutenimos graus de intensidade ou de extensatildeo que se acrescentam uns aos
outros e satildeo ordenados pelo entendimento A observaccedilatildeo de Maimon sobre a distinccedilatildeo entre
Vorstellung e Darstellung eacute interessante nesse sentido pois ressalta que os objetos natildeo satildeo
apreendidos em uma representaccedilatildeo mas fornecidos em uma apresentaccedilatildeo O muacuteltiplo e o a
posteriori surgem durante o processo e a experiecircncia externa ao sujeito natildeo precisa ser
pensada como ligada agraves coisas em si podendo ser tomada como o a posteriori desprovido das
regras do conhecer Por conseguinte o conhecido imediatamente por noacutes natildeo eacute de fato um
objeto mas diferenciais de intensidade ou de extensatildeo O entendimento eacute que produz os
objetos que seratildeo pensados depois pelos conceitos enquanto a conexatildeo entre estes e a
intuiccedilatildeo natildeo se daacute diretamente mas por meio da forma a priori do tempo
Em relaccedilatildeo aos problemas envolvidos no conceito de coisa em si
Reinhold Beck e Maimon tentam eludir a necessidade de que ela esteja pressuposta como o
real por traacutes dos fenocircmenos Tanto sua causalidade sobre os sentidos quanto sua existecircncia
natildeo satildeo admitidas por eles que tratam entatildeo de relativizar sua importacircncia na filosofia criacutetica
Reinhold argumentou que partindo-se somente da representaccedilatildeo como objeto de investigaccedilatildeo
e do princiacutepio da consciecircncia como fundamento natildeo eacute preciso tomar a coisa em si em
consideraccedilatildeo Beck defedeu que a questatildeo sobre a coisa em si eacute um problema vazio pois a
relaccedilatildeo entre ela e os objetos eacute inexistente isto eacute natildeo haacute qualquer nexo a se buscar Maimon
por fim sustentou que o conceito de coisa em si eacute apenas um siacutembolo para algo que natildeo se
pode conceber o limite de uma seacuterie dada que nunca se atinge algo como uma raiz irracional
Na verdade eacute irrelevante o que esse siacutembolo possa realmente significar o que importa eacute natildeo
cracterizaacute-lo positivamente nem utilizaacute-lo como garantia da objetividade
O posicionamento de Schopenhauer sobre essas questotildees revela a marca
- 74 -
das criacuteticas que Kant recebeu de seus contemporacircneos190
Ele elimina a separaccedilatildeo entre
sujeito e objeto mostrando que satildeo polos distintos de uma mesma esfera a da representaccedilatildeo
tornando descabida a questatildeo de saber quais relaccedilotildees se estabelecem entre um e outro A
representaccedilatildeo eacute um ponto fixo um apoio que ele considera suficientemente firme para
alicerccedilar todo o seu edifiacutecio teoacuterico de certa forma ldquopara mover o mundordquo O problema da
validade objetiva eacute resolvido por Schopenhauer com a minuciosa descriccedilatildeo do modo como os
objetos satildeo criados por meio do princiacutepio de razatildeo suficiente Ele se empenha na
argumentaccedilatildeo que prova a dependecircncia da intuiccedilatildeo com relaccedilatildeo ao entendimento expondo a
radical diferenccedila entre ela e a simples sensaccedilatildeo Por conseguinte natildeo surgem do seu
pensamento uma esfera da representaccedilatildeo e outra dos objetos ambas as coisas satildeo idecircnticas
Sua demonstraccedilatildeo da aprioridade do princiacutepio de razatildeo eacute realizada com diversos exemplos e
ilustraccedilotildees que patenteiam a extrema subordinaccedilatildeo da representaccedilatildeo relativamente a ele Natildeo
resta qualquer espaccedilo para a questatildeo ldquoquid jurisrdquo
Outro ponto relevante a ser destacado eacute que a separaccedilatildeo irredutiacutevel entre
as faculdades do entendimento e da sensibilidade tornava muito difiacutecil relacionar conceitos
juiacutezos e intuiccedilotildees Schopenhauer assombrosamente reuacutene todas as questotildees que estavam em
jogo em torno de um uacutenico princiacutepio o de razatildeo suficiente por meio do qual interliga todas as
faculdades intelectuais e todos os tipos de objetos possiacuteveis Segundo pensamos isso eacute
realmente uma maravilha da criatividade e da genialidade schopenhauerianas pois o filoacutesofo
conseguiu extrair tudo a partir de um uacutenico ponto isto eacute deduzir dele tanto o mundo empiacuterico
quanto o conceitual Unificando numa mesma raiz sensibilidade entendimento e razatildeo seu
princiacutepio explica a um soacute tempo a conexatildeo entre as intuiccedilotildees e os conceitos o dado e o
pensado o universal e o particular o necessaacuterio e o contingente
Nos ldquoFragmentos para a histoacuteria da filosofiardquo dos Parerga e
Paralipomena Schopenhauer expotildee seu modo de entender a controveacutersia sobre a coisa em si
kantiana Ele afirma que a pressuposiccedilatildeo de que exista uma coisa em si sob os fenomenos eacute
correta e que apenas o modo como Kant a justificou foi ineficaz porque ela natildeo podia ser
harmonizada com os princiacutepios da sua filosofia E esse se tornou entatildeo seu ldquocalcanhar de
190
Victor Delbos observa bem que nos iniacutecios de seu filosofar Schopenhauer descarta conscientemente o
conceito de coisa em si ainda sob a influecircncia da argumentaccedilatildeo de Schulze Na primeira ediccedilatildeo de Da
quaacutedrupla raiz e nos Manuscritos Poacutestumos datados de 1812-1813 Schopenhauer aponta para a nulidade do
conceito de coisa em si e para o absurdo de se afirmar que ela cause o fenocircmeno Para noacutes isso sugere que
Schopenhauer foi modificando suas posiccedilotildees com atenccedilatildeo a esse debate Cf DELBOS op cit p 256-257
- 75 -
Aquilesrdquo cuja inconsistecircncia foi provada primeiro por Schulze depois por outros191
Para ele
no entanto eacute muito mais inaceitaacutevel a conclusatildeo da inexistecircncia da coisa em si e natildeo teria
sido exatamente esse o ponto visado pelos adversaacuterios de Kant mas somente sua exposiccedilatildeo
De certo modo diz Schopenhauer a argumentaccedilatildeo natildeo foi ad rem mas ad hominem192
Em
todo caso ele entende como realmente incorreta a utilizaccedilatildeo das leis a priori do intelecto para
derivar a existecircncia de uma coisa em si por traacutes dos fenocircmenos Essas leis natildeo podem
conduzir a nada que natildeo seja representaccedilatildeo de modo que o caminho para chegar ateacute aquela
teraacute de ser outro No entender do filoacutesofo Kant descobriu no conhecimento um conjunto de
elementos de origem subjetiva e outro de origem empiacuterica que foi considerado entatildeo como
objetivo em contraposiccedilatildeo agravequele Para ele isso foi bastante coerente porque Kant natildeo
poderia estender os elementos a priori a coisas independentes do intelecto
Conforme Schopenhauer haacute algo que permanece de fato desconhecido e
eacute precisamente a coisa em si Os elementos a posteriori satildeo inseparaacuteveis dos que satildeo a priori
e por isso diz ele ldquoKant ensina que podemos saber da existecircncia da coisa em si mas que daiacute
natildeo podemos extrair nada isto eacute apenas saber que ela eacute natildeo o que ela eacute por isso a essecircncia
da coisa em si permanece nele como uma grandeza desconhecida um Xrdquo193
As diferenccedilas
existentes entre os objetos provariam a existecircncia da coisa em si na medida em que formas a
priori satildeo as mesmas para todos eles mas eles natildeo satildeo todos idecircnticos essas diferenccedilas
segundo Schopenhauer devem-se agrave coisa em si194
O argumento poreacutem com que Kant a
introduziu eacute insustentaacutevel porque sua proacutepria filosofia natildeo permite que se passe do subjetivo
ao objetivo isto eacute do sujeito agraves coisas mesmas o que se fosse feito equivaleria a tomar a
causalidade como absoluta Schopenhauer conclui entatildeo que jamais se encontraraacute a coisa em
si seguindo-se o fio condutor da representaccedilatildeo mas apenas ele afirma ldquo[] mudando o ponto
de vista a saber ao inveacutes de partir do que representa como sempre se fez ateacute agora partir-se
do que eacute representadordquo195
Como consequecircncia na metafiacutesica schopenhaueriana a representaccedilatildeo eacute a
objetidade da coisa em si ou seja natildeo haacute nenhum elemento de mediaccedilatildeo entre ambas pois
ao fim e ao cabo satildeo um e o mesmo mundo observado de lados opostos Nesse caso nem a
191
PP I Fragmente zur Geschichte der Philosophie sect 13 p 113 Fragmentos para a histoacuteria da filosofia
Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas de Maria Luacutecia Cacciola Satildeo Paulo Iluminuras 2003 sect 13 p 79-80 192
Ibidem sect 13 p 114 ibidem sect 13 p 79 193
Ibidem sect 13 p 116 ibidem sect 13 p 81 (grifos do autor) 194
Ibidem sect 13 loc cit ibidem sect 13 loc cit 195
Ibidem sect 13 p 118 ibidem sect 13 p 83 (grifos do autor)
- 76 -
causalidade nem outro princiacutepio a priori satildeo exigidos para se conectar coisa em si e
representaccedilatildeo A coisa em si natildeo seraacute conhecida com recurso ao que estaacute fora do sujeito a um
objeto que lhe eacute inacessiacutevel mas por meio da sua proacutepria vontade individual daiacute a
elaboraccedilatildeo de uma metafiacutesica imanente Natildeo obstante a coisa em si de Schopenhauer ganha
outras determinaccedilotildees que conformam seu edifiacutecio teoacuterico de uma maneira peculiar A
Vontade eacute considerada por ele por exemplo o nuacutecleo mais real e verdadeiro do mundo em
contraposiccedilatildeo agrave representaccedilatildeo ilusoacuteria e efecircmera Na sua argumentaccedilatildeo preserva-se o caraacuteter
fenomecircnico do mundo empiacuterico e reforccedila-se a ideia de que o sensiacutevel conduz apenas ao
sensiacutevel de modo que o conhecimento que desvelaraacute a coisa em si natildeo seraacute o regido pelo
princiacutepio de razatildeo suficiente incluiacutedo aqui o do conhecer Como resultado a representaccedilatildeo eacute
mantida como aparecircncia a objetividade do conhecimento eacute garantida por um princiacutepio
intelectual e a coisa em si eacute preservada e desenvolvida
- 77 -
Capiacutetulo 2 ndash A construccedilatildeo do lado externo do mundo idealismo transcendental
21 ndash Philosophia prima
211 ndash O princiacutepio maacuteximo do conhecimento
Neste capiacutetulo detalhamos as relaccedilotildees e os conceitos apresentados no
capiacutetulo anterior no tocante agrave teoria do conhecimento de Schopenhauer Para isso utilizamos
o texto de Da quaacutedrupla raiz ediccedilatildeo de 1847 o primeiro livro de O mundo e os capiacutetulos
correspondentes de O mundoII ediccedilatildeo de 1859 Seguimos a indicaccedilatildeo dada pelo filoacutesofo no
prefaacutecio da primeira obra mencionada onde ele afirma que nesses textos juntamente com a
Criacutetica da filosofia kantiana estaacute encerrada sua teoria acerca do intelecto humano1 Quando
uacutetil pela clareza e conveniente do ponto de vista explicativo utilizamos tambeacutem outras obras
indicadas oportunamente
No prefaacutecio de Da quaacutedrupla raiz Schopenhauer afirma que sua
abordagem da problemaacutetica do conhecimento eacute nova e peculiar realizada por meio da
formulaccedilatildeo demonstraccedilatildeo e justificaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo suficiente A despeito da
maneira enfaacutetica com a qual o filoacutesofo apresenta o princiacutepio de razatildeo como a condiccedilatildeo de
possibilidade de todo e qualquer conhecimento sua concepccedilatildeo sobre este uacuteltimo eacute mais
ampla Eacute possiacutevel notar diferentes conceitos e modos de conhecer matizados tanto pelo lado
da Vontade quanto da representaccedilatildeo Da perspectiva desta uacuteltima temos quatro formas do
princiacutepio de razatildeo suficiente intuiccedilotildees puras intuiccedilotildees empiacutericas intuiccedilotildees normais
representaccedilotildees fictiacutecias e representaccedilotildees abstratas Do lado da Vontade temos ideias
1 UumlV p 9 CR p 27
- 78 -
conhecimento eacutetico conhecimento esteacutetico e nenhum princiacutepio Eacute possiacutevel ainda matizar e
classificar modos distintos de conhecer por exemplo conhecimento interno externo
imediato mediato concreto abstrato pelo princiacutepio de razatildeo e tambeacutem com exclusatildeo dele
No texto Schopenhauer and Knowledge David Hamlyn chama a atenccedilatildeo para essa
complexidade que se manifesta em duas grandes maneiras de conhecer Esse autor observa
que o conhecimento de que trata Da quaacutedrupla raiz eacute consciente e condicionado enquanto
o que entra em jogo no quarto livro de O mundo referente agrave superaccedilatildeo da Vontade eacute de um
tipo totalmente oposto ou seja inconsciente e incondicionado Na interpretaccedilatildeo dele
Alguns objetos tornam-se objetos do conhecimento apenas quando estatildeo
sujeitos a condiccedilotildees quando por exemplo e esse eacute o caso das
representaccedilotildees eles ocorrem em estruturas regulares Outros objetos podem
ser objetos do conhecimento sem a satisfaccedilatildeo de tais condiccedilotildees e no caso de
certos objetos ndash a vontade por exemplo ndash natildeo apenas pode ser assim mas
deve ser assim e esse eacute o fato que torna incondicional o conhecimento em
questatildeo2
Para Hamlyn embora natildeo deixe claro em cada um dos quatro livros de
O Mundo Schopenhauer dedica-se a um objeto distinto respectivamente agraves representaccedilotildees
comuns agrave Vontade agraves ideias e ao saber que conduz agrave negaccedilatildeo do querer3 Concepccedilatildeo
semelhante apresenta Margit Ruffing para quem o filoacutesofo lida com uma teoria do
conhecimento distinta em cada livro de sua obra capital Na interpretaccedilatildeo dessa autora a
contemplaccedilatildeo esteacutetica abordada por Schopenhauer no terceiro livro de O Mundo tem um
papel de destaque no sistema pois representa o ponto de transiccedilatildeo entre o conhecimento
imperfeito da Vontade e sua compreensatildeo completa4 Os quatro livros na interpretaccedilatildeo dela
ldquo[] tecircm como base apenas duas questotildees de conhecimento ndash a questatildeo a respeito de o que do
conhecimento da essecircncia do significado do mundo e a questatildeo a respeito do acesso ao
conhecimento essencial a respeito do como do conhecimentordquo5
Nossa anaacutelise se concentraraacute no conhecimento pelo lado da representaccedilatildeo
e por isso exporemos grande parte das ideias contidas em Da quaacutedrupla raiz que discorre
minuciosamente sobre o princiacutepio de razatildeo Todavia natildeo adotamos exatamente a ordem que
2 HAMLYN D Schopenhauer and knowledge In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer
Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 46 (traduccedilatildeo nossa) 3 Ibidem p 45
4 Esse eacute o tema da dissertaccedilatildeo da autora defendida na Johannes Gutenberg Universitaumlt ndash Mainz em 2001 Cf
RUFFING M Wille zur Erkenntnis Die Selbsterkenntnis des Willens und die Idee des Menschen in der
aumlsthetischen Theorie Arthur Schopenhauers 5 RUFFING M A relevacircncia eacutetica da contemplaccedilatildeo esteacutetica Revista etich - An international Journal for
Moral Phylosophy Florianoacutepolis v11 n2 p 263-271 julho de 2012 p 264 (grifos da autora)
- 79 -
o filoacutesofo considerou a correta do ponto de vista sistemaacutetico a saber iniciar com o princiacutepio
de razatildeo do ser em relaccedilatildeo ao tempo passar para a mesma forma do princiacutepio com relaccedilatildeo ao
espaccedilo em seguida expor a lei de causalidade posteriormente a de motivaccedilatildeo e por fim o
princiacutepio com relaccedilatildeo ao conhecimento abstrato6 Essa ordem segue do mais simples e
imediato ao mais complexo e mediato sendo realmente uma boa sequecircncia expositiva
Apenas julgamos que ficam mais claras as teses e as relaccedilotildees que pretendemos ressaltar
quando mudamos a posiccedilatildeo da lei de motivaccedilatildeo e a expomos logo apoacutes o princiacutepio de razatildeo
do ser Ou seja iniciaremos com as intuiccedilotildees puras e o princiacutepio de razatildeo do ser passando ao
sujeito da voliccedilatildeo e agrave lei de motivaccedilatildeo em seguida ao entendimento suas intuiccedilotildees empiacutericas
e a causalidade por fim aos conceitos e ao princiacutepio de razatildeo do conhecer
Embora heterodoxa essa sequecircncia expositiva ao que nos parece natildeo eacute
de todo infundada Schopenhauer se baseia na complexidade das formas do princiacutepio de
razatildeo enquanto noacutes pensamos na complexidade dos objetos Ao que nos parece assim se
torna mais claro o caraacuteter especiacutefico do sujeito do querer bem como fica realccedilada sua relaccedilatildeo
com o sentido interno e com a intuiccedilatildeo singular de um objeto uacutenico para cada indiviacuteduo
Entendemos que natildeo haacute prejuiacutezo em nos debruccedilarmos somente depois sobre as intuiccedilotildees
empiacutericas que envolvem tanto o tempo quanto o espaccedilo ao passo que o sujeito do querer eacute
intuiacutedo somente no tempo Certamente a lei de motivaccedilatildeo exige que o agente conheccedila o
mundo o que passa pela lei de causalidade mas eacute possiacutevel compreender sua estrutura e seu
objeto especiacutefico sem detalhar como se datildeo concretamente as accedilotildees
Schopenhauer declara que a descoberta e a descriccedilatildeo do princiacutepio de
razatildeo foram feitas por meio de duas leis transcendentais da razatildeo as quais servem de regra
para o meacutetodo de toda a filosofia e todo o conhecimento a saber a especificaccedilatildeo e a
homogeneidade Por meio desta uacuteltima diz ele satildeo encontradas as semelhanccedilas e
concordacircncias nos objetos que satildeo agrupados em conceitos de espeacutecies estas em gecircneros e
estes em conceitos mais amplos A primeira por sua vez diferencia os conceitos das espeacutecies
em um determinado gecircnero os indiviacuteduos dentro das espeacutecies e quaisquer conceitos em geral
Para Schopenhauer tratam-se de satildeo leis da razatildeo pura agraves quais os objetos devem
necessariamente se adequar Nas palavras dele
Kant ensina que essas duas leis transcendentais satildeo princiacutepios da razatildeo que
postulam a priori a concordacircncia das coisas consigo mesmos e Platatildeo
6 UumlV sect46 p178 CR sect46 p 214-215
- 80 -
parece tambeacutem expressaacute-lo do seu modo na medida em que diz que essas
regras agraves quais toda ciecircncia deve sua origem foram-nos jogadas da morada
dos deuses com o fogo de Prometeu7
Eacute digno de nota que Schopenhauer mencione essas duas leis da razatildeo tal
como Kant as pensou como os fundamentos de seu meacutetodo de descoberta Como
mostraremos mais agrave frente o filoacutesofo reduziu muito o acircmbito de atuaccedilatildeo da razatildeo natildeo
contemplando os princiacutepios sinteacuteticos que Kant atribui a ela No caso dessas duas leis
Schopenhauer as utiliza para encontrar o ponto de partida que seraacute depois o fundamento de
todo e qualquer conhecimento o que leva a crer que elas estatildeo em um posto mais originaacuterio e
elevado do que o do princiacutepio de razatildeo Apesar disso o filoacutesofo as refere no seu tratado como
o meacutetodo heuriacutestico com o qual se deduz o princiacutepio
De qualquer forma as leis de homogeneidade e de especificaccedilatildeo satildeo
apontadas aqui como as regras do meacutetodo filosoacutefico Dentre as duas diz Schopenhauer a de
especificaccedilatildeo eacute particularmente relevante para o estudo do princiacutepio de razatildeo enquanto o uso
isolado da de homogeneidade teria conduzido a muitos erros Isso se explicaria porque
embora tenha sido bastante investigado atraveacutes da Histoacuteria natildeo se teria ainda compreendido
as aplicaccedilotildees e significaccedilotildees distintas dele Essa consideraccedilatildeo se torna importante porque
Schopenhauer formula o princiacutepio de razatildeo como uma estrutura uacutenica que permite interligar
as diferentes faculdades do intelecto o que eacute imprescindiacutevel para uma soluccedilatildeo satisfatoacuteria aos
problemas postos pelas criacuteticas feitas a Kant De acordo com isso ele escreve ldquo[] esforccedilo-
me nesse tratado em assentar o princiacutepio de razatildeo suficiente como um juiacutezo com um
fundamento quaacutedruplo natildeo quatro diferentes fundamentos que teriam levado por azar ao
mesmo juiacutezo mas um princiacutepio quaacutedruplo que nomeio figuradamente quaacutedrupla raizrdquo8 Daiacute a
utilidade maior do princiacutepio de especificaccedilatildeo que permite discernir no tronco uacutenico suas
diferentes aplicaccedilotildees e raiacutezes Especiacuteficos tambeacutem satildeo os modos em que se apresenta a
necessidade que ele possui enquanto elemento a priori a qual diz o filoacutesofo ldquo[] natildeo eacute a
uacutenica nem a mesma em toda parte mas sim muacuteltipla como as proacuteprias fontes do princiacutepiordquo9
Schopenhauer elege a formulaccedilatildeo com que Wolff enuncia o princiacutepio
ldquoNihil est sine ratione cur potius sit quam non sitrdquo10
considerando que ela possui a
generalidade exigida para enquadrar cada uma das quatro formas Em linhas gerais o
7 UumlV sect1 p 12 CR sect1 p 30
8 UumlV sect33 p 133-134 CR sect33 p 164
9 UumlV sect3 p 13 CR sect3 p 31
10 UumlV sect5 p 15 CR sect5 p 33
- 81 -
princiacutepio determina que nada pode ser sem uma razatildeo pela qual eacute ou nas palavras do
filoacutesofo ldquoO sentido geral do princiacutepio de razatildeo resume-se a que sempre e em toda parte cada
coisa somente eacute em razatildeo de outrardquo11
Em Da quaacutedrupla raiz Schopenhauer resume os
significados e as ideias anteriores agrave sua proacutepria concepccedilatildeo do princiacutepio jaacute conhecido desde a
Antiguidade12
De maneira ampla ele teria sido notado como algo importante por diversos
filoacutesofos mas as diferenccedilas existentes entre suas formas natildeo teria sido percebida e uma
confusatildeo teria se instalado principalmente entre causa e razatildeo de conhecimento Ateacute mesmo
Aristoacuteteles teria cometido esse erro pois embora tivesse divisado diferentes princiacutepios e
distintas causas atuando no mundo concreto13
natildeo teria separado estas uacuteltimas da razatildeo de
conhecimento14
Via de regra as causas fiacutesicas eram confundidas com as razotildees loacutegicas que
sustentam raciociacutenios resultando em argumentaccedilotildees que incorriam na falaacutecia non causae ut
causa15
Segundo o filoacutesofo esse eacute o caso do argumento ontoloacutegico em que se misturam a
razatildeo de conhecimento do conceito de Deus que eacute dada pela sua definiccedilatildeo com a causa fiacutesica
de um mundo dotado de realidade No fim de contas diz ele ldquo[] esse Deus tem com o
mundo a relaccedilatildeo de um conceito com sua definiccedilatildeordquo16
Eacute curioso que Schopenhauer natildeo tenha mencionado entre as formulaccedilotildees
anteriores agrave sua a concepccedilatildeo de Christian August Crusius No sect 11 de Da quaacutedrupla raiz
ele discorre brevemente sobre o entendimento dos filoacutesofos situados entre Wolff e Kant
passando por Baumgartem Reimarus Lambert e Platner mas natildeo se reporta agravequele17
Conforme se lecirc em Cassirer a compreensatildeo de Crusius a respeito do princiacutepio de razatildeo
suficiente eacute bastante proacutexima agrave de Schopenhauer inclusive com a posiccedilatildeo privilegiada que
este confere ao conhecimento intuitivo Um primeiro ponto de contato poderia ser apontado
em que para Crusius natildeo se pode remeter todo o conhecimento a conceitos abstratos mas
escreve Cassirer ldquoEm vez de comeccedilar pelos bdquoconceitos possiacuteveis‟ para partindo deles
como faz Wolff esforccedilar-se em determinar o real por meio de determinaccedilotildees loacutegicas
11
UumlV sect52 p 187 CR sect52 p 224 (grifos do autor) 12
No capiacutetulo II de Da quaacutedrupla raiz Schopenhauer discute diversas formulaccedilotildees e teorizaccedilotildees sobre o
princiacutepio de razatildeo Aleacutem dos de Leibniz e Wolff menciona o entendimento de Platatildeo Aristoacuteteles Plutarco
estoicos escolaacutesticos Suarez Hobbes Reimarus Schulze Fries Descartes Espinosa Baumgarten Lambert
Platner Hume Kant Eberhardt Hofbauer Maass Jakob Kiesewetter Jacobi Maimon e Schelling Cf UumlV
zweites Kap sectsect6-14 p 16-38 CR cap II sectsect6-14 p 34-56 13
Cf ARISTOacuteTELES An Post II 11 94a-95a Metafiacutesica Livro I (A) 3 983b-984a An Post I 32 88a-
89a 14
UumlV sect6 p 18 CR sect6 p 36-37 15
UumlV sect6 p 19 et seq CR sect6 p 36 et seq Na falaacutecia da falsa causa atribui-se a um efeito uma causa que natildeo
lhe corresponde 16
UumlV sect8 p 28 CR sect8 p 46 17
UumlV sect11 p 33-34 CR sect11 p 51-52
- 82 -
progressivas devemos seguir o caminho inversordquo18
Uma segunda conexatildeo poderia ser
indicada na visatildeo de que o conhecimento tem de comeccedilar pelos sentidos e de que a mera
anaacutelise loacutegica de conceitos natildeo constitui verdadeiro saber19
Um terceiro e mais importante
ponto de contato entre o pensamento de Schopenhauer e de Crusius acerca do princiacutepio de
razatildeo seria o de que este uacuteltimo distingue tatildeo clara e conscientemente quanto aquele a causa
real de um acontecimento e o fundamento do conhecer Nas palavras de Cassirer ldquo[] em
Crusius surge o esquema geral que haveraacute de manter-se em peacute ateacute chegar aos tempos
modernos e que reaparece por exemplo quase inalteraacutevel na obra de Schopenhauer Da
quaacutedrupla raiz do princiacutepio de razatildeo suficienterdquo20
De qualquer modo Schopenhauer considera que uma das suas grandes
contribuiccedilotildees eacute a diferenciaccedilatildeo e descriccedilatildeo de cada uma das quatro raiacutezes do princiacutepio bem
como de seu funcionamento e aplicaccedilatildeo a objetos especiacuteficos E ele se empenha nisso seguro
de que a distinccedilatildeo e a fundamentaccedilatildeo precisas satildeo realizaccedilotildees exclusivamente suas Leibniz e
Wolff teriam sido os que mais se acercaram da concepccedilatildeo que advoga mas cada qual teria
errado de um modo O primeiro diz ele chegou a perceber a diferenccedila entre causa e
fundamento do conhecer mas sem se deter nela claramente o segundo embora tivesse
realizado o que faltou agravequele teria confundido diversas vezes as formas do princiacutepio e errado
tambeacutem em consideraacute-lo ontoloacutegico e natildeo loacutegico como ele proacuteprio defende21
Com efeito o princiacutepio se manifesta em quatro leis loacutegicas de diferentes
faculdades intelectuais e se aplica ao pensamento de todos os objetos resumindo em si o
aparato cognitivo como um todo Na medida em que eacute a condiccedilatildeo de possibilidade do
conhecimento do pensamento e da proacutepria demonstraccedilatildeo ele eacute indemonstraacutevel Como
escreve o filoacutesofo ldquoToda prova eacute exatamente a apresentaccedilatildeo de uma razatildeo para um juiacutezo
proferido o qual por isso recebe o predicado de verdadeirordquo22
A raiz do princiacutepio consiste no
seu significado geral e tudo o que podemos conhecer deve passar por ele sem o seu
intermeacutedio nada pode tornar-se objeto para noacutes23
No livro I de O mundo Schopenhauer
resume sua realizaccedilatildeo ldquoNo meu tratado sobre o princiacutepio de razatildeo mostrei minuciosamente
como cada objeto possiacutevel estaacute submetido a ele isto eacute estaacute em uma relaccedilatildeo necessaacuteria com
18
CASSIRER op cit II p 481 (grifos do autor) 19
Ibidem p 483ss 20
Ibidem p 503 21
UumlV sect9 p 31 CR sect9 p 49 22
UumlV sect14 p 38 CR sect14 p 56 (grifos do autor) 23
UumlV sect16 p 41 CR sect16 p 59
- 83 -
outros objetos de um lado como determinado de outro determinando []rdquo24
Por
conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente estaacute na base dos objetos dos conceitos dos
raciociacutenios da loacutegica da matemaacutetica das ciecircncias numa palavra do mundo e do
conhecimento do mundo Todas as faculdades cognitivas descobertas por Schopenhauer a
saber sensibilidade entendimento e razatildeo assim como quaisquer objetos possiacuteveis estatildeo
intrinsecamente ligados ao princiacutepio e satildeo remetidos pelo filoacutesofo agraves relaccedilotildees entre sujeito e
objeto ou o que eacute o mesmo entre sujeito e representaccedilatildeo Esse pensamento eacute sintetizado com
as palavras seguintes
Nossa consciecircncia cognoscente que se apresenta como sensibilidade
exterior e interior (receptividade) entendimento e razatildeo divide-se em
sujeito e objeto e fora disso nada conteacutem Ser objeto para o sujeito e ser
nossa representaccedilatildeo eacute o mesmo Todas as nossas representaccedilotildees satildeo objetos
do sujeito e todos os objetos do sujeito satildeo nossas representaccedilotildees Com
efeito todas as nossas representaccedilotildees encontram-se relacionadas entre si de
modo regular e determinaacutevel a priori quanto agrave forma pela qual nada
existente por si e independente bem como isolado e fragmentado pode
tornar-se objeto par noacutes25
Como dissemos antes o princiacutepio de razatildeo eacute indemonstraacutevel jaacute que eacute o
fundamento de toda a demonstraccedilatildeo e explicaccedilatildeo De modo semelhante o sujeito do
conhecimento natildeo pode ser ele mesmo conhecido pois diz Schopenauer ldquo[] para isso se
exigiria que o sujeito se separasse do conhecer e entatildeo conhecesse o conhecer o que eacute
impossiacutevelrdquo26
De acordo com Cacciola o filoacutesofo assimilou essa liccedilatildeo de Kant para quem o
sujeito transcendental como mera forma natildeo pode ser conhecido por si mas apenas por meio
das suas representaccedilotildees Na criacutetica dos paralogismos da razatildeo pura diz a autora ldquo[]
Schopenhauer iraacute detectar a proposta idealista kantiana ou seja a afirmaccedilatildeo impliacutecita de que
bdquonatildeo haacute objeto sem sujeito‟rdquo27
No mesmo sentido o filoacutesofo argumenta que as faculdades
cognitivas natildeo podem ser conhecidas diretamente mas apenas inferidas a partir dos tipos de
objetos aos quais se aplicam As faculdades representativas satildeo vistas por ele como os
correlatos subjetivos das classes de objetos possiacuteveis como capacidades cognitivas abstraiacutedas
dos tipos de representaccedilatildeo28
Portanto sujeito e objeto satildeo definidos reciprocamente isto eacute
24
WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I Livro I sect2 p 46 25
UumlV sect16 p 41 CR sect16 p 59 (grifos do autor) 26
UumlV sect41 p 169 CR sect41 p 203 27
CACCIOLA M L A criacutetica da Razatildeo no pensamento de Schopenhauer Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Faculdade
de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Departamento de Filosofia Satildeo Paulo
1981 p 13 28
UumlV sect41 p 169-170 CR sect41 p 204
- 84 -
todo objeto exige um sujeito que conhece como seu correlato necessaacuterio e vice-versa29
Nas
palavras do filoacutesofo
[] com um objeto determinado de certa forma coloca-se exatamente e de
modo imediato tambeacutem o sujeito como conhecendo dessa tal forma Assim
eacute indiferente se eu digo os objetos possuem tais e tais determinaccedilotildees
particulares e proacuteprias ou que o sujeito conhece de tais e tais modos
indiferente se eu digo os objetos satildeo divididos em tais classes ou que ao
sujeito satildeo proacuteprias tais diferentes faculdades cognoscitivas30
Mais do que isso cada classe de representaccedilotildees soacute possui existecircncia para
o seu correlato subjetivo ou faculdade de conhecimento correspondente31
A muacutetua
condicionalidade existente entre sujeito e objeto fica entatildeo ressaltada jaacute que a compreensatildeo
de um exige a do outro e a formulaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo expressaraacute a estrutura e o
funcionamento das faculdades intelectuais em ligaccedilatildeo intriacutenseca com os objetos Por
conseguinte a correlaccedilatildeo que Schopenhauer estabelece entre as faculdades e as
representaccedilotildees natildeo deixa lacuna para que se questione o mecanismo de adequaccedilatildeo entre
sujeito e objeto O princiacutepio de razatildeo sozinho fornece uma fundamentaccedilatildeo para o
conhecimento do mundo fenomecircnico que natildeo demanda nada para aleacutem de si proacuteprio Esse eacute o
modo em que Schopenhauer soluciona a questatildeo quid juris isto eacute ele demonstra que o
mundo eacute mera representaccedilatildeo do sujeito natildeo existindo antes ou separado deste Essa opiniatildeo eacute
semelhante agrave de F C White para quem
Uma vez fornecido esse resumo seletivo eacute possiacutevel dizer de uma soacute vez
onde reside a importacircncia de Da quaacutedrupla raiz com respeito ao sistema de
Schopenhauer Reside na sua tentativa de estabelecer que o mundo cotidiano
eacute representacional de estabelecer que os princiacutepios de razatildeo governam
aquele mundo sem licenccedila para nenhuma inferecircncia agrave realidade para aleacutem
dele e de refutar muitas das alegaccedilotildees dos que sustentam o contraacuterio32
29
WWV I ersters Buch sect5 p 44 M I Livro I sect5 p 56 30
UumlV sect41 p 170 CR sect41 p 204 (grifos do autor) 31
WWV I ersters Buch sect4 p 41 M I Livro I sect4 p 53 32
WHITE F C The fourfold root In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer
Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 64 (traduccedilatildeo nossa)
- 85 -
212 ndash Formas da sensibilidade intuiccedilotildees puras e sujeito da voliccedilatildeo
Na medida em que eacute fundada pelo princiacutepio de razatildeo a realidade
empiacuterica se reduz a representaccedilatildeo do sujeito que a origina e a condiciona por meio das suas
formas a priori eacute assim que a realidade do mundo como representaccedilatildeo coexiste com a sua
idealidade transcendental33
A demonstraccedilatildeo de Schopenhauer acerca da idealidade
transcendental do mundo segue dois caminhos distintos O primeiro jaacute elaborado antes por
Kant se bem que de modo diferente eacute o esclarecimento da anterioridade das noccedilotildees de tempo
e espaccedilo com relaccedilatildeo agrave experiecircncia como um todo O segundo que seraacute desenvolvido no
proacuteximo item refere-se agrave edificaccedilatildeo do universo empiacuterico com base no princiacutepio de razatildeo
suficiente
Kant demonstrou a aprioridade das formas do tempo e do espaccedilo dos
pontos de vista ontoloacutegico e transcendental No primeiro caso ele argumentou que natildeo nos eacute
possiacutevel representar nada que natildeo seja espacial e temporalmente situado As representaccedilotildees
do tempo e do espaccedilo se apresentariam a noacutes como dotadas de unidade e infinitude o que
evidenciaria natildeo se tratar de conceitos empiacutericos De um lado cada uma delas seria intuiacuteda
como una e como abrangendo em si as partes menores ou seja cada intuiccedilatildeo parcial do
tempo e do espaccedilo seria remetida a uma representaccedilatildeo total anterior de que natildeo se poderia de
antematildeo ter um conhecimento Com efeito a unidade do tempo e a do espaccedilo natildeo poderiam
ser obtidas pela junccedilatildeo de todas as partes respectivas jaacute que as proacuteprias partes seriam
limitaccedilotildees daquela unidade e seriam pensaacuteveis por meio dela De outro lado as intuiccedilotildees do
tempo e do espaccedilo seriam pensadas como infinitas e no entanto nenhum conceito poderia
abrarcar uma infinidade de representaccedilotildees Do ponto de vista do exame transcendental Kant
define tempo e espaccedilo como princiacutepios dos quais derivam conhecimentos sinteacuteticos a priori
A Geometria fundada sobre o espaccedilo a priori comprovaria a existecircncia desse tipo de
conhecimento em funccedilatildeo da necessidade das suas proposiccedilotildees Para Kant a necessidade e a
33
WWV I ersters Buch sect1 p 32 M I Livro I sect1 p 44
- 86 -
universalidade indicam tratar-se de conhecimento a priori jaacute que na experiecircncia natildeo haacute nada
que apresente a mesma apodicticidade34
A argumentaccedilatildeo schopenhaueriana acerca do tempo e do espaccedilo procura
demonstrar que o conjunto da realidade empiacuterica natildeo poderia existir sem aquelas formas que
portanto satildeo anteriores e constitutivas Na obra Schopenhauer Patrick Gardiner afirma sobre
esse ponto que tempo e espaccedilo ldquoSatildeo formas da nossa bdquosensibilidade‟ o que equivale a dizer
entre outras coisas que estamos constituiacutedos de tal modo que tudo aquilo de que somos
conscientes em nossa experiecircncia sensorial deve se apresentar a noacutes em termos espaccedilo-
temporaisrdquo35
Conforme Schopenhauer o tempo eacute a forma do sentido interno constituiacuteda pela
sucessatildeo pela qual os fenocircmenos aparecem sempre de modo subsequente O espaccedilo por sua
vez eacute a forma do sentido externo que determina a representaccedilatildeo dos fenocircmenos de modo
contiacuteguo constituiacuteda pela justaposiccedilatildeo Embora de certo modo antagocircnicas ambas essas
formas satildeo exigidas para a intuiccedilatildeo do mundo pois diz o filoacutesofo ldquoAs representaccedilotildees
empiacutericas que pertencem ao complexo organizado da realidade aparecem todavia nas duas
formas ao mesmo tempo e aleacutem disso a uniatildeo estreita de ambas eacute uma condiccedilatildeo da
realidade a qual surge ateacute certo ponto como um produto desses fatoresrdquo36
Schopenhauer sustenta entatildeo que as representaccedilotildees da simultaneidade e
da mudanccedila caracteriacutesticas estruturais da realidade empiacuterica satildeo dependentes das formas do
tempo e do espaccedilo Com isso ele demonstra que sua junccedilatildeo eacute a condiccedilatildeo de possibilidade do
conjunto da experiecircncia e que portanto tempo e espaccedilo satildeo formas a priori Todas as outras
representaccedilotildees possiacuteveis estariam vinculadas agraves da simultaneidade e da mudanccedila de forma
que a argumentaccedilatildeo acerca destas se estenderia agraves restantes Com relaccedilatildeo agrave representaccedilatildeo da
simultaneidade Schopenhauer explica que embora tenha caraacuteter temporal ela exige tanto o
tempo quanto o espaccedilo pois o tempo natildeo pode garantir a existecircncia paralela de duas
representaccedilotildees jaacute que eacute mera sucessatildeo exigindo-se tambeacutem o espaccedilo para que ambas sejam
situadas lado a lado num instante dado Do modo semelhante o espaccedilo eacute justaposiccedilatildeo natildeo
permitindo apenas por si a simultaneidade entre dois estados o que se daacute pela existecircncia de
suas representaccedilotildees ao mesmo tempo37
No tocante agrave mudanccedila dos objetos tempo e espaccedilo
tambeacutem seriam requeridos conjuntamente Somente com o espaccedilo natildeo poderia haver a
34
KrV B3 ndash B6 CRP p 37-39 35
GARDINER P Schopenhauer Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1997 p 133 (traduccedilatildeo nossa) (grifos
do autor) 36
UumlV sect18 p 43 CR sect18 p 63 (grifos do autor) 37
UumlV sect18 p 42-43 CR sect18 p 62
- 87 -
sucessatildeo de estados que caracteriza a mudanccedila somente com o tempo natildeo haveria qualquer
estado a ser modificado No primeiro livro de O mundo o filoacutesofo esclarece esse ponto
afirmando que ldquoA mudanccedila isto eacute a alteraccedilatildeo introduzida pela lei causal refere-se todas as
vezes a uma parte determinada do espaccedilo e a uma parte determinada do tempo
simultaneamente e juntasrdquo38
Por sua vez as noccedilotildees de duraccedilatildeo e permanecircncia tambeacutem
imprescindiacuteveis para a constituiccedilatildeo do mundo dos fenocircmenos seriam dependentes das de
mudanccedila e simultaneidade Em funccedilatildeo disso embora sejam noccedilotildees mais ligadas ao tempo
requerem tambeacutem a contribuiccedilatildeo do espaccedilo como forma Nas palavras de Schopenhauer ldquoA
permanecircncia de um objeto soacute eacute conhecida por meio da oposiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave mudanccedila de
outro com o qual eacute simultacircneordquo39
O mesmo pode ser afirmado sobre a duraccedilatildeo que tambeacutem
se liga agrave simultaneidade Assim a sucessatildeo e a justaposiccedilatildeo seriam condiccedilotildees fundamentais
do mundo empiacuterico pelas quais tempo e espaccedilo se tornariam o tecido onde se desenham os
fenocircmenos e sem as quais natildeo se poderia falar em duraccedilatildeo mutaccedilatildeo simultaneidade ou
permanecircncia Conforme a explicaccedilatildeo de Gardiner ldquoDaiacute que seja tatildeo impossiacutevel conceber
objetos materiais que existam em um mundo puramente temporal como conceber sua
existecircncia em um mundo puramente espacial supondo que mundos de uma ou outra classe
pudessem ser imaginaacuteveisrdquo40
A intuiccedilatildeo a priori do tempo e do espaccedilo constitui os objetos especiacuteficos
aos quais o princiacutepio de razatildeo suficiente se aplica nesse caso o do ser Tais objetos satildeo
intuiccedilotildees puras que natildeo podem ser extraiacutedas da experiecircncia como por exemplo o ponto a
linha a extensatildeo e a divisibilidade infinita e que se distinguem das intuiccedilotildees empiacutericas em
funccedilatildeo da ausecircncia de mateacuteria41
A sucessatildeo e a justaposiccedilatildeo satildeo as relaccedilotildees proacuteprias e
intriacutensecas respectivamente das partes do tempo e das do espaccedilo relaccedilotildees que satildeo de
condicionamento muacutetuo Gardiner ilustra esse ponto de modo interessante
Se por exemplo perguntam-me quando ocorreu algo posso responder
relacionando temporalmente o fato com outro momento ou ocasiatildeo cuja
posiccedilatildeo na escala do tempo jaacute eacute conhecida pela pessoa com quem estou
falando de modo parecido se me perguntam onde estaacute algo posso
38
WWV I ersters Buch sect4 p 39 M I Livro I sect4 p 51 (grifos do autor) 39
UumlV sect18 p 43 CR sect18 p 62 (grifos do autor) 40
GARDINER op cit p 146 (traduccedilatildeo nossa) 41
UumlV sect35 p 157 CR sect35 p 189-190
- 88 -
responder sempre indicando suas relaccedilotildees com outros pontos ou aacutereas
espaciais42
Como formas da sensibilidade a sucessatildeo e a justaposiccedilatildeo satildeo a priori e
natildeo podem ser remetidas a nada conhecido empiricamente mas antes qualquer representaccedilatildeo
de posicionamento antecedecircncia ou progressatildeo de objetos as exige Pois afirma
Schopenhauer
[] essa intuiccedilatildeo natildeo eacute como uma representaccedilatildeo fictiacutecia tomada de
empreacutestimo da repeticcedilatildeo da experiecircncia mas sim tatildeo independente desta
que pelo contraacuterio a experiecircncia eacute que deve ser pensada como dependente
daquela enquanto as qualidades do tempo e do espaccedilo como satildeo conhecidas
a priori na intuiccedilatildeo satildeo leis para toda a experiecircncia possiacutevel a qual tem de
concordar com elas em toda parte43
O princiacutepio de razatildeo suficiente do ser (Satz vom zureichenden Grunde
des Seins) ou principium rationis sufficientis essendi eacute a lei segundo a qual se datildeo as
relaccedilotildees no tempo e no espaccedilo Segundo Gardiner essa forma do princiacutepio difere claramente
de outras pois ele explica ldquo[] a igualdade dos lados de um triacircngulo eacute a ratio essendi da
igualdade dos acircngulos embora a relaccedilatildeo entre a bdquorazatildeo‟ e a bdquoconsequecircncia‟ seja aqui
necessaacuteria natildeo eacute uma relaccedilatildeo de causal ou uma relaccedilatildeo de vinculaccedilatildeo loacutegicardquo44
No caso do
espaccedilo a posiccedilatildeo de cada objeto determina a de todos os outros em uma relaccedilatildeo reciacuteproca de
consequecircncia a razatildeo sem que esteja implicada uma ordem de precedecircncia entre ambas45
Nas
palavras de Schopenhauer ldquo[] eacute indiferente qual seraacute entendida como determinante qual
como determinada isto eacute como ratio (fundamento) e a outra como rationata (fundada)rdquo46
Em virtude disso como tambeacutem da sua infinitude a cadeia das razotildees de ser no espaccedilo eacute
infinita tanto a parte ante quanto a parte post e todas as parcelas de espaccedilos possiacuteveis satildeo
figuras contiacuteguas que se limitam mutuamente Como o filoacutesofo escreve ldquoA series rationum
essendi (seacuterie das razotildees de ser) no espaccedilo assim como a series rationum fiendi (seacuterie das
razotildees do devir) segue in infinitum (ao infinito) e natildeo somente em uma soacute como esta uacuteltima
mas em todas as direccedilotildeesrdquo47
No caso do tempo o condicionamento das suas partes se daacute do
momento anterior para o posterior e o princiacutepio de razatildeo do ser eacute bastante simples a saber
apenas a lei de sucessatildeo num soacute sentido Entatildeo diz Schopenhauer ldquoCada momento eacute
42
GARDINER op cit p 143 (traduccedilatildeo nossa) 43
WWV I ersters Buch sect3 p 35-36 M I Livro I sect3 p 47 44
GARDINER op cit p 142 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 45
UumlV sect37 p 159 CR sect37 p 191 46
UumlV sect37 p 159 CR sect37 p 191 47
UumlV sect37 p 160 CR sect37 p 192
- 89 -
determinado pelo anterior somente por meio deste pode-se chegar agravequele apenas quando
aquele foi decorreu este eacuterdquo48
Na obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia Alexis Philonenko
observa bem que o tempo possui uma expressatildeo mais simples e tambeacutem mais ampla do que o
espaccedilo Nesse sentido ele afirma ldquo[] Schopenhauer faz observar que o tempo natildeo eacute
somente a dimensatildeo na qual se produz toda a intuiccedilatildeo mas tambeacutem todo pensamento
incluiacutedas as noccedilotildees abstratas Ademais eacute no tempo onde se desenvolve a vontaderdquo49
De fato
aleacutem das intuiccedilotildees puras no tempo abordadas na aritmeacutetica o sentido interno intui um objeto
totalmente distinto dos mencionados ateacute agora a saber o sujeito da voliccedilatildeo Este eacute uma classe
de representaccedilotildees para o sujeito cognoscente mas que possui a peculiaridade de ser apenas
um objeto para cada indiviacuteduo Como o filoacutesofo explica essa classe abrange ldquo[] um objeto
para cada um o objeto imediato do sentido interno o sujeito do querer o qual eacute objeto para
o sujeito cognoscente e de fato eacute dado soacute no sentido interno soacute no tempo natildeo aparece no
espaccedilo e como veremos mesmo assim com uma significativa limitaccedilatildeordquo50
Em siacutentese o
sujeito da voliccedilatildeo eacute a consciecircncia que cada sujeito tem de si mesmo como ser desejante
Como expusemos acima o sujeito cognoscente natildeo pode conhecer-se
enquanto tal pois isso implicaria separar-se de si mesmo mas na condiccedilatildeo de desejante
torna-se possiacutevel conhecer-se No capiacutetulo 4 de O mundoII acerca do conhecimento a
priori Schopenhauer esclarece que ldquoO tempo eacute desse modo a forma por meio da qual a
vontade individual que originalmente e em si mesma natildeo possui qualquer conhecimento
pode autoconhecer-serdquo51
Sem esse conhecimento interno o sujeito conheceria a si mesmo
apenas como algo externo dado pelos sentidos isto eacute como objeto espacializado Seria uma
concepccedilatildeo singulariacutessima na Histoacuteria da Filosofia na qual o sujeito que conhece e age sempre
foi identificado com algo interno na maior parte das vezes como uma alma
Eacute interessante notar que na argumentaccedilatildeo schopenhaueriana a
consciecircncia apresenta uma cisatildeo interna dividindo-se ela tambeacutem em sujeito e objeto O
objeto eacute constituiacutedo por uma classe especial de representaccedilotildees dada no tempo e regida por
sua forma particular do princiacutepio de razatildeo o sujeito eacute o mesmo que conhece todos os outros
48
UumlV sect38 p 160 CR sect38 p 193 (grifos do autor) 49
PHILONENKO A Schopenhauer una filosofia de la tragedia Barcelona Anthropos 1989 p 94 (traduccedilatildeo
nossa) 50
UumlV sect40 p 168 CR sect40 p 202 (grifos do autor) 51
WWWII Kap 4 p 49 MII cap 4 p 43
- 90 -
objetos E assim encontramos um objeto especiacutefico e individualizado por assim dizer
inserido no sentido interno isto eacute dentro da consciecircncia No caso desse objeto Schopenhauer
natildeo fala em faculdade de conhecimento somente em um correlato subjetivo que eacute a
consciecircncia de si ou sentido interno52
A vontade individual eacute uacutenica para cada indiviacuteduo mas
pode apresentar-se em muacuteltiplos graus e intensidades os quais satildeo definidos como
sentimentos dados imediatamente ao sujeito do conhecer Em virtude disso diz o filoacutesofo ldquoA
partir do conhecimento pode-se dizer que ldquoeu conheccedilordquo seja uma sentenccedila analiacutetica ao
contraacuterio ldquoeu querordquo eacute sinteacutetica e na verdade a posteriori dada pela experiecircncia aqui pela
interna (isto eacute somente no tempo)rdquo53
O conhecimento do sujeito do querer eacute entatildeo o mais imediato de todos
posto que eacute dado na consciecircncia de si e eacute o que deveraacute mediar o conhecimento de quaisquer
outros objetos A forma do princiacutepio de razatildeo que rege o sujeito do querer eacute a lei de
motivaccedilatildeo (Satz vom zureichenden Grunde des Handelns) ou principium rationis sufficientis
agendi pela qual todas as accedilotildees e decisotildees dos indiviacuteduos satildeo resultantes de motivos do
mesmo modo como todo efeito implica uma causa Essa lei eacute apresentada por Schopenhauer
como completamente paralela agrave de causalidade que investigaremos em seguida e definida
como esta uacuteltima vista por dentro54
Em linhas gerais a lei de motivaccedilatildeo determina que as
decisotildees e os atos de vontade dos indiviacuteduos sejam originados a partir de motivos de modo
interno e imediato55
Por fim eacute importante ressaltar que essa classe de objetos eacute anunciada ao
sujeito cognoscente a partir de outra instacircncia a saber da vontade individual cuja raiz eacute
metafiacutesica Trata-se portanto de um ponto onde se encontram os dois lados do mundo
52
UumlV sect42 p 171-172 CR sect42 p 206 53
UumlV sect42 p 171 CR sect42 p 205 54
UumlV sect43 p 173 CR sect43 p 208 55
UumlV sect43 p 173 CR sect43 p 208
- 91 -
213 ndash Dianoiologia
Como dissemos no item anterior a prova schopenhaueriana da idealidade
transcendental do mundo como representaccedilatildeo segue dois caminhos Por um lado sustenta a
necessidade das formas da sensibilidade para o conjunto do mundo como representaccedilatildeo por
outro explica o mecanismo de construccedilatildeo dos objetos que o compotildeem com base no princiacutepio
de razatildeo Esta uacuteltima prova eacute realizada tambeacutem de duas perspectivas a saber pelo acircngulo do
conjunto da experiecircncia e pelo dos objetos singulares No tocante ao conjunto da experiecircncia
Schopenhauer argumenta que a uniatildeo de tempo e espaccedilo eacute obra do entendimento que ao
empreendecirc-la cria a realidade empiacuterica Essa prova poderia ser confundida com a referente agrave
aprioridade do tempo e do espaccedilo que tambeacutem satildeo acionados aqui Para a distinccedilatildeo poreacutem
basta notarmos que no primeiro caso o filoacutesofo expotildee a anterioridade das formas da
sensibilidade mostrando que a sucessatildeo e a justaposiccedilatildeo satildeo fundamentais para as
representaccedilotildees de simultaneidade e mudanccedila enquanto no segundo caso a construccedilatildeo da
realidade empiacuterica eacute explicada pelo ato de junccedilatildeo daquelas formas realizado pela lei de
causalidade No primeiro caso o alvo satildeo tempo e espaccedilo enquanto formas e no segundo o
princiacutepio de razatildeo e o entendimento White tambeacutem sublinha a necessidade do entendimento
para a formaccedilatildeo da experiecircncia ao afirmar que ldquoEmbora por essas razotildees tempo e espaccedilo
sejam necessaacuterios para a existecircncia real dos objetos eles natildeo satildeo suficientes Precisam ser
unidos por um terceiro componente e eacute a faculdade do entendimento que o fornece impondo
sua uacutenica categoria ao que lhe eacute dadordquo56
O princiacutepio de razatildeo referente ao entendimento harmoniza as
caracteriacutesticas transmitidas agrave experiecircncia pelo tempo em que tudo eacute sucessivo e pelo espaccedilo
em que tudo eacute justaposto Conforme Schopenhauer as propriedades do tempo e do espaccedilo satildeo
contrapostas isto eacute o fluxo constante do primeiro se opotildee agrave permanecircncia imoacutevel do
segundo57
Com a uniatildeo de ambos o entendimento agrupa e ordena o complexo de
representaccedilotildees que entatildeo surge e que abarca todas as intuiccedilotildees empiacutericas mesmo distantes
entre si no tempo e no espaccedilo Eacute o nascimento do universo total dos fenocircmenos onde diz o
56
WHITE op cit p 67 (traduccedilatildeo nossa) 57
WWVI ersters Buch sect4 p 39 MI Livro I sect4 p 51
- 92 -
filoacutesofo ldquo[] inumeraacuteveis objetos existem simultaneamente porque nele embora o tempo
natildeo possa ser detido a substacircncia isto eacute a mateacuteria permanece e apesar da imobilidade riacutegida
do espaccedilo seus objetos mudam no qual em uma palavra nos eacute dado todo o mundo real
objetivordquo58
Portanto o princiacutepio de razatildeo agrega as intuiccedilotildees empiacutericas que constituem a
classe de objetos relacionada aos dados concretos do mundo e assim edifica a realidade como
um todo Schopenhauer afirma que os objetos dessa classe satildeo intuitivos porque natildeo satildeo
meros pensamentos satildeo completos porque englobam forma e mateacuteria e satildeo empiacutericos pois
estatildeo em relaccedilatildeo direta com as sensaccedilotildees corporais e com o conjunto total da realidade59
Como jaacute exposto o tempo eacute o sentido interno e simultaneamente a
forma do sujeito cognoscente onde as representaccedilotildees encontram-se de modo imediato dentre
elas o sujeito da voliccedilatildeo Daiacute decorre em primeiro lugar que todas as representaccedilotildees passam
por ele inclusive as empiacutericas que tambeacutem exigem o intercurso do sentido externo E em
segundo lugar que elas fluem continuamente no sujeito Nas palavras do filoacutesofo
Desse modo como o sujeito em funccedilatildeo das leis tanto do mundo interno
como do externo natildeo pode ficar parado em uma representaccedilatildeo e no
entanto no mero tempo nada eacute simultacircneo entatildeo cada representaccedilatildeo estaraacute
sempre novamente desaparecendo substituiacuteda por outra em uma ordem natildeo
determinaacutevel a priori mas sim dependente de circunstacircncias que logo seratildeo
mencionadas60
Sobre esse ponto duas consequecircncias satildeo importantes Por um lado o
sujeito cognoscente por si soacute natildeo poderia engendrar a realidade empiacuterica pois sua forma eacute a
da sucessatildeo Por outro o conhecimento das representaccedilotildees se daacute de modo imediato no sentido
interno isto eacute no tempo e no presente de modo que passado e futuro natildeo satildeo representaccedilotildees
intuitivas
De acordo com o dito haacute uma discrepacircncia entre o caraacuteter fugidio e
isolado das representaccedilotildees tomadas individualmente e o complexo total da realidade no qual
elas aparecem como partes que se combinam de um modo ateacute certo ponto duradouro
Portanto a unificaccedilatildeo de tempo e espaccedilo pelo entendimento eacute condiccedilatildeo da experiecircncia e
nessa perspectiva diz Schopenhauer o realismo natildeo se sustenta pois considera o todo
empiacuterico como real e a representaccedilotildees isoladas como elementos meramente ideais Para ele o
idealismo entendeu a questatildeo de forma diferente e melhor porque conseguiu combinar a
58
UumlV sect18 p 44 CR sect18 p 63 59
UumlV sect17 p 42 CR sect17 p 61 60
UumlV sect19 p 45 CR sect19 p 65 (grifos do autor)
- 93 -
realidade empiacuterica dos objetos do universo corpoacutereo com a idealidade deles61
Parte
fundamental desse idealismo eacute a concepccedilatildeo de que o mundo concreto eacute um fenocircmeno do
sujeito e o erro do realismo teria sido natildeo compreender o caraacuteter de representaccedilatildeo das coisas
tomadas por reais nem a relaccedilatildeo intriacutenseca entre sujeito e objeto O realismo afirma o
filoacutesofo ldquo[] desconsidera que o objeto fora de sua relaccedilatildeo com o sujeito natildeo eacute mais objeto e
que se algueacutem lhe retira dessa relaccedilatildeo ou a abstrai imediatamente toda a existecircncia objetiva
tambeacutem eacute suspensardquo62
A forma do princiacutepio de razatildeo que estabelece a dinacircmica das
representaccedilotildees no todo empiacuterico eacute o principium rationis sufficientis fiendi (Satz vom
zureichenden Grunde des Werdens) ou princiacutepio de razatildeo suficiente do devir63
Trata-se da
lei de causalidade que determina o iniacutecio e o fim de estados da mateacuteria bem como todas as
mudanccedilas ocorridas nas representaccedilotildees no decurso do tempo Nas palavras de Schopenhauer
ldquo[] quando surge um novo estado de um ou mais objetos reais deve ter havido outro
anterior ao qual ele segue regularmente isto eacute todas as vezes em que o primeiro existe Tal
sequecircncia denomina-se derivar o primeiro estado causa e o segundo efeitordquo64
De um ponto
de vista mais preciso a lei de causalidade determina as transformaccedilotildees nos corpos materiais
iniciadas em instantes dados do tempo
Para Gardiner ldquo[] Schopenhauer natildeo considerou que a conexatildeo causal
entre fenocircmenos implicasse a existecircncia de uma espeacutecie de bdquouniatildeo‟ ou bdquolaccedilo‟ quase-loacutegico
que unisse misteriosamente a causa ao efeito nisso sua posiccedilatildeo natildeo difere da de Hume e
outros que atacaram essa ideiardquo65
Por nossa parte pensamos que o viacutenculo estabelecido por
Schopenhauer entre causa e efeito eacute sim loacutegico pois se baseia na ideia de uma uniatildeo
necessaacuteria entre ambos em qualquer das duas direccedilotildees possiacuteveis isto eacute do efeito para a causa
ou da causa para o efeito Eacute certo que na visatildeo schopenhaueriana sem recurso agrave experiecircncia
natildeo se pode determinar a causa concreta que engendrou um efeito mas se pode e se deve
afirmar com certeza que o efeito teve uma causa quando natildeo se puder apontaacute-la o estado
resultante seraacute visto como milagre Com efeito para o filoacutesofo toda causa acarreta
indefectivelmente o seu efeito sem exceccedilatildeo sendo exatamente esse seu conceito de
61
UumlV sect18 p 46 CR sect18 p 66 62
UumlV sect19 p 47 CR sect19 p 66 63
UumlV sect20 p 48 CR sect20 p 68 64
UumlV sect20 loc cit CR sect20 loc cit 65
Ibidem op cit p 152 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor)
- 94 -
necessidade Aleacutem disso Schopenhauer entende o princiacutepio como composto de quatro leis
loacutegicas como jaacute mostramos anteriormente
A natureza se configura como um complexo empiacuterico em constante
mutaccedilatildeo e alteraccedilatildeo de estados em que causas e efeitos alternam-se permanentemente como
elos de uma cadeia sem iniacutecio66
Que essa cadeia seja infinita na direccedilatildeo descendente isto eacute
no sentido do futuro decorre jaacute da definiccedilatildeo de tempo como a forma da sucessatildeo que
somente pode se dar do anterior para o posterior Que ela seja tambeacutem infinita na direccedilatildeo
ascendente Schopenhauer ilustra com o exemplo do processo de aquecimento de um corpo A
adiccedilatildeo do calor ao corpo diz ele ldquo[] eacute tambeacutem dependente de uma mudanccedila anterior por
exemplo a incidecircncia de raios de sol em uma lupa esta da saiacuteda de uma nuvem da frente do
sol esta por causa do vento isso pela diferenccedila de densidade do ar esta por outras
mudanccedilas in infinitumrdquo67
Para ele o que determina a apariccedilatildeo de um estado novo o
aquecimento do corpo por exemplo natildeo eacute a condiccedilatildeo que aparece por uacuteltimo a incidecircncia de
raios de sol e sim todas as condiccedilotildees em conjunto Embora a uacuteltima possa ser a decisiva o
que determina qualquer transformaccedilatildeo eacute o quadro causal completo
Por conseguinte natildeo eacute o fato de ser imediatamente anterior no tempo o
que indica a causa de uma mudanccedila mas sim a reuniatildeo dos fatores que juntos formam as
circunstacircncias determinantes Entatildeo o filoacutesofo explica no caso mencionado do aquecimento
do corpo a ordem em que ocorreram os eventos natildeo importa isto eacute em que instantes se datildeo a
retirada da nuvem da frente do sol o direcionamento da lupa ao objeto e assim por diante Um
evento acontecer antes e o outro depois natildeo tem nenhuma influecircncia especiacutefica sobre o efeito
pois diz ele ldquo[] o estado completo eacute a causa do estado seguinte para o qual eacute
essencialmente indiferente a sequecircncia temporal em que suas determinaccedilotildees se reuniramrdquo68
Natildeo obstante o quadro causal no seu conjunto deve necessariamente ser anterior ao efeito
que origina Nas palavras do filoacutesofo ldquoQualquer mudanccedila no mundo material somente pode
surgir se outra a precedeu de modo imediato esse eacute o verdadeiro e total conteuacutedo da lei de
causalidaderdquo69
O princiacutepio de razatildeo do devir se relaciona com as mudanccedilas de estados
na mateacuteria sem no entanto poder modificaacute-la Schopenhauer enfatiza esse ponto mostrando
66
UumlV sect20 p 48 et seq CR sect20 p 68 et seq 67
UumlV sect20 48 CR sect20 68 68
UumlV sect20 p 49 CR sect20 p 70 (grifos do autor) 69
WWWII Kap 4 p 54 MII cap 4 p 48 (grifos do autor)
- 95 -
que a causalidade natildeo se refere a objetos que nesse caso causariam uns aos outros mas
somente agrave entrada e saiacuteda dos estados no tempo70
A causalidade eacute entatildeo uma lei que rege as
alteraccedilotildees nos objetos e que introduz um nexo necessaacuterio entre as causas e os efeitos nas
mudanccedilas ocorridas na mateacuteria Poreacutem como dito ela natildeo determina o surgimento dos
objetos mesmos pois isso significaria originaacute-los tambeacutem no que tecircm de material o que natildeo eacute
caso Nesse sentido diz Schopenhauer ldquo[] evencia-se que a causalidade se liga apenas a
mudanccedilas de forma da mateacuteria incriada e indestrutiacutevel enquanto um verdadeiro surgimento
um vir a existir de algo que nunca foi eacute uma impossibilidaderdquo71
Eacute interessante a exegese que
Bryan Magee em sua obra Schopenhauer elabora sobre esse ponto
Schopenhauer insiste em que a causa de um acontecimento soacute pode ser outro
acontecimento natildeo pode ser um objeto ou um estado de coisas Os objetos e
os estados de coisas entram e saem da existecircncia mediante sequecircncias de
acontecimentos relacionados causalmente e que juntos constituem a histoacuteria
em curso do mundo natural isto eacute o universo fiacutesico em sua totalidade Essa
eacute a relaccedilatildeo causal tal como se concebe na ciecircncia e na fiacutesica newtoniana72
Por conseguinte tanto quanto o efeito a causa tambeacutem surge em um
momento determinado Em virtude disso natildeo se poderia afirmar a existecircncia de uma causa
objetiva primaacuteria como seria a postulaccedilatildeo de um ente originaacuterio nem se poderia assegurar
que fosse a primeira pois ela sempre teraacute de remeter a outra causa mais elevada Desse modo
causa prima e causa sui satildeo consideradas por Schopenhauer como contradictiones in adjeto
jaacute que a lei de causalidade nunca cessa de exigir a busca das causas e diz o filoacutesofo ldquo[] uma
causa primeira eacute tatildeo impensaacutevel como o lugar onde espaccedilo acaba e o instante em que o tempo
comeccedilardquo73
De modo semelhante natildeo se poderia encontrar por meio dessa lei um primeiro
estado da mateacuteria do qual todos os outros fossem decorrentes Em primeiro lugar porque
sendo nada nada dele se derivaria em segundo porque se o estado inicial fosse a causa dos
mais distantes estes tambeacutem existiriam desde sempre e o estado atual natildeo poderia estar
avanccedilado no tempo74
De outra perspectiva supondo-se que tenha havido um primeiro estado
que se tornou causa em um dado momento isso significaria o advento de uma transformaccedilatildeo
anterior a ele que por sua vez tem de ter sido decorrente de outra mudanccedila esta de outra e
assim sucessivamente Como escreve White
70
UumlV sect20 p 50 CR sect20 p 70 71
UumlV sect20 p 51 CR sect20 p 71 72
MAGEE B Schopenhauer Madrid Catedra 1991 p 37 (traduccedilatildeo nossa) 73
UumlV sect20 p 52 CR sect20 p 73 74
UumlV sect20 p 52-53 CR sect20 loc cit
- 96 -
Deus natildeo pode ser uma causa posto que Deus natildeo eacute uma mudanccedila e soacute
mudanccedilas podem ser causas nem mudanccedilas em Deus podem ser causas
posto que natildeo haacute mudanccedilas em Deus Aleacutem disso o mundo dos objetos reais
natildeo pode ser um efeito de Deus como causa pois objetos reais satildeo
substacircncias e portanto diferentemente dos efeitos natildeo possuem iniacutecio Em
qualquer evento a proacutepria noccedilatildeo de causa incausada eacute incoerente pois toda
causa eacute uma mudanccedila e portanto ela proacutepria exige uma causa75
Consequentemente o argumento cosmoloacutegico natildeo tem sentido porque
utiliza o princiacutepio de razatildeo suficiente do devir com o propoacutesito de revogar a validade dele76
ldquoPoisrdquo o filoacutesofo explica ldquosomente se chega agrave causa prima (absolutum) ascendendo do efeito
ao seu fundamento percorrendo-se uma seacuterie de tamanho arbitraacuterio mas natildeo se pode parar
nela sem anular o princiacutepio de razatildeordquo77
Na condiccedilatildeo de forma do princiacutepio de razatildeo a lei de causalidade eacute a
priori vaacutelida para toda a experiecircncia possiacutevel A relaccedilatildeo que ela estabelece determina de
modo necessaacuterio que um dos estados eacute anterior e causa enquanto outro eacute posterior e efeito
Daiacute a denominaccedilatildeo de princiacutepio do devir porque um evento emerge a partir de outro
inclusive com a ordem determinada em que a causa vem primeiro e o efeito depois Nas
palavras de Schopenhauer ldquoPertence ao seu caraacuteter essencial aleacutem disso que a causa sempre
preceda o efeito no tempo e soacute assim se conheceraacute originalmente qual de ambos os estados
ligados pelo nexo causal seria a causa e qual o efeitordquo78
Desse modo a existecircncia de causas
reciacuteprocas seria impossiacutevel pois isso significaria uma confusatildeo entre o que eacute anterior e o que
eacute posterior ou diz o filoacutesofo ldquo[] que o efeito fosse tambeacutem a causa de sua causa e assim
que o seguinte fosse simultacircneo ao precedenterdquo79
As leis da ineacutercia e da permanecircncia da substacircncia satildeo entendidas por
Schopenhauer como corolaacuterios da de causalidade A ineacutercia determina a perpetuaccedilatildeo do
movimento ou do repouso que somente satildeo alterados se alguma causa retirar o corpo do
estado em que se encontra A mudanccedila no estado de movimento ou de repouso eacute um efeito
que exige uma causa para ocorrer A lei da permanecircncia da substacircncia por seu turno eacute
relacionada pelo filoacutesofo agrave mateacuteria que natildeo se modifica com as mudanccedilas de estado
realizadas pela causalidade a qual somente altera o repouso o movimento a forma e a
75
WHITE op cit p 69 (traduccedilatildeo nossa) 76
UumlV sect20 p 55-56 CR sect20 p 76 77
UumlV sect20 p56 CR sect20 p 76-77 78
UumlV sect20 p 57 CR sect20 p 78 79
UumlV sect20 loc cit CR sect20 loc cit
- 97 -
qualidade dos corpos80
A causalidade diz Schopenhauer ldquo[] de modo algum se refere agrave
existecircncia do portador desses estados ao qual se deu o nome de substacircncia justamente para
expressar sua isenccedilatildeo de todo nascer e perecerrdquo81
Como natildeo haacute no entendimento uma forma
pela qual pudeacutessemos pensar o surgimento e o desaparecimento da substacircncia conheceriacuteamos
a priori a lei que afirma sua permanecircncia A explicaccedilatildeo de White sobre esse ponto eacute
elucidativa
Permita-nos imaginar que eu mova um martelo e bata um prego cravando-o
num pedaccedilo de madeira O movimento do martelo uma mudanccedila relativa no
seu estado eacute a causa e o movimento do prego uma mudanccedila relativa no seu
estado eacute o efeito Nesse modelo simplificado entatildeo causa e efeito satildeo
mudanccedilas em objetos reais e Schopenhauer sustenta que isso eacute verdadeiro
para todas as causas e efeitos todas e quaisquer mudanccedilas satildeo causas e
efeitos e consequentemente os objetos reais mesmos natildeo Seu raciociacutenio
aqui eacute que os objetos reais satildeo substacircncias isto eacute eles satildeo constituiacutedos por
mateacuteria e uma vez que para ele a mateacuteria eacute eterna e inalteraacutevel as
substacircncias natildeo tecircm iniacutecio nem fim Daiacute se segue que elas natildeo satildeo
mudanccedilas portanto nem causas nem efeitos82
A funccedilatildeo do entendimento eacute portanto conhecer a causalidade e aplicaacute-la
aos estados aos quadros causais fenomecircnicos Isso significa que ela se relaciona sempre a
algo especificamente determinado ou nas palavras de Schopenhauer ldquoQue estado deve
aparecer neste tempo e neste espaccedilo eacute a determinaccedilatildeo agrave qual unicamente se estende a
legislaccedilatildeo da causalidaderdquo83
Mesmo nos sendo invisiacutevel a substacircncia estaraacute sempre
pressuposta necessariamente e essa eacute outra razatildeo pela qual se pode dizer que o conhecimento
da lei da sua permanecircncia eacute a priori e natildeo a posteriori O filoacutesofo lembra nesse sentido que
o desaparecimento de um corpo natildeo demove a convicccedilatildeo de que ele deve estar em outro lugar
porque temos a certeza caracteriacutestica de um conhecimento a priori de que nada desaparece
pura e simplesmente Um conhecimento a posteriori adquirido por induccedilatildeo natildeo eacute capaz de
promover esse tipo de assentimento que contrapotildee de modo inexoraacutevel ateacute mesmo o que eacute
visto com os proacuteprios olhos Assim ele afirma
Tambeacutem natildeo obtivemos a posteriori a convicccedilatildeo acerca da permanecircncia da
substacircncia em parte porque eacute impossiacutevel na maioria dos casos comprovaacute-
los empiricamente em parte porque todo conhecimento empiacuterico
conhecido apenas por induccedilatildeo possui certeza apenas aproximativa por
consequecircncia precaacuteria e nunca incondicional por isso a seguranccedila da
nossa convicccedilatildeo em relaccedilatildeo agravequela lei eacute de um tipo e natureza totalmente
80
WWV I ersters Buch sect4 p 40 M I Livro I sect4 p 52 81
UumlV sect20 p 58 CR sect20 p 79 (grifos do autor) 82
WHITE op cit p 68 (traduccedilatildeo nossa) 83
WWV I ersters Buch sect4 p 40 M I Livro I sect4 p 52 (grifos do autor)
- 98 -
diferentes da seguranccedila sentida na exatidatildeo de qualquer lei natural
empiricamente descoberta posto que possui uma solidez totalmente
diferente completamente inabalaacutevel e nunca oscilante84
De acordo com isso a lei da permanecircncia da substacircncia eacute transcendental
natildeo proveacutem da experiecircncia ao contraacuterio determina-a Nessa condiccedilatildeo conforma o mundo da
representaccedilatildeo que diz Schopenhauer ldquo[] fica reduzido como um todo a um mero fenocircmeno
cerebralrdquo85
O caraacuteter de necessidade eacute essencial a um conhecimento transcendental e eacute
suficiente tambeacutem para distinguir um saber empiacuterico vaacutelido em certos contextos de outro a
priori vaacutelido em qualquer contexto da experiecircncia possiacutevel Como escreve o filoacutesofo ldquoO
princiacutepio de razatildeo suficiente em todas as suas formas eacute o uacutenico princiacutepio e o uacutenico portador
de toda e qualquer necessidade Pois necessidade natildeo tem outro sentido verdadeiro e claro do
que a inevitabilidade da consequecircncia quando a razatildeo eacute postardquo86
Mesmo no caso de leis empiacutericas providas de generalidade e grau alto de
certeza natildeo se pode tomaacute-las por apodiacuteticas como satildeo as leis da causalidade da ineacutercia e da
permanecircncia da substacircncia Sempre se poderaacute supor a existecircncia ou imaginar a
experimentaccedilatildeo de situaccedilotildees novas em que elas natildeo se verifiquem o que significa que satildeo em
alguma medida dependentes de circunstacircncias que soacute surgem a posteriori Esse eacute o caso
inclusive da lei da gravitaccedilatildeo universal que diz Schopenhauer eacute meramente empiacuterica e
deixa duacutevidas entre os astrocircnomos sobre se vigeria em outros sistemas solares entre corpos
separados pelo vazio absoluto e em outras situaccedilotildees87
Conhecimentos a priori poreacutem satildeo
ancorados no princiacutepio de razatildeo e natildeo deixam margem a questotildees que soacute possam ser
resolvidas com informaccedilotildees e dados empiacutericos Entatildeo ele escreve ldquoEu defendo aleacutem disso
que o princiacutepio de razatildeo eacute a expressatildeo geral para todas essas formas conhecidas por noacutes a
priori e que tudo o que podemos conhecer somente a priori nada mais eacute do que o conteuacutedo
daquele princiacutepio e do que dele se segue []88
Aleacutem da substacircncia a causalidade tambeacutem natildeo modifica as forccedilas da
natureza que conforme Schopenhauer possibilitam que as causas acarretem os efeitos As
forccedilas da natureza possuem um estatuto diferente diz ele ldquo[] satildeo isentas de toda mudanccedila e
nesse sentido fora de todo o tempo por isso mesmo contudo existem sempre e em toda a
84
UumlV sect20 p 59 CR sect20 p 80 (grifos do autor) 85
UumlV sect20 loc cit CR sect20 p 81 86
UumlV sect49 p 181 CR sect49 p 218 (grifos do autor) 87
UumlV sect20 p 59 CR sect20 p 81 88
WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I Livro I sect2 p 46
- 99 -
parte onipresentes e inesgotaacuteveis sempre prontas a se manifestarem logo que a guia da
causalidade oferece a oportunidaderdquo89
A causa e o efeito natildeo satildeo forccedilas universais desse tipo
satildeo mutaccedilotildees particularizadas em pontos especiacuteficos do tempo e do espaccedilo As forccedilas
naturais ao contraacuterio satildeo universais e ubiacutequas Em O mundo Schopenhauer esclarece a
esse respeito que ldquoO que eacute determinado pela lei de causalidade natildeo eacute a sucessatildeo de estados no
mero tempo mas essa sucessatildeo com respeito a um espaccedilo determinado e tambeacutem natildeo a
existecircncia de mudanccedilas meramente num certo espaccedilo mas nesse espaccedilo em um tempo
determinadordquo90
Causas e efeitos satildeo entatildeo acontecimentos singulares que desencadeiam
processos de mutaccedilatildeo com base em forccedilas imutaacuteveis e gerais cuja regularidade de apariccedilatildeo
em cadeias causais evidencia tratarem-se de leis91
Por conseguinte as forccedilas naturais
originaacuterias natildeo satildeo fiacutesicas natildeo possuem explicaccedilatildeo no acircmbito fenomecircnico mas sim
metafiacutesicas e satildeo chamadas por Schopenhauer de ldquoqualitas occultardquo92
A mutaccedilatildeo que desencadearaacute o efeito pode ser de trecircs tipos a saber
causa estrita (Ursache) relacionada aos corpos inorgacircnicos estiacutemulo (Reiz) ligado agraves plantas
e motivo (Motiv) proacuteprio dos animais Schopenhauer considera que as distintas
receptividades a esses tipos de causas satildeo as reais diferenccedilas entre os seres e natildeo suas
caracteriacutesticas de ordem fiacutesica ou quiacutemica93
Sem prejuiacutezo para a forma geral da causalidade
cada tipo de causa estabelece processos diferentes de causaccedilatildeo em uma de trecircs esferas
distintas A causa estrita vige na natureza inorgacircnica e segue a terceira lei de Newton que
estabelece a igualdade de accedilatildeo e reaccedilatildeo em direccedilotildees contraacuterias Os efeitos que daiacute se
originam satildeo parte dos estudos das ciecircncias fiacutesicas e quiacutemicas O estiacutemulo vigora na natureza
orgacircnica sem conhecimento como as plantas e a parte vegetativa da vida animal objetos das
ciecircncias bioloacutegicas Por fim o motivo eacute relacionado agrave vida consciente especificamente a
animal dando origem a decisotildees e accedilotildees Schopenhauer natildeo distingue seres humanos e
animais pelo conhecimento em sentido amplo pois o entendimento eacute suficiente para o influxo
dos motivos em todos eles O entendimento ele afirma ldquo[] eacute o mesmo em todos os animais
e em todos os homens tem em toda parte a mesma forma simples conhecimento da
causalidade passagem do efeito agrave causa e da causa ao efeito e nada aleacutem dissordquo94
89
UumlV sect20 p 60 CR sect20 p 82 90
WWV I ersters Buch sect4 p 39 M I Livro I sect4 p 51 91
UumlV sect20 p 61 CR sect20 p 83 92
UumlV sect20 loc cit CR sect20 loc cit 93
UumlV sect20 p 62 CR sect20 p 84 94
WWV I ersters Buch sect6 p 53 M I Livro I sect6 p 64
- 100 -
Aleacutem de estruturar o conjunto da experiecircncia e regular as interaccedilotildees entre
os fenocircmenos a causalidade possui outra funccedilatildeo a saber a constituiccedilatildeo dos objetos
empiacutericos Como dissemos antes essa eacute a segunda parte da demonstraccedilatildeo da idealidade
transcendental do mundo como representaccedilatildeo e aqui veremos entrar a soluccedilatildeo de
Schopenhauer para a questatildeo acerca da afecccedilatildeo dos sentidos por um objeto exterior Com
efeito a intuiccedilatildeo empiacuterica eacute produzida pelo entendimento com a causalidade juntamente com
as formas da sensibilidade pura tempo e espaccedilo95
Com suas formas diz o filoacutesofo o
entendimento ldquo[] a partir de elementos simples de algumas sensaccedilotildees dos oacutergatildeos dos
sentidos cria e produz esse mundo exterior objetivo []rdquo96
Ao identificar completamente
objeto e representaccedilatildeo Schopenhauer responde agrave questatildeo acerca da objetividade do
conhecimento tornando desnecessaacuterio e incoerente a busca dos mecanismos que conectariam
a representaccedilatildeo e o objeto ao qual supostamente pudesse se referir Com isso
adicionalmente ele considera demonstrada a convivecircncia harmocircnica entre a idealidade
transcendental do mundo como representaccedilatildeo e sua realidade empiacuterica Pois de acordo com
ele assim estaacute assegurado que ldquo[] o objeto natildeo eacute em verdade coisa em si mas como
objeto empiacuterico eacute realrdquo97
A soluccedilatildeo schopenhaueriana para a questatildeo da objetividade conduz
poreacutem a uma formulaccedilatildeo insoacutelita Conforme a argumentaccedilatildeo do filoacutesofo na medida em que a
causalidade soacute atua entre objetos natildeo outorga realidade absoluta ao mundo como
representaccedilatildeo Ela natildeo conecta as coisas em si ao conhecimento mas apenas os objetos entre
eles mesmos sem poder ultrapassaacute-los O mundo da representaccedilatildeo surge entatildeo como um
objeto condicionado pela existecircncia de um sujeito e pelas suas formas que o edificaratildeo de
uma maneira determinada98
E diz Schopenhauer a garantia simultacircnea da idealidade
transcendental e da realidade empiacuterica do mundo autoriza a sustentar como verdadeiro que
ldquo[] o espaccedilo existe somente na minha cabeccedila mas empiricamente minha cabeccedila estaacute no
espaccedilordquo99
Na opiniatildeo de Alexis Philonenko essa tese obscureceu a filosofia
schopenhaueriana para sempre100
Segundo esse autor Bergson foi quem evidenciou o
absurdo do paradoxo no qual se fundem uma parte do espaccedilo e sua totalidade a cabeccedila que
estaacute no espaccedilo eacute uma parte dele e no entanto deveraacute fornecer a representaccedilatildeo total onde ela
95
UumlV sect21 p 67 CR sect21 p 89 96
UumlV sect21 loc cit CR sect21 loc cit 97
WWWII Kap 2 p 30 MII cap 2 p 23 98
WWWII Kap 2 p 30 MII cap 2 p 23 99
WWWII Kap 2 p 30 MII cap 2 p 23 100
PHILONENKO A Schopenhauer Una filosofia de la tragedia Barcelona Anthropos 1989 p 82
- 101 -
mesma se situaraacute Poreacutem escreve Philonenko ldquoSchopenhauer natildeo parece ter sido consciente
da dificuldade Da presenccedila do espaccedilo em mim de sua existecircncia (sic) chega agrave realidade
fenomenal de todos os objetosrdquo101
No segundo capiacutetulo de O mundoII que trata do conhecimento
intuitivo Schopenhauer extrai as uacuteltimas consequecircncias dessa concepccedilatildeo da idealidade do
espaccedilo Ele afirma que percebemos as coisas instantacircnea e imediatamente como estando fora
de noacutes porque natildeo distinguimos a sensaccedilatildeo dos sentidos e o objeto que o entendimento
produz com ela Nunca tomamos consciecircncia da passagem do efeito agrave causa de modo que a
sensaccedilatildeo nos parece ser a proacutepria representaccedilatildeo102
Por isso embora a sensaccedilatildeo seja interna ao
corpo e imediata intuiacutemos as coisas como estando fora de noacutes Com ainda mais razatildeo diz ele
natildeo se distinguiratildeo para noacutes tambeacutem objeto e representaccedilatildeo jaacute que satildeo exatamente o mesmo
De modo semelhante embora o espaccedilo seja interior ao sujeito intuiacutemos os objetos como
exteriores Na verdade a intuiccedilatildeo eacute que tornaria as coisas externas o ldquofora de noacutesrdquo seria uma
criaccedilatildeo do intelecto que contudo natildeo deixaria de ser empiacuterica real e objetiva O que garante
a objetividade eacute ser um produto do entendimento cuja atividade engendra as representaccedilotildees
que se identificam com os objetos Nas palavras de Schopenhauer
Isso se explica porque o fora de noacutes eacute exclusivamente uma determinaccedilatildeo
espacial e o espaccedilo eacute apenas uma forma da nossa faculdade de intuiccedilatildeo isto
eacute uma funccedilatildeo do nosso ceacuterebro entatildeo o fora de noacutes onde situamos os
objetos em funccedilatildeo da sensaccedilatildeo visual estaacute ele proacuteprio na nossa cabeccedila por
isso laacute estaacute seu completo cenaacuterio Semelhante a quando vemos no teatro
montanhas floresta e mar mas estaacute tudo dentro dele103
No tocante ao tempo a objetividade tambeacutem pode ser considerada nessa
perspectiva No quarto capiacutetulo de O MundoII sobre o conhecimento a priori
Schopenhauer argumenta que mesmo sendo subjetivo o tempo se apresenta como algo
objetivo e separado do sujeito na medida em que independentemente de qualquer vontade
flui de modo contiacutenuo e permanente104
Entatildeo diz o filoacutesofo ldquoEle existe somente na cabeccedila
dos seres que conhecem mas a uniformidade de seu fluxo e a independecircncia da vontade daacute a
ele o direito da objetividaderdquo105
101
Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 102
Isso eacute verdadeiro somente no caso da visatildeo Com os outros sentidos a transiccedilatildeo do efeito agrave causa pode ser
percebida Cf WWWII Kap 2 p 35 MII cap 2 p 28 103
WWWII Kap 2 p 34 MII cap 2 p 27 (grifos do autor) 104
WWWII Kap 4 p 48 MII cap 4 p 43 105
WWWII Kap 4 p 48 MII cap 4 p 43
- 102 -
Como vimos anteriormente a aprioridade da causalidade remete agrave uniatildeo
de tempo e espaccedilo pelo entendimento bem como agrave necessidade dela e de seus corolaacuterios para
a constituiccedilatildeo do conjunto da experiecircncia Pelo acircngulo dos objetos empiacutericos singulares a
prova da aprioridade da causalidade se daacute por diversas comparaccedilotildees entre as sensaccedilotildees dos
sentidos e a intuiccedilatildeo sensiacutevel Para Schopenhauer essa eacute a demonstraccedilatildeo mais apropriada do
caraacuteter a priori da lei causal qual seja a exposiccedilatildeo da sua necessidade para a constituiccedilatildeo de
toda e qualquer intuiccedilatildeo empiacuterica106
Ele ressalta a exigecircncia de uma forma intelectual para
que a sensaccedilatildeo ganhe feiccedilotildees de objeto e assevera que sem isso haveria somente estiacutemulos
locais sobre os oacutergatildeos dos sentidos Como ele afirma ldquoMesmo nos oacutergatildeos dos sentidos mais
nobres ela natildeo eacute mais do que algo local especiacutefico encerrado em seu tipo de capacidade para
sofrer alteraccedilotildees mas em si mesma sempre um sentimento subjetivo o qual natildeo pode conter
nada objetivo nem parecido a uma intuiccedilatildeordquo107
Por conseguinte a sensaccedilatildeo eacute entendida pelo filoacutesofo como um processo
que ocorre dentro do organismo sob a pele sem apontar para nada fora dele O corpo de cada
animal eacute o ponto inicial da intuiccedilatildeo do mundo e diz Schopenhauer ldquo[] nunca se poderia
chegar a ela se algum efeito natildeo fosse conhecido imediatamente e entatildeo servisse de ponto de
partida Mas este eacute o efeito nos corpos animais Desse modo estes satildeo os objetos imediatos108
do sujeito a intuiccedilatildeo de todos os outros objetos eacute mediada por elesrdquo109
Na obra Die Lehre
von der empirischen Anschauung bei Schopenhauer110
de Johann Baptist Rieffert haacute uma
observaccedilatildeo interessante sobre esse ponto Esse autor nota que considerando somente pelo
ponto de vista do mundo como representaccedilatildeo a sensaccedilatildeo quase natildeo difere da pura e simples
consciecircncia Nas palavras dele
Se enquanto nos mantemos nos domiacutenios do mundo como representaccedilatildeo
nenhuma vez compreendemos com ele [o entendimento] sob a causa de
nossas sensaccedilotildees algo de algum modo transcendente isto eacute se nenhuma vez
aceitamos que esse algo atua por menos que seja ou como atua entatildeo a
mera sensaccedilatildeo e sua representaccedilatildeo correspondente somente se diferenciam
da consciecircncia por serem situadas espaccedilo-temporalmente e esta uacuteltima natildeo
106
WWWII Kap 4 p 51 MII cap 2 p 45 107
UumlV sect21 p 68 CR sect21 p 91 108
No paraacutegrafo sect6 de O mundo e tambeacutem no sect22 de Da quaacutedrupla raiz Schopenhauer corrige a expressatildeo
ldquoobjeto imediatordquo em relaccedilatildeo ao corpo Ele explica que na condiccedilatildeo de ponto de partida do conhecimento o
corpo natildeo eacute de fato um objeto mas eacute apenas sentido difusamente como o lugar onde se datildeo as sensaccedilotildees dos
sentidos provocadas por outros corpos O corpo somente pode ser intuiacutedo como um objeto do modo como todos
os outros satildeo isto eacute como ocupando lugar no espaccedilo o que ocorre apenas com o concurso do entendimento 109
WWV I ersters Buch sect4 p 41 M I Livro I sect4 p 53 110
ERDMANN Benno (Herausgegeber) Abhandlungen zur Philosophie und irhre Geschichte 22 Heft
RIEFFERT J B Die Lehre von der empirische Anschauung bei Schopenhauer Halle Max Niemeyer 1914
- 103 -
Fora isso elas natildeo satildeo diferentes da consciecircncia em nada e interpretar uma
como causa e a outra como efeito seria equivalente a fazer coincidir causa e
efeito111
De qualquer modo Schopenhauer afirma que a mateacuteria do corpo eacute
suscetiacutevel a influecircncias externas mas toda sensaccedilatildeo assim produzida eacute subjetiva e adentra agrave
consciecircncia somente na forma do sentido interno no tempo112
Por isso mesmo para que
possa constituir um objeto exigiraacute algo mais que se combine a ela algo que possa exteriorizar
os dados que ela fornece E esse algo eacute exatamente o entendimento que por meio da
causalidade realiza a passagem do subjetivo ao objetivo Desse modo a formaccedilatildeo da intuiccedilatildeo
empiacuterica parte de um efeito interno aos corpos animais o qual ao ser relacionado agrave sua causa
permite a produccedilatildeo da representaccedilatildeo de um objeto externo113
Schopenhauer explica esse
processo esclarecendo que o entendimento ldquo[] em funccedilatildeo de sua proacutepria forma a priori
isto eacute antes de toda a experiecircncia (que antes disso natildeo eacute possiacutevel) sintetiza a sensaccedilatildeo dada
no corpo como um efeito (uma palavra que soacute ele entende) que como tal deve ter
necessariamente uma causardquo114
A forma do sentido externo eacute parte do intelecto e eacute por meio dela que o
entendimento aponta a causa como algo que estaacute fora do corpo Desse modo escreve o
filoacutesofo ldquo[] nasce para ele o exterior do qual o espaccedilo eacute a possibilidade assim a intuiccedilatildeo
pura a priori tem de fornecer o fundamento do empiacutericordquo115
Natildeo se trata de algo discursivo
ou seja natildeo haacute recurso a conceitos mas eacute uma construccedilatildeo imediata realizada no entendimento
e que soacute tem validade para ele mesmo A experiecircncia natildeo existe antes da accedilatildeo peculiar dele
que diz Schopenhauer ldquo[] tem de criar sozinho o mundo objetivo natildeo pode poreacutem
introduzi-lo na cabeccedila jaacute pronto previamente por meio dos sentidos e das entradas de seus
oacutergatildeosrdquo116
Como resultado todos os objetos empiacutericos e toda a experiecircncia possiacutevel
satildeo produtos do entendimento e das formas do tempo do espaccedilo e da causalidade Para a
construccedilatildeo desses objetos o entendimento utiliza a forma do espaccedilo e os dados das sensaccedilotildees
de certos sentidos sobretudo da visatildeo e do tato Segundo Schopenhauer o olfato a audiccedilatildeo e o
paladar natildeo fornecem informaccedilotildees com as quais se possa circunscrever um objeto no espaccedilo
111
Ibidem p 57 (traduccedilatildeo nossa) 112
UumlV sect21 p 68-69 CR sect21 p91 113
WWV I ersters Buch sect4 p 41 M I Livro I sect4 p 53 114
UumlV sect21 p 69 CR sect21 p 92 (grifos do autor) 115
UumlV sect21 p 69 CR sect21 p92 116
UumlV sect20 p 69 CR sect20 p 93
- 104 -
e portanto natildeo possibilitam nenhuma intuiccedilatildeo objetiva O que fazem diz ele eacute anunciar a
presenccedila de um objeto que jaacute foi conhecido antes por outros meios Apenas a visatildeo e o tato
oferecem elementos para que se aponte um corpo externo como causa de um efeito sentido
remetendo a relaccedilotildees espaciais que todavia natildeo satildeo elas mesmas as proacuteprias intuiccedilotildees117
Nesse sentido o filoacutesofo exemplifica ldquo[] um cego sem matildeos nem peacutes poderia construir para
si o espaccedilo com toda a sua regularidade a priori mas do mundo objetivo teria apenas uma
representaccedilatildeo muito confusardquo118
Esse exemplo eacute interessante pois serve de sustentaccedilatildeo para
as caracteriacutesticas do espaccedilo e do modo de atuaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo do ser referente a ele
A saber uma tal pessoa poderia ter conhecimento do espaccedilo usando apenas a forma do
sentido externo sem os dados advindos da visatildeo e do tato o que evidenciaria tratar-se de uma
forma a priori com relaccedilotildees proacuteprias
A anaacutelise schopenhaueriana sobre esse ponto eacute minuciosa Ele separa
detalhadamente o que eacute do campo da sensaccedilatildeo e o que eacute do campo da intuiccedilatildeo possibilitando
ver claramente o que eacute a forma e o que eacute a mateacuteria dos objetos De modo geral o processo se
daacute como se a sensaccedilatildeo fornecesse as premissas para que o entendimento extraiacutesse as
conclusotildees119
Natildeo seguiremos em pormenor toda a explanaccedilatildeo apenas sublinharemos os
aspectos em que se pode notar o que eacute acrescentado pelo entendimento aos dados dos sentidos
e que permite a produccedilatildeo da figura dos objetos sua magnitude sua distacircncia relativa sua
posiccedilatildeo e outras caracteriacutesticas natildeo devidas agrave sensaccedilatildeo120
Na concepccedilatildeo de Schopenhauer a
sensaccedilatildeo eacute um fato imediato diz ele ldquo[] um simples datum para o entendimento que
sozinho eacute capaz de interpretaacute-lo como efeito de uma causa totalmente diferente que ele intui
como algo externo isto eacute colocado no espaccedilo forma intelectual anterior a toda a experiecircncia
preenchendo-o e ocupando-ordquo121
Ele expotildee detalhadamente e com recurso a muitos exemplos
que a intuiccedilatildeo difere de modo radical da sensaccedilatildeo e que esta por si mesma natildeo apresenta
nada semelhante a um objeto De acordo com ele a conexatildeo entre o efeito e sua causa ldquo[] eacute
o modo de conhecimento do entendimento puro sem o qual nunca se teria intuiccedilatildeo mas
apenas sobraria uma consciecircncia embaccedilada vegetal das mudanccedilas no objeto imediato
[]rdquo122
Sua demonstraccedilatildeo da aprioridade da causalidade nesse aspecto deixa patente que ela
117
UumlV sect20 p 70 et seq CR sect20 p 93 et seq 118
UumlV sect20 p 71 CR sect20 p 94 119
UumlV sect21 p 71 CR sect21 p94 120
A exposiccedilatildeo completa pode ser conferida no sect 21 de UumlV 121
WWWII Kap 4 p 51 MII cap 4 p 45 122
WWV I ersters Buch sect4 p 41-42 M I Livro I sect4 p 54 (grifos do autor)
- 105 -
eacute condiccedilatildeo da intuiccedilatildeo empiacuterica que toda experiecircncia jaacute conteacutem o seu conceito e que por
tanto ela natildeo eacute obtida empiricamente123
Por conseguinte a passagem realizada pelo entendimento da sensaccedilatildeo
subjetiva agrave sua causa exterior conforma os objetos com suas caracteriacutesticas empiacutericas e
formais124
Conforme a argumentaccedilatildeo de Schopenhauer caso fosse obra da simples sensaccedilatildeo
a intuiccedilatildeo empiacuterica seria muito distinta de tudo o que conhecemos Na medida em que em
qualquer oacutergatildeo os sentidos as sensaccedilotildees natildeo satildeo simultacircneas e sim sucessivas o objeto seria
intuiacutedo em partes desconexas e sem referecircncia a nenhum todo coeso ou entatildeo cada sensaccedilatildeo
singular seria tomada por um objeto distinto De modo semelhante duas sensaccedilotildees idecircnticas
em um dos oacutergatildeos dos sentidos por exemplo no tato levaria a confundir ou a identificar
objetos diferentes pela indistinccedilatildeo das impressotildees No sentido da visatildeo natildeo poderiacuteamos
intuir nenhuma figura distacircncia entre objetos posiccedilatildeo ou perspectiva pois a mera sensaccedilatildeo
da retina eacute como uma tela manchada de muitas cores125
Natildeo obstante nada disso acontece em
virtude do entendimento que conforma os dados dos sentidos segundo a causalidade e aponta
uma causa externa uniforme para os diferentes efeitos sentidos no corpo126
De outra perspectiva haacute intuiccedilotildees para as quais a simples sensaccedilatildeo eacute
insuficiente o que mostra por outra via a mesma dependecircncia da representaccedilatildeo empiacuterica
com relaccedilatildeo ao entendimento Por exemplo diz Schopenhauer o deslocamento de um objeto
no espaccedilo num certo tempo natildeo eacute uma representaccedilatildeo que possa ser percebida nem que surja
somente com a sensaccedilatildeo Ao contraacuterio ele escreve eacute o ldquo[] intelecto que deve trazer antes
de toda experiecircncia a intuiccedilatildeo do espaccedilo do tempo e com elas a possibilidade do
movimento []rdquo127
Aleacutem do movimento muitas representaccedilotildees que satildeo fundamentos
realidade como a causalidade a materialidade as trecircs dimensotildees do espaccedilo a accedilatildeo de um
corpo sobre outro a extensatildeo a impenetrabilidade a coesatildeo a figura a dureza a perspectiva
e o repouso nenhuma delas pode ser obtida somente pelos sentidos128
As relaccedilotildees do
espaccedilo do tempo e da causalidade portanto natildeo satildeo apreendidas do mundo exterior e natildeo
adentram o intelecto por meio dos sentidos mas satildeo anteriores e de origem interna As
intuiccedilotildees do mundo da experiecircncia resultam de um processo em que o intelecto utiliza dados
123
WWV I ersters Buch sect4 p 43 M I Livro I sect4 p 55 124
WWV I ersters Buch sect4 p 42 M I Livro I sect4 p 54 125
UumlV sect21 p 74 CR sect21 p 98 126
UumlV sect21 p 69 CR sect21 p 92 127
UumlV sect21 p 73 CR sect21 p 96 128
UumlV sect21 p 73 CR sect21 96-97
- 106 -
sensoriais a posteriori determinando-os com formas a priori e somente nesse sentido
Schopenhauer admite que se fale em intuiccedilatildeo intelectual129
Uma prova adicional dessa teoria eacute o aprendizado do modo de utilizaccedilatildeo
do entendimento por meio de exerciacutecio e experiecircncia130
Embora faccedila parte do intelecto a
priori a maneira de utilizaacute-lo no conhecimento do mundo seria aprendida com tempo e uso
Bebecircs receacutem-nascidos diz Schopenhauer vivem durante um tempo em uma espeacutecie de
torpor em que o entendimento ainda natildeo comeccedilou a exercer sua funccedilatildeo de transformar
sensaccedilotildees em objetos Em seus primeiros meses de vida eles aprenderiam continuamente com
os dados providos pelos oacutergatildeos dos sentidos experimentando-os em muitas situaccedilotildees
diferentes e assim aprenderiam a usar seu entendimento Quando isso ocorre o mundo
objetivo vai se formando paulatinamente no seu intelecto o que afirma o filoacutesofo pode ser
notado ldquo[] no aspecto inteligente que seu olhar adquire e em certa intencionalidade nos seus
movimentos principalmente quando pela primeira vez eles demonstram com um sorriso
amaacutevel que reconhecem quem cuida delesrdquo131
Tambeacutem desse ponto de vista se revela que o
entendimento estaacute ligado ao conhecimento do mundo e que as meras sensaccedilotildees que os bebecircs
jaacute possuem ao nascer natildeo satildeo suficientes para conformarem objetos reconheciacuteveis
Schopenhauer apresenta ainda algumas confirmaccedilotildees adicionais da
aprioridade da causalidade dentre elas o aspecto de necessidade e o caraacuteter apodiacutetico da
convicccedilatildeo que a acompanha A seguranccedila que ela promove eacute como dissemos de um tipo
totalmente distinto da que se obteacutem atraveacutes de conhecimentos empiacutericos ainda que bastante
seguros No dizer do filoacutesofo ldquoPodemos por exemplo pensar que a lei da gravitaccedilatildeo
universal parasse de atuar uma vez mas natildeo que isso aconteccedila sem uma causardquo132
Do exposto seguem-se as duas funccedilotildees do entendimento De um lado a
conformaccedilatildeo do conjunto da experiecircncia pela uniatildeo de tempo e espaccedilo e de outro a
constituiccedilatildeo dos objetos empiacutericos pela passagem do efeito sentido internamente agrave causa
externa Nesse ponto Gardiner apresenta uma interessante indagaccedilatildeo ldquo[] ainda se pode
perguntar como os objetos perceptuais podem ao mesmo tempo ser considerados como
produzidos por nossa mente que age de um modo especial sobre os dados da sensaccedilatildeo e
129
WWV I ersters Buch sect4 p 41 M I Livro I sect4 p 53 130
UumlV sect21 p 90 CR sect21 p 117 131
UumlV sect21 p 90-91 CR sect21 p 117 132
UumlV sect23 p 112 CR sect23 p 140 (grifos do autor)
- 107 -
como causa e origem desses dadosrdquo133
De fato a indagaccedilatildeo eacute instigante mas tambeacutem natildeo
deixa de secirc-lo a deduccedilatildeo pela qual Schopenhauer somente por meio da causalidade deriva o
mundo e o conhecimento intuitivo do mundo No seu entender essa lei eacute a uacutenica forma do
entendimento a uacutenica de fato necessaacuteria diz ele e ldquo[] de modo nenhum aquela complicada
engrenagem das doze categorias kantianas cuja nulidade eu demonstreirdquo134
Como resultado
a causalidade existe a priori como condiccedilatildeo da intuiccedilatildeo e do universo empiacuterico aplica-se
somente ao mundo sensiacutevel natildeo agrave relaccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si nem aos objetos
tomados em si mesmos ldquoCom issordquo diz o filoacutesofo ldquoconcluiacutemos que se encontram em noacutes
todos os elementos da intuiccedilatildeo empiacuterica que natildeo conteacutem informaccedilatildeo de nada que seja pura e
simplesmente distinto de noacutes uma coisa em sirdquo135
214 ndash Teoria da razatildeo
A razatildeo eacute definida por Schopenhauer como a faculdade das
representaccedilotildees abstratas os conceitos que satildeo derivados das intuiccedilotildees Esses dois tipos de
representaccedilatildeo segundo o filoacutesofo relacionam-se como a luz do sol agrave da lua isto eacute uma eacute
imediata e proacutepria enquanto a outra eacute refletida e relativa136
Dentre os animais somente os
seres humanos possuem a faculdade da razatildeo com seus conceitos e inclusive tecircm o ceacuterebro
mais volumoso em funccedilatildeo disso137
Essa seria a uacutenica diferenccedila entre o intelecto humano e o
do animal responsaacutevel pela grande distinccedilatildeo entre os modos de vida de uns e de outros138
Para Schopenhauer os filoacutesofos de sua eacutepoca natildeo compreenderam corretamente a natureza da
razatildeo e contra a tradiccedilatildeo filosoacutefica e a opiniatildeo comum ignoraram a diferenccedila completa que
ela promove entre vida e o intelecto de homens e animais A visatildeo de Kant teria obscurecido e
mistificado conceito de razatildeo e por sua influecircncia os poacutes-kantianos teriam ampliado e
aprofundado seus erros Nesse sentido afirma Schopenhauer
133
GARDINER op cit p 160 (traduccedilatildeo nossa) 134
UumlV sect21 p 98 CR sect21 p 124 135
UumlV sect21 p 104 CR sect21 p 130 136
WWV I ersters Buch sect8 p 70 M I Livro I sect8 p 81 137
UumlV sect26 p 121 CR sect26 p 149 138
WWV I ersters Buch sect8 p 72 M I Livro I sect8 p 83
- 108 -
Quem quiser se dar ao trabalho de percorrer todo o volume de escritos
filosoacuteficos que surgiram desde Kant perceberaacute que assim como as falhas do
priacutencipe satildeo pagas por todo o povo tambeacutem os erros dos grandes espiacuteritos
espalham sua influecircncia prejudicial em geraccedilotildees inteiras agraves vezes se
difundem por seacuteculos sim crescendo e se propagando por fim degenerando
em monstruosidades []139
O principal erro dos filoacutesofos poacutes-kantianos teria sido o de transformar a
razatildeo em uma faculdade capaz de conhecimento imediato do suprassensiacutevel ao mesmo tempo
em que sua verdadeira capacidade de abstraccedilatildeo teria sido delegada ao entendimento e a
intuiccedilatildeo sensiacutevel agrave sensibilidade No entender de Schopenhauer eles utilizaram o nome da
razatildeo para esconder ldquo[] uma faculdade totalmente falsa de conhecimentos imediatos
metafiacutesicos chamados suprassensiacuteveis denominar entendimento agrave verdadeira razatildeo
negligenciar o real entendimento que eles natildeo possuem e atribuir sua funccedilatildeo intuitiva agrave
sensibilidaderdquo140
Na concepccedilatildeo schopenhaueriana os conceitos satildeo formados pela
decomposiccedilatildeo de representaccedilotildees intuitivas cujos traccedilos caracteriacutesticos satildeo isolados de modo a
identificarem-se qualidades e relaccedilotildees abstratas natildeo referidas a nenhum objeto em particular
A razatildeo desse modo eacute uma faculdade de abstraccedilatildeo (Abstraktionsvermoumlgen)141
Segundo a
explicaccedilatildeo de Magee ldquoA relaccedilatildeo que se daacute entre os conceitos e as experiecircncias e percepccedilotildees eacute
uma relaccedilatildeo do geral ao particular do abstrato ao concreto Toda experiecircncia ou percepccedilatildeo
real eacute imediata especiacutefica uacutenica Por isso natildeo podemos retecirc-la nem comunicaacute-lardquo142
Os
conceitos podem apenas ser pensados natildeo intuiacutedos porque natildeo possuem relaccedilatildeo direta com
os objetos e com sua intuitividade Em certo sentido eles satildeo mais elementares do que as
intuiccedilotildees pois diz Schopenhauer ldquoA constituiccedilatildeo de um conceito se daacute por meio da exclusatildeo
de muito do que eacute dado intuitivamente para que o restante possa ser pensado por si assim ele
seraacute um pensamento menor do que intuitivordquo143
Os conceitos mais abstratos e gerais seratildeo os
menos representaacuteveis empiricamente e os mais vazios aqueles cujo conteuacutedo eacute mais reduzido
como por exemplo os de ser essecircncia devir entre outros144
De acordo com isso diz o
filoacutesofo quanto mais eacute pensado sob um conceito menos eacute pensado nele145
139
WWV I ersters Buch sect8 p 75 M I Livro I sect8 p 85 140
WWWII Kap 6 p 81 MII cap 6 p 81 141
UumlV sect26 p 121 CR sect26 p 149 142
MAGEE B op cit p 48 (traduccedilatildeo nossa) 143
UumlV sect26 p 121 CR sect26 p 150 144
UumlV sect26 p 122 CR sect26 p 150 145
WWWII Kap 6 p 76 MII cap 6 p 76
- 109 -
Schopenhauer descreve os modos em que as representaccedilotildees abstratas
podem se ligar denominando-os ldquoesquematismo dos conceitosrdquo (Schematismus der
Begriffe)146
Todos os conceitos possuiriam esferas preenchidas pelos objetos aos quais se
estendem relacionadas entre si de cinco distintas maneiras segundo as interligaccedilotildees possiacuteveis
entre seus conteuacutedos As esferas conceituais se unem ou se separam de acordo com o que tecircm
ou natildeo em comum e suas interaccedilotildees podem ser expostas em circunferecircncias que se conectam
de modos especiacuteficos147
Schopenhauer entende que todas as combinaccedilotildees possiacuteveis de
conceitos podem ser reduzidas agravequeles cinco modos e que a partir deles se deduzem a teoria e
as propriedades dos juiacutezos Para ele julgar eacute precisamente reconhecer as ligaccedilotildees entre as
esferas formando-se silogismos ou cadeias mais longas de raciociacutenios A loacutegica se
identificaria com as regras de inferecircncia que orientam as combinaccedilotildees de esferas conceituais
de modo que diz o filoacutesofo ldquoEla eacute o conhecimento geral do modo de atuaccedilatildeo da razatildeo
expresso na forma de regras conhecido pela auto-observaccedilatildeo dela e pela abstraccedilatildeo de todo
conteuacutedo conhecidordquo148
Os conceitos satildeo simbolizados por palavras que os fixam e os tornam
utilizaacuteveis sem as quais eles natildeo poderiam servir agraves operaccedilotildees intelectuais a que se destinam
Os animais seriam desprovidos de fala em funccedilatildeo da ausecircncia de razatildeo pois afirma
Schopenhauer ldquo[] por natildeo possuiacuterem nenhuma abstraccedilatildeo natildeo satildeo capazes de nenhum
conceito e consequentemente natildeo possuem linguagemrdquo149
A riqueza de recursos das liacutenguas
sua enorme quantidade de vocaacutebulos com funccedilotildees e usos distintos suas regras gramaticais
formas loacutegicas conexotildees entre ideias tudo seria atribuiacutedo agrave razatildeo A linguagem seria entatildeo
o primeiro resultado da razatildeo e ao mesmo tempo seu instrumento necessaacuterio150
Com efeito a
linguagem eacute fundamental para que a razatildeo possa realizar sua funccedilatildeo proacutepria que eacute a de expor
a apreensatildeo intuitiva do mundo em conceitos tornando-se indispensaacutevel agraves grandes
realizaccedilotildees promovidas na vida humana pela abstraccedilatildeo151
Por conseguinte diz Schopenhauer
146
WWV I ersters Buch sect9 p 82 M I Livro I sect9 p 92 147
Esferas de conceitos idecircnticos satildeo representadas com um uacutenico ciacuterculo esferas de conceitos em que um
engloba o outro satildeo figuradas com um ciacuterculo menor dentro de outro maior esferas que compreendem em si
exatamente duas ou mais esferas satildeo expostas com um ciacuterculo dividido na quantidade correspondente de partes
duas esferas que possuem somente uma parte em comum satildeo representadas com dois ciacuterculos em intersecccedilatildeo
por fim uma esfera que conteacutem outras mas natildeo somente elas eacute representa com uma esfera maior englobando
outras menores com sobra de espaccedilo interno Cf WWV I ersters Buch sect9 p 80-81 M I Livro I sect9 p 90-91 148
WWV I ersters Buch sect9 p 83 M I Livro I sect9 p 93 149
UumlV sect26 p 122 CR sect26 p 149 150
WWV I ersters Buch sect8 p 73 M I Livro I sect8 p 83 151
WWV I ersters Buch sect8 p 73 M I Livro I sect8 p 83-84
- 110 -
ldquoCom o aprendizado dela torna-se consciente todo o mecanismo da razatildeo assim o essencial
da loacutegicardquo152
Os conceitos satildeo como foacutermulas ou algoritmos que contecircm as operaccedilotildees
de pensamento153
As intuiccedilotildees empiacutericas natildeo satildeo uacuteteis para esse propoacutesito porque trazem
muitas informaccedilotildees e inviabilizam a reflexatildeo sobre relaccedilotildees e caracteriacutesticas gerais dos
objetos Como o filoacutesofo explica ldquo[] se algueacutem quisesse manter cada representaccedilatildeo presente
na imaginaccedilatildeo teria de arrastar um peso desnecessaacuterio e seria assim desorientado com o uso
dos conceitos poreacutem pensam-se soacute as partes e relaccedilotildees de todas essas representaccedilotildees que
cada fim exigerdquo154
Pensar eacute portanto manejar intelectualmente os conceitos conhecer por
seu turno eacute consolidar conceitualmente o que foi conhecido de outra forma Eacute interessante
observarmos que para Schopenhauer os dois grandes tipos de objetos em que se divide o
pensamento natildeo satildeo os conceitos e as intuiccedilotildees como poderia parecer mas os conceitos e os
sentimentos Nas palavras dele ldquo[] seja o que for pertence ao conceito de sentimento em
cuja imensa esfera se abarca as coisas mais heterogecircneas as quais natildeo se compreende como
se reuacutenem enquanto natildeo se notou que concordam somente na consideraccedilatildeo negativa de natildeo
serem conceitos abstratosrdquo155
Nesse sentido as sensaccedilotildees dos sentidos e as intuiccedilotildees tanto
empiacutericas quanto puras encaixam-se no conceito de sentimento156
Schopenhauer prefere utilizar o termo ldquoreflexatildeordquo que lhe parece deixar
mais evidente o caraacuteter derivado e secundaacuterio da abstraccedilatildeo racional157
De acordo com ele
trata-se de ldquo[] uma aparecircncia repetida um conhecimento derivado do intuitivo mas com um
fundamento de outra natureza e composiccedilatildeo que natildeo conhece as formas daquele e aleacutem
disso o princiacutepio de razatildeo que rege todos os objetos possui aqui uma feiccedilatildeo totalmente
diferenterdquo158
Por meio dos conceitos pode-se tanto utilizar quanto dispensar informaccedilotildees
sobre passado e futuro prescindir da presenccedila dos objetos bem como deter-se sobre o
essencial de muacuteltiplas representaccedilotildees inclusive as ausentes159
Essas propriedades seriam a
origem da capacidade de planejar ponderar projetar o futuro com base nas memoacuterias do
passado para aleacutem das impressotildees intuitivas do momento Enfim satildeo os conceitos que
152
UumlV sect26 p 123 CR sect26 p 151 153
UumlV sect27 p 124 CR sect27 p 152-153 154
UumlV sect27 p 124 CR sect27 p 153 155
WWV I ersters Buch sect11 p 92-93 M I Livro I sect11 p 100 156
WWV I ersters Buch sect11 p 93-94 M I Livro I sect11 p 100-101 157
UumlV sect27 p 124 CR sect27 p 153 158
WWV I ersters Buch sect8 p 72 M I Livro I sect8 p 82-83 159
WWV I ersters Buch sect8 p 72-73 M I Livro I sect8 p 83
- 111 -
possibilitam todo tipo de conhecimento abstrato especialmente o das ciecircncias ao permitir o
pensamento do particular por meio do geral Isso soacute se torna possiacutevel diz o filoacutesofo ldquo[] por
meio do dictum de omni et nullo o qual por seu turno soacute eacute possiacutevel pela presenccedila dos
conceitosrdquo160
Sinteticamente nas palavras de Gardiner
Em geral Schopenhauer sustenta que a ldquorazatildeordquo eacute sempre e necessariamente
improdutiva natildeo criativa que isso seja assim para ele segue-se da
explicaccedilatildeo que deu de que os conceitos e juiacutezos ldquorefletemrdquo simplesmente ou
reproduzem aquilo de que tomamos consciecircncia por meio da percepccedilatildeo ou
experiecircncia diretas161
Ao lado dos conceitos haacute um tipo de representaccedilatildeo que Schopenhauer
denomina Phantasma e que corresponde agraves criaccedilotildees da imaginaccedilatildeo162
Ele utiliza a palavra
em latim que significa visatildeo apariccedilatildeo ou tambeacutem ideia ou noccedilatildeo fictiacutecia Trata-se de uma
representaccedilatildeo que embora intuitiva natildeo surge diretamente das sensaccedilotildees nem se liga
imediatamente agrave experiecircncia Representaccedilotildees desse tipo podem ser utilizadas pelo
pensamento no lugar dos conceitos mas se diferenciam destes porque se referem aos objetos
em particular enquanto eles satildeo sempre gerais Conforme a explicaccedilatildeo do filoacutesofo ldquo[]
quando se invoca a visatildeo imaginaacuteria de algum cachorro por exemplo como representaccedilatildeo
ele deve ser totalmente determinado isto eacute com certo tamanho forma cor e etc o conceito
poreacutem cujo representante ele eacute natildeo possui nenhuma dessas determinaccedilotildeesrdquo163
Uma
representaccedilatildeo assim como dissemos pode ser utilizada como exemplar de um conceito
poreacutem impropriamente pois este uacuteltimo natildeo pode conter determinaccedilotildees arbitrariamente
pensadas De qualquer modo para que atividade do pensamento se realize satildeo requeridas
palavras ou essas imagens pois sem nenhuma delas o pensamento natildeo teria nenhum meio
onde se desenvolver164
Schopenhauer menciona ainda outro tipo de representaccedilatildeo que ele
nomeia ldquointuiccedilotildees normaisrdquo (Normalanschauungen)165
Analisando a primeira ediccedilatildeo de Da
quaacutedrupla raiz e os escritos schopenhaerianos de juventude Yasuo Kamata informa que
essa expressatildeo foi inspirada pela Criacutetica do Juiacutezo de Kant No texto ldquoSchopenhauer e Kant
160
UumlV sect27 p 125 CR sect27 p 154 Dictum de omni e Dictum de nullo satildeo dois princiacutepios considerados
durante a Idade Meacutedia como as bases das conclusotildees dos silogismos O primeiro significa que tudo o que se
pode afirmar de modo universal sobre algo pode tambeacutem ser afirmado de modo particular O segundo que tudo
o que se nega de modo universal sobre algo pode-se tambeacutem negar de modo particular 161
Ibidem p 170 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 162
UumlV sect28 p 125 CR sect28 p 154 163
UumlV sect28 p 126 CR sect28 p 155 164
UumlV sect28 p 126 CR sect28 p 155-156 165
UumlV sect39 p 161 CR sect39 p 193
- 112 -
A recepccedilatildeo da bdquoAnaliacutetica transcendental‟ da Criacutetica da razatildeo pura na filosofia primeira de
Schopenhauerrdquo esse autor escreve que ldquoA expressatildeo bdquointuiccedilatildeo normal‟ foi inspirada
evidentemente pela bdquoideia normal esteacutetica‟ (Normalidee) na Criacutetica do juiacutezo como atesta seu
caderno de anotaccedilotildees (HNII 288)rdquo166
Para Schopenhauer tais representaccedilotildees satildeo intuitivas
isto eacute determinadas e ao mesmo tempo gerais pois satildeo formas dos fenocircmenos e se aplicam a
todos os objetos possiacuteveis Ele as define como ldquofiguras e nuacutemeros que legislam para toda a
experiecircncia e por isso unem a grande amplitude do conceito com a determinaccedilatildeo total da
representaccedilatildeo singularrdquo167
No caso do espaccedilo elas satildeo as intuiccedilotildees tiacutepicas da geometria no
caso do tempo as intuiccedilotildees normais satildeo representadas pelos nuacutemeros Em nota Schopenhauer
afirma que as ideias de Platatildeo poderiam ser entendidas como intuiccedilotildees normais pois seriam
vaacutelidas tanto para a parte formal quanto para a parte material dos objetos Seriam portanto
ldquo[] representaccedilotildees completas que como tais seriam totalmente determinadas e ao mesmo
tempo como os conceitos abarcariam muito sob si []rdquo168
Conforme Schopenhauer pensar eacute raciocinar utilizando palavras e as
intuiccedilotildees empiacutericas satildeo mais bem compreendidas quando relacionadas aos conceitos por
meio do juiacutezo Isso ocorre quando os conceitos satildeo buscados como regras que regem
representaccedilotildees sensiacuteveis dadas ou ao contraacuterio quando se buscam os dados empiacutericos nas
intuiccedilotildees para justificar um conceito Essa atividade eacute realizada pela faculdade de julgar
(Urteilskraft) cujo produto seraacute um juiacutezo reflexionante no primeiro caso ou determinante no
segundo169
Como escreve o filoacutesofo ldquoA faculdade do juiacutezo eacute assim a mediadora entre o
conhecimento intuitivo e o abstrato ou entre o entendimento e a razatildeordquo170
Embora tambeacutem
possa relacionar conceitos em um juiacutezo sua funccedilatildeo preciacutepua eacute a de subsumir a intuiccedilatildeo sob
conceitos ldquoDaiacuterdquo conclui Schopenhauer ldquoa dificuldade das ciecircncias estaacute tambeacutem nos juiacutezos
fundamentais e natildeo nas conclusotildees a partir deles Deduzir eacute faacutecil julgar difiacutecilrdquo171
Apesar de toda a importacircncia dos conceitos o conhecimento intuitivo
tem precedecircncia sobre o abstrato pois eacute o nuacutecleo ao qual este se refere e o pressuposto dele
Para Schopenhauer as concepccedilotildees e pensamentos originais assim como as grandes invenccedilotildees
166
KAMATA Y Schopenhauer e Kant A recepccedilatildeo da ldquoAnaliacutetica transcendentalrdquo da Criacutetica da razatildeo pura na
filosofia primeira de Schopenhauer Revista ethic Florianoacutepolis v 11 n 1 p 68 ndash 81 julho de 2012 p 73
(grifos do autor) 167
UumlV sect39 p 161 CR sect39 p 193-194 168
UumlV sect39 p 161 CR sect39 p 194 169
UumlV sect28 p 127 CR sect28 p 156 170
UumlV sect28 p 127 CR sect28 p 156 171
WWWII Kap 7 p 105 MII cap 7 p 106
- 113 -
que desvendam mecanismos da natureza satildeo obra do entendimento natildeo da razatildeo satildeo a
apresentaccedilatildeo correta da causa de um efeito e a compreensatildeo da forccedila natural subjacente172
Toda teoria filosofia ou ciecircncia precisa ter por base uma intuiccedilatildeo empiacuterica caso contraacuterio
careceraacute de relaccedilatildeo com o real e na verdade natildeo ensinaraacute nada sobre o mundo Nas palavras
dele ldquoSe a explicaccedilatildeo possui um tal nuacutecleo assemelha-se com uma nota bancaacuteria que tem o
equivalente em caixa qualquer outra que provenha de meras combinaccedilotildees de conceitos eacute
como uma nota bancaacuteria que deposita como garantia de novo apenas outro papelrdquo173
Em
suma um discurso feito apenas com conceitos e seus desmembramentos natildeo se refere a nada
existente concretamente pois a razatildeo pode fixar o conhecido intuitivamente ligaacute-lo mas
nunca produzi-lo174
Os conceitos sempre ficaratildeo aqueacutem das sutis distinccedilotildees das intuiccedilotildees diz
Schopenhauer aproximando-se delas como um mosaico se aproxima da imagem que
representa isto eacute com falhas e descontinuidades175
Sobre esse ponto Gardiner observa de
modo interessante que
Como ilustraccedilatildeo Schopenhauer menciona a forma em que com frequecircncia
somos conscientes da impossibilidade de verbalizar a expressatildeo do rosto de
uma pessoa ldquoo sentido dos traccedilosrdquo parece atrapalhar toda descriccedilatildeo precisa
ou adequada apesar de natildeo haver duacutevida de que bdquosentimos‟ e
compreendemos perfeitamente e podemos falar sobre ele com autecircntica
propriedade176
Por conseguinte a natureza dos conceitos eacute peculiar e essa peculiaridade
se mostra tambeacutem no tipo de conhecimento que eles fornecem Natildeo se pode conhecer de
modo evidente de sua essecircncia tampouco exigir uma comprovaccedilatildeo concreta deles pois isso
soacute poderia ser feito com algo de natureza totalmente distinta a saber com uma intuiccedilatildeo
empiacuterica177
Como explica o filoacutesofo ldquoEles se deixam somente pensar natildeo intuir e apenas os
efeitos que por meio deles os homens produzem satildeo realmente objetos de experiecircnciardquo178
Um conceito poderaacute ser fundamentado por outro ou por uma intuiccedilatildeo no entanto no fim da
cadeia de raciociacutenios deveraacute estar um conhecimento intuitivo Segundo Schopenhauer essa eacute
uma diferenccedila fundamental entre as classes abstrata e intuitiva de representaccedilotildees pois ele
afirma ldquo[] nesta o princiacutepio de razatildeo sempre exige apenas ligaccedilatildeo com outra representaccedilatildeo
da mesma classe enquanto as representaccedilotildees abstratas poreacutem ao fim exigem uma referecircncia
172
WWV I ersters Buch sect6 p 53-54 M I Livro I sect6 p 65 173
UumlV sect28 p 128 CR sect28 p 158 174
WWV I ersters Buch sect6 p 53 M I Livro I sect6 p 65 175
WWV I ersters Buch sect12 p 99 M I Livro I sect12 p 106-107 176
GARDINER op cit p 169 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 177
WWV I ersters Buch sect9 p 76 M I Livro I sect9 p 86 178
WWV I ersters Buch sect9 p 76 M I Livro I sect9 p 86
- 114 -
a uma representaccedilatildeo de outra classerdquo179
Numa palavra os conceitos englobam e refletem os
objetos do mundo empiacuterico relacionando-se entre si de acordo com as relaccedilotildees possiacuteveis
entre suas esferas Na interpretaccedilatildeo de Gardiner
Os conceitos estatildeo em realidade essencialmente adaptados a fins praacuteticos
toda filosofia que passe por alto sobre esse ponto estaraacute condenada em
algum momento a interpretar mal e a distorcer a relaccedilatildeo entre pensamento e
realidade Por isso quando trata de pensamento e linguagem assim como da
nossa consciecircncia perceptiva do mundo fenomecircnico Schopenhauer insiste
primariamente nos fatores pragmaacuteticos que segundo ele entende
determinam os traccedilos caracteriacutesticos do conhecimento comum180
O princiacutepio de razatildeo do conhecer (Satz vom zureichenden Grunde des
Erkennens) ou principium sufficientis cognoscendi estabelece uma relaccedilatildeo necessaacuteria entre
os conceitos segundo a qual todo e qualquer juiacutezo teraacute de ser justificado Se a razatildeo eacute dada o
juiacutezo pode ser tomado por verdadeiro e a verdade eacute entatildeo definida por Schopenhauer como
bdquo[] a relaccedilatildeo de um juiacutezo com algo diferente dele que seraacute chamado seu fundamento
[]rdquo181
Portanto natildeo eacute possiacutevel nenhum conhecimento que seja imediatamente verdadeiro
pois escreve o filoacutesofo ldquoToda verdade eacute uma relaccedilatildeo de um juiacutezo com algo fora dele e
verdade intriacutenseca eacute uma contradiccedilatildeordquo182
O fundamento de um juiacutezo pode ser de quatro tipos a saber loacutegico
empiacuterico transcendental e metaloacutegico cada um com uma espeacutecie de verdade correspondente
Schopenhauer define a verdade loacutegica como a fundamentaccedilatildeo de um juiacutezo em outro o que
pode ser feito de modo imediato ou mediato pela interferecircncia de um terceiro entre eles183
A
silogiacutestica seria o cacircnone da verdade loacutegica que reuniria as regras de aplicaccedilatildeo do princiacutepio
de razatildeo suficiente do conhecer entre os juiacutezos Nesse sentido diz o filoacutesofo ldquo[] a loacutegica eacute
uma simples paraacutefrase dele [do princiacutepio] na verdade apenas no caso em que o fundamento
da verdade natildeo eacute empiacuterico ou metafiacutesico mas loacutegico ou metaloacutegicordquo184
Gardiner chama a
atenccedilatildeo para esse ponto sublinhando que Schopenhauer resumia a loacutegica agrave silogiacutestica e natildeo
considerava as regras de deduccedilatildeo como criaccedilotildees dos loacutegicos Para o ele praticariacuteamos os
cacircnones de inferecircncias loacutegicas naturalmente e sem necessidade de estudo Portanto como
afirma Gardiner
179
WWV I ersters Buch sect9 p 78 M I Livro I sect9 p 88 (grifos do autor) 180
Ibidem p 176 (traduccedilatildeo nossa) 181
UumlV sect29 p 129 CR sect29 p 159 182
UumlV sect30 p 131 CR sect30 p 161 (grifos do autor) 183
UumlV sect30 p 130 CR sect30 159 184
WWV I ersters Buch sect9 p 84 M I Livro I sect9 p 94
- 115 -
Daiacute que seja enganoso falar como se pudeacutessemos aprender algo novo com as
regras fundamentais e os princiacutepios que os loacutegicos estabelecem jaacute que esses
princiacutepios jaacute subjazem implicitamente em nosso pensamento ordinaacuterio e
formas de falar tendo sido derivadas do exame deles185
Eacute interessante que Schopenhauer introduza essa forma do princiacutepio de
razatildeo entre aquelas conhecidas como as trecircs leis fundamentais do pensamento De acordo com
ele o princiacutepio de razatildeo do conhecer se soma agraves leis de identidade de contradiccedilatildeo e do
terceiro excluiacutedo na condiccedilatildeo de juiacutezo que fundamenta a verdade de outros juiacutezos186
Tais leis
seriam como premissas das quais se deduziriam outros juiacutezos sem a necessidade de que
fossem explicitamente enunciadas Na explicaccedilatildeo dele quando se afirma ldquoNingueacutem pode
tomar algo como verdadeiro sem saber o porquecircrdquo admite-se como fundamento dessa verdade
o princiacutepio de razatildeo suficiente do conhecer187
As leis fundamentais do pensamento satildeo
ademais as quatro verdades metaloacutegicas que se ancoram na estrutura do intelecto e originam
o modo de ser da razatildeo Enquanto fundadas nas condiccedilotildees do pensar natildeo se poderia
raciocinar em desacordo com elas
Aleacutem das verdades loacutegicas e metaloacutegicas um juiacutezo tambeacutem pode ser
fundamentado por uma verdade empiacuterica ou por uma verdade transcendental Verdade
empiacuterica eacute entendida por Schopenhauer como um juiacutezo cujo fundamento eacute uma intuiccedilatildeo
sensiacutevel Esse tipo de conhecimento seria obra da faculdade do juiacutezo mediadora entre o
entendimento e a razatildeo e responsaacutevel por garantir que as ligaccedilotildees entre conceitos sejam feitas
de acordo com as intuiccedilotildees188
Verdade transcendental por fim eacute aquela sustentada pelas
formas da sensibilidade pura nos juiacutezos sinteacuteticos a priori O juiacutezo nesse caso funda-se nas
condiccedilotildees da experiecircncia como no caso da proposiccedilatildeo ldquonada acontece sem causardquo fundada
lei de causalidade189
Assim como ocorre com as verdades metaloacutegicas natildeo se pode pensar
em oposiccedilatildeo agraves formas do tempo do espaccedilo e da causalidade e tentar fazecirc-lo diz o filoacutesofo
seria como ldquo[] mover nossos membros no sentido contraacuterio das suas articulaccedilotildeesrdquo190
Supor
uma mudanccedila sem causa precedente ele continua eacute algo que nem mesmo se pode pensar e
que por isso nos parece uma impossibilidade objetiva embora seja de fato subjetiva De
acordo com isso as diferenccedilas entre os conhecimentos intuitivo e racional decorrem de serem
oriundos cada um de uma faculdade tornando impossiacutevel algo como uma intuiccedilatildeo racional
185
GARDINER op cit p 172 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 186
UumlV sect30 p 130-131 CR sect30 160 187
UumlV sect30 p 130 CR sect30 p 160 188
UumlV sect31 p 131 CR sect31 p 161 189
UumlV sect32 p 132 CR sect32 p 162 190
UumlV sect33 p 133 CR sect33 p 163
- 116 -
pois afirma Schopenhauer ldquoA razatildeo pode sempre apenas saber ao entendimento sozinho e
livre de sua influecircncia resta a intuiccedilatildeordquo191
A loacutegica seria entatildeo o modus operandi da razatildeo
enquanto a razatildeo pura seria a parte meramente formal do intelecto com a qual se produzem
proposiccedilotildees de verdade transcendental e metaloacutegica192
Schopenhauer acrescenta ainda que a verdade dos raciociacutenios
assentados sobre a intuiccedilatildeo a priori do espaccedilo e do tempo isto eacute sobre proposiccedilotildees de
verdade transcendental natildeo pode ser demonstrada193
Nesse ponto eacute interessante expor a
distinccedilatildeo realizada por ele entre esse tipo de verdade e as demonstraccedilotildees No primeiro caso
trata-se de um conhecimento semelhante aos da aritmeacutetica e da geometria que somente satildeo
possiacuteveis por intuiccedilatildeo O segundo caso remete aos conhecimentos que dependem de
representaccedilotildees abstratas cuja prova eacute demonstrativa As diferenccedilas entre ambos os casos
estatildeo fundadas nas especificidades do princiacutepio de razatildeo suficiente o ser e do conhecer isto eacute
na diferenccedila entre se conhecer algo por intuiccedilatildeo pura ou por conceitos Nas demonstraccedilotildees
satildeo oferecidas as razotildees de conhecimento para as proposiccedilotildees sua verdade loacutegica enquanto
nas verdades transcendentais o que se oferece eacute uma intuiccedilatildeo em que se evidencia a razatildeo de
ser194
Em funccedilatildeo disso o tipo de assentimento que se tem em cada caso eacute tambeacutem distinto a
saber no princiacutepio do conhecer eacute a convicccedilatildeo (convictio) resultante de se saber ldquoquerdquo e no
do ser eacute a compreensatildeo (cognitio) resultado de se saber o ldquoporquecircrdquo195
Para Schopenhauer a
compreensatildeo eacute mais forte do que a convicccedilatildeo e diz ele ldquoQuando se tem esta [a razatildeo de ser]
entatildeo a seguranccedila sobre a verdade da proposiccedilatildeo se apoia somente nela de modo algum na
razatildeo de conhecimento dada por demonstraccedilatildeo []rdquo196
A demonstraccedilatildeo possui entatildeo uma importacircncia relativa no pensamento
schopenhaueriano A forma sistemaacutetica e dedutiva eacute vista pelo filoacutesofo como a caracteriacutestica
essencial do conhecimento cientiacutefico no qual por meio de interligaccedilotildees das esferas de
conceitos parte-se do geral de esferas mais amplas e conceitos superiores e atinge-se o
particular determinando-o e compreendendo-o A persuasatildeo e a firmeza que um
conhecimento cientiacutefico pode conseguir natildeo estatildeo poreacutem no grau maacuteximo de certeza que
pode ser alcanccedilada tambeacutem em conhecimentos sensiacuteveis mas numa possibilidade de
191
WWV I ersters Buch sect6 p 58 M I Livro I sect6 p 69 192
UumlV sect34 p 141-142 CR sect34 p 172-173 193
UumlV sect37 p 160 CR sect37 p 192 194
UumlV sect39 p 162-163 CR sect39 p 195 195
UumlV sect39 p 163 CR sect39 p 196 196
UumlV sect39 p 163 CR sect39 p 196
- 117 -
integralidade dada pela forma sistemaacutetica197
Nesse sentido como afirma Gardiner ldquoA ideia
de que uma explicaccedilatildeo da realidade pudesse ser intelectualmente aceitaacutevel apenas quando se
apresentasse em termos de proposiccedilotildees cujas verdades estivessem logicamente garantidas
teria lhe parecido absurdardquo198
Na visatildeo de Schopenhauer consolidou-se ao longo da Histoacuteria
a conclusatildeo falsa de que apenas o demonstrado deveria ser tomado por verdadeiro
dificultando a compreensatildeo de que toda demonstraccedilatildeo deriva no iniacutecio da cadeia
argumentativa de uma verdade indemonstraacutevel Ele sustenta ao contraacuterio que todas as
demonstraccedilotildees precisam ser remetidas a algo intuitivo e sem demonstraccedilatildeo possiacutevel pois ele
escreve ldquoNatildeo pode haver nenhuma verdade que seja necessariamente trazida agrave tona apenas
por conclusotildeesrdquo199
As intuiccedilotildees a priori do tempo e do espaccedilo por exemplo seriam as
verdades indemonstraacuteveis que fundamentam a aritmeacutetica e a geometria De modo semelhante
como formas a priori verdades transcendentais que fundamentariam conhecimentos
metafiacutesicos como o da permanecircncia da mateacuteria ainda que negativamente Por fim verdades
empiacutericas alcanccediladas por induccedilatildeo sustentariam conhecimentos empiacutericos embora a
evidecircncias delas seja apenas aproximativa200
Na opiniatildeo de Magee essa concepccedilatildeo mostra que Schopenhauer tinha
uma ideia muito clara das limitaccedilotildees da argumentaccedilatildeo loacutegica Qualquer raciociacutenio apenas
demonstra que a conclusatildeo se segue das premissas mas natildeo pode fornecer nenhuma
informaccedilatildeo nova201
Aleacutem disso esse autor enfatiza que um raciociacutenio teraacute sempre de apoiar-
se em pelo menos duas hipoacuteteses natildeo demonstradas a saber uma premissa e uma regra de
inferecircncia Portanto a exigecircncia de uma demonstraccedilatildeo para toda e qualquer ideia natildeo se
coadunaria com o que realmente acontece pois no fim de contas toda prova se fundaria em
algo natildeo demonstrado Do mesmo modo eacute preciso que se remeta o argumento a algo que natildeo
seja a proacutepria conclusatildeo isto eacute a argumentaccedilatildeo natildeo pode se reduzir somente ao ciacuterculo de
proposiccedilotildees de que eacute feita202
Nas palavras de Magee
[] se sabemos algo a respeito do mundo o sabemos natildeo porque tenha sido
demonstrado ou provado mas porque experimentamos ou percebemos
diretamente ou entatildeo porque mediante processos loacutegicos que natildeo
acrescentam nenhum conteuacutedo empiacuterico se segue do que experimentamos
197
WWV I ersters Buch sect14 p 108 M I Livro I sect14 p 115 198
GARDINER op cit p 207 (traduccedilatildeo nossa) 199
WWV I ersters Buch sect14 p 110 MI Livro I sect14 p 117 200
WWV I ersters Buch sect14 p 111-113 MI Livro I sect14 p 118-120 201
MAGEE B op cit p 45 202
Ibidem p 46
- 118 -
ou percebemos diretamente Nesse sentido fundamental todo conhecimento
precede a toda demonstraccedilatildeo203
22 ndash O conhecimento filosoacutefico
Na interpretaccedilatildeo de Magee o texto de Da quaacutedrupla raiz foi elaborado
como uma teoria da explicaccedilatildeo que seria entendida por Schopenhauer como uma
investigaccedilatildeo imprescindiacutevel para o intento de desvendar o mundo204
Cada uma das formas do
princiacutepio de razatildeo seria uma maneira de responder agrave questatildeo sobre como fundamentar
suficientemente um conhecimento No entanto conforme esse autor a razatildeo suficiente dada
por aquelas formas evidencia as relaccedilotildees necessaacuterias entre as classes de objetos possiacuteveis sem
oferecer a possibilidade de se parar em nenhum ponto alcanccedilado As explicaccedilotildees por meio do
princiacutepio seriam portanto sempre incompletas e insatisfatoacuterias Magee considera que da
perspectiva da praacutetica as explicaccedilotildees podem se deter onde seja suficiente para os respectivos
propoacutesitos sem que isso represente qualquer problema Da perspectiva da teoria contudo as
passagens em que a investigaccedilatildeo normalmente se interrompe satildeo aquelas onde estatildeo as
questotildees filosoacuteficas Nesse sentido escreve Magee ldquoUma vez que enumerou todas as formas
possiacuteveis de explicaccedilatildeo o que Schopenhauer faz no passo seguinte de sua investigaccedilatildeo eacute
determinar o ponto em que cada uma das explicaccedilotildees costumam se deter na praacutetica pontos
em que surgem importantes problemas filosoacuteficosrdquo205
Na concepccedilatildeo de Schopenhauer o conhecimento filosoacutefico eacute aquele que
vai aleacutem do cientiacutefico isto eacute que prossegue quando este tem de parar Ser cientiacutefico significa
ser sistematizado e ordenado com base no princiacutepio de razatildeo que conecta as partes de um
sistema e o torna coerente e coeso Toda ciecircncia estudaria um objeto especiacutefico tendo o
203
Ibidem p 46 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 204
Ibidem p 35 205
Ibidem p 39-40 (traduccedilatildeo nossa)
- 119 -
princiacutepio de razatildeo como seu meacutetodo de pesquisa206
Com efeito o filoacutesofo escreve ldquoO que
justamente diferencia cada ciecircncia de um simples agregado eacute que seus conhecimentos
seguem-se uns dos outros como de seus fundamentosrdquo207
Como dissemos o princiacutepio de
razatildeo exige sempre a busca pelo porquecirc de tudo e isso o torna a ldquomatildee de todas as
ciecircnciasrdquo208
Inversamente a resposta agrave pergunta pelo porquecirc soacute pode ser oferecida com uma
razatildeo suficiente numa das formas do princiacutepio
Nessa perspectiva o princiacutepio de razatildeo e a coisa em si permaneceratildeo
absolutamente inexplicaacuteveis O primeiro como jaacute dissemos eacute o que torna possiacutevel qualquer
explicaccedilatildeo de modo que explicaacute-lo a partir de outra coisa natildeo faria sentido a segunda por
sua vez porque natildeo se submete a ele Diferentemente as diversas ciecircncias tecircm de seguir o
princiacutepio de razatildeo e com isso detecircm-se no fenocircmeno e deixam sempre incompreendidos os
pontos onde resvalam na coisa em si Somente o conhecimento filosoacutefico seria capaz de
ultrapassar o princiacutepio de razatildeo e o fenocircmeno pois diz Schopenhauer ldquo[] o que as ciecircncias
pressupotildeem o que colocam como fundamento de suas explicaccedilotildees e estabelecem como
limites eacute exatamente o verdadeiro problema da filosofia que em consequecircncia comeccedila onde
essas ciecircncias paramrdquo209
Em Schopenhauer critique de Kant Philonenko observa de modo
interessante que a filosofia schopenhaueriana se situa numa certa tensatildeo entre o objetivo e o
subjetivo Nas palavras do autor
Far-se-ia melhor em sublinhar que a filosofia segundo Schopenhauer reside
numa tensatildeo reativa ao mesmo tempo subjetiva e objetiva subjetiva na
medida em que a consciecircncia se desgarra de seu lugar de nascimento e se
abre aos fenocircmenos objetiva na medida em que experimenta o real e
desposa a coisa em si210
Schopenhauer ressalta como caracteriacutesticas distintivas da filosofia em
primeiro lugar tomar tudo por incerto e problemaacutetico ateacute mesmo o princiacutepio de razatildeo Em
segundo natildeo ter demonstraccedilotildees por fundamento nem ser encontrada por deduccedilatildeo a partir de
princiacutepios supostamente firmes Sobre esse ponto no texto ldquoSobre filosofia e seu meacutetodordquo de
Parerga e Paralipomena ele afirma que ldquoO fundamento e o solo sobre os quais todos os
nossos conhecimentos e ciecircncias descansam eacute o inexplicaacutevelrdquo o qual ele acrescenta ldquo[] cai
206
WWV I ersters Buch sect7 p 62 M I Livo I sect7 p 73 207
UumlV sect4 p 14 CR sect4 p 32 208
UumlV sect4 p 15 CR sect4 p 33 209
WWV I ersters Buch sect15 p 130 MI Livro I sect15 p 136 210
PHILONENKO A Schopenhauer critique de Kant Paris Les Belles Lettres 2005 p 99 (traduccedilatildeo nossa)
(grifos do autor)
- 120 -
no campo da metafiacutesicardquo211
Em terceiro e uacuteltimo lugar eacute carateriacutestico da filosofia ser um
conhecimento universal a partir do qual natildeo se alcanccedila outros superiores Natildeo obstante diz o
filoacutesofo natildeo se deve buscar por meio dela uma causa final nem uma causa eficiente do
mundo posto que isso seria utilizar o princiacutepio de razatildeo indevidamente Nesse caso a
pergunta pelo ldquoporquecircrdquo da existecircncia do mundo deve ceder lugar agrave pergunta sobre ldquoo querdquo ele
eacute agrave qual toda pessoa estaria apta a responder212
A filosofia deve entatildeo representar em
conceitos o que eacute apreendido imediatamente como sentimento do mundo ldquoPortantordquo escreve
Schopenhauer
a filosofia seraacute uma soma de juiacutezos muito gerais cujo fundamento imediato
de conhecimento eacute o mundo mesmo em sua totalidade sem nada excluir ou
seja tudo o que se encontra na consciecircncia humana seraacute uma repeticcedilatildeo
completa algo como um espelhamento do mundo em conceitos abstratos o
que soacute eacute possiacutevel pela uniatildeo do essencialmente idecircntico em um conceito e
pela separaccedilatildeo do diferente em outro213
Tanto a ciecircncia quanto a filosofia ocupam-se da experiecircncia mas
enquanto a primeira se debruccedila sobre o que nela haacute de particular a segunda a investiga
segundo sua possibilidade essecircncia forma e mateacuteria214
Schopenhauer divide em dois ramos
os objetos de estudo da filosofia a saber em philosophia prima e metafiacutesica A investigaccedilatildeo
do intelecto com suas formas leis validade e limites eacute a philosophia prima que conta com
uma dianoiologia dedicada ao entendimento e agraves intuiccedilotildees empiacutericas e uma teoria da razatildeo
voltada aos conceitos e suas regras215
O objetivo da philosophia prima seria compreender o
meio pelo qual o empiacuterico se apresenta enquanto a metafiacutesica examinaria a experiecircncia como
uma aparecircncia que representa a coisa em si dividindo-se em metafiacutesica do belo da natureza e
dos costumes216
A investigaccedilatildeo da metafiacutesica segundo o filoacutesofo exige a uniatildeo da
experiecircncia externa com a interna e a compreensatildeo da realidade empiacuterica como um todo algo
semelhante a encontrar a coesatildeo e o sentido de um escrito redigido com caracteres
desconhecidos ldquoDesse modordquo ele escreve ldquochega-se da aparecircncia ao que ao que aparece ao
que estaacute sob ela por isso ηὰ μεηὰ ηὰ θςζισὰ (o que se segue agrave fiacutesica)rdquo217
211
PP II Kap 1 sect1 p 9 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de Miguel
Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 1 p 187 212
WWV I ersters Buch sect15 p 131 M I Livro I sect15 p 137 213
WWV I ersters Buch sect15 p 131 M I Livro I sect15 p 137-138 (grifos do autor) 214
PPII Kap 1 sect21 p 26 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de Miguel
Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 21 p 205 215
Ibidem loc cit ibidem loc cit 216
Ibidem Kap 1 sect21 p 27 ibidem sect 21 p 206 217
Ibidem loc cit ibidem loc cit (grifos do autor)
- 121 -
Para alcanccedilar seu objetivo a filosofia soacute poderaacute lidar com a consciecircncia
empiacuterica a uacutenica que nos eacute dada imediatamente e que abrange a consciecircncia de si e a dos
objetos externos Conforme Schopenhauer ao contraacuterio do que pensaram diversos filoacutesofos
ela natildeo pode ser erigida como edifiacutecio meramente abstrato jaacute que diz ele ldquoOs conceitos satildeo
certamente o material da filosofia mas apenas como o maacutermore eacute o material do escultor ela
natildeo deve proceder a partir deles somente se realizar neles isto eacute expor seus resultados com
eles mas natildeo partir deles como os seus dadosrdquo218
E o modo como ele entende que isso pode
ser conseguido eacute captando-se o geral no particular por meio da compreensatildeo das ideias
platocircnicas219
Nesse sentido ele afirma ldquo[] aquele direcionamento do espiacuterito para o geral eacute
a condiccedilatildeo indispensaacutevel para o trabalho genuiacuteno em filosofia e poesia de modo amplo para
as ciecircncias e as artesrdquo220
Por conseguinte natildeo se poderia fazer verdadeiramente filosofia
apenas combinando conceitos sendo preciso fundamentaacute-los em observaccedilotildees e experiecircncias
internas ou externas Filosofar a partir de conceitos eacute exatamente o que Schopenhauer
entende por dogmatismo Na concepccedilatildeo de Paul Guyer essa eacute uma carateriacutestica fundamental
da filosofia schopenhaueriana que ele considera por isso ser um tipo de fenomenologia221
Conforme esse autor
Como os empiristas preacute-kantianos Schopenhauer parece basear sua anaacutelise
da natureza do pensamento numa fenomenologia na qual percepccedilotildees jaacute satildeo
sempre vistas como consciecircncia de objetos e parece pensar que a categoria
da causalidade eacute a uacutenica adiccedilatildeo essencial agrave percepccedilatildeo isso porque um juiacutezo
que designa um objeto ou seu estado como causa de outro pode ser pensado
como um ato de pensamento fenomenologicamente distinguiacutevel da
percepccedilatildeo antecedente e independente do objeto mesmo222
Natildeo obstante a filosofia tampouco pode assentar-se somente na
experiecircncia exterior jaacute que nela segundo o filoacutesofo encontramos apenas cinzas223
O ponto
de partida genuiacuteno para ela estaacute na consciecircncia imediata no reconhecimento de si mesmo que
se consegue quando se ldquoolha para dentrordquo E esse ponto de partida seria a consciecircncia de si
originaacuteria existente em todo ser humano pela qual cada um se julgaria como o centro do
mundo e a fonte da realidade Em virtude disso a concepccedilatildeo schopenhaueriana de filosofia
218
WWWII Kap 7 p 98 MII cap 7 p 99 (grifos do autor) 219
No proacuteximo capiacutetulo analisaremos a concepccedilatildeo schopenhaueriana de Ideia 220
PPII Kap 1 sect2 p 10 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de Miguel
Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 1 p 188 221
GUYER P Schopenhauer Kant and the Methods of Philosophy In JANAWAY C (ed) The Cambridge
Companion to Schopenhauer Cambridge Cambridge University Press 1999 p 117 222
Ibidem p 117 (traduccedilatildeo nossa) 223
PPII Kap 1 sect20 p 24 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de Miguel
Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 20 p 204
- 122 -
natildeo pode ser vista como um procedimento meramente loacutegico ou demonstrativo Nas palavras
do filoacutesofo
Ela deve como a arte e a poesia ter sua fonte na compreensatildeo sensiacutevel do
mundo por mais que a cabeccedila fique no alto natildeo se pode persegui-la com
sangue frio de modo que ao fim natildeo reste o homem completo como
coraccedilatildeo e cabeccedila que venha a agir e pouco a pouco se comova Filosofia natildeo
eacute uma equaccedilatildeo algeacutebrica Mais razatildeo tem Vauvenarges quando diz les
grandes penseacutees viennent du coeur (Os grandes pensamentos vecircm do
coraccedilatildeo Reflexotildees e Maacuteximas Nr 127)224
Em diversas passagens de suas obras Schopenhauer relaciona a filosofia
agrave arte Poreacutem segundo pensamos ele natildeo estabelece uma relaccedilatildeo de identidade entre ambas
mas apenas uma aproximaccedilatildeo geral e difusa ainda mais se considerarmos que haacute diversos
tipos de arte com diferentes modos de expressatildeo Em ldquoSobre filosofia e seu meacutetodordquo por
exemplo ele declara que o poeta apresenta imagens da vida e das pessoas de um modo que
deixa a reflexatildeo ao leitor que a faraacute de acordo com suas possibilidades O filoacutesofo por seu
turno trataria de outra forma os mesmos objetos por meio de pensamentos abstratos Tanto a
arte como a filosofia ocupam-se do geral de espeacutecies classes e conceitos mas escreve
Schopenhauer ldquo[] o poeta se compara agravequele que exibe a flor e o filoacutesofo agravequele que
apresenta a quintessecircnciardquo225
Volker Spierling observa tambeacutem esse ponto e ressalta uma ambiguidade
no aspecto artiacutestico que Schopenhauer daacute ao conhecimento filosoacutefico Na sua obra Arthur
Schopenhauer eine Einfuumlhrung in Leben und Werk esse autor analisa os manuscritos
poacutestumos e mostra que Schopenhauer sempre associou a filosofia agrave arte226
Na transformaccedilatildeo
do conhecimento intuitivo em abstrato Spierling encontra o que chama de diferenccedila
problemaacutetica (problematische Differenz) Para ele consciente do problema mas sem discuti-
lo Schopenhauer tenta fazer o impossiacutevel conceituar o natildeo definiacutevel em conceitos e captar
abstratamente o que eacute vedado ao pensamento227
Nas palavras desse autor
Nesse ponto trata-se de chamar a atenccedilatildeo para uma diferenccedila problemaacutetica
que tambeacutem eacute pensada com a filosofia de Schopenhauer A vivacidade o
caraacuteter imediato das experiecircncias intuitivas da ldquovisatildeo artiacutestica do filosofordquo
tecircm de ser realizados antes de toda reflexatildeo conceitual e satildeo um lado
totalmente diferente de uma investigaccedilatildeo indispensaacutevel para Schopenhauer
224
Ibidem Kap 1 sect9 p 15-16 ibidem p 194 (grifos do autor) 225
Ibidem Kap 1 sect4 p 16 Ibidem sect 4 p 189 226
SPIERLING V Arthur Schopenhauer eine Einfuumlhrung in Leben und Werk Leipzig Reclam Verlag 1998
p 61 227
Ibidem p 62
- 123 -
a saber refletir essas experiecircncias no meio inadequado do conceito conforme
o princiacutepio de razatildeo como que para as transformar e prender
conceitualmente228
23 ndash Criacutetica de Schopenhauer ao idealismo de Kant
Schopenhauer afirma ter escrito a Criacutetica da filosofia kantiana para
justificar a doutrina que expocircs em O mundo naquilo que ela tem de contraacuterio ao
pensamento de Kant Informa ele que desde a escrita da Criacutetica da razatildeo pura a metafiacutesica
teve de abrir novos caminhos e o propoacutesito daquela obra eacute defender o seu229
Ele declara que
sua proacutepria filosofia decorre de uma parte da de Kant purificada poreacutem dos erros deste e
que suas discordacircncias referem-se agraves incorreccedilotildees que ele entende deverem ser expurgadas
para que a verdade da filosofia kantiana possa brilhar clara e segura230
No entender de
Schopenhauer o meacuterito de Kant natildeo eacute afetado por essas imperfeiccedilotildees porque o valor de sua
contribuiccedilatildeo agrave filosofia as supera em muito Como observa Alexis Philonenko em sua obra
Schopenhauer critique de Kant o filoacutesofo considerava que a criacutetica pertinente deveria ser
precedida pelo reconhecimento dos meacuteritos Em funccedilatildeo disso afirma esse autor ldquoA criacutetica eacute
portanto um momento fundante na filosofia de Schopenhauerrdquo231
Natildeo exporemos a criacutetica completa que Schopenhauer faz a Kant porque
ela eacute minuciosa e vai aleacutem do nosso escopo Ele analisa toda a Criacutetica da razatildeo pura aleacutem da
eacutetica kantiana mas pretendemos nos ater somente aos pontos diretamente ligados agrave nossa
investigaccedilatildeo Com efeito a distinccedilatildeo kantiana entre fenocircmeno e coisa em si tem uma
importacircncia fundamental para Schopenhauer Kant teria demonstrado que o intelecto se
interpotildee necessariamente entre as coisas e o nosso conhecimento delas e que portanto nunca
228
Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 229
KkP p 555-546 CFK p 94-95 230
KkP p 533 CFK p 86 231
PHILONENKO A Schopenhauer critique de Kant Paris Les Belles Lettres 2005 p 91 (traduccedilatildeo nossa)
(grifos do autor)
- 124 -
poderemos saber o que satildeo em si mesmas232
Ao separar rigorosamente o que conhecemos a
priori do conhecido a posteriori Kant teria realizado uma revoluccedilatildeo na histoacuteria das ideias
estabelecendo uma relaccedilatildeo tripla com a filosofia anterior
[] primeiro de confirmaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo com a de Locke como acabamos
de ver segundo de correccedilatildeo e utilizaccedilatildeo com a de Hume que se encontra
claramente expressa no prefaacutecio dos ldquoProlegomenardquo (o mais belo e
compreensiacutevel de todos os principais escritos de Kant pois facilita
extraordinariamente o estudo de sua filosofia mas que eacute muito pouco lido)
terceiro de decidida polecircmica e de demoliccedilatildeo com a filosofia Leibniz-
wolffiana233
Pela posiccedilatildeo central do discernimento entre fenocircmeno em coisa em si
Schopenhauer entende que a doutrina acerca a distinccedilatildeo completa entre o real e o ideal eacute o
nuacutecleo da filosofia de Kant Nesse aspecto o pensamento kantiano aparece para ele como
continuador de uma tradiccedilatildeo filosoacutefica antiga iniciada por Platatildeo de separaccedilatildeo e
diferenciaccedilatildeo entre um mundo real e outro ideal Conforme o filoacutesofo seguindo um caminho
proacuteprio Kant descobriu a mesma verdade que Platatildeo enunciara de forma miacutetica na Alegoria
da Caverna no livro seacutetimo de A Repuacuteblica passagem que ele considera a mais importante de
a toda filosofia platocircnica234
Nesse ponto especiacutefico o pensamento de Platatildeo e de Kant teria
sido expresso tambeacutem embora de modo diferente nos ensinamentos contidos na doutrina de
Maya encontrada nos Vedas e nos Puranas Schopenhauer entende que Platatildeo Kant e a
doutrina de Maya expressam igualmente a concepccedilatildeo de que o mundo que acessamos pelo
conhecimento eacute ilusoacuterio transitoacuterio secundaacuterio e inconsistente algo como um sonho diz ele
ldquo[] um veacuteu que envolve a consciecircncia humana algo do qual eacute tatildeo verdadeiro quanto falso
afirmar que eacute assim como que natildeo eacuterdquo235
A superioridade de Kant poreacutem teria sido a de
apresentar essa verdade demonstrativa e incontestavelmente enquanto Platatildeo e o hinduiacutesmo a
teriam expressado de modo poeacutetico e miacutetico Assim a atribuiccedilatildeo de uma ldquonatureza oniacutericardquo
(traumartigen Beschaffenheit) ao mundo seria comum a todos eles e tal visatildeo teria permitido
que compreendessem a impossibilidade de se conhecer a essecircncia das coisas com base no
conhecimento do mundo supostamente real236
Schopenhauer formula uma metaacutefora interessante para designar aqueles
que partindo apenas do conhecimento empiacuterico entenderam ser possiacutevel conhecer as coisas
232
KkP p 534 CFK p 87 233
KkP p 535 CFK p 88 234
KkP p 536 CFK p 88 235
KkP p 536 CFK p 88 236
KkP p 537 CFK p 89
- 125 -
em si Eles seriam como um ldquoesquilo na rodardquo ou tambeacutem como aqueles que pensam poder
alcanccedilar o fim do mundo andando em linha reta Como se tivesse circundado o planeta diz o
filoacutesofo Kant mostrou que ldquo[] porque ele eacute redondo natildeo se pode sair por meio de
movimento horizontal mas que por um movimento perpendicular talvez natildeo seja
impossiacutevelrdquo237
Portanto o conhecimento empiacuterico nunca conduziraacute agrave soluccedilatildeo do problema
de modo que a direccedilatildeo do movimento deve ser perpendicular isto eacute ou para fora ou para
dentro do mundo
O segundo meacuterito de Kant teria sido o de abrir espaccedilo para a deduccedilatildeo da
coisa em si como Vontade ao mostrar que o sentido moral das accedilotildees humanas natildeo se remete
ao fenomecircnico Se bem que Kant natildeo a tivesse deduzido corretamente sua exposiccedilatildeo teria
apontado para a ligaccedilatildeo entre a coisa em si e a moral238
O terceiro meacuterito de Kant no
entender de Schopenhauer foi o de subverter o pensamento escolaacutestico que desde Santo
Agostinho havia submetido a filosofia agrave religiatildeo Uma atitude arriscada jaacute que Kant se
atreveu a minar crenccedilas arraigadas durante seacuteculos e defendidas com violecircncia ao demonstrar
a fragilidade e falta de sustentaccedilatildeo de dogmas tidos por incontestaacuteveis Aleacutem disso como
resultado da filosofia kantiana o realismo teria sido combatido posto que no idealismo as
leis do fenocircmeno foram tomadas como parte do sujeito e natildeo mais como verdades eternas
possibilitando que a realidade do mundo fosse percebida como aparente
Em relaccedilatildeo agraves criacuteticas de Schopenhauer a Kant consideramos que haacute
dois pontos centrais O primeiro eacute a acusaccedilatildeo de que Kant teria realizado suas investigaccedilotildees
com base em um princiacutepio arbitraacuterio e natildeo condizente com a natureza das coisas Para
Schopenhauer Kant busca e encontra em toda parte uma simetria que estaacute somente em si
mesmo distanciando-se da verdade com frequecircncia Nas suas palavras ldquo[] uma propriedade
muito individual do espiacuterito de Kant eacute um prazer singular na simetria que ama a
multiplicidade matizada para ordenaacute-la e repetir a ordenaccedilatildeo em subordinaccedilotildees e assim
continuamente exatamente como nas igrejas goacuteticasrdquo239
Longe de ser algo irrelevante esse
amor agrave simetria teria levado Kant a deduccedilotildees ilegiacutetimas ao uso de sofismas e agrave imposiccedilatildeo de
um edifiacutecio teoacuterico repleto de paralelismos correspondecircncias e equivalecircncias muitas vezes
inexistentes de fato Exemplos disso satildeo segundo Schopenhauer a deduccedilatildeo de doze
categorias em quatro tiacutetulos cada um contando trecircs delas a partir das categorias a deduccedilatildeo
237
KkP p 538 CFK p 89-90 238
KkP p 539-540 CFK p 90-91 239
KkP p 549 CFK p 97 (grifos do autor)
- 126 -
da taacutebua dos princiacutepios da ciecircncia da natureza em nuacutemero de quatro dentre os quais dois
ramificam-se em trecircs galhos cada a criaccedilatildeo de trecircs ideias pela razatildeo com fundamento nas
categorias da relaccedilatildeo na sua busca ao incondicionado a deduccedilatildeo de trecircs ideias a partir dos
silogismos resultantes da categoria da relaccedilatildeo respectivamente alma mundo e Deus por fim
a produccedilatildeo de quatro teses pela ideia de mundo com correlato simeacutetrico em quatro
antiacuteteses240
Entatildeo ele escreve Kant ldquo[] segue seu caminho perseguindo sua simetria
ordenando tudo de acordo com ela sem nunca tomar em consideraccedilatildeo os proacuteprios objetos
assim tratadosrdquo241
Essa mania de equivalecircncia teria sido o verdadeiro fio condutor da
Criacutetica da razatildeo pura Ao descobrir que tempo e espaccedilo satildeo conhecidos a priori Kant teria
ido longe demais ao rastrear tudo o que se poderia encontrar no intelecto antes de toda a
experiecircncia Assim diz Schopenhauer encontrando de iniacutecio intuiccedilotildees a priori procurou
conceitos igualmente puros como fundamento dos empiacutericos Com a taacutebua dos juiacutezos
construiu as doze categorias como fundamento da loacutegica transcendental que entrou como
correlato da esteacutetica transcendental resultando no surgimento de uma sensibilidade e de um
entendimento puros242
Em consequecircncia disso Kant teria esquecido o objeto da investigaccedilatildeo
e seguido uma miragem pois nas palavras de Schopenhauer ldquo[] depois da feliz descoberta
das duas formas da intuiccedilatildeo a priori orientando-se pela guia da analogia passou a se esforccedilar
em demonstrar para cada determinaccedilatildeo de nosso conhecimento empiacuterico um anaacutelogo a
priori []rdquo243
Na visatildeo schopehaueriana portanto os doze conceitos puros de Kant satildeo
inuacuteteis e ateacute mesmo nocivos Como observa Philonenko as categorias satildeo descartadas no seu
conjunto por Schopenhauer e embora a causalidade seja mantida natildeo possui o estatuto de
conceito puro Entatildeo escreve esse autor ldquoAiacute reside uma grande diferenccedila entre Kant e
Schopenhauer para este o princiacutepio de causalidade [] natildeo eacute de fato uma categoria
heterogecircnea agraves formas sensiacuteveis do tempo e do espaccedilo Vemos a consequecircncia a deduccedilatildeo
transcendental em sentido kantiano natildeo se impotildeerdquo244
O segundo ponto nodal da criacutetica de Schopenhauer a Kant estaacute na
confusatildeo que este teria gerado entre intuiccedilatildeo e conceito e por conseguinte entre
240
KkP p 549-550 CFK p 97-98 241
KkP p 550 CFK p 98 242
KkP p 573 CFK p 112 243
KkP p 575 CFK p 114 244
PHILONENKO A Schopenhauer Una filosofia de la tragedia Barcelona Anthropos 1989 p 88 (traduccedilatildeo
nossa) (grifos do autor)
- 127 -
entendimento e razatildeo Para Schopenhauer essa foi a verdadeira origem das contradiccedilotildees
insoluacuteveis a que filosofia kantiana chegara Na sua interpretaccedilatildeo o mundo dos sentidos eacute
remetido em conjunto a um ldquodadordquo do qual pouco se fala e o fundamento do edifiacutecio
kantiano eacute fornecido pela taacutebua loacutegica dos juiacutezos245
Sem indagar a essecircncia dos conceitos
Kant natildeo teria podido perceber a relaccedilatildeo deles com a intuiccedilatildeo nem o que cabia ao
entendimento e o que cabia agrave razatildeo no processo do conhecer Kant teria compreendido a razatildeo
de modo confuso e oferecido definiccedilotildees e explicaccedilotildees insuficientes ainda que tivesse
elaborado muitas como por exemplo ldquofaculdade dos princiacutepios a priorirdquo ldquofaculdade das
inferecircncias mediatasrdquo e ldquofaculdade de unificaccedilatildeo dos conceitos do entendimento em
ideiasrdquo246
Analogamente o entendimento tambeacutem teria sido definido de modo hesitante e
oscilante com sentidos como ldquofaculdade das regrasrdquo ldquofonte dos princiacutepiosrdquo e ldquofaculdade de
julgarrdquo247
No entender de Schopenhauer por natildeo ter investigado a natureza do
conceito Kant natildeo teria distinguido representaccedilotildees abstratas de intuitivas nem percebido que
era necessaacuterio definir rigorosamente a intuiccedilatildeo a razatildeo o entendimento o objeto o sujeito a
representaccedilatildeo a verdade dentre outros termos Uma consequecircncia importante dessa confusatildeo
teria sido o modo como Kant conceituou o objeto da experiecircncia misturando e separando
simultaneamente o conceito abstrato e a incoacutegnita a que se aplicam as categorias Assim
fazendo diz Schopenhauer ele natildeo pocircde esclarecer ldquo[] se seu bdquoobjeto da experiecircncia isto eacute
o conhecimento que se origina da aplicaccedilatildeo das categorias‟ eacute a representaccedilatildeo intuitiva no
tempo e no espaccedilo (minha primeira classe de representaccedilotildees) ou um simples conceito
abstratordquo248
Essa imprecisatildeo teria impossibilitado explicar o conteuacutedo da intuiccedilatildeo empiacuterica
que Kant teria entatildeo tomado como algo dado Daiacute poreacutem teria advindo o erro capital de
embaralhar a impressatildeo nos sentidos e a representaccedilatildeo ou seja a mera sensaccedilatildeo com o
objeto Em virtude disso diz Schopenhauer por um lado a intuiccedilatildeo kantiana natildeo se serve do
entendimento porque eacute recebida passivamente embora o objeto soacute possa ser pensado pelas
categorias Por outro o objeto do pensamento se torna algo individual natildeo universalizado
isto eacute coisas e natildeo conceitos249
Por conseguinte ele afirma
245
KkP p 551 CFK p 98 246
KkP p 552-552 CFK p 99 247
KkP p 553 CFK p 99-100 248
KkP p 558 CFK p 103 (grifos do autor) 249
KkP p 560-561 CFK p 105
- 128 -
Daiacute resulta que esse mundo intuitivo existiria para noacutes mesmo se natildeo
tiveacutessemos nenhum entendimento que ele entra na nossa cabeccedila de um
modo em tudo inexplicaacutevel modo esse que sempre denota com sua estranha
expressatildeo de que a intuiccedilatildeo seria dada sem explicar depois essa expressatildeo
indeterminada e figurada250
Outra consequecircncia daquela confusatildeo teria sido a primazia dada por Kant
aos conceitos que o teria levado ao extremo de afirmar que sem eles natildeo haveria qualquer
conhecimento Nessa perspectiva a intuiccedilatildeo se resume a mera afecccedilatildeo da sensibilidade algo
vazio ao mesmo tempo em que sem ela os conceitos ainda seriam alguma coisa251
Cacciola
esclarece sobre esse ponto que no fim de contas a noccedilatildeo kantiana de objeto em geral
remeteria agrave determinaccedilatildeo da experiecircncia como resultado dos predicados atribuiacutedos a ele pelos
conceitos puros do entendimento252
Guyer considera espantoso esse julgamento de Schopenhauer
entendendo que o filoacutesofo acabaria acusando Kant de duas posturas opostas Por um lado o
filoacutesofo afirmaria que Kant misturou intuiccedilatildeo e conceito e por outro censuraria o fato de ter
colocado os conceitos em ordem de prioridade253
Para Guyer Kant entendeu a diferenciaccedilatildeo
entre intuiccedilotildees e conceitos como uma das suas mais importantes e fundamentais descobertas
das quais teria advindo a base para sua criacutetica da filosofia anterior e para a soluccedilatildeo do
problema do conhecimento sinteacutetico a priori Aleacutem disso Kant natildeo teria deixado de sublinhar
que pensamentos sem conteuacutedo intuitivo satildeo vazios Natildeo obstante diz Guyer Schopenhauer
estaacute mais proacuteximo de Kant do que pensa e a real diferenccedila entre ambos estaria no modo como
cada um concebe a consciecircncia de um objeto Para Kant toda consciecircncia exige uma uniatildeo
sinteacutetica de intuiccedilatildeo e conceito e os papeacuteis que cada um desempenha depende de se
relacionarem nos juiacutezos com propriedades particulares ou comuns Schopenhauer poreacutem
parte do exame detalhado da consciecircncia de um objeto e do processo de conhececirc-lo e entatildeo
toma a distinccedilatildeo de Kant como se ela tivesse feita com seus proacuteprios propoacutesitos ou seja
como um tipo de distinccedilatildeo fenomenologicamente autoevidente254
No entendimento do
filoacutesofo escreve Guyer
[] Kant natildeo reconhece que o estado inicial da consciecircncia que
Schopenhauer identifica com a percepccedilatildeo jaacute eacute conhecimento de objetos
Mas distinguindo entre intuiccedilotildees e conceitos Kant claramente natildeo pretende
250
KkP p 561-562 CFK p 105 (grifos do autor) 251
KkP p 603 CFK p 132 252
CACCIOLA M L Schopenhauer e a questatildeo do dogmatismo Satildeo Paulo EDUSP 1994 p 36 253
GUYER op cit p 113-114 254
Ibidem p 115
- 129 -
estar distinguindo entre estados conscientes sequenciais ao inveacutes disso o
argumento de Kant eacute o de que nossa consciecircncia de objetos jaacute eacute um
conhecimento deles precisamente porque jaacute representa a siacutentese de intuiccedilatildeo
e conceitos ndash algo muito mais proacuteximo daquilo em que Schopenhauer
acredita Porque Schopenhauer acredita que o meacutetodo de Kant eacute
fenomenoloacutegico como o seu quando natildeo eacute ele pensa que haacute uma maior
diferenccedila entre suas visotildees do que realmente haacute255
Schopenhauer conclui que no fundo Kant considerava haver um objeto
sob a intuiccedilatildeo o qual seria mateacuteria para a aplicaccedilatildeo do entendimento um objeto no entanto
irrepresentaacutevel Pela operaccedilatildeo proacutepria do entendimento o conceito seria aplicado agrave intuiccedilatildeo e
esta se tornaria experiecircncia pela intuiccedilatildeo o objeto seria dado pelo entendimento seria
pensado Assim Kant consideraria como funccedilatildeo do entendimento pensar os objetos e natildeo
intuiacute-los e isso explicaria o motivo pelo qual ele afirmava que as coisas soacute poderiam tornar-se
reais atraveacutes do pensamento pela aplicaccedilatildeo das doze categorias256
Ficaria entatildeo manifesto
que ele distinguia a representaccedilatildeo o objeto da representaccedilatildeo e a coisa em si Nas palavras de
Schopenhauer ldquoA primeira eacute assunto da sensibilidade que ao lado da sensaccedilatildeo tambeacutem
compreende as formas puras do tempo e do espaccedilo O segundo eacute coisa do entendimento que
ele acrescenta em pensamento por meio de suas doze categorias A terceira fica aleacutem de toda
cognoscibilidaderdquo257
Na concepccedilatildeo de Schopenhauer poreacutem se o objeto natildeo for a proacutepria
representaccedilatildeo teraacute de ser a coisa em si e a introduccedilatildeo do ldquoobjeto da representaccedilatildeordquo como um
intermediaacuterio eacute uma grande fonte de erros Por conseguinte diz ele se o ldquoobjeto da
representaccedilatildeordquo eacute uma concepccedilatildeo falsa toda a doutrina das categorias tambeacutem o seraacute posto
que sua finalidade eacute justamente pensaacute-lo Tanto o primeiro quanto as segundas seriam inuacuteteis
e prejudiciais pois natildeo serviriam agrave intuiccedilatildeo nem agrave coisa em si mas apenas para transformar o
objeto da representaccedilatildeo em experiecircncia258
No fim de contas tudo isso seria inoacutecuo pois a
intuiccedilatildeo jaacute seria a proacutepria experiecircncia que precisa apenas do espaccedilo do tempo e da
causalidade para se formar
Portanto para Schopenhauer teria sido importante que se explicasse a
gecircnese da intuiccedilatildeo empiacuterica Para seguir no seu caminho simeacutetrico poreacutem Kant teria mantido
o entendimento na funccedilatildeo de pensar ligada agrave loacutegica transcendental e afastado dele a intuiccedilatildeo
Assim no entender do filoacutesofo teria restado para si mesmo a tarefa de provar a aprioridade
causalidade por meio da demonstraccedilatildeo de que ela eacute a condiccedilatildeo da realidade tanto do ponto
255
Ibidem p 116 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 256
KkP p 565 CFK p 108 257
KkP p 566 CFK p 108 258
KkP p 567 CFK p 109
- 130 -
de vista intuiccedilatildeo empiacuterica quanto do conjunto da experiecircncia259
Teria restado para ele
tambeacutem a elaboraccedilatildeo de uma resposta satisfatoacuteria ao problema da coisa em si ao qual ele
teria se dedicado em toda a sua obra260
Schopenhauer considera que as modificaccedilotildees que
Kant realiza na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da razatildeo pura mitigaram seu idealismo no intuito
de disfarccedilar a contradiccedilatildeo subjacente agrave noccedilatildeo de coisa em si Depois de demonstrar que a
causalidade era parte a priori do intelecto e que servia apenas para o conhecimento do mundo
concreto Kant a teria utilizado para sustentar que a intuiccedilatildeo era causada por algo
absolutamente externo ao sujeito
Por todas essas razotildees a exclusatildeo da experiecircncia do domiacutenio metafiacutesico
teria sido feita de forma arbitraacuteria simplesmente pela etimologia da palavra Nesse aspecto
Kant natildeo teria deixado de seguir os filoacutesofos dogmaacuteticos anteriores na medida em que
identificou a metafiacutesica com o conhecimento a priori e natildeo admitiu a experiecircncia interna nem
a externa como fontes dela No entanto ele cometeria com isso uma peticcedilatildeo de princiacutepio
pois diz Schopenhauer ldquo[] haveria de se demonstrar antes que a mateacuteria para a soluccedilatildeo do
enigma do mundo natildeo poderia absolutamente ser encontrada nele mesmo apenas fora em
algo a que portanto somente pela guia do nosso conhecimento a priori se pudesse chegarrdquo261
Uma vez que natildeo estaria suficientemente provado que a fonte uacutenica da metafiacutesica estivesse no
conhecimento a priori natildeo se poderia descartar sem mais o conhecimento a posteriori Como
esclarece Cacciola ldquoSoacute a partir da identificaccedilatildeo entre metafiacutesica e conhecimento a priori eacute
que Kant criticando o alcance desse tipo de conhecimento chega a um resultado negativo De
acordo com Schopenhauer Kant natildeo prova que a metafiacutesica natildeo possa provir da
experiecircnciardquo262
Na verdade segundo a concepccedilatildeo schopenhaueriana a metafiacutesica natildeo tem
outra fonte com que contar para aleacutem da experiecircncia interna e externa e sua tarefa eacute interligaacute-
las corretamente para solucionar o grande problema da filosofia Natildeo se pode deslizar acima
da experiecircncia e a soluccedilatildeo do enigma deve provir do proacuteprio mundo263
259
KkP p 568 CFK p 109 260
KkP p 567 CFK p 109 261
KkP p 546 CFK p 95 262
CACCIOLA M L A criacutetica da Razatildeo no pensamento de Schopenhauer Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Faculdade
de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Departamento de Filosofia Satildeo Paulo
1981 p 107 263
KkP p 547 CFK p 95
- 131 -
24 ndash Idealismo schopenhaueriano e fisiologia do conhecimento
Neste item tratamos da concepccedilatildeo fisioloacutegica de Schopenhauer no
tocante ao conhecimento Interessa-nos nesse ponto a influecircncia da fisiologia dos sentidos
sobre o entendimento isto eacute de que maneira eles fornecem os dados para a representaccedilatildeo Haacute
tambeacutem outra perspectiva em que Schopenhauer aborda a fisiologia a saber na deduccedilatildeo do
ceacuterebro como um oacutergatildeo material onde se situa o intelecto aspecto que seraacute abordado no
proacuteximo capiacutetulo No texto Sobre a visatildeo e as cores o filoacutesofo declara que pretende
complementar a doutrina Goethe que lhe parecer ser uma apresentaccedilatildeo embora completa e
sistemaacutetica de meros fatos acerca das cores De acordo com ele a concepccedilatildeo goethiana natildeo eacute
realmente uma teoria porque natildeo expotildee um ponto ou um princiacutepio de conexatildeo do todo que
pudesse evidenciar a relaccedilatildeo de dependecircncia entre os fenocircmenos expostos e ao mesmo
tempo esclarecer cada um em particular264
Ela funcionaria como uma espeacutecie de descriccedilatildeo
de fatos empiacutericos numa perspectiva fisioloacutegica agrave qual faltaria ainda o enquadramento em
uma perspectiva filosoacutefica Schopenhauer propotildee-se entatildeo realizar aquilo que considera
como a tarefa da filosofia isto eacute transpor em conceitos o que conhecemos concretamente
ldquoNesse sentidordquo ele escreve ldquocompletar a obra de Goethe estabelecer in abstracto aquele
princiacutepio supremo do qual tudo o que eacute dado nela depende e oferecer a teoria das cores no
sentido estrito da palavra eacute isso o que o presente tratado tentaraacute fazer []rdquo265
Conforme Schopenhauer a atividade intelectual que estaacute na base da
formaccedilatildeo das cores eacute explicada com dados fisioloacutegicos Na obra Die Lehre von der
empirischen Anschauung bei Schopenhauer mencionada anteriormente Johann Rieffert
investiga entre outras coisas as relaccedilotildees entre a teoria da intuiccedilatildeo empiacuterica de Schopenhauer
e a de Thomas Reid Rieffert informa que a concepccedilatildeo do filoacutesofo acerca da fisiologia foi
inspirada em diversos pensadores entre eles Thomas Reid Erasmus Darwin e Cabanis
Segundo o autor Schopenhauer natildeo foi influenciado exatamente pelo conteuacutedo das teorias
deles e sim pela direccedilatildeo metodoloacutegica adotada natildeo soacute por Reid mas por um grupo de
264
UumlSF p 200 VC p 23 265
UumlSF p 200 VC p 23
- 132 -
filoacutesofos ingleses e franceses a saber o espiritualismo266
De acordo com Rieffert
Schopenhauer assimilou de Reid especificamente a concepccedilatildeo de que a sensaccedilatildeo remete de
modo imediato aos objetos reais Nas palavras desse autor ldquoNatildeo a interpretaccedilatildeo causal da
sensaccedilatildeo mas seu conhecimento imediato como pertencente a coisas reais foi apontada
tambeacutem na doutrina de Thomas Reid que o proacuteprio Schopenhauer indica como influecircncia
histoacutericardquo267
A concepccedilatildeo fisioloacutegica defendida por Schopenhauer em Sobre a visatildeo e
as cores eacute uma parte da sua teoria do conhecimento mais ampla Essa concepccedilatildeo eacute
generalizada para todos os objetos e propriedades de modo que a teoria do conhecimento em
seu conjunto relaciona-se intrinsecamente com um fundamento fisioloacutegico Com efeito a
fisiologia fornece a base para a compreensatildeo dos dados fornecidos pelos sentidos e do modo
como o intelecto os utiliza para a construccedilatildeo da representaccedilatildeo Como jaacute mencionamos antes
as impressotildees sentidas pelos animais nos seus corpos satildeo o impulso de onde partem e a
mateacuteria sobre a qual se formam as intuiccedilotildees por meio da causalidade a priori Ou como
afirma Cacciola ldquoSatildeo as afecccedilotildees deste corpo que permitem a intuiccedilatildeo do mundo pelo
entendimento e portanto o conhecerrdquo268
Cada sentido tem sua especificidade percebida em um modo proacuteprio de
recepccedilatildeo aos influxos segundo a maneira em que o sistema nervoso eacute afetado pelos seus
dados269
Segundo Schopenhauer a substacircncia dos nervos eacute a mesma no corpo todo de modo
que as singularidades das diferentes sensaccedilotildees dos sentidos satildeo dadas pela receptividade
especial de cada um deles isto eacute dos olhos para a luz do som para os ouvidos e assim por
diante270
Citando Cabanis o filoacutesofo escreve
Que o nervo do labirinto e a coacuteclea nadando na aacutegua do ouvido recebam as
vibraccedilotildees do ar por meio dessa aacutegua enquanto o nervo oacutetico recebe a
influecircncia da luz por meio da refraccedilatildeo desta na umidade e no cristalino essa
eacute a causa das diferenccedilas especiacuteficas de ambas as sensaccedilotildees natildeo o nervo em
si271
266
ERDMANN Benno (Herausgegeber) Abhandlungen zur Philosophie und irhre Geschichte 42 Heft
RIEFFERT J B Die Lehre von der empirische Anschauung bei Schopenhauer Halle Max Niemeyer 1914 p
190 267
Ibidem p 191 (traduccedilatildeo nossa) 268
CACCIOLA M L Schopenhauer e a questatildeo do dogmatismo Satildeo Paulo EDUSP 1994 p 39 269
UumlSF sect1 p 205 VC sect 1 p 31 270
UumlSF sect1 p 206 VC sect1 p 31 271
UumlSF sect1 p 206 VC sect1 p 31
- 133 -
Nessa perspectiva as distintas sensaccedilotildees natildeo se formam nos oacutergatildeos
mesmos mas na conjunccedilatildeo dos nervos no ceacuterebro o que explica a simplicidade das
impressotildees272
Na interpretaccedilatildeo de Philonenko Schopenhauer considerava a vontade de um
lado como expressatildeo do espiritualismo de Kant e de outro o ceacuterebro como expressatildeo do
materialismo de Cabanis O filoacutesofo diz esse autor ldquo[] acreditava realizar uma verdadeira
siacutentese filosoacutefica e histoacuterica (entre a Alemanha e a Franccedila)rdquo273
Com base nos dados sensoacuterios o mundo da representaccedilatildeo seria edificado
pelo intelecto sem o qual as informaccedilotildees dos sentidos natildeo formariam nenhum objeto Uma
paisagem por exemplo seria conhecida apenas como uma tela manchada de muitas cores
que eacute ao que se resume a mateacuteria bruta oferecida pela sensaccedilatildeo na retina274
Segundo
Schopenhauer os sentidos ligam-se ao intelecto por meio do ceacuterebro ou melhor ldquoOs sentidos
satildeo apenas as prolongaccedilotildees do ceacuterebro pelas quais ele recebe a mateacuteria de fora (na forma da
sensaccedilatildeo) para processaacute-la em representaccedilatildeo intuitivardquo275
No fim de contas todos os sentidos
poderiam ser reduzidos agrave susceptibilidade dos corpos animais aos estiacutemulos externos como
meio de alcanccedilar dados para o entendimento Essa susceptibilidade diz o filoacutesofo dividiu-se
em cinco sentidos para que pudesse se adequar aos quatro elementos e ao que ele chama de
estado de imponderabilidade (Inponderabilitaumlt) o tato para o soacutelido (terra) o paladar para o
liacutequido (aacutegua) o olfato para o volaacutetil (gasoso) a audiccedilatildeo para o elaacutestico (ar) e a visatildeo para o
imponderaacutevel (fogo luz)276
ldquoPoisrdquo ele conclui ldquoesse mundo real e intuitivo eacute
manifestamente um fenocircmeno cerebral daiacute a admissatildeo de que ele tambeacutem devesse existir
independente de qualquer ceacuterebro eacute uma contradiccedilatildeordquo277
25 ndash Fundamentos do mundo como representaccedilatildeo
272
WWV II Kap 3 p 41-42 M II cap 3 p 34 273
PHILONENKO A Schopenhauer critique de Kant Paris Les Belles Lettres 2005 p 108 (traduccedilatildeo nossa)
(grifos do autor) 274
UumlSF sect1 p 206 VC sect1 p 32 275
WWV II Kap 3 p 38 M II cap 3 p 31 276
WWV II Kap 3 p 39 M II cap 3 p 32 277
WWV II Kap 1 p 14 M II cap 1 p 8
- 134 -
Diante dos desafios e questotildees que pretende resolver Schopenhauer
assenta o mundo como representaccedilatildeo em uma estrutura composta de dois pilares a saber o
intelecto e a fisiologia dos sentidos Haacute duas exigecircncias principais que a nosso ver sua trama
conceitual procura satisfazer simultaneamente Em primeiro lugar legitimar a posiccedilatildeo do
idealismo transcendental corrigindo ou eliminando os erros apontados na deduccedilatildeo que Kant
realizou da coisa em si sem suprimi-la Diferentemente dos outros poacutes-kantianos
Schopenhauer natildeo deseja desfazer-se dessa noccedilatildeo de modo que sua teoria do conhecimento
natildeo pode fechar as portas a ela como fez a de Kant Em segundo lugar tornou-se necessaacuterio
garantir que a realidade empiacuterica pudesse conviver pacificamente com a idealidade
transcendental do mundo evitando que o sujeito cognoscente perdesse para sempre o caminho
de acesso agraves coisas reais Daiacute a importacircncia que Schopenhauer confere agrave exposiccedilatildeo da origem
da intuiccedilatildeo empiacuterica como meio de conectar o conhecimento a algo externo ou material Eacute
preciso que o sujeito toque em algo que de alguma forma esteja fora de si e que ao mesmo
tempo natildeo seja o objeto em si Segundo pensamos a formulaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo
suficiente e a teoria da construccedilatildeo do mundo empiacuterico com recurso agrave sensaccedilatildeo satildeo as repostas
que Schopenhauer idealiza agravequelas questotildees e suas exigecircncias
Na elaboraccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo o filoacutesofo faz um inventaacuterio do
intelecto humano no qual contabiliza um princiacutepio ordenador uacutenico trecircs faculdades e quatro
classes de objetos todos intrinsecamente vinculados O princiacutepio de razatildeo eacute o modo geral da
atividade do intelecto e a busca do fundamento suficiente de uma consequecircncia dada se
encontra em cada faculdade e em seus objetos A sensibilidade lida com intuiccedilotildees puras e
dados sensoacuterios os quais enquadra no tempo e no espaccedilo e o princiacutepio de razatildeo do ser
determina em todos a sucessatildeo e a posiccedilatildeo O entendimento engendra os objetos empiacutericos e o
conjunto da experiecircncia utilizando as formas do tempo do espaccedilo e da causalidade e
tambeacutem o material fornecido pelos sentidos A causalidade faz do mundo como representaccedilatildeo
um grande emaranhado de cadeias causais sem iniacutecio ou fim as quais conformam o universo
natural como um todo Essa parte da teoria segundo pensamos foi a que exigiu maior
criatividade e inventividade porque era onde estava o desafio mais difiacutecil O mundo
engendrado pelo entendimento tinha de ter garantidas simultaneamente sua idealidade e sua
realidade sem tocar a coisa em si e sem minar a validade objetiva das representaccedilotildees isto eacute
sem que fossem construiacutedas como puras quimeras de um intelecto Por conseguinte sua
- 135 -
origem intelectual teria de ser demonstrada para que se garantisse o idealismo criacutetico e ao
mesmo tempo a conexatildeo com algo real fora do sujeito teria de ser assegurada para que se
evitasse o solipsismo e a reduccedilatildeo do mundo a nada Esse algo fora do sujeito entretanto natildeo
poderia ser a coisa em si mesma A faculdade da razatildeo por fim produz conceitos a partir de
intuiccedilotildees cujas caracteriacutesticas satildeo abstraiacutedas e fixadas em palavras As regras de inferecircncia e
as leis que a ela pertencem entre elas o princiacutepio de razatildeo satildeo o modo de operar dessa
faculdade que exige um fundamento para todo juiacutezo o qual no fim de todas as cadeias
dedutivas teraacute de ser uma intuiccedilatildeo
Natildeo obstante haacute dois casos agrave parte O primeiro deles eacute a faculdade do
juiacutezo responsaacutevel pelo pensar e pelas verdades empiacutericas Segundo Schopenhauer eacute ela que
governa os conceitos mediando entre o intuitivo e o abstrato entre o entendimento e a razatildeo
Natildeo estaacute poreacutem ligada ao princiacutepio de razatildeo suficiente natildeo lida com fundamentos e
consequecircncias mas com reflexotildees e subordinaccedilotildees de conceitos e intuiccedilotildees O segundo caso agrave
parte satildeo duas classes de objetos natildeo listadas entre as quatro principais abordadas em lugares
distintos Uma delas eacute a que o filoacutesofo chama de Phantasma que podemos entender como
representaccedilotildees produzidas pela imaginaccedilatildeo das quais se pode dizer que satildeo empiacutericas porque
satildeo determinadas e tambeacutem que natildeo satildeo empiacutericas porque natildeo se originam com sensaccedilotildees A
outra classe abrange as chamadas intuiccedilotildees normais comparadas agraves Ideias platocircnicas
definidas como representaccedilotildees tiacutepicas da matemaacutetica que satildeo ao mesmo tempo determinadas
e gerais e se aplicam a todos os objetos possiacuteveis Contudo o filoacutesofo natildeo chega a ancorar a
faculdade do juiacutezo nem as classes adicionais de objetos no princiacutepio de razatildeo de modo que
fica a duacutevida sobre como e onde se originam
Segundo pensamos no desenvolvimento de suas respostas Schopenhauer
busca um ponto firme uma primeira verdade com a qual iniciar seu sistema de modo
satisfatoacuterio Na sua concepccedilatildeo como vimos toda teoria se realiza em conceitos mas o apoio
uacuteltimo deve ser uma verdade intuitiva Nesse sentido natildeo eacute uma mera casualidade que ele
inicie sua obra fundamental com a sentenccedila ldquoO mundo eacute minha representaccedilatildeordquo Essa
proposiccedilatildeo eacute o axioma perfeito para que ele deduza seu sistema completo acerca do
conhecimento como ele mesmo afirma aliaacutes no primeiro capiacutetulo de O MundoII que trata
do ponto de vista fundamental do idealismo278
A partir dela vemos o filoacutesofo desdobrar suas
concepccedilotildees de sujeito objeto coisa em si conhecimento idealismo dentre outras O
278
WWV II Kap 1 p 11 M II cap 1 p 5
- 136 -
princiacutepio de razatildeo suficiente fornece o meacutetodo mas a representaccedilatildeo eacute a primeira verdade
autoevidente da qual ele extrai diligentemente todo o restante Para Schopenhauer esse eacute um
diferencial de seu procedimento filosoacutefico que parte da representaccedilatildeo como primeiro fato da
consciecircncia279
Essa seria tambeacutem a caracteriacutestica que distingue sua filosofia do dogmatismo
como mostra Cacciola pois ele natildeo toma como causas do mundo nem o sujeito nem o
objeto280
Schopenhauer considera a verdade daquela sentenccedila como imediata e evidente e de
modo sintomaacutetico afirma que poderia ser expressa numa foacutermula semelhante agrave de Descartes
ldquoCogito ergo estrdquo (penso logo eacutes)281
Para o filoacutesofo a divisatildeo da consciecircncia entre sujeito e objeto eacute
inexpugnaacutevel porque eacute pressuposta em qualquer pensamento ou intuiccedilatildeo possiacutevel Segue-se
do fato indubitaacutevel da representaccedilatildeo sendo ainda mais radical do que as classes de objetos e
as formas do princiacutepio de razatildeo Essa divisatildeo seria a mais geral e universal concebiacutevel diz
ele pois ldquo[] a decomposiccedilatildeo entre sujeito e objeto eacute a forma comum agravequelas classes eacute a
forma sob a qual somente eacute possiacutevel em geral e pensaacutevel qualquer tipo que seja de
representaccedilatildeo abstrata ou intuitiva pura ou empiacutericardquo282
Seria uma verdade a priori e toda e
qualquer experiecircncia possiacutevel teria de ser pensada dentro dos paracircmetros de sujeito e objeto
Natildeo obstante o sujeito do conhecimento natildeo precisa ser humano pode ser qualquer animal
existente jaacute que o mundo intuitivo natildeo exige o intercurso da razatildeo283
Desse modo a
condicionalidade entre sujeito e objeto eacute dada de um lado pela proacutepria significaccedilatildeo desses
termos que soacute fazem sentido um em relaccedilatildeo ao outro e natildeo podem ser arbitrariamente
separados De outro sujeito e objeto satildeo as duas metades de qualquer representaccedilatildeo satildeo
inseparaacuteveis e existem ou desaparecem um pelo outro e um no outro284
Portanto em relaccedilatildeo
ao sujeito cognoscente Schopenhauer afirma que ldquoo mundo que o cerca soacute existe como
representaccedilatildeo isto eacute apenas e tatildeo somente em relaccedilatildeo a outra coisa o representador que eacute ele
mesmordquo285
Desse modo natildeo teria nenhum fundamento imaginar que a supressatildeo de
uma das partes da consciecircncia cognoscente deixasse intacta a outra pois ambas se
implicariam mutuamente no fato da representaccedilatildeo Haveria uma interdependecircncia muacutetua entre
279
WWV I ersters Buch sect7 p 58 M I Livro I sect7 p 69 280
CACCIOLA M L Schopenhauer e a questatildeo do dogmatismo Satildeo Paulo EDUSP 1994 p 33 281
WWV II Kap 4 p 45 M II cap 4 p 39 282
WWV I ersters Buch sect1 p 31 M I Livro I sect1 p 43 283
WWV I ersters Buch sect1 p 31 M I Livro I sect1 p 43 284
WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I sect2 p 46 285
WWV I ersters Buch sect1 p 31 M I Livro I sect1 p 43
- 137 -
sujeito e objeto representador e representaccedilatildeo de um modo tal que a exclusatildeo do sujeito natildeo
significaria a existecircncia de uma objetividade pura mas a inexistecircncia de qualquer mundo Nas
palavras de Schopenhauer [] o todo objetivo enquanto tal eacute dependente de inumeraacuteveis
modos do sujeito cognoscente com suas formas que tem pressupostas consequentemente
desaparece totalmente se se abstrai o sujeitordquo286
Nesse sentido a fundamentaccedilatildeo do
materialismo eacute falha por considerar que o sujeito eacute determinado pela realidade concreta ou
entatildeo que a deturpa com ideias falsas Do mesmo modo supor a exclusatildeo do objeto
representado natildeo conduziria agrave subsistecircncia de um mundo mais real por si existente pois
nesse caso sobraria apenas o sujeito287
O caraacuteter transcendental de uma filosofia significa para Schopenhauer a
compreensatildeo de que haacute aspectos do conhecimento natildeo devidos agrave experiecircncia e que impotildeem
suas regras aos dados empiacutericos Nas suas palavras ldquoTranscendental eacute a filosofia que traz agrave
consciecircncia que as primeiras e essenciais leis desse mundo que se nos apresenta enraiacutezam-se
no nosso ceacuterebro e por isso satildeo conhecidas a priori Chama-se transcendental pois transpotildee
toda a fantasmagoria dada em direccedilatildeo agrave sua origemrdquo288
Por isso o mundo que assim nos eacute
apresentado natildeo pode ser tomado como absoluto somente como condicionado e dependente
do intelecto animal Em funccedilatildeo disso diz ele questotildees sobre os limites do mundo seu iniacutecio e
fim assim como os nossos satildeo transcendentes isto eacute vatildeo aleacutem de toda e qualquer
experiecircncia possiacutevel Na verdade ele escreve ldquoTodas elas repousam portanto no falso
pressuposto de que aquilo que soacute eacute forma do fenocircmeno ou seja o que eacute representaccedilatildeo
mediada pela consciecircncia cerebral animal liga-se agrave coisa em si mesma e portanto fornece a
natureza primeira e fundamental do mundordquo289
Por conseguinte no mundo como representaccedilatildeo o sujeito imprime suas
formas proacuteprias aos objetos intuiacutedos os quais entatildeo se apresentam em diversidade e
pluralidade O sujeito mesmo poreacutem natildeo participa dessas caracteriacutesticas e se configura como
um todo indiviso em cada ser existente que cria para si mesmo o mundo completo da
representaccedilatildeo290
Como Schopenhauer afirma ldquo[] um uacutenico deles com o objeto
complementa o mundo como representaccedilatildeo como os milhotildees existentes mas se aquele uacutenico
286
WWV I ersters Buch sect7 p 61-62 M I Livro I sect7 p 72 287
UumlV sect19 p 47 CR sect19 p 66 288
PP I Fragmente zur Geschichte der Philosophie sect 13 p 106 Fragmentos para a histoacuteria da filosofia
Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas de Maria Luacutecia Cacciola Satildeo Paulo Iluminuras 2003 sect 13 p 73 (grifos do
autor) 289
Ibidem sect 13 p 107 ibidem sect 13 p 73-74 (grifos do autor) 290
WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I Livro I sect2 p 46
- 138 -
desaparecesse entatildeo o mundo como representaccedilatildeo natildeo existiria maisrdquo291
De acordo com isso
tudo o que depende das formas do tempo do espaccedilo e da causalidade o mundo todo como
representaccedilatildeo possui uma existecircncia relativa existe apenas por meio de outro292
Somente
existe no entendimento pelo entendimento e para ele ldquo[] assim natildeo antes mas apenas
depois de seu empregordquo293
Essa relatividade no entanto natildeo se estabelece por uma
dependecircncia causal do objeto no tocante ao sujeito A causalidade como jaacute vimos produz o
conhecimento do mundo e as proacuteprias intuiccedilotildees empiacutericas mas sua legislaccedilatildeo eacute vaacutelida apenas
para as relaccedilotildees entre os corpos animais e os objetos que os afetam ou entre ldquoobjeto imediato
e mediatordquo294
Nenhuma relaccedilatildeo entre sujeito e objeto eacute estabelecida pelo princiacutepio de razatildeo
suficiente de modo que nem o sujeito causa o objeto nem este causa aquele Nas palavras do
filoacutesofo ldquo[] entre ambos natildeo pode haver nenhuma relaccedilatildeo de fundamento a
consequecircnciardquo295
Pode-se apenas dizer que as formas do sujeito satildeo o limite comum entre ele
e objeto como pertencendo a ambos As duas metades do mundo como representaccedilatildeo
limitam-se mutuamente e ele afirma
A comunidade desse limite mostra-se em que as formas essenciais e por
isso gerais de todos os objetos tempo espaccedilo e causalidade tambeacutem
possam ser encontradas e completamente compreendidas a partir do sujeito
sem o conhecimento do objeto isto eacute na linguagem de Kant situam-se a
priori na nossa consciecircncia296
Idealismo transcendental eacute entatildeo a concepccedilatildeo de que o sujeito do
conhecimento possui em si as condiccedilotildees de existecircncia do mundo objetivo Contudo para
Schopenhauer isso natildeo pode significar que a realidade empiacuterica seja inexistente ou
simplesmente aparecircncia Significa apenas que diz ele ldquo[] natildeo eacute incondicional posto que ela
possui como condiccedilatildeo nossa funccedilatildeo cerebral na qual se originam as formas da intuiccedilatildeo isto
eacute tempo espaccedilo e causalidade que portanto essa realidade empiacuterica eacute apenas a realidade de
um fenocircmenordquo297
A partir daiacute o filoacutesofo extrai trecircs princiacutepios que julga constituiacuterem o
espiacuterito do idealismo transcendental Em primeiro lugar que a realidade empiacuterica existe
291
WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I Livro I sect2 p 46 292
WWV I ersters Buch sect3 p 36 M I Livro I sect3 p 48-49 293
WWV I ersters Buch sect6 p 52 M I Livro I sect6 p 63 294
WWV I ersters Buch sect5 p 43 M I Livro I sect5 p 55 295
WWV I ersters Buch sect5 p 44 M I Livro I sect5 p 56 296
WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I Livro I sect2 p 46 297
Ibidem sect 13 p 107 ibidem sect 13 p 74
- 139 -
apenas no presente em segundo que o que eacute verdadeiramente real eacute independente do tempo
e em terceiro que o tempo natildeo se remete agrave coisa em si298
Natildeo obstante como dissemos a idealidade transcendental do mundo que
faz dele um fenocircmeno natildeo pode anular sua veracidade A representaccedilatildeo eacute ideal mas natildeo
pode ser por isso uma miragem ou quimera Ela tem de se apoiar em algo mas natildeo em algo
dado pronto que simplesmente entre no intelecto por algum tipo de osmose Ela natildeo deve
tambeacutem apoiar-se na coisa em si que natildeo pode ser causa de nenhuma impressatildeo nos sentidos
e agrave qual as formas da representaccedilatildeo natildeo podem acessar Torna-se necessaacuterio entatildeo
demonstrar a gecircnese da intuiccedilatildeo sensiacutevel de um modo tal que garanta sua relaccedilatildeo com o
empiacuterico sem que seja um ato de assimilaccedilatildeo pura e simples dele nem uma referecircncia direta
agrave coisa em si Schopenhauer censurou Kant por natildeo ter realizado essa investigaccedilatildeo e dedicou-
se entatildeo agrave tarefa que levou a cabo com a explicaccedilatildeo detalhada do nascimento da intuiccedilatildeo
empiacuterica e do conjunto da experiecircncia como produtos da combinaccedilatildeo entre entendimento e
sensaccedilotildees dos sentidos
A fisiologia se torna o segundo pilar do mundo como representaccedilatildeo ao
lado das formas do sujeito cognoscente pois eacute ela que fornece a origem dos dados sensoriais
como a mateacuteria com a qual o entendimento criaraacute os objetos empiacutericos Daiacute o porquecirc de
Schopenhauer considerar Kant e Cabanis como seus precursores299
De uma forma que lembra
a teoria de Maimon sobre os diferenciais Schopenhauer argumenta que as sensaccedilotildees natildeo
apresentam nenhum objeto a ser conhecido mas apenas impressotildees abafadas no corpo das
quais sem o entendimento nada se concluiria Por conseguinte tambeacutem sua representaccedilatildeo
(Vorstellung) eacute antes uma apresentaccedilatildeo (Darstellung) posto que o objeto empiacuterico natildeo existe
na simples sensaccedilatildeo Ao remeter agrave sensaccedilatildeo sentida nos corpos animais o filoacutesofo
complementa sua argumentaccedilatildeo fundamentando-se em outro conhecimento tatildeo imediato
quanto o fato da representaccedilatildeo isto eacute em um sentimento subjetivo Por isso ele ressalta
inuacutemeras vezes que as sensaccedilotildees permanecem sempre dentro do organismo sob a pele e que
diferem totalmente dos objetos intuiacutedos Numa palavra a intuiccedilatildeo eacute fabricada pelo
entendimento com os dados dos sentidos e ela eacute o proacuteprio objeto
Como resultado na medida em que eacute construiacutedo pelo sujeito
cognoscente o mundo da representaccedilatildeo natildeo possui um ser para aleacutem de ser representado
298
Ibidem sect 13 p 108 ibidem sect 13 p 74-75 299
Ibidem sect 12 p 101 ibidem sect 12 p 69
- 140 -
Como mostramos ser objeto e ser representado eacute o mesmo e isso significa que natildeo haacute um
objeto mais real como a causa da representaccedilatildeo Haacute apenas os efeitos que os corpos causam
entre si e que constituem junto com as formas e a accedilatildeo do entendimento o mundo da
experiecircncia Em funccedilatildeo disso Schopenhauer afirma que o ser dos objetos intuiacutedos eacute
exatamente essa accedilatildeo muacutetua e a produccedilatildeo de efeitos entre si a proacutepria realidade das coisas
se resume a isso300
Nesse sentido diz ele ldquo[] a exigecircncia da existecircncia do objeto fora da
representaccedilatildeo do sujeito e tambeacutem um ser das coisas reais diferente de seu produzir efeito
natildeo tem nenhum sentido e eacute uma contradiccedilatildeo []rdquo301
Portanto o objeto natildeo pode ser pensado
sem o sujeito assim como a proacutepria realidade do mundo externo natildeo pode E
consequentemente o mundo como representaccedilatildeo estaraacute sempre em uma ambiguidade surge
como objeto construiacutedo pelo sujeito com suas formas proacuteprias e com base em sensaccedilotildees
internamente sentidas mas ao mesmo tempo natildeo pode ser declarado irreal ou pura fantasia
porque o intelecto o engendra interpretando efeitos materiais no corpo que lhe corresponde
Dito de outra maneira eacute uma forma do intelecto que cria o ldquoexternordquo com o que se pode
afirmar que o ldquoexternordquo estaacute inserido no ldquointernordquo mas ela o faz com dados sensiacuteveis que
nada representam por si mesmos que natildeo satildeo propriamente objetos de modo que a
objetividade eacute criaccedilatildeo do entendimento
300
WWV I ersters Buch sect5 p 45 M I Livro I sect5 p 57 301
WWV I ersters Buch sect5 p 45 M I Livro I sect5 p 57
- 141 -
Capiacutetulo 3 ndash A constituiccedilatildeo do lado interno do mundo metafiacutesica
31 ndash A Vontade como o em si do indiviacuteduo
Como vimos no capiacutetulo anterior Schopenhauer sustenta que o mundo
como representaccedilatildeo embora ideal possui realidade empiacuterica Essa realidade poreacutem eacute
relativa e condicionada pois natildeo tem apoio em nada verdadeiramente real nada
incondicionado ou metafiacutesico Conforme Schopenhauer a relatividade e o condicionamento
do mundo como representaccedilatildeo natildeo permitem saciar o anseio de saber da filosofia que sempre
se pergunta pelos fundamentos as essecircncias as origens Para ele assim como para Jacobi um
mundo que fosse pura e simplesmente representaccedilatildeo natildeo seria mais do que uma ilusatildeo
tornando-se necessaacuterio encontrar os alicerces que o fixassem a algo verdadeiro Nas palavras
do filoacutesofo ldquoNoacutes queremos conhecer o sentido dessa representaccedilatildeo perguntamos se esse
mundo natildeo eacute nada aleacutem de representaccedilatildeo Nesse caso teria de passar diante de noacutes como um
sonho vazio ou uma formaccedilatildeo fantasmagoacuterica de ar que natildeo merece nossa atenccedilatildeo []rdquo1
Trata-se de mais um aspecto singular do pensamento de Schopenhauer para quem eacute possiacutevel
sem utilizar as leis do fenocircmeno adentrar o iacutentimo do mundo como representaccedilatildeo e conhececirc-
lo No capiacutetulo 18 de O MundoII sobre a cognoscibilidade da coisa em si ele afirma ser
esse o traccedilo mais caracteriacutestico de sua filosofia e tambeacutem o mais importante pelo qual teria
realizado aquilo que Kant entendeu ser impossiacutevel a saber a transiccedilatildeo do fenocircmeno para a
coisa em si2
Na concepccedilatildeo de Schopenhauer o exame detalhado da representaccedilatildeo
intuitiva permite ter um conhecimento de seu conteuacutedo de suas determinaccedilotildees e figuras bem
como esclarecer a significaccedilatildeo deles para que ldquonos falem diretamenterdquo3 E o que esse exame
deveraacute solucionar eacute o antigo problema da relaccedilatildeo entre o real e o ideal isto eacute apontar o
1 WWW I zweites Buch sect17 p 150 M I livro II sect17 p 155
2 WWW II Kap 18 p 221 M II cap 18 p 231
3 WWW I zweites Buch sect17 p 145 M I livro II sect17 p 151
- 142 -
fundamento da representaccedilatildeo que diz o filoacutesofo com exceccedilatildeo do ceticismo e do idealismo
foi considerado por muitas filosofias como totalmente diferente no ser e na essecircncia do
mundo real Embora se coloque entre os membros da escola idealista Schopenhauer concorda
com a distinccedilatildeo radical entre o real e o ideal que se configuraria como um verdadeiro abismo
percebido claramente apenas depois de Descartes4 Natildeo obstante diz o filoacutesofo a
experiecircncia deve ser investigada e delimitada de um modo especiacutefico diferente do cientiacutefico
para que seu nuacutecleo possa ser revelado e natildeo nos mostre apenas um conjunto de hieroacuteglifos
incompreendidos5 A ciecircncia da natureza conforme o filoacutesofo divide-se em dois grandes
ramos a saber a morfologia que descreve as formas permanentes dos objetos e a etiologia
que explica as transformaccedilotildees da mateacuteria segundo a lei de causalidade Nenhum desses ramos
no entanto seria capaz de dar a conhecer o sentido profundo do mundo como representaccedilatildeo
Tampouco a matemaacutetica o seria uma vez que lida com as representaccedilotildees do ponto de vista
das quantidades e soacute se refere a comparaccedilatildeo de grandezas sem fornecer quaisquer
informaccedilotildees sobre o conteuacutedo da intuiccedilatildeo Nesse sentido Gardiner afirma que
[] por muita informaccedilatildeo que as diversas ciecircncias nos proporcionem sobre
as relaccedilotildees que os distintos fenocircmenos da experiecircncia sensorial possuem em
entre si esses fenocircmenos nos parecem falando metaforicamente
ldquoestrangeirosrdquo natildeo se esclareceu ou captou sua autecircntica identidade e
significaccedilatildeo6
O que o estudo cientiacutefico da natureza deixa velado eacute algo que estaacute fora do
seu acircmbito de explicaccedilatildeo isto eacute a essecircncia dos fenocircmenos Segundo Schopenhauer tratam-se
das forccedilas naturais que se exteriorizam de modo regular quando as condiccedilotildees satildeo dadas Nas
palavras dele ldquoA forccedila mesma que se exterioriza a essecircncia interna dos fenocircmenos que
surgem conforme aquelas leis permanece um eterno misteacuterio para ela [a etiologia] totalmente
estranho e desconhecido tanto para os fenocircmenos mais simples quanto para os mais
complexosrdquo7 No caso da mecacircnica por exemplo os conceitos mais baacutesicos natildeo poderiam ser
demonstrados e teriam de ser pressupostos como os de mateacuteria gravidade e
impenetrabilidade Tais conceitos satildeo entatildeo remetidos agrave expressatildeo ldquoforccedilas naturaisrdquo cuja
regularidade de apariccedilatildeo eacute nomeada lei natural mas diz Schopenhauer as ciecircncias da
natureza natildeo resolvem a questatildeo de saber qual eacute essecircncia desses fenocircmenos Ele ilustra esse
aspecto com uma metaacutefora interessante afirmando que o estudo cientiacutefico da natureza se
4 WWW II Kap 18 p 222 M II cap 18 p 232
5 WWW I zweites Buch sect17 p 147 M I livro II sect17 p 153
6 GARDINER op cit p 195 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor)
7 WWW I zweites Buch sect17 p 148 M I livro II sect17 p 154
- 143 -
assemelha agrave explicaccedilatildeo dos sulcos de um corte maacutermore que o perpassam de um lado a outro
mas natildeo mostram o caminho que os levou agrave superfiacutecie8 Essa metaacutefora eacute significativa porque
ilustra bem sua concepccedilatildeo de natureza e de mundo como a exteriorizaccedilatildeo de uma essecircncia que
determina a partir de dentro tudo o que ocorre do lado de fora Sobre esse ponto Gardiner
afirma que as forccedilas naturais ldquoConstituem dito de outro modo um resiacuteduo inexpugnaacutevel em
toda a explicaccedilatildeo cientiacutefica e desse ponto de vista deve-se admitir que a ciecircncia se choca em
todas as partes com algo que eacute incapaz de compreender com seus proacuteprios termos com o
bdquometafiacutesico‟rdquo9
A investigaccedilatildeo schopenhaueriana pretende justamente mostrar aquele
percurso isto eacute o caminho que define internamente as manifestaccedilotildees externas da Vontade A
argumentaccedilatildeo que Schopenhauer formula para deduzir a Vontade como coisa em si
concentra-se no indiviacuteduo humano e em seguida eacute generalizada para todo o restante do
mundo Ele utiliza a autoconsciecircncia como ponto de partida apontando o modo duplo em que
cada um conhece a si mesmo e extraindo daiacute algumas conclusotildees Como sabemos o lado
exterior do mundo eacute objetivo e portanto somente pode ser conhecido por meio do princiacutepio
de razatildeo que eacute o princiacutepio do conhecimento dos objetos As leis do fenocircmeno natildeo podem
conduzir a nada que tenha outra natureza e isso significa que o lado interno do mundo teria
de ser inacessiacutevel conhecimento caso o sujeito se reduzisse ao conhecer Poreacutem diz o
filoacutesofo haacute uma circunstacircncia que torna a situaccedilatildeo em tudo diferente a saber a relaccedilatildeo do
sujeito do conhecer com o mundo que seu intelecto constroacutei eacute intermediada pelo seu proacuteprio
corpo Assim na medida em que o sujeito do conhecer eacute um indiviacuteduo seu corpo poderia ser
conhecido de duas formas distintas a partir de fora e a partir de dentro A partir de fora seria
conhecido como qualquer objeto ou melhor seria construiacutedo pelo sujeito do conhecer com
base nas suas formas a priori e na sensaccedilatildeo a posteriori A partir de dentro por sua vez o
corpo poderia ser conhecido como vontade individual E conforme Schopenhauer ldquoEsta e
somente esta fornece a ele a chave do seu proacuteprio fenocircmeno revela a ele o significado mostra
a ele o interior da engrenagem de seu ser de suas accedilotildees e de seus movimentosrdquo10
O sujeito do conhecimento portanto aleacutem de conhecer seu corpo como
um objeto tem a possibilidade de conhececirc-lo a partir de dentro e de modo imediato Na
verdade segundo Schopenhauer o sujeito eacute idecircntico ao corpo e cada ato de vontade eacute
8 WWW I zweites Buch sect17 p 149 M I livro II sect17 p 154-155
9 GARDINER op cit p 202 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor)
10 WWW I zweites Buch sect18 p 151 M I livro II sect18 p 156-157
- 144 -
imediata e simultaneamente um movimento do corpo11
No texto ldquoAstronomia fiacutesicardquo de
Sobre a Vontade na natureza ele afirma que sua filosofia refuta a tradiccedilatildeo antiga e difundida
de separar como diferentes o movimento por causas e o movimento por vontade12
Nas
palavras dele
O ato de vontade e a accedilatildeo do corpo natildeo satildeo dois estados diferentes
conhecidos objetivamente e ligados pelo elo da causalidade natildeo estatildeo em
relaccedilatildeo de causa e efeito mas eles satildeo um e o mesmo apenas dados de
modo em tudo diferente uma vez muito imediatamente e outra na intuiccedilatildeo
do entendimento13
Por um lado o que se entende por accedilatildeo do corpo seria o ato de vontade
visto pelo lado da intuiccedilatildeo isto eacute tornado objeto por outro o corpo como um todo seria
vontade tornada objeto Desse modo o princiacutepio do movimento seria sempre o mesmo a
vontade como condiccedilatildeo interna e a causa como condiccedilatildeo externa14
Gardiner nota sobre esse
ponto que sem a possibilidade desse conhecimento interno do corpo individual
conheceriacuteamos nossos proacuteprios movimentos apenas como os cientistas conhecem os
fenocircmenos naturais isto eacute ldquonossas accedilotildees seriam somente inteligiacuteveis por referirem-se agraves
regularidades ou leis agraves quais segundo a observaccedilatildeo nos diz conformam-se [os
movimentos]rdquo15
Desse ponto de vista conforme Schopenhauer o corpo eacute chamado
objetidade da vontade (Objektitaumlt des Willens) e as relaccedilotildees entre ele e a vontade podem ser
consideradas em dois sentidos diferentes Tanto se pode pensar a vontade do ponto de vista de
sua exteriorizaccedilatildeo em ato quanto do ponto de vista das influecircncias que ela sofre por meio da
accedilatildeo sobre o corpo No primeiro caso ela se objetiva no segundo um ato sobre o corpo tem
efeito sobre ela Uma accedilatildeo sentida no corpo que esteja de acordo com a vontade seraacute fonte de
prazer enquanto a que esteja em desacordo resultaraacute em dor No texto ldquoSchopenhauer on the
selfrdquo Guumlnter Zoumlller afirma sobre esse ponto que ldquo[] ao enfatizar a centralidade da vontade
no eu Schopenhauer revecirc radicalmente o estatuto do corpo humano substituindo a relaccedilatildeo
tradicional mente-corpo pela identidade vontade-corpordquo16
Para o filoacutesofo entatildeo conhecer o
corpo eacute conhecer a vontade embora assim ela natildeo se revele como unidade nem de modo
11
WWW I zweites Buch sect18 p 151 M I livro II sect18 p 157 12
WN p 409 VN p 135-136 13
WWW I zweites Buch sect18 p 151 M I livro II sect18 p 157 14
WN p 409 VN p 136 15
GARDINER op cit p 208 (traduccedilatildeo nossa) 16
ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer
Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 19 (traduccedilatildeo nossa)
- 145 -
perfeito jaacute que os atos do corpo se datildeo isoladamente e no tempo como quaisquer objetos
Portanto conheceriacuteamos a vontade em resoluccedilotildees e accedilotildees que se datildeo sucessivamente mas
natildeo poderiacuteamos associaacute-la a um substrato ou substacircncia permanente17
Na interpretaccedilatildeo de
Zoumlller tomada nesse sentido a vontade individual tambeacutem eacute uma condiccedilatildeo do conhecimento
Como ele explica
[] nem o sujeito do conhecimento nem o sujeito do querer satildeo dados
como tais O sujeito do conhecimento eacute o que conhece em todo o conhecido
e nunca eacute conhecido em si mesmo exceto no sentido atenuado de que os
estados do sujeito do conhecimento podem ser conhecidos por meio de
reflexatildeo Analogamente o sujeito do querer eacute aquele que sente em todo
sentimento (quer em todo desejo) mas nunca eacute sentido em si mesmo exceto
no sentido atenuado de que os estados do sujeito do querer podem ser
sentidos internamente As funccedilotildees subjetivas cognitivas e conativas
[conative] do eu tecircm o estatuto de condiccedilotildees natildeo-empiacutericas de toda a
experiecircncia tanto interna quanto externa tanto cognitiva como afetiva18
Do nosso ponto de vista a relaccedilatildeo da vontade individual com o sujeito do
conhecer natildeo eacute uniacutevoca A vontade eacute apresentada por Schopenhauer como o corpo dado no
fenocircmeno como acabamos de mostrar e simultaneamente como o objeto uacutenico da quarta
classe de representaccedilotildees Conforme o que vimos no capiacutetulo anterior o sujeito do querer eacute
intuiacutedo pelo sujeito do conhecimento como um objeto especial natildeo espacializado pois eacute dado
somente na forma do tempo Em Da quaacutedrupla raiz o filoacutesofo chamou de milagre agrave
identidade do sujeito do querer com o sujeito do conhecer que poderia ser resumida na
identidade da lei de causalidade com a de motivaccedilatildeo19
Segundo Schopenhauer todo o
segundo livro de O Mundo eacute a justificaccedilatildeo desse milagre isto eacute a explicaccedilatildeo do modo como
a vontade pode ser sujeito na medida em que eacute corpo e objeto na medida em que eacute
conhecida pelo sujeito do conhecer20
Zoumlller chama a atenccedilatildeo para a estrutura una que sustenta
essa relaccedilatildeo especiacutefica de sujeito e objeto ao afirmar que ldquoPara Schopenhauer a
correlatividade estrutural natildeo causal que haacute entre o sujeito do conhecimento e o sujeito do
querer em uacuteltima instacircncia equivale agrave identidade delesrdquo21
Em siacutentese a vontade objetivada
seria o corpo na intuiccedilatildeo e a vontade individual internamente conhecida seria o objeto interno
do sujeito do conhecer22
Nesse sentido a identidade entre sujeito e objeto eacute que garante a
17
WWW II Kap 20 p 289 M II cap 20 p 300 18
ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer
Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 24 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 19
UumlV sect 42 p 171 CR sect42 p 206 20
WWW I zweites Buch sect18 p 153 M I livro II sect18 p 159 21
ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer
Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 26 (traduccedilatildeo nossa) 22
WWW I zweites Buch sect18 p 153 M I livro II sect18 p 159
- 146 -
identidade entre as leis de motivaccedilatildeo e de causalidade Pois escreve o filoacutesofo devemos
compreender que
[] a primeira classe de representaccedilotildees encontra sua explicaccedilatildeo sua
decifraccedilatildeo somente na quarta classe laacute apresentada a qual natildeo deve mais ser
oposta ao sujeito propriamente como objeto e tambeacutem que noacutes temos de
aprender a compreender a correspondecircncia da quarta classe de
representaccedilotildees que cai no domiacutenio da lei de motivaccedilatildeo com a essecircncia
interna da lei de causalidade vaacutelida na primeira classe de representaccedilotildees e
com o que acontece conforme a ela23
Natildeo obstante Schopenhauer ressalta que a identidade da vontade com o
corpo natildeo pode ser demonstrada ou provada pois eacute algo completamente imediato e que natildeo
pode ser deduzido de nada supostamente mais imediato Aquela identidade poderia apenas ser
indicada assinalada e transposta do conhecimento imediato ao discurso conceitual sem que a
exposiccedilatildeo in abstrato pudesse ser respaldada por nenhuma das quatro formas de
fundamentaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo do conhecer isto eacute loacutegica empiacuterica metafiacutesica ou
metalogicamente Conforme o filoacutesofo a verdade a que aqui se refere eacute de um tipo totalmente
distinto a saber a do juiacutezo que afirma a relaccedilatildeo do corpo com algo que difere totalmente dele
que eacute a vontade24
Essa eacute para ele a grande descoberta a verdade filosoacutefica por excelecircncia
que pode ser expressa de vaacuterios modos
[] meu corpo e minha vontade satildeo um soacute ou o que eu chamo corpo na
representaccedilatildeo intuitiva em outro modo totalmente distinto no qual sou
consciente dele de uma maneira a nada comparaacutevel chamo de minha
vontade ou meu corpo eacute objetidade da minha vontade ou abstraindo de
que meu corpo eacute minha representaccedilatildeo ele eacute apenas minha vontade e assim
por diante25
Schopenhauer reconhece que o modo em que cada um conhece sua
proacutepria vontade eacute distinto de tudo o que ateacute agora designou por conhecimento No capiacutetulo
18 de O MundoII ele ressalta essa singularidade e declara esse conhecimento como uma
exceccedilatildeo agrave regra kantiana segundo a qual conceitos natildeo extraiacutedos de intuiccedilotildees satildeo vazios Nas
palavras dele
Eu aceito isso com relaccedilatildeo a tudo menos ao conhecimento que cada um tem
de sua proacutepria vontade ele natildeo eacute uma intuiccedilatildeo (pois toda intuiccedilatildeo eacute
23
WWW I zweites Buch sect18 p 153 M I livro II sect18 p 159 24
WWW I zweites Buch sect18 p 154 M I livro II sect18 p 160 25
WWW I zweites Buch sect18 p 154-155 M I livro II sect18 p 160 (grifos do autor)
- 147 -
espacial) nem eacute vazio antes eacute mais real do que qualquer outro Tambeacutem
natildeo eacute a priori como o meramente formal mas totalmente a posteriori []26
De certa forma o conhecimento que temos de nossa vontade individual eacute
o autoconhecimento da coisa em si isto eacute o modo pelo qual ela se torna consciente de si
mesma27
Trata-se entatildeo de um saber direto impossiacutevel de tornar-se objetivo ao qual
Schopenhauer se refere como uma ldquoapreensatildeo totalmente imediata de seus movimentos
sucessivosrdquo28
Aleacutem disso somente esse conhecimento nos seria dado desse modo e diz o
filoacutesofo ele eacute ldquo[] o uacutenico datum apto a tornar-se a chave para todo o resto ou como eu jaacute
disse a uacutenica porta estreita para a verdaderdquo29
Ao que nos parece nesse ponto surge outra questatildeo relacionada agrave
ambiguidade do conhecimento que cada um tem da proacutepria vontade Schopenhauer afirma que
se trata do melhor e mais imediato conhecimento que temos o que serve de meio para se
conhecer quaisquer outras coisas mesmo os fenocircmenos mais distantes de noacutes No entanto ele
ressalta que esse conhecimento natildeo eacute completo nem perfeito por ser mediado por um
intelecto corporificado em um ceacuterebro30
Assim ao que tudo indica natildeo se poderia dizer que
esse conhecimento fosse realmente imediato jaacute que haveria um oacutergatildeo fiacutesico como uma
espeacutecie de filtro diante da vontade individual De fato na condiccedilatildeo de representaccedilatildeo o
conhecimento que se tem dela divide-se em sujeito e objeto conhecer e querer
respectivamente Em funccedilatildeo disso conforme o filoacutesofo a vontade nunca se torna diaacutefana eacute
conhecida somente de modo ldquo[] opaco e portanto permanece um enigma para si mesmardquo31
De outro ponto de vista uma vez que a vontade individual se daacute somente na forma do tempo
sem as do espaccedilo e da causalidade Schopenhauer afirma que ldquo[] nesse conhecimento
interno a coisa em si retirou grande parte de seu veacuteu mas ainda natildeo aparece totalmente
nuardquo32
Somente por meio de atos isolados e no decurso do tempo eacute que cada um poderaacute
conhecer sua vontade individual isto eacute natildeo no seu conjunto ou em si e para si Por
conseguinte natildeo se trataria de um conhecimento perfeito mas seria o melhor de que
dispomos pois nele a coisa em si apareceria o mais proacutexima possiacutevel do sujeito cognoscente
ldquoDessa maneirardquo escreve o filoacutesofo
26
WWW II Kap 18 p 227 M II cap 18 p 236-237 (grifos do autor) 27
WWW II Kap 18 p 227 M II cap 18 p 236 28
WWW II Kap 20 p 289 M II cap 20 p 300 29
WWW II Kap 18 p 227 M II cap 18 p 237 30
WWW II Kap 18 p 228 M II cap 18 p 237 31
WWW II Kap 18 p 228 M II cap 18 p 237-238 32
WWW II Kap 18 p 228 M II cap 18 p 238
- 148 -
a doutrina de Kant acerca da incognoscibilidade da coisa em si eacute modificada
esta soacute natildeo eacute cognosciacutevel absolutamente e em seu fundamento poreacutem o seu
fenocircmeno que eacute de longe o mais imediato de todos que se diferencia de
todos os outros toto genere por essa imediaticidade representa a coisa em si
para noacutes []33
Gardiner apresenta interessantes consideraccedilotildees sobre esse ponto Para
ele o pensamento sobre o conhecimento da vontade proacutepria eacute exposto por Schopenhauer de
forma obscura e aleacutem disso conduz a um dilema34
Tomando como correta a distinccedilatildeo entre a
consciecircncia natildeo perceptual que temos de noacutes mesmos como vontade e o conhecimento que
temos das nossas proacuteprias accedilotildees duas consequecircncias se seguiriam Por um lado diz Gardiner
a afirmaccedilatildeo de uma consciecircncia direta da vontade na intuiccedilatildeo interna significaria que a coisa
em si estaacute ao alcance da nossa experiecircncia Ao mesmo tempo essa consciecircncia deveria ser
representaccedilatildeo sem condiccedilotildees de dar acesso agrave coisa em si Por outro lado se a vontade eacute
nuacutemeno natildeo haveria como assegurar que possamos ter experiecircncia dela35
Natildeo obstante de acordo com Schopenhauer embora os atos do corpo se
deem no tempo e fragmentariamente eles expressam um caraacuteter individual uno Ainda que
em atos isolados o corpo manifestaria a vontade integralmente do mesmo modo que o caraacuteter
empiacuterico dado no fenocircmeno manifestaria o caraacuteter inteligiacutevel do indiviacuteduo no seu conjunto
Para o filoacutesofo o corpo humano assim como o do animal satildeo adequados agrave vontade de cada
um isto eacute todos os seus oacutergatildeos e membros correspondem os principais desejos de suas
respectivas vontades A feiccedilatildeo as formas a conformaccedilatildeo dos membros e oacutergatildeos em suma o
corpo no todo e em cada uma de suas partes seria objetidade de uma vontade individual Nas
palavras dele
Cada forma animal eacute um anseio da Vontade de vida invocado pelas
circunstacircncias por exemplo tomada pelo desejo de viver nas aacutervores a
pendurar-se nos seus galhos a alimentar-se de suas folhas sem luta com
outros animais e sem nunca pisar no solo esse anseio apresenta-se pelo
tempo infinito na forma (Ideia platocircnica) do bicho-preguiccedila Quase natildeo
pode andar pois foi projetado apenas para escalar indefeso no chatildeo eacute aacutegil
nas aacutervores e se assemelha a um ramo coberto de musgo para que nenhum
predador o perceba36
Portanto o corpo como um todo eacute fenocircmeno da vontade tornada visiacutevel
como objeto na intuiccedilatildeo Essa tese se confirmaria de um lado porque qualquer accedilatildeo sobre o
33
WWW II Kap 18 p 229 M II cap 18 p 238 (grifos do autor) 34
GARDINER op cit p 257 et seq 35
GARDINER op cit p 258 36
WN p 357 VN p 79-80
- 149 -
corpo eacute simultaneamente accedilatildeo sobre a vontade sentida como prazer ou dor e de outro porque
todo afeto ou paixatildeo violenta abala o corpo e suas funccedilotildees vitais Zoumlller observa sobre esse
ponto que ldquobdquoVontade‟ eacute aqui usada como um termo abrangente para o lado afetivo e volicional
completo do eu juntando efetivamente o que Kant distinguiu como a faculdade do desejo e o
sentimento de prazer e desprazerrdquo37
Tanto o corpo como uma unidade quanto os processos
que levam ao seu crescimento e desenvolvimento que produzem seus movimentos e atos
isolados cada accedilatildeo e suas condiccedilotildees tudo no indiviacuteduo eacute fenocircmeno da vontade Em suma
diz o filoacutesofo ldquo[] noacutes natildeo somos apenas sujeito cognoscente mas de outro lado tambeacutem
pertencemos aos seres cognosciacuteveis somos a proacutepria coisa em si []rdquo38
32 ndash A Vontade como o em si do mundo
Conforme Schopenhauer cada indiviacuteduo conhece seu proacuteprio corpo
duplamente e natildeo apenas do modo unilateral pelo qual conhece os demais objetos Aleacutem de
ser conhecido como fenocircmeno isto eacute como um objeto entre outros o corpo individual pode
ser conhecido tambeacutem como coisa em si Para o filoacutesofo o corpo pode ser conhecido como
coisa em si porque aparece agrave consciecircncia como vontade dando a conhecer internamente seu
atuar seu movimento por motivos e o que sofre em funccedilatildeo de accedilotildees externas Em todos esses
casos ele escreve o corpo ensina ldquo[] sobre o que eacute natildeo como representaccedilatildeo mas fora disso
como em si informaccedilotildees essas que natildeo temos de modo imediato sobre o ser o atuar e o sofrer
de nenhum outro objeto realrdquo39
Essa especificidade no modo de o indiviacuteduo conhecer o corpo
proacuteprio que eacute diferente do modo como conhece todos os outros eacute um ponto muito delicado
da argumentaccedilatildeo porque aqui Schopenhauer tem de evitar um perigo que certamente estaacute agrave
espreita De fato eacute faacutecil perceber que seu trajeto o direcionaria para o egoiacutesmo teoacuterico ou no
37
ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer
Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 19 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 38
WWW II Kap 18 p 226 M II cap 18 p 236 (grifos do autor) 39
WWW I zweites Buch sect19 p 155 M I livro II sect19 p 161 (grifos do autor)
- 150 -
miacutenimo dificultaria a fundamentaccedilatildeo da existecircncia do mundo a partir de um indiviacuteduo assim
tatildeo autocentrado
Ele apresenta entatildeo uma escolha como inexpugnaacutevel o sujeito deve
proclamar sua identidade ou sua distinccedilatildeo com relaccedilatildeo aos restantes objetos do mundo No
primeiro caso o indiviacuteduo admitiria que sua representaccedilatildeo de si mesmo se diferencia de todas
as outras somente pelo modo duplo em que ele conhece seu proacuteprio corpo sendo igual a elas
em essecircncia no segundo sustentaria que seu corpo eacute distinto de todos os demais de modo
que apenas e tatildeo somente ele se constituiria como representaccedilatildeo e vontade ao mesmo tempo
No primeiro caso a diferenccedila eacute de perspectiva ou seja somente o modo pelo qual o sujeito se
conhece natildeo poderia ser estendido aos outros objetos enquanto sua essecircncia sim No
segundo afirma-se uma diferenccedila positiva e o indiviacuteduo eacute considerado distinto dos demais
objetos de um ponto de vista real e concreto Daqui poreacutem o indiviacuteduo poderia cair
facilmente para o egoiacutesmo teoacuterico isto eacute para a conclusatildeo de que somente ele proacuteprio eacute real e
todos os outros satildeo apenas representaccedilotildees ilusoacuterias Nesse sentido no capiacutetulo 18 de O
MundoII Schopenhauer escreve
Mas o objeto intuiacutedo tem de ser algo em si mesmo e natildeo apenas algo para
outro pois nesse caso seria absolutamente representaccedilatildeo e teriacuteamos um
idealismo absoluto que ao fim seria egoiacutesmo teoacuterico pelo qual toda a
realidade some e o mundo torna-se a mero fantasma subjetivo40
Eacute clara para ele a importacircncia dessa passagem de sua filosofia
relacionada com a problemaacutetica da realidade do mundo exterior No nosso entendimento a
fundamentaccedilatildeo idealista da realidade empiacuterica acabou por acentuar sua fragilidade pois a
origem subjetiva dela teve de ser desenvolvida e ressaltada Por isso o filoacutesofo teve de
atribuir a todos os outros corpos tanto o ser representaccedilatildeo quanto o ser vontade para que
pudesse garantir a realidade externa da perspectiva metafiacutesica Nas palavras dele ldquoSe os
objetos conhecidos pelo indiviacuteduo apenas como representaccedilotildees satildeo assim como seu proacuteprio
corpo fenocircmenos de uma vontade como jaacute dito no livro anterior este eacute o sentido verdadeiro
da questatildeo sobre a realidade do mundo exterior negaacute-lo eacute o sentido do egoiacutesmo teoacuterico
[]rdquo41
Daiacute a necessidade de se admitir que a diferenccedila natildeo esteja na coisa mas na nossa
relaccedilatildeo com ela42
Segundo Schopenhauer apesar de natildeo se poder demonstrar cabalmente a
falsidade do egoiacutesmo teoacuterico isso seria desnecessaacuterio pois ningueacutem teria uma convicccedilatildeo
40
WWW II Kap 18 p 224 M II cap 18 p 233 (grifos do autor) 41
WWW I zweites Buch sect19 p 156 M I livro II sect19 p 162 (grifos do autor) 42
WN p 349 VN p 70-71
- 151 -
seacuteria dele Embora seja um argumento ceacutetico recorrente sua defesa seria meramente
performaacutetica ou entatildeo fruto de loucura E assim ele daacute por encerrada a necessidade de
desdobrar a argumentaccedilatildeo descrevendo a situaccedilatildeo metaforicamente
[] noacutes que buscamos pela filosofia alargar os limites do nosso
conhecimento veremos o argumento ceacutetico do egoiacutesmo teoacuterico como uma
pequena fortaleza de fronteira que de fato eacute intransponiacutevel mas de onde suas
tropas nunca podem sair podendo-se entatildeo passar e dar as costas sem
perigordquo43
Com fundamento nessas razotildees o filoacutesofo propotildee que o duplo
conhecimento que o sujeito possui da essecircncia e da accedilatildeo do proacuteprio corpo seja estendido ao
conjunto da natureza como padratildeo para a compreensatildeo de todos os fenocircmenos Trata-se do
conhecido argumento da analogia que estabelece uma semelhanccedila necessaacuteria entre o corpo
individual e os restantes objetos Esse eacute um ponto crucial da filosofia schopenhaueriana o que
torna digno de nota o tom hipoteacutetico empregado em toda a exposiccedilatildeo O filoacutesofo defende que
o indiviacuteduo deve reconhecer como anaacutelogos a si mesmo todos os outros objetos isto eacute
reconhecer que satildeo por um lado vontade e por outro represenaccedilatildeo Natildeo haveria alternativa
possiacutevel pois natildeo conheceriacuteamos nada aleacutem de coisa em si e representaccedilatildeo de modo que se
natildeo se atribuiacutesse vontade aos objetos externos eles estariam desprovidos de realidade44
Na
interpretaccedilatildeo de Zoumlller ldquoO mundo eacute aqui entendido com o modelo do eu humano o papel do
intelecto na iluminaccedilatildeo da vontade humana eacute comparado ao papel das formas de vida
inteligentes e racionais no fornecimento do autoconhecimento agrave vontade coacutesmica que em
outra perspectiva eacute cegardquo45
Sem a adoccedilatildeo desse ponto de vista portanto o mundo objetivo como um
todo estaria reduzido a mera representaccedilatildeo isto eacute a aparecircncia sem vinculaccedilatildeo a nada mais
real No entanto ao que nos parece o argumento da analogia eacute o apelo a uma concessatildeo e natildeo
a consideraccedilatildeo de uma evidecircncia ou prova qualquer Em todo caso como afirma Janaway no
texto ldquoWill and Naturerdquo esse procedimento eacute coerente com o ponto de partida de
Schopenhauer uma vez que o filoacutesofo deliberadamente partiu da autoconsciecircncia como
aquilo que nos eacute imediatamente dado e que deve explicar tudo o que eacute mediato Um monismo
seria entatildeo o fundamento da analogia e conforme desse autor ldquoSua posiccedilatildeo moniacutestica de que
minha natureza fundamental natildeo pode ser diferente daquela do todo da realidade natildeo eacute
43
WWW I zweites Buch sect19 p 157 M I livro II sect19 p 162 44
WWW I zweites Buch sect19 p 157-158 M I livro II sect19 p 163 45
ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer
Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 19 (traduccedilatildeo nossa)
- 152 -
obviamente despreziacutevel embora possa bem parecer um pensamento extenso demais (ou vago
demais) para se manusear confortavelmenterdquo46
A despeito disso a comparaccedilatildeo que Schopenhauer realiza entre o corpo
do indiviacuteduo como representaccedilatildeo e vontade e os outros objetos intuiacutedos nos parece bem
delineada e justificada Na lei de causalidade haacute sempre trecircs termos cuja interaccedilatildeo eacute
responsaacutevel pelas cadeias causais que compotildeem o mundo empiacuterico a saber leis naturais
causa (ou estiacutemulo) e efeito Na lei de motivaccedilatildeo observamos a mesma estrutura as accedilotildees
exteriorizam-se como efeitos dados na intuiccedilatildeo surgidos a partir de motivos e de uma vontade
individual ou caraacuteter inteligiacutevel De modo semelhante Janaway explica que
Haacute trecircs tipos baacutesicos de relaccedilatildeo causal causa pura e simples estiacutemulo e
motivo Enquanto outros processos na natureza satildeo exemplos de causa e
efeito elementares ou da relaccedilatildeo de estiacutemulo e reposta o querer humano (ou
um ato de vontade) ocorre quando os movimentos do corpo satildeo causados por
motivos sendo estes os estados mentais nos quais um mundo objetivo eacute
apresentado agrave consciecircncia entre eles julgamentos conceituais que podem ter
advindo por raciociacutenio47
Por conseguinte assim como as causas e os efeitos satildeo determinados no
tempo e no espaccedilo os motivos tambeacutem determinam o que se quer num certo tempo e num
certo espaccedilo Poreacutem a vontade individual em si natildeo eacute regida pela lei de motivaccedilatildeo da mesma
forma que as forccedilas naturais permanecem fora do domiacutenio da causalidade
Com essa argumentaccedilatildeo Schopenhauer estende ao restante da natureza a
vontade que cada um conhece imediatamente em si mesmo colocando-a como fundamento
tanto o mundo orgacircnico como o inorgacircnico No caso do mundo orgacircnico como afirma
Janaway ldquoA natureza interna do ser humano eacute a inclinaccedilatildeo no sentido da manutenccedilatildeo e
propagaccedilatildeo da vida e essa mesma natureza interna eacute comum a todos os habitantes do mundo
orgacircnico Um tigre um girassol ou um organismo unicelular tecircm a mesma natureza interna ou
essecircnciardquo48
Por meio de vaacuterios exemplos Schopenhauer sustenta a desvinculaccedilatildeo da vontade
em relaccedilatildeo ao conhecimento e mostra como a conduta de diversos animais eacute guiada por
instinto e habilidade construtiva sem nenhum saber anterior Nas palavras dele ldquoNessas
accedilotildees desses animais eacute evidente como em suas restantes accedilotildees que a vontade eacute ativa mas ela
46
JANAWAY C Will and nature In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer
Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 146 (traduccedilatildeo nossa) 47
Ibidem p 143 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 48
Ibidem p 144 (traduccedilatildeo nossa)
- 153 -
estaacute aiacute em uma atividade cega acompanhada certamente de conhecimento mas natildeo guiada
por elerdquo49
Evidenciar que a vontade age sem conhecimento eacute imprescindiacutevel para
que se possa estendecirc-la ao conjunto da natureza De acordo com Schopenhauer uma casa
construiacuteda por um ser humano e a concha de um caracol por exemplo satildeo produtos da
vontade que diferem somente porque no primeiro caso ela age por meio de motivos
enquanto no segundo age cegamente por impulso Do mesmo modo diversas funccedilotildees do
corpo humano como a digestatildeo e a circulaccedilatildeo sanguiacutenea natildeo seriam dirigidas por
conhecimento algum mas por uma vontade que agiria nele cegamente50
No capiacutetulo 23 de O
MundoII Schopenhauer afirma sobre esse ponto
Que a vontade que encontramos em nosso interior natildeo seja como presumiu a
filosofia ateacute agora derivada do conhecimento ou uma mera modificaccedilatildeo
deste isto eacute algo derivado deduzido e como o proacuteprio conhecimento
dependente do ceacuterebro mas que ela seja o prius dele o nuacutecleo do nosso ser e
aquela forccedila originaacuteria que cria e manteacutem o corpo animal enquanto efetua
suas funccedilotildees inconscientes tanto quanto as conscientes esse eacute o primeiro
passo no conhecimento fundamental da minha metafiacutesica51
O mesmo poderia ser dito em relaccedilatildeo agraves plantas e aos objetos
inanimados isto eacute todos seriam expressotildees e manifestaccedilotildees da mesma coisa em si Embora
os objetos inorgacircnicos se mostrem muito diferentes de animais e plantas as leis universais e
imutaacuteveis que regem seus corpos e seus movimentos natildeo deixariam de ser constituiacutedas pela
uacutenica e mesma coisa em si No entender do filoacutesofo natildeo seria preciso muito esforccedilo para ldquo[]
reconhecer de novo mesmo a tatildeo grande distacircncia nosso proacuteprio ser aquilo mesmo que em
noacutes persegue seus objetivos com a luz do conhecimento mas que aqui nos mais fracos dos
seus fenocircmenos se esforccedila cega abafada unilateral e invariavelmente []rdquo52
Em suma a
distinccedilatildeo e a separaccedilatildeo da Vontade em relaccedilatildeo ao conhecimento satildeo entendidas por
Schopenhauer como uma grande contribuiccedilatildeo sua agrave Histoacuteria da Filosofia que sempre uniu
ambos no conceito de alma Para ele trata-se de um feito tatildeo importante como foi para a
Quiacutemica a decomposiccedilatildeo da aacutegua53
49
WWW I zweites Buch sect23 p 169 M I livro II sect23 p 174 50
WWW I zweites Buch sect23 p 169 M I livro II sect23 p 174 51
WWW II Kap 23 p 341 M II cap 23 p 353 52
WWW I zweites Buch sect23 p 173 M I livro II sect23 p 178 53
WN p 339 VN p 61
- 154 -
Embora a coisa em si mesma natildeo seja um objeto nem possa ser pensada
objetivamente seria necessaacuterio pensaacute-la de algum modo o que justificaria a busca de um
meio de aproximar-se dela Para isso Schopenhauer considera que se deve adotar o nome e o
conceito do objeto que mais evidencia sua essecircncia o qual nas palavras dele ldquo[] natildeo pode
ser outro dentre todos senatildeo o seu fenocircmeno mais perfeito isto eacute o mais claro o mais
desenvolvido iluminado pelo conhecimento imediato e esse eacute precisamente a vontade
humanardquo54
Ele utiliza calculadamente o procedimento chamado denominatio a potiori
cunhado na Idade Meacutedia pelo qual se denomina alguma coisa pela sua caracteriacutestica mais
elevada Com isso ele entende que se pode compreender a identidade existente entre a
Vontade e todas as forccedilas naturais bem como a comunidade de todos os fenocircmenos
aparentemente tatildeo heterogecircneos do mundo como representaccedilatildeo ldquoPortantordquo ele escreve ldquoEu
nomeio o gecircnero pela espeacutecie mais excelente cujo caraacuteter mais proacuteximo e imediato a noacutes
conduz ao conhecimento mediato de todas as outras coisasrdquo55
Como visto anteriormente o
que o ser humano tem de especiacutefico em relaccedilatildeo a todos os outros animais eacute a faculdade da
razatildeo que deveraacute entatildeo ser o fenocircmeno mais claro e elevado da Vontade
Schopenhauer enfatiza que a escolha do nome ldquoVontaderdquo natildeo eacute uma
denominaccedilatildeo arbitraacuteria mas sim fundamental para designar a coisa em si pois o que o termo
indica eacute o que conhecemos melhor do que qualquer outra coisa Uma vez que a conhecemos
imediata e inteiramente diz ele ldquo[] eacute o mais real dos conhecimentos reais que eacute aqui
trazido agrave linguagemrdquo56
Para ele caso a conhececircssemos por inferecircncia ou deduccedilatildeo qualquer
nome serviria pois natildeo haveria nada a que devecircssemos ligaacute-la de modo necessaacuterio No
entanto o conceito de Vontade natildeo designaria nada proveniente do fenocircmeno mas o nuacutecleo
interior a consciecircncia imediata em que cada um conheceria sua proacutepria essecircncia diretamente
Essa consciecircncia seria completamente diferente de qualquer outro conhecimento pois nela as
duas metades da representaccedilatildeo sujeito e objeto seriam coincidentes57
Schopenhauer afirma
entatildeo que o conceito de Vontade anaacutelogo ao de vontade individual deve ser alccedilado ao posto
mais elevado e subordinar o conceito de forccedila sob o qual ateacute entatildeo havia sido situado O
conceito de forccedila seria extraiacutedo da experiecircncia e denotaria o caraacuteter de causalidade da causa
com o que seria um conhecimento na verdade mediato Conforme sua explicaccedilatildeo ldquoSe ao
contraacuterio subsumimos o conceito de vontade no de forccedila como feito ateacute agora abdicamos do
54
WWW I zweites Buch sect22 p 164 M I livro II sect22 p 169 (grifos do autor) 55
WWW I zweites Buch sect22 p 164 M I livro II sect22 p 169-170 56
WWW II Kap 23 p 342 M II cap 23 p 354 57
WWW I zweites Buch sect22 p 165-166 M I livro II sect22 p 170-171
- 155 -
nosso uacutenico conhecimento imediato da essecircncia do mundo deixando-o se perder num
conceito abstraiacutedo do fenocircmeno com o qual portanto nunca podemos ir aleacutem desterdquo58
No capiacutetulo 28 de O MundoII Schopenhauer apresenta alguns aspectos
que caracterizariam a Vontade Nas palavras dele ldquoTudo urge e se impele agrave existecircncia onde
possiacutevel agrave orgacircnica isto eacute agrave vida assim ao maior crescimento possiacutevel dela na natureza
animal se torna evidente que a Vontade de vida eacute o tom fundamental de sua essecircncia sua
uacutenica caracteriacutestica imutaacutevel e incondicionadardquo59
Considerada objetivamente a Vontade
mostraria como sua uacutenica intenccedilatildeo a conservaccedilatildeo de todas as espeacutecies o que se poderia notar
segundo o filoacutesofo na prodigalidade com a qual a natureza despende e se desfaz de multidotildees
de indiviacuteduos de quaisquer delas O indiviacuteduo diz ele tem valor relativo como mero meio de
conservaccedilatildeo da espeacutecie que por seu turno eacute eterna como se a natureza se preocupasse
apenas em natildeo perder nenhuma de suas Ideias60
Haacute ainda outras caracteriacutesticas que Schopenhauer confere agrave Vontade
deduzidas da sua contraposiccedilatildeo agrave representaccedilatildeo Pela negaccedilatildeo do que o fenocircmeno eacute ele infere
os atributos da Vontade e defende uma completa incongruecircncia entre ambos Como ele
afirma ldquoO lado real tem de ser algo toto genere diferente do mundo como representaccedilatildeo
nomeadamente o que as coisas satildeo em si mesmas e essa total distinccedilatildeo entre o ideal e o real eacute
o que Kant demonstrou de modo mais fundamentalrdquo61
Nesse sentido o principal ponto de
distanciamento eacute a liberaccedilatildeo da Vontade em relaccedilatildeo agrave estrutura sujeito-objeto e
consequentemente ao princiacutepio de razatildeo62
Tempo e espaccedilo na media em que se ligam ao
princiacutepio tambeacutem natildeo lhe concernem Daiacute o filoacutesofo conclui que natildeo haacute multiplicidade na
coisa em si tampouco relaccedilotildees temporais ou espaciais isto eacute ela eacute una e alheia ao tempo e ao
espaccedilo ldquoPoisrdquo ele escreve ldquotempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais o que eacute um e o mesmo
segundo a essecircncia e o conceito aparece como diferente como multiplicidade simultacircnea ou
sucessiva satildeo portanto o principium individuationis []rdquo63
Ademais por estar apartada do
princiacutepio de razatildeo a Vontade seria tambeacutem absolutamente sem fundamento tendo sido por
isso considerada sempre como livre Como ele explica ldquo[] posto que a Vontade eacute conhecida
58
WWW I zweites Buch sect22 p 166 M I livro II sect22 p 171 (grifos do autor) 59
WWW II Kap 28 p 410 M II cap 28 p423 (grifos do autor) 60
WWW II Kap 28 p 412 M II cap 28 p424 61
WWW II Kap 18 p 224 M II cap 18 p 234 (grifos do autor) 62
WWW I zweites Buch sect23 p 166 M I livro II sect23 p 171 63
WWW I zweites Buch sect23 p 166-167 M I livro II sect23 p 171
- 156 -
imediatamente e em si na autoconsciecircncia entatildeo nessa consciecircncia situa-se tambeacutem a da
liberdaderdquo64
Como aludimos atraacutes a Vontade eacute o alicerce da representaccedilatildeo o ser
verdadeiramente existente que impede que esta seja mera ilusatildeo ou falsa aparecircncia A
representaccedilatildeo precisa ser expressatildeo de algo que natildeo eacute apenas condicionado e relativo a um
sujeito isto eacute tem de exprimir um ser que esteja para aleacutem de tempo espaccedilo e causalidade
que diz Schopenhauer estatildeo ldquo[] atrelados ao ser representaccedilatildeo enquanto tal natildeo agravequilo que
ser torna representaccedilatildeordquo65
Por conseguinte essas formas natildeo interfeririam nas propriedades
do que eacute representado isto eacute mostrariam apenas o ldquocomordquo natildeo o ldquoquecircrdquo do fenocircmeno sua
forma natildeo seu conteuacutedo66
De modo semelhante tudo aquilo que soacute possa existir por meio
dessas formas como a multiplicidade a mudanccedila a duraccedilatildeo e a representaccedilatildeo da mateacuteria natildeo
se vincularatildeo ao ser da Vontade Assim diz o filoacutesofo ldquo[] tudo isso em conjunto natildeo eacute
essencialmente proacuteprio agravequilo que laacute aparece agravequilo que entrou na forma da representaccedilatildeo
mas se prende unicamente a essa forma mesmardquo67
Schopenhauer aponta uma dicotomia fundamental entre o subjetivo e o
objetivo que se espelharia tambeacutem na relaccedilatildeo entre a Vontade e as formas do conhecimento
Ele considera que conhecer eacute exatamente representar e por isso nunca seraacute idecircntico ao ser em
si da coisa representada O ser em si das coisas ele afirma eacute necessariamente subjetivo mas
na representaccedilatildeo de outrem teraacute sempre de ser objetivo e essa cisatildeo jamais poderaacute ser
remediada68
ldquoPoisrdquo ele escreve
por meio disso [dessa diferenccedila] seu modo de existecircncia foi radicalmente
modificado como algo objetivo exige um sujeito estranho em cuja
representaccedilatildeo existe aleacutem disso como Kant demonstrou entra em formas
que satildeo estranhas agrave sua proacutepria essecircncia justamente porque pertencem
agravequele sujeito cujo conhecer somente elas tornam possiacutevel69
Mesmo os corpos inanimados possuiriam um ser subjetivo natildeo alcanccedilado
pela representaccedilatildeo objetiva e que seria tambeacutem a essecircncia deles Resumidamente a aparecircncia
externa formada na representaccedilatildeo eacute o lado objetivo das coisas o qual por sua vez remete a
64
WWW I zweites Buch sect23 p 167 M I livro II sect23 p 172 65
WWW I zweites Buch sect24 p 175 M I livro II sect24 p 180 (grifos do autor) 66
WWW I zweites Buch sect24 p 177-178 M I livro II sect24 p 182 67
WWW I zweites Buch sect24 p 176 M I livro II sect24 p 180 (grifos do autor) 68
WWW II Kap 18 p 224-225 M II cap 18 p 234 69
WWW II Kap 18 p 225 M II cap 18 p 234 (grifos do autor)
- 157 -
algo em si o subjetivo anunciado pelas propriedades inescrutaacuteveis que o determinam de
dentro para fora como no exemplo dos sulcos no maacutermore70
Schopenhauer considera possiacutevel observarem-se elementos fenomecircnicos
natildeo condicionados por tempo espaccedilo e causalidade e que natildeo podem ser remetidos a eles ou
explicados com base neles Esses elementos revelariam a Vontade pois indicariam a presenccedila
dela imediatamente na representaccedilatildeo71
Na concepccedilatildeo schopenhaueriana somente a
matemaacutetica e a ciecircncia pura da natureza permitem cognoscibilidade total sem que nada reste
obscuro porque lidam apenas com formas intelectuais Assim natildeo poderiam nem
necessitariam ser remetidas a outra coisa Diferentemente os conteuacutedos empiacutericos
introduziriam elementos natildeo completamente cognosciacuteveis ao acrescentarem ldquo[] algo sem
fundamento por meio do qual o conhecimento perde em evidecircncia e a completa transparecircncia
diminuirdquo72
Segundo pensamos desse ponto de vista reaparece aquela relaccedilatildeo inversa de
compreensibilidade entre a Vontade e as formas da representaccedilatildeo que mencionamos
anteriormente Para Schopenhauer quanto mais vinculado agraves formas de tempo espaccedilo e
causalidade estaacute um fenocircmeno menos conteuacutedo empiacuterico exige e mais necessaacuterio claro e
suficiente eacute o seu conhecimento Quanto mais poreacutem algo eacute apreendido empiacuterica e
objetivamente mais distante estaraacute das formas do princiacutepio de razatildeo e das suas condiccedilotildees de
fundamentaccedilatildeo tornando-se mais inexplicaacutevel e contingente73
Haacute um aspecto interessante a ser considerado nesse tocante
Schopenhauer critica severamente o materialismo e sua intenccedilatildeo de reduzir todas as forccedilas
naturais umas agraves outras e todas em conjunto agrave aritmeacutetica Se isso fosse possiacutevel ele afirma
tudo poderia ser explicado com absoluta certeza ateacute seu uacuteltimo fundamento e o conteuacutedo
fenomecircnico seria paulatinamente afastado ateacute estar ausente No entanto essa certeza e essa
necessidade seriam resultado da remissatildeo do mundo todo como representaccedilatildeo ao sujeito o
que significaria ser reduzido a mero fantasma Juntamente com o conteuacutedo empiacuterico do
mundo estariam perdidas a coisa em si bem como toda possibilidade de dar agrave representaccedilatildeo
uma existecircncia real reduzindo-se tudo a fantasias sofismas e castelos de ar74
Isso poreacutem
nunca aconteceraacute escreve o filoacutesofo porque ldquo[] sempre restaratildeo as forccedilas naturais sempre
restaraacute como resiacuteduo insoluacutevel um conteuacutedo do fenocircmeno que natildeo pode ser remetido agrave sua
70
WWW II Kap 18 p 225 M II cap 18 p 235 71
WWW I zweites Buch sect24 p 176 M I livro II sect24 p 180 72
WWW I zweites Buch sect24 p 177 M I livro II sect24 p 181 73
WWW I zweites Buch sect24 p 178 M I livro II sect24 p 182 74
WWW I zweites Buch sect24 p 180 M I livro II sect24 p 184
- 158 -
forma isto eacute que natildeo pode ser esclarecido a partir de outra coisa por meio do princiacutepio de
razatildeordquo75
O caraacuteter insondaacutevel da realidade empiacuterica seria adicionalmente uma evidecircncia a
posteriori da idealidade e mera aparecircncia desse lado do mundo76
De acordo com o dito aquilo que se manteacutem desconhecido em todos os
fenocircmenos que natildeo pode ser explicado pelas causas que desencadeiam cada modo especiacutefico
de accedilatildeo tambeacutem revelaria sua essecircncia Para Schopenhauer as causas os estiacutemulos e os
motivos podem ser descobertos os efeitos podem ateacute ser previstos mas natildeo o porquecirc de cada
modo particular de atuaccedilatildeo A mesma obscuridade e ausecircncia de fundamento existiriam tanto
no fenocircmeno mais simples quanto no mais complexo desde uma gota de aacutegua ateacute o caraacuteter
individual de um ser humano a Vontade eacute a mesma em toda parte Como vimos para que a
essecircncia escondida das coisas seja revelada o conhecimento que cada um tem da sua proacutepria
vontade individual eacute o uacutenico caminho pois eacute ele que pode conectar os dois lados do mundo o
externo e o interno a coisa em si e a representaccedilatildeo Como resultado de um lado o meacutetodo da
analogia estendeu a essecircncia Vontade ao universo da experiecircncia e de outro a relaccedilatildeo causal
foi demonstrada como o princiacutepio subjetivo de formaccedilatildeo e de coesatildeo do mundo objetivo
Com isso Schopenhauer julga ter encontrado por meio da reflexatildeo o ldquoponto certordquo em que
se unem as perspectivas interna e externa do sujeito77
Nas palavras dele
Consumando ao contraacuterio a ligaccedilatildeo acima requerida do conhecimento
externo com o interno laacute onde se tocam entatildeo compreenderemos apesar de
todas as diferenccedilas acidentais duas identidades a saber da causalidade
consigo mesma em todos os graus e a daquele x antes desconhecido (isto eacute
as forccedilas naturais e fenocircmenos vitais) com a Vontade em noacutes78
Portanto as propriedades essenciais de todos os fenocircmenos seu modo de
ser e sua proacutepria existecircncia satildeo objetidade da coisa em si sua visibilidade Isso natildeo significa
dizer que sejam efeitos da Vontade como causa pois afirma Schopenhauer ldquoCoisa nenhuma
no mundo possui uma causa absoluta e geral de sua existecircncia apenas uma causa pela qual eacute
justamente aqui e agorardquo79
Em qualquer dos trecircs tipos de causaccedilatildeo por causa estrita estiacutemulo
ou motivo a causa eacute sempre ocasional ou seja uma mudanccedila especiacutefica dada num instante do
tempo A forccedila natural por seu turno eacute aquilo que originariamente daacute agrave causa a capacidade de
75
WWW I zweites Buch sect24 p 180 M I livro II sect24 p 184 76
WWW II Kap 18 p 226 M II cap 18 p 236 77
WN p 415 VN p 143 78
WN p 416 VN p 144 79
WWW I zweites Buch sect26 p 197 M I livro II sect26 p 201
- 159 -
atuar enquanto a Vontade eacute a essecircncia em si da forccedila80
Entretanto e isso eacute importante de
nenhum modo a causa pode faltar pois eacute o que oferece a oportunidade para a manifestaccedilatildeo
das forccedilas naturais num ponto do tempo e do espaccedilo81
Daiacute resulta por um lado que as forccedilas
naturais as espeacutecies animais e o caraacuteter individual humano satildeo todos fenocircmenos imediatos da
Vontade e portanto sem fundamento assim como ela De outro que o exerciacutecio em si das
forccedilas a essecircncia interna de cada espeacutecie e de cada caraacuteter humano natildeo podem ser explicados
com base nas causas exteriores que desencadeiam sua accedilatildeo Como o filoacutesofo afirma
Mas que ele tenha este caraacuteter que ele queira em geral que entre muitos
motivos exatamente este e natildeo outro sim que algum motivo mova sua
Vontade disso natildeo se pode apontar nenhum motivo O que no homem eacute seu
caraacuteter infundado pressuposto em todo esclarecimento de suas accedilotildees por
motivos eacute exatamente a qualidade essencial de cada corpo inorgacircnico seu
modo de produzir efeito cujas exteriorizaccedilotildees satildeo provocadas por influecircncia
de fora enquanto ela ao contraacuterio natildeo eacute determinada por nada externo isto
eacute natildeo eacute explicaacutevel []82
Schopenhauer procura evitar que essa concepccedilatildeo de forccedilas naturais seja
relacionada a entidades miacutesticas ou de algum modo eteacutereas Embora essas forccedilas tenham
caraacuteter metafiacutesico natildeo devem ser remetidas agrave religiatildeo ou a entes sobrenaturais mas devem
ser investigadas empiricamente ateacute o limite pelas ciecircncias Na concepccedilatildeo do filoacutesofo as
forccedilas naturais satildeo a condiccedilatildeo que daacute sentido agrave explicaccedilatildeo por causas isto eacute estatildeo
relacionadas a eventos empiricamente cognosciacuteveis ainda que na condiccedilatildeo de qualitas oculta
O mesmo natildeo poderia ser dito no tocante agraves entidades religiosas e miacutesticas As forccedilas naturais
portanto estatildeo ligadas agrave etiologia como aquilo que estaacute pressuposto nela natildeo no sentido de
um primeiro elo da cadeia causal do mundo como representaccedilatildeo mas como aquilo sem o qual
natildeo se poderia explicar nada83
ldquoPoisrdquo escreve Schopenhauer
a fiacutesica exige causas mas a Vontade nunca eacute causa sua relaccedilatildeo com o
fenocircmeno de modo algum eacute dada pelo princiacutepio de razatildeo mas o que em si eacute
Vontade de outro lado eacute representaccedilatildeo ou seja fenocircmeno e como tal segue
as leis que constituem a forma do fenocircmeno Assim por exemplo todo
movimento embora seja sempre fenocircmeno da Vontade deve ter apesar disso
uma causa pela qual eacute explicado em relaccedilatildeo com um tempo e um espaccedilo
determinados isto eacute natildeo em geral segundo sua essecircncia interna mas como
fenocircmeno singular84
80
WWW II Kap 23 p 349 M II cap 23 p 360 81
WWW I zweites Buch sect27 p 199 M I livro II sect27 p 203 82
WWW I zweites Buch sect24 p 181 M I livro II sect24 p 185 83
WWW I zweites Buch sect26 p 200 M I livro II sect26 p 203 84
WWW I zweites Buch sect27 p 199 M I livro II sect27 p 203 (grifos do autor)
- 160 -
Do exposto resulta que natildeo se pode utilizar a etiologia para chegar a um
fundamento que ela natildeo pode encontrar e que de qualquer modo natildeo saberia reconhecer Em
funccedilatildeo disso Schopenhauer parte de um conhecimento especial do que nos eacute mais proacuteximo
de um saber imediato para desvendar o mais distante e desconhecido Ao comparar o que
ocorre em si mesmo no momento em que seu corpo age com o modo de accedilatildeo de quaisquer
corpos orgacircnicos ou inorgacircnicos o indiviacuteduo poderia compreender que seu processo de
mudanccedila eacute idecircntico ao destes uacuteltimos e que suas essecircncias tambeacutem o satildeo85
Schopenhauer
exemplifica divertidamente que uma pedra teria razatildeo se julgasse que sua trajetoacuteria no ar
causada por uma colisatildeo fosse fruto de sua vontade proacutepria ldquoO choque eacute para ela o que o
motivo eacute para mim e o que aparece nela como coesatildeo gravidade e resistecircncia no estado
advindo eacute segundo a essecircncia interna o mesmo que reconheccedilo em mim como vontade e que
se ela adquirisse conhecimento tambeacutem entenderia como Vontaderdquo86
Nesse ponto eacute interessante observar que Schopenhauer identificou nas
ciecircncias de seu tempo uma confirmaccedilatildeo de seus principais resultados metafiacutesicos Para ele
esse aspecto distingue sua filosofia de todas as outras porque natildeo deixa como estas um
abismo intransponiacutevel entre a metafisica e a experiecircncia87
De fato como afirma Gardiner
essa eacute uma posiccedilatildeo fundamental de Schopenhauer a saber que ldquo[] nenhuma explicaccedilatildeo
filosoacutefica de nossa existecircncia enquanto seres inteligentes pode ser aceita se natildeo se faz justiccedila
aos fatos evidentes de nossa situaccedilatildeo na natureza fiacutesica na condiccedilatildeo de criaturas dotadas de
certa constituiccedilatildeo e organizaccedilatildeo corporalrdquo88
A obra Sobre a Vontade na natureza se dedica
justamente a apresentar essas comprovaccedilotildees mostrando no entender do filoacutesofo que sua
metafiacutesica natildeo ldquoflutua no arrdquo como as anteriores mas estaacute ancorada no solo firme das ciecircncias
empiacutericas89
E essa comprovaccedilatildeo natildeo seria relativa a um ponto qualquer do seu pensamento
mas agravequele mais fundamental a saber o que estabelece a Vontade como o nuacutecleo metafiacutesico
de tudo Nesse caso diz Schopenhauer cientistas e filoacutesofo se encontram de modo
inesperado
Pois aqueles pesquisadores reconhecem agora que alcanccedilaram o ponto de
encontro procurado inutilmente por muito tempo entre fiacutesica e metafiacutesica
que como ceacuteu e Terra nunca quiseram se tocar reconhecem que se iniciou a
conciliaccedilatildeo entre ambas as ciecircncias e que o ponto de ligaccedilatildeo entre elas foi
85
WWW I zweites Buch sect24 p 182 M I livro II sect24 p 186 86
WWW I zweites Buch sect24 p 183 M I livro II sect24 p 187 87
WN p 320 VN p 39 88
GARDINER op cit p 224 (traduccedilatildeo nossa) 89
WN p 320-321 VN p 40
- 161 -
encontrado Mas o sistema filosoacutefico que vivencia essa vitoacuteria alcanccedila com
isso uma prova externa tatildeo forte e suficiente de sua verdade e correccedilatildeo que
nenhuma outra maior eacute possiacutevel90
Em siacutentese a accedilatildeo e o movimento do indiviacuteduo por motivos que
conhecemos em noacutes mesmos a partir de dentro explicam o modo de atuaccedilatildeo e o movimento
em toda a natureza As forccedilas naturais seriam distintas da vontade individual somente em
grau e as diferenccedilas entre os objetos naturais existiriam apenas na representaccedilatildeo todos
seriam exteriorizaccedilotildees da mesma coisa em si No entender de Schopenhauer esse eacute o uacutenico
uso da reflexatildeo que pode seguir aleacutem do fenocircmeno e alcanccedilar a Vontade em si91
Nesse
sentido ele escreve
Que aleacutem disso eacute aquela mesma Vontade que situa a gema da planta para
que folha ou flor se desenvolvam sim que a forma regular do cristal eacute
apenas o vestiacutegio restante de sua aspiraccedilatildeo momentacircnea que ela em geral
como o verdadeiro e uacutenico ἀςηόμαηον no sentido proacuteprio do termo subjaz
como fundamento de todas as forccedilas da natureza inorgacircnica joga e atua em
todos os seus variados fenocircmenos empresta forccedila a suas leis e se daacute a
conhecer na massa mais bruta como gravidade ndash essa concepccedilatildeo eacute o segundo
passo naquele conhecimento fundamental jaacute proporcionado por uma
reflexatildeo mais ampla92
33 ndash Objetivaccedilatildeo da Vontade
Schopenhauer define como objetivaccedilatildeo da Vontade sua
ldquoautoapresentaccedilatildeo no mundo real corpoacutereordquo93
De acordo com ele a coisa em si se objetiva
em uma infinidade de seres e de graus cuja essecircncia no entanto eacute a mesma pois satildeo
diferentes apenas em aparecircncia94
Haveria graus maiores e menores de manifestaccedilatildeo da
Vontade dispostos numa hierarquia a planta seria um grau maior do que a pedra o animal
90
WN p 324 VN p 43-44 91
WWW I zweites Buch sect21 p 163 M I livro II sect21 p 168 92
WWW II Kap 23 p 341-342 M II cap 23 p 353-354 93
WWW II Kap 20 p 286 M II cap 20 p 297 94
WWW I zweites Buch sect24 p 185 M I livro II sect24 p 189
- 162 -
maior do que a planta e o ser humano maior do que o animal Por conseguinte a gradaccedilatildeo dos
fenocircmenos resultantes da objetivaccedilatildeo da Vontade conduziria da mateacuteria sem vida ao ser
humano racional sem que ela deixasse de ser idecircntica em todos eles Conforme o filoacutesofo as
infinitas gradaccedilotildees satildeo como graus mais fracos ou mais fortes de uma mesma luz de modo
que a Vontade se manifesta completamente em cada um e em todos os fenocircmenos
No texto ldquoSchopenhauer et la physiologie franccedilaiserdquo Paul Janet aponta
as origens dessa concepccedilatildeo nas obras de Cabanis e de Bichat Segundo esse autor Bichat
divisou certas pequenas vontades nas atividades e funccedilotildees orgacircnicas certas hierarquias
subconscientes de ldquopequenos eurdquo (petits moi) que se encaixam infinitamente95
Generalizando
essa perspectiva Cabanis teria buscado uma causa geral dos fenocircmenos vitais que pudesse ser
atribuiacuteda a toda a natureza Conforme Janet ldquoEle suspeita que haja bdquoalguma analogia entre a
sensibilidade animal o instinto das plantas as afinidades eletivas e a simples atraccedilatildeo
gravitacional‟ e em todos esses fenocircmenos ele vecirc um fato comum bdquoa tendecircncia dos corpos
uns aos outros‟rdquo96
Essa concepccedilatildeo segundo o autor conteacutem em germe toda a filosofia de
Schopenhauer com a uacutenica diferenccedila de que Cabanis chama sensibilidade o que o filoacutesofo
chama vontade Em ambos os casos todas as forccedilas naturais do mundo orgacircnico e do
inorgacircnico poderiam ser remetidas a um mesmo princiacutepio apenas nomeado distintamente
pelo filoacutesofo e pelo fisioacutelogo97
Na filosofia schopenhaueriana os graus mais altos de objetivaccedilatildeo da
Vontade satildeo aqueles que manifestam individualidade Os seres humanos teriam chegado ao
cume dessa gradaccedilatildeo diz Schopenhauer pois somente neles a individualidade teria atingido o
ponto em que se tem personalidade e fisionomia completamente particulares Alguns animais
se aproximariam disso mas natildeo possuiriam individualizaccedilatildeo do caraacuteter e expressariam apenas
o da sua espeacutecie Para o filoacutesofo em virtude de distinccedilotildees fisioloacutegicas no desenvolvimento de
seus ceacuterebros o caraacuteter da espeacutecie determina as accedilotildees individuais deles enquanto nos seres
humanos cada caraacuteter se expressa de modo pessoal Nas palavras dele ldquoEnquanto cada
homem deve ser visto como fenocircmeno especialmente determinado e caracterizado da
Vontade ateacute mesmo de certo modo como uma Ideia proacutepria no animal esse caraacuteter individual
falta completamente e somente a espeacutecie possui significaccedilatildeo particular []rdquo98
Jaacute nas plantas
95
JANET P Schopenhauer et la physiologie franccedilaise Cabanis et Bichat Revue des deux mondes Tome 9
Paris Bureau de la Revue de deux mondes Mai-1880 p 46 96
Ibidem p 46-47 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 97
Ibidem p 46-47 98
WWW I zweites Buch sect26 p 189 M I livro II sect26 p 193-194
- 163 -
e na natureza inorgacircnica a individualidade seria completamente ausente e conforme o
filoacutesofo ldquoQuanto mais se desce mais se perde cada vestiacutegio de caraacuteter individual no caraacuteter
geral da espeacutecie restando somente a fisionomia destardquo99
Cada um dos graus de objetivaccedilatildeo da Vontade satildeo denominados Ideia por
Schopenhauer em sentido platocircnico As forccedilas naturais seriam Ideias de uma objetivaccedilatildeo de
niacutevel inferior e as leis naturais seriam o modo de relaccedilatildeo entre elas e as formas do fenocircmeno
Por obra do tempo e do espaccedilo a Ideia se multiplicaria em inumeraacuteveis seres cujo
aparecimento seria determinado pela causalidade que ademais seria a regra por meio da qual
a mateacuteria seria dividida entre as forccedilas naturais100
ldquoPortantordquo explica o filoacutesofo ldquoessa norma
se relaciona necessariamente com a identidade da mateacuteria total existente a qual eacute o substrato
comum de todos aqueles diferentes fenocircmenosrdquo101
Assim Vontade e Ideias manifestam-se de
modo idecircntico nos fenocircmenos por mais numerosos que sejam e natildeo satildeo afetadas por
quaisquer mudanccedilas oriundas de tempo espaccedilo e causalidade
Revela-se nesse ponto novamente a relaccedilatildeo entre a lei de causalidade e
a da permanecircncia da substacircncia bem como a conexatildeo de espaccedilo e tempo no tocante a ambas
Segundo Schopenhauer o tempo eacute a possibilidade de que a mesma mateacuteria possa ter
determinaccedilotildees opostas e o espaccedilo eacute a possibilidade de que a mesma mateacuteria possa
permanecer sob determinaccedilotildees opostas102
ldquoPor issordquo ele escreve ldquoesclarecemos a mateacuteria no
livro anterior como uniatildeo de tempo e espaccedilo essa uniatildeo se apresenta como mudanccedila dos
acidentes na permanecircncia da substacircncia da qual a causalidade ou o devir eacute a possibilidade
universalrdquo103
Natildeo obstante no capiacutetulo 24 de O MundoII ele afirma que essa perspectiva eacute
unilateral porque soacute examina a mateacuteria do ponto de vista de suas relaccedilotildees com as formas do
intelecto Fora dessas relaccedilotildees isto eacute do seu fazer efeito a mateacuteria seria uma abstraccedilatildeo um
pensamento pois natildeo possuiria determinaccedilatildeo alguma que pudesse ser intuiacuteda104
Por conseguinte a mateacuteria se identificaria com a causalidade e
corresponderia ao conceito de substacircncia ldquoDe acordo com issordquo Schopenhauer afirma ldquoa
essecircncia total da mateacuteria consiste em fazer efeito somente por meio deste ela preenche o
espaccedilo e permanece no tempo ela eacute completamente pura causalidade Portanto onde eacute
99
WWW I zweites Buch sect26 p 189 M I livro II sect26 p 193 100
WWW I zweites Buch sect26 p 192-193 M I livro II sect26 p 196-197 101
WWW I zweites Buch sect26 p 193 M I livro II sect26 p 197 102
WWW I zweites Buch sect26 p 193 M I livro II sect26 p 197 103
WWW I zweites Buch sect26 p 193 M I livro II sect26 p 197 104
WWW II Kap 24 p 356 M II cap 24 p 367
- 164 -
produzido efeito haacute mateacuteria e material eacute o que faz efeito em geralrdquo105
Desse ponto de vista a
mateacuteria seria a forma a priori da causalidade poreacutem objetivada isto eacute ligada ao tempo e ao
espaccedilo Natildeo consiste em objeto empiacuterico e natildeo eacute dada em experiecircncia alguma mas diz o
filoacutesofo assim como o entendimento eacute condiccedilatildeo da experiecircncia e um elemento necessaacuterio
dela Eacute entatildeo o substrato permanente de todas as exteriorizaccedilotildees das forccedilas naturais dos
seres vivos numa palavra do mundo todo como representaccedilatildeo106
Sem forma sem
qualidades sem determinaccedilotildees e inerte a mateacuteria estaria sempre pronta a assumir a aparecircncia
de quaisquer manifestaccedilotildees da Vontade natildeo podendo pode ser subtraiacuteda completamente do
mundo como representaccedilatildeo sem que ele deixasse por isso mesmo de ser o que eacute
Apesar de natildeo ser um objeto a mateacuteria conteria um elemento dado
apenas a posteriori Nas palavras de Schopenhauer ldquoEla eacute na verdade o ponto de contato do
lado empiacuterico do nosso conhecimento com o puro e aprioriacutestico portanto a pedra angular
proacutepria do mundo da experiecircnciardquo107
Nessa perspectiva a mateacuteria se configuraria como a
proacutepria Vontade na medida em que esta se manifesta na parte empiacuterica dos corpos Assim
ele explica a mateacuteria como aquilo atraveacutes do qual a coisa em si se torna visiacutevel intuiacutevel e que
constitui a ligaccedilatildeo entre o mundo como Vontade e como representaccedilatildeo Conforme o filoacutesofo
ldquoPertence a este enquanto eacute produto das funccedilotildees do intelecto agravequele na medida em que o
que se manifesta em todos os seres materiais isto eacute fenocircmenos eacute a Vontaderdquo108
Como
consequecircncia sem as formas do conhecimento a mateacuteria se revela como a coisa em si pois eacute
exatamente aquilo que se torna extenso e produz efeito ao tomar as formas do tempo espaccedilo
e causalidade Entatildeo diz Schopenhauer ldquoA mateacuteria eacute por conseguinte a proacutepria Vontade
mas natildeo em si e sim enquanto eacute intuiacuteda isto eacute enquanto adota a forma da representaccedilatildeo
objetiva assim o que objetivamente eacute mateacuteria subjetivamente eacute Vontaderdquo109
As forccedilas naturais objetivariam uma Ideia menos perfeita da Vontade um
impulso cego e sem conhecimento que se manifestaria de modo idecircntico em inumeraacuteveis
fenocircmenos Nesse niacutevel de objetivaccedilatildeo natildeo haveria caraacuteter individual em parte alguma e
cada Ideia expressaria o mesmo impulso multiplicado milhares de vezes110
Os fenocircmenos do
mundo orgacircnico por sua vez objetivariam uma Ideia mais perfeita da Vontade mas ainda de
105
WWW II Kap 24 p 357 M II cap 24 p 368 (grifos do autor) 106
WWW II Kap 24 p 357 M II cap 24 p 368 107
WWW II Kap 24 p 358 M II cap 24 p 369 108
WWW II Kap 24 p 359 M II cap 24 p 370 (grifos do autor) 109
WWW II Kap 24 p 360 M II cap 24 p 371 110
WWW I zweites Buch sect27 p 211-212 M I livro II sect27 p 214
- 165 -
modo cego Mesmo no reino vegetal onde a Vontade eacute mais clara sua objetivaccedilatildeo ainda se daacute
como o impulso cego que governa a vida das plantas e a parte vegetativa do corpo animal111
Nesse caso cada Ideia deve expressar sem nenhum sinal de individualidade espeacutecies de
plantas e estiacutemulos dos corpos orgacircnicos com vistas agrave sua geraccedilatildeo desenvolvimento e
conservaccedilatildeo
Nos graus mais aprimorados de objetivaccedilatildeo da Vontade por seu turno os
indiviacuteduos expressariam Ideias Nesse niacutevel estatildeo os animais cuja individualidade estaacute
relacionada com a necessidade de buscar o alimento que diz Schopenhauer natildeo chega
facilmente ateacute eles mas ldquo[] tem de ser procurado escolhido desde o instante em que o
animal saiu do ovo ou do ventre materno onde vegetava sem conhecimentordquo112
Os animais
precisam movimentar-se e entatildeo os motivos satildeo o meio necessaacuterio para a preservaccedilatildeo do
indiviacuteduo e com ele da espeacutecie Uma vez que o conhecimento passa a ser fundamental o
ceacuterebro surge para satisfazer essa necessidade como oacutergatildeo que expressa esse esforccedilo e cria o
mundo o como representaccedilatildeo113
Conforme o filoacutesofo ldquoO mundo mostra agora seu segundo
lado Ateacute entatildeo pura Vontade agora eacute simultaneamente representaccedilatildeo objeto do sujeito
cognoscenterdquo114
Com o surgimento do conhecimento nos universos animal e humano
poreacutem perde-se a infalibilidade com a qual a Vontade segue seus alvos no restante da
natureza Enquanto era pura e simplesmente impulso cego natildeo se via atrapalhada ou
complicada por nenhum saber mas na medida em que os motivos passaram a fazer parte das
cadeias causais trouxeram consigo o engano e a ilusatildeo Nesse sentido diz Schopenhauer o
mundo como representaccedilatildeo eacute ldquo[] de fato apenas a imagem de sua proacutepria essecircncia mas de
natureza totalmente distinta e que agora interfere na coesatildeo de seus fenocircmenosrdquo115
Motivos
falsos passam assim a poder influir sobre as vontades como se fossem os corretos podendo
levar ao erro e agrave distorccedilatildeo nas exteriorizaccedilotildees da essecircncia individual116
No caso dos seres
humanos as carecircncias e vulnerabilidades exigiram uma potecircncia mais elevada de
conhecimento que seria entatildeo a origem da superioridade do seu intelecto No entanto ao
mesmo tempo em que o instinto ficou em segundo plano a seguranccedila e o caraacuteter infaliacutevel das
111
WWW I zweites Buch sect27 p212 M I livro II sect27 p 214-215 112
WWW I zweites Buch sect27 p 212 M I livro II sect27 p 215 113
WWW I zweites Buch sect27 p 212 M I livro II sect27 p 215 114
WWW I zweites Buch sect27 p 212-0213 M I livro II sect27 p 215 (grifos do autor) 115
WWW I zweites Buch sect77 p 213 M I livro II sect27 p 216 116
WWW I zweites Buch sect27 p 214 M I livro II sect27 p 217
- 166 -
exteriorizaccedilotildees da Vontade se perderam completamente Com isso a melhor objetivaccedilatildeo seraacute
de certo modo a pior delas pois ao substituir o instinto e a regularidade das leis naturais a
reflexatildeo deu origem a erros e hesitaccedilotildees que em muitos casos prejudicam a exteriorizaccedilatildeo
adequada em accedilotildees isto eacute exatamente aquilo para o que existe
34 ndash Relaccedilotildees da Vontade com o intelecto e o ceacuterebro
No capiacutetulo 22 de O MundoII Schopenhauer aborda o intelecto do
acircngulo da objetividade isto eacute como uma representaccedilatildeo e afirma que esse ponto de vista
precisa ser harmonizado com o subjetivo117
A perspectiva subjetiva jaacute abordada por noacutes no
segundo capiacutetulo deste trabalho examina o que eacute dado na consciecircncia com o fim descrever o
mecanismo de construccedilatildeo do mundo pelo intelecto A objetiva por sua vez investiga o
intelecto do ponto de vista externo isto eacute como um objeto empiacuterico Esse modo de
consideraccedilatildeo segundo o filoacutesofo ldquoEacute portanto em primeiro lugar zooloacutegico anatocircmico e
fisioloacutegico tornando-se filosoacutefico somente pela ligaccedilatildeo com aquele primeiro ponto de vista
pelo qual se torna superiorrdquo118
Na nossa interpretaccedilatildeo a perspectiva fisioloacutegica de
consideraccedilatildeo tem tanto peso e valor no pensamento schopenhaueriano quanto a filosoacutefica
Janet observa nesse sentido que as investigaccedilotildees fisioloacutegicas tiveram uma influecircncia decisiva
sobre o filoacutesofo pois ele afirma ldquoSe o primeiro livro de sua obra vem de Kant pode-se dizer
que o segundo vem em grande parte de Cabanis e Bichatrdquo119
De fato Schopenhauer
considera que as contribuiccedilotildees desses pensadores natildeo podem ser ignoradas por filoacutesofos se
estes natildeo quiserem oferecer apenas um ponto de vista unilateral e insuficiente do intelecto
como teria sido o de Kant120
Nesse sentido ele escreve que
117
WWW II Kap 22 p 316 M II cap 22 p 329 118
WWW II Kap 22 p 317 M II cap 22 p 329 119
JANET op cit p 36 (traduccedilatildeo nossa) 120
WWW II Kap 22 p 317 M II cap 22 p 330
- 167 -
A verdadeira fisiologia no que tem de mais elevado demonstra o espiritual
do homem (o conhecimento) como produto do seu fiacutesico e isso Cabanis fez
como nenhum outro mas a verdadeira metafiacutesica nos ensina que esse fiacutesico
mesmo eacute mero produto ou antes fenocircmeno de algo espiritual (a Vontade)
sim que a proacutepria mateacuteria eacute condicionada pela representaccedilatildeo unicamente na
qual ela existe121
No entender de Schopenhauer os pontos de vista subjetivo e objetivo satildeo
contrastantes O que eacute pensamento viacutevido e consciente na primeira perspectiva na segunda
natildeo eacute mais do que funccedilatildeo fisioloacutegica do ceacuterebro semelhante a quaisquer outras funccedilotildees da
vida animal ou vegetal Em virtude disso diz o filoacutesofo ldquo[] eacute legiacutetimo afirmar-se que a
totalidade do mundo objetivo tatildeo ilimitado no espaccedilo tatildeo infinito no tempo tatildeo impenetraacutevel
na perfeiccedilatildeo eacute na verdade apenas um certo movimento ou afecccedilatildeo da massa mole dentro do
cracircniordquo122
Embora seja o fenocircmeno mais aprimorado da natureza essa mateacuteria cerebral nos
aproxima de todos os outros animais e da vida orgacircnica mais simples na medida em que toma
parte no universo de objetivaccedilotildees da Vontade Isso porque Schopenhauer escreve ldquo[]
aquela massa orgacircnica gelatinosa eacute o uacuteltimo produto da natureza que jaacute pressupotildee todos os
outrosrdquo123
Portanto como tudo o mais o intelecto eacute fenocircmeno da Vontade Do
ponto de vista fenomecircnico a pluralidade e separaccedilatildeo dos seres torna o conhecimento
necessaacuterio no mundo como representaccedilatildeo De acordo com Schopenhauer o conhecimento eacute
exigido somente quando haacute no miacutenimo dois seres distintos para que um possa conhecer o
outro Caso houvesse um uacutenico ser natildeo haveria nada cuja existecircncia pudesse ser conhecida
pois ele escreve ldquoEle mesmo jaacute seria tudo em tudo consequentemente nada restaria a
conhecer isto eacute nada estranho que pudesse ser interpretado como coisa objetordquo124
A
multiplicidade separaria os indiviacuteduos que teriam entatildeo de transpor os limites materiais dos
seus proacuteprios ceacuterebros ou melhor os intelectos precisariam romper suas fronteiras por meio
da causalidade para produzir a intuiccedilatildeo de outras coisas125
Pluralidade e conhecimento
seriam mutuamente condicionantes e diz o filoacutesofo ldquoConclui-se daiacute que para aleacutem do
fenocircmeno no ser em si de todas as coisas elas devem ser estranhas a tempo e espaccedilo
portanto tambeacutem a multiplicidade e tampouco pode existir nenhum conhecimentordquo126
121
WN p 340 VN p 61 (grifos do autor) 122
WWW II Kap 22 p 318 M II cap 22 p 330 123
WWW II Kap 22 p 318 M II cap 22 p 331 124
WWW II Kap 22 p 319 M II cap 22 p 331-332 (grifos do autor) 125
WWW II Kap 22 p 319 M II cap 22 p 332 126
WWW II Kap 22 p 320 M II cap 22 p 332
- 168 -
O intelecto surgiria entatildeo no animal como um meio de satisfazer
necessidades de sobrevivecircncia e progrediria em graus crescentes de aperfeiccediloamento O
ceacuterebro humano seria o ponto mais alto de perfeiccedilatildeo a que o conhecimento teria chegado e
sua diferenccedila especiacutefica em relaccedilatildeo ao ceacuterebro de todos os outros animais seria a capacidade
de influenciar a Vontade com motivos abstratos Segundo o filoacutesofo o mundo como
representaccedilatildeo nasce simploacuterio e humilde ldquomas ele se manifesta de modo cada vez mais
niacutetido mais amplo e profundo na medida em que na seacuterie ascendente das organizaccedilotildees
animais o ceacuterebro eacute produzido cada vez mais perfeitamenterdquo127
Nas plantas e no mundo
inorgacircnico os estiacutemulos e as causas estritas seriam anaacutelogos do conhecimento enquanto
meios pelos quais cada ser recebe as influecircncias de fora As distintas receptividades agraves causas
aos estiacutemulos e ao conhecimento teriam a mesma funccedilatildeo de satisfazer as necessidades dos
seres com vistas agrave manutenccedilatildeo da vida do indiviacuteduo e da espeacutecie128
Nesse sentido como
afirma Gardiner ldquoTodas as formas comuns de conhecimento inclusive o cientiacutefico devem
levar sobre si a marca da vontade por ser esta sua raison drsquoecirctrerdquo129
Em virtude de o ceacuterebro ser o niacutevel maacuteximo de perfeiccedilatildeo e complexidade
do organismo as afecccedilotildees dos sentidos mais nobres visatildeo e audiccedilatildeo satildeo meramente
percebidas por ele e natildeo afetam a vontade isto eacute natildeo provocam dor ou prazer130
O alto grau
de sensibilidade desse oacutergatildeo permitiria ao entendimento realizar espontaneamente sem
relaccedilatildeo com a vontade a transiccedilatildeo da impressatildeo sentida no corpo ao objeto externo ldquoAssimrdquo
escreve Schopenhauer
o ponto onde o entendimento da sensaccedilatildeo na retina que ainda eacute uma mera
afecccedilatildeo do corpo e nesse aspecto da Vontade realiza a transiccedilatildeo de cada
sensaccedilatildeo agrave causa que ele projeta com suas formas do tempo e do espaccedilo
como algo externo e diferente da proacutepria pessoa pode ser considerado como
o limite entre o mundo como Vontade e o mundo como representaccedilatildeo ou
tambeacutem como o local de nascimento deste uacuteltimo131
Por conseguinte a produccedilatildeo de conceitos e abstraccedilotildees eacute uma atividade
espontacircnea do ceacuterebro ancorada na Vontade A autoconsciecircncia tambeacutem eacute produzida nesse
oacutergatildeo nasce juntamente com ele e com o mundo como representaccedilatildeo do mesmo modo que
diz Schopenhauer ldquo[] a luz soacute se torna visiacutevel por meio dos corpos que a refletem e sem
127
WWW II Kap 22 p 324 M II cap 22 p 337 128
WN p 394 VN p 120 129
GARDINER op cit p 215 (traduccedilatildeo nossa) 130
WWW II Kap 22 p 320 M II cap 22 p 333 131
WWW II Kap 22 p 321 M II cap 22 p 333
- 169 -
eles perde-se sem efeito na escuridatildeordquo132
Por conseguinte pela necessidade de apreensatildeo do
mundo como representaccedilatildeo a Vontade produziria o ceacuterebro e dele despontaria a consciecircncia
de si Segundo o filoacutesofo ao unir as distintas atividades da sensibilidade em um ponto
preciso o ceacuterebro as fixa em uma linha do tempo e origina a forma mais essencial do
conhecimento133
Nas palavras dele
Esse foco da atividade cerebral eacute o que Kant nomeou unidade sinteacutetica da
apercepccedilatildeo apenas por meio dele a Vontade se torna consciente de si na
medida em que esse foco da atividade cerebral ou o cognoscente interpreta-
se como idecircntico agrave proacutepria base da qual derivou o desejante e assim surge o
ldquoeurdquo134
Entendido dessa maneira o sujeito cognoscente eacute meramente um estado
que conhece a vontade de modo refletido e indireto Natildeo pode ser tomado por uma substacircncia
ou alma pois natildeo eacute algo primaacuterio ou originaacuterio e sim derivado do organismo que por sua vez
deriva da Vontade Nesse ponto Schopenhauer reconhece o caraacuteter metafoacuterico de suas
afirmaccedilotildees ldquoEu admito que tudo o que foi dito aqui seja de fato apenas imagem e paraacutebola
ateacute mesmo em parte hipoacutetese estamos em um ponto em que o pensamento mal alcanccedila
menos ainda as demonstraccedilotildeesrdquo135
Apesar dessa declaraccedilatildeo no capiacutetulo 19 de O MundoII ele argumenta
sobre a primazia da Vontade na autoconsciecircncia136
Desse ponto de vista o intelecto seria um
fenocircmeno secundaacuterio um acidente do organismo animal ou melhor funccedilatildeo de um oacutergatildeo
material produzido por esse mesmo organismo Nas palavras de Schopenhauer ldquo[] a
Vontade eacute metafiacutesica o intelecto fiacutesico como seus objetos o intelecto eacute mero fenocircmeno
coisa em si eacute apenas a Vontade portanto num sentido cada vez mais figurado logo
metaforicamente a Vontade eacute a substacircncia do homem o intelecto o acidente []rdquo137
Embora em diversas circunstacircncias possa parecer que a Vontade seja comandada pelo
intelecto ao ser posta em movimento com imagens e pensamentos eacute a ela que sempre caberaacute a
decisatildeo final ldquoNa verdaderdquo ele escreve ldquoa comparaccedilatildeo mais adequada para a relaccedilatildeo entre
ambos eacute a do cego forte que carrega nos ombros o paraliacutetico que vecircrdquo138
Essa relaccedilatildeo de
subordinaccedilatildeo do intelecto agrave Vontade eacute ilustrada por Schopenhauer com diversas
132
WWW II Kap 22 p 322-323 M II cap 22 p 335 133
WWW II Kap 22 p 323 M II cap 22 p 335 134
WWW II Kap 22 p 323 M II cap 22 p 335 (grifos do autor) 135
WWW II Kap 22 p 324 M II cap 22 p 336 136
WWW II Kap 19 p 232 M II cap 19 p 243 137
WWW II Kap 19 p 233 M II cap 19 p 243-244 (grifos do autor) 138
WWW II Kap 19 p 242 M II cap 19 p 253
- 170 -
consideraccedilotildees de ordem psicoloacutegica que poreacutem natildeo detalharemos aqui139
Basta-nos ressaltar
que ele entende a Vontade como o prius e o intelecto como o posterius razatildeo pela qual
inclusive este uacuteltimo morreria com o corpo enquanto aquela natildeo140
Guumlnter Zoumlller tece interessantes consideraccedilotildees a esse respeito De acordo
com ele Schopenhauer natildeo apenas inverte as posiccedilotildees de vontade e intelecto no ldquoeurdquo mas
tambeacutem estabelece relaccedilotildees complexas e dinacircmicas entre ambos Para Zoumlller o filoacutesofo
discerne duas concepccedilotildees alternativas e complementares a saber uma em que a vontade eacute o
centro do ser humano e outra em que a individualidade eacute alcanccedilada pelo cultivo intelecto141
Na noccedilatildeo de individualidade haveria um ldquoeurdquo desenvolvido em que a centralidade do
conhecimento substituiria a da vontade e cuja autorrealizaccedilatildeo seria autonegaccedilatildeo Resultaria
entatildeo uma psicomaquia tornada ainda mais dramaacutetica na relaccedilatildeo do ldquoeurdquo com o mundo
Mais especificamente a cosmomaquia que envolve ldquoeurdquo e mundo se
converte em um duplo papel do ldquoeurdquo como inteligecircncia e como vontade
Como inteligecircncia o ldquoeurdquo eacute a inexpugnaacutevel e indispensaacutevel condiccedilatildeo formal
de objetos de todas as classes Como vontade o ldquoeurdquo eacute a manifestaccedilatildeo mais
articulada do esforccedilo cegamente dirigido que fundamenta toda a realidade142
A concepccedilatildeo schopenhaueriana acerca do intelecto tambeacutem foi inspirada
na fisiologia francesa especialmente em Bichat Com efeito Janet esclarece que Bichat
contrapocircs o que chamou de vida animal equivalente a vida intelectual agrave vida orgacircnica
comum ao vegetal e ao animal distinguindo em cada uma diversas funccedilotildees proacuteprias e
mutuamente opostas143
Assim escreve esse autor ldquoO que Bichat chamou oposiccedilatildeo da vida
animal e da vida orgacircnica diz Schopenhauer eacute o que eu chamo oposiccedilatildeo do intelecto e da
vontaderdquo144
Para Janet Bichat jaacute teria defendido a visatildeo schopenhaueriana a respeito da
separaccedilatildeo e anterioridade da Vontade em relaccedilatildeo ao intelecto isto eacute uma visatildeo fisioloacutegica da
mesma filosofia145
Com base no exposto observamos de um lado que o aperfeiccediloamento
do ceacuterebro acompanhou a escala do aprofundamento das necessidades como um meio de
conservaccedilatildeo de indiviacuteduos e espeacutecies De outro a complexidade crescente dos organismos
139
Cf WWW II Kap 19 p 232 et seq M II cap 19 p 243 et seq 140
WWW II Kap 21 p 315 M II cap 21 p 327 141
ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer
Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 19-20 142
Ibidem p 20 (traduccedilatildeo nossa) 143
JANET op cit p 50-51 144
Ibidem p 56 (traduccedilatildeo nossa) 145
Ibidem p 59
- 171 -
mais elevados aumentava e complicava as necessidades tornando mais difiacutecil sua satisfaccedilatildeo e
exigindo sentidos e inteligecircncia mais potentes146
Uma trajetoacuteria progressiva teve entatildeo de ser
percorrida e nela as faculdades cerebrais se aperfeiccediloaram e tornaram o mundo como
representaccedilatildeo cada vez mais perfeito intrincado complexo Schopenhauer resume assim essa
concepccedilatildeo
Quanto mais pois a organizaccedilatildeo se torna complicada na seacuterie ascendente
dos animais mais diversificadas se tornam tambeacutem suas necessidades bem
como mais variados e mais especificamente determinados os objetos que
servem agrave sua satisfaccedilatildeo com isso mais difiacuteceis e distantes os caminhos para
consegui-los os quais agora tecircm de ser todos conhecidos e encontrados na
mesma medida as representaccedilotildees dos animais tambeacutem tecircm de se tornar mais
multifacetadas exatas determinadas e coesas como tambeacutem sua atenccedilatildeo
tem de se tornar mais aacutevida mais detida e excitaacutevel e por consequecircncia seu
intelecto tem de ser mais desenvolvido e aperfeiccediloado147
Portanto o intelecto emerge das necessidades e exigecircncias da Vontade
com tendecircncia totalmente praacutetica para servi-la com a apreensatildeo dos motivos148
O aumento
da inteligecircncia acompanharia expressotildees cada vez mais veementes dela e a intensidade de
suas manifestaccedilotildees nas distintas espeacutecies se ligaria ao incremento fisioloacutegico da atividade do
ceacuterebro149
Em virtude disso os seres naturais seriam infinitamente diferentes nos niacuteveis de
consciecircncia mas seriam todos rigorosamente iguais no tocante agrave essecircncia Vontade E
completa Schopenhauer ldquo[] eacute o grau de consciecircncia o que determina o grau de existecircncia de
um serrdquo150
A perspectiva fisioloacutegica de investigaccedilatildeo tem assim uma importacircncia
fundamental na medida em que mostra o surgimento e aperfeiccediloamento do ceacuterebro no mundo
fenomecircnico como instrumento da Vontade Nesse sentido escreve o filoacutesofo
[] a visatildeo objetiva do intelecto aqui fornecida que conteacutem uma gecircnese
dele torna compreensiacutevel que determinado exclusivamente para objetivos
praacuteticos ele eacute mero meio dos motivos consequentemente cumpre sua
funccedilatildeo pela correta apresentaccedilatildeo destes e tambeacutem que se empreendemos
construir a coisa em si a partir do complexo e da legalidade dos fenocircmenos
que aqui se apresentam a noacutes objetivamente isso se daacute por risco e
responsabilidade proacuteprios151
Na nossa interpretaccedilatildeo as duas perspectivas de abordagem do intelecto
conduzem a duas visotildees sobre a origem o uso e a importacircncia do conhecimento De um lado
146
WWW II Kap 22 p 325 M II cap 22 p 337 147
WWW II Kap 18 p 237 M II cap 19 p 248 148
WWW II Kap 22 p 332 M II cap 22 p 344 149
WWW II Kap 22 p 326-327 M II cap 22 p 339 150
WWW II Kap 22 p 327-328 M II cap 22 p 340 151
WWW II Kap 22 p 334 M II cap 22 p 345-346 (grifos do autor)
- 172 -
enquanto condiccedilatildeo transcendental do mundo empiacuterico o intelecto produz um conhecimento
que passa ao largo do que as coisas satildeo em si mesmas tratando apenas de relaccedilotildees entre
objetos Ele natildeo adentra o interior do mundo a sua essecircncia que existe independentemente
dele mais ainda antes e depois dele152
Nessa perspectiva o conhecimento eacute anterior ao
mundo como representaccedilatildeo De outro lado o conhecimento pressupotildee a existecircncia do mundo
empiacuterico na medida em que eacute funccedilatildeo fisioloacutegica de um oacutergatildeo material que surge tardiamente
na natureza Nessa perspectiva eacute posterior e dependente de uma gradaccedilatildeo de objetivaccedilotildees que
o tornam necessaacuterio como aprimoramento dos meios de satisfaccedilatildeo da Vontade Nesse sentido
afirma Schopenhauer
[] o intelecto soacute nos eacute conhecido a partir da natureza animal portanto
como um princiacutepio completamente secundaacuterio e subordinado no mundo um
produto de origem tardia assim ele natildeo pode jamais ser ter sido a condiccedilatildeo
da existecircncia do mundo nem um mundus intellegibilis (mundo inteligiacutevel)
pode preceder um mundus sensibilis (mundo sensiacutevel) isso porque aquele
somente obteacutem sua mateacuteria deste Natildeo foi um intelecto que produziu a
natureza mas a natureza que produziu o intelecto153
35 ndash Discoacuterdia da Vontade consigo mesma e teleologia
A identidade da Vontade em tudo o que existe natildeo se traduz em
identidade das Ideias em que ela se objetiva Os graus em que os fenocircmenos se objetivam natildeo
podem ser reduzidos uns aos outros isto eacute natildeo se pode remeter umas agraves outras as forccedilas
naturais distintas entre si tampouco misturar espeacutecies anaacutelogas de animais as mais perfeitas
natildeo satildeo variedades surgidas por acaso das mais imperfeitas154
Na concepccedilatildeo de
Schopenhauer os graus mais proeminentes de objetivaccedilatildeo da Vontade satildeo Ideias superiores
surgidas como vencedoras na disputa que travam entre si por mateacuteria No reino inorgacircnico
por exemplo os niacuteveis inferiores de objetivaccedilatildeo disputariam a mateacuteria por meio da
152
WWW II Kap 22 p 334 M II cap 22 p 346 153
WN p 360 VN p 82-83 154
WWW I zweites Buch sect27 p 214-215 M I livro II sect27 p 208
- 173 -
causalidade e daiacute surgiria o fenocircmeno de uma Ideia superior que dominaria as preexistentes
Gardiner considera em relaccedilatildeo a esse ponto que haacute uma incompatibilidade entre a concepccedilatildeo
schopenhaueriana de que as Ideias ou forccedilas naturais estatildeo fora do tempo e do espaccedilo como
expusemos anteriormente e a luta entre elas aqui exposta Para esse autor
[] eacute difiacutecil natildeo considerar sua teoria das forccedilas concebidas como existentes
ldquofora do espaccedilo e do tempordquo mas ao mesmo tempo lutando competindo
em realidade entre si para encontrar expressatildeo no reino da manifestaccedilatildeo
espaccedilo-temporal como uma fantasia animista que reflete uma ideia
basicamente confusa das relaccedilotildees que existem entre as terminologias
cientiacuteficas e os esquemas conceituais por um lado e o pensamento e
linguagem cotidianos por outro []155
De qualquer modo Schopenhauer sustenta que desse embate surgem
Ideias novas e superiores agraves demais Num processo que ele denomina assimilaccedilatildeo dominante
(uumlberwaumlltigende Assimilation) a Ideia vitoriosa abrangeria em si todas as que foram
dominadas e expressaria o mesmo esforccedilo das inferiores poreacutem num grau mais vigoroso156
A ideia vencedora seria um anaacutelogo mais perfeito a objetivaccedilatildeo de uma espeacutecie nova
diferente e mais aprimorada Segundo o filoacutesofo esse processo se deu ldquo[] originalmente
por generatio aequivoca em seguida pela assimilaccedilatildeo do germe disponiacutevel seiva orgacircnica
planta animal homemrdquo157
Por se tratar da conquista de Ideias inferiores por outras
superiores os fenocircmenos do mundo orgacircnico natildeo poderatildeo simplesmente ser reduzidos aos do
mundo inorgacircnico isto eacute as forccedilas vitais agraves leis naturais universais Os seres orgacircnicos seriam
fenocircmenos de uma Ideia mais distinta e natildeo fruto de combinaccedilotildees ou interaccedilotildees fortuitas de
forccedilas quiacutemicas ou fiacutesicas Nas palavras de Schopenhauer ldquo[] pois a Vontade una que se
objetiva em todas as Ideias na medida em que se esforccedila pela mais alta objetivaccedilatildeo possiacutevel
abandona os niacuteveis inferiores do seu fenocircmeno depois de um conflito entre eles para
aparecer em um mais elevado e tanto mais poderosordquo158
Com relaccedilatildeo a esse aspecto surge uma das divergecircncias de
Schopenhauer em relaccedilatildeo a Lamarck Para o filoacutesofo ao julgar que a vida pudesse ser
explicada pelo calor e a eletricidade Lamarck estaria pressupondo que o organismo fosse
resultado de forccedilas fiacutesicas e quiacutemicas159
Se assim fosse os eventos fiacutesicos acidentais
explicariam tudo exaustivamente sem que se pudesse relacionar nada agrave essecircncia das coisas
155
GARDINER op cit p 204 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 156
WWW I zweites Buch sect27 p 216 M I livro II sect27 p 210 157
WWW I zweites Buch sect27 p 216 M I livro II sect27 p 209 158
WWW I zweites Buch sect27 p 216 M I livro II sect27 p 210 (grifos do autor) 159
WWW I zweites Buch sect27 p 211 M I livro II sect27 p 205
- 174 -
e diz Schopenhauer ldquo[] ao fim um caacutelculo solucionaria o enigma do mundordquo160
Poreacutem no
entender do filoacutesofo um processo como esse soacute poderia dar surgimento a seres sem
significaccedilatildeo aleatoriamente formados tal como as nuvens compotildeem figuras ou como se
formam as estalactites No fim das contas equivaleria a degradar a forma substantialis nome
que Aristoacuteteles teria dado a algo equivalente aos graus de objetivaccedilatildeo da Vontade em forma
accidentalis161
Segundo Schopenhauer os eventos fiacutesicos natildeo satildeo aleatoacuterios e indicam
uma ordenaccedilatildeo de procedimentos na qual as Ideias dominadas subsistem nas vencedoras em
funccedilatildeo de resistirem e lutarem por sua proacutepria exteriorizaccedilatildeo162
Como ele explica ldquo[] esse
processo soacute eacute compreensiacutevel pela identidade da Vontade que se manifesta em todas as Ideias e
pelo seu esforccedilo por uma objetivaccedilatildeo cada vez mais elevadardquo163
No caso do organismo
humano por exemplo a tendecircncia de um braccedilo levantado a baixar em funccedilatildeo da gravidade
evidenciaria a luta do fenocircmeno de uma Ideia mais elevada contra as forccedilas quiacutemicas e
fiacutesicas Essa mesma luta se poderia notar tambeacutem nos diversos pequenos incocircmodos que
sempre sente a parte vegetativa do nosso corpo e que seriam devidos agrave resistecircncia das Ideias
inferiores das leis fiacutesicas e quiacutemicas com relaccedilatildeo agrave Ideia superior do organismo164
Ao fim de
tudo poreacutem a vitoacuteria seria das forccedilas naturais universais ldquoPor issordquo escreve Schopenhauer
em geral o fardo da vida fiacutesica a necessidade do sono e por fim da morte
pela qual finalmente por circunstacircncias favoraacuteveis aquelas forccedilas naturais
subjugadas recuperam novamente a mateacuteria arrancada pelo organismo
cansado jaacute pela vitoacuteria reiterada chegando agrave apresentaccedilatildeo de sua essecircncia
sem impedimentos165
A discoacuterdia e a luta portanto satildeo onipresentes na natureza e fazem parte
da essecircncia da Vontade melhor dizendo a natureza consiste precisamente apenas nesses
conflitos166
No mundo animal a discoacuterdia eacute muito niacutetida na medida em que a sobrevivecircncia
de uns depende da supressatildeo de outros No homem por fim a rivalidade chegaria ao ponto
maacuteximo de clareza e terror ou como afirma o filoacutesofo ldquo[] a Vontade de viver se consome a
si mesma e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimento ateacute chegar por fim no gecircnero
160
WWW I zweites Buch sect27 p 211 M I livro II sect27 p 205 161
WWW I zweites Buch sect27 p 212-213 M I livro II sect27 p 206 162
WWW I zweites Buch sect27 p 215 M I livro II sect27 p 208-209 163
WWW I zweites Buch sect27 p 215 M I livro II sect27 p 209 164
WWW I zweites Buch sect27 p 217 M I livro II sect27 p 210 165
WWW I zweites Buch sect27 p 217 M I livro II sect27 p 210 166
WWW I zweites Buch sect27 p 218 M I livro II sect27 p 211 O filoacutesofo apresenta bastantes e interessantes
exemplos dessa luta universal na natureza que no entanto natildeo temos espaccedilo para detalhar Cf WWW I zweites
Buch sect27 p 208-211 M I livro II sect27 p 211-214
- 175 -
humano que por dominar todos os outros vecirc a natureza como produto para seu uso []rdquo167
Na interpretaccedilatildeo de Cacciola essa divisatildeo interna da Vontade eacute responsaacutevel pelo caraacuteter de
imanecircncia dela pois representa um impulso interno aos fenocircmenos168
Segundo a autora uma
vez que a Vontade eacute una a discoacuterdia interna natildeo pode pertencer a ela enquanto coisa em si
pois isso remeteria a uma divisatildeo que natildeo poderia ser aceita Da perspectiva do fenocircmeno
poreacutem a Vontade eacute fragmentada em muacuteltiplos indiviacuteduos entre os quais os combates satildeo
constantes ldquoErdquo ela escreve
no seu caraacuteter de unicidade natildeo poderia manifestar-se diretamente em forccedilas
e indiviacuteduos que lutam Assim de uma metafiacutesica transcendente monista
passa-se para uma metafiacutesica imanente que adota o ponto de vista da
polaridade exigiacutevel para sua manifestaccedilatildeo ao niacutevel fenomecircnico169
Para Schopenhauer a unidade da Vontade natildeo eacute prejudicada por essa luta
intestina assim como natildeo o eacute em virtude da gradaccedilatildeo das Ideias ou da multidatildeo de indiviacuteduos
existentes Ele considera que a gradaccedilatildeo a multiplicidade e a luta referem-se apenas agrave
objetivaccedilatildeo que expressa mediatamente a essecircncia da Vontade na representaccedilatildeo170
Aleacutem
dessa perspectiva filoacutesofo afirma que a unidade da Vontade tambeacutem pode ser pensada por
outro acircngulo a saber pela dependecircncia que as Ideias superiores mantecircm com relaccedilatildeo agraves
inferiores Com efeito para que possam expressar a Vontade em graus elevados elas
precisam assimilar os graus mais elementares A Ideia de homem por exemplo a mais
aprimorada dentre todas natildeo seria suficiente para expressar sozinha a essecircncia da Vontade e
para que pudesse surgir teria precisado se seguir a uma sequecircncia de graus inferiores
representados por animais plantas e objetos inanimados171
Nas palavras do filoacutesofo ldquo[]
todos eles se complementam para a perfeita objetivaccedilatildeo da Vontade satildeo tatildeo pressupostos na
Ideia de homem quanto as flores das aacutervores pressupotildeem as folhas ramos tronco e raiz
formam uma piracircmide cujo aacutepice eacute o homemrdquo172
Desse modo para que a Vontade se objetive adequadamente suas
gradaccedilotildees devem apresentar um tipo de necessidade interior representada pelo uso que os
seres da natureza fazem uns dos outros em funccedilatildeo de sua preservaccedilatildeo Essa necessidade
interior se manifesta exteriormente diz Schopenhauer no fato de que
167
WWW I zweites Buch sect27 p 218 M I livro II sect27 p 211 168
CACCIOLA M L A questatildeo do finalismo na filosofia de Schopenhauer Discurso ndash Revista do
Departamento de Filosofia da USP nordm 20 1993 79-98 169
Ibidem p 82 170
WWW I zweites Buch sect28 p 215 M I livro II sect 28 p 218 171
WWW I zweites Buch sect28 p 216 M I livro II sect 28 p 218-219 172
WWW I zweites Buch sect28 p 216 M I livro II sect 28 p 219
- 176 -
[] o homem precisa dos animais para sua conservaccedilatildeo estes precisam uns
dos outros conforme seus graus em seguida tambeacutem das plantas que por sua
vez precisam do solo da aacutegua dos elementos quiacutemicos e sua mistura dos
planetas do sol da rotaccedilatildeo e da translaccedilatildeo em torno dele da inclinaccedilatildeo da
ecliacuteptica e assim por diante173
A unidade da Vontade esclareceria uma aparente teleologia da natureza
anunciada pela analogia e a semelhanccedila entre os seres do mundo orgacircnico Esclareceria
tambeacutem a harmonia e a conexatildeo entre todos os pontos e partes do mundo mesmo distantes no
tempo e no espaccedilo bem como a importacircncia da gradaccedilatildeo das objetivaccedilotildees Com efeito
segundo Schopenhauer embora a Vontade seja una os graus de objetivaccedilatildeo natildeo podem se
manifestar de um salto ou de uma soacute vez e eacute que isso explica a essecircncia e a finalidade da
natureza No entender do filoacutesofo
Isso tudo indica um princiacutepio independente da teleologia que entretanto eacute o
fundamento com o qual ela constroacutei ou o material dado previamente para
suas obras e eacute exatamente aquilo que Geoffroy de Saint-Hilaire apresentou
como ldquoelemento anatocircmicordquo Eacute a uniteacute de plan o protoacutetipo fundamental o
mundo animal mais elevado como se fosse o tom voluntariamente
escolhido com o qual aqui a natureza toca174
Tomado em si mesmo cada organismo possuiria uma finalidade interna
voltada para a conservaccedilatildeo do indiviacuteduo e sua espeacutecie expressa na coordenaccedilatildeo e accedilatildeo
integrada entre suas partes A interaccedilatildeo que se pode notar entre os reinos inorgacircnico e
orgacircnico evidenciaria tambeacutem uma finalidade nesse caso externa direcionada para a
conservaccedilatildeo da natureza orgacircnica como um todo ou da vida175
Como dissemos a aparente
teleologia da natureza eacute devida agrave unidade da Vontade que se manifesta completamente em
cada um dos seus fenocircmenos Isso significa que cada uma das Ideias eacute um ato singular
simples e distinto no qual a Vontade exprime sua essecircncia em um niacutevel maior ou menor
enquanto cada indiviacuteduo eacute um desses atos no tempo e no espaccedilo176
Assim a maior ou menor
perfeiccedilatildeo de cada Ideia determinaria o modo de sua objetivaccedilatildeo nos mais imperfeitos a Ideia
seria uma e a mesma em todos os fenocircmenos que a expressam enquanto nos mais perfeitos
seriam necessaacuterios diversos desenvolvimentos no tempo para completar a expressatildeo da sua
essecircncia
173
WWW I zweites Buch sect28 p 217 M I livro II sect 28 p 219 174
WWW II Kap 26 p 388 M II cap 26 p 399-400 (grifos do autor) 175
WWW I zweites Buch sect28 p 217 M I livro II sect28 p 220 176
WWW I zweites Buch sect28 p 218 M I livro II sect28 p 220
- 177 -
De acordo com isso uma forccedila universal da natureza se expressaria de
forma simples num ato uacutenico e idecircntico em todos os fenocircmenos Jaacute a planta natildeo manifestaria
a Ideia correspondente de uma soacute vez e de modo simples mas precisaria do desenvolvimento
sucessivo de seus oacutergatildeos no tempo Schopenhauer oferece uma imagem ilustrativa desse
processo por meio da repeticcedilatildeo que uma fibra inicial realiza de si mesma uma aacutervore se
forma como um complexo que manifesta uma Ideia una A Vontade seria verificada no todo e
em cada uma das partes como as folhas ou galhos de modo que cada um desses fenocircmenos
particulares da planta seria a exteriorizaccedilatildeo de um ldquoagregado sistemaacuteticordquo177
O animal
manifestaria sua Ideia pelo desenvolvimento da sua figura no tempo finalizando o processo
com as accedilotildees que expressariam seu caraacuteter empiacuterico o mesmo de sua espeacutecie Por fim o ser
humano objetivaria a Ideia que lhe corresponde por meio do seu caraacuteter empiacuterico
desenvolvido tambeacutem no tempo e em atos singulares ancorados no caraacuteter inteligiacutevel
ldquoAssimrdquo explica Schopenhauer ldquocomo a forma humana em geral corresponde agrave vontade
humana em geral a vontade individual modificada o caraacuteter do indiviacuteduo corresponde agrave
formaccedilatildeo corporal individual que eacute absolutamente e em todas as partes carateriacutestica e
expressivardquo178
Por conseguinte cada forccedila natural cada espeacutecie vegetal ou espeacutecie
animal expressa sua Ideia respectiva ou seja eacute fenocircmeno de um caraacuteter inteligiacutevel ou ato
indiviso da Vontade dado fora do tempo No caso da natureza inorgacircnica as exteriorizaccedilotildees
da Ideia satildeo sempre iguais e dadas de modo uacutenico e o caraacuteter empiacuterico coincide com o
inteligiacutevel Sem deixar de ser una a Ideia seria expressa no organismo por atos sucessivos
que constituiriam suas partes e o caraacuteter inteligiacutevel seria conhecido pela soma das
exteriorizaccedilotildees do caraacuteter empiacuterico Nesse caso a harmonia e encadeamento das partes do
corpo orgacircnico mostraratildeo a unidade da Ideia e ldquoPor issordquo escreve Schopenhauer
ldquoentendemos essas diferentes partes e funccedilotildees do organismo como reciprocamente meios e
fins umas das outras e o organismo como o fim de todas elasrdquo179
Natildeo obstante o filoacutesofo
ressalta que o desdobramento da Ideia em atos constitutivos do organismo assim como a
relaccedilatildeo entre as partes e funccedilotildees dele guiada pela causalidade natildeo podem ser referidos agrave
Vontade como coisa em si Esse seria apenas seu modo de manifestaccedilatildeo sua objetidade e
tanto a legalidade dos fenocircmenos inorgacircnicos quanto a finalidade dos orgacircnicos seriam
produtos do intelecto Conforme a explicaccedilatildeo de Cacciola
177
WWW I zweites Buch sect26 p 190 M I livro II sect26 p 194 178
WWW I zweites Buch sect20 p 162 M I livro II sect20 p 167 179
WWW I zweites Buch sect28 p 221 M I livro II sect 28 p 223
- 178 -
Eacute o caraacuteter inteligiacutevel como ato uacutenico e livre de manifestaccedilatildeo da Vontade
que permite compreender o acordo e a interaccedilatildeo das partes do organismo e a
harmonia da natureza Isto significa em resumo a aboliccedilatildeo da
temporalidade para que se exiba o caraacuteter aparente da regularidade e
intencionalidade do mundo dos fenocircmenos ligado a uma multiplicidade
tambeacutem aparente Excluindo-se a referecircncia ao tempo ressurgem sob a
aparecircncia a unidade o em si o caraacuteter inteligiacutevel A remissatildeo a uma
Vontade sem fim natildeo pode mesmo ser fundamento de uma finalidade em-si
das coisas do mundo mas apenas esclarece que elas parecem ser assim por
se referirem enquanto muacuteltiplas a uma unidade A teleologia natildeo passa de
uma harmonia da natureza que evoca a unidade da Vontade ou o ponto de
vista da Vontade una180
A finalidade externa isto eacute a harmonia entre os fenocircmenos da natureza
empiacuterica como um todo expressaria a unidade da Vontade do ponto de vista do conjunto do
mundo como representaccedilatildeo Nas palavras de Schopenhauer ela eacute a ldquo[] eacute objetidade da
Vontade una e indivisa a Ideia que se relaciona com todas as demais Ideias como a harmonia
com as vozes isoladas daiacute que aquela unidade da Vontade tenha de se mostrar tambeacutem na
concordacircncia de todos os fenocircmenos entre sirdquo181
Seria entatildeo uma adaptaccedilatildeo e adequaccedilatildeo
muacutetua entre todos os fenocircmenos um consensus naturae natildeo dado poreacutem de um ponto de
vista temporal uma vez que a Ideia estaacute fora do tempo182
Para compreender esse ponto
segundo o filoacutesofo o correto eacute pensar retrospectivamente observando o modo como cada
espeacutecie se adapta a condiccedilotildees preacutevias assim como essas circunstacircncias preacutevias adiantam os
seres vindouros No texto ldquoSchopenhauer lecteur de Lamarck le probleme des causes
finalesrdquo Goldschmidt afirma que a noccedilatildeo de adaptaccedilatildeo ao meio implicada no consensus
naturae aproxima o filoacutesofo das ideias de Lamarck183
Para esse autor Schopenhauer natildeo
citaria Lamarck nominalmente por discordar do modo como este explica a adaptaccedilatildeo a saber
confundindo o fenocircmeno com a coisa em si Por desconhecer a idealidade do tempo Lamarck
natildeo teria percebido que as transformaccedilotildees nas espeacutecies animais se deviam a algo que estaacute para
aleacutem de todas as relaccedilotildees temporais184
Em funccedilatildeo disso teria concebido a constituiccedilatildeo dos
corpos dos animais como algo formado pouco a pouco no decurso do tempo
Na sua argumentaccedilatildeo sobre a teleologia Schopenhauer natildeo daacute espaccedilo agrave
pressuposiccedilatildeo de que a formaccedilatildeo dos organismos seja guiada por um intelecto externo ao
mundo Como escreve Goldschmidt ldquoO finalismo segundo Schopenhauer eacute o mesmo que
180
CACCIOLA M L A questatildeo do finalismo na filosofia de Schopenhauer Discurso ndash Revista do
Departamento de Filosofia da USP nordm 20 1993 p 88 181
WWW I zweites Buch sect28 p 222 M I livro II sect 28 p 224 182
WWW I zweites Buch sect28 p 223 M I livro II sect 28 p 225 183
GOLDSCHMIDT V Eacutecrits Eacutetudes de Philosophie Moderne Tome II Paris VRIN 1984 p 215 184
Ibidem p 215-216
- 179 -
havia sido definido e aplicado por Aristoacuteteles isto eacute uma teleologia sem teologiardquo185
Cacciola explica de modo interessante como a argumentaccedilatildeo de Schopenhauer exclui a
teologia De acordo com ela a concepccedilatildeo do filoacutesofo acerca das causas finais ao contraacuterio do
que poderia parecer natildeo reforccedila a hipoacutetese de uma inteligecircncia ordenadora Na verdade a
convicccedilatildeo da inexistecircncia de qualquer finalidade intriacutenseca eacute que exigiria um desiacutegnio
exterior enquanto a admissatildeo de que cada organismo eacute sua proacutepria vontade legitimaria a
noccedilatildeo de finalidade sem se apelar para algo externo186
Na medida em que cada parte do
organismo existe para sua preservaccedilatildeo diz ela ldquoTudo nele tem de ser conforme a um fim O
que garante a autonomia do organismo em relaccedilatildeo a qualquer interferecircncia externa tanto de
um entendimento quanto de uma vontade eacute o rigoroso finalismo natildeo-antropomoacuterfico de sua
constituiccedilatildeordquo187
Dessa forma a anterioridade no tempo seria relativa aos fenocircmenos das
Ideias mas natildeo a elas mesmas Natildeo se pode dizer que haja Ideias anteriores ou posteriores
pois os fenocircmenos mais elevados (Ideias novas) adaptam-se ao seu meio (Ideias preacutevias)
tanto quanto este se adapta a eles e todos possuem entatildeo os mesmos direitos188
Para
Schopenhauer Lamarck erra ao introduzir um elemento temporal na ideia do consensus
naturae a saber a concepccedilatildeo de que os oacutergatildeos animais satildeo formados paulatinamente no
decurso do tempo Se assim fosse diz o filoacutesofo na busca de adaptaccedilatildeo entre o ambiente e
seus proacuteprios instrumentos e atributos todas as espeacutecies teriam de estar extintas189
No seu
modo de ver uma interpretaccedilatildeo correta tem de considerar que o tempo se refere apenas ao
fenocircmeno ou seja a adaptaccedilatildeo das espeacutecies tem de ser colocada na conta da objetivaccedilatildeo da
Vontade natildeo dela em si mesma Assim ao contraacuterio do que pensava Lamarck os oacutergatildeos ou
instrumentos das espeacutecies animais natildeo seriam utilizados em funccedilatildeo de sua existecircncia preacutevia
mas a vontade de viver de determinado modo eacute que levaria agrave constituiccedilatildeo de oacutergatildeos e
instrumentos especiacuteficos Conforme Goldschmindt Schopenhauer avaliou que Lamarck natildeo
teria podido supor que a vontade do animal era a coisa em si e por isso o inseriu no grupo dos
que julgavam o intelecto como precedente ldquoNesse casordquo afirma Goldschmidt
[] o entendimento precederia a vontade eacute porque teria compreendido o uso
que poderia fazer de sua organizaccedilatildeo que o animal teria escolhido usaacute-lo
185
Ibidem p 219 186
CACCIOLA M L A questatildeo do finalismo na filosofia de Schopenhauer Discurso ndash Revista do
Departamento de Filosofia da USP nordm 20 1993 p 90 187
Ibidem loc cit 188
WWW I zweites Buch sect28 p 224 M I livro II sect28 p 226 189
WN p 365 VN p 88
- 180 -
Mas de fato sabemos que a vontade eacute que eacute primeira Deve-se entatildeo
preferir o outro termo da alternativa eacute porque o animal desejaria adotar tal
modo de vida que sua organizaccedilatildeo eacute adaptada a ele []190
Portanto assim como os animais agem por instinto sem conhecimento
algum mas parecem estar seguindo um conceito tambeacutem a natureza como um todo o faz isto
eacute aparenta seguir uma finalidade que na verdade natildeo segue
Em siacutentese na concepccedilatildeo de Schopenhauer a teleologia da natureza natildeo
foi produzida por um intelecto apenas evidencia ldquo[] o fenocircmeno da unidade de uma
Vontade que concorda consigo mesmardquo191
No capiacutetulo 26 de O MundoII ele argumenta
que embora o ser humano soacute possa criar algo que possua finalidade utilizando um conceito de
fim isso natildeo autoriza a concluir que o mesmo ocorra na natureza192
Nas palavras dele ldquoEla
realiza sem ponderaccedilatildeo e sem conceito de fim o que parece tatildeo intencional e tatildeo ponderado
porque o faz sem representaccedilatildeo cuja origem eacute totalmente secundaacuteriardquo193
Sobre esse ponto
Cacciola explica que Schopenhauer assimilou a liccedilatildeo kantiana segundo a qual o intelecto soacute
consegue compreender a natureza dos processos orgacircnicos comparando-os com as produccedilotildees
humanas que levam em conta uma finalidade preacutevia O conceito de causaccedilatildeo linear e
mecacircnica eacute inuacutetil no esclarecimento da natureza orgacircnica e ela afirma ldquoEacute diante disso que a
analogia com as obras humanas torna-se eficaz para servir de fio condutor para o estudo dos
seres organizados natildeo podendo no entanto explicar objetivamente a origem e a existecircncia de
tais seres jaacute que a necessidade de compreendecirc-los eacute somente subjetivardquo194
Como resultado a ligaccedilatildeo dos seres naturais com o conceito de fim natildeo
seria procedente da proacutepria coisa e sim realizada pelo intelecto que acrescentaria os fins aos
seres orgacircnicos do mesmo modo como cria a regularidade das figuras geomeacutetricas Entatildeo diz
Schopenhauer ldquo[] em certo sentido admira-se com sua proacutepria obrardquo195
Por essas razotildees
do mesmo modo como as causas eficientes se mostram um bom fio condutor para o estudo da
natureza inorgacircnica a finalidade tambeacutem se configura um bom fio condutor para a
investigaccedilatildeo da natureza orgacircnica Natildeo obstante natildeo se pode por isso dizer que a finalidade
seja constitutiva dos seres naturais nem que explique a existecircncia deles Ela pode ser tomada
190
GOLDSCHMIDT V Eacutecrits Eacutetudes de Philosophie Moderne Tome II Paris VRIN 1984 p 217 (traduccedilatildeo
nossa) 191
WWW I zweites Buch sect28 p 226 M I livro II sect28 p 227 (grifos do autor) 192
WWW II Kap 26 p 383-384 M II cap 26 p 395-396 193
WWW II Kap 26 p 384 M II cap 26 p 396 194
CACCIOLA M L A questatildeo do finalismo na filosofia de Schopenhauer Discurso ndash Revista do
Departamento de Filosofia da USP nordm 20 1993 p 83 195
WWW II Kap 26 p 385 M II cap 26 p 396
- 181 -
apenas como regulativa pois embora os fins e as causas sejam supostos pelo intelecto como
necessaacuterios natildeo podem ser atribuiacutedos agraves coisas em si mesmas
Na interpretaccedilatildeo de Victor Goldschmidt quando a noccedilatildeo de finalidade eacute
indicada por Schopenhauer em O MundoII como fio condutor das ciecircncias do organismo
adquire com isso o estatuto de um princiacutepio constitutivo e natildeo meramente regulador196
Caso
natildeo fosse assim os fenocircmenos orgacircnicos teriam de ser reduzidos agraves leis fiacutesicas baacutesicas algo
que o filoacutesofo natildeo aprovaria Como esse autor escreve
A finalidade eacute o uacutenico conceito adequado que nos permite compreender o
mundo orgacircnico Sem ela isto eacute se se reduzisse a ciecircncia natural agrave simples
causalidade o mundo orgacircnico natildeo apenas nos permaneceria impenetraacutevel
como tambeacutem seria entregue agraves explicaccedilotildees reducionistas e reconduzido agraves
forccedilas gerais que a fiacutesica toma em consideraccedilatildeo []197
Natildeo obstante Schopenhauer argumentaria cuidadosamente acerca da
finalidade para que natildeo fosse tomada como a escolha intencional de um alvo Para
Goldschmidt o filoacutesofo retorna ao ensinamento de Aristoacuteteles que sustenta a ideia de causa
final sem remetecirc-la a uma providecircncia divina e afasta qualquer antropomorfismo da sua
noccedilatildeo de finalidade com a identificaccedilatildeo de fins e meios na atividade da natureza198
Na visatildeo de Schopenhauer os objetos da arte humana possuem realmente
uma analogia com as criaccedilotildees da natureza mas a analogia natildeo seria exata No caso da arte a
vontade para a realizaccedilatildeo da obra eacute distinta da proacutepria obra e o material e a representaccedilatildeo satildeo
requeridos anteriormente agrave existecircncia dela199
Portanto a finalidade tem de preceder agrave
produccedilatildeo e orientaacute-la Nos produtos da natureza ao contraacuterio natildeo existiria nem seria
necessaacuteria nenhuma representaccedilatildeo tampouco haveria separaccedilatildeo entre a vontade a obra e a
mateacuteria com que eacute feita Posto que o processo de criaccedilatildeo na arte difere do procedimento da
natureza natildeo pode servir para explicaacute-la ldquoPoisrdquo escreve o filoacutesofo
aqui o mestre a obra e o material satildeo um e o mesmo Por isso todo
organismo eacute uma obra-prima ostensivamente perfeita Aqui a Vontade natildeo
teve primeiro a intenccedilatildeo conheceu depois a finalidade entatildeo adaptou os
meios a ela e venceu o material mas seu querer eacute imediatamente tambeacutem a
finalidade e a consumaccedilatildeo portanto ela natildeo precisou antes de nenhum meio
estranho para dominar Aqui foram um e o mesmo o querer o fazer e o
resultar Por conseguinte o organismo se apresenta como uma maravilha e
196
GOLDSCHMIDT V Eacutecrits Eacutetudes de Philosophie Moderne Tome II Paris VRIN 1984 p 214 197
Ibidem p 214-215 (traduccedilatildeo nossa) 198
Ibidem p 216 199
WN p 378 VN p 102
- 182 -
natildeo se pode comparaacute-lo com nenhuma obra humana projetada pela lacircmpada
do conhecimento200
36 ndash Fundamentos do mundo como Vontade
Assim como a teoria do conhecimento a metafiacutesica schopenhaueriana
nasce com diversos requisitos a cumprir O filoacutesofo estava convencido de que a coisa em si
natildeo deveria ser descartada do seu sistema mas a justificaccedilatildeo da necessidade dela sua
deduccedilatildeo e sua conceituaccedilatildeo natildeo poderiam distanciaacute-lo dos fundamentos do idealismo O
principal aspecto deste uacuteltimo a ser preservado segundo pensamos eacute a interdiccedilatildeo do acesso agrave
transcendecircncia que parece ter orientado toda a estruturaccedilatildeo da metafiacutesica da Vontade O
estabelecimento de um ponto de apoio firme para os fenocircmenos era imprescindiacutevel para
Schopenhauer assim como foi para Jacobi mas teria de ser encontrado sem se recorrer a
elementos transcendentes E na nossa interpretaccedilatildeo a uacutenica maneira de satisfazer essa
exigecircncia era pelo estabelecimento de um lastro metafiacutesico imanente ao mundo como
representaccedilatildeo acessando-se a coisa em si com um movimento perpendicular para dentro
Esse movimento perpendicular por seu turno teve de ser
milimetricamente pensado porque tambeacutem teria de atender a quesitos muito exigentes Por
um lado teria de escapar ao ciacuterculo do conhecimento meramente empiacuterico caso natildeo quisesse
ser apenas o produto de mais um ldquoesquilo na rodardquo Por outro natildeo poderia apelar para
entidades espirituais miacutesticas ou de qualquer esfera separada do mundo concreto da
experiecircncia Por isso Schopenhauer tentou formular um modo especial de exame da
representaccedilatildeo que sem ir aleacutem dela permitisse interpretar a realidade conhecer diretamente
seu nuacutecleo e desvendar seus hieroacuteglifos Assim para compreender o centro das coisas aquilo
sempre que resta desconhecido pelo estudo empiacuterico do mundo ele propotildee uma investigaccedilatildeo
que parte do interior de noacutes mesmos e demostra nossa identidade com o restante do mundo
200
WN p 377 VN p 101
- 183 -
isto eacute do microcosmo com o macrocosmo O mundo como Vontade eacute entatildeo deduzido do
querer individual como de seu alicerce embora permaneccedila ambiacuteguo o conhecimento que cada
um possui dele assim como a relaccedilatildeo desse conhecimento com a representaccedilatildeo De um lado
em algumas obras schopenhauerianas o conhecimento do querer individual aparece como
obscuro em outras como o mais claro dentre todos De outro eacute difiacutecil precisar o estatuto
desse conhecimento que deve acessar a coisa em si mas natildeo pode fazecirc-lo diretamente posto
que preserva a forma a priori do tempo
A identificaccedilatildeo do corpo com a vontade individual e o argumento da
analogia satildeo os passos que Schopenhauer daacute para demonstrar a Vontade como a base de todo
o existente Segundo pensamos o conceito de objetidade foi o que permitiu que sem o
recurso agrave transcendecircncia a Vontade fosse identificada com o nuacutecleo metafisico do indiviacuteduo
Na medida em que corpo e coisa em si satildeo descritos como um e o mesmo natildeo resta espaccedilo
para causaccedilatildeo de nenhuma espeacutecie isto eacute nem para a deduccedilatildeo de uma inteligecircncia criadora
externa ao mundo nem para a busca de uma relaccedilatildeo causal entre vontade individual e corpo
individual O argumento a analogia por sua vez permitiu a ampliaccedilatildeo do escopo daquela
demonstraccedilatildeo e apontou para a identidade de todos os objetos do universo empiacuterico Entatildeo
vontade individual e corpo individual revelaram-se o mesmo e o mundo se identificou com a
Vontade que se manifesta inteira em cada representaccedilatildeo e no conjunto da experiecircncia
A unidade da Vontade e a identidade do mundo como um todo coeso
tornam necessaacuterio detalhar a origem dos infinitos indiviacuteduos e objetos No entanto o
desmembramento do qual surgem os muacuteltiplos fenocircmenos natildeo pode atingir a Vontade pois a
coisa em si natildeo participa das formas da representaccedilatildeo e permanece una e indivisa O problema
se torna entatildeo explicar o modo como o tempo pode introduzir modificaccedilotildees nas objetivaccedilotildees
sem anular unidade da coisa em si Nesse sentido as Ideias foram definidas como as formas
eternas e imutaacuteveis das coisas responsaacuteveis pela intermediaccedilatildeo entre e objetos singulares e a
Vontade una O filoacutesofo defende entatildeo que cada Ideia eacute um grau de objetivaccedilatildeo da Vontade
um ato uacutenico desta que contudo tem seu desenvolvimento no tempo Os conceitos de caraacuteter
inteligiacutevel e caraacuteter empiacuterico foram imprescindiacuteveis para vincular o tempo somente ao lado do
mundo correspondente agrave representaccedilatildeo
Por todas essas razotildees a metafiacutesica schopenhaueriana natildeo poderia se
deter num idealismo radical Segundo pensamos eacute parte fundamental dela uma relaccedilatildeo
especial com o empiacuterico uma vez que seu ente metafiacutesico proacuteprio eacute imanente ao mundo ou
- 184 -
seja natildeo eacute um espiacuterito criador apartado e transcendente nem um sujeito transcendental
absoluto que o gerasse a partir de si mesmo A metafiacutesica tambeacutem natildeo pode ser baseada em
conceitos e abstraccedilotildees cujos resultados satildeo paacutelidos reflexos de intuiccedilotildees e Schopenhauer
insiste que natildeo se deve deslizar acima da experiecircncia ou partir de teologias Para ele a
metafiacutesica deve estar estreitamente ligada ao mundo de modo que a fisiologia e o
conhecimento empiacuterico em geral tecircm de dar sustentaccedilatildeo a ela como as realidades a que no
fim das contas estaacute relacionada Sua filosofia natildeo gostaria de pairar sobre o mundo natildeo
pretende ser um devaneio criado por uma cabeccedila de anjo alada
Por conseguinte o ponto de vista objetivo de consideraccedilatildeo eacute tatildeo
importante quanto o subjetivo os hieroacuteglifos a serem decifrados natildeo satildeo outros senatildeo aqueles
que o mundo daacute a conhecer empiricamente O nascimento e desenvolvimento de plantas e
animais a atuaccedilatildeo das leis naturais as condutas humanas nos mais variados acircmbitos da vida
tudo deve ser explicado pela metafiacutesica da Vontade O lado externo desta que natildeo eacute
causado mas idecircntico ao interno eacute seu caraacuteter de objeto sua objetidade cuja compreensatildeo e
descriccedilatildeo satildeo realizadas pelas ciecircncias naturais As caracteriacutesticas fiacutesicas e quiacutemicas dos
corpos orgacircnicos dos inorgacircnicos e do mundo natural como um todo satildeo exteriorizaccedilotildees da
Vontade e conhecer o corpo eacute conhececirc-la Daiacute que para o filoacutesofo haja elementos no acircmbito
fenomecircnico que sempre resistem a qualquer explicaccedilatildeo e que por isso mesmo indicam a coisa
em si na representaccedilatildeo Essa eacute inclusive a diferenccedila entre os conhecimentos empiacutericos e os
puros os quais podem ser explicados ateacute o limite enquanto aqueles natildeo De fato conteuacutedos
ligados apenas ao princiacutepio de razatildeo estatildeo a priori no intelecto podem ser desdobrados sem
quaisquer obstaacuteculos enquanto os conteuacutedos empiacutericos a posteriori natildeo satildeo completamente
cognosciacuteveis pois remetem a algo que natildeo participa das formas da representaccedilatildeo
Ao que nos parece as questotildees relativas agrave teleologia e agrave discoacuterdia
presentes na natureza se tornam complicadas porque tecircm de levar em conta esse aspecto
empiacuterico da filosofia schopenhaueriana As funccedilotildees e a materialidade de todas as partes dos
seres orgacircnicos adaptam-se e moldam-se mutuamente assim como o universo empiacuterico
tomado em seu conjunto adapta e conforma todos os seus objetos Trata-se de algo que
nenhuma consideraccedilatildeo objetiva do mundo poderia negligenciar Finalidade interna e
finalidade externa satildeo entatildeo reconhecidas por Schopenhauer na natureza mas dificilmente
podem ser acomodadas agrave parte transcendental de sua filosofia Eacute certo que ele afirma ser o
conceito de finalidade um mero fio condutor para a investigaccedilatildeo da natureza natildeo constitutivo
- 185 -
dela Assim como a regularidade das figuras geomeacutetricas a finalidade seria uma criaccedilatildeo do
intelecto Poreacutem se eacute inequiacutevoco que as caracteriacutesticas das figuras geomeacutetricas adveacutem do
princiacutepio de razatildeo do ser caberia perguntar de onde proveacutem a noccedilatildeo de finalidade
A discoacuterdia intriacutenseca agrave natureza tambeacutem natildeo pode ser ignorada por uma
filosofia que valoriza a investigaccedilatildeo empiacuterica Os fenocircmenos se alimentam dos proacuteprios
fenocircmenos dividem os mesmos espaccedilos e os mesmos tempos e o pessimismo
schopenhaueriano enfatiza que todos os indiviacuteduos satildeo simultaneamente algozes e viacutetimas
uns dos outros No entanto como explicar o porquecirc de a Vontade lutar contra si mesma de
querendo ferozmente se afirmar mortificar-se e aniquilar-se A saiacuteda eacute entatildeo acrescentar um
predicado que a joga contra si mesma a saber a autocontradiccedilatildeo Com isso entretanto
surgem outras questotildees como a de conciliar a autocontradiccedilatildeo com a unidade da Vontade
pela qual ela estaacute inteira e indivisa em cada ser animado e cada objeto inanimado O problema
aqui eacute que na medida em que todas e cada um das coisas existentes satildeo exteriorizaccedilotildees da
Vontade uacutenica a luta entre seus fenocircmenos eacute luta dela consigo mesma
Por fim na nossa interpretaccedilatildeo a importacircncia crucial dada por
Schopenhauer ao lado empiacuterico de sua filosofia daacute origem a impasses cada vez que tem de
ser aproximado do lado metafiacutesico O ideal e o real estatildeo em oposiccedilatildeo mas devem ser
conectados no tratamento dos problemas filosoacuteficos que exigem explicaccedilatildeo tanto
transcendental quanto metafiacutesica Esse eacute o caso por exemplo da antinomia da faculdade de
conhecimento e das outras trecircs questotildees que o filoacutesofo lista O intelecto eacute tanto fiacutesico quanto
metafiacutesico e as caracteriacutesticas que tem em uma perspectiva satildeo excluiacutedas ou deslocadas na
outra Enquanto fiacutesico sua origem deve estar ligada ao princiacutepio de razatildeo suficiente e
enquanto metafiacutesico sua origem deve estar ligada agrave Vontade De um lado tem um nascimento
no tempo no outro eacute atemporal de um lado ocupa lugar no espaccedilo de outro eacute inextenso de
um lado eacute material de outro imaterial A dificuldade eacute que o intelecto eacute tudo isso
simultaneamente e faz parte de um uacutenico mundo Cada vez que se investiga qualquer questatildeo
relacionada a ele sua origem por exemplo obtecircm-se respostas incompatiacuteveis A consideraccedilatildeo
de que satildeo dois lados dois pontos de vista diferentes de observaccedilatildeo segundo pensamos natildeo
atenua a situaccedilatildeo A natildeo ser que queiramos sustentar uma espeacutecie de esquizofrenia na qual
Vontade e representaccedilatildeo sejam eternamente paralelas
A questatildeo relativa a mecanicismo e finalismo segundo pensamos revela
uma estrutura semelhante Do ponto de vista metafiacutesico natildeo podemos falar em finalidade
- 186 -
pois a Vontade natildeo possui fim algum mas da perspectiva empiacuterica eacute difiacutecil sustentar que as
causas na natureza satildeo apenas de tipo mecacircnico O problema da liberdade por sua vez coloca
em contraste a determinaccedilatildeo inflexiacutevel dos eventos empiacutericos pelo princiacutepio de razatildeo entre
eles as accedilotildees humanas e a liberdade absoluta da Vontade metafiacutesica que irrompe na vontade
individual De modo semelhante a aparecircncia de intencionalidade no destino que se nota
considerando a vida concreta de um indiviacuteduo diverge do caraacuteter natildeo racional e da ausecircncia
de objetivos que foram sustentados no lado metafiacutesico da filosofia
- 187 -
Capiacutetulo 4 ndash Interpretaccedilotildees paradigmaacuteticas e anaacutelise pessoal
41 ndash Recepccedilatildeo da filosofia schopenhaueriana
Em 1965 Arthur Huumlbscher proferiu duas palestras sobre a posiccedilatildeo de
Schopenhauer no contexto da filosofia criacutetica uma na Sociedade Real Norueguesa de
Ciecircncias e outra na Universidade de Frankfurt Em 1966 as duas palestras foram reunidas e
desenvolvidas no texto ldquoSchopenhauer in der philosophischen Kritikrdquo publicado no Jahrbuch
der Schopenhauer-Gesellschaft daquele ano1 Nesse texto Huumlbscher aborda a trajetoacuteria do
pensamento schopenhaueriano desde o iniacutecio com as avaliaccedilotildees que Da quaacutedrupla raiz
recebeu jaacute na sua primeira ediccedilatildeo Segundo o relato desse autor as ideias de Schopenhauer
quase sempre foram mal compreendidas ou mal interpretadas e muitas vezes recebidas com
desdeacutem2 Todas as obras e todos os campos da sua filosofia receberam criacuteticas e avaliaccedilotildees
nas quais o tema da contradiccedilatildeo eacute constante Huumlbscher avanccedila ateacute seus contemporacircneos
apontando tambeacutem as influecircncias que o filoacutesofo exerceu sobre grandes pensadores
posteriores
Entre os primeiros leitores de Schopenhauer estiveram Schulze Georg
Michael Klein e um escritor anocircnimo os quais pouco depois da publicaccedilatildeo de Da quaacutedrupla
raiz ainda em 1814 teriam se debruccedilado sobre a dissertaccedilatildeo de modo criacutetico3 Em 1820
Johann F Herbart teria feito o mesmo baseando-se na primeira ediccedilatildeo da obra capital do
filoacutesofo Antes de Herbart em 1819 Friedrich Ast tambeacutem teria analisado O Mundo
identificando-se como A bem como um autor anocircnimo tendo ambos concordado
parcialmente com a obra schopenhaueriana Diversos outros se somaram a esses como J G
Raumltze e Friedrich Eduard Beneke ambos em 1820 Whilhelm Traugott Krug em 1821 Carl
1 HUumlBSCHER A Schopenhauer in der philosophischen Kritik In Schopenhauer-Jahrbuch 47 1966 p 29-71
2 Ibidem p 30
3 Ibidem p 33-35
- 188 -
Fortlage em 1845 Adolph Cornill em 1856 e Friedrich Ueberweg em 18664 De acordo
com Huumlbscher houve muita incompreensatildeo sobre o significado da Vontade frequentemente
associado ao conhecimento que Schopenhauer teria adquirido do pensamento de Jakob
Boumlhme em suas leituras dos textos de Schelling Aleacutem disso um traccedilo caracteriacutestico
avaliaccedilotildees da filosofia schopenhaueriana teria sido a aceitaccedilatildeo parcial da sua esteacutetica e a
rejeiccedilatildeo da sua eacutetica como um todo5
A partir de 1830 iniciou-se um movimento de resposta agraves criacuteticas feitas a
Schopenhauer do qual participaram principalmente Frauenstaumldt Friedrich Dorguth C G
Baumlhr e Julius Bahnsen Naquele momento o tema das contradiccedilotildees era o mais importante e
conforme Huumlbscher ainda era discutido em sua proacutepria eacutepoca6 Huumlbscher descreveu trecircs das
criacuteticas mais destacadas relacionadas a contradiccedilotildees entre as quais estaacute em primeiro lugar o
tema deste trabalho que foi apontado por Adolf Cornill Rudolf Seydel Kuno Fischer
Johannes Volkelt Ernst Cassirer e outros Em segundo lugar estaria uma questatildeo intitulada
ciacuterculo do fenomenalismo apontado por Karl Ludwig Michelet Albert Thilo Eduard von
Hartmann e outros Nesse ciacuterculo o problema estaria na possibilidade de conhecimento da
Vontade na autoconsciecircncia que natildeo pode ser conciliada com a descriccedilatildeo dela como coisa em
si Para os defensores dessa posiccedilatildeo se a Vontade eacute a coisa em si natildeo pode se tornar objeto
de conhecimento e inversamente se pode ser conhecida natildeo eacute a coisa em si7 Em uacuteltimo
lugar Huumlbscher menciona o problema que considera o mais preocupante relativo agrave
autocontradiccedilatildeo da Vontade na sua negaccedilatildeo eacutetica A apariccedilatildeo da liberdade metafiacutesica da
Vontade no seu fenocircmeno que no entanto continua existindo na seacuterie temporal teria sido
apontada por Herbart e considerada insoluacutevel ateacute mesmo por seguidores de Schopenhauer
como Frauenstaumldt Becker e Adam von Doss8 Aliada a esse ponto estaria ainda a dificuldade
de justificar por que a supressatildeo de um indiviacuteduo natildeo significa a supressatildeo do mundo uma
vez que a Vontade eacute una e indivisiacutevel9
Os escritos de Frauenstaumldt permitem acompanhar mais de perto esse
contexto de avaliaccedilotildees do pensamento de Schopenhauer Ele publicou pela primeira vez as
obras completas do filoacutesofo escreveu introduccedilotildees artigos cartas e memoacuterias nos quais
4 Ibidem p 35-40
5 Ibidem p 40-41
6 Ibidem p 48
7 Ibidem p 50
8 Ibidem p 50-51
9 Ibidem p 51
- 189 -
apresenta seu entendimento da filosofia schopenhaueriana bem como responde a diversas
criacuteticas feitas a ela por contemporacircneos Abordaremos brevemente as avaliaccedilotildees discutidas
por Frauenstaumldt para situarmos as objeccedilotildees feitas especificamente agrave antinomia da faculdade
de conhecimento que seratildeo analisadas no proacuteximo item
Em 1854 Frauenstaumldt publicou suas Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche
Philosophie10
nas quais expotildee e explica os temas centrais da filosofia schopenhaueriana e
especialmente nas cartas 27 e 28 argumenta contra alguns de seus criacuteticos Na carta 27 ele
menciona um texto publicado em 1852 na Zeitschrift uumlber Philosophie und philosophische
Kritik no qual Johann E Erdmann aponta uma antiacutetese entre as filosofias de Schopenhauer e
de Herbart11
Para Frauenstaumldt essa avaliaccedilatildeo eacute errocircnea pois embora em sentidos opostos
ambos seriam kantianos e teriam em comum tambeacutem as criacuteticas a Fichte e a Schelling
Frauenstaumldt menciona ainda o posfaacutecio de Immanuel Hermann von Fichte agravequele texto no
qual este afirma que o sistema schopenhaueriano eacute fraco e vulneraacutevel um idealismo unilateral
que teria sido refutado por Herbart12
No entendimento de Frauenstaumldt a questatildeo remete ao
modo como idealismo e realismo se relacionam em Schopenhauer modo esse que deveria ser
entendido dinamicamente e natildeo como um idealismo puro e simples tampouco como um
realismo nu e cru13
A filosofia schopenhaueriana seria simultaneamente idealista e realista14
A carta 28 expotildee trecircs objeccedilotildees que foram feitas a Schopenhauer nessa
eacutepoca15
Frauenstaumldt responde ao seu interlocutor que supostamente apontou contradiccedilotildees e
afirmaccedilotildees natildeo fundamentadas na obra do filoacutesofo apoiado nas posiccedilotildees que o professor da
Universidade de Jena Carl Fortlage havia defendido na obra Genetische Geschichte der
Philosophie seit Kant16
publicada em 1852 A primeira e a segunda contradiccedilotildees
apresentadas por Frauenstaumldt podem ser remetidas ao segundo caso apontado por Huumlbscher
que indicamos acima Em primeiro lugar haveria uma contradiccedilatildeo fundamental entre a
indestrutibilidade da Vontade como coisa em si e a possibilidade de autossupressatildeo metafiacutesica
10
FRAUENSTAumlDT J Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1854 11
ERDMANN J E Schopenhauer und Herbart eine Antithese Zeitschrift fuumlr Philosophie und philosophische
Kritik Herausgegeben von Dr I H Fichte Dr Hermann Ulrici und J U Wirth Neue Folge Band 21 Halle
1852 p 209-225 12
FICHTE I H Ein Wort uumlber die Zukunft der Philosophie Als Nachschrift zum vorigen Auffaβe Zeitschrift
fuumlr Philosophie und philosophische Kritik Herausgegeben von Dr I H Fichte Dr Hermann Ulrici und J U
Wirth Neue Folge Band 21 Halle 1852 p 226-240 13
A concepccedilatildeo de Frauenstaumldt seraacute abordada no item 43 14
FRAUENSTAumlDT J Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1854 p 318-319 15
Ibidem p 332-344 16
FORTLAGE C Genetische Geschichte der Philosophie seit Kant Leipzig Brockhaus 1852
- 190 -
dela resultando no fim do mundo como um todo17
O ponto central dessa criacutetica eacute que a
negaccedilatildeo da Vontade introduziria um dilema impossiacutevel de solucionar se ela for a coisa em si
natildeo poderaacute ser negada se puder ser negada natildeo seraacute a coisa em si mas representaccedilatildeo18
Em
segundo lugar haveria uma contradiccedilatildeo na negaccedilatildeo que embora levada a cabo apenas
individualmente deveria resultar na superaccedilatildeo da Vontade metafisicamente considerada e
natildeo apenas do indiviacuteduo singular que a realiza19
Uma vez que a Vontade eacute una e indivisiacutevel
que o que se manifesta no mundo inorgacircnico eacute o mesmo que se manifesta em noacutes como coisa
em si e que a multiplicidade dos objetos se deve ao princiacutepio de individuaccedilatildeo que eacute um
componente subjetivo entatildeo a supressatildeo de uma vontade individual deveria significar a
supressatildeo do todo Assim ao citar seu interlocutor Frauenstaumldt escreve ldquoPortanto
consequentemente um homem que primeiro a realizasse teria de estar apto a reconduzir tudo
ao nadardquo20
A terceira objeccedilatildeo referida por Frauenstaumldt aborda a liberdade da
Vontade como coisa em si em sua relaccedilatildeo com a lei de motivaccedilatildeo Essa questatildeo de acordo
com o que ele afirma na carta foi antecipada e discutida pelo proacuteprio Schopenhauer21
O
nuacutecleo dessa criacutetica estaacute em que na medida em que o caraacuteter humano natildeo se diferencia das
forccedilas naturais teria de ser determinado e essencialmente imutaacutevel como elas devendo
produzir seus efeitos com necessidade O interlocutor de Frauenstaumldt argumenta que o caraacuteter
natildeo pode ser indeterminado pois assim como do nada natildeo pode surgir algo de uma coisa em
si que fosse indeterminada e vazia natildeo poderia surgir algo de determinado e definido como
satildeo as accedilotildees Inversamente seria impensaacutevel que uma liberdade da vontade pudesse modificar
ou anular um caraacuteter pois isso equivaleria a tornaacute-lo vazio e indeterminado Em suma para
que possa produzir seus efeitos o caraacuteter inteligiacutevel deve ter uma essecircncia determinada e
imutaacutevel que natildeo poderaacute ser reduzida a nada por meio da liberdade A negaccedilatildeo da liberdade
ao operari e sua concessatildeo ao esse realizaria entatildeo o estranho feito de possibilitar a escolha de
um caraacuteter de forma totalmente infundada Nesse sentido escreve Frauenstaumldt
Finalmente o senhor [o interlocutor] apresenta a alternativa ou a Vontade eacute
eternamente qualitativamente determinada natildeo podendo abandonar ou
modificar sua qualidade originaacuteria ou ela eacute originalmente indeterminada
17
FRAUENSTAumlDT J Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1854 p 333 18
Ibidem p 333 19
Ibidem p 338 20
Ibidem p 339 (traduccedilatildeo nossa) 21
Ibidem p 342
- 191 -
natildeo podendo por toda a eternidade tornar-se algo determinado pois nela
natildeo haacute fundamento para esta ou aquela determinaccedilatildeo22
Em 1869 Frauenstaumldt publicou um artigo na revista Unsere Zeit
deutsche Revue der Gegenwart intitulado ldquoArthur Schopenhauer und seine Gegnerrdquo23
no
qual discute outras contradiccedilotildees que foram apontadas no pensamento schopenhaueriano Nas
palavras dele ldquoEu li mais de uma duacutezia de escritos criacuteticos sobre Schopenhauer e em todos
encontrei acusaccedilotildees de contradiccedilotildees a ele que se orgulhava de ser o filoacutesofo mais
consequente e de ter oferecido um sistema em uma uacutenica peccedilardquo24
Entre os antagonistas
Frauenstaumldt cita Adolf Cornill que identificaria dualismo e contradiccedilotildees em diversos pontos
bem como Rudolf Seydel para quem Schopenhauer oscilaria entre uma concepccedilatildeo realista e
outra idealista acerca da objetivaccedilatildeo da Vontade e que estaria na raiz da contradiccedilatildeo mais
fundamental do sistema schopenhaueriano a antinomia da faculdade de conhecimento25
Naquele artigo Frauenstaumldt menciona a segunda ediccedilatildeo de Logische
Untersuchungen26
de 1862 na qual Friedrich A Trendelenburg teria acusado Schopenhauer
de ser meramente idealista jaacute que seu mundo fenomecircnico seria uma construccedilatildeo causal e
portanto subjetiva27
No mesmo sentido Rudolf Haym em Arthur Schopenhauer28
de 1864
teria julgado encontrar uma contradiccedilatildeo no fato de que embora situasse o princiacutepio de razatildeo
dentro dos limites da representaccedilatildeo Schopenhauer teria buscado pelo fundamento dela
Apelando inclusive para insultos agrave pessoa do filoacutesofo Haym teria criticado tambeacutem a
complementaccedilatildeo do idealismo kantiano com a fundamentaccedilatildeo fisioloacutegica da representaccedilatildeo
Para ele essa seria uma tentativa ingecircnua de conciliar dois pontos de vista excludentes e que
resultaria em diversos problemas dentre eles o nosso tema29
Para Haym aleacutem disso
Schopenhauer justifica o surgimento do conhecimento nos animais em funccedilatildeo da necessidade
gerada pela multiplicidade e separaccedilatildeo dos seres contudo essa mesma multiplicidade e
separaccedilatildeo soacute poderiam surgir com o princiacutepio de individuaccedilatildeo que exige o proacuteprio
22
Ibidem p 341 (traduccedilatildeo nossa) 23
FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart
Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 686-707 24
Ibidem p 686 (traduccedilatildeo nossa) 25
Ibidem p 694-695 26
TRENDELENBURG F A Logische Untersuchungen Zweite ergaumlnzte Auflage Leipzig Hirzel 1862 27
FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart
Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 697 28
HAYM R Arthur Schopenhauer Berlin Georg Reimer 1864 29
FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart
Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 700
- 192 -
conhecimento Daiacute teria se originado um ciacuterculo vicioso que foi apontado tambeacutem por Chr
Albert Thilo no artigo intitulado Ueber Schopenhauerrsquos ethischen Atheismus30
de 186831
Haym e Trendelenburg tiveram em comum a criacutetica relativa agrave
generalizaccedilatildeo da Vontade a toda a natureza orgacircnica e inorgacircnica Trendelenburg considerou
que teria sido necessaacuterio mostrar como o conceito de forccedila eacute derivado do de Vontade o
conceito mais geral da filosofia schopenhaueriana que poreacutem natildeo teria sido demostrado
como tal32
O argumento da analogia seria enganoso porque com ele a essecircncia da vontade
humana se perderia e no entanto conforme a conveniecircncia suas caracteriacutesticas especiacuteficas e
determinadas seriam confundidas com a da Vontade coacutesmica33
A identidade da Vontade no
mundo como um todo exigiria que ela fosse pensada em geral o que a aproximaria de um
conceito amplo de forccedila poreacutem sua ligaccedilatildeo com a vontade humana possibilitaria que
Schopenhauer estendesse as propriedades desta a tudo arbitrariamente No entender de Haym
e de Trendelenbug esse seria o ππῶηον τεῦδορ de Schopenhauer34
Esses dois pensadores
teriam visto ainda uma contradiccedilatildeo na afirmaccedilatildeo de que a Vontade eacute cega sem conhecimento
algum mas ao mesmo tempo comporta-se como algo repleto de intenccedilotildees e fins
pressupostos nos conceitos de Vontade de Vida e Vontade de conhecimento por exemplo35
Aleacutem disso na experiecircncia eacutetica e no gecircnio Haym apontou uma inversatildeo das relaccedilotildees entre
Vontade e conhecimento em que este deixa de ser subordinado e dependente superando
aquela Assim diz Haym de forccedila da natureza que a tudo constitui a Vontade passa ao nada
pelo conhecimento cada vez mais claro das Ideias O conhecimento por seu turno de
efetivador da aparecircncia empiacuterica passa agrave genialidade e agrave santidade isto eacute a um verdadeiro
conhecimento metafiacutesico36
Otto Liebmann na obra Ueber den Objectiven Anblick37
publicada em
1869 teria afirmado que Schopenhauer misturou verdades com absurdos e ideias imisciacuteveis
entre si que levariam a um ciacuterculo vicioso acerca da relaccedilatildeo entre intelecto e ceacuterebro38
Ainda
30
THILO Chr A Ueber Schopenhauerrsquos ethische Atheismus Leipzig Louis Pernitzsch 1868 31
FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart
Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 702 32
Ibidem loc cit 33
Ibidem loc cit 34
Ibidem loc cit 35
Ibidem p 704 36
Ibidem p 706 37
LIEBMANN O Ueber den Objektiven Anblick Wiesbaden Carl Schober 1869 38
FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart
Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 690-691
- 193 -
antes em 1866 na obra Ueber den individuellen Beweis fuumlr die Freiheit des Willens39
Liebmann teria criticado a concepccedilatildeo schopenhaueriana acerca da liberdade e sua localizaccedilatildeo
no esse entendendo que assim se anularia a responsabilidade40
De modo semelhante em
1869 Eduard von Hartmann teria criticado a reduccedilatildeo do intelecto ao ceacuterebro na obra
Philosophie des Unbewussten41
como uma postura fundamentalmente materialista42
Em 1873 Frauenstaumldt publicou as obras completas de Schopenhauer com
uma extensa introduccedilatildeo de sua autoria cuja maior parte eacute dedicada a refutar os antagonistas
do filoacutesofo e a mostrar o que entende ser o verdadeiro sentido de seu pensamento43
Ele
reafirma que os opositores de Schopenhauer acusaram sua filosofia de ser completamente
contraditoacuteria resultado de uma confusa mistura de elementos heterogecircneos44
Diligentemente
Frauenstaumldt descreve e discute criacuteticas a diversos aspectos do pensamento schopenhaueriano
passando por metafiacutesica teoria do conhecimento eacutetica misantropia pessimismo e a recepccedilatildeo
das obras pelo grande puacuteblico Como satildeo muitas e diferentes as objeccedilotildees apresentadas na
introduccedilatildeo natildeo passaremos por todas elas e restringiremos nossa anaacutelise apenas agravequelas
relativas agrave metafiacutesica e agrave teoria do conhecimento
Nesse texto Frauenstaumldt repete as partes relativas a Trendelenburg e a
Haym do artigo mencionado acima e afirma que diversos professores ignorando sua
resposta reincidiram nas mesmas criacuteticas deles Seria o caso do jurista e professor Heinrich
Ahrens que criticou a generalizaccedilatildeo da Vontade a todo o mundo empiacuterico bem como o que
considerou um retorno agrave indiferenccedila entre natureza e espiacuterito O mesmo se daria com Zeller
que teria indicado um falso dilema como sendo a base do argumento da analogia a saber ou
apenas noacutes seriamos Vontade ou entatildeo tudo seria Vontade45
Para Zeller poreacutem uma terceira
alternativa seria pensaacutevel que existissem simultaneamente seres volitivos e seres natildeo
volitivos determinados por forccedilas de outro tipo46
Por um lado Schopenhauer deveria ter
mostrado com que direito o mundo objetivo como um todo deveria ser subsumido na
39
LIEBMANN O Ueber den individuellen Beweis fuumlr die Freiheit des Willens Stuttgart Carl Schober 1866 40
FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart
Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 692 41
HARTMAN E Philosophie des Unbewussten Berlin Carl Duncker 1869 42
FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart
Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 692 43
Cf SCHOPENHAUER A Saumlmmtliche Werke Herausgegeben von Julius Frauenstaumldt Band 1 Leipzig
Brockhaus 1873 ldquoEinleitung des Herausgebers III Wahrer Sinn der Schopenhauer‟schen Philosophie und
Widerlegung ihrer Gegnerrdquo p XXVIII-CXXXIII 44
Ibidem p XXXIII 45
Ibidem p XLIX 46
ZELLER E Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz Muumlnchen Didenbourg 1875 p 709
- 194 -
Vontade por outro surgiriam duacutevidas sobre se sendo a essecircncia de tudo uma soacute natildeo
deveriacuteamos pressupor intenccedilotildees e motivaccedilotildees humanas na natureza47
Zeller teria estranhado a
mudanccedila repentina do ponto de vista do idealismo para o do realismo o que Frauenstaumldt no
entanto aponta como algo natural uma vez que Schopenhauer entendia que a representaccedilatildeo
era apenas um dos dois lados do mundo Para o ldquoapoacutestolordquo o erro de compreensatildeo desse
aspecto da filosofia schopenhaueriana seria inclusive a razatildeo de Zeller e diversos outros
opositores do filoacutesofo terem criticado a antinomia da faculdade do conhecimento48
Aleacutem
disso seriam problemaacuteticos para Zeller a autossupressatildeo da Vontade o sucesso de puacuteblico
dos uacuteltimos anos de Schopenhauer que seria devido agrave adequaccedilatildeo da linguagem ao grande
puacuteblico com objetivo adulador e o romantismo pressuposto na visatildeo schopenhaueriana do
gecircnio49
Esta uacuteltima questatildeo segundo Frauenstaumldt teria sido criticada tambeacutem por Ahrens50
Conforme a exposiccedilatildeo de Frauenstaumldt na obra Arthur Schopenhauer als
Mensch und Denker51
o professor Juumlrgen Bona Meyer buscava contradiccedilotildees em toda parte52
Frauenstaumldt menciona especialmente a contradiccedilatildeo apontada por esse autor segundo a qual
Schopenhauer de um lado demonstra a impossibilidade da liberdade da vontade e de outro
a afirma em relaccedilatildeo agrave Vontade primordial Menciona tambeacutem a concordacircncia de Meyer com
Trendelenbug no tocante agrave criacutetica deste de que o mundo schopenhaueriano se reduz a uma
aparecircncia meramente subjetiva53
Aleacutem desses pontos Frauenstaumldt refere a criacutetica de Thilo
sobre a inviabilidade de um sujeito puro do conhecimento isto eacute a impossibilidade de
esquivar-se da sujeiccedilatildeo agrave Vontade Esse ponto traria problemas tambeacutem para a concepccedilatildeo
schopenhaueriana das Ideias as quais natildeo poderiam ser conhecidas de modo nenhum jaacute que
conhecer eacute tornar-se objeto e entrar nas formas do tempo espaccedilo e causalidade
Em 1876 Frauenstaumldt publicou a segunda ediccedilatildeo de sua obra epistolar
aumentada em 18 cartas referindo uma quantidade maior de objeccedilotildees agrave filosofia
schopenhaueriana incluindo diversas de sua autoria54
Ele relata um grande nuacutemero de
opositores e de criacuteticas praticamente sobre todos os temas do pensamento de Schopenhauer
Menciona tambeacutem teorias que partindo da filosofia dele tentaram melhoraacute-la como a de
47
Ibidem p L 48
Ibidem p LXXI 49
Ibidem p LXXXV CXXIII-CXVI CXXVI-CXXVII 50
Ibidem p CXXV 51
MEYER J B Schopenhauer als Mensch und Denker Berlin Carl Habel 1872 52
Ibidem p LIII 53
Ibidem p LXVIII 54
FRAUENSTAumlDT J Neue Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1876
- 195 -
Eduard von Hartmann sobre o inconsciente bem como outras que aparentemente a
refutariam como a de Darwin55
Nessa nova ediccedilatildeo Frauenstaumldt esclarece que natildeo eacute um
defensor incondicional do seu mestre como muitos pensavam e que se desviou dele em
pontos importantes De fato em vaacuterias das novas cartas ele apresenta as proacuteprias
discordacircncias em relaccedilatildeo ao pensamento schopenhaueriano na intenccedilatildeo de mostrar sua
verdade essencial corrigi-lo e melhoraacute-lo No entender de Frauenstaumldt embora as obras do
filoacutesofo respondam agrave maioria das criacuteticas que lhes foram feitas haacute questotildees natildeo solucionadas
e ainda muitas outras objeccedilotildees possiacuteveis Natildeo passaremos por todas as criacuteticas que ele relata
nas novas cartas tampouco por todas as que ele mesmo dirige agrave filosofia schopenhaueriana
Exporemos somente suas proacuteprias objeccedilotildees pertinentes ao nosso problema uma vez que
muitas das que referimos anteriormente satildeo retomadas nas novas cartas e que aleacutem disso a
maioria delas estaacute fora do nosso escopo
Entre as principais objeccedilotildees de Frauenstaumldt haacute duas relativas ao que ele
chamou de ldquorestordquo natildeo dissolvido Em primeiro lugar permaneceria um resquiacutecio do
dualismo kantiano que se sobreporia ao monismo do pensamento uacutenico de Schopenhauer Em
segundo haveria tambeacutem um resto natildeo resolvido na contradiccedilatildeo da Vontade consigo mesma
Frauenstaumldt trata do primeiro ponto na carta 17 de suas Neue Briefe uumlber die
Schopenhauerrsquosche Philosophie criticando o que entendeu ser uma oposiccedilatildeo entre a Vontade
em si e sua objetivaccedilatildeo fundada numa visatildeo dualista56
Ele argumenta que a Vontade eacute
completamente estranha agraves formas da representaccedilatildeo nunca podendo adotaacute-las e no entanto
Schopenhauer apresenta os graus de objetivaccedilatildeo como o fenocircmeno proacuteprio dela como sua
objetidade Segundo Frauenstaumldt por um lado as formas da representaccedilatildeo natildeo poderiam
entatildeo ser estranhas agrave Vontade por outro se cada grau de objetivaccedilatildeo manifesta a Vontade
completamente natildeo haveria motivo para que ela se objetivasse em graus e indiviacuteduos
distintos Nesse sentido escreve Frauenstaumldt ldquoSe a Vontade estaacute completamente objetivada
na pedra entatildeo natildeo haacute razatildeo para a objetivaccedilatildeo nas plantas e nos animais Se aleacutem disso a
Vontade jaacute se objetiva completamente em um carvalho para que entatildeo os milhotildees de
carvalhosrdquo57
De acordo com a interpretaccedilatildeo dele assim como a humanidade natildeo
poderia se objetivar completamente em um dos seus troncos ou em um indiviacuteduo pela mesma
55
Ibidem p 2 56
Ibidem p 89 57
Ibidem p 90 (traduccedilatildeo nossa)
- 196 -
razatildeo a vontade da natureza natildeo poderia se objetivar inteiramente em uma uacutenica espeacutecie ou
indiviacuteduo58
E se esse fosse realmente o caso haveria um sem nuacutemero de objetivaccedilotildees
supeacuterfluas Para Frauenstaumldt do mesmo modo como cada membro do corpo objetiva uma
funccedilatildeo distinta da vontade corporal natildeo a vontade completa cada espeacutecie ou indiviacuteduo natildeo
objetiva a Vontade como um todo mas apenas uma funccedilatildeo especial Entatildeo ele afirma
ldquoMicrocosmo e macrocosmo se esclarecem tambeacutem aqui reciprocamenterdquo59
A unidade e a
indivisibilidade da Vontade natildeo se explicam porque ela estaacute inteira em cada objetivaccedilatildeo mas
diz ele porque ela eacute a abrangecircncia unitaacuteria do conjunto dos fenocircmenos matizados e
individualizados60
ldquoAssimrdquo ele afirma ldquoa unidade como algo que se organiza natildeo exclui a
multiplicidade mas a incluirdquo61
Portanto soacute se poderia conhecer o ser completo do fenocircmeno
por meio do todo natildeo por meras partes Uma parte somente poderia explicar o todo caso o
mundo natildeo estivesse no tempo e no espaccedilo pois entatildeo seria possiacutevel conhecer o conjunto
completo tanto por meio de muacuteltiplos indiviacuteduos quanto por um uacutenico deles
Na carta 43 Frauenstaumldt aborda a contradiccedilatildeo da Vontade consigo
mesma que ele entende ser o segundo resto natildeo resolvido na filosofia schopenhaueriana Ele
concorda que a compaixatildeo seja uma consequecircncia correta da unidade da Vontade poreacutem
nem o seu conceito nem sua necessidade no mundo estariam bem fundamentados62
Para ele
compaixatildeo pressupotildee sofrimento e este surge do conflito da Vontade consigo mesma algo
que seria injustificaacutevel Se a Vontade eacute una deveria entatildeo mostrar indivisibilidade e harmonia
em todos os seus fenocircmenos e nesse caso a compaixatildeo natildeo seria necessaacuteria Por
conseguinte ou a Vontade natildeo seria una ou o sofrimento seria um enigma por esclarecer63
Frauenstaumldt enxerga aqui o mesmo problema do teiacutesmo e do panteiacutesmo em explicar o
sofrimento e remete a Schopenhauer as objeccedilotildees que ele proacuteprio fez a ambas aquelas
perspectivas teoacutericas como o fundamento uno e essencial se desuniu em seus fenocircmenos
entrou em luta consigo mesmo gerando males conflitos e sofrimento Nas palavras dele
ldquoComo no fenocircmeno do um-todo essencial eacute possiacutevel o egoiacutesmo a fonte de todos os
malesrdquo64
58
Ibidem p 90-91 59
Ibidem p 91 (traduccedilatildeo nossa) 60
Ibidem loc cit 61
Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 62
Ibidem p 266 63
Ibidem loc cit 64
Ibidem p 267 (traduccedilatildeo nossa)
- 197 -
Na concepccedilatildeo de Frauenstaumldt o egoiacutesmo insere uma oposiccedilatildeo entre o
microcosmo o macrocosmo na medida em que cada indiviacuteduo se entende como o uacutenico ser
real existente em detrimento do restante do mundo Entretanto diz ele natildeo se pode explicar
como a Vontade que existe natildeo em um indiviacuteduo mas em todos possa ter chegado em cada
um deles agrave colossal cegueira de tomar apenas a si mesmo como real e esquecer todos os
demais65
Na verdade segundo Frauenstaumldt a harmonia e a unidade da Vontade existiriam
apenas no macrocosmo na adequaccedilatildeo muacutetua de todos os fenocircmenos mas natildeo seria forte o
suficiente para suprimir a luta dos indiviacuteduos entre si Entatildeo ele escreve ldquoA unidade da
Vontade natildeo se estende ateacute o indiviacuteduo permanece conectada ao macrocosmo ela natildeo eacute
radical Mas de onde ela proveacutem Schopenhauer natildeo explicourdquo66
42 ndash Apreciaccedilotildees criacuteticas da antinomia da faculdade de conhecimento
Neste item apresentaremos algumas das apreciaccedilotildees criacuteticas que a
antinomia que a faculdade de conhecimento recebeu Nossa exposiccedilatildeo poreacutem natildeo seraacute
exaustiva do ponto de vista da quantidade dos comentaacuterios o que seria cansativo e
desnecessaacuterio mas privilegiaraacute apenas as argumentaccedilotildees que nos parecerem mais
contundentes e profiacutecuas Com efeito na obra Arthur Schopenhauer als Uebergangsformation
von einer idealistischen in eine realistische Weltanschauung Adolf Cornill aborda entre
outros assuntos tambeacutem o nosso tema de pesquisa Esse autor ressalta que Schopenhauer
interditou o acesso da razatildeo ao acircmbito do metafiacutesico tornando-se necessaacuterio outro caminho
que levasse ateacute ele Ao mesmo tempo numa tentativa de fundamentar a metafiacutesica
indutivamente teria associado a faculdade do conhecimento a algo meramente fiacutesico e
reconstruiacutedo via de acesso agrave essecircncia do mundo com base na Vontade67
Para Cornill a
filosofia schopenhaueriana se torna dualista na medida em que ao lado de um mundo
65
Ibidem p 269 66
Ibidem p 270 (traduccedilatildeo nossa) 67
CORNILL A Arthur Schopenhauer als Uebergangsformation von einer idealistischen in eine realistische
Weltanschauung Heidelberg Georg Mohr 1856 p 99-100
- 198 -
material extenso temporal e causal estabelece um mundo metafiacutesico destituiacutedo dessas
formas Esse dualismo seria o responsaacutevel por tornar o sistema uma peccedila dilacerada
internamente e repleta de contradiccedilotildees
Especificamente no caso da nossa antinomia Cornill considera que o
problema tem sua raiz na desconsideraccedilatildeo dos argumentos acerca dos paralogismos da razatildeo
pura pois contrariando o entendimento kantiano Schopenhauer teria tomado a representaccedilatildeo
do sujeito pelo seu ser em si68
Para ele o filoacutesofo se lanccedilaria de um extremo ao outro entre
materialismo e idealismo e um irremediaacutevel dualismo natildeo permitiria que se decidisse sobre
se possuiriacuteamos ou natildeo um conhecimento do ser em si da vida espiritual69
(geistigen
Lebens)70
O mesmo dualismo e a mesma oscilaccedilatildeo repercutiriam na compreensatildeo
schopenhaueriana acerca da faculdade de conhecimento levando-o agrave antinomia o
pensamento que parece ser o mais ideal em toda a natureza eacute considerado como uma funccedilatildeo
fisioloacutegica do ceacuterebro71
O mundo objetivo diz Cornill com todos os seus atributos eacute
somente um movimento da massa cerebral dentro do cracircnio mas esse mesmo ceacuterebro cuja
funccedilatildeo eacute produzir todos os fenocircmenos eacute tambeacutem apenas um fenocircmeno72
Em uacuteltima
instacircncia a concepccedilatildeo de que o ceacuterebro eacute o refinamento maacuteximo da mateacuteria seria a mesma
adotada no materialismo segundo o qual a mateacuteria eacute indestrutiacutevel eterna e permanente de
modo que no fim de contas tudo acabaria se remetendo a ela No sect 27 da sua obra Cornill
afirma que
Uma tal concepccedilatildeo natildeo satisfaz nem aos idealistas pelos quais
Schopenhauer seraacute sempre tomado como materialista nem aos materialistas
para quem ele sempre deve parecer idealista Seu sistema eacute um dualismo em
si dilacerado e esse eacute o fundamento das inumeraacuteveis contradiccedilotildees nas quais
um pensador claro um espiacuterito profundo permaneceu enredado durante sua
longa e profunda vida73
A obra de Rudolf Seydel Schopenhauers Philosophisches System foi
escrita para um concurso realizado pela Faculdade de Filosofia da Universidade de Leipzig
em 1856 no qual se solicitava que os candidatos elaborassem uma exposiccedilatildeo e criacutetica do
68
Ibidem p 101-102 69
Em uma carta endereccedilada a Frauenstaumldt datada de 31 de outubro de 1856 Schopenhauer acusa Cornill de
confundir idealismo com espiritualismo De fato pode-se perceber essa confusatildeo em toda a obra de Cornill Cf
FRAUENSTAumlDT J LINDNER Ernst O T Arthur Schopenhaper vom Ihm uumlber ihn Ein Wort der
Vertheidigung Berlin A W Hayn 1863 p 711 70
CORNILL op cit p 102 71
Ibidem p 102-103 72
Ibidem p 103 73
Ibidem p 125 (traduccedilatildeo nossa)
- 199 -
pensamento de Schopenhauer Estudante de filosofia na eacutepoca Seydel venceu o concurso do
qual participou tambeacutem Carl Georg Baumlhr entatildeo estudante de direito74
No entender de Seydel
a metafiacutesica e a teoria do conhecimento schopenhauerianas seriam incompatiacuteveis entre si
gerando uma oscilaccedilatildeo entre ambas em funccedilatildeo da qual se formariam um hiato dentro do
sistema como um todo e diversas pequenas contradiccedilotildees75
Ele compara os resultados da
metafiacutesica e da teoria do conhecimento de Schopenhauer chegando ao que julgou ser uma
dupla identidade entre sujeito e objeto De um lado esses dois polos formariam a
representaccedilatildeo isto eacute o objeto e na medida em que a representaccedilatildeo eacute a objetidade da
Vontade o objeto se identificaria com o sujeito De outro a representaccedilatildeo representa a
Vontade e nada mais ldquoPortantordquo ele explica ldquotemos dois sujeitos que satildeo reciprocamente
seus objetos o sujeito do querer e o sujeito da representaccedilatildeo ou dois objetos que satildeo
reciprocamente seus sujeitos o desejado (a representaccedilatildeo) e o representado (a Vontade)rdquo76
Seydel considera que embora Schopenhauer natildeo reconheccedila sua
concordacircncia em diversos pontos com Fichte Schelling e Hegel teria absorvido as duas
formas da filosofia da identidade a saber o ldquoideal-realismordquo do primeiro bem como o ldquoreal-
idealismordquo do segundo e do terceiro77
A junccedilatildeo do princiacutepio especulativo do idealismo com
uma concepccedilatildeo realista teria resultado na visatildeo da objetivaccedilatildeo da Vontade como um processo
gradual no qual toda a riqueza da natureza empiacuterica se apresentaria Assim diz Seydel a
objetivaccedilatildeo se daacute no entendimento e para ele ao mesmo tempo em que o intelecto soacute pode se
realizar por meio do decurso de uma cadeia de objetivaccedilotildees anteriores ao conhecimento De
acordo com ele formam-se um hiato e uma discordacircncia interna na metafiacutesica de
Schopenhauer que separam sua concepccedilatildeo de uma identidade subjetiva e sua filosofia da
natureza78
Schopenhauer teria extraiacutedo de Schelling e Hegel a objetivaccedilatildeo da Vontade por
uma operaccedilatildeo baseada na natureza empiacuterica e de Fichte teria extraiacutedo a concepccedilatildeo da
identidade da Vontade e da representaccedilatildeo Em funccedilatildeo disso afirma Seydel
[] a objetivaccedilatildeo natildeo eacute explicada como atividade real da Vontade mas
como objetivaccedilatildeo apenas no entendimento e para ele enquanto a realizaccedilatildeo
74
SPIERLING Volker Materialien zu Schopenhauers ldquoDie Welt als Wille und Vorstellungrdquo Herausgegeber
kommentiert und eingeleitet von Volker Spierling Frankfurt am Main Suhrkamp 1984 p 129 75
SEYDEL R Schopenhauers Philosophisches System Leipzig Breitkopf amp Haumlrtel 1857 p 7 76
Ibidem p 58 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 77
Ibidem p 69 78
Ibidem p 70
- 200 -
filosoacutefico-natural do intelecto entra expressamente apenas depois do decurso
de uma cadeia de objetivaccedilotildees carente de conhecimento79
Em Gesammelte philosophische Abhandlungen zur Philosophie des
Unbewussten80
publicada em 1872 Eduard von Hartmann aborda criticamente o pensamento
de Schopenhauer No terceiro item dessa obra intitulado ldquoUeber die nothwendige Umbildung
der Schopenhauerschen Philosophie aus ihre Gundprincip herausrdquo ele apresenta uma
avaliaccedilatildeo da filosofia schopenhaueriana na qual relaciona a antinomia da faculdade de
conhecimento a uma mistura de elementos de realismo espiritualismo idealismo e
materialismo O realismo e o espiritualismo estariam do lado da Vontade enquanto o
idealismo subjetivo e o materialismo estariam do lado do fenocircmeno Para Hartmann o
princiacutepio fundamental da filosofia schopenhaueriana eacute o que ele chama de pantelismo
identificado com a fantaacutestica descoberta de que a Vontade eacute una e age sem conhecimento em
toda a natureza81
Nas palavras dele ldquoEsse eacute o nuacutecleo mais interno e irrefutaacutevel da filosofia
schopenhaueriana o foco para o qual todos os seus raios convergem e eacute a concepccedilatildeo que o
ser das coisas oferece quando se abstrai de seu fenocircmenordquo82
Embora haja contradiccedilotildees no
sistema schopenhaueriano voltadas contra esse princiacutepio o que se deveria corrigir satildeo
somente as afirmaccedilotildees que conduzem a elas natildeo o princiacutepio mesmo
A antinomia da faculdade de conhecimento conforme Hartmann estaacute
inserida na problemaacutetica do materialismo Na interpretaccedilatildeo dele a Vontade eacute um princiacutepio
imaterial conhecido por noacutes como o momento mais essencial do espiacuterito pelo que deveria ser
tomada por um princiacutepio espiritual83
No entanto ao associar o intelecto a um produto
material e tentar associar espiritualismo e materialismo Schopenhauer acabaria reforccedilando
este uacuteltimo Para Hartmann o materialismo estaacute correto quando afirma que a integridade das
funccedilotildees cerebrais relaciona-se de modo necessaacuterio com a consciecircncia e que seu mau
funcionamento acarreta problemas nos desiacutegnios sentimentos e representaccedilotildees do indiviacuteduo
Poreacutem o materialismo natildeo permitiria explicar o processo de formaccedilatildeo do mundo que ficaria
reduzido a um jogo cego de efeitos sem sentido dificultando a compreensatildeo da origem dos
organismos e seus significados84
O idealismo teria substituiacutedo o processo objetivo do
materialismo pelo processo interno e subjetivo da representaccedilatildeo mas teria mantido no
79
Ibidem p 69 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 80
HARTMANN E v Gesammelte philosophische Abhandlungen zur Philosophie des Unbewussten Berlin
Carl Duncker 1872 81
Ibidem p 57 82
Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 83
Ibidem p 59 84
Ibidem p 60
- 201 -
tocante a esta uacuteltima o mesmo problema daquele assim como o mundo cheio de sentido se
originaria de algo sem sentido a representaccedilatildeo plena de significados nasceria tambeacutem de algo
sem significado85
Conforme Hartmann Schopenhauer cometeu os erros tanto do
materialismo quanto do idealismo subjetivo e sua tentativa de uni-los foi a responsaacutevel pela
antinomia da faculdade de conhecimento Como ele explica ldquo[] um ser independente do
tempo bem pode iniciar a partir de si uma cadeia de desenvolvimentos mas nunca pode
determinar por si o ponto no tempo numa cadeia temporal jaacute iniciada no qual se deve
encontrar a nova consciecircncia que emergerdquo86
Aleacutem disso de nada teria adiantado
Schopenhauer ter retirado a Vontade do domiacutenio do materialismo pois ela seria um princiacutepio
irracional e cego do mesmo modo que a mateacuteria e as forccedilas materiais satildeo concebidas nele Na
concepccedilatildeo de Hartmann somente pela diferenciaccedilatildeo entre consciente e inconsciente eacute que a
verdade fisioloacutegica do materialismo poderia ser reconhecida e mantida Com efeito diz ele as
relaccedilotildees entre a materialidade cerebral e o funcionamento das suas funccedilotildees de pensar sentir e
desejar valem apenas para a consciecircncia Nessa perspectiva de um lado a atividade
inconsciente do espiacuterito permaneceria como uma funccedilatildeo puramente imaterial inserida naquela
mateacuteria e de outro as atividades conscientes seriam produzidas pelo inconsciente e pelo
ceacuterebro87
Em sua obra Schopenhauers Leben Werke und Lehre88
Kuno Fischer
associa a antinomia da faculdade de conhecimento agrave diferenciaccedilatildeo entre ideal e real que ele
entende ser o verdadeiro problema filosoacutefico da sua eacutepoca Na interpretaccedilatildeo de Fischer a
explicaccedilatildeo do mundo concreto como sendo um fenocircmeno cerebral entraria em conflito com a
afirmaccedilatildeo de que seria manifestaccedilatildeo da coisa em si Haveria na verdade dois sentidos
diferentes para o conceito de fenocircmeno no primeiro caso seria inteiramente ideal um
fenocircmeno do ceacuterebro enquanto no segundo ao contraacuterio seria o mais real a objetidade da
Vontade89
Para Fischer essa ambiguidade se deveu ao desvirtuamento da doutrina kantiana
sobre tempo e espaccedilo e agrave influecircncia do sensualismo francecircs que teriam levado Schopenhauer
85
Ibidem loc cit 86
HARTMANN E v Geschichte der Methaphysik Zweiter Teil seit Kant Ausgewaumlhlte Werke Band XII
Leipzig Hermann Haacke 1900 p 188 (traduccedilatildeo nossa) 87
HARTMANN E v Gesammelte philosophische Abhandlungen zur Philosophie des Unbewussten Berlin
Carl Duncker 1872 p 60 88
FISCHER K Schopenhauers Leben Werke und Lehre Heidelberg Carl Winter‟s Universitaumltsbuchhandlung
1908 89
Ibidem p 508
- 202 -
a identificar o ceacuterebro e o intelecto como um oacutergatildeo e sua funccedilatildeo Como esse autor escreve
ldquoPois bem ele quis unir em seu sistema as duas doutrinas incompatiacuteveis daiacute adveio a
antinomia que se enredou naquela explicaccedilatildeo circular defeituosardquo90
Fischer argumenta que para que o ceacuterebro fosse representado como um
oacutergatildeo sua funccedilatildeo representativa teria de se separar de si mesmo Uma vez que isso eacute
impossiacutevel tempo e espaccedilo teriam de se situar no ceacuterebro o qual por sua vez teria de estar
situado no tempo e no espaccedilo Fischer entende ser esse o ponto mais obscuro da filosofia
schopenhaueriana pois a objetivaccedilatildeo graduada da Vontade natildeo poderia ser pensada sem a
multiplicidade e a variedade da natureza isto eacute sem que tempo e espaccedilo estivessem
pressupostos91
Por conseguinte diz ele ldquoUma coisa eacute ser organicamente dependente outra
diferente eacute ser organicamente produzido Kant admitiu o primeiro com relaccedilatildeo ao
conhecimento mas o segundo natildeordquo92
Essas seriam as bases a partir das quais teriam
emergido diversos problemas entre os quais o nosso objeto que ele expotildee em tese e antiacutetese
A tese afirma nosso conhecimento eacute um produto orgacircnico e como tal tem
como suas condiccedilotildees a escala completa da organizaccedilatildeo animal-humana o
mundo das plantas a histoacuteria do desenvolvimento do universo e da Terra A
antiacutetese afirma o universo inteiro em sua multiplicidade variedade e
regularidade tem o sujeito do conhecimento (o intelecto) como seu
pressuposto e portador93
Na obra Arthur Schopenhauer seine Persoumlnlichkeit seine Lehre sein
Glaube Johannes Volkelt aborda a antinomia da faculdade de conhecimento pelo acircngulo do
que chamou de ldquocorrelativismordquo entre sujeito e objeto que se apresentaria tambeacutem entre
intelecto e mateacuteria94
Na medida em que se limitam mutuamente haveria uma correlatividade
estrita entre sujeito e objeto que Schopenhauer explicaria com o conceito de fronteira
(Grenze) De acordo com Volkelt a mesma correlatividade se estende ao intelecto e agrave mateacuteria
jaacute que o filoacutesofo entende esta uacuteltima como sendo o objeto destituiacutedo de forma e qualidade
isto eacute como um conceito95
Em princiacutepio o correlativismo seria correto e baseado no fato
inquestionaacutevel de que o objeto soacute pode ser dado em uma consciecircncia e inversamente a
consciecircncia soacute pode ser consciecircncia de um objeto Poreacutem na interpretaccedilatildeo de Volkelt em
90
Ibidem p 510 (traduccedilatildeo nossa) 91
Ibidem p 509 92
Ibidem p 510 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 93
Ibidem p 508-509 (traduccedilatildeo nossa) 94
VOLKELT Johannes Arthur Schopenhauer seine Persoumlnlichkeit seine Lehre sein Glaube Stuttgart Fr
Frommanns 1900 p 82 et seq 95
Ibidem p 83
- 203 -
certos momentos Schopenhauer imprime uma mudanccedila nesse correlativismo tornando
ambiacuteguo o conceito de sujeito e entrando em contradiccedilatildeo com a teoria do mundo enquanto
representaccedilatildeo96
De iniacutecio a correlatividade entre sujeito e objeto teria sido pensada pelo
filoacutesofo da perspectiva das duas metades indissociaacuteveis que compotildeem consciecircncia do mundo
como representaccedilatildeo Tomada nesse sentido diz Volkelt a correlatividade evidenciaria uma
caracteriacutestica essencial do sujeito que eacute sua relaccedilatildeo com a existecircncia do mundo como
representaccedilatildeo de modo que sua posiccedilatildeo natildeo poderia ser comparada com qualquer outra A
partir daiacute contudo surgiriam dois conceitos de sujeito De um lado na medida em que a
consciecircncia conteacutem em si o sujeito e o objeto o que representa e eacute representado ela seria o
ponto de partida e o campo inicial da filosofia de outro o sujeito seria tambeacutem um dos dois
lados incluiacutedos na consciecircncia97
Para Volkelt parece que em alguns momentos
Schopenhauer natildeo podia dispor do solo ideal-subjetivo do sujeito ldquoCom outras palavrasrdquo ele
esclarece
fala como se o sujeito possuiacutesse o correlato que tem no mundo
independentemente da representaccedilatildeo como se esse mundo independente da
consciecircncia defrontasse igualitariamente a consciecircncia O segundo sentido
da palavra ldquosujeitordquo isto eacute o sentido que ele soacute pode possuir no interior do
correlativismo imperceptivelmente adentrou aquele primeiro sentido e
nessa junccedilatildeo transformou o sentido proibido Assim agora ficam frente a
frente o mundo subjetivo e o transobjetivo98
Uma correlaccedilatildeo semelhante entre intelecto e mateacuteria eacute o que daria origem
agraves duas sentenccedilas conflitantes da antinomia faculdade de conhecimento De um lado estaria a
mateacuteria como simples representaccedilatildeo de um sujeito e de outro o sujeito como produto da
mateacuteria uma modificaccedilatildeo desta99
Nesse ponto o aspecto idealista se perderia e o
pensamento schopenhaueriano passaria a apresentar dois pontos de partida com iguais
direitos No entanto para Volkelt a afirmaccedilatildeo da correlatividade entre intelecto e mateacuteria eacute
falsa Dizer que a mateacuteria eacute mera representaccedilatildeo do sujeito seria uma expressatildeo do idealismo
mas natildeo seria compatiacutevel com a correlatividade entre sujeito e objeto Correlativismo
implicaria proporcionalidade no peso dos polos opostos que nesse caso natildeo se apresenta
Aleacutem disso a afirmaccedilatildeo de que a representaccedilatildeo eacute um produto da mateacuteria tambeacutem natildeo se
96
Ibidem op cit 97
Ibidem p 83-84 98
Ibidem p 84 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 99
Ibidem p 85
- 204 -
adaptaria agravequele correlativismo mas seria apenas um modo de pensar que ignora o idealismo
e daacute mais razatildeo ao materialismo100
No texto Schopenhauer et Fichte101
Martial Gueroult apresenta uma
visatildeo criacutetica da filosofia schopenhaueriana em que aborda entre outros o nosso problema Na
interpretaccedilatildeo de Gueroult a caracteriacutestica proacutepria do pensamento de Schopenhauer eacute a
mistura de posiccedilotildees e teorias diferentes e inconciliaacuteveis102
O coraccedilatildeo da doutrina do filoacutesofo
seria a justaposiccedilatildeo de idealismo e realismo em funccedilatildeo da qual um mundo de representaccedilatildeo
se desdobraria como coacutepia de outro real o da Vontade103
A partir daiacute segundo esse autor
surgiriam graves dificuldades porque o idealismo estancaria diante da representaccedilatildeo tomada
como um fato tornando-se necessaacuteria a formulaccedilatildeo de um acesso de tipo diferente agrave coisa em
si Nas palavras de Gueroult
Ora essa justaposiccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel nesse caso senatildeo em virtude da
limitaccedilatildeo do idealismo ao fato da representaccedilatildeo Por essa estagnaccedilatildeo diante
do fato eacute efetivada uma soluccedilatildeo de continuidade absoluta entre a esfera da
representaccedilatildeo e o que estaacute aleacutem dela Graccedilas a esse corte eacute compreensiacutevel
uma experiecircncia de ordem totalmente diferente do conhecimento fenomenal
(representaccedilatildeo) em suma uma experiecircncia de alcance metafiacutesico por meio
da qual o mundo da representaccedilatildeo pode ser verdadeiramente
transcendente104
Essa separaccedilatildeo estrita entre a Vontade e o conhecimento bem como a
restriccedilatildeo do idealismo ao interior da representaccedilatildeo teriam obrigado Schopenhauer a reduzir a
consciecircncia ao intelecto e este agrave representaccedilatildeo Uma das questotildees que essa perspectiva
origina segundo Gueroult eacute referente agrave passagem do ideal ao real isto eacute da representaccedilatildeo agrave
Vontade Para ele Schopenhauer descobriu o ceacuterebro como uma via simples e ineacutedita de
passagem do ideal ao real apta a atuar tambeacutem no sentido inverso no qual aquele oacutergatildeo
aparece como a encarnaccedilatildeo suprema da Vontade e conteacutem em si as formas do
conhecimento105
O mundo da representaccedilatildeo daiacute advindo expotildee a Vontade ou melhor eacute
precisamente a Vontade tornada visiacutevel pelas formas de conhecimento do ceacuterebro tempo
espaccedilo e causalidade Poreacutem diz Gueroult essa teoria exigiria uma concepccedilatildeo de ceacuterebro
100
Ibidem p 86 101
GUEROULT M Etudes de Philosophie allemande HildesheimNew York Georg Olms 1977 p 202-261 102
Ibidem p 221 103
Ibidem p 226 104
Ibidem p 226-227 (traduccedilatildeo nossa) 105
Ibidem p 240
- 205 -
como instrumento e de representaccedilatildeo como motor ideal e sensoacuterio as quais natildeo teriam sido
desenvolvidas por Schopenhauer106
Na concepccedilatildeo schopenhaueriana o ceacuterebro uniria uma esfera do real tal
como pensada pelo senso comum e outra do ideal como formulada pelo idealismo
transcendental Para Gueroult trata-se de um escacircndalo filosoacutefico pois esse oacutergatildeo pertenceraacute
inteiramente tanto ao mundo real como ao ideal onde eacute apenas uma representaccedilatildeo entre
outras No entanto como parte de qualquer dos lados natildeo poderia ser concebido como
produzindo o outro Na medida em que em qualquer dos mundos seraacute apenas uma parte
iacutenfima natildeo poderia produzir o outro em sua totalidade107
Gueroult observa que
Schopenhauer substituiu a palavra e a noccedilatildeo de ceacuterebro pela de faculdade de conhecimento
como se natildeo houvesse aiacute nenhum problema dando poreacutem um salto mais perigoso e arriscado
do que todos os de Jacobi Mas entatildeo o ceacuterebro seria apresentado como o criador das
representaccedilotildees colocando-as no tempo e no espaccedilo e ao mesmo tempo seria condicionado
pelas formas que o constituem ele as produziria e seria produzido por elas Nesse sentido
escreve Gueroult
Aqui como laacute Schopenhauer se contentou em justapor teorias heterogecircneas
o idealismo transcendental de Kant e o materialismo dos franceses de
Cabanis de Bichat etc segundo o qual o pensamento eacute uma secreccedilatildeo do
ceacuterebro ldquoO organismo eacute objetivaccedilatildeo da vontade o ceacuterebro eacute a
eflorescecircncia do organismordquo (Welt Ergaumlnzungen ch xxii R II p 321)108
Na obra Aporie und Subjekt Martim Booms se dedica especificamente ao
estudo das dificuldades do pensamento schopenhaueriano Segundo ele haacute uma estrutura
aporeacutetica que se expressa no conteuacutedo e no meacutetodo de Schopenhauer bem como uma relaccedilatildeo
de tensatildeo de sua filosofia consigo mesma109
A aporia se encontraria jaacute nas bases do sistema
no dualismo que apresenta o mundo como estritamente representaccedilatildeo objeto de
conhecimento em uma consciecircncia e ao mesmo tempo como Vontade em si objeto de uma
visatildeo essencialmente metafiacutesica estendida agrave eacutetica e agrave esteacutetica Nesse dualismo de um lado o
mundo deve ser entendido como fenocircmeno como deficitaacuterio e secundaacuterio em relaccedilatildeo agrave
Vontade sem poder livrar-se da submissatildeo a ela De outro esse fenocircmeno deve superar a
coisa em si natildeo apenas do ponto de vista teoacuterico mas tambeacutem existencial e ontologicamente
106
Ibidem p 241 107
Ibidem loc cit 108
Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 109
BOOMS M Aporie und Subjekt Die erkenntnistheoretische Entfaltungslogik der Philosophie
Schopenhauers Beitraumlge zur Philosophie Schopenhauers herausgegeben von Dieter Birnbacher und Heinz Gerd
Ingekamp Band 6 Wurzburg Koumlnigshausen amp Neuman 2003 p 17
- 206 -
diz Booms ldquo[] num tipo de rebeliatildeo do secundaacuterio contra o primaacuterio do criado contra seu
senhorrdquo110
Essa seria a aporia fundamental que colocaria o conhecimento e a Vontade em
uma paradoxal aniquilaccedilatildeo muacutetua intitulada por Schopenhauer ldquocontradiccedilatildeo do fenocircmeno
consigo mesmordquo (Widerspruch der Erscheinung mit sich selbst)
No entender de Booms o conceito de sujeito eacute construiacutedo por
Schopenhauer com base tanto nesse dualismo como no realismo promovendo a expulsatildeo da
coisa em si da teoria do conhecimento de um modo radical Em virtude dessa concepccedilatildeo
surge uma primeira inconsistecircncia uma aporia na qual se coloca o domiacutenio do externo no
proacuteprio sujeito e que rebatendo na teoria do conhecimento emaranha-a em um ciacuterculo
manifesto111
Nas palavras desse autor a antinomia da teoria do conhecimento ldquo[] resulta
dos pontos de vista circulares e entrelaccedilados de uma explicaccedilatildeo natural-materialista de um
lado assim como de uma deduccedilatildeo ideal-filosoacutefica a partir da consciecircncia do sujeito que
conhece e constroacutei o mundo de outrordquo112
De acordo com isso aquele problema natildeo seria um
produto secundaacuterio da teoria da representaccedilatildeo schopenhaueriana mas ldquo[] o centro e a
estrutura fundamental do bdquopensamento uacutenico‟ como um todordquo113
E assim como um genoacutetipo
se expressa em fenoacutetipos diferenciados mas uniformes tambeacutem a antinomia seria refletida em
diferentes dimensotildees114
43 ndash Soluccedilotildees apologeacuteticas agrave antinomia da faculdade de conhecimento
Na introduccedilatildeo que escreve agrave sua ediccedilatildeo das obras completas de
Schopenhauer Frauenstaumldt apresenta seu posicionamento quanto agraves criacuteticas que o filoacutesofo
110
Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 111
Ibidem p 230 112
Ibidem p 18 (traduccedilatildeo nossa) 113
Ibidem p 157 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 114
Ibidem p 230
- 207 -
recebeu115
Para ele as falhas encontradas natildeo se deviam agrave proacutepria filosofia
schopenhaueriana mas a uma interpretaccedilatildeo feita a partir do exterior do sistema e de sentenccedilas
avulsas com as quais se julgavam o todo A partir de frases soltas diz ele pode-se fazer o
que se quiser de modo que a justiccedila para com um autor exige que se siga no sentido contraacuterio
isto eacute que as sentenccedilas avulsas sejam interpretadas a partir do conjunto teoacuterico completo116
Para Frauenstaumldt Schopenhauer teria indicado o modo correto de ler suas obras justamente
no intuito de evitar ser julgado dessa forma
Como se pressentisse que isso aconteceria com ele como de fato aconteceu
de abordarem seu sistema a partir de fora planejando extrair sentenccedilas do
contexto para entatildeo bradar sobre contradiccedilotildees absurdos inconsequecircncias e
assim por diante ele jaacute esclareceu na introduccedilatildeo da primeira ediccedilatildeo de ldquoO
mundo como vontade e representaccedilatildeordquo como ele deve ser lido para que seja
compreendido117
Esse seria o motivo pelo qual Schopenhauer teria exigido que sua obra
fosse lida duas vezes na primeira com paciecircncia para que na segunda tudo pudesse ser visto
sob nova luz Por isso tambeacutem a recomendaccedilatildeo de que nunca se perdesse de vista a conexatildeo
necessaacuteria entre as sentenccedilas separadas e o pensamento principal nem a progressatildeo da
exposiccedilatildeo A divisatildeo do pensamento uacutenico em livros distintos e em diferentes pontos de vista
seria algo inevitaacutevel pois natildeo haveria como remeter todas as ramificaccedilotildees do pensamento a
um uacutenico ponto e adicionalmente expor clara e minuciosamente meditaccedilotildees e provas que
ocuparam muitos anos
Aleacutem disso o entendimento da filosofia schopenhaueriana tambeacutem teria
sido dificultado pelas discrepacircncias de linguagem e de expressatildeo da primeira ediccedilatildeo de O
Mundo em relaccedilatildeo agrave segunda e ao O MundoII Contudo afirma Frauenstaumldt tendo-se em
mente o fato de que aquelas ediccedilotildees foram escritas uma na juventude e outra na maturidade
seria possiacutevel superar os obstaacuteculos por meio da elaboraccedilatildeo completa e posterior118
Trata-se
de uma limitaccedilatildeo inexpugnaacutevel mas ele escreve
Schopenhauer de fato admitiu que haja uma diferenccedila na elaboraccedilatildeo e na
fundamentaccedilatildeo entre a primeira exposiccedilatildeo de seu sistema e a que apareceu
25 anos depois como haacute entre a juventude e a velhice mas que ambas se
115
SCHOPENHAUER A Saumlmmtliche Werke Herausgegeben von Julius Frauenstaumldt Band 1 Leipzig
Brockhaus 1873 p XXVIII et seq 116
Ibidem p XXVIII 117
Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 118
Ibidem p XXIX-XXX
- 208 -
contradigam ele admitiu tatildeo pouco como que a natureza se contradiga ao dar
caracteriacutesticas diferentes para o jovem e o velho119
Frauenstaumldt argumenta ainda que a consistecircncia no sistema
schopenhaueriano natildeo se apresenta da mesma forma que nas obras dos outros filoacutesofos Os
outros sistemas diz ele constroem sua coerecircncia por meio de deduccedilotildees de sentenccedilas entre si
desenvolvendo e repetindo o que jaacute estaacute contido nas proposiccedilotildees fundamentais
Diferentemente o sistema de Schopenhauer natildeo se fundamenta em cadeias de raciociacutenios
mas imediatamente no mundo intuitivo de modo que sua coerecircncia natildeo se apoia em meras
regras loacutegicas mas na concordacircncia natural das sentenccedilas com o mundo real dado na
consciecircncia120
Por isso de acordo com ele Schopenhauer natildeo precisou se preocupar com a
harmonia entre todas as suas sentenccedilas nem quando vez por outra proposiccedilotildees avulsas
pareciam ser incompatiacuteveis entre si Nas palavras dele ldquo[] a concordacircncia surgiu depois por
si mesma na medida em que as sentenccedilas se reuniram completamente porque ela natildeo eacute outra
coisa senatildeo a concordacircncia da realidade consigo mesma que nunca pode falharrdquo121
Na segunda carta das suas Neue Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche
Philosophie Frauenstaumldt tece consideraccedilotildees gerais sobre a presenccedila de inconsequecircncias e
contradiccedilotildees em grandes pensadores Para ele esses problemas natildeo diminuiriam o valor do
pensamento e uma vez que filoacutesofo algum jamais esteve totalmente livre deles seria
necessaacuterio entatildeo declarar todos os sistemas como invaacutelidos122
Incoerecircncias e contradiccedilotildees
natildeo significariam ausecircncia de verdades as quais nada teriam a ver com consequecircncia loacutegica
Assim diz Frauenstaumldt a harmonia formal pode comparecer inclusive em sistemas
dogmaacuteticos mas eacute a relaccedilatildeo com a experiecircncia que decide sobre a verdade deles Uma
filosofia livre de contradiccedilotildees que esteja fundamentada em conceitos e princiacutepios abstratos
sem correspondecircncia com a realidade seria menos vantajosa do que um sistema contraditoacuterio
ele explica ldquoPois de duas afirmaccedilotildees contraditoacuterias entre si pelo menos uma pode ser uma
verdadeira enquanto de duas natildeo contraditoacuterias entre si ambas podem ser falsasrdquo123
A
verdadeira contradiccedilatildeo se daria com relaccedilatildeo agrave experiecircncia aos fatos os uacutenicos que poderiam
servir de medida para se julgar se uma filosofia possui ou natildeo relevacircncia se deve ou natildeo ser
abandonada Na concepccedilatildeo de Frauenstaumldt embora possa ser repleto de contradiccedilotildees o
119
Ibidem p XXXI (traduccedilatildeo nossa) 120
Ibidem p XXXII-XXXIII 121
Ibidem p XXXIII (traduccedilatildeo nossa) 122
FRAUENSTAumlDT J Neue Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1876 p 4 123
Ibidem p 5 (traduccedilatildeo nossa)
- 209 -
pensamento schopenhaueriano natildeo carece de valor e na verdade o possui em maior grau do
que um sistema racional construiacutedo a priori124
Especificamente sobre o problema a que nos dedicamos Frauenstaumldt
defende Schopenhauer contra Zeller Na carta 27 ele afirma haver muita confusatildeo sobre a
relaccedilatildeo de Schopenhauer com o materialismo o que levaria os diversos comentadores a
sustentar diferentes posiccedilotildees Enquanto alguns entenderiam o filoacutesofo como materialista pela
sua concepccedilatildeo do intelecto como funccedilatildeo do ceacuterebro outros o acusariam de esvaziar a mateacuteria
em uma concepccedilatildeo idealista ao apresentaacute-la como representaccedilatildeo Outros ainda veriam um
ciacuterculo no fato de que o espiacuterito eacute derivado por Schopenhauer a partir da mateacuteria e ao mesmo
tempo a mateacuteria eacute esclarecida como representaccedilatildeo do espiacuterito125
No seu entendimento poreacutem a filosofia schopenhaueriana se diferencia
essencialmente do materialismo embora tambeacutem admita a mateacuteria como uma substacircncia
eterna e incriada que permanece sob todas as mudanccedilas perceptiacuteveis no mundo fenomecircnico e
agrave qual nenhuma substacircncia espiritual pode ser equiparada A mateacuteria no sentido
schopenhaueriano natildeo se relacionaria agrave intuiccedilatildeo apenas ao pensamento na medida em que
seria meramente um fazer feito isto eacute pura abstraccedilatildeo Ela natildeo seria um objeto da experiecircncia
mas como fundamento desta pertenceria agraves condiccedilotildees formais e a priori do conhecimento126
As determinaccedilotildees e os elementos que soacute se encontram a posteriori ao contraacuterio fariam parte
do lado empiacuterico do mundo e anunciariam a coisa em si Portanto diz Frauenstaumldt
Schopenhauer eacute materialista no sentido do antiespiritualismo mas eacute antimaterialista na
medida em que natildeo toma a mateacuteria como a coisa em si127
Na carta 28 Frauenstaumldt afirma que Schopenhauer diluiu a mateacuteria em
Vontade e em representaccedilatildeo tornando falsa tanto a afirmaccedilatildeo de que ele a dissolveu em uma
concepccedilatildeo idealista de fenocircmeno quanto a de que ele eacute um materialista puro e simples128
De
um lado contra a reduccedilatildeo da mateacuteria a representaccedilatildeo Schopenhauer teria apontado a Vontade
como o nuacutecleo dela De outro contra visatildeo de uma independecircncia realista da mateacuteria teria
argumentado que ela natildeo eacute a coisa em si que natildeo eacute independente de um sujeito cognoscente
De acordo com isso Frauenstaumldt entende que tambeacutem eacute falsa a acusaccedilatildeo de haver um ciacuterculo
124
Ibidem p 5 125
Ibidem p 138 126
Ibidem p 142 127
Ibidem p 145 128
Ibidem p 161
- 210 -
no qual a mateacuteria deriva da representaccedilatildeo e inversamente a representaccedilatildeo deriva da mateacuteria
pois os termos seriam usados em sentidos diferentes em ambas as sentenccedilas Nas palavras
dele ldquoO lado da mateacuteria que aparece que eacute condicionado a priori ele deduz da
representaccedilatildeo a representaccedilatildeo ao contraacuterio ele deduz do lado real da mateacuteria da Vontade
nos graus da vida animal Onde estaacute aqui o ciacuterculordquo129
Assim como a mateacuteria o ceacuterebro
tambeacutem possuiria um lado concernente agrave representaccedilatildeo e outro concernente agrave Vontade Do
ponto de vista ideal aquele oacutergatildeo eacute produto da representaccedilatildeo mas do ponto de vista real
enquanto coisa em si eacute o produtor da representaccedilatildeo Entatildeo diz Frauenstaumldt ldquoSegundo
Schopenhauer o ceacuterebro natildeo eacute produto da representaccedilatildeo no mesmo sentido em que eacute produtor
dela eacute produto da representaccedilatildeo enquanto objeto da intuiccedilatildeo externa e ao contraacuterio eacute
produtor da representaccedilatildeo segundo seu ser interno isto eacute como Vontade de conhecerrdquo130
Na interpretaccedilatildeo de Paul Deussen Schopenhauer foi o uacutenico poacutes-
kantiano que conseguiu desenvolver a filosofia de Kant a contento Na obra Allgemeine
Geschichte der Philosophie131
ele escreve que Kant realizou a separaccedilatildeo precisa entre os
elementos a priori e a posteriori da consciecircncia bem como demonstrou a necessidade de
ambos para a constituiccedilatildeo da experiecircncia Com isso contribuiu para a tarefa de toda a
filosofia que afirma Deussen sempre foi e sempre seraacute tornar compreensiacuteveis o objetivo e
subjetivo que formam a unidade do mundo132
Para ele Fichte Schelling Hegel e Herbart
passaram por cima da argumentaccedilatildeo kantiana e tentaram deduzir o mundo como um todo
partindo apenas de um daqueles dois elementos acreditando que assim poderiam eliminar as
supostas contradiccedilotildees entre eles Nas palavras de Deussen
Schopenhauer tomou um caminho totalmente diferente de todos os
pensadores mencionados posto que ele e somente ele entre todos os ilustres
sucessores de Kant apropriou-se perfeita e completamente dos resultados da
investigaccedilatildeo kantiana ndash reconhecidos por ele como irrefutaacuteveis e apenas
purgados de falsos abusos ndash trabalhou sobre eles e por assim dizer
atualizando no mesmo estilo Kant desenvolveu as consequecircncias das
doutrinas em todas as regiotildees da filosofia deste assim com todo direito
considera somente sua filosofia como desdobramento ateacute o fim da filosofia
kantiana133
129
Ibidem p 161 (traduccedilatildeo nossa) 130
Ibidem p 162 (traduccedilatildeo nossa) 131
DEUSSEN P Allgemeine Geschichte der Philosophie 2 Band 3 Abteilung 2 Auflage (Neuere
Philosophie von Descartes bis Schopenhauer) Leipzig Brockhaus 1920 132
Ibidem p 377 133
Ibidem p 378 (traduccedilatildeo nossa)
- 211 -
A respeito do problema que nos ocupa Deussen considera tratar-se de
uma questatildeo inevitaacutevel apontada natildeo somente no pensamento de Schopenhauer mas tambeacutem
no kantiano O ciacuterculo no qual a mateacuteria e a consciecircncia exigem-se mutuamente como
condiccedilatildeo uma da outra seria inexpugnaacutevel134
De um lado uma vez que o tempo o espaccedilo e a
causalidade satildeo formas da consciecircncia sem as quais a mateacuteria natildeo existe o mundo material
como um todo natildeo existiria sem a consciecircncia Em segundo natildeo se poderia negar que
conhecemos a consciecircncia unicamente como funccedilatildeo de um oacutergatildeo material o ceacuterebro o qual
diz Deussen ldquo[] para surgir teve como condiccedilatildeo um longo desenvolvimento da mateacuteria no
tempo e no espaccedilordquo135
Para ele as ciecircncias da natureza demonstram que o ciacuterculo eacute
irremediaacutevel pois apoacutes todas as pesquisas e descobertas o pesquisador retornaraacute ao ponto de
iniacutecio isto eacute agrave sua consciecircncia como condiccedilatildeo para os inumeraacuteveis desenvolvimentos da
mateacuteria descobertos O investigador perceberaacute entatildeo que partindo-se do inorgacircnico chega-se
por aperfeiccediloamentos contiacutenuos da mateacuteria ateacute o ceacuterebro humano isto eacute ateacute a consciecircncia
que poreacutem jaacute estava pressuposta desde o iniacutecio como condiccedilatildeo Portanto perceberaacute que tudo
aquilo natildeo passa de uma cadeia de representaccedilotildees na sua proacutepria consciecircncia136
Assim como Frauensaumldt Deussen tambeacutem considera que natildeo haacute de fato
um problema loacutegico na antinomia da faculdade do conhecimento pois a consciecircncia estaria
sendo tomada em sentidos diferentes aquela que origina o mundo seria distinta da que eacute
originada por este No primeiro caso seria a consciecircncia transcendental da qual surgem
tempo espaccedilo e mateacuteria no segundo seria a consciecircncia empiacuterica que somente pode surgir a
partir do tempo do espaccedilo e da mateacuteria137
Conforme Deussen o mundo eacute ao mesmo tempo
eterno e dependente das formas do intelecto de modo que a consciecircncia transcendental seria
tatildeo eterna ou alheia ao tempo quanto o proacuteprio mundo O ser das formas intelectuais estaria
entatildeo garantido e neles surgiriam todos os fenocircmenos incluindo as funccedilotildees cerebrais da
consciecircncia empiacuterica humana Esta uacuteltima surgiria no fenocircmeno a partir da transcendental de
modo que ambas teriam de ser distinguidas embora natildeo diferenciadas138
134
Ibidem p 456 135
Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 136
Ibidem p 457 137
Ibidem loc cit 138
Ibidem p 458-459
- 212 -
Na obra Denker gegen den Strom139
Arthur Huumlbscher avalia que todos os
opositores de Schopenhauer agem de modo semelhante a saber valendo-se de objeccedilotildees e
argumentos chegam em um problema formal Para Huumlbscher eacute preciso lembrar que o
filoacutesofo realiza a passagem do primeiro para o segundo livro de O Mundo de modo
imediato e que a mudanccedila de pontos de vista natildeo eacute realizada por um tipo de inspiraccedilatildeo uacutenica
ou excepcional Na verdade diz ele a mudanccedila de pontos de vista faz parte do meacutetodo de
Schopenhauer que sempre obteacutem seus resultados pela alternacircncia de consideraccedilotildees e pela
surpreendente junccedilatildeo de observaccedilotildees opostas140
Como ele escreve ldquoHaacute transiccedilotildees de anaacutelise
epistemoloacutegica para a fisioloacutegica de loacutegica para psicoloacutegica Haacute um opor e unir de fatos da
experiecircncia com fatos para aleacutem da experiecircnciardquo141
Uma mesma linguagem tem de dar conta
de avanccedilos e retornos entre dois os reinos distintos o da representaccedilatildeo e o da coisa em si o
que no entanto exigiria o uso de dois oacutergatildeos diferentes Natildeo possuiacutemos um oacutergatildeo de
conhecimento que nos leve aleacutem da experiecircncia diz Huumlbscher ldquo[] nenhuma palavra ou
conceito que livre de qualquer ligaccedilatildeo com a intuiccedilatildeo possa ser expressatildeo imediata da visatildeo
metafiacutesicardquo142
Eacute aiacute entatildeo que deveraacute entrar a metaacutefora e a interpretaccedilatildeo para que se possa
expressar um sentido verdadeiro para se registrar e iluminar o desconhecido e intangiacutevel por
meio do conhecido e tangiacutevel
Huumlbscher considera que as objeccedilotildees ao pensamento de Schopenhauer
podem ser todas remetidas agravequelas mudanccedilas de pontos de vista e que a antinomia da teoria
do conhecimento eacute o exemplo mais conhecido entre as criacuteticas No fim de contas a questatildeo
giraria em torno do confronto irreconciliaacutevel entre o modo de consideraccedilatildeo realista e o
idealista no qual ambos os lados teriam razatildeo Portanto como ressaltado pelo proacuteprio
Schopenhauer seria tatildeo verdadeiro que a mateacuteria seja uma mera representaccedilatildeo do sujeito
cognoscente quanto que o sujeito cognoscente seja um produto da mateacuteria143
O mundo seria
entatildeo real do ponto de vista empiacuterico e ideal do ponto de vista transcendental sem que para
isso se exigisse um sujeito supraempiacuterico ou uma consciecircncia transcendente Colocado de
forma metafoacuterica ldquoEacute como se daacute no caso de duas afirmaccedilotildees contrapostas sobre uma esfera
139
HUumlBSCHER A Denker gegen den Strom Schopenhauer Gestern ndash Heute ndash Morgen 4 Durchgesehene
Auflage Bonn Bouvier 1988 140
Ibidem p 254 141
Ibidem p 255 (traduccedilatildeo nossa) 142
Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 143
Ibidem p 256
- 213 -
oca ndash que seja cocircncava e que seja convexa ndash agraves quais se chega por meio da unificaccedilatildeo da visatildeo
que se tem no ponto de vista do observador ndash dentro ou fora da bolardquo144
Conforme Rudolf Malter a objetivaccedilatildeo da Vontade parece colocar o
transcendentalismo e a metafiacutesica de Schopenhauer em conflito Na obra Arthur
Schopenhauer Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens145
ele afirma que do
ponto de vista transcendental a representaccedilatildeo tem de ser tomada como dada enquanto do
ponto de vista da metafiacutesica ela somente pode existir por meio de um processo em que a
Vontade se objetiva a si mesma146
De fato diz Malter da perspectiva metafiacutesica a Vontade
se manifesta por meio da mateacuteria que eacute sua visibilidade e uma representaccedilatildeo imaterial eacute
impossiacutevel Como ele explica ldquoA presenccedila material da Vontade na objetivaccedilatildeo graduada da
bdquorepresentaccedilatildeo‟ eacute o organismo animal no qual por sua vez existe o proacuteprio representar
(consciecircncia) objetivamente no ceacuterebrordquo147
No entanto para Malter natildeo se poderia daiacute concluir que devesse haver
um ponto de vista objetivo a ser adotado antes mesmo que o mundo entrasse no horizonte da
representaccedilatildeo pois isso equivaleria a um salto da metafiacutesica da Vontade por sobre o
idealismo Quando Schopenhauer fala da representaccedilatildeo como uma objetivaccedilatildeo da Vontade
natildeo estaria afirmando que o entendimento ou a razatildeo alcanccedilariam o autoconhecimento mas
simplesmente que nas palavras desse autor ldquo[] o intelecto (que abrange entendimento e
razatildeo) enquanto intelecto eacute fenocircmeno e nesse sentido existe (natildeo como sujeito
transcendental) como mateacuteria enquanto eacute objetivaccedilatildeo da Vontaderdquo148
O ponto de vista do
idealismo natildeo seria aniquilado nem limitado por essa visatildeo objetiva do intelecto pois mesmo
quando o ser deste se torna visiacutevel pela sua realizaccedilatildeo material no ceacuterebro isso natildeo
significaria que este fosse condiccedilatildeo da representaccedilatildeo do ponto de vista transcendental do
mesmo modo que o idealismo eacute condiccedilatildeo da consideraccedilatildeo metafiacutesica No entender de Malter
Schopenhauer estava convicto de que o ponto de vista objetivo do intelecto soacute eacute possiacutevel
quando o ponto de vista subjetivo estaacute pressuposto149
Por conseguinte ele escreve
O ensinamento sobre a ldquovisatildeo objetiva do intelectordquo deve ser lido
metafisicamente mas a metafiacutesica da Vontade eacute concebida
144
Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 145
MALTER R Arthur Schopenhauer Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens Sttutgart-Bad
Cannstatt FrommannHolzboog 1991 146
Ibidem p 268 147
Ibidem p 269 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 148
Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 149
Ibidem p 270
- 214 -
transcendentalmente em muacuteltiplas camadas ndash e isso significa na concepccedilatildeo
transcendental da filosofia schopenhaueriana como um todo a ldquovisatildeo
objetiva do intelectordquo natildeo muda nada Ela apenas liberta a interpretaccedilatildeo
metafiacutesica da natureza adquirida no horizonte transcendental para a
consideraccedilatildeo empiacuterica posterior em especial nas ciecircncias anatocircmico-
fisioloacutegicas150
Volker Spierling expotildee seu entendimento sobre nosso tema na sua
introduccedilatildeo a Materialien zu Schopenhauers ldquoDie Welt als Wille und Vorstellungrdquo Para ele eacute
preciso considerar que Schopenhauer natildeo fundamenta sua filosofia no realismo nem no
idealismo mas sim na experiecircncia O filoacutesofo natildeo apoiaria seu pensamento em um objeto
independente de qualquer sujeito nem em um sujeito independente de qualquer objeto mas
na experiecircncia que implica ambos e os tem igualmente como condiccedilotildees151
Conforme
Spierling essa unidade natildeo pode ser rompida tomando-se qualquer um dois lados como
absoluto nem se pode deduzir a outra metade da experiecircncia a partir de apenas um deles Nas
suas palavras ldquoDesse modo eacute quebrada a unidade sujeito-objeto que Schopennhauer levou
para dentro da consciecircncia (como tambeacutem o princiacutepio de razatildeo suficiente) e por uma
problemaacutetica abstraccedilatildeo ou o subjetivo ou o objetivo eacute suposto original e filosoficamente
como o primeiro absolutordquo152
O cerne do idealismo schopenhaueriano seria a anaacutelise do surgimento da
realidade objetiva por meio da exposiccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo das classes de objetos e das
faculdades intelectuais Nessa anaacutelise embora a experiecircncia seja um produto subjetivo a
aparecircncia surgiria como algo real factual porque o trabalho do entendimento natildeo pode ser
sentido ou percebido pelo sujeito cognoscente153
No entendimento de Spierling daiacute resultaraacute
uma visatildeo transcendente do aspecto fisioloacutegico ou nas palavras dele ldquoAqui fica evidente que
Schopenhauer ao lado de determinaccedilotildees transcendental-imanentes utiliza tambeacutem
determinaccedilotildees fisioloacutegicas em sentido transcendenterdquo154
Poreacutem Schopenhauer teria boas
razotildees para conectar o intelecto ao ceacuterebro isto eacute natildeo seria uma associaccedilatildeo gratuita ou
arbitraacuteria Com efeito diz Spierling a operaccedilatildeo proacutepria do entendimento natildeo passa por
conceitos nem se relaciona com o pensamento racional mas eacute descrita pelo filoacutesofo como
uma funccedilatildeo fisioloacutegica do ceacuterebro presente em todos os animais e meramente subjetiva Da
subjetividade da accedilatildeo do entendimento bem como da sensaccedilatildeo dos sentidos resultaria o
150
Ibidem p 270-271 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 151
SPIERLING Volker Materialien zu Schopenhauers ldquoDie Welt als Wille und Vorstellungrdquo Herausgegeber
kommentiert und eingeleitet von Volker Spierling Frankfurt am Main Suhrkamp 1984 p 41 152
Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 153
Ibidem p 45 154
Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa)
- 215 -
verdadeiro idealismo transcendental e a natureza ilusoacuteria do mundo bem como o aparente
antimaterialismo radical de Schopenhauer155
A partir daiacute surge segundo Spierling um inevitaacutevel dilema As ciecircncias
devem necessariamente ultrapassar o idealismo transcendental pois suas conclusotildees mostram
que no decurso do tempo haacute um aperfeiccediloamento no sentido dos seres do mais simples aos
mais complexos contrariando a dependecircncia subjetiva de todos os objetos empiacutericos O
mesmo entendimento que criaria o mundo com sua causalidade a priori teria de ser
compreendido por sua vez como uma criaccedilatildeo causal156
Entatildeo escreve Spierling
ldquoSchopenhauer se enreda com isso em um ciacuterculo que consiste em que as condiccedilotildees
transcendental-idealistas do mundo teratildeo de ser pensadas simultaneamente como seus
resultados materialistasrdquo157
Natildeo obstante para esse autor a dependecircncia extrema e unilateral do
objeto em relaccedilatildeo ao sujeito tem necessariamente de ser completada com a investigaccedilatildeo das
suas condiccedilotildees objetivas e reais A proacutepria investigaccedilatildeo filosoacutefico-transcendental eacute que teria
conduzido Schopenhauer agraves duas posiccedilotildees divergentes de modo que o filoacutesofo teria sido
obrigado a seguir os dois caminhos opostos e admitir ambos com os mesmos direitos como
complementos muacutetuos Parar no idealismo transcendental teria sido o mesmo que tomar as
condiccedilotildees subjetivas do pensamento por conhecimento do objeto158
O correto na
interpretaccedilatildeo de Spierling eacute entender a questatildeo no sentido da metaacutefora que Schopenhauer
apresenta no sect 391 de ldquoMetaacuteforas paraacutebolas e faacutebulasrdquo de Parerga e Paralipomena Nesse
texto o filoacutesofo afirma que se trata de misteacuterio a razatildeo pela qual uma pessoa que se eleva
dentro de um balatildeo natildeo enxerga a si mesma subindo mas sim a Terra descendo159
Nesse
sentido escreve Spierling
Mas Schopenhauer quer ambos ele se eleva por assim dizer dentro do
balatildeo e reflete as proacuteprias condiccedilotildees subjetivas que decisivamente estatildeo laacute
para isso e tambeacutem o modo como ele deixa o mundo abaixo de si []
simultaneamente ele permanece abaixo no chatildeo portanto fora do balatildeo de
onde ele procura verificar as condiccedilotildees objetivo-realistas de sua elevaccedilatildeo
portanto tambeacutem de sua proacutepria reflexatildeo Ambos os tipos de condiccedilotildees
155
Ibidem p 47 156
Ibidem p 48 157
Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 158
Ibidem p 49 159
PP II Gleichnisse Parabeln und Fabeln sect 391 p 763
- 216 -
valem para ele aqui de modo fundamentalmente equivalente isto eacute nenhuma
pode ser subsumida na outra160
Por fim no texto ldquoSchopenhauers subjektive und objektive
Betrachtungsweise des Intellektsrdquo161
Alfred Schmidt se dedica agrave antinomia da teoria do
conhecimento considerando que a questatildeo precisa ser conectada agrave visatildeo schopenhaueriana
acerca da eacutetica Sem tentar encontrar uma soluccedilatildeo para a questatildeo ele ressalta que o filoacutesofo
separa radicalmente o acircmbito do fiacutesico e o do moral na medida em que afasta a liberdade e a
responsabilidade do domiacutenio da natureza A natureza se conecta agrave representaccedilatildeo e com isso agrave
consciecircncia e agrave subjetividade na medida em que diz Schmidt todos os seres intuitivos
existem por meio das formas da representaccedilatildeo Natildeo obstante em razatildeo de sua dependecircncia
relativamente ao ceacuterebro o mundo intuitivo possuiria aleacutem das condiccedilotildees subjetivas tambeacutem
pressupostos objetivos e a questatildeo seria novamente a relaccedilatildeo entre real e ideal162
Assim
afirma Schmidt ldquoEle [Schopenhauer] indaga a bdquorelaccedilatildeo do ideal com o real‟ equiparando este
com a Vontade aquele com o mundo como fenocircmeno cerebral Este uacuteltimo eacute o bdquomundo na
cabeccedila‟ aquele o bdquomundo fora da cabeccedila‟rdquo163
Em vista disso o conhecimento mais puro e
mais perfeito seria o que se liberta da Vontade e entra no campo da eacutetica
Schmidt enfatiza que para Schopenhauer a perspectiva subjetiva dos
objetos eacute unilateral e relativa tendo necessariamente de ser completada pelo ponto de vista
objetivo que por seu turno exige a consideraccedilatildeo fisioloacutegica do intelecto Nas palavras dele
ldquoSeu ponto de vista empiacuterico pressupotildee a bdquodependecircncia universal e completa da consciecircncia
cognoscente em relaccedilatildeo ao ceacuterebro‟rdquo164
Daiacute decorreriam as afirmaccedilotildees simultacircneas de que a
cadeia hieraacuterquica e graduada dos seres naturais tem de ser pensada como fora do tempo e
tambeacutem de que o intelecto associado ao ceacuterebro eacute um produto tardio que exige uma histoacuteria
natural a qual por sua vez exige a correlaccedilatildeo entre sujeito e objeto dada no proacuteprio
intelecto165
Entatildeo escreve Schmidt ldquoA dificuldade de Schopenhauer se baseia em que ele
acredita poder incorporar verdades elementares do materialismo sem diminuiccedilatildeo da sua
bdquoconcepccedilatildeo idealista fundamental‟rdquo166
A representaccedilatildeo seria vista como o lado externo do
160
SPIERLING Volker Materialien zu Schopenhauers ldquoDie Welt als Wille und Vorstellungrdquo Herausgegeber
kommentiert und eingeleitet von Volker Spierling Frankfurt am Main Suhrkamp 1984 p 49-50 (traduccedilatildeo
nossa) (grifos do autor) 161
SCHMIDT A Schopenhauer subjektive und objektive Betrachtungsweise des Intellekts Schopenhauer-
Jahrbuch 86 2005 p 105-132 162
Ibidem p 107 163
Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 164
Ibidem p 110-111 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 165
Ibidem p 112 166
Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor)
- 217 -
mundo cujo centro eacute a Vontade entendida poreacutem como transcendente em relaccedilatildeo aos
elementos subjetivos do conhecimento O filoacutesofo misturaria o dualismo kantiano com o
monismo de Espinosa e diz Schmidt sua
Metafiacutesica a posteriori ultrapassa a natureza dada no cotidiano e na ciecircncia
na medida em que a interpreta e expotildee Ao decifrar o ldquoconjunto a
experiecircnciardquo alcanccedilam-se visotildees ldquoque natildeo vecircm agrave consciecircnciardquo O que se
oculta ldquodentro ou atraacutesrdquo da natureza eacute sempre apenas o que ldquoaparece nelardquo167
Natildeo obstante Schopenhauer admitiria o naturalismo na concepccedilatildeo
fisioloacutegica do ceacuterebro somente ateacute o ponto em que o idealismo se impusesse e promovesse a
exclusatildeo daquele Isso ocorreria por meio da perspectiva eacutetica na medida em que a teoria do
conhecimento teria evidenciado o caraacuteter secundaacuterio e ilusoacuterio do mundo fenomecircnico
segundo uma tendecircncia moral fundamental Nas palavras de Schmidt
Quanto agrave convicccedilatildeo de Schopenhauer de uma ordem do mundo uma
segunda moral ela seraacute possibilitada pela sua concepccedilatildeo filosoacutefico-
transcendental que relativiza a realidade objetiva do mundo entatildeo fica
evidente que este por sua vez eacute relativo agrave dependecircncia natural do intelecto
que Schopenhauer continuamente sublinha Como o proacuteprio intelecto eacute uma
parte da natureza natildeo pode contrapor-se a ela ndash que reduz suas pretensotildees
transcendentais ndash ldquocomo algo totalmente estranhordquo168
44 ndash Anaacutelise pessoal
Como a exposiccedilatildeo anterior deixou claro a filosofia de Schopenhauer tem
sido avaliada das mais diversas maneiras ao longo da Histoacuteria Com exceccedilatildeo das
apresentaccedilotildees de cunho geral cada inteacuterprete de sua obra procura um fio condutor que possa
guiar a compreensatildeo das vaacuterias facetas que ela apresenta e em funccedilatildeo disso podemos
encontrar interpretaccedilotildees que situam o ponto central do sistema no materialismo no idealismo
no pessimismo na esteacutetica na moral no consolo na trageacutedia na salvaccedilatildeo entre outros
167
Ibidem p 113 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 168
Ibidem p 125 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor)
- 218 -
Proporemos aqui uma leitura alternativa cuja motivaccedilatildeo estaacute nas tensotildees e dificuldades que o
pensamento schopenhaueriano revela aos seus leitores Ao que nos parece essas tensotildees e
dificuldades satildeo constitutivas essenciais isto eacute fazem parte da sua estrutura e natildeo podem ser
eliminadas Sintomaticamente o problema das contradiccedilotildees e dos conflitos entre teses opostas
tem permanecido no decurso do tempo e as tentativas de resoluccedilatildeo natildeo tiveram resultado
definitivo Para noacutes isso significa que a questatildeo eacute mais complexa do que se tem pensado e
exige uma mudanccedila de perspectiva e de abordagem
Partindo dessa convicccedilatildeo pensamos que eacute possiacutevel esclarecer a estrutura
da filosofia schopenhaueriana e as decisotildees teoacutericas tomadas pelo filoacutesofo com base na
concepccedilatildeo das chamadas loacutegicas paraconsistentes Nossa intenccedilatildeo natildeo eacute eliminar ou resolver
os problemas mas apontar uma perspectiva em que eles natildeo sejam estagnadores isto eacute natildeo
interrompam a investigaccedilatildeo como obstaacuteculos intransponiacuteveis Nesse sentido lembramos a
concepccedilatildeo de Schopenhauer sobre deduccedilotildees demonstraccedilotildees verdades e certezas Como
vimos para ele nem tudo pode ser demonstrado de modo exaustivo e isso natildeo significa
prejuiacutezo algum para a verdade ou a certeza acerca das afirmaccedilotildees Haacute diversos conhecimentos
indemonstraacuteveis e simultaneamente verdadeiros e certos como as intuiccedilotildees a priori do
tempo e do espaccedilo o uacuteltimo elo das cadeias de raciociacutenios e o proacuteprio princiacutepio de razatildeo De
fato Schopenhauer considera que as verdades trazidas agrave tona por demonstraccedilatildeo satildeo as
abstratas conhecidas somente por conceitos e que sua persuasatildeo natildeo eacute tatildeo forte como as
ligadas a intuiccedilotildees ou a conhecimentos a priori Eacute a diferenccedila entre convictio e cognitio que
faz a uacuteltima preferiacutevel agrave primeira Em vista disso julgamos que a loacutegica natildeo pode ser tratada
como um entrave agrave compreensatildeo e avaliaccedilatildeo do pensamento schopenhaueriano
principalmente na atualidade em que os pressupostos claacutessicos tecircm sido relativizados e que
diferentes tipos de loacutegica tecircm servido a distintos objetos de estudo
A perspectiva segundo a qual consideramos possiacutevel compreender a
filosofia de Schopenhauer com todas as suas tensotildees eacute a da loacutegica paraclaacutessica novo ramo
das loacutegicas paraconsistentes desenvolvido pelo loacutegico brasileiro Newton da Costa Dentro do
abrangente campo das loacutegicas natildeo claacutessicas as loacutegicas paraconsistentes voltam-se para o
princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo que estaacute na base de todas as questotildees que discutimos neste
trabalho com resultados uacuteteis para noacutes Sem duacutevida o surgimento e o desenvolvimento
dessas loacutegicas satildeo fenocircmenos recentes localizados no seacuteculo XX o que significa que natildeo
havia nada semelhante nos tempos em que Schopenhauer vivia e pensava Dessa perspectiva
- 219 -
a anaacutelise que pretendemos poderia parecer inusitada e fora de propoacutesito ainda mais se
considerarmos que o proacuteprio Schopenhauer remeteu todas as contradiccedilotildees que detectou agrave
oposiccedilatildeo dos pontos de vista da Vontade e da reprentaccedilatildeo Estariacuteamos nesse caso utilizando
ideias posteriores como recurso para avaliaccedilatildeo de pensamentos aos quais historicamente elas
natildeo se aplicariam Contudo natildeo empregaremos as criacuteticas contemporacircneas ao princiacutepio de
natildeo contradiccedilatildeo para afirmar que a filosofia schopenhaueriana estaria isenta de observaacute-lo Ao
contraacuterio tomamos suas dificuldades como fatos que todavia podem ser mais bem
compreendidos se adotarmos um ponto de partida diferente E no nosso entendimento ao se
investigar e tentar compreender qualquer questatildeo relacionada ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo
nos seus significados loacutegico ou filosoacutefico natildeo se pode prescindir das contribuiccedilotildees teoacutericas
mais recentes
Desse modo analisaremos a estrutura do mundo projetado pela filosofia
schopenhaueriana com base na conceituaccedilatildeo e discussatildeo da loacutegica paraclaacutessica O objeto da
anaacutelise aqui natildeo eacute exatamente o discurso de Schopenhauer ou o possiacutevel desrespeito ao
princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo nas suas obras mas os eixos do mundo delineado por ele que
nos parecem formar uma composiccedilatildeo paraclaacutessica Assim eacute agrave concepccedilatildeo schopenhaueriana
de mundo apoiada firmemente na intuiccedilatildeo empiacuterica que queremos aplicar as ideias acerca da
paraconsistecircncia Como dissemos anteriormente natildeo queremos formalizar a filosofia de
Schopenhauer natildeo pretendemos calcular seus teoremas ou conclusotildees para provar se eacute ou natildeo
inconsistente Ademais nossa pesquisa mostrou que nada disso eacute necessaacuterio pois a
inconsistecircncia eacute uma de suas caracteriacutesticas mais fundamentais
Newton da Costa eacute reconhecido como fundador das loacutegicas
paraconsistentes e como um dos mais importantes loacutegicos da atualidade pelo
desenvolvimento dos caacutelculos Cn Nesses caacutelculos a violaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo
natildeo representa obstaacuteculo agraves deduccedilotildees de forma que natildeo eacute necessaacuterio eliminarem-se as
inconsistecircncias A atenccedilatildeo se volta para a supressatildeo da trivialidade que representa o
verdadeiro problema da contradiccedilatildeo e uma consequecircncia das teorias inconsistentes nas quais
se podem deduzir quaisquer proposiccedilotildees mesmo as contraditoacuterias entre si Com efeito em
funccedilatildeo da trivialidade em uma mesma teoria eacute possiacutevel deduzir uma proposiccedilatildeo sua
contraditoacuteria e na verdade quaisquer proposiccedilotildees Daiacute resulta que uma teoria contraditoacuteria
natildeo ofereceria condiccedilotildees para que se pudesse estabelecer e demonstrar a diferenccedila entre o
verdadeiro e o falso dentro de seus proacuteprios pressupostos O desenvolvimento das loacutegicas
- 220 -
paraconsistentes poreacutem abriu a possibilidade de que as inconsistecircncias sejam admitidas
pressupondo que existem diversas situaccedilotildees em que elas natildeo conduzem necessariamente agrave
trivialidade E o meio de fazecirc-lo eacute desenvolvendo o caacutelculo de um modo tal que duas
premissas contraditoacuterias possam ser verdadeiras mas que sua conjunccedilatildeo natildeo possa ser
deduzida
Conforme Da Costa entre os objetivos das loacutegicas paraconsistentes estaacute
o de contribuir para o entendimento das leis claacutessicas do conceito de negaccedilatildeo e de
contradiccedilatildeo bem como de sistemas inconsistentes169
Natildeo abordaremos as teacutecnicas de caacutelculo
que fogem ao nosso escopo mas as consideraccedilotildees sobre o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo e
sobre o fundamento da loacutegica paraclaacutessica satildeo interessantes para noacutes170
No acircmbito da loacutegica
claacutessica o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute visto como necessariamente verdadeiro evidente
por si mesmo indemonstraacutevel e universal valendo para todo objeto e todo raciociacutenio Sobre
esse ponto Da Costa argumenta que a loacutegica contemporacircnea relativizou o conceito de
demonstraccedilatildeo e que jaacute natildeo se aceita a existecircncia de princiacutepios loacutegicos uacuteltimos Conforme a
posiccedilatildeo recente cada princiacutepio deve ser demonstrado a partir de outros que jaacute o foram de
modo que mesmo sendo utilizada em mecanismos dedutivos a lei de natildeo contradiccedilatildeo natildeo
poderia ser tomada como indemonstraacutevel171
De acordo com isso as leis empregadas devem ser justificadas
pragmaticamente dentro de um conjunto concatenado de postulados A justificaccedilatildeo de
quaisquer princiacutepios teria de ser feita tomando os sistemas loacutegicos como um conjunto e natildeo
princiacutepio por princiacutepio separadamente A negaccedilatildeo a conjunccedilatildeo a disjunccedilatildeo e quaisquer
conceitos podem ter significados distintos em diferentes sistemas de forma que natildeo se
poderia aplicar uma noccedilatildeo uacutenica a quaisquer objetos de estudo possiacuteveis Como escreve Da
Costa ldquo[] como defender a lei da contradiccedilatildeo isoladamente sem se levar em conta os
demais postulados que definem os conceitos basilares envolvidos no seu enunciadordquo172
A
justificaccedilatildeo adequada entatildeo eacute aquela que leva em conta um uso localizado do princiacutepio natildeo
universalizado dentro de um sistema loacutegico determinado e com um fim especiacutefico A
extrapolaccedilatildeo dele para todos os objetos e relaccedilotildees seria algo arbitraacuterio e injustificado pois sua
169
DA COSTA Newton Carneiro Affonso Ensaio sobre os fundamentos da loacutegica 3ordf ed Satildeo Paulo Hucitec
2008 p 172 170
Para um detalhamento maior dos caacutelculos paraconsistentes cf DA COSTA Newton Carneiro Affonso
Sistemas formais inconsistentes Curitiba UFPR 1993 171
DA COSTA op cit p 122 172
Ibidem p 126
- 221 -
supressatildeo natildeo significaria necessariamente a inviabilizaccedilatildeo pensamento do discurso ou da
comunicaccedilatildeo de ideias
Aleacutem disso embora jamais tenham sido observadas contradiccedilotildees reais e
concretas em objetos empiacutericos natildeo estaria provado que elas natildeo existam no mundo Na
verdade conforme Da Costa elas poderiam ser constatadas apenas mediatamente por meio
de inferecircncias na medida em que diz dele ldquonatildeo haacute contradiccedilotildees diretamente perceptiacuteveis
pois as negaccedilotildees correlacionadas a juiacutezos de percepccedilatildeo natildeo satildeo elas mesmas perceptiacuteveis
(pelo menos em nossa experiecircncia cotidiana)rdquo173
Nesse sentido o princiacutepio de natildeo
contradiccedilatildeo natildeo estaria demonstrado tampouco a impossibilidade de haver contradiccedilotildees reais
Sua validade seria a de um postulado em um sistema loacutegico especiacutefico que teria de ser
escolhido conforme o campo particular no qual seria aplicado Um princiacutepio como esse seria
como uma hipoacutetese acerca do funcionamento da realidade e deveria ser aceito na medida em
que se liga ou natildeo a ela Como afirma Da Costa
Positivamente sem se recorrer agrave especulaccedilatildeo soacute se pode sustentar que as
normas loacutegicas regem certas categorias que empregamos como andaimes
para nos assenhorearmos de nosso contorno no tocante ao seu significado
empiacuterico ndash encaradas como parte da ciecircncia satildeo a posteriori e entre
limites pragmaacuteticas regras para jogar174
A escolha de um sistema loacutegico portanto deve ser pautada pela
compatibilidade com o objeto ao qual se aplicaraacute e pela maior clareza e significaccedilatildeo que
imprime agraves teses e conceitos Por conseguinte a inconsistecircncia de uma teoria natildeo pode ser
tomada como implicando necessariamente sua inadequaccedilatildeo ao mundo empiacuterico nem a
invalidade da sua cadeia argumentativa como um todo Com recurso apenas agrave loacutegica diz Da
Costa natildeo se pode garantir que natildeo existam contradiccedilotildees reais e concretas no mundo as quais
poderatildeo estar escondidas ou ser imperceptiacuteveis Caso existam elas seratildeo concluiacutedas
inferidas posto que as negaccedilotildees de juiacutezos de percepccedilatildeo natildeo podem elas mesmas ser intuiacutedas
Sobre esse ponto lembramos que Schopenhauer tambeacutem considerou a contradiccedilatildeo como uma
impossibilidade loacutegica e natildeo de ordem fiacutesica ou matemaacutetica175
A loacutegica paraclaacutessica eacute um ramo bastante novo das loacutegicas
paraconsistentes pensado por Da Costa com relaccedilatildeo a uma das interpretaccedilotildees possiacuteveis do
173
Ibidem p 130 174
Ibidem p 134-135 175
WWWII Kap 4 p 46 MII cap 4 p 40-41
- 222 -
chamado Princiacutepio da Complementaridade de Niels Bohr176
No texto Complementarity and
paraconsistency177
escrito por ele em conjunto com Deacutecio Krause os autores ressaltam que
natildeo haacute consenso entre os estudiosos sobre o sentido exato que Bohr teria atribuiacutedo ao
princiacutepio e que natildeo pretendem realizar uma exegese das ideias do fiacutesico A intenccedilatildeo eacute
evidenciar a estrutura loacutegica de uma teoria que fosse elaborada com base nele entendido
numa perspectiva especiacutefica facultada por excertos de Bohr178
ldquoAssimrdquo escrevem os autores
ldquosugerimos que sob uma interpretaccedilatildeo possiacutevel do que deve ser entendido por
complementaridade a loacutegica subjacente a uma tal teoria eacute a loacutegica paraclaacutessica (proposta
primeiro por Da Costa e Vernengo 1999)rdquo179
O sentido que Da Costa e Krause referem ao conceito de
complementaridade eacute especialmente relevante para noacutes qual seja o de incompatibilidade
entre teses Como eles explicam ldquoEm outras palavras parece perfeitamente razoaacutevel
considerar aspectos complementares como incompatiacuteveis no sentido de que sua combinaccedilatildeo
numa descriccedilatildeo uacutenica pode levar a dificuldadesrdquo180
O conceito de complementaridade desse
modo relaciona-se a teses ou proposiccedilotildees que natildeo podem ser combinadas porque se excluem
reciprocamente Sobre esse ponto no artigo The logic of complementarity eles esclarecem
Deve ser enfatizado que nosso modo de caracterizar a complementaridade
natildeo significa que proposiccedilotildees complementares satildeo sempre contraditoacuterias
para α e β acima uma natildeo eacute necessariamente a negaccedilatildeo da outra No entanto
como proposiccedilotildees complementares podemos derivar delas (na loacutegica
claacutessica) uma contradiccedilatildeo para exemplificar observamos que bdquox eacute uma
partiacutecula‟ natildeo eacute a negaccedilatildeo direta de bdquox eacute uma onda‟ mas bdquox eacute uma partiacutecula‟
implica que x natildeo eacute uma onda Essa leitura da complementaridade como natildeo
indicando contradiccedilatildeo estrita como jaacute deixamos claro estaacute de acordo com o
proacuteprio Bohr []181
Apesar dessa muacutetua exclusatildeo ambos os aspectos complementares satildeo
176
Cf DA COSTA N VERNENGO R J Sobre algunas loacutegicas paraclaacutesicas y el anaacutelisis del razonamiento
juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho Universidad de Alicante Centro de Estudios
Constitucionales 19 1996 p 183-200 DA COSTA N KRAUSE D Complementary and paraconsistency In
RAHMAN Shahid et al (eds) Logic Epistemology and the Unity of Science (Book 1) Dordrecht Kluwer
Ademic Publishers 2004 DA COSTA N KRAUSE D The logic of complementarity Departamento de
Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina 2003 DA COSTA N KRAUSE D Remarks on the
applications of paraconsistency Grupo de pesquisa em Loacutegica e fundamentos da ciecircncia Departamento de
Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina 2003 177
DA COSTA N KRAUSE D Complementary and paraconsistency In RAHMAN Shahid et al (eds)
Logic Epistemology and the Unity of Science (Book 1) Dordrecht Kluwer Ademic Publishers 2004 178
Ibidem p 1-2 179
Ibidem p 2 (traduccedilatildeo nossa) (grifos dos autores) 180
Ibidem p 5 (traduccedilatildeo nossa) (grifos dos autores) 181
DA COSTA N KRAUSE D The logic of complementrity Departamento de Filosofia Universidade
Federal de Santa Catarina 2003 p 12 (traduccedilatildeo nossa) (grifos dos autores)
- 223 -
considerados imprescindiacuteveis para uma compreensatildeo completa e adequada do objeto Daiacute a
necessidade de se pensar numa forma de mantecirc-los sem que a teoria como um todo venha a
ser inviabilizada Do ponto de vista claacutessico a existecircncia de duas teses verdadeiras permite
deduzir a conjunccedilatildeo delas e isso eacute o que torna complicado manterem-se enunciados
mutuamente excludentes num mesmo sistema Em vista disso a proposta da loacutegica
paraclaacutessica eacute a de impedir que a conjunccedilatildeo de aspectos complementares possa ser deduzida
sem que a teoria tenha de abrir matildeo de algum deles Assim numa teoria cuja loacutegica de base eacute
a paraclaacutessica a existecircncia de proposiccedilotildees incompatiacuteveis natildeo eacute impugnada somente a
conjunccedilatildeo delas o seraacute ldquoEm outras palavrasrdquo explicam Da Costa e Krause ldquoas teorias que
caracterizaremos abaixo satildeo tais que de γ e not γ natildeo podemos deduzir γ ˄not γ isto eacute uma
contradiccedilatildeordquo182
Eacute importante observarmos que embora tenha sido pensado no contexto
da fiacutesica quacircntica nada impede que o Princiacutepio da Complementaridade seja tomado em
sentido mais amplo Da Costa e Krause argumentam que Bohr o considerou como parte de
uma atitude epistemoloacutegica geral capaz de evitar dificuldades tambeacutem em outros campos da
ciecircncia Para eles o Princiacutepio da Complementaridade natildeo se configura apenas como um
preceito especiacutefico de uma ciecircncia em particular a fiacutesica mas aleacutem disso como um princiacutepio
metodoloacutegico regulativo183
Em suma nas palavras dos autores ldquoDe qualquer modo nossa
definiccedilatildeo eacute muito geral e eacute claro natildeo eacute restrita agrave fiacutesica sendo uacutetil tambeacutem em outras
situaccedilotildeesrdquo184
Segundo pensamos essa concepccedilatildeo da loacutegica paraclaacutessica contribui para
uma compreensatildeo mais completa do pensamento schopenhaueriano e com isso tambeacutem da
antinomia com a qual nos ocupamos Como vimos Schopenhauer vincula sua filosofia agrave
discussatildeo histoacuterica sobre a relaccedilatildeo entre o ideal e o real Para ele Platatildeo Kant e os Vedas
ensinaram a total diferenccedila entre os dois domiacutenios e abriram caminho para sua proacutepria
interpretaccedilatildeo do mundo como representaccedilatildeo e Vontade O ideal e o real satildeo como dois lados
de uma mesma esfera um externo e o outro interno um ilusoacuterio e o outro genuiacuteno um
182
DA COSTA N KRAUSE D Complementary and paraconsistency In RAHMAN Shahid et al (eds)
Logic Epistemology and the Unity of Science (Book 1) Dordrecht Kluwer Ademic Publishers 2004 p 2
(traduccedilatildeo nossa) 183
DA COSTA N KRAUSE D The logic of complementrity Departamento de Filosofia Universidade
Federal de Santa Catarina 2003 p 2 184
DA COSTA N KRAUSE D Remarks on the applications of paraconsistency Grupo de pesquisa em
Loacutegica e fundamentos da ciecircncia Departamento de Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina 2003 p
16 (traduccedilatildeo nossa)
- 224 -
efecircmero e o outro perene Na condiccedilatildeo de representaccedilatildeo o lado externo do mundo eacute criaccedilatildeo
de um intelecto sendo por isso mesmo fenomecircnico mutaacutevel e pereciacutevel Na condiccedilatildeo de
coisa em si por sua vez a Vontade natildeo pode ser investida nas formas do conhecimento o que
a torna alheia ao tempo ao espaccedilo e agrave causalidade e a configura como o mais real o imutaacutevel
e o impereciacutevel Em que pese serem descritos por Schopenhauer como opostos ambos os
lados satildeo igualmente necessaacuterios para uma explicaccedilatildeo correta e completa do mundo Na nossa
interpretaccedilatildeo o real e o ideal satildeo apresentados em condicionamento muacutetuo pelo filoacutesofo na
medida em que ele enfatiza em diversos momentos que a representaccedilatildeo soacute o eacute com relaccedilatildeo agrave
Vontade e tambeacutem que o que conhecemos como a coisa em si soacute o eacute em relaccedilatildeo ao
fenocircmeno Natildeo faria sentido portanto imaginar o mundo sem uma das suas partes
constituintes fosse a coisa em si fosse o fenocircmeno do mesmo modo que natildeo faz sentido
separar sujeito e objeto Por conseguinte a filosofia schopenhaueriana parte de uma
convicccedilatildeo que envolve tanto exclusatildeo quanto exigecircncia muacutetua entre os acircmbitos do real e do
ideal sendo totalmente compatiacutevel com a concepccedilatildeo acerca do Princiacutepio de
Complementaridade tal como exposto por Da Costa e Krause no tocante agrave loacutegica
paraclaacutessica
No nosso entendimento eacute necessaacuterio realizarmos aqui uma
desambiguaccedilatildeo Schopenhauer tambeacutem associa o real e o ideal como complementares em
sentidos diferentes quais sejam o de ideal como o transcendental e o de real como o
empiacuterico Nesse caso como no anterior cada aspecto eacute exigido e excluiacutedo simultaneamente
em relaccedilatildeo ao outro e sua complementaridade transparece em certos pontos da investigaccedilatildeo
nos quais os fundamentos de ambos se cruzam Esses satildeo os momentos em que Schopenhauer
chega aos limites extremos do idealismo e onde seu discurso se torna obscuro e equiacutevoco
Com efeito o idealismo chega ao seu limite no ponto em que precisa assegurar a realidade
empiacuterica de um mundo que eacute criado por um intelecto Ou seja o idealismo tem de ser
radicalmente afirmado mas natildeo a ponto de se tornar absoluto e eliminar qualquer referecircncia agrave
experiecircncia Entatildeo a parte ideal do mundo deve ser completada com elementos reais nesse
caso os dados sensoriais advindos dos sentidos que garantiratildeo que o objeto seja
condicionado pelo sujeito sem deixar de ser empiricamente real No entanto a demonstraccedilatildeo
da idealidade se faz excluindo os conteuacutedos empiacutericos ou minimizando sua relevacircncia no
processo do conhecer para que se mantenha seu caraacuteter de criaccedilatildeo intelectual Daiacute deriva a
necessidade de se admitir que o espaccedilo esteja na cabeccedila e que esta ao mesmo tempo esteja
no espaccedilo natildeo se pode abrir matildeo do idealismo (que o espaccedilo seja uma forma a priori do
- 225 -
intelecto) nem do realismo (que a cabeccedila tenha existecircncia real no mundo dos objetos) Daiacute
tambeacutem a estranheza que sentimos ao observar o mesmo objeto nas duas perspectivas
mutuamente excludentes porque natildeo podemos abandonar nenhuma delas
Para considerarmos a complementaridade pelo prisma do realismo
precisamos atentar para os dois sentidos de real expostos acima Em primeira instacircncia o real
eacute o aspecto fiacutesico do mundo a sensaccedilatildeo as intuiccedilotildees o conjunto da experiecircncia numa
palavra eacute o fundamento objetivo que o idealismo natildeo deve anular Em segunda instacircncia o
real eacute o metafiacutesico o que estaacute aleacutem do conhecimento empiacuterico numa palavra a Vontade que
o idealismo natildeo permite acessar Tomado no primeiro sentido a argumentaccedilatildeo acerca do real
precisa garantir que elementos empiacutericos possam dar sustentaccedilatildeo ao idealismo sem que sejam
concebidos como em si isto eacute devem ancorar o lado ideal mas sem anular o aspecto de
relatividade do mundo como representaccedilatildeo Nesse caso poreacutem ideal e real distinguem-se
como o formado e o informe o regrado e o aleatoacuterio o subjetivo e o objetivo Tomado no
segundo sentido por sua vez o real eacute exatamente aquilo que ultrapassa a representaccedilatildeo que a
sustenta remediando sua relatividade e inconstacircncia e o que garante que o mundo natildeo seja
pura e simplesmente aparecircncia sem nada que apareccedila Nesse sentido contudo ideal e real se
excluem como o fenocircmeno e a coisa em si o externo e o interno o temporal e o atemporal o
extenso e o inextenso Daiacute deriva a necessidade de se admitir que o primeiro animal
cognoscente engendre o mundo da representaccedilatildeo e que o mundo da representaccedilatildeo engendre o
mesmo animal aqui tambeacutem natildeo se pode abrir matildeo do idealismo (que a representaccedilatildeo seja
produto do intelecto animal) nem do realismo (que a Vontade seja a essecircncia do mundo e
produza o intelecto animal para seus fins) A complementaridade das perspectivas nesse caso
situa o primeiro animal em dois pontos diferentes do tempo sem que possamos retiraacute-lo de
nenhum deles
Por conseguinte nos dois sentidos mencionados o lado real do mundo eacute
exigido e afastado simultaneamente em relaccedilatildeo ao lado ideal no primeiro sentido o real eacute a
necessaacuteria referecircncia agrave fisiologia ao corpo agrave comprovaccedilatildeo das ciecircncias empiacutericas ao mesmo
tempo em que deve ser controlado para natildeo inviabilizar o idealismo No segundo sentido o
real eacute o metafiacutesico o sustentaacuteculo necessaacuterio da representaccedilatildeo mas que natildeo pode tomar as
formas do intelecto isto eacute natildeo pode ser conhecido nem alcanccedilado No nosso modo de ver
todos esses aspectos se condensam na concepccedilatildeo de que os conteuacutedos empiacutericos introduzem
no pensamento elementos que natildeo podem ser completamente conhecidos por natildeo serem
- 226 -
condicionados pelas formas do sujeito Quanto menos elementos empiacutericos contiver mais um
objeto pode ser conhecido quanto mais conteuacutedos empiacutericos exibir menos poderaacute ser
compreendido Como resultado a Vontade se anuncia e se revela nos elementos sensiacuteveis do
mundo como representaccedilatildeo que satildeo conhecidos somente a posteriori tornando-se entatildeo
necessaacuterio aceitar como verdadeiro que ela se exibe na experiecircncia tanto quanto que a
ultrapassa
Com base nessa perspectiva esclarece-se por que Schopenhauer reafirma
e ressalta a unilateralidade do idealismo e do realismo para a compreensatildeo do mundo como
representaccedilatildeo185
Ambos contecircm fundamentos verdadeiros que natildeo podem ser excluiacutedos de
uma explicaccedilatildeo completa das coisas isto eacute precisam ser combinados para que um compense
as insuficiecircncias do outro A uniatildeo dos pontos de vista objetivo e subjetivo eacute entatildeo
imprescindiacutevel apesar de todos os conflitos e oposiccedilotildees que possam surgir a partir dela De
modo semelhante somente com o idealismo ou com o realismo dificilmente se esgotaraacute a
compreensatildeo da relaccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si Nesse uacuteltimo caso embora sejam
radicalmente contrapostas a exigecircncia muacutetua entre Vontade e representaccedilatildeo eacute ainda mais
necessaacuteria na medida em que no fim de contas constituem o mesmo ente De acordo com
isso a uniatildeo dos pontos de vista demonstraraacute que todas as coisas satildeo idecircnticas e que assim
como noacutes tudo eacute Vontade A complementaridade entre idealismo e realismo nesse aspecto
remete novamente agrave imagem circular formada pela antinomia da teoria do conhecimento
Com efeito do mesmo modo como a chuva que se forma pela evaporaccedilatildeo e a aacutegua que molha
a terra satildeo uma e a mesma coisa apenas cristalizada momentaneamente em pontos diferentes
na consideraccedilatildeo do processo tambeacutem o animal e o mundo satildeo um e o mesmo apenas
considerados imperfeitamente em pontos distintos de uma linha do tempo De fato tanto o
animal quanto o mundo satildeo representaccedilotildees e somente nesse sentido pode-se afirmar que haja
multiplicidade e que um engendre o outro No fundamento de tudo poreacutem a Vontade
permanece una e incoacutelume Sobre esse ponto em uma nota do texto ldquoPensamentos sobre o
intelecto em geral e no tocante a cada relaccedilatildeordquo de Parerga e Paralipomena Schopenhauer
escreve de modo interessante
Se olho algum objeto talvez uma paisagem e imagino que nesse momento
me cortassem a cabeccedila ndash sei que o objeto permaneceria estaacutetico e inabalaacutevel
185
Cf PP II Kap 1 sect13 p 20 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de
Miguel Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 13 p 198-199
- 227 -
mas isso implica nos seus fundamentos mais uacuteltimos que eu tambeacutem
existiria Isso seraacute claro para poucos mas para estes foi dito186
Por fim conforme exposto ao longo deste trabalho a filosofia
schopenhaueriana sustenta a identidade de todas as coisas a unidade da Vontade e a ilusatildeo da
multiplicidade Sustenta tambeacutem que a Vontade eacute idecircntica ao corpo e que este eacute
imprescindiacutevel para a construccedilatildeo do mundo como representaccedilatildeo Portanto segundo
pensamos a dimensatildeo corporal do mundo reuacutene todas as peccedilas que fazem dele um conjunto
inconsistente em que o interno e o externo o real e o ilusoacuterio o fenocircmeno e a coisa em si se
unem ao mesmo tempo em que se repelem mutuamente Essa inconsistecircncia como dissemos
pode ser mais bem compreendida se associarmos o mundo schopenhaueriano agrave loacutegica
paraclaacutessica na qual teses incompatiacuteveis natildeo resultam em problemas se natildeo conduzem agrave
trivialidade E esse nos parece ser exatamente o caso pois A rarr M e M rarr A podem ser
tomadas como proposiccedilotildees complementares sem que por isso levem a uma contradiccedilatildeo e por
conseguinte a filosofia schopenhaueriana natildeo pode ser classificada como trivial
186
Ibidem Kap 3 sect28 p 48 ibidem sect 28 p 232
- 228 -
Referecircncias
Obras de Schopenhauer consultadas
SCHOPENHAUER A Saumlmmtliche Werke 6 Baumlnde Leipzig Brockhaus 1873
Herausgegeben von Julius Frauenstaumldt
_____ Saumlmtliche Werke 16 Baumlnde Muumlnchen Piper 1911-1942 Herausgegeben von Paul
Deussen
_____ Zuumlrcher Ausgabe 10 Baumlnden Zuumlrich Diogenes Verlag 2007 Der Text folgt der
historisch-kritischen Ausgabe von Arthur Huumlbscher
_____ Die Welt als Wille und Vorstellung I und II Gesamtausgabe Muumlnchen Deutschen
Taschenbuch 2011 Nach den Ausgaben letzter Hand herausgegeben von Ludger Luumltkehaus
_____ Kritik der kantischen Philosophie In Die Welt als Wille und Vorstellung I und II
Gesamtausgabe Muumlnchen Deutschen Taschenbuch 2011 Nach den Ausgaben letzter Hand
herausgegeben von Ludger Luumltkehaus
_____ Saumlmtliche Werke 5 Baumlnde StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 2012 Textkritisch
bearbeitet und herausgegeben von Wolfgang Frhr von Loumlhneysen
_____ De la cuaacutedruple raiacutez del principio del razoacuten suficiente Traduccioacuten y proacutelogo de
Leopoldo-Eulogio Palacios Madrid Gredos 1981
_____ De la volonteacute dans la nature Traduction avec introduction et notes par Eacutedouard Sans
Paris Quadrige PUF 1986
_____ Sobre la voluntad en la naturaleza 1ordf ed 3ordf reimpr Traduccioacuten de Miguel de
Unamuno Proacutelogo y notas de Santiago Gonzaacutelez Noriega Madrid Alianza 1987
_____ Criacutetica da filosofia kantiana Traduccedilatildeo de Wolfgang Leo Maar e Maria Luacutecia Mello e
Oliveira Cacciola Satildeo Paulo Nova Cultural 1988 (Coleccedilatildeo Os pensadores)
_____ Los designios del destino Estudio preliminar traduccioacuten y notas de Roberto
Rodriacutegues Aramayo Madrid Tecnos 1994
- 229 -
_____ Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de Miguel
Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996
_____ Sobre a visatildeo e as cores um tratado Traduccedilatildeo de Erlon Joseacute Paschoal Nova
Alexandria Satildeo Paulo 2003
_____ Fragmentos para a histoacuteria da filosofia Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas de Maria
Luacutecia Cacciola Satildeo Paulo Iluminuras 2003
_____ El Mundo como Voluntad y Representacioacuten Traduccioacuten de Rafael-Joseacute Diacuteaz
Fernaacutendez y Mordf Montserrat Armas Concepcioacuten Revisioacuten de Joaquiacuten Chamorro Mielke
Madrid Akal Editores 2005
_____ O mundo como vontade e representaccedilatildeo 1ordf tomo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo notas e
iacutendices de Jair Barboza Satildeo Paulo UNESP 2005
_____ O mundo como vontade e representaccedilatildeo 2ordf tomo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo notas e
iacutendices de Jair Barboza Satildeo Paulo UNESP 2015
Obras gerais consultadas
AMERIKS Karl (ed) The Cambridge Companion to German Idealism Cambridge
Cambridge University Press 2006
ARISTOacuteTELES Organon 5 vol Traduccedilatildeo de Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees 1986
_____ Metafiacutesica Traduccioacuten de Valentiacuten Garciacutea Yebra 2ordf ed Triliacutengue 1ordf reimpr Madrid
Gredos 1987
ASHER David Das Endergebniss der Schopenhauerrsquoschen Philosophie in seiner
Uebereinstimmung mit eine der aumlltesten Religionen dargestellt Leipzig Arnoldische
Buchhandlung 1885
BACON F The New organon New York Cambridge University Press 2000
- 230 -
BAumlHR C G Die schopenhauerrsquosche Philosophie in ihren Grundzuumlgen dargestellt und
kritisch beleuchtet Dresden Rudolf Kuntze 1857
BECKENKAMP J Entre Kant e Hegel Porto Alegre EDIPUCRS 2004
BERG Jan Robert Idealismus und Voluntarismus in der Metaphysik Schellings und
Schopenhauers Wuumlrzburg Koumlnigshauser amp Neumann 2003
BIRNBACHER Dieter (Hrsg) Schopenhauer in der Philosophie der Gegenwart Wuumlrzburg
Koumlnigshausen amp Neumann 1996
BONACCINI Juan Adolfo Kant e o problema da coisa em si no Idealismo Alematildeo sua
atualidade e relevacircncia para compreensatildeo do problema da Filosofia Rio de Janeiro Relume
Dumaraacute Natal UFRN 2003
BOOMS Martin Aporie und Subjekt Die Erkenntnistheoretischen Entfaltungslogik der
Philosophie Schopenhauers Beitraumlge zur Philosophie Schopenhauers herausgegeben von
Dieter Birnbacher und Heinz Gerd Ingekamp Band 6 Wurzburg Koumlnigshausen amp Neuman
2003
BRANDAtildeO E A concepccedilatildeo de mateacuteria na obra de Schopenhauer Satildeo Paulo Humanitas
2008
CACCIOLA M L A criacutetica da Razatildeo no pensamento de Schopenhauer Dissertaccedilatildeo
(Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo
Paulo Departamento de Filosofia Satildeo Paulo 1981
_____ A questatildeo do finalismo na filosofia de Schopenhauer Discurso ndash Revista do
Departamento de Filosofia da USP nordm 20 1993 p 79-98
_____ Schopenhauer e a questatildeo do dogmatismo Satildeo Paulo EDUSP 1994
CALDWELL W Schopenhauerrsquos system in its philosophical significance New York
Charles Scribner‟s sons 1986
CARTWRIGHT David E Schopenhauer a biography Cambridge University Press 2010
- 231 -
CASSIRER E El problema del conocimiento 4 vol 1ordf ed 4ordf reimpr Traduccioacuten de
Wenceslao Roces Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1993
_____ Kant vida y doctrina 1ordf ed 6ordf reimpr Traduccioacuten de Wenceslao Roces Meacutexico
Fondo de Cultura Econoacutemica 2003
CORNILL A Arthur Schopenhauer als Uebergangsformation von einer idealistischen in
eine realistische Weltanschauung Heidelberg Mohr 1856 Disponiacutevel em
lthttpreaderdigitale-sammlungendedefs1objectdisplaybsb10045480_00007htmlgt
Acesso em 8 mai 2015
DA COSTA Newton Carneiro Affonso da Sistemas formais inconsistentes Curitiba UFPR
1993
_____ Ensaio sobre os fundamentos da loacutegica 3ordf ed Satildeo Paulo Hucitec 2008
_____ VERNENGO R J Sobre algunas loacutegicas paraclaacutesicas y el anaacutelisis del razonamiento
juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho Universidad de Alicante Centro de
Estudios Constitucionales 19 1996 p 183-200 Disponiacutevel em
lthttpwwwcervantesvirtualcomdescargaPdfsobre-algunas-lficas-paraclsicas-y-el-anlisis-
del-razonamiento-jurdico-0gt Acesso em 10 jan 2017
_____ KRAUSE D Complementary and paraconsistency In RAHMAN Shahid et al
(eds) Logic Epistemology and the Unity of Science (Book 1) Dordrecht Kluwer Ademic
Publishers 2004
_____ The logic of complementarity Departamento de Filosofia Universidade Federal de
Santa Catarina 2003 Disponivel em lthttpphilsci-archivepittedu15591CosKraPLpdfgt
Acesso em 10 jan 2017
_____ Remarks on the applications of paraconsistency Grupo de pesquisa em Loacutegica e
fundamentos da ciecircncia Departamento de Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina
2003 Disponiacutevel em lthttpphilsci-archivepittedu15661CosKraPATTYpdfgt Acesso
em 10 jan 2017
DELBOS V De kant aux postkantiens Introduction par Alexis Philonenko Preface de
Maurice Blondel Paris Aubier 1992
- 232 -
DEUSSEN P Allgemeine Geschichte der Philosophie 2 Auflage 2 Band 3 Abteilung
(Neuere Philosophie von Descartes bis Schopenhauer) Leipzig Brockhaus 1920 Disponiacutevel
em lthttpsarchiveorgdetailsallgemeinegeschi23deusuoftgt Acesso em 11 out 2015
_____ Die Elemente der Metaphysik Dritte durch eine Vorbetrachtung uumlber das Wesen des
Idealismus vermehrte Auflage Leipzig Brockhaus 1902 Disponiacutevel em
lthttpsarchiveorgdetailsdieelementederm00deusgooggt Acesso em 3 jan 2012
DUCROS L Schopenhauer les origines de sa meacutetaphysique ou les transformations de la
chose en soi de Kant a Schopenhauer Paris Germer Bailliegravere 1883 Disponiacuteel em
lthttpsarchiveorgdetailsscopenhauerleso00ducrgooggt Acesso em 11 fev 2010
ERDMANN J E Schopenhauer und Herbart eine Antithese In Zeitschrift fuumlr Philosophie
und philosophische Kritik Herausgegeben von Dr I H Fichte Dr Hermann Ulrici und I U
Wirth Neue Folge Band 21 Halle 1852 p 209-225 Disponiacutevel em
lthttpsarchiveorgstreamzeitschriftfrph19kritgoogpagen15mode2upgt Acesso em 5
jun 2013
FICHTE I H Ein Wort uumlber die Zukunft der Philosophie Als Nachschrift zum vorigen
Auffaβe In Zeitschrift fuumlr Philosophie und philosophische Kritik Herausgegeben von Dr I
H Fichte Dr Hermann Ulrici und J U Wirth Neue Folge Band 21 Halle 1852 p 226-240
Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreamzeitschriftfrph19kritgoogpagen15mode2upgt
Acesso em 5 jun 2013
FISCHER Ernst Von G E Schulze zu A Schopenhauer ein Beitrag zur Geschichte der
Kantischen Erkenntnistheorie Dissertation zur Erwerbung der Doktorwuumlrde der ersten
Sektion der hohen philosophischen Fakultaumlt der Universitaumlt Zuumlrich Aarau H R Sauerlaumlnder
1901
FISCHER Kuno Schopenhauers Leben Werke und Lehre Heidelberg Carl Winter‟s
Universitaumltsbuchhandlung 1908 Disponiacutevel em
lthttpsarchiveorgdetailsschopenhauersle00fiscgooggt Acesso em 02 out 2014
FORTLAGE C Genetische Geschichte der Philosophie seit Kant Leipzig Brockhaus 1852
Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreamgenetischegeschi00forpagen5mode2upgt
Acesso em 15 abr 2015
FOX Michael (Ed) Schopenhauers philosophical achievement Sussex Harvester Press
1980
- 233 -
FRAUENSTAumlDT J Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus
1854 Disponiacutevel em lthttpreaderdigitale-
sammlungendedefs1objectdisplaybsb10045792_00005htmlgt Acesso em 18 fev 2013
_____ Arthur Schopenhauer und seine Gegner In Unsere Zeit deutsche Revue der
Gegenwart Monatsschrift zum Conversationslexikon Band 52 Leipzig 1869 p 686-707
Disponiacutevel em lthttpreaderdigitale-
sammlungendedefs1objectdisplaybsb10401694_00696htmlgt Acesso em 29 mar 2014
_____ Schopenhauer-Lexicon ein Philosophisches Woumlrterbuch Erster Band Leipzig
Brockhaus 1871 Disponiacutevel em
lthttpsarchiveorgstreambub_gb_qQHnumNIwMsCpagen5mode2upgt Acesso em 25
jan 2012
_____ Schopenhauer-Lexicon ein Philosophisches Woumlrterbuch Zweiter Band Leipzig
Brockhaus 1871 Disponiacutevel em
lthttpsarchiveorgstreambub_gb_mhF6YpMYGcoCpagen5mode2upgt Acesso em 25
jan 2012
_____ Neue Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1876
Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreamneuebriefeberdi00fraugoogpagen7mode2upgt
Acesso em 20 set 2013
_____ LINDNER E O Arthur Schopenhauer Von Ihm uumlber ihn Berlin Hayn 1863
GARDINER P Schopenhauer Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1997 p 133
GIL Fernando (coord) Recepccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant
(1786-1844) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1992
GOLDSCHMIDT Victor A religiatildeo de Platatildeo Satildeo Paulo Difusatildeo Europeia do Livro 1963
_____ Eacutecrits Eacutetudes de Philosophie Moderne Tome II Paris VRIN 1984
GRISEBACH E Schopenhauerrsquos Gespraumlche und Selbstgespraumlche Nach der Handschrift εἰρ
ἑαςηον Berlin Ernst Hofmann 1898
GRUBER Robert (Hrsg) Der Briefwechsel zwischen Arthur Schopenhauer und Otto
Lindner Wien Leipzig A Hartleben‟s 1913
- 234 -
GUEROULT M Etudes de Philosophie Allemande HildesheimNew York Georg Olms
1977
GWINNER W Arthur Schopenhauer aus persoumlnlichen Umgange dargestellt Zweite
umgearbeitete und vielfach vermehrte Auflage Leipzig Brockhaus 1878
HARTMAN E v Philosophie des Unbewussten Berlin Carl Duncker 1869 Disponiacutevel em
lthttpsarchiveorgdetailsphilosophiedesun00hartgt Acesso em 16 set 2015
_____ Gesammelte philosophische Abhandlungen zur Philosophie des Unbewussten Berlin
Carl Duncker 1872 Disponiacutevel em
lthttpsarchiveorgdetailsgesammeltephilo00hartgooggt Acesso em 7 jan 2016
_____ L‟eacutecole de Schopenhauer Revue philosophique de la France et de lrsquoeacutetranger Dirigeacutee
par Th Ribot XVI jul-deacutec 1883 pp 121-134 Disponiacutevel em
httpgallicabnffrark12148bpt6k17155drk=429184 Acesso em 15 dez 2016
_____ Gesammelte Studien und Aufsaumltze 3 auflage Leipzig Wilhelm Friedrich 1888
Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgdetailsgesammeltestudi01hartgooggt Acesso em 5 jan
2016
_____ Geschichte der Methaphysik Zweiter Teil seit Kant Ausgewaumlhlte Werke Band XII
Leipzig Hermann Haacke 1900
HASSE H Schopenhauers Erkenntnislehre als System einer Gemeinschaft des Rationalen
und Irrationalen Leipzig Felix Meiner 1913
HAYM R Arthur Schopenhauer Berlin Georg Reimer 1864 Disponiacutevel em
lthttpsarchiveorgdetailsarthurschopenha00haymgooggt Acesso em 20 jan 2015
HUumlBSCHER A Schopenhauer in der philosophischen Kritik In Schopenhauer-Jahrbuch
Frankfuhrt Waldemar Kramer 47 1966 p 29-71 Disponiacutevel em
lthttpwwwschopenhauerphilosophieuni-
mainzdeAufsaetze_Jahrbuch47_1966Huebscher20-
20Schopenhauer20in20der20phil20Kritikpdf gt Acesso em 15 ago 2013
_____ Denker gegen den Strom Schopenhauer Gestern ndash Heute ndash Morgen 4
Durchgesehene Auflage Bonn Bouvier 1988
- 235 -
JACOBI F H David Hume et la croyance ideacutealisme et reacutealisme Dialogue Introduit traduit
et annoteacute par Louis Guillermit Paris Vrin 2000
JANAWAY C (ed) The Cambridge Companion to Schopenhauer Cambridge Cambridge
Universty Press 1999
JANET P Schopenhauer et la physiologie franccedilaise Cabanis et Bichat Revue des deux
mondes Tome 39 Paris Bureau de la Revue de deux mondes Mai-1880 p 36 Disponiacutevel
em lthttprddmrevuedesdeuxmondesfrarchivearticlephpcode=59892gt Acesso em 08
ago 2011
KAMATA Y Schopenhauer e Kant A recepccedilatildeo da ldquoAnaliacutetica transcendentalrdquo da Criacutetica da
razatildeo pura na filosofia primeira de Schopenhauer Revista etich - An international Journal
for Moral Phylosophy Florianoacutepolis v 11 n 1 p 68 ndash 81 julho de 2012
KANT I Kantrsquos Gesammelte Schriften Herausgegeben von der Koumlniglich Preuβischen
Akademie der Wissenschaften 29 Baumlnde Berlim Georg Reimer Gruyter 1902-
_____ Criacutetica da razatildeo pura 5ordf ed Traduccedilatildeo de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre
Fradique Morujatildeo Introduccedilatildeo e notas de Alexandre Fradique Morujatildeo Lisboa Fundaccedilatildeo
Calouste Gulbenkian 2001
KORFMACHER W Ideen und Ideenerkenntnis in der aumlsthetischen Theorie Arthur
Schopenhauers Pfaffenweiler Centaurus-Verlagsgesellschaft 1992
KOWALEWSKI A Arthur Schopenhauer und seine Weltanschauung Halle a S Carl
Marhold 1908
KUHN T A tensatildeo essencial Traduccedilatildeo de Rui Pacheco e revisatildeo de Artur Mouratildeo Lisboa
Ediccedilotildees 70 1989
LIEBMANN O Ueber den individuellen Beweis fuumlr die Freiheit des Willens Stuttgart Carl
Schober 1866 Disponiacutevel em
lthttpsarchiveorgstreambub_gb_vNhAAAAAYAAJpagen3mode2upgt Acesso em 15
jun 2013
_____ Ueber den Objektiven Anblick Wiesbaden Carl Schober 1869 Disponiacutevel em
lthttpreaderdigitale-sammlungendedefs1objectdisplaybsb11017975_00005htmlgt
Acesso 15 jun 2013
- 236 -
LUKASIEWICZ Jan Sobre o princiacutepio de contradiccedilatildeo em Aristoacuteteles In Rue Descartes
Collegravege international de philosopie Paris Albin Michel avril 1991 1-2 p 10-32 traduzido
para o francecircs por Michel Narcy e Barbara Cassin do original alematildeo Publicado
originalmente em Bulletin Internacional de lrsquoAcadeacutemie de Sciences de Cracovie classe
drsquohistoire et de philosophie 1910 p 15-38
_____ Sobre a lei da contradiccedilatildeo em Aristoacuteteles In ZINGANO Marco (org) Sobre a
Metafiacutesica de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Odysseus 2005
MAGEE B Schopenhauer Traduccioacuten de Amaia Baacutercena Madrid Catedra 1991
MALTER Rudolf Der eine Gedanke Hinfuumlhrung zur Philosophie Arthur Schopenhaeurs
Darmstadt Wissenschaftliche Buchgesellschaft 1988
_____ Arthur Schopenhauer Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens
Sttutgart-Bad Cannstatt FrommannHolzboog 1991
MARCIN Raymond B In search of Schopenhauerrsquos cat Arthur Schopenhauer‟s quantum-
mystical theory of justice Washington DC Catholic University of America 2006
MARTIN G Kant ontologia y epistemologia Traducioacuten de Luis Felipe Carrer y Andreacutes R
Raggio Buenos Aires Faculdade de Filosofia y Humanidades da Universidade Nacional de
Coacuterdoba 1971
MENDELSON Elliott Introduction to mathematical logic 4th ed London Chapman amp
Hall 1997
METHLING Alexander Das Realitaumltsproblem im Denken Schopenhauers Eine
Untersuchung zur Struktur seines Systems Aachen Shaker 1993
MEYER J B Schopenhauer als Mensch und Denker Berlin Carl Habel 1872 Disponiacutevel
em
lthttpsia600300usarchiveorg20itemsarthurschopenhau00meyearthurschopenhau00mey
epdfgt Acesso em 30 mai 2014
NOIREacute Ludwig Der monistische Gedanke Eine Concordanz der Philosophie
Schopenhauer‟s Darwin‟s R Mayer‟s und L Geiger‟s Leipzig Beit amp Comp 1875
- 237 -
OTCZIPKA Hugo Kritische Bemerkungen zur Weltanschauung Schopenhauers Der Hohen
philosophischen Fakultaumlt der Universitaumlt Leipzig als Inaugural-Dissertation zur Erlangung der
Doktorwuumlrde Leipzig-Reudnitz Oswald Schmidt 1892 Disponiacutevel em
lthttpsarchiveorgstreamkritischebemerku00otczpagen3mode2upgt Acesso em 5 jul
2012
PERNIN Marie-Joseacute La philosophie de Schopenhauer Au coeur de l‟existence la
souffrance Paris Bordas 2003
PHILONENKO A Schopenhauer Una filosofiacutea de la tragedia Barcelona Anthropos 1989
_____ Schopenhauer critique de Kant Paris Les Belles Lettres 2005
RENOUVIER C Histoire et solution des problegravemes meacutetaphysiques Paris Feacutelix Aucan
1901
RIBOT Th La philosophie de Schopenhauer Paris Feacutelix Alcan 1925
RIEFFERT J B Die Lehre von der empirische Anschauung bei Schopenhauer Halle Max
Niemeyer 1914 In Abhandlungen zur Philosophie und irhre Geschichte 22 Heft
Herausgegeben von Benno Erdmann
ROGLER E Das Gehirnparadox ndash ein Problem nicht nur bei Schopenhauer Schopenhauer-
Jahrbuch 88 2007 p 71-88 Disponiacutevel em httpwwwschopenhauerphilosophieuni-
mainzdeAufsaetze_Jahrbuch88_20072007_Roglerpdf Acesso em 20 jan 2017
ROSSET C Escritos sobre Schopenhauer Versioacuten castellana de Rafael del Hierro Oliva
Valencia Pre-textos 2005
_____ Schopenhauer philosophe de lrsquoabsurde Paris QuadrigePUF 2015
RUFFING M Wille zur Erkenntnis Die Selbsterkenntnis des Willens und die Idee des
Menschen in der aumlsthetischen Theorie Arthur Schopenhauers Tese (Doutorado) Johannes
Gutenberg Universitaumlt Mainz 2001 Disponiacutevel em lthttpspublicationsubuni-
mainzdethesesvolltexte2002297pdf297pdfgt Acesso em 3 mai 2012
_____ A relevacircncia eacutetica da contemplaccedilatildeo esteacutetica Revista etich - An international Journal
for Moral Phylosophy Florianoacutepolis v11 n2 p 263-271 julho de 2012
- 238 -
RUYSSEN T Schopenhauer Paris Feacutelix Alcan 1911
SALLES JC (Org) Schopenhauer e o Idealismo Alematildeo Salvador Quarteto 2004
SANTOS K C S O problema da liberdade na filosofia de Arthur Schopenhauer
Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade
de Satildeo Paulo Departamento de Filosofia Orientador Prof Dr Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo
2010 Disponiacutevel em lthttpwwwtesesuspbrtesesdisponiveis88133tde-23082010-
175510pt-brphpgt
SCHEMANN Ludwig (Hrsg) Schopenhauer-Briefe Sammlung meist ungedruckter oder
schwer zugaumlnglicher Briefe von an und uumlber Schopenhauer Leipzig Brockhaus 1893
SCHIRMACHER Wolfgang (Ed) Zeit der Ernte Festschrift fuumlr Arthur Huumlbscher zum 85
Geburtstag StuttgartBad Cannstatt FrommannHolzboog 1982
SCHMIDT A Schopenhauer und der Materialismus Schopenhauer-Jahrbuch 58 1977 p
IX-XLVIII Disponiacutevel em lthttpwwwschopenhauerphilosophieuni-
mainzdeAufsaetze_Jahrbuch58_1977Alfred20Schmidt20-
20Schopenhauer20und20der20Materialismuspdfgt Acesso em 30 mai 2016
_____ Physiologie und Transzendentalphilosophie bei Schopenhauer Schopenhauer-
Jahrbuch 70 1989 p 43-53 Disponiacutevel em lthttpwwwschopenhauerphilosophieuni-
mainzdeAufsaetze_Jahrbuch70_1989Physiologie20und20Transzendentalphilosophiep
dfgt Acesso em 30 mai 2016
_____ Schopenhauer subjektive und objektive Betrachtungsweise des Intellekts
Schopenhauer-Jahrbuch 86 2005 p 105-132 Disponiacutevel em
lthttpwwwschopenhauerphilosophieuni-
mainzdeAufsaetze_Jahrbuch86_20052005_Schmidtpdfgt Acesso em 30 mai 2016
SCHUBBE D Philosophie des Zwischen Hermeneutik und Aporetik bei Schopenhauer
Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann 2010
SEYDEL R Schopenhauers Philosophisches System Leipzig Breitkopf amp Haumlrtel 1857
Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgdetailsschopenhauersph00seydgooggt Acesso em 14
out 2013
SPIERLING V Arthur Schopenhauer eine Einfuumlhrung in Leben und Werk Leipzig Reclam
Verlag 1998
- 239 -
_____ Materialen zu Schopenhauers ldquoDie Welt als Wille und Vorstellungrdquo Herausgegeben
kommentiert und eingeleitet von Volker Spierling Frankfurt am Main Suhrkamp 1984
STROHM Harald Die Aporien in Schopenhauers Erkenntnistheorie Inaugural-Dissertation
zur Erlangung des Grades eines Doktors der Philosophie der Philosophischen Fakultaumlt der
Eberhard-Karls-Universitaumlt Tuumlbingen LindauB 1984
SUCKAU Otto Schopenhauers falsche Auslegung der Kantischen Erkenntnistheorie Ihre
Erklaumlrung und Ihre Folgen Dissertation zur Erlangung der Doktorwuumlrde bei der
philosophischen Fakultaumlt der Groszligherzoglich Hessischen Ludwigs-Universitaumlt zu Gieszligen
Weimar R Wagner Sohn 1912 Disponiacutevel em
lthttpsarchiveorgdetailsschopenhauersfal00suckuoftgt Acesso em 15 jun 2012
THILO Chr A Ueber Schopenhauerrsquos ethische Atheismus Leipzig Louis Pernitzsch 1868
TRENDELENBURG A Logische Untersuchungen Erster Band Zweite ergaumlnzte Auflage
Leipzig Hirzel 1862 Disponiacutevel em
lthttpsarchiveorgdetailslogischeuntersu07trengooggt Acesso em 22 jul 2014
TZERTELEFF Dmitry Schopenhauerrsquos Erkenntniss-Theorie eine kritische Darstellung
Inaugural-Dissertation zur Erlangung der philosophischen Doktorwuumlrde der Phiosophischen
Fakultaumlt der Universitaumlt Leipzig Leipzig G Reusche 1879 Disponiacutevel em
lthttpsarchiveorgdetailsschopenhauerserk00tzergt Acesso em 30 jan 2013
VENETIANER M Schopenhauer als Scholastiker Eine Kritik der Schopenhauer‟schen
Philosophie mit Ruumlcksicht auf die gesammte Kantische Neoscholastik Berlin Carl
Duncker‟s 1873
VOLKELT Johannes Arthur Schopenhauer seine Persoumlnlichkeit seine Lehre sein Glaube
Stuttgart Fr Frommanns 1900 Disponiacutevel em
lthttpsarchiveorgdetailsarthurschopenha01volkgooggt Acesso em 22 nov 2010
WELSEN P Schopenhauers Theorie des Subjekts Ihre transzendentalphilosophischen
anthropologischen und naturmetaphysischen Grundlagen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp
Neumann 1995
ZELLER E Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz Muumlnchen Didenbourg
1875 Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgdetailsgeschichtederdeu00zelluoftgt Acesso em
10 set 2013
- 240 -
ZINGANO M Notas sobre o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo em Aristoacuteteles In Cadernos de
Histoacuteria e Filosofia da Ciecircncia Campinas Seacuterie 3 v 13 n 1 p 7-32 jan-jun 2003
- A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer
- Agradecimentos
- RESUMO
- ABSTRACT
- Lista de abreviaturas
- SUMAacuteRIO
- Introduccedilatildeo
- Capiacutetulo 1 ndash Introduccedilatildeo agrave antinomia da faculdade de conhecimento
-
- 11 ndash Apresentaccedilatildeo teoacuterica e histoacuterica da antinomia da faculdade de conhecimento
- 12 ndash Outras questotildees presentes na filosofia schopenhaueriana
- 13 ndash Investigaccedilatildeo acerca do conceito da antinomia da faculdade de conhecimento
- 14 ndash Investigaccedilatildeo acerca dos conceitos das outras questotildees presentes na filosofia de Schopenhauer
- 15 ndash Estrutura histoacuterica da metafiacutesica de Schopenhauer o debate sobre a coisa em si
- 16 - Desvelando o dilema e os conceitos envolvidos
-
- Capiacutetulo 2 ndash A construccedilatildeo do lado externo do mundo idealismo transcendental