kelsen hans. jurisdicao constitucional

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JURISDIÇÃO

CONSTITUCIONAL

Hans Kelsen

Com  nota  de  Carré  de  Malberg  e o  debate

ocorrido  na  sessão  de 1928 do  Instituto

Internacional  de  Direito Público.)

Introdução

SÉRGIO SÉRVULO  D A  CUNHA

Tradução  d o ale mlo

ALEXANDRE KRUG

Tradução  d o  italiano

EDUARDO BRAN DÃO

Tradução  d o  francês

MARIA ERMANTINA GALVÃO

Revisão técnica

SÉRGIO SÉRVULO

  D A

  CUNHA

E D U R D O D E M E L L O E S O U Z

OAB/SC 11.073-0

Martins Fontes

So o

  Paulo 2003

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índice

Introdução  à  edição brasileira  VII

A  jurisdição constitucional  e  administrativa  a  serviço

d o

 Estado federativo segundo

 a

 nova Constituição

federal austríaca

 de 1 ? de

  outubro

 de 192 0 3

A

  intervenção federal (Contribuição

  à

 teoria

  e

 prática

d o

  Estado federativo,

  c o m

  particular atenção

  à

Constituição

  d o

  Reich alemão

  e à

  Constituição

federal austríaca)  4 7

A garantia jurisdicional  da Constituição (Exposições  e

debates n a sessão de outubro  de 1928 do  Instituto

Internacional  d e Direito Público)  119

I - A  jurisdição constitucional (Exposição  de  Hans

Kelsen)

  121

II —

  Debate

  n o

  Instituto Internacional

  d e

  Direito

Público  187

III - A sanção jurisdicional d o s princípios constitucio-

nais (Nota  de R.  Carré  d e  Malberg)  195

A  pressão pela reforma constitucional  211

A s  linhas fundamentais d a reforma constitucional  (I) ... 2 2 1

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Introdução  à  edição brasileira

1. Dentre o s 4 8 3  títulos d e autoria d e Hans Kelsen

1

, a ed i-

tora GiufFrè,

 d e

 Milão, selecionou oito tratando direta

 ou in-

diretamente da jurisdição constitucional,  q u e fez publicar, e m

1981, sob o

  título

 La  giustizia costituzionale.  O

 texto central,

que deu título à compilação, corresponde à exposição proferi-

da em

 outubro

  d e 1928 , em

  sessão

  d o

 Instituto Internacional

d e

 Direito Público.

 P or

 isso, àquela exposição acrescentou-se

a ata co m o s debates q u e se seguiram, assim como um a disser-

tação

 de

 Carré

 de

 Malberg sobre

  o

 controle

 d e

 constitucionali-

dade  na  França.  S ã o  esses  o s  textos  q u e , dispostos  e m  ordem

cronológica,

  a

 Editora Martins Fontes

  p õ e c o m

  esta tradução

ao alcance do leitor e m língua portuguesa

2

.

1.

  Hans Kelsen nasceu

  e m

  Praga,

  e m 1 1 d e

  outubro

  d e 1 8 8

 [ .For mou-se

n a

 Faculdade

  d e

  Direito

  d e

  Viena, onde lecionou

  a

 partir

  d e 1 9 1 1 , a n o e m q u e

publicou  s e u  primeiro livro (Problemas capitais  da  teoria  do  direita estalai) ,

convocado

  e m 1 9 1 7 ,

  serviu co mo assessor jurí dico

  n o

  Ministério

  d a

  Guerra,

o q u e l h e valeu, a partir  d e 1 9 1 8 , colaborar  n a vedação d a nova Constituição a u s -

tríaca.

  E m 1 9 4 0 .

 mudou-s e para

  o s

  Estados Unidos; lecionou como professor

visitante  e m  Harvard  e  depois  e m  Berkeley.  A í  publ icou,  e m 1 9 4 5 , a  Teoria

geral  do  direito  e do  Estado  [trad. bras.  S ã o  Paulo, Martins Fontes, 2000],  q u e

praticamente condensa  s u a  obra, cujo núcleo  é  rep rese ntad o pela teoria pura

d o  Direito . Faleceu  e m 1 9 7 3 .

2 .

  Esta edição fundiu

  e m

  apenas

  u m

  texto

  o s

  dois artigos, publicados

e m j o m a l  (Neue Freie Presse,  2 9 e  30.10.1929),  s o b o  título  A s  linhas  f u n -

damentais  d a  reforma constitucional .

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VIII

HANS KELSEN

2.  Como  é  sabido,  a o colaborar c o m a redação d a Cons-

tituição  d a  Áustria

3

, Kelsen  f e z c om q u e s e  criasse  um ór-

g ã o

 judicial

  - a

 Corte Constitucional

  - o

  único competente

para exercer  o  controle  d e  constitucionalidade  d o s  atos  d o

legislativo e

=

rio.executivo, segundo

 u m

 modelo exclusivcrde

''controle concentrado*' q u e degoisjje estendeu a várias Cons-

tituições europeias.

A  Corte Constitucional  e o  monopólio,  por e la , do con-

trole  de  constitucionalidade  n ão  resultaram  d e  mera inven-

ç ã o

  teórica.

  É a

 história,

  n ão a

  lógica,

  q u e

  explica

  as

  insti-

tuições.

  N o

  continente europeu

  a

  revolução burguesa,

  que

trouxe

 a

 Constituição,

  n ã o

 trouxe consigo

 o

  controle

  d e

 cons-

titucionalidade,  q u e n o s Estados Unidos - n ã o n o s  esqueça-

m os - f o i

 construção pretoriana.

N ã o seria correto atribuir essa omissão unicamente  à in-

fluência

 da

 tradição francesa, sabidamente refratária

 ao

 poder

d os juízes.  N a Europa continental,  o modelo processual auto-

ritário associado

  à

  monarquia absoluta obngava desde muito

o s

 juízes,

  e m

 caso

 d e

 dúvida sobre

  a

 inteligência

 da lei, a sus-

pender

  o

  processo «.encaminhar consulta, sobre essa ques-

.

 t§o;"3Tnn órgão superior, preferentemente

  d e

 natureza antes

/polític^-que judicial .

Desde

  1667, na

 França,

  era

 expressamente proibido

  aos

juízes interpretar normas sobre cujo entendimento tivessem

3,

  Após

  o

  armistício

  d e 1 9 1 8 e o s

  tratados

  d e

  Versalhes

  e de St . Ger -

main, criou-se

  a

 república austríaca, correspondendo

  a o

  território

  d a

  Áustria

alemS (desmembramento

  d o

  antigo império austro-húngaro),

  m a s

  impedida

d e

 unir-se

  à

 Alemanha.

  A

  Constituição austríaca

  de 1920

 padeceria

  d a s

  vicis-

situdes

  d o

  período conhecido como entreguerras,

  m a s q u e o s

  historiadores

hoje

 j á

  avaliam

  n S o

  como

  o

  período intermediário entre duas guerras,

  e s im

como

  o

  olho

  d o

  furacão ,

  o u u m a

  trégua momentânea entre

  a s

  facções

  e m

luta.

  P o r

  isso

 a

 marca desse período

  - até o fim da

  guerra

  em 1945 e a

 restau-

ração

  da

  Constituição

  d e 1 9 2 0 - é a

  instabilidade; após

  a

  reforma

  de 1925,

c o m o

  fortalecimento

 d o

 executiv o, ocorreram

  o

  incêndio

 d o

 Palácio

  d a

  Justi-

ça de

  Viena (1927),

  a

 profunda reforma constitucional

  de 1929 e, por f im, a

revisão nazista apó s

  o

 Anschluss.

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

  J  I X

dúvidas, devendo  em ta l  caso dirigir-se  a ó monarca) o  qual,

como autor  da le i , era seu  guardião  e  único intérprete

 [ré/é-

ré au  legislateur

]. Quanto a^isso

  a

  Revolução nada alterou,

tendo apenas substituído

  a

 pessoa

  d o

 monarca pela soberania

d o

  poder legislativo.

  O

  decreto

  de 16 - 24 de

  agosto

  de 1790

proibiu  o s  tribunais  d e  fazerem regulamentos  e  induziu-os

a se  dirigirem  a o  legislativo toda  v e z q u e  julgassem neces-

sário interpretar uma le i  [référé facultatif].  Pouco depois,  R o -

bespierre sustentou

  que o

  vocábulo "jurisprudência" deve-

ria ser

 banido

 da

 língua francesa:

  N u m

 Estado

 que tem

 Cons-

tituição^ legislação,

  a

 jurisprudência

  dps.

 tribunais

  n ã o

  pode

ser

 outra coisa senão

  a

 própria

  lei .

E m   dezembro desse  a n o  instituiu-se  a  Corte  d e  Cassa-

ção e  criou-se  o  rêfèré nècessaire,  u m a  consulta  a o  poder

legislativo e m  caso d e  divergência jurisprudencial

4

.

N a

  Prússia,

  o  AUgemeines Landrecht

  (1794),

  na

  linha

das

  históricas vedações

  d e

 Justiniano, proibia

  o s

 juízes

  de,

a o

  decidir, levarem

  e m

  conta

  a

  doutrina

  e a

 jurisprudência,

e, na  Áustria,  o  Josephinisches Gesetzbuch  (novembro  d e

1786),  e  mais tarde também  a le i de 7 de  outubro  de 1850 ,

haviam limitado  a faculdade interpretativa  d o s magistrados.

N u m

  sistema processual como esse dificilmente

  s e

  instala-

ria o

 controle judicial

  d e

 constitucionalidade,

  e

 muito menos

o

  controle difuso

  d e

  constitucionalidade,

  e m q u e o

  cidadão

tem o

 direito

  de

 buscar, junto

  a o

 juiz

  do seu

  domicílio

  ( o

 juiz

natural), a correção  d e  atos inconstitucionais da autoridade.

3.

 Após

 o

 Congresso

 d e

 Viena (1815),

 em que s e

 articulou

a

 restauração monárquica, foram poucas

  as

 Constituições libe-

rais

  q ue

  vingaram

  n o

  continente europeu. Mesmo antes

  na

4. V.  Eduardo Espínola  e  Eduardo Espínola Filho,

 Repertório enciclo-

pédico  do  direito brasileiro  organizado  p o r  Carvalho  d o s  Santos, verbetes

interpretação

  da l e i e

  interpretação

  d a

  norma jurídica ,

  R io  de

  Janeiro,

Borsoi.vol.

  28.

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

X I

lamento após

  as

 agitações

  de 1848, a l i se

  elaborou

  um pro-

jeto  d e  Constituição (projeto  d e Kremsier)  q ue previa a cria-

ç ã o d e u m   tribunal supremo  d o Império

 [oberstes Reichsge-

richt]  c o m

  competência para julgar

 o s

  conflitos

 de

 atribuição

entre  as  autoridades administrativas centrais  e  autoridades

administrativas provinciais ,

  b e m

  como

  a s

  ações

  d e

  ressarci-

mento

  p or

  violações

  d e

  direitos subjetivos constitucionais,

praticadas  por  agentes públicos. Esse projeto  n ã o  chegou  a

vingar, visto

  que o

  imperador Francisco José, sucessor

  de

Ferdinando, dissolveu  o parlamento  em 4 de março  de 1849,

a o

  mesmo tempo

  e m q u e

  punha

  e m

  vigor

  u m a

  carta outor-

gada. Essa carta jamais  s e aplicou,  fo i ab-rogada e m  dezem-

bro de 1851 e  substituída  e m 1 8 6 7 p o r  algumas leis  f u n -

damentais, entre elas

  a de 21 de

  dezembro,

  q u e

  criou

  u m

Tribunal  d o  Império; segundo  a lei de  organização  e fun-

cionamento desse

  Reichsgericht,

  editada

  e m

  abril

  de 1869 ,

competia-lhe julgar conflitos d e  órgãos provinciais entre si e

c o m a s  autoridades imperiais, assim como recursos  dos sú-

ditos

  p o r

  violações

  d e

  seus direitos políticos garantidos

constitucionalmente, faltando-lhe porém competência para

anular qualquer disposição legal

7

.

  C o m a

 carta

  de 1867, as-

sinala Charles Eisenmann,

  o

 absolutismo mantinha

  uma ar-

m a  temível", visto  que seu art . 14  permitia  a o  imperador,

c o m a

 referenda ministerial, editar medidas provisórias

  c o m

força  de lei , em  caso  d e  urgência  e se o  Conselho Imperial

(Reichsraí)  n ã o

  estivesse

  e m

  sessão

8

.

  Era a

  porta aberta

  a

todas

  as

  violações

  d a

  Constituição,

  à sua

  inteira suspensão.

E a Áustria  f o i  efetivamente governada durante longos  p e-

ríodos

  c o m a

 ajuda desses decretos

  d e

 necessidade.'

19

7 . Essa exposição sobre  a carta austríaca  de 1867  resume  o que è expos-

t o po r

 Charles Eisenmann

  La

 justice constitutionnelle

  et la

 Haute Cour cons-

titutionnelle d Autriche,  Paris, Librairie Générale  d e  Droit  & d e  Jurispruden-

c e ,

  1928).

8. Op. ci t . , p . 135.

9. Op. ci t . , p . 136.

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XII

HANS KELSEN

Essa

  era a

  situação vigente

  até o f im da

 Primeira Guer-

ra em 1918, o

 tratado

  de S.

 Germain,

  e as

 leis constitucionais

provisórias que antecederam a Constituição austríaca  de 1920.

A lei

 editada

  em 25 de

 janeiro

  de 1919, sem

 mudar-lhe

 a co m -

petência,

  d e u a o

 Tribunal Imperial

  o

  nome

  d e

 Corte Consti-

tucional, atendendo assim, parcialmente,

  a o

 pleito

  de G. Jel-

linek,

  que em 1 8 8 5 , no

  opúsculo intitulado

  U m a

  alta corte

constitucional para

 a

 Áustria", havia sugerido

  o

  alargamento

do s poderes d o Tribunal Imperial  e sua transformação em ver-

dadeira corte constitucional

10

.

4 .  Antes d e entrar e m vigor a Constituição  de 1920, repu-

blicana  e  federativa,  o s  tribunais austríacos, como assinala

Kelsen (verpp.  21 e 318), só podiam controlar a constituciona-

lidade  das  leis  n o  tocante  à sua adequada publicação, vale  di-

zer, tendo e m vista sua existência, m a s jamais  sua validade e m

face  do  texto constitucional. "Recebendo  a  herança  da  velha

Áustria",  o  mestre  de Viena "encontrou-se  c o m o s dois tribu-

nais (o

 Tribunal Administrativo

  e o

 Tribunal Imperial)  jà  pron-

tos,  e n o  empenho  por  conservar instituições antigas  e  testa-

das

manteve-os, embora entregando

  ao

  antigo Reichsgericht

(agora batizado como  VerfassungsgerichtshoJ)  o  monopólio

do  controle  d e  constitucionalidade.  O art. 89 da nova Consti-

tuição negou expressamente,  a o s  tribunais,  o  poder  de  "apre-

ciar  a validade  das  leis regularmente publicadas",  e o s  arts.

137-45 desenharam  a competência  da Corte Constitucional,  à

qual caberia principalmente apreciar  a  inconstitucionalidade

das

  leis

  dos

  estados-membros,

  a

  requerimento

  do

  governo

  fe -

deral, a  inconstitucionalidade  das  leis federais  a requerimento

do governo d e qualquer estado-membro, e de ofício, quando se

trate de lei que sirva d e base à sua decisão" (art.  140)

11

.

10. Op. cit. ,pp.  156 e 170.

11.  Caberia ainda  à  Corte Constitucional austríaca,  e m  resumo, julgar:

a) as

 ações patrimoniais contra

  o s

 poderes públicos

  q u e n l o

  pudessem

  ser in -

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

XIII

Instituir controle concentrado  d e  constitucionalidade  sig-

nifica estabelecer instâncias especiais,  e exclusivas, para jul -

gar

  matéria constitucional,

  d e

  modo

  que ,

  suscitada esta

  e m

outro juízo

  q u e n ã o

  aquele(s), poder-se-á argüir

 su a

  incom-

petência,  o u  requerer  que a  matéria  n ã o  seja conhecida;  se

fo r hipótese simplesmente d e não-conhecimento,  o juízo  não

a conhecerá,  o u  antes  d e passar  a o mérito poderá suspender

o

 processo

 e

 remeter

 a

 prejudicial

 d e

 inconstitucionalidade

  ao

tribunal competente

 (po r ex. , le i

 fundamental alemã,

 art.

 100-1;

Constituição espanhola,  art. 163).  Temos  aí o que se vem de-

signando como "incidente^einçonstitHeionalida_de",

 o u

 "ques-

tãff constitucionaí incidente",

  q u e

 outra coisa

  não é

 senão

 u m

firéfèrê

  necessário^em matéria

  d e

 constitucionalidade, diri-

gldtraTim-órgãirjudicial.

Para justificar  a  criação  d e u m a  corte constitucional  -

único órgão competente para anular atos inconstitucionais  —

Kelsen mostra

  que a

  jurisdição constitucional

  é u m

 elemen-

to d o

 sis terpa4e mediaas técnicas

 q u e t ê m

 £>

ot  fim

 garantir

 o

exercício regula»

  d a s

  funções estatais", ressaltando

  que a

função ̂ olíticajJa Constituição  é estabelecer limites jurídicos

a ò exercífcíüTclo poder"  e que um a Constituição  e m q u e falte

a'garantiá_de anulabilidade

  d o s

  atos inconstitucionais

  não é

é'-

  plenamente obrigatória,

 n o

 sentido técnico". Contudo, jamais

chega sequer a mencionar o  controle difuso, co mo  s e o siste-

m a  concentrado fosse  o  único existente  o u  possível para  o

controle  d e  constitucionalidade.  O q u e n o s  leva  a pensar que

a

  instituição

  d o

  controle

  d e

  constitucionalidade,

 n o

  autoritá-

rio

 contexto continental,

  s ó

 seria possível dentro dessa tradi-

tentadas perante  a jurisdição comum;  b ) a  ilegalidade  d o s  decretos federais  e

estaduais;  c) as  impugnações eleitorais;  d) as violações  d o direito constitucio-

n a l  praticadas  p o r  autoridades federais o u  estaduais;  e ) o s recursos contra  d e -

cisões administrativas, fund ado s  n a  violação  d e  direitos garantidos constitu-

cionalmente;

  f )

 violações

 d o

  direito internacional.

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XVI

HANS KELSEN

O

  leitor atento identificará

 o s

  pontos

  de

 contato entre

  ó s

problemas aqui discutidos

  e a

  realidade constitucional brasi-

leira pós-1988.

O

 sistema brasileiro

 d e

 controle

  d e

 constitucionalidade,

moldado  e m 1 8 9 1 c o m  base  n o  sistema americano, aperfei-

çoou-se

  c o m o

  tempo, expandindo-se

  c o m

  medidas

  d e

 natu-

reza

  o u

  efeitos coletivos.

  A

  primeira alteração relevante

ocorreu  a partir  d e 1946 , c om a efetiva possibilidade  de ser

suspensa, pelo Senado,

  a

  execução

  de lei

  -Considerada

  in-

constitucional pela Suprema Corte  (ver art.Í52-X a a Consti-

tuição

  d e

  1988).

  A

  segunda alteração impbrtaríte ocorreu

c o m a

 "representação

  d e

  inconstitucionalidade",

  q u e

  tendo

forma embrionária

  na

  Constituição

  de 1934 (art . 34, §

  2?),

passou  à  Constituição  de 1946 e fo i ampliada pela  le i 2.271,

de

  22.7.1954.

  A le i

  4.337,

  d e

  1.6.1964, regulou

  a

  "declara-

ç ão d e  inconstitucionalidade", fazendo-a retornar  a o  leito

original

  d a

 representação interventiva,

  m a s a

 emenda cons-

titucional

  16, de

  26.11.1965 (promulgada

  n a

  vigência

  dos

atos institucionais

  n f 1 e 2 , e que

  institucionalizou

  a

 refor-

m a d o

  judiciário promovida pelo governo Castelo Branco),

deu ao  Supremo Tribunal Federal competência para julgar

a

  representação contra inconstitucionalidade

  de lei ou ato

de

  natureza normativa, federal

  o u

  estadual, encaminhada

pelo Procurador-Geral  da República". Terceira alteração  im -

portante

 foi a

 edição pe lo Supremo Tribunal Federal,

  a

 partir

de  13.12.1963,  das súmulas de sua jurisprudência (enunciados

normativos genéricos, embora

  s e m

  força obrigatória, sinte-

tizando suas decisões

 e m

 casos semelhantes).

Por f im, a

  Constituição

  d e 1988

  enfeixou

  o

  sistema

  a o

transformar  a "representação  d e  inconstitucionalidade"  e m

ação direta

 d e

 inconstitucionalidade, meio para

 o

 controle

 abs-

trato  d e  constitucionalidade  de lei ou ato normativo federal

o u estadual (arts. 102-I-a e 10 3), a ser exercido exclusivamen-

te

  perante

  o

  Supremo Tribunal Federal (controle concentra-

do); a

  ação direta

  de

  inconstitucionalidade

  é

  actio popularis

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

XVII

(tal  como referido  p or  Kelsen  no seu  texto sobre jurisdição

constitucional

  de

  legit imação restrita, desdobramento

  do

  mú-

nus

  que  cabia, antes  de 1988 ,  apenas  ao procurador-geral  da

República, cujos legitimados ativos

  n ã o

 buscam direito

 pró-

prio, m a s agem n o  interesse de  todos. A  instituição d o controle

abstrato

  (a

 possibilidade

  de

 declarar-se

  a

  inconstitucionalida-

de de um a l e i e m  tese) representou, dentro d o sistema brasilei-

ro, a amplificação, e não a restrição d o controle concreto:  c o m

a

 ação direta

 de

 inconstitucionalidade milhares

  o u

 milhões

 d e

pessoas, legitimadas  a ajuizar ações individuais para assegurar

direitos protegidos constitucionalmente, podem reunir-se  e m

apenas u m processo para obter  a declaração  d e  inconstitucio-

nalidade

 do ato

 normativo

 que os

 contraria.

A o  termo dessa evolução construiu-se  em 1988 um s i s -

tema misto

  d e

  controle

  de

  constitucionalidade,

  que às van-

tagens

  d o

  controle difuso acrescenta vantagens

  d o

  controle

concentrado. Nele, ninguém está impedido  d e  obter,  com o

juiz

  d o

  lugar, resguardo

  ao seu

  direito individual constitu-

cionalmente protegido, m a s pode valer-se  d o s benefícios as-

sociativos para

  q u e , s e m

  necessidade desse pleito indivi-

dual, seja desconstituída

  a

 norma inválida.

  H á

  distinção

  e n -

tre  sistema concentrado  e controle concentrado.  N o  sistema

brasileiro

  d e

  controle

  de

 constitucionalidade existe controle

concentrado  — exercido mediante  as  ações  d e  inconstitucio-

nalidade—

 m a s n ã o

 existe sistema concentrado

12

}

Contra esse sistema lançou-se  a reação conservadora, re-

presentada pelos interesses  d o presidencialismo imperial  e do

abstencionismo judicial,  num contexto de agudas dificuldades

econômicas

  e

  restrição

  das

  liberdades,

  c o m

  cerceamento

  da

ampla defesa

 e d o

 acesso

 à

 prestação jurisdicional. Suas armas

principais são a medida provisória, o efeito vinculante e a ação

] 2 . Podem os estabelecer  o  seguinte quadro quanto  às  formas  d e contro-

le de  constitucionalidade:  1. controle concreto difuso:  a )  incidental (qualquer

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

X V

apresenta ligeira apreciação sobre  o sistema americano (judi-

cial review), baseado  n o controle difuso e  concreto,  n o qual as

argüições

  de

  inconstitucionalidade

  são

 produzidas

  e

  decididas

incidentalmente, n o curso  de um caso em qu e  s e alega lesão a

u m  direito subjetivo.  Su a apreciação é  negativa:  )'a desvanta-

g e m  desta solução" (a solução americana) ̂ consiste  n o  fato d e

que os

 diferentes órgãos aplicadores

  da lei

 podem

  ter

 opiniões

diferentes

 c o m

 respeito

 à

 constitucionalidade

 de um a lei , e que

portanto

 u m

 órgão pode aplicar

 a lei po r

 considerá-la constitu-

cional, enquanto outro órgão rejeitará

  sua

 aplicação

  c o m

  base

na sua

 alegada inconstitucionalidade.

  A

  ausência

  de uma de-

cisãojmiforme sobre

  a

 questão

  da

  constitucionalidade.de

  uma

lei, ou

 seja, sobre

 l í

 Constituição estar sendo violada

  ou não, é

u m a

 grande ameaça

 à

 autoridade

 da

 própria Constituição"

 (ver

O  controle judicial d e constitucionalidade").

( [ s .  ròão  s ã o  poucos,  n e m d e  pequena monta,  o s  proble-

m a s  teóncos envolvidos  n a  criação  d o  controle concentrado

d e constitucionalidade.  O primeiro deles d iz  respeito  à natu-

reza  da  função jurisdicional, tradicionalmente considerada

como correspondendo

  à

 aplicação

  da lei a um

  caso concre-

to , e que no

 controle concentrado pode consistir também

 n o

julgamento

  e m

  tese sobre

  a

  constitucionalidade

  da lei , ou

seja,

 na

 fixação

  de um

 juízo

  n ã o

 sobre fatos,

 m a s

  diretamen-

te

 sobre normas.

  O

 segundo problema

 —

 ligado

 a o

 primeiro

 -

consiste

  e m

  saber

  s e

  essa nova função, assim assumida

  por

u m

  órgão judicial,

  é na

  verdade

  u m a

  função legislativa.

  U m

terceiro problema  d iz  respeito  à  composição subjetiva  da

lide  (às pessoas legitimadas  a dela participar) e à extensão do s

efeitos  da  decisão  d e  inconstitucionalidade  ( s e  interpartes

o u  erga omnes).  U m  quarto,  m a s n ã o último probleríia,  c o n -

cerne  à  ofensa  a o  princípio  d o  juiz natural,  c o m a  conse-

qüente diminuição  -  melhor dizendo,  a mutilação  -  opera-

da,  pela instauração  d o  controle concentrado, sobre  o poder

ordinário d o s juízes  e d o s tribunais comuns.

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XVIII

HANS KELSEN

declaratória  d e constitucionalidade

13

;  s e u objetivo  é a destrui-

ç ão d o

  controle difuso. Embora

  n ã o

  reivindique

  a

  interpre-

tação autêntica da lei para u m  presidente  que já dispõe  d e p o -

deres ditatoriais,

  ela

 pouco difere

 da

 posição

  d e

 Carl Schmitt:

basta-lhe

  u m a

 corte suprema

  que tem

  sede

  na

  capital, forma-

da por exíguo número d e ministros, que à semelhança do pro-

curador-geral

  da

 República

 são

 nomeados pelo executivo.

A o s

  governos

  q ue

  agridem diariamente

  a

  Constituição

interessa u m sistema concentrado,  que na verdade representa

a

  contenção

  d o

  controle

  d e

  constitucionalidade.

  N ã o é

  possí-

ve l , sem  dano  à  Constituição, evitar  que as  pessoas possam

defender, no juízo do seu domicílio, direitos feridos por ato in-

constitucional: o controle difuso d e constitucionalidade decor-

re da natureza das coisas.  Em su a consagrada obra sobre Her-

menêutica  e  aplicação  do  Direito  o

  grande Carlos Maximi-

liano cita Jean Cruet:

  A

 tendência racional para reduzir

 o

 juiz

a uma

 função puramente automática apesar

 d a

 infinita diversi-

dade  d o s  casos submetidos  ao seu  diagnóstico,  te m  sempre  e

por  toda parte soçobrado ante  a  fecundidade persistente  da

prática judicial."

 A o

  êxito aparente

  e

  transitório

  d o s

  autorita-

rismos sucederá, sempre, a reafirmação das liberdades.

SÉRGIO SÉRVULO

  D A

  CUNHA

Santos, julho  de 2001

ação

  e m q u e a

  matéria

  d e

 consti tucionalidade seja prejudicial);

  e b) não

  inci-

dental

  ( e x .

 mandado

  d e

 segurança, manda do

  d e

  injunção).

 2 .

 controle concre-

t o

 concentrado

  ( e x .

 recurso extraordinário, ação direta

 d e

  inconstitucionalida-

d e p o r omissão).  3. controle abstrato difuso (exemplos  n o  direito comparado).

4 . controle abstraio concentrado (ação direta d e  inconstitucionalidade).

13. A

  assim chamada ação declaratória

  d e

  constitucionalidade , criada

pela emenda constitucional n? 3/1993, é n a verdade ratificação d e natureza legis-

lativa, medida

  d e

  bloqueio

  d o

  controle

  d e

  constitucionalidade.

  A

  emenda

  n?

3/1993

  é

 inconstitucional, pois

 a o

 constituinte derivado falece

 o

 poder

 d e

 vulne-

rar o

 sistema

 d e

 contro le instituído, pela Constituição, para

  su a

 própria proteção.

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

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A

  jurisdição constitucional

  e

administrativa

  a

  serviço

  d o

 Estado

federativo segundo  a  nova

Constituição federal austríaca

d e 1? d e

 outubro

  d e

  1920*

*  Verf assung s-und Verwaltunggerichtsba rkeit  i m  Dienste  d e s B u n -

desiaates, nach  d e r  neuen ôsierreichischen Bundesverfassung  v o m I Oktob er

1920 ; publicado originalmente  e m  Zeilschrift fiir Schweizerisches Rechl,

X U I  (1923-1924),  pp -  173-217.

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I .

A  República  d a  Áustria,  q u e  substituiu  a  monarquia

austríaca juntamente

  c o m o s

 Estados tcheco-eslovaco, polo-

nês e  iugoslavo, tinha originalmente  a  Constituição  d e u m

Estado unitário centralista.

  A

  "Resolução sobre

  a s

  institui-

ções fundamentais

  d o

 poder

 d o

 Estado,

  d e 3 0 d e

 outubro

  de

1 9 1 8 - a

  primeira Constituição provisória

  d a

  então ainda

autodenominada "Áustria alemã"

  -

  conferiu todo

  o

  poder

legislativo  à Assembléia Nacional Provisória,  e o  executivo

a u m

 Conselho

  de

  Estado

  d e

  vinte membros, eleito dentre

  o

conjunto  da  Assembléia. Contudo, simultaneamente  a  essa

Constituição centralista

 - qu e

  fora promulgada pelos repre-

sentantes  d e  todo  o  povo alemão  da antiga Áustria  e através

da qual  a Áustria alemã  se  constituía como Estado pela  pri-

meira

  v e z a s

  assembléias estaduais provisórias

  o u

  parla-

mentos estaduais,  q u e s e  haviam formado  d e  modo revolu-

cionário

  n o s

  estados

  [Lânder]  d a

  Coroa

  da

  antiga Áustria

habitados  p o r  alemães, tinham promulgado Constituições

estaduais  q u e  reservavam  a o s estados tanto poder legislativo

como executivo.

  O

  poder legislativo

  era

 atribuído

  à s

 assem-

bléias o u parlamentos estaduais,  o executivo a o s governos e s -

taduais eleitos dentre aqueles órgãos legislativos.

  D o

  ponto

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6

IIANS KELSEN

d e vista dessas Constituições estaduais,  a Áustria alemã  não

deveria

  ser

 propriamente

  u m

  Estado unitário,

  m as s im u m a

espécie  de confederação d e estados a ser criada através de um

acordo entre todos esses estados. Segundo essa concepção,

junto  c o m a s  Constituições estaduais foram feitas as  assim-

chamadas declarações  d e  adesão,  n as  quais  o s  estados  -

c o m   efeito, n ã o  todos — afirmavam s u a vontade  de fazer par-

te da

 Áustria alemã como membros; conseqüentemente,

  o to-

do que abrangia o conjunto d os estados deveria possuir apenas

o  tanto  d e poder legislativo  e executivo  que não estivesse re-

servado pelos estados  a s i  mesmos  e m  suas Constituições.

Portanto, entre as premissas  qu e basearam a resolução d a A s -

sembléia Nacional Provisória sobre

 as

  instituições fundamen-

tais d o poder d o  Estado e as que resultaram n as Constituições

estaduais provisórias existiu desde o  início u m a completa c o n -

tradição. Pois  d o ponto  d e vista  d a mencionada resolução,  a

Áustria alemã j á estava constituída,  e  como Estado unitário,

n ão necessitando p or isso d e nenhum acordo d os estados, n e m

havendo qualquer espaço para  tal; os  estados  s ó  podiam  ser

constituídos legalmente como províncias autônomas através

de lei da  Assembléia Nacional Provisória  e s ó  podiam  pre-

tender  a  competência executiva  e  legislativa  que  lhes fosse

outorgada pela  lei do Estado. Essa contradição entre  o s prin-

cípios  d o Estado unitário e da confederação d e estados pode

na verdade  não ter sido prevista  em sua  plena significação  e

te r  sido apenas  o  resultado  de um ato de  fundação errôneo

n o  plano técnico-jurídico.  D e  fato,  a contradição  fo i supera-

da na  medida  em que ,  através  de uma le i  aprovada pela

Assembléia Nacional Provisória  em 18 de  novembro  d e

1918 -  chamava-se significativamente  L ei  sobre  a  assun-

ç ão d o

  poder estatal

  n os

  estados"

  - foi

  legitimada  a poste-

riori

  a

 criação revolucionária

  d o s

 estados,

  o u

 seja, foram

 re-

conhecidas  as  assembléias estaduais,  a que se  concedeu  u m

certo direito legislativo,  e sujeitaram-se  o s governos estaduais

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

1

a o governo central.  O antagonismo político , contudo,  nã o foi

d e modo algum eliminado  c o m  tais medidas, continuando  a

ameaçar

  o

 desenvolvimento

  d a

 jovem república.

N o referido antagonismo,  e m última análise, encontra-se

o motivo para que a  Constituição definitiva d a Áustria alemã

- qu e fo i obrigada pelo Tratado  de St .  Germain  a chamar-se

simplesmente Áustria -  tenha vindo  a ser uma  Constituição

d e

  Estado federativo,

  eis que a

  característica desta

  é

  justa-

mente combinar formas federalistas

 c o m u m a

  garantia sufi-

ciente para

  a

  unidade

  de um

  todo

  q u e

  reúne

  e

  organiza

  o s

membros.

  A

  Constituição definitiva,

  a Lei de l? de

 outubro

d e 1 9 2 0 , c o m a

  qual

  a

 República

  da

 Áustria

  s e

  constitui

  e m

Estado federativo",

  fo i

  aprovada pela Assembléia Nacional

Constituinte

  (que

  havia substituído

  a

  Assembléia Provisó-

ria),

  pouco antes

  d o

  término

  de seu

 mandato.

 A  Constituição

federal austríaca  é,  assim,  a lei de um  Estado unitário  que

s e  transformou  e m Estado federativo. Isso diferencia a Cons-

tituição federal austríaca  das  Constituições  d a  maioria  dos

outros Estados federativos,

  q u e

  surgiram mediante

  a

  união

voluntária  d e  estados  até  então fundamentalmente autôno-

m o s ,  sujeitos apenas  à  ordem jurídica internacional.  Se a

Constituição federal  s e efetiva e m plena continuidade jurídi-

c a  como  le i de um  Estado unitário,  n ã o s e  pode duvidar  d e

que o  fundamento  d a  validade  d a s  Constituições  d o s  assim-

chamados estados-membros repousa,

  e m

  última análise,

  n a

vontade

  d o

  Estado unitário; nesse caso

  não é

  possível falar

e m

  soberania plena

  o u

  parcial

  d o s

  estados-membros, cuja

competência legislativa

  e

  executiva

  é

  suficientemente deri-

vada

  da

 Constituição federal, sendo também

  por e la

  conce-

dida. Àquele

  q u e

 quisesse

 p ô r e m

  dúvida

  se um

 Estado fede-

rativo pode realmente formar-se dessa maneira, poderíamos

contrapor

  que ,

  segundo

  a

  conceituação usual, pertence

  à

essência

 do

 Estado federativo

 —

 diversamente

 d a

 confederação

d e Estados - qu e ele se fundamente numa Constituição,  e nã o

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8

HANS KELSEN

e m   tratados internacionais; pois  e m  nenhum outro caso  a

base jurídica é exclusivamente a lei—e d e modo algum o tra-

tado  -  co mo justamente  n o  caso  em que tal  base surge  d o

Estado unitário.

  E

 como entre

 u m a

  Constituição federal

 que

surge como  lei de um  Estado unitário  e u m a  Constituição

acordada p o r  estados  até então autônomos  n ão  precisa exis-

tir diferença  d e  conteúdo jurídico -  pois  a lei pode possuir  o

mesmo conteúdo  que o  acordo -  seria preciso limitar  o c on -

ceito

  de

 Estado federativo

 a o

 momento histórico

  d o

 processo

d e

 formação; isso

 n o s

 obrigaria, porém,

  a

 readotar como base

jurídica justamente  o acordo,  o qual dificilmente poderia  ser

concebido como outra coisa

  que não um

  tratado internacio-

nal . Com

  isso estaríamos renunciando

  à

 diferenciação

 c o m a

confederação

  de

 Estados,

  ou

  seja,

  a o

 conceito específico

  d e

Estado federativo.

 N ã o n o s

 resta outra possibilidade, portan-

to ,

 senão

  a d e

 caracterizar

 o

 Estado federativo

 e m

  termos

  d e

conteúdo jurídico

  e

 concebê-lo como

  u m

 caso particular,

 n o

âmbito técnico-organizacional,  de um  Estado pensável  s o -

mente como Estado unitário.  O  Estado federativo  è um  esta-

do  organizado federativamente  de uma  maneira específica.

A  peculiaridade técnico-organizacional  d o  tipo consti-

tucional designado como "Estado federativo" consiste  e m

q u e os  poderes legislativo  e  executivo estão divididos entre*

u m   órgão central  c o m  competência para todo  o  território

nacional  (o todo d o Estado), chamado "União",  Reich etc. ,

e vários órgãos locais c o m competência apenas para porções

d o  território, chamados estados-membros,  Lander,  cantões,

etc . ,  sendo  que na  atividade legislativa  d o  todo (eventual-

mente também  na  executiva) tomam parte representantes

d o s  membros convocados direta (eleitos pelo povo  da por-

ç ão d o  território)  o u  indiretamente (eleitos pelos parlamen-

to s  locais  ou designados pelos governos respectivos). Ne ss e

sentido

  a

 Áustria

 é , a

 partir

 da

 Constituição

  de 1920 , um le -

gítimo Estado federativo.

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

9

A

  divisão

  d o s

  poderes legislativo

  e

  executivo entre

  a

União

  e o s

  estados

  se dá,

  segundo

  a

  Constituição federal,

 d e

maneira que se distingam quatro grupos d e matérias:  1) aque-

las a

 respeito

 d a s

 quais ambos

  o s

 poderes cabem

  à

 União;

  2 )

aquelas para

  as

  quais

  a

  União

  tem o

  poder legislativo,

  e n -

quanto

  o

  executivo cabe

  a o s

  estados; nessas matérias,

  p o -

rém, a União possui também  o  direito d e editar decretos,  d i-

minuindo correspondentemente  a competência executiva  dos

estados;  3) as  matérias  que a  União  s ó  pode regular legal-

mente segundo  o s  princípios, cabendo  a o s  estados editar  as

leis  de  execução,  b e m  como todo  o  poder executivo.  A fa -

culdade  de emitir lei s  de  execução, contudo, pode  ser devol-

vida  à União caso  u m estado n ã o promulgue  a necessária  lei

de execução dentro  d o prazo previsto na le i  federal  de princi-

pio; 4 ) todas  as matérias  q u e n ã o estejam reservadas exclusi-

vamente  à competência legislativa  o u  executiva  da União  f i -

cam na  esfera  de  atividade autônoma  d o s  estados.  A  essa  e s -

fera pertencem, portanto,  as  matérias  a  respeito  das  quais  o

estado te m faculdade executiva, m a s n ã o legislativa (e regula-

mentar), depois aquelas

  em que o

  estado edita

  as

  leis

  de exe -

cução para

  as

  suas próprias leis

  d e

 princípio, cabendo-lhe

  to -

da a

 competência executiva,

  e

 finalmente aquelas

 e m q u e a m -

bas as

 competências, legislativa

 e

 executiva, cabem

 ao

 estado.

Essa última esfera

 é

  muito pequena,

  e

 portanto também

  o é o

poder

  de

  legislação

  d o

  estado,

  a o

  passo

  que a

  competência

legislativa

 d a

 União

 é b e m

 grande.

  E m

  contrapartida,

  o

 âmbi-

to da

 competência executiva

  d o

 estado

  é

 relativamente exten-

so ,

  porém particularmente característico

  é o

  fato

  de que as

esferas

 d a

 competência legislativa

 da

 União

  e dos

 estados

 não

coincidem

  c o m a s

 respectivas esferas

 d e

 competência execu-

tiva.

 A

 União possui muito mais poder legislativo

  do que exe -

cutivo, acontecendo o inverso  c o m o  estado.  C o m isso, e m n u -

merosas

  e

  importantes matérias,

  a

 competência executiva

 e s -

tá  separada  d o  local  q u e  possui  a competência legislativa;  o

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8/17/2019 KELSEN Hans. Jurisdicao Constitucional

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HANS KE1JSEN

estado executa leis federais dentro

  d e u ma

  esfera autônoma

d e

  atividade.

  A

 causa dessa situação

  fo i o

 esforço realizado,

a f im de  proteger  a unidade  d o  direito,  d e  trazer  o  máximo

possível

  de

 matérias para

 a

 competência legislativa

 da

 União;

o s

 estados,

  a

 quem

 era

 atribuído mais poder executivo

  do que

legislativo,

  n ã o

  ofereceram resistência,

  c o m a

  condição

  de

q u e

  lhes deixassem intocado

  o

  primeiro.

O   titular  d o poder legislativo federal  é o  Conselho  N a -

cional  [Nationalrat],  eleito  c o m  voto geral, igual, secreto,

direto

  e

 pessoal,

  e m

  sistema eleitoral proporcional.

  T ê m d i -

reito  a  votar todos  o s  cidadãos  da  federação,  s e m  distinção

de sexo,  q u e  tenham completado vinte anos  d e  idade. Para  a

elegibilidade  é  necessária  a  idade  d e 2 4  anos.  O  titular  d o

poder legislativo estadual  é,  segundo  as  determinações  da

Constituição federal,

  a  qual regula  as  características bási-

cas da  atividade legislativa  e  executiva  dos  estados,  o. Par-

lamento Estadual \Landtag\

,  q u e deve ser eleito basicamen-

te  segundo  o  mesmo direito eleitoral  que o  Conselho  N a -

cional.  O s  estados tomam parte  na  atividade legislativa  da

federação através d o

  Conselho Federal [Bundesrat

].  O s c o m -

ponentes desse Conselho  sã o  eleitos pelo s parlamentos  e s -

taduais  - não  necessariamente dentre  o s  membros destes.

N o  Conselho Federal  o s estados  n ã o estão representados  si-

metricamente, m a s s i m n a proporção d o número  d e cidadãos

domiciliados  e m cada  um. O estado  c o m o maior número  d e

cidadãos (Viena) envia doze membros,  e o s  demais enviam

tantos quantos correspondam  à  relação  da sua  quantidade

de  cidadãos  c o m a  quantidade  d o  maior estado. Todos  o s

estados, porém,  têm direito  a uma representação mínima  de

três membros. Nessa medida, portanto,  o princípio  da repre-

sentação proporcional  d o s  estados  é  limitado.  A  eleição  d o

Conselho Federal faz-se conforme  o  sistema proporcional.

N ã o  simplesmente a maioria do Parlamento estadual  — e por -

tanto não

(

 exatamente  o  estado enquanto  tal - mas s im  todos

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8/17/2019 KELSEN Hans. Jurisdicao Constitucional

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

11

o s

 partidos políticos

  ali

 presentes (desde

  q u e c o m u m a

  força

mínima) estão representados proporcionalmente

 n o

 Conselho

Federal. Também esse sistema proporcional  é  limitado,  na

medida

  e m q u e o

  partido

  q u e

  tenha

  o

  segundo maior núme-

ro de

  cadeiras

  n o

  Parlamento estadual deve obrigatoriamen-

te

  receber

 u m

  mandato

  n o

  Conselho Federal, ainda quando,

por sua  força,  n ã o l h e  coubesse nenhum mandato. Para cada

membro  d o Conselho Federal  é  eleito também  u m  suplente.

Toda essa matéria  é regulada pela Constituição federal.

N o  processo legislativo federal  o  Conselho Federal  não

está  n o  mesmo plano  que o  Conselho Nacional.  O  primeiro

-  como  o  próprio Conselho Nacional,  o  governo federal  e

200.00.0 eleitores,  o u a metade  d o s  eleitores  d e  três estados

- tem o direito de apresentar projetos  de lei , que são então dis -

cutidos n o Conselho Nacional. Para uma lei federal é necessá-

ria um a resolução  d o Conselho Nacional.  A o Conselho Fede-

ral  cabe apenas  u m  poder  de veto suspensivo contra a s  deli-

berações legislativas  d o  Conselho Nacional  — e n e m  sequer

contra todas. Toda deliberação legislativa d o Conselho Nacio-

nal

  deve

  ser

  comunicada

  a o

  Conselho Federal,

  o

  qual

  tem,

dentro

  d e

  oito semanas,

  o

  direito

  d e

  levantar

  u m a

  objeção

provida

 de

 fundamentação. Como efeito dessa objeção,

  o C o n -

selho Nacional precisa,

  c o m a

 presença

  de

  pelo menos

  m e -

tade

 d e

 seus membros—basta porém

 a

 maioria simples—repe-

tir a

 deliberação,

 a f i m de que e la

 seja sancionada

 e

 publicada

pelo presidente federal, tomando-se

  lei .

 Contra deliberações

legislativas concernentes

  a o

 orçamento federal,

 a o

 regimento

d o

  Conselho Nacional,

  à sua

  dissolução,

  etc . , não

  cabe

  a o

Conselho Federal qualquer direito

  d e

  veto.

  E m

  contraparti-

d a

  este pode, excepcionalmente,

  ter até

 mesmo

  u m

  poder

 de

aprovação, como

  n o

 caso

 de um a le i

 constitucional

 q u e

 modi-

fique

  a

 composição

  d o

 próprio Conselho Federal.

  A

  colabo-

ração deste, todavia,

  não é

  referida

 n a

  publicação,

  q u e me n -

ciona apenas  a  deliberação  d o  Conselho Nacional  (ou o

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12

HANS KELSEN

resultado

  d a

  consulta popular, quando tenha ocorrido:

  ela é

obrigatória apenas e m caso de uma modif icação total da Cons-

tituição federal, sendo facultativa para deliberações legislati-

v a s ordinárias d o Conselho Nacional, ocorrendo p o r decisão

dele  o u requerimento  da maioria  d e  seus componentes; para

edição

  d e

  leis constitucionais,

 p o r

 requerimento

  d e u m

  terço

d o s

 membros

 d o

 Conselho Nacional

 ou do

 Conselho Federal).

O

  exercício

  da

  atividade legislativa estadual

  é

  regulado pela

Constituição federal

  por

  analogia

  c o m o

  processo legislativo

federal.

  E m

  lugar

 d o

 Conselho Federal

  é o

 governo federal

 —

a

  quem devem

  ser

 apresentadas todas

  as

  deliberações legis-

lativas estaduais  — q u e  possui aqui  u m  direito  d e  objeção

meramente suspensivo  e d e  prazo limitado.  E m  relação  à s

leis estaduais  q u e confiam a  atividade executiva  a autorida-

d e s  federais, o governo federal possui  até mesmo  u m  direito

d e

  aprovação. Assim,

  a  atividade legislativa  do  estado  é em

grande medida determinada pela Constituição federai,  tan-

to em

  relação

  à s  matérias

  sobre

  a s

 quais pode

  ser

  exercita-

da ,

 quanto

  e m

  relação

  à s

 formas

  q u e

 deve assumir.

Através  d o  Conselho Federal  é  assegurada  a o s  estados

u m a  participação  na  atividade legislativa  d a  União. Exce-

pcionalmente, porém,  o  Conselho Federal possuí também

certas atribuições executivas; elege junto c o m o  Conselho N a -

cional (formando

 a

 Assembléia Federal

 -  Bundesversammlung)

o

 presidente federal,

 e

 também participa quando

 a

 Assembléia

Federal deve declarar guerra, responsabilizar politicamente

o

  presidente federal

  e

 admitir

 o

 correspondente processo

 j u -

dicial.

  N ã o t em ,

 porém, qualquer influência

 n a

  formação

  d o

governo federal,  que é escolhido exclusivamente pelo Conse-

lho Nacional, sendo responsável apenas perante este. Por outro

lado, concorre  de forma paritária c o m o Conselho Nacional na

nomeação  d o s membros  d o s dois tribunais  de  direito público

mais altos - a Corte Constitucional [Verfassungsgerichtshof]

e a Corte Administrativa [Verwaltungsgerichtshof].  O moti-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

13

vo é que  à jurisdição constitucional  e  administrativa  é atri-

buído  um papel importante  na  relação jurídica entre  a  União

e os  estados.

  À  aprovação  d o  Conselho Federal,  por f im , e s -

  condicionado

  o ato de

  governo pelo qual

  o

  presidente

  fe -

deral — p o r requerimento  d o  governo federal  — dissolve  u m

Parlamento estadual.

D e

  resto,

  a

 atividade executiva

 d a

 Uniã o permanece,

  na

instância suprema  - c o m  exceção  de  certos atos indicados

especificamente

 na

  Constituição, confiados

  ao

 presidente

  f e -

deral  - c o m o  governo federal escolhido pelo Conselho N a -

cional, tendo à frente o chanceler federal

  [Bundeskanzler]-,

  a

atividade executiva  d o  estado fica  c o m o  governo estadual

eleito pelo Parlamento estadual

  e

  responsável perante

  ele,

tendo o chefe estadual  [Landeshauptmann]  à frente. N as ins -

tâncias médias

  e

  inferiores,

 a

 atuação executiva

 d a

 União

  s e

exerce  o u  através  d e  órgãos federais autônomos  o u  através

d o s

  órgãos

  d o s

  estados,

  na sua

  esfera

  d e

  atividade. Aqui

  a

Constituição fala d e  administração federal indireta. U m a v e z

que os  estados  têm,  como  é d e  supor,  u m  certo interesse  e m

que a atuação executiva federal  n o s  seus territórios s e exerça

o

 máximo possível através

  d o s

  órgãos estaduais,

  a

  esfera

 das

matérias para  as quais podem  ser  erigidas autoridades fede-

rais próprias

 n o s

 estados

 é

  delimitada

  por lei

  constitucional,

podendo somente  ser  alargada  c o m a  aprovação  d o  estado

em que se deve instituir u m a nova autoridade executiva dire-

ta . N o s

  estados, portanto, coexistem lado

  a

 lado

  (não

  incluin-

do os  tribunais,  que são via de  regra órgãos federais diretos)

dois aparelhos administrativos:

  as

  autoridades administrati-

v a s  estaduais  e  diversos órgãos  d a  administração federal

direta, como autoridades

  d o s

 transportes, fazendárias

  ou mi -

litares.  O  aparelho administrativo estadual atua e m  qualida-

d e

  dupla: como titular

  da

 administração estadual autônoma

e  como titular  da  administração federal indireta.  A  diferen-

ça das

 duas funções

  s e

 manifesta

 n o

  fato

  de que na

 esfera

 d e

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14

HANS KELSEN

atividade

  d o s

  estados

  a

  cadeia

  d e

  instâncias termina

  n o

governo estadual

  -

  enquanto órgão administrativo supremo

no

 estado

 - ao

 passo

 qu e nas

 matérias

  d o

 âmbito

  da

 atividade

atribuída  a o  estado pela União,  o u  seja,  d a  chamada admi-

nistração federal indireta,

  vai até o

 ministério federal, tendo

o

  governo federal

  -

  vale dizer cada ministro isoladamente

 —

u m

  direito

  d e

  supervisão

  e

  instrução perante

  a

  instância

  in -

termediária. Esta  é  constituída  n ão  pelo  governo estadual

colegiado,  m a s  pelo  chefe estadual,  qu e é o órgão  d o estado

encarregado  da  administração federal indireta. Somente  e le

pode

  ser

 questionado pelo governo federal,

  e não os

  outros

órgãos estaduais subordinados

  que, sob sua

 direção,

  se ocu-

pam da

 administração federal indireta (chefes distritais, muni-

cipais). Apenas  o  chefe estadual, portanto, enquanto titular

da  administração federal indireta,  é  responsável perante  o

governo federal. Desse modo,

  a

  conformidade

  d a

  adminis-

tração federal indireta

  c o m a s

  leis federais

  é

  garantida

  p e -

la  cadeia  d e  instâncias  que vai até o ministério federal, pelo

direito  d e  supervisão  e  instrução  d o  governo federal  e p e -

la responsabilidade d o chefe estadual,  que o governo federal

pode fazer valer perante

  a

  Corte Constitucional. Contudo,

  a

administração estadual autônoma também deve

  e m

  larga

medida executar leis federais,

  eis que à

  esfera

  d e

  atividade

autônoma

  d o

  estado pertencem muitas matérias

  a

  respeito

das quais cabe  à  União Legislar, e a o  estado apenas executar

-  porém enquanto administração estadual autônoma. Como

nessas matérias  a  cadeia  d e  instâncias termina  n o  governo

estadual

  e o

  governo federal

  n ão

  possui nenhum direito

  d e

supervisão

  e

  instrução junto

  a o

  estado,

  n ã o

  tendo pratica-

mente significado algum

  a

 responsabilidade

  d o

 governo

  e s -

tadual perante  o  Parlamento estadual  - q u e  interesse teria

este  na observação  d a s  leis federais?  -  existe  a necessidade

de uma garantia especial  de que a execução  das  leis federais,

na

  medida

  e m q u e

  caia

  n a

  esfera

  d e

 atividade autônoma

  d o

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

estado, portanto

 na

 esfera

 d o

 governo estadual, seja realmente

legal.  Tal garantia é oferecida pela jurisdição administrativa.

II .

D o

  fato

  de ser a

 Constituição federal,

  d o

 ponto

  d e

  vista

d o

  princípio puro

  d o

  Estado federativo, determinante para

as

 Constituições estaduais numa medida inusitadamente

 e x -

tensa

  — h á u m a

  seção própria

  da

  Constituição federal dedi-

cada

  à

  "atividade legislativa

  e

  executiva

  d o s

  estados",

  d e

modo  q u e  sobretudo  a atividade legislativa estadual  é deter-

minada constitucionalmente  na  dupla direção mencionada

acima — m a s  também  d o  fato  de que a  atividade administra-

tiva autônoma d o s estados é e m grande parte, se não na maior

parte, a execução d e  leis federais, resulta o problema técnico-

jurídico

  d e u m

  controle

  da

  constitucionalidade

  da

  legislação

estadual

 e da

 conformidade

 da

 administração estadual

 com as

leis federais.

  S e

 contemplamos

  a

 essência

  d o

 Estado federati-

vo no

  momento técnico-organizacional caracterizado ante-

riormente,  e n o s  libertamos  d e  todas  a s  teorias  d o  Estado

federativo determinadas  p or  considerações mais histórico-

políticas  do que teórico-jurídicas, fundadas sobre  a essência

da  "soberania"  o u d o  "Estado"  e  geralmente contraditórias

em s i mesmas

1

,  não é possível considerarmos qu e tal contro-

le

 jurídico sobre

  a

  atividade legislativa

  e

  executiva

  d o s

 esta-

d o s

  esteja

  e m

  contradição

  c o m a

  natureza

  d o

  Estado fede-

rativo.

  N o

  máximo poderia

  ser

  discutível

  - e

  mesmo isso

apenas

  s o b u m

  ponto

  d e

  vista técnico-organizacional

  - se o

necessário controle jurídico deve

  ser

 exercido

  p or

 órgãos

  da

1 . Cf .  sobre isso  o m e u :

  Problem

  de r

  Souveranitãt

  und die

  Theorie

  des

Vòlkerrechls,

  1 9 2 0 .  [Trad. bras.  O

  problema

  da

  soberania.

  S ã o  Paulo, Martins

Fontes ,  e m  preparação.]

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16

HANS KELSEN

União,

  p o r

  órgãos

  d o s

  estados

  ou por

 órgãos comuns

  a a m -

b os .  Isso quer dizer  que se  pode apenas analisar  se  neste  o u

naquele caso

  o

  princípio federativo

  já fo i

  abandonado

  e se

atingiu  u m  elevado grau  de  centralismo.  É  evidente, porém,

q u e n ão se  trata aqui  d e  limites rígidos. Deve-se considerar

que a pergunta sobre quando  u m órgão  é  federal o u estadual

pode  ser  respondida segundo critérios bastante diversos,  e

q ue

  resolver

  o

 problema

  n u m

  sentido

  o u n o

  outro

  é

 questão

de um

 construto mais

 o u

 menos arbitrário. Isso

  se

 mostra

 par-

ticularmente claro

  na

  Constituição austríaca.

  O

  controle

 j u -

risdicional sobre

  a

 constitucionalidade

  d a s

  leis estaduais

  e

sobre

  a

 conformidade

  da

 administração estadual

  c o m a s

  leis

federais está confiado

 à

 Corte Constitucional

 e à

 Corte Admi-

nistrativa. Como  a jurisdição  é d e  competência federal,  am -

bas as  cortes podem  - d o ponto  de  vista  da  função material

- ser

 compreendidas como órgãos federais, podendo-se

  por

isso afirmar

 que é a

 União

  q ue

  exerce

 o

 mencionado contro-

le

  sobre

  o s

  estados.

  S e

  porém contemplamos

  o

  modo como

essas cortes

  sã o

  formadas

  e

  como

  sã o

  nomeados seus

  m e m -

bros, podemos chegar  a  outras conclusões.  A  Corte Cons-

titucional compõe-se  d e u m  presidente,  u m  vice-presiden-

te , doze membros e quatro suplentes. Presidente, vice-presi-

dente

  e

  metade

  d o s

  membros

  e

  suplentes

  s ã o

  eleitos pelo

Conselho Federal.

  Ora, é

  precisamente nessa participação

do

 Conselho Federal

  na

  nomeação

  d e

 metade

  d o s

  membros

da

 Corte Constitucional

  que a

 Constituição federal expressa

o

  legítimo interesse

  d os

  estados

  na

 atividade dessa Corte.

  O

mesmo ocorre

  na

  formação

  da

  Corte Administrativa, cujos

membros porém  n ão são eleitos  - e is que se trata (diferente-

mente  da  Corte Constitucional)  de juízes  de  carreira  - mas

s im   nomeados pelo presidente federal  por  proposta  d o g o -

verno federal.

  A

  nomeação

  d o

  presidente

  e da

  metade

  dos

membros requer, todavia,

 a

 aprovação

 da

 Comissão Principal

[.Hauptausschuss]  d o  Conselho Nacional,  e a  nomeação  d o

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

17

vice-presidente

  e d a

 outra metade,

  a

  aprovação

  d o

 Conselho

Federal.

  D e

  fato,

  a

  influência exercida pela Câmara

  do Po-

v o e  Câmaras Estaduais sobre  a  Corte Administrativa  não é

n e m u m

  pouco menor

  do que sua

  influência

  e m

  relação

  à

Corte Constitucional.  D o  ponto  d e  vista  da nomeação pode-

se considerar ambas  a s cortes como órgãos comuns  da União

e dos  estados,  n ão  aparecendo portanto  s o b u ma l u z  total-

mente centralista  o controle jurídico q u e exercem sobre estas.

O   controle sobre  a atividade legislativa e  administrativa

d o s estados,  qu e é  resultante  da particularidade organizacio-

nal do Estado federativo, insere-se  n o controle geral  que am-

bas as  cortes  d e  direito público devem exercer sobre toda  a

atividade legislativa

  e

  executiva,

  o u

  seja,

  n ã o

  apenas tendo

e m

  vista

  a

 conformidade

  da

  legislação

 estadual  c o m a

 Cons-

tituição

  federal

,

  m a s a

  constitucionalidade

  da

  legislação

como

  u m

  todo

  —

 portanto também

  d a s

  leis federais

  e nã o

apenas

  u m a

  conformidade

  da

  administração

  estadual  com as

leis

 federais,  m as a

  legalidade

  de

 toda

 a

 administração

  - por-

tanto também  da  federal.  Por  esse meio  o  controle exercido

pela Corte Constitucional  e  pela Corte Administrativa sobre

o s  estados também perde  a  aparência  de  unilateralidade;

tanto mais  que a Constituição observa  a esse propósito  u ma

certa

  reciprocidade,

  n a  medida  e m q u e  concede  à  União

u m a  iniciativa  d e  controle sobre  o s  estados  e a  estes  uma

iniciativa  d e  controle sobre  a União.

A clara distinção entre jurisdição constitucional  e admi-

nistrativa feita pela Constituição austríaca,  que destina a essas

duas funções duas cortes diferentes,  tem  provavelmente  e x -

plicação em qu e a Constituição -  recebendo a herança da velha

Áustria -  encontrou-se  c o m o s  dois tribunais já prontos,  e no

empenho p or conservar instituições antigas e testadas, não viu

motivo para unificá-los. Também deve ter sido decisivo  o  fato

de que já o velho Tribunal  d o  Império  [Reichsgericht],  cujo

continuador  foi a  Corte Constitucional, oferecia  a o s  parti-

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18

  HANS KELSEN

d os políticos  a possibilidade  d e u m a  influência proporcional

na sua

 composição,

  o que, em

  relação

  às

  suas competências

de  grande relevo político, como  a  proteção  d e  direitos  g a-

rantidos constitucionalmente,  e m particular o  direito  de voto,

tinha suma importância. Como pelo menos

  um a

  parte

  dos

membros  d a  Corte Constitucional  é de  fato nomeada  c o m

base  n a indicação  d o s partidos políticos, esse órgão adquire

u m  caráter arbitrai.  N o  caso  da  Corte Administrativa,  que é

composta

 p or

 juízes

 de

 carreira,

 tal

 matiz partidário

 n ão ê p o s -

sível nessa medida, tampouco necessário c o m respeito à c o m -

petência e m  questão. N o  entanto,  as considerações  q u e c on -

duzem

 à

 existência

 d e

 duas cortes

 d e

 direito público

  não são,

d e

 modo algum, somente históiico-políticas. Entre

 a

 jurisdi-

çã o  constitucional  e a administrativa existe u m a distinção t e ó -

rico-jurídica fundamental,

 q u e

 justi fica também

 u m a

 diferen-

ciação técnico-jurídica d as duas funções. Trata-se da distinção

entre a constitucionalidade  d os atos jurídicos,  e sua mera  c o n -

formidade

  às

  leis. Essa diferença naturalmente pressupõe

  a

existência d e u m a Constituição n o sentido formal, o u seja, d e

normas particularmente qualif icadas  c o m  respeito  à  forma-

ç ã o e

  modificação daqueles atos.

  A

  Constituição austríaca

prescreve para leis constitucionais, além

  de um  quorum  e l e -

vado  e u m a maioria  d e dois terços,  a expressa denominação

de lei

  constitucional". Como leis constitucionais referem-

s e

 antes

 d e

  tudo

  a o

 próprio

  a to

 legislativo

 -

  Constituição

  n o

sentido material significa antes  d e  tudo normas sobre  a pro-

dução

  d a

  ordem  jurídica

  - a

  constitucionalidade interessa

principalmente

  ao ato

 jurídico

  d e

  legislar:

  a

 norma constitu-

cional  é  aplicada  a o  processo  n o  qual surgem  as  leis.  N u m

Estado federativo, porém, onde existem duas instâncias entre

as

 quais

 s ã o

 divididas

 as

 matérias legislativas,

  a

 Constituição

e m   sentido formal assume também essa competência divi-

sória,  e  portanto  a  questão  d a  constitucionalidade refere-se

também ao conteúdo das leis. Assim,  e m todo caso, é a

 lei

  que

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

19

deve ter sua constitucionalidade verificada, e a jurisdição cons-

titucional  é  sobretudo

  controle  da  constitucionalidade  das

leis.

  Leis constitucionais n o sentido formal, contudo, norma-

tizam n ão apenas o processo legislativo, m a s também d e modo

direto outros objetos particularmente importantes para o s quais

parece ser desejável u m a regulação firme, insuscetível  de fá-

c il  modificação.  Aí , a  concretização  d o  direito  no a to  indi-

vidual  de sua aplicação ocorre diretamente  c o m  base  na lei

constitucional,  s e m q u e entre esta  e o ato administrativo  c o n -

creto  se insira uma le i ordinária.  O ato administrativo portanto

traz diretamente  em si o caráter d e  constitucionalidade  ou in-

constitucionalidade.  A  jurisdição constitucional, enquanto

controle  de  atos administrativos,

  significa  u m a  jurisdição

administrativa especial, diferenciando-se  d a jurisdição admi-

nistrativa geral apenas porque controla exatamente  a

 consti-

tucionalidade

  do ato , e nã o sua  simples conformidade  à lei.

Neste sentido,  o

 controle  da  legalidade  de  decretos

  ta m-

b é m é u m a to d e

 jurisdição administrativa, pois

 p o r u m

  lado

o  decreto vale tradicionalmente como  ato de  administração,

e por

 outro lado apenas

  a

 conformidade desse

  ato à lei -

  isto

é, sua

 legalidade

 —

 está sujeita

  a o

  controle,

  e não

  diretamen-

te a sua

  constitucionalidade. Decerto

  que o

  princípio

  da le -

galidade

  d e

  todo decreto está,

  v i a d e

  regra, estabelecido

  por

lei

 constitucional formal,

  o que

  também acontece freqüente-

mente

  c o m

  relação

  a

 todo

  ato

  executivo. Assim, toda ilega-

lidade

  de um ato

 administrativo seria indiretamente também

u m a inconstitucionalidade.  O limite teórico-jurídico entre ju -

risdição constitucional

  e

 jurisdição administrativa resulta,

 por-

tanto, apenas

  da

 diferença entre constitucionalidade direta

  e

indireta.

A

  divisão

  d e

 competências

  que a

 Constituição austríaca

estabeleceu entre

  a

 Corte Constitucional

  e a

 Corte Adminis -

trativa corresponde

  à

 diferenciação exposta acima,

 na

 medida

em que o

  controle

  de

  constitucionalidade

  d e

 leis

 e

 atos admi-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

21

efetivamente proveio  d o  órgão legislativo,  fo i  devidamente

aprovada,

  e

  atendeu

  à s

  condições especialíssimas pertinen-

tes à lei

  constitucional formal.

E m   contrapartida,  não é por v ia de regra - e  assim está

na Constituição austríaca -  subtraído a o juízo ordinário o con-

trole

  da

  devida publicação

  da lei . O

  juiz somente pode apli-

car

 como

  lei o que -

  segundo

  o seu

 julgamento

  - foi

  publi-

cado devidamente como  le i , ou  seja, segundo  o s  preceitos

d a Constituição.

Tal

 limitação

 d o

 direito

 d e

 controle

 te m

 com o conseqüên-

cia que as

 disposições constitucionais sobre

  a

  formação

  das

leis perdem

  n ã o

 apenas

  u m a

  importante garantia

  d e s u a e f i -

cácia, m a s também  o seu próprio significado. N a medida  e m

que os  tribunais  e a s  autoridades administrativas  têm a obri-

gação

  d e

  aplicar, como leis, normas

  q u e n ã o

  correspondem

a

 todas

  o u n e m

  sequer

  à s

 mais importantes exigências

  que a

Constituição estabelece para as leis, na medida  e m q u e  instru-

mentos  q u e n ã o  correspondem  a tais exigências  n ã o podem,

apesar disso,

  ser

 considerados nulos,

  as

  leis

  q u e

  estabelecem

essas exigências

 o u s ã o

 leges imperfectae,

  isto

 é , t êm um c on-

teúdo juridicamente não-obrigatório,  o u  então  s u a  violação

tem  como efeito somente  a punição  d o s órgãos responsáveis

pela

 su a

 observância.

  A

  responsabilidade ministerial

 é a úni-

c a

 garantia nesses casos, embora

  de

  todo insuficiente.

N u m

 Estado federativo, porém,

 em que a

 competência

 le -

gislativa está constitucionalmente dividida entre duas instân-

cias,  a  limitação  d o  direito  d e  controle  d a s  leis possui ainda

outro significado. Aqui

  a

  intromissão inconstitucional

  da le-

gislação

  d o

 Estado central

  n a

  competência

  d o

  estado-mem-

bro, ou  vice-versa, leva  a u m  conflito entre  a lei  federal  e a

estadual,  o  qual  - n a ausência  d e u m direito  d e  controle  por

parte

 d o s

 órgãos aplicadores

  d o

 direito

 - s ó

 pode

  ser

 resolvido

pelo princípio

 da lex posterior.  S e

 deve valer

 o

 presumido prin-

cípio característico

  d o

 Estado federativo, pelo qual

  o

  direito

nacional prevalece sobre  o direito estadual, o s órgãos executi-

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22

HANS KELSEN

v o s

  precisam examinar

  as

 "leis"

  à sua

 disposição

  a o

  menos

c o m

 base nesse preceito jurídico constitucional,

  e d e

  acor-

d o c om e l e s e r

  autorizados

  a

  considerar nulas

  as

  leis esta-

duais

  qu e

  estiverem

  e m

  contradição

  —

  isso também deve

  ser

"controlado"  - e m  face  d as  leis nacionais.  A  Constituição

austríaca

  não

  expressou

  o

 princípio

  o

 direito nacional

  pre-

valece sobre

  o

  direito estadual".

  E la

 vedou

  a o s

  órgãos

  e x e -

cutivos  o controle  das  leis -  excetuado o controle pelos tribu-

nais quanto  à devida publicação  — porém incumbiu  a Corte

Constitucional

  d e

  anular leis inconstitucionais, tanto fede-

rais como estaduais.

  N a

  esfera

  d o s

  tribunais ordinários

  e

d o s demais órgãos executivos vigora portanto para a relação

entre leis federais

  e

  estaduais

  o

  princípio

  da  lex  posterior,

porém para

 a

 Corte Constitucional vale

  o

 princípio

  da

 cons-

titucionalidade  e não  aquele outro bastante problemático,

segundo

  o

  qual sempre

  e sob

  quaisquer circunstâncias

  a lei

qu e  dispõe para  o  todo deve prevalecer sobre aquela  que

dispõe apenas para  a  parte. Esse princípio deve  se r  qualifi-

cado como problemático justamente

  d o

  ponto

  d e

  vista

  d a

idéia  d e  Estado federativo, pois simplesmente cancela  o li-

mite constitucional entre União  e  estados, essencial para  o

Estado federativo. Deve prevalecer também sobre

  as

  leis

  e s -

taduais, emanadas dentro d o  limite constitucional d e  compe-

tências,

 a lei

 nacional inconstitucional,

 qu e

  intervém

 n a c o m -

petência

 d o s

 estados

 e

 entra

 e m

  conflito

 c o m

  leis estaduais?

Isso colocaria  e m  questão toda  a existência  da Constituição

federal.

 N ã o s e

 deve apelar aqui para

 a

 competência exclusi-

va da

 União.

  S e a

 delimitação

  d e

  competências entre União

e  estados  se dá  através  d a  Constituição

 federal  —

  como  é o

caso

 n a

 Áustria

 - o

 limite pode

  ser

 movido

  a

 favor

 da

 União

pela  le i  federal - m as não por le i

  estadual

  — q u e modifique

a Constituição. Porém é inadmissível  que uma le i  federal or-

dinária invada

  o

  âmbito

  de

 competência garantido constitu-

cionalmente  a o  estado,  e não  menosinadmissível  q u e u m a

le i

  estadual regule matérias constitucionalmente reservadas

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

23

à

  União.

  N a

  obediência

  à

  Constituição encontra-se

  a

  única

garantia

  de

  manter-se

  a

  competência legislativa

  d o

  estado

ante  a União.

A  solução  que a  Constituição austríaca  d e u a o  conflito

entre  lei  federal e lei estadual parece, assim,  ser também  ade-

quada

  a o

  princípio

  d o

  Estado federativo.

  Não é a l e i

  federal

enquanto

  tal que

  prevalece sobre

  a

  estadual,

  mas s im a le i

constitucional sobre

  a

  inconstitucional,

  n ã o

  interessando

  s e

é le i

  federal

  o u

 estadual.

O

 processo

  d e

  exame

  de uma le i

  pode

  ser

  iniciado

  a pe-

dido  d o governo

 federal,

  contudo apenas  c o m  relação  a um a

le i  estadual,  e a

 pedido

  d o

  governo

  estadual

  apenas

  c o m r e-

lação

  a um a le i federal.  Por f im , a

 Corte Constitucional pode

examinar

 de

 ofício

 a

 constitucionalidade

 d e

  qualquer

 le i , de s-

de que e la  seja pressuposto para  a decisão  d e u m  litígio  su -

jeito

  à sua

 apreciação.

  O

 governo federal

  e

 cada governo

 e s -

tadual estão respectivamente habilitados  a requerer  o exame

e a  anulação,  p or  inconstitucionalidade,  d e u ma l e i  estadual

o u  federal,  s e m q u e necessitem comprovar u m  interesse par-

ticular ferido pela le i  impugnada.  O q u e União  e estados  fa-

z e m valer com ta l requerimento — n u m controle recíproco — é

o  interesse  na  constitucionalidade. Todo estado  te m o  direito

d e  impugnação  de  qualquer  le i  federal, ainda  q u e  eventual-

mente esta valha apenas para u m estado,  e ainda  que se  trate

de  outro estado.  O  mesmo pode fazer  a União  e m  relação  a

qualquer  le i  estadual  e e m  razão  d e qualquer inconstitucio-

nalidade.  A  inconformidade  da le i de um  estado  com a sua

própria

  Constituição estadual

  também pode  ser impugnada

pela União diante da Corte Constitucional.  O pedido pode  ser

apresentado  a  qualquer tempo,  e  independe  d e  prazo.  E m

particular, também podem  ser impugnadas  por inconstitucio-

nalidade  a s leis nacionais  e estaduais recebidas d a antiga m o -

narquia, válidas agora como leis federais e estaduais c o m base

numa cláusula especial  d e  recepção inserta  na  "Resolução

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2 4

HANS KELSEN

sobre

  as

  instituições fundamentais

 d o

  poder

  do

  Estado,

  de

30 de outubro de  1918", e de u m a disposição especial  da lei

constitucional  de 1 ? de outubro  de 1920, concernente à tran-

sição para  a  Constituição  de  Estado federativo. Para essas

leis, naturalmente, deve atuar como critério

  de

  avaliação

  a

Constituição vigente quando  da sua  promulgação. Caso  a

Corte Constitucional queira examinar

  de

  oficio

  a

  constitu-

cionalidade  de uma lei que seja pressuposto para  u m a  deci-

são sua,

 deve suspender

 o

 processo quanto

 à

 matéria litigiosa

pendente,

  e

  iniciar

 o

 exame

  de

 constitucionalidade.

  Uma lei

pode  ser pressuposto d e u m a  decisão e m graus muito varia-

dos.

 Cabe

  à

 Corte decidir, segundo

  sua

 própria discrição,

  se

existe  ou não a necessidade  de exame. Embora  o exame pos-

sa ser

 efetuado

 de oficio,  os

 partidos

 são

 livres para provocar

a Corte quanto à inconstitucionalidade de um a lei a ser apli-

cada  n um  caso concreto. Justamente essa possibilidade  de

exame

 de

 ofício

 da lei tem a

 maior importância prática,

 e de

modo especial  faz da Corte  um garante  da Constituição.

A inconstitucionalidade de um a lei pode consistir em que

não

 tenham sido observadas

 as

 prescrições para

  sua

 elabora-

ção ou em que seu conteúdo fira as disposições sobre compe-

tência.

 A

  diferença

 d e

 princípio entre

  as

  leis federais

 e

 esta-

duais, derivada  da  competência exclusiva da União, consiste

em que as

 primeiras, tendo

 se

 formado constitucionalmente,

jamais podem ser inconstitucionais, mesmo que ultrapassem

o

 limite

 d e

 competência traçado pela Constituição federal, pois

mediante  uma lei federal que altere a Constituição esse limi-

te

 pode

  ser

 movido;

  se um a lei

 federal satisfaz

 as

 condições

de alteração da Constituição, a Corte Constitucional nada  lhe

pode opor.

 Um a lei

 estadual,

 ao

 contrário, ainda

 que

 adotada

como le i constitucional  do estado,  nunca pode invadir consti-

tucionalmente

  a

 competência

  da

  União, pois

  u m a

  alteração

da  Constituição - a qual regula  os  limites d e competência  -

somente pode acontecer através

  de lei

  federal, nunca

  de lei

estadual.

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

25

Caso

  a

  Corte Constitucional reconheça como inconsti-

tucional

 a lei

 examinada, deve anulá-la.

 A

 anulação pode

  se

referir

 a

 toda

 a lei ou

  apenas

 a

 algumas

  de

 suas disposições.

É

  particularmente característico

  da

  importância

  da

  Corte

Constitucional austríaca

  que a

  Constituição concede efeito

anulatório diretamente

  à sua decisão.  Uma lei só é

 anulada

p o r

  decisão judicial.

  Tal

  efeito, naturalmente,

  só se

  realiza

com a

 publicação

  d a

  decisão anulatória, assim como

  a e f i -

cácia jurídica  de uma lei só se  inicia  com sua publicação.  A

publicação  é  obrigação  do chanceler federal, quanto  às  leis

federais, e do chefe estadual quanto  às leis estaduais, sendo

feita respectivamente  no Diário Oficial  federal ou estadual.

Em sua decisão a Corte Constitucional pode estabelecer u m

prazo para  a  invalidação  da lei, o qual  n ã o  pode ultrapassar

seis meses.  A  decisão opera fundamentalmente apenas

 pro

futuro,  e a lei  inconstitucional,  a té  então válida,  é anulada.

O s  atos  a té  então postos  em  vigor  c o m  base nessa  lei não

são, portanto, tocados pela anulação. U m  certo efeito retroa-

tivo pode ocorrer, naturalmente, apenas na medida em qu e a

Corte Constitucional, quando examina

  e

  anula

  de

  ofício

um a lei que em seu

 entender

 é

 pressuposto para

  um a

 decisão

sua, não tem

 mais

 q u e

 aplicar

  a lei

 anulada

  ao

 caso penden-

te ,

 embora

  o

 fato correspondente

  ao

 mérito

  da

  questão haja

ocorrido quando

  a lei ,

  ainda

  não

  anulada, estava

  em

  vigor.

Assim,

 a

 decisão

 da

 Corte Constitucional, cujo pressuposto

 é

a lei

 anulada, atua como

 se a lei já nã o

 vigorasse

 n o

 momen-

to em que se  forma  o  mérito  a ser julgado.  N a  decisão  do

caso

  q u e

 motivou

  o

  exame

  da lei,

 portanto,

  ela é

 considera-

da

  como

 nula.  O s

  outros tribunais

  e

 demais órgãos executi-

vos ,

 porém, devem julgar méritos formados quando essa

  lei

ainda vigorava. Essa retroatividade parcial

  da

  decisão

  que

anula a lei também  é excluída quando a Corte Constitucional

estabelece em sua decisão u m prazo para a cessação de vigên-

cia da lei. Se a própria Corte quer que a lei continue vigoran-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

2 7

devia considerar  o  decreto como nulo. Porém, para impedir

que um

  decreto

 n ã o

  aplicado

  por um

  tribunal

  por sua

  incon-

formidade

  com a le i

  continue

  e m

  vigor

  e

  assim possa

  ser

aplicado  po r  outros tribunais  q u e  tenham opinião jurídica

diversa,

 e até

 tenha

  que se r

 aplicado pelas autoridades admi-

nistrativas,  a  Constituição federal, no  interesse  da unidade  e

segurança materiais

  do

 direito

 e

 considerando

 a

 importância

e a dimensão adquiridas  n o s últimos anos pelo direito insti-

tuído em  forma de decretos, adotou  a seguinte disposição: se

u m

  tribunal,

  p o r

  motivo

  d e

  inconformidade

  com a lei , tem

dúvidas quanto

 à

 aplicação

 de um

  decreto,

  ou

 seja,

 se o pró -

prio tribunal

  é d a

 opinião

  (não

  basta

  u m a

 mera alegação

  de

parte)  de que o  decreto  a ser  aplicado  n o  caso concreto  é

contrário

  à lei,

  deve interromper

  o

 processo

  e

  apresentar

  à

Corte Constitucional

  o

  pedido fundamentado

  d e

  anulação

do decreto. Esse pedido n ão deve se r apresentado pelo tribu-

nal

  somente quando tenha

  que

  aplicar

  o

  decreto diretamen-

te no  assunto pendente,  m a s  também quando  a  legalidade

do

 decreto constitua

  u m a

  questão prejudicial para

  sua

  deci-

são. O pedido  é para  que o  decreto seja anulado  em  todo  o

seu

  conteúdo

  ou em

  determinados pontos.

  O

  tribunal

  só

poderá então omitir

  a

 aplicação direta

  ou

  indireta

  do

 decre-

to ,  isto  é, decidir o caso como  se o  decreto n ão  tivesse sido

editado, considerando-o nulo para

  o

  caso, quando

  a

  Corte

Constitucional o anular, o u seja, o eliminar. Trata-se aqui d e

u m a

  limitação

  de não

  pouca importância

  do até

 então ilimi-

tado direito

  de

 controle

  de

 decretos exercido pelos tribunais.

A

  anulação

  do

 decreto opera fundamentalmente apenas

 pro

futuro,

  possuindo força retroativa somente para

  o

  caso

  que

motivou o pedido à Corte, e, com isso, a anulação do decreto.

Tal

 retroatividade

 é

 necessária para

  que os

  tribunais tenham

interesse  em  requerer  a  anulação  de  decretos ilegais;  de fa-

to, não

  haveria esse interesse

  se a

 anulação

  do

 decreto pela

Corte Constitucional valesse tão-só para

 o s

 casos futuros,

 de

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8/17/2019 KELSEN Hans. Jurisdicao Constitucional

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2 8

HANSKELSEN

modo  q u e  devessem aplicá-lo  n o  caso anterior  à  anulação.

Se chegarmos t ã o longe, porém, teremos, p o r motivo de un i -

formidade,

 que

 estender

 a

 retroatividade

 a

 todos

 os

 casos

 que ,

embora surgidos ainda  sob a  vigência  do  decreto, conti-

nuem aguardando decisão após

  sua

  anulação pela Corte

Constitucional.

  Se o

  decreto anulado pela Corte Constitu-

cional deve  ser aplicado po r um  tribunal n u m caso diferente

daquele q u e levou à anulação ( e isso é possível na medida em

que se trata do julgamento de um caso surgido sob a vigência

do

 decreto), então tanto esse tribunal como aquele

  que fez o

pedido conducente

  à

  anulação estão vinculados

  ao

  entendi-

mento

  da

  Corte Constitucional,

  n ã o

  devendo, como esta,

aplicar  o  decreto  a o  caso concreto. Também  é possível,  p o -

rém , que o decreto a ser aplicado pelo tribunal tenha deixado

de vigorar  no momento  em que ele deve pronunciar  sua de-

cisão,  por um  outro motivo  que não  seja  su a anulação pela

Corte Constitucional. S e o tribunal crê que o decreto é ilegal,

seu

 pedido

  à

 Corte Constitucional

 n ã o

 deve naturalmente

  ser

d e

 anulação

  -

  pois

  o

 decreto

 j á

  está anulado;

  e m v e z

  disso,

o tribunal deve pleitear à Corte a declaração de que o decreto

era  ilegal.

N a possibilidade de que o pedido d e anulação de um de-

creto seja apresentado

 p o r

  tribunais (entre

  os

 quais também

a

 Corte Administrativa) reside

 um a das

 mais importantes

 d i-

ferenças entre

  o

 controle

  d e

 decretos

  e o de

 leis.

 D e

 resto,

 o

pedido pode  ser apresentado pelo governo federal, porém  so-

mente

 p or

 ilegalidade

 de

 decretos

 d e u ma

 autoridade estadual,

e pelo governo estadual, somente p o r  ilegalidade de decretos

de um a autoridade federal. Com respeito à legitimação e à ine -

xistência

 d e

 prazo vale

 o

 mesmo

 que

 para

 o

 pedido

 de

 exame

de

 leis.

 Por

 último,

 a

 Corte Constimcional também pode deci-

dir de

 ofício sobre

 a

 legalidade

 d e

 qualquer decreto, desde

 que

ele seja pressuposto d e u ma decisão sua. Nesse caso,  a Corte

deve interromper

  o

  processo sobre

  o

  caso pendente. Reco-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

2 9

nhecendo  o decreto como ilegal,  ela o  anula,  o que  obriga  a

autoridade executiva competente  a  publicar imediatamente

essa anulação. Apenas

  com ta l

  publicação entra

  em

  vigor

  a

anulação.  A  Corte Constitucional  n ã o pode  -  como  na anu-

lação

 de

 leis

 -

  estabelecer

 u m

 prazo para

 a

 cessação

 de

 vigên-

cia do decreto. Mesmo u m a anulação d e decreto q ue suceda a

pedido

  d o

  governo opera apenas

 pro  futuro.  A

  anulação

  de

oficio opera retroativamente sobre  o  caso pendente  na  Corte

Constitucional,  e qu e  motivou  o exame.  Se no momento  do

exame

  de

 ofício

 o

 decreto

 já não

 estiver

 e m

  vigor,

 a

 decisão

da

  Corte Constitucional limita-se

  a

 declarar

  que ele era ile-

gal.

 Também aqui

  se

 verifica

 u m

  efeito retroativo quanto

 ao

caso pendente  na  Corte  e que deu  lugar ao exame.

Como órgão central

  de

  controle

  d e

  decretos,

  a

  Corte

Constitucional exerce apenas  em  linhas gerais as atribuições

de uma

 Corte Administrativa; porém, mesmo nessa função

 ela

pode agir imediatamente

 a

 serviço

 da

 Constituição.

  Uma vez

que a União  tem o  direito  d e  editar decretos sobre todas  as

matérias

 em que lhe

 compete

 a

 atividade legislativa, cabendo

porém a função executiva aos estados, têm estes particular in-

teresse

 n a

 conformidade,

 à lei,

 dessa atividade regulamentar

d a União.  A f im de  evitar  que a  competência executiva  dos

estados, j á  privados  do direito  d e editar decretos, seja ainda

mais prejudicada

  p o r u m a

  atividade regulamentar ilegal

  da

União,  a  possibilidade  d e  impugnar decretos junto  à  Corte

Constitucional oferece

 u m a

 proteção eficaz.

A

 Corte Constitucional, além disso, decide sobre recur-

sos

 contra

 violação,  dos  direitos constitucionalmente garan-

tidos,  por a to de

 autoridade administrativa

 — n ã o

  importando

se  federal ou estadual  — após esgotamento  da  cadeia  de ins-

tâncias administrativas.

 C o m

 essa competência

 a

 Corte Cons-

titucional entra em concorrência com a Corte Administrativa,

que

 deve decidir sobre recursos contra violação

 — p o r

 decisão

ou

 disposição

 d e u m a

 autoridade administrativa

 — de

 direitos

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3 0

HANS KELSEN

outros que os constitucionalmente garantidos, após esgotadas

as

  instâncias administrativas.

 O

 limite entre

 as

 competências

de

 ambas

 as

 cortes

 é

 aqui, claramente,

 o

 traçado anteriormen-

te

 entre

 o s

 conceitos

 d e

 jurisdição constitucional

 e

 administra-

tiva.

 Tal

 entendimento

  só se

 torna

  u m

 pouco complicado

 n a

medida em qu e o texto da Constituição, apoiando-se em anti-

gas normas sobre a competência das duas cortes, dispõe sobre

violação

 do

 direito subjetivo

 da

 parte,

 e não

 diretamente

 so-

bre a

 violação objetiva

 do

 direito.

  C om

  isso

  n ão

 fica plena-

mente claro  que a competência da Corte Constitucional se es-

tabelece apenas

 em

 caso

 d e

 violação direta

  da

 Constituição,

e não de  violação  de lei  ordinária. Certamente, outra inter-

pretação seria simplesmente confiar

  o

 exame

  d e

  toda

  v i o -

lação

  de lei por ato

  administrativo

  à

  Corte Constitucional,

retirando toda a competência da Corte Administrativa, ou então

criar  um a intolerável competência dupla das duas cortes, pois

de uma  maneira indireta  e  não-imediata praticamente toda

violação

 d e lei é

 inconstitucional,

 um a vez que a

 legalidade

 de

toda atividade executiva  é prescrita pela Constituição. Se po r

exemplo alguém

  é

 condenado

  a uma

  pena

  de

  reclusão

  c o m

base numa norma administrativa

  ou é

  expropriado

  com

  base

numa

  lei de

 desapropriação,

  e

  acredita

  ter

  tido seus direitos

violados p o r aplicação incorreta da lei , não pode — como n o

entanto  tem  acontecido  co m  freqüência  -  recorrer  à  Corte

Constitucional, alegando

 que foi

 ferido

 seu

 direito

 de

 liberda-

de ou de

 propriedade, garantido constitucionalmente.

 Na ver-

dade, a Corte Constitucional, n o intuito consciente de definir

sua competência em relação à da Corte Administrativa segun-

do a diferença entre jurisdição constitucional e administrativa,

tem já em

  repetidos casos afirmado

 q ue

 para

  se

 configurar

 a

violação  d o s  direitos  de  liberdade  ou  propriedade garanti-

d o s constitucionalmente, n ã o basta q ue se possa alegar um a

mera intervenção ilegal

  na

  liberdade

  ou na

 propriedade,

  ou

seja,

 a

  aplicação incorreta

  de uma le i que

  regule tais inter-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

3 1

venções;  em vez  disso, deve-se poder alegar  u m a  violação

direta  da Constituição, o que porém significa que , podendo-

se afirmar u m a violação d a liberdade ou da propriedade, d e-

ve necessariamente te r sido violada a disposição constitucio-

nal segundo a qual a  intervenção n a liberdade ou na proprie-

dade

 só

 pode ocorrer

 co m

 base

  em lei. Só

 existe violação

 da

Constituição, portanto, quando

  o ato

 administrativo

  que in-

terfere

 na

  liberdade

  ou na

 propriedade ocorre

  sem

  qualquer

fundamentação legal

  — não se

  tratando meramente

  da

  apli-

cação incorreta

  de uma le i que

  autoriza

  tal

  interferência,

 ou

seja, que é carecedor  de base normativa  e não simplesmente

ilegal (cabe

  à

  Corte decidir

  se o ato

  administrativo invoca

apenas d e modo fictício u m a le i que decididamente não au-

toriza  a  interferência) - ou  então, quando  a  fundamentação

sobre  a qual  se apóia  o ato (a lei ou o decreto)  é  inconstitu-

cional.  A  violação  d o  direito cometida  po r  mera aplicação

incorreta  de uma le i  (insuficiência d o suporte fático, incor-

reta determinação d o efeito) remete, portanto, somente à com -

petência  da Corte Administrativa.

Apesar  da grande afinidade que existe entre  as compe-

tências  das  duas cortes,  seu  exercício apresenta diferenças

relevantes,  que não  obstante explicáveis  n o  plano históri-

co, são

 injustificáveis

 no

 plano político-legislativo.

 A

 Corte

Constitucional pode decidir também sobre

 a

 violação

 de di-

reitos constitucionalmente garantidos ocorrida através

  de

atos

 qu e se

 enquadram

 n o

 poder discricionário

 d a s

 autorida-

des administrativas,  ao passo  que a Corte Administrativa  só

pode decidir sobre tais atos quando existe abuso

 ou

 excesso

de

 poder,

 ou

 seja, quando

  a

 autoridade

  co m

 poder para

  ado-

tar discricionariamente a decisão o u disposição, não faz uso

desse poder conforme  a lei.  Portanto  as  decisões  da  Corte

Constitucional  têm caráter simplesmente cassatório, enquan-

to a  Corte Administrativa pode  n ão apenas anular  o ato ad-

ministrativo ilegal,  m a s  também decidir quanto  ao  mérito,

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3 2

HANS KELSEN

reformando-o (isso porém quando

  o ato

  administrativo

  não

se

 enquadrar

  no

 poder discricionário

 da

 autoridade).

 D a má -

xima importância, contudo,

 é o

 fato

 de que o

 recurso

  à Cor-

te Administrativa  - mas não à Corte Constitucional  -  pode

se r apresentado  não só pela parte atingida  e m  seus direitos,

m as

  também pela própria União, através

  do

  ministro

  c o m -

petente, desde

  que com o a to

  administrativo ilegal tenham

sido atingidos interesses federais

  e se

  trate

  de a to de uma

autoridade estadual  c o m o qual, dentro  da esfera d e ativida-

de do estado, sejam executadas leis federais o u leis federais

de

 princípio.

  C o m

 essa disposição

 a

 Constituição federal

  in-

troduziu

  a

  necessária garantia

  de que a

  atividade adminis-

trativa estadual,

  n a

  medida

  em que

  deve executar leis fede-

rais, seja efetivamente conforme essas leis.  A  União,  que

tem o  máximo interesse  na  legalidade dessa atividade  exe-

cutiva, pode obter a anulação do ato administrativo ilegal d o

estado sobre

  o

 qual

  n ã o

  possua nenhum direito

  d e

  supervi-

são e

  instrução, mediante recurso

  à

  Corte Administrativa.

U m

  tribunal

  que se

  poderia considerar como órgão federal,

ou -  tendo-se  em  conta  a interferência paritária  d e União  e

estados  na sua  composição  -  como órgão comum  a o s  dois

lados, controla  a relação jurídica  que a Constituição estabe-

lece entre eles.

  É de

 grande importância

  que a

 Constituição

autorize

  a

  Corte Administrativa

  n ã o

  apenas

  a

  cassar,

  por

inconformidade

  com a lei , os

  atos administrativos pratica-

dos na

  esfera

  de

  atividade

  dos

  estados,

  mas até

  mesmo

  a

decidir quanto  a seu  mérito (desde  que o  considere possí-

vel , p or exemplo,  p o r tratar-se  d e u ma questão jurídica  cla-

ra, perfei tamente madura para a decisão), de modo  que, nes-

sas circupstâncias, o s atos administrativos pertencentes à es-

fera  d e  atividade  d os  estados possam  ser  devolvidos  a um

órgão federal, ou a um órgão comum  a União e estados, m e-

diante

  um

 recurso apresentado

  à

 Corte Administrativa pela

própria União.

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

  3 3

Agindo como puro tribunal administrativo,

 a

 Corte Cons-

titucional decide sobre pretensões junto  à  União,  aos estados

ou

  municípios,

  qu e não

  possam

  ser

  resolvidas pelas vias

ordinárias.

  So b

 esse prisma

  são

 apresentadas

  à

 Corte princi-

palmente pretensões de ordem trabalhista [dienstrechtlich] de

funcionários estatais

 q ue

 segundo

 o

 direito vigente

 não

 podem

ser  levadas  ao s juízos ordinários,  mas são disciplinadas  por

via

 administrativa.

  A

  atribuição

  de tal

  competência

  à

  Corte

Constitucional não é oportuna, sobretudo porque não tem pra -

ticamente nada

  a ver com a

 proteção

  da

  Constituição: aqui

seria muito mais indicada

  a

 Corte Administrativa. Pelo teor

da  Constituição,  q u e nesse ponto aceitou  as velhas disposi-

ções

 da lei

 sobre

 o

 Tribunal

  do

 Império, pode

 sem

 dúvida

 ser

afirmada a competência formal da Corte Constitucional, tan-

to

 mais

 que

 disposição expressa

 da

 Constituição exclui

 a

 Corte

Administrativa de tudo aquilo em que seja competente a Cor-

te Constitucional. Porém o acolhimento d e tais pretensões en-

contra grandes dif iculdades justamente junto

  à

 Corte Cons-

titucional.

 A

 qualquer

 um a

 dessas pretensões nào-satisfeitas

que o

  funcionário ergue contra

  o

  Estado (exige

  os

  venci-

mentos  da  ativa  e  recebe apenas  a  aposentadoria, exige  o

ordenado

 d e u m a

  categoria superior,

 etc.)

 opõe-se algum

  ato

administrativo

  com o

 qual

  lhe é

  concedido menos

  do que a

seu juízo  lh e cabia, ou  então  lhe é negado absolutamente  tu-

do.

  Esse

  ato

  administrativo, possivelmente ilegal,

  é

  porém

um a disposição o u decisão d e caráter obrigatório,  e, em  todo

caso,

 um ato

 jurídico

  que

 determina

 a

 pretensão

  da

 parte

 en -

quanto  não for  anulado  na  forma  do direito.  A  Corte Cons-

titucional, contudo,

 não é

 competente para anulá-lo,

 eis que só

pode cassar

  um ato

 administrativo quando

  por e le for

 viola-

do um direito constitucionalmente garantido. Apesar disso a

Corte Constitucional

  -

  como

  j á

  fazia

  o

  antigo Tribunal

  do

Império -  decide sobre a  legalidade desse a to administrativo

como sobre

  um a

  questão prejudicial,

 e

 caso

  o

 considere

  ile-

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3 4

HANSKELSEN

gal,

 acolhe

 o

 pedido

  e

 condena

  o

 Estado

  a

 conceder

  o

 bene-

fício requerido, contrariando

  o ato

  administrativo

  que não

fo i

 anulado

  nem é

 anulável pelo tribunal. Essa prática alta-

mente problemática  só pode  se  apoiar e m seus mais  de c in-

qüenta anos  d e existência.

Atuando como tribunal administrativo,  a Corte Consti-

tuciortal pronuncia-se sobre impugnações  de eleições  para o

Conselho Nacional,  o Conselho Federal, o s parlamentos  es-

taduais e todos os órgãos representativos gerais, e por reque-

rimento de um desses órgãos, sobre a declaração d e perda d e

mandato

 de

 algum

 de

 seus membros.

 D o

 ponto

 d e

 vista

 de uma

Constituição federal, deve-se todavia considerar singular

  que

também impugnações

  de

 eleições para

  os

 parlamentos esta-

duais

 e os

 conselhos municipais

 -

  isto

  é,

 para órgãos repre-

sentativos

  d o

 âmbito interno

  d os

 estados

 —

 sejam decididas

por um

 tribunal federal. Também

  é

  significativo

  que a

 elei-

ç ã o d ó s

 membros

  do

 Conselho Federal possa

  se r

  impugna-

da

 na^Corte Constitucional, embora

  o

 Conselho Federal seja

apenas

 u m a

  delegação conjunta

 d os

 parlamentos estaduais.

Certamente,

 o

 Conselho Federal também pode

 -

  enquanto

 ór-

gão

 legislativo federal previsto pela Constituição

  - ser con-

siderado como órgão federal.

 E m

 todo caso,

 há

 nessa jurisdi-

ção

 eleitoral

  u m a

  circunstância acentuadamente centralista,

tanto mais quando

  se

 considera

  que a

  Corte Constitucional

também

 é

 competente para proteger

 o

 direito eleitoral indivi-

dual enquanto direito constitucionalmente garantido;

 d e

 fato,

o direito para  as eleições  de todos  os órgãos representativos

gerais

 d a

 União

 ou dos

 estados

 -

  Conselho Federal, parlamen-

tos

  estaduais, conselhos municipais

  -

  está estabelecido

  n a

Constituição federal.

A

 Corte Constitucional julga ademais

 conflitos

  de com-

petência

  entre tribunais

 e

 autoridades administrativas

 e tam -

bém

 entre tribunais

 e a

 Corte Administrativa, decidindo espe-

cialmente conflitos

 d e

  competência

  que

 surgem entre esta

  e

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

3 5

a própria Corte Constitucional. Assim é enfrentada, embora

não de

 todo,

 a

 inconveniência

 q u e

 resulta

 d a

 coexistência

 de

duas cortes supremas

 de

 direito público,

 b e m

 como

 o

 perigo

de contradição entre ambas. Tal decisão, contudo, só é possí-

vel quando a s duas cortes  são  chamadas a se pronunciar  so-

bre uma

 mesma questão. Evidentemente,

 não é

 possível evitar

que, em

  casos

  em que a

  competência

  é

  duvidosa

  - em que

portanto, segundo  o  ponto  de  vista  que se  adote, tanto  uma

quanto a outra corte possa ser convocada - ora um a, ora outra

corte, convocada isoladamente, pronuncie

  a

  decisão,

  e que

nessas decisões

 se

 expressem opiniões jurídicas diferentes.

 A

Corte Constitucional entra diretamente  em  ação a serviço do

princípio federativo quando deve decidir sobre conflitos  de

competência entre

 o s

 estados

  ou

 entre

 u m

  estado

 e a

 União.

Conforme a  Constituição federal, a  Corte Constitucio-

nal deve, como tribunal criminal, julgar violações

  do

 direito

internacional

  segundo

 as

 disposições

  de uma le i

 federal

 es-

pecífica;

 no

 entanto,

 não

 trataremos

 d o

 assunto aqui,

 uma vez

que

  essa

  lei

 ainda

  não fo i

 elaborada.

Por f im, a Corte Constitucional atua como corte supre-

m a

  central

  - ou, se se

  quiser

  -

  comum

  a

  União

  e

  estados.

Nessa qualidade, julga

  a

 acusação mediante

  a

 qual

  se

 carac-

teriza a responsabilidade dos órgãos supremos federais e es-

taduais  p o r  violações culposas  do  direito,  n o  exercício  das

respectivas funções.

 A

 acusação pode

  se r

  levantada:

 a) con-

tra o

  presidente federal

 p o r

  violação

  da

  Constituição fede-

ral ,

 mediante resolução

 da

 Assembléia Federal

 (é

 necessária

maioria d e dois terços); b ) contra membros  do governo fede-

ral e

 órgãos

 que

  lhes sejam equiparados (atualmente

 o

 presi-

dente

 do

 Tribunal

 d e

 Contas)

 p o r

 violação

  da lei e

 mediante

resolução do Conselho Nacional (basta maioria simples); c)

contra membros  de um  governo estadual  e  órgãos  q u e  lhes

sejam equiparados pelas Constituições estaduais quanto

  à

responsabilidade

 p or

 violação

 d a lei, e

 mediante resolução

 do

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8/17/2019 KELSEN Hans. Jurisdicao Constitucional

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3 6  IIANS KELSEN

Parlamento estadual competente.

 A

 decisão condenatória

  da

Corte Constitucional deve determinar a perda  do cargo, e, em

casos particularmente graves, também

  a

  perda temporária

do s

 direitos políticos.

  A

 acusação pode também

  se r

 formu-

lada  em  virtude  de  atos  d e  natureza criminal, relacionados

ao exercício  da s  funções do  acusado. Nesse caso  a compe-

tência para julgar

  é

  exclusiva

  d a

  Corte Constitucional,

  d e -

vendo-Ihe

 s e r

 remetido

  o

 inquérito

 que

 porventura

 j á

 estiver

pendente  n o s  tribunais criminais ordinários. Além  das pe-

n as específicas d e perda de mandato e dos direitos políticos,

a

  Corte Constitucional também pode impor,

  em

  tais casos,

as penas previstas n o código penal.

Apoiando-se no instituto da responsabilidade ministerial,

assim estruturado,

  a

 Constituição federal regulou também

  a

responsabilidade  do  chefe estadual  como órgão da adminis-

tração federal indireta. O problema que aqui  se tratava d e re-

solver

 e ra

 duplo

 : e m

 primeiro lugar

 era

 necessário encontrar

u m a  garantia utilizável  n o  plano técnico-jurídico  e político

a f i m de que o

 chefe estadual

 -

  órgão executivo mais alto

 do

estado, eleito pelo Parlamento estadual, diante

  do

 qual

 é res-

ponsável enquanto líder do governo estadual no que respeita

à atividade administrativa autônoma d o estado — possa ser ef i -

cazmente chamado

 à

 responsabilidade

 p o r

 ilegalidades come-

tidas como órgão  da  administração federal indireta, isto  é,

como órgão federal subordinado

  e

 devedor

 d e

 obediência

 ao

governo federal. Tais ilegalidades podem consistir

  na

 viola-

ção das

  leis

  ou

 decretos federais

  que o

 chefe estadual deve

cumprir,

 m a s

 também

 n a

 inobservância

  de

 injunções concre-

tas do

 governo federal.

 A

 Constituição federal,

 n o

 âmbito

 da

administração federal indireta, autoriza expressamente  o go-

verno federal

  a

  dirigir tais ordens

  ao

 chefe estadual.

  A f im

d e

  possibilitar

  em

  termos práticos

  tal

  responsabilidade,

  a

Constituição federal configurou deliberadamente como  ór-

gão da

 administração federal indireta

 não o

 governo estadual,

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

3 7

q u e

  sendo colegiado

  é

  mais difícil

  de ser

 responsabilizado,

m as s im o chefe estadual, facilmente alcançável como órgão

individual. Deve-se

 t er

 presente,

 a

 propósito,

 a

 ideologia

 do Es-

tado federativo, segundo a qual o titular d a  administração  fe-

deral indireta

  é

 propriamente

 o

 estado

 -

  autônomo

  em

 outro

sentido enquanto  o  chefe estadual está diretamente  à dis-

posição  da administração federal apenas como órgão  do es-

tado elevado

 a

 órgão federal. Esse

 é o

 motivo

 por que em ou-

tras Constituições federais  que  confiam  aos  estados-mem-

bros funções administrativas

 do Reich

  (isto

 é, da

 União)

 o de-

ver de

  obediência

  do

  estado-membro para

  com o

  todo

  é

carente  d e sanção. Esse problema, resultante d a peculiarida-

de

 técnico-organizacional

 d o

 Estado federativo, está relacio-

nado  com um problema geral  de democracia administrativa.

Como pode

  u m a

  autoridade intermediária, portanto hierar-

quicamente subordinada, porém nomeada democraticamen-

te não

 pela autoridade superior,

 m as s im

 eleita

 por um

 órgão

representativo local

  e por

  isso mesmo responsável

 — ao me-

no s

  politicamente

  —

  perante este, considerar-se órgão

  que

deve obediência

 à

 autoridade central superior?

  U m a

 solução

satisfatória a essa questão -  vital para o sistema  de adminis-

tração democrática

  - é

  precondição para

  que a

  democracia

da  legislação  n ã o seja anulada pela democracia  da  adminis-

tração, para  que a  vontade  da  totalidade  do  povo, expressa

n a

  legislação

  e n a

  nomeação

  d os

  órgãos executivos supre-

mos, não seja paralisada pela vontade  de uma parte do povo,

expressa

 n os

 órgãos representativos locais, eleitos

  e

 encarre-

gados  da  atividade executiva  nas  instâncias intermediárias  e

inferiores.

 A s

  formas ordinárias

  de

 responsabilidade discipli-

nar

 existentes para

  o s

  funcionários

 de

 carreira

 não

 serão,

 na-

turalmente, consideradas aqui; sobretudo porque  aos órgãos

eletivos falta aquela

 que é a

 mais eficaz garantia

  da

 obediên-

cia do órgão subordinado:  a nomeação pelo órgão superior  e

o

 poder

  de

  promoção

  que a

  este compete.

  A

  destituição

  por

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8/17/2019 KELSEN Hans. Jurisdicao Constitucional

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3 8

HANS KELSEN

parte

  d o

 órgão superior

  no

 caso

  de

  desobediência seria

  teo-

ricamente aplicável também  ao s  órgãos eletivos; contudo,

dada a composição unilateralmente política d o s governos d a

União  e dos  estados, a destituição n ão pode  se r considerada

seriamente,

  em

  particular

  em

  relação

  ao

  chefe estadual.

  A

Constituição federal, p or  isso, adotou  o expediente  de colo-

car a

  Corte Constitucional,

  q u e

  atua também como tribu-

nal do

 Estado, acima

  do

 chefe estadual, como

 u m a

  instância

quase-disciplinar,

  e de

  caracterizar

  a

 responsabilidade

  dis-

ciplinar  do  chefe estadual diante  do  governo federal como

u m a  responsabilidade quase-ministerial. Essa responsabili-

dade

 se

 diferencia

 d a

  responsabilidade ministerial pelo fato

de que o

 chefe estadual, enquanto órgão

 da

 administração

 f e -

deral indireta, não é realmente u m ministro, ou  seja,  um ór-

g ão

  administrativo supremo,

  n ã o

 sendo responsável peran-

te o  Parlamento,  mas s im  perante  um  órgão administrativo

superior,

  o

 governo federal. Conseqüentemente,

  não se de-

fine su a  responsabilidade mediante resolução parlamentar,

mas s im com uma

  resolução (unânime)

  do

 governo federal

- no  mesmo foro  que  decide, segundo  o  mesmo procedi-

mento, sobre

  as

  acusações contra

  os

  ministros federais

  ou

estaduais. Porém, enquanto os ministros, como órgãos admi-

nistrativos supremos,

  são

  responsáveis apenas

  p o r

  violação

da lei (mas não por  violação  d e  decretos emitidos  p o r  eles

mesmos

  ou por

  órgãos

  a

  eles subordinados;

 j á

  ordens indi-

viduais  n ã o podem  em  absoluto  ser  dirigidas  aos  ministros

por

  inexistência

  de

 superiores),

 o

 chefe estadual

 é

 responsá-

vel não

  apenas

  p o r

  violação

  da lei , mas

  também

  po r

  inob-

servância

  d o s

  decretos

  ou

  outras injunções

  d a

  União

  em

matérias

  da

  administração federal indireta. Como

  em

  todos

o s casos de responsabilidade ministerial,  ao elemento obje-

tivo

  de

  ilegalidade deve somar-se

  o

  elemento subjetivo

  de

culpa.  A  ilegalidade deve se r culposa para  que o chefe esta-

dual seja responsabilizado. Qualquer forma  d e culpa basta,

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

3 9

inclusive

  a

 negligência leve.

 A

 decisão condenatória

 da Cor-

te

  Constitucional pode impor

  ao

  chefe estadual

  as

 mesmas

penas previstas para  u m ministro.  E m  caso  de violações  in-

significantes, porém,

 a

 Corte pode limitar-se

 a

 afirmar

 a

 exis-

tência  d e u m a  violação  d o  direito.  E justamente essa possi-

bilidade

 qu e

 torna

 d e

 fato exeqüíveis

 as

 disposições

 da

 Cons-

tituição federal sobre  a responsabilidade  do chefe estadual,

especialmente nos casos de não-cumprimento de ordens, nos

quais não se pode recorrer à destituição d o cargo.  M a s m e s -

mo em  outros casos  a pena  de  destituição, agravada  com a

perda  dos  direitos políticos,  só deveria  ser  considerada  co-

m o  ultima ratio.  A execução  d a  referida decisão -  como  de

todas  as  decisões  d a  Corte Constitucional — cabe  ao  presi-

dente federal.

A s

 disposições constitucionais sobre

 a

 responsabilidade

do

  chefe estadual perante

  o

  governo federal

  no

  campo

  da

administração federal indireta devem

  ser

 consideradas

  u m a

tentativa

 de

 completar,

 n o

 plano técnico-jurídico,

 o

 sistema

 or-

ganizacional do Estado federal, sancionando juridicamente  a

subordinação

 do

 estado

 à

 União

 n o

 âmbito

 em qu e o

 primei-

ro

 funciona como órgão federal. Admitindo-se

 a

 possibilidade

de que os  estados-membros funcionem d e  algum modo  co-

m o órgãos da União, tal sanção jurídica não pode ser excluída

da essência do Estado federal. A s mencionadas disposições da

Constituição federal austríaca revelaram-se  d a  máxima  im -

portância também  e m termos práticos. A Corte Constitucio-

nal repetidas vezes teve que decidir sobre acusações feitas pe-

lo governo federal. Trata-se sempre do caso de um chefe e s-

tadual que se recusa  a cumprir instruções d o governo federal

porque, segundo  sua  opinião,  a ordem  é  ilegal. N a  decisão,

por

  isso,

  a

 questão

  d o

  direito

  de

  controle

  do

 chefe estadual

em

 relação

  às

 normas

 que

 deve aplicar, desempenhava

  se m -

pre um

 papel importante.

 A

 esse respeito podem

 ser

 confron-

tados dois pontos

  de

  vista.

  D e

  acordo

  com o

  primeiro,

  ao

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4 0

HANSKELSEN

chefe estadual, enquanto órgão administrativo, é vedado pe-

lo  direito positivo o controle d a constitucionalidade  das  leis

e d a  legalidade  d e  decretos, devendo-se portanto  -

  argu-

mentum  a majori  ad minus  — c o m mais razão aceitar que lhe

seja vedado

 o

 controle

 da

 legalidade

 de

 ordens administrati-

vas  individuais, desde  qu e  isso  n ão  esteja estabelecido  por

alguma norma  de direito positivo. O  chefe estadual, portan-

to,

  deve seguir toda

  e

  qualquer ordem

  do

  governo,

  se não

quiser  se expor  a u m  processo perante  a Corte Constitucio-

nal . De  acordo  com o outro ponto  de vista,  o chefe estadual

possui u m  direito d e controle ilimitado, podendo apenas ser

punido pela Corte Constitucional  po r  desobediência  a uma

ordem da União q u e seja legal. Quanto à primeira tese, é di-

fícil,

 d e

 fato, colocá-la

 em

 prática

 de

 forma conseqüente.

 D e-

ve-se em primeiro lugar considerar problemático fundamen-

tar a

 proibição

 do

 controle

 de

 ordens administrativas,

 na au-

sência  d e u m a norma  d e direito positivo, sobre u m  simples

argumentum

  a

 majori.  D e

  fato,  a

 priori

  deve-se reconhecer

a o s  órgãos executivos  u m  ilimitado direito  de  controle  e m

relação  a  todas as normas,  e qualquer limitação desse direi-

to -  ainda  q u e  também necessária  n o plano  de  política  d o

direito

 -

  carece

  de

 unia definição

 no

 direito positivo. Pode-

se  admitir  sem  reservas  que a  ordem jurídica,  e m  relação

aos

  funcionários administrativos ordinários, pressupõe

  uma

limitação  tão  ampla  d o  direito  de  controle  qu e  termina  por

renunciar cabalmente a um a regulação positiva. É significa-

tivo

  que na

  maioria

  das

  Constituições,

  e

  assim também

  n a

austríaca, apenas

  aos

  juízos ordinários seja expressamente

vedado controlar  a constitucionalidade  das  leis. Conclui-se

daí , po r u m

  lado,

  que

 eles

  são

 privados desse direito apenas

porque

  e n a

  medida

  em que ele

  lhes

  é

  subtraído

  por uma

norma  de direito positivo;  é por  isso q u e podem examinar  a

devida publicação

 das

  leis.

 Por

 outro lado,

 no

 entanto, assu-

me-se novamente que  funcionários administrativos não pos-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

4 1

suem nenhum direito  de  controle, embora isso  não  esteja

expressamente estabelecido.

  Q u e

  essa idéia corresponde

  às

intenções

  do

  legislador

 n ão

 deve, como

 j á fo i

 dito,

  ser

 posto

em  dúvida; aqui  o  silêncio  d o  legislador está  em  contradi-

ção com sua  atitude  em  relação  ao s juízos ordinários, tanto

mais quando

  se

 considera, como

 j á

  indicamos,

  que não po-

de ser

  benéfico excluir também

  os

  funcionários totalmente

d o direito  de  examinar  as  leis  e decretos  a serem aplicados.

Também  os funcionários precisam indagar sobre a presença

dos  requisitos mínimos  de uma le i ou de um  decreto, pois

são

  obrigados

  a

  aplicá-los.

  Se nos

  apoiamos

  nas

  intenções

d o  legislador  e não nas disposições  d o  direito positivo,  e se

somos constrangidos a admitir que o direito d e controle seja

negado apenas dentro desses limites, isso significa

 que , co-

mo não é o

  próprio legislador

  que

  define

  o

  limite daquele

direito, ta l definição inclui-se no poder discricionário da au-

toridade  que  decide sobre  as  sanções quando leis  o u  decre-

tos em

 vigor

  não são

 observados

  ou

  quando

  se

 aplica como

lei ou

 decreto alguma coisa

  qu e — por não

 corresponder

 aos

requisitos mínimos de uma lei ou decreto  - não tem em abso-

luto  seu  caráter obrigatório.  N ã o é preciso enfatizar  que to-

da

 essa situação,

 q u e

 nasce

 d e u m a

  interpretação baseada

 na

presumível intenção

 do

 legislador,

  é

 extremamente precária.

M as

  mesmo quando

  se

  ignoram todas essas dúvidas, surge

ainda  a questão sobre  se então  - não estabelecendo a ordem

jurídica

  se e até que

 ponto

  o

 destinatário

  de um a

  ordem

  po-

de

  examinar

  sua

  legalidade

  — o que

  vale para

  a lei e o de-

creto pode  ser  também aplicado  sem  mais  às ordens admi-

nistrativas.  Não é de  modo algum óbvio  que a  intenção  d o

legislador

  em

  relação

  às

  leis

  e

  decretos,

  por si só

 bastante

discutível, deva  ser a  mesma  que em  relação  às  determi-

nações administrativas. A doutrina dominante  do direito p ú-

blico e administrativo sustenta,  é verdade, também  no silên-

cio do

  legislador,

  que o

 funcionário administrativo

 não pos-

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4 2 HANS KELSEN

su i

 nenhum direito

  de

 controle

 e m

 relação

 à

 ordem

 d a

 auto-

ridade superior.

  E la

 porém

  não tem

  como furtar-se

 ao

 prin-

cipio  da  lógica jurídica pura segundo  o  qual, fundamental-

mente, apenas

 u m a

 ordem

 e m

 conformidade

 com a le i

 pode

pretender obediência, pois apenas

 ela é um a

  ordem jurídica.

Q ue

  para

  sua

  legalidade baste

  um

  mínimo

  de

  requisitos,

  é

outra questão.

 S e o

 próprio legislador

 não d iz

 qual

 é

 esse

 m í-

nimo,

 tal

 determinação recai,

 um a vez

 mais,

  no

 poder discri-

cionário

  d a

  autoridade

  que

  decide sobre

  a

  desobediência.

Contudo

 a

 própria teoria coloca limitações consideráveis

 ao

princípio, afirmado po r ela mesma, da ausência de direito d e

controle.

  E la

  admite

  que a uma

  ordem contrária

  à lei

 penal

não se

  deve prestar obediência;

  não

  questiona

  que não

  seja

punível

  o

  funcionário

  que se

  abstém

  de

  seguir

  u m a

  ordem

vinda  de um  órgão  que lhe é  superior, porém incompetente

para  dar tal  ordem.  Por que , então, justamente  a  conformi-

dade d a ordem à lei penal e ao sistema d e competências deve-

ria ser passível de controle? S em dúvida, pode-se trazer argu-

mentos d o plano  da política legislativa para dispor  que uma

ordem, quando provém d o órgão competente e não  fere a lei

penal, pode pretender obediência mesmo que não correspon-

da, em seu conteúdo, a outras exigências legais. Contudo, fal-

tando  ta l disposição  n o  direito positivo,  a  lacuna  n ã o pode

se r preenchida pela teoria: isto seria direito natural

Se  adotarmos  o  ponto  de  vista  da  doutrina dominante,

n ão poderemos realmente insistir em que o funcionário admi-

nistrativo nã o tem direito de controle em relação à ordem da

autoridade, eis que ele pode, ou antes deve, examinar sua con-

formidade

  à lei

 penal

  e às

 normas sobre competência.

  A ri-

gor,

 porém,

  o

 direito

 de

 controle

 não

 pertence propriamente

ao

 destinatário

 d a

 ordem,

 ma s sim, em

 última análise,

 à

 auto-

ridade disciplinar,

  que

 deve decidir

 se há

 desobediência

  pas-

sível

 de

 penalidade, definindo assim antes

 d e

 mais nada

 se foi

emitida

 um a

 ordem exeqüível.

 Se a

 opinião

 da

 autoridade

 dis-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

4 3

ciplinar não coincide  com a do destinatário  da ordem, aquela

considerando,

 ao

 contrário deste último,

 que a

 ordem está

 con-

forme à lei penal  e à s normas sobre competência, está carac-

terizada

  a

  desobediência

  e

 cabe

  a

 pena

  ao

  funcionário. Este

age

  portanto sempre

  a seu

  próprio risco,

  com seu

  controle

limitado

  à

  conformidade

  com a le i

 penal

  e com as

  normas

sobre competência. Evidentemente,

 tal

  risco

  é

 enorme quan-

do o

 órgão

  que

  emite

  a

  ordem

  é ao

 mesmo tempo instância

disciplinar, pois nesse caso

  a

 decisão invariavelmente rezará

que a ordem corresponde aos requisitos mínimos de legalida-

de. Como o fato de s er a autoridade superior ao mesmo t e m -

p o instância disciplinar corresponde  ao tipo de organização

administrativa autocrática, e por outro lado a doutrina domi-

nante  do direito público  e  administrativo  t em, sabidamente,

um a  forte coloração política, tendendo mesmo  de modo mais

ou  menos consciente  ao  ideal autocrático, torna-se  c o m -

preensível  o seu  dogma segundo  o  qual  a  ordem  da  autori-

dade administrativa superior deve  ser  obedecida  e m  qual-

quer circunstância. Direito natural autocrático

Se

 porém considerarmos,

  no

  sentido

  de um

  rigoroso

  po-

sitivismo,

  que

  numa determinada ordem jurídica nenhuma

norma estabeleça

 u m a

  limitação

 do

 direito

  d e

 controle

  de or-

dens administrativas,

  não

  teremos

  um a

  situação essencial-

mente distinta

 do

 caso exposto acima.

  Se

 alguém recusa

 obe-

diência

 a uma

 ordem administrativa porque

 por

 alguma razão

a

 considera ilegal, está agindo

  a seu

  próprio risco,

  ou

  seja,

 o

risco de que a autoridade q ue deve decidir sobre a desobediên-

cia, no caso específico a  instância disciplinar, considere  a or-

dem  como legal, contrariando  seu  destinatário.  É  certo  que,

sendo  o âmbito das normas  a que a ordem deve corresponder

para  ser  legal  e portanto passível  de obediência, mais amplo

que no primeiro caso, maior é a chance de que essa ordem se-

j a declarada ilegal e a  desobediência  não seja punida. N a prá-

tica porém isto só vale para o caso em qu e a instância discipli-

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HANSKELSEN

nar não  seja idêntica  à  autoridade  q u e  emite  a  ordem.  Eis

por que a

 separação entre

 a

 instância disciplinar

 e a

 autoridade

superior,

 ao

 fazer desaparecer

 o

 princípio

 da

 obediência cega,

significa u m a relevante distensão d a relação entre superiores

e

 subordinados. Todavia,

 ta l

 distensão deve necessariamente

processar-se

 na

 mesma medida

  em que se

 imponha,

 no

 plano

técnico-jurídico, o princípio da legalidade dos atos executivos.

Uma vez que o

 chefe estadual,

  em

  relação

  ao

  governo

federal,

 é

 apenas

 o

 representante

 do

 estado

 n o

 âmbito

 d a

 admi-

nistração federal indireta,  não é possível julgá-lo pura  e s im -

plesmente como

 se

 julga

 u m

 funcionário administrativo subor-

dinado. Mesmo

 qu e, a

 respeito deste,

 s e

 considere imperioso

alargar  o princípio  da obediência  e assim limitar  na  mesma

medida  o direito de controle,  u m a regulação positiva  em re -

lação

  ao

  chefe estadual teria

  q u e

  proceder segundo outros

princípios.

  Se a

 relação

  de

 subordinação

 d o

 assim-chamado

estado-membro para c o m o Estado central  é sancionada juri-

dicamente

  - n a

 medida

  em que a

 desobediência

  a

 ordens

  do

Estado central implica penalidades para

 o

 órgão

 q ue

 represen-

ta o

 estado-membro

 — tal

 sanção

 só

 pode

  ser

 considerada

 p o-

liticamente admissível  se a ordem  fo r legal  sob todos  os as -

pectos.

 N ã o é

 possível

 que o

 estado

 - na

 pessoa

 do

 chefe esta-

dual

 -

  seja obrigado

 a

 cumprir ordens

 da

 União

 que

 estejam

conformes apenas  com a le i penal  e as  normas sobre  c o m-

petência,

 m a s

 possam

  ser

 ilegais

 sob

 outros aspectos.

  O que

poderá

  ser

 válido para

 o

 funcionário subalterno

 não

 pode

  va-

ler sem

  mais

  nem

 menos para

  u m

  estado-membro subordi-

nado

  a o

 Estado central. Inexistindo porém qualquer regula-

ção do

 direito

 de

 controle

 do

 chefe estadual

 e m

 relação

 a or-

dens d a União, menos ainda se poderão deduzir a esse respeito

quaisquer limitações

  a

 partir

  d e u ma

  mítica intenção

  do le-

gislador do que no caso do funcionário administrativo ordiná-

rio. E ainda  que para este existissem normas limitando o direi-

to de

 controle, elas

 não

 poderiam, pelas razões expostas,

 ser

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

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aplicadas

 per  analogiam

  à relação entre o chefe estadual  e o

governo federal, ou seja, entre o estado e a União. Se portanto

o chefe estadual recusa obediência a uma instrução da União

p or considerá-la ilegal, a Corte Constitucional  -  qualificada

em

 virtude

 de sua

 composição como órgão conjunto

 de

 União

e

  estados

 -

  deve antes

  de

 mais nada decidir

  se a

  instrução

  é

legal

 e

 apenas

 em

 caso afirmativo aplicar

 a

 pena

 ao

 chefe

 es-

tadual. Justamente

  n o

  caso

  d e

  desobediência

  a

  injunções

concretas

 é que o

 elemento subjetivo

 de

 culpa, aqui também,

como

 em

 todos

 os

 casos

 d e

 responsabilidade ministerial, parte

integrante

 do

 mérito

 q ue

 condiciona

 a

 pena, dificilmente pode-

rá -

  havendo

 U ma

 correta interpretação

 d as

 disposições cons-

titucionais

 —

 desempenhar algum papel prático.

 D e

 fato,

 a de-

sobediência

 a um a

 ordem inequívoca,

 n a

 medida

 em que

 esta

prove

  ser

  legal

  - e

 este

  é

 mesmo

  u m

  risco

  que o

 chefe esta-

dual desobediente toma para

 si —,

 deve

 ser

 qualificada

 ao m e-

nos

 como desídia.

 N o

  entanto

  a

 Corte Constitucional, numa

decisão absolutória, apoiou-se justamente

 n a

 falta

 d e

 elemen-

to  subjetivo  de  culpa,  e num  caso  de  desobediência  a uma

ordem federal aceitou "erro jurídico escusável". Contra a or-

dem que lhe fora transmitida, o chefe estadual acusado havia

objetado n ão apenas ilegalidade material, m as também ausên-

cia da competência formal do governo federal; a ordem diria

respeito a matéria que não entrava na  competência  da União,

mas s im na  esfera  de  atividade  do  estado. Desse modo,

porém, estava afirmada a existência de um conflito de com-

petência entre União e estado, o qual não poderia te r sido d e-

cidido

 n u m

 processo penal

 p o r

 desobediência

  do

 chefe esta-

dual,

  mas s im e

  somente

  n u m

  processo específico sobre

  o

conflito

  de

  competência,

  a ser

  movido pela União

  ou

  pelo

estado perante  a  Corte Constitucional.

Assim,  a jurisdição constitucional  e  administrativa, por

cujo aperfeiçoamento

 a

 Constituição austríaca mostrou-se

 par -

ticularmente interessada, comprovou,

  em

 múltiplos aspectos,

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HANSKELSEN

ser um suporte ou mesmo u m acabamento técnico-jurídico da

idéia de Estado federativo. Isso, naturalmente, somente c o m

o

  pressuposto

  de que tal

  idéia seja considerada realistica-

mente como

 u m

 princípio organizativo particular,

 e não

 como

um  problema  de metafísica do Estado

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A  intervenção feder l

(<Contribuição

 à

 teoria

  e

 prática

  do

Estado federativo,

  com

 particular atenção

à

 Constituição

  do

  Reich alemão

  e

à

  Constituição federal austríaca)*

* Die

  Bundesexekution.

  E in

 Beitrag

  zu r

 Theorie

  und

  Praxis

  des Bun-

derstates, unter besonderer Berücksichtigung

 de r

 deutschen Reichs

 — und d er

õsterreichischen Bnindesverfassung", in Festgabe fiir Fritz Fleiner

  zum 60.

 G e- '

burtstag, Verlag

  von J . C.

 Mohr (Paul Siebeck). Tübingen,

  1927, pp.

  127-87.

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O

  tipo

  d o

  Estado federativo,  conhecido desde tempos

remotos, demonstrou recentemente

  u m a v e z

  mais

  ser uma

forma  de suma utilidade.  Já se percebe esse fato n o  reordena-

mento  d a s  relações entre  o s  Estados, realizado  n a  Europa

Central após  o término  d a  Guerra Mundial,  e i s que  dois  E s -

tados adotaram essa forma:

  o Reich

  alemão

  nã o s e

 reconsti-

tuiu como Estado unitário, como muitos acreditavam após

  a

su a  queda,  m a s  novamente como Estado federativo; essa  é

também  a  configuração definitiva  c o m q u e a  nova Áustria

saiu

  d a s

  ruínas

  d a

  antiga.

A

  elaboração

  d e u m a

 Constituição federal apresenta

  u m

problema técnico-jurídico  de  extrema relevância:  a  regula-

ç ã o da assim-chamada intervenção federal.  S ua configuração

é

  influenciada pelas opiniões sobre

  a

 essência

  d o

 Estado

  fe -

derativo; raramente

  a

  conexão entre teoria

  d o

  Estado

  e prá -

tica constitucional  se  manifesta de modo  tão claro como nesse

problema,  q u e  mostra,  d e  maneira drástica,  o  quanto  a teo-

r ia do  Estado  e d o direito internacional dependem  de postula-

d os

  políticos.

  J á po r

  isso surge

  a

  possibilidade

  de que as

Constituições

  d o s

 Estados federativos,

 n a

 resolução daquele

problema, tomem caminhos bastante diversos.  E , de  fato,  a

Constituição  d o Reich  alemão,  dc 11 de agosto  de 1919 , nes -

te  ponto  se  diferencia  tão  profundamente  d a  Constituição

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HANSKELSEN

federal austríaca

 de 1 ? de

 outubro

  de 1920 - da

 qual,

 de res-

to , não

 diverge

 e m

 muitos aspectos—que podemos falar fran-

camente

  d e

  dois tipos diferentes

  de

  Estado federativo,

  reco-

nhecendo u m contraste  que é da máxima importância para  o

desenvolvimento fiituro  e,  sobretudo, para  as possibilidades

de emprego dessa forma  de Estado.

Quando

  um

  estado-membro

 não

 cumpre

  os

 deveres

 que

a  Constituição federal  lhe  impõe  — de modo direto  ou  indi-

retamente, através  d e  leis federais — torna-se necessário, n a

medida  em que o dever violado esteja estabelecido como  de-

ver jurídico,  um a to coercitivo com o qual o ordenamento vio-

lado reage

 a o

 fato ilícito. Deve-se então verificar

 se o a to

 coer-

citivo está ligado diretamente a o fato ilícito ou se o descum-

primento d o dever primário é apenas a condição de um dever

secundário —por exemplo cobrir os custos d e u m a indeniza-

ção —, e somente  o descumprímento desse dever secundário

é que leva ao ato coercitivo, e se estamos assim diante de uma

obrigação alternativa. Deve-se também distinguir aqueles

casos  em que  apenas  c o m  imprecisão  se  fala  de um  dever

jurídico d o estado-membro, pois e m verdade se trata d e u m a

figura jurídica b e m diferente. Afirma-se assim, p o r exemplo,

que o

  estado-membro,

  sob

  determinadas condições, estaria

obrigado

 a

 elaborar

 u m a

  determinada

 lei,

 como

 p o r

 exemplo

uma le i de

 execução para

 u m

 tratado internacional subscrito

pela federação;  e que,  como sanção pelo descumprímento

desse dever, a competência para  a edição dessa  lei passaria  à

União.  Em tal caso o estado-membro não tem um dever jurí-

dico,  m as  apenas  um a  competência condicionada.  Só  existe

o dever urídico  de um a determinada conduta -  seja n o direi-

to

 privado, penal, público

  ou

  internacional

  - na

  medida

  em

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

5 1

que no

 ordenamento jurídico (compreendido como ordenamen-

to coercitivo) esteja previsto, para o contrário daquela conduta

(a  qual por isso e

 somente

  por isso aparece como em conformi-

dade

 com o

 dever jurídico)

 o ato

 coercitivo específico.

A necessidade d e  reagir  com um a to coercitivo contra a

violação da Constituição federal p o r parte de um  estado sin-

gular existe também n a confederação  de estados,  onde, tanto

quanto no Estado federativo, a intervenção federal apresenta

os mesmos aspectos. N a verdade, em ambos os casos é condi-

ção específica para o ato de intervenção u m fato denominado

como

  violação jurídica,

  mais precisamente como violação

do ordenamento federal p o r u m estado  qu e seja membro da

federação;

 e e m

  ambos

  o s

 casos trata-se

 —

 como enfatiza

  a

teoria,

 e,

 seguindo-a,

 a

 maior parte

 das

 Constituições federais

determina expressamente

  - de um ato

  coercitivo

  dirigido

contra

  o

  estado enquanto

  tal.  Quanto

  à

  questão

  de

  saber

  se

a

 natureza

  da

  intervenção federal

 é

 diversa

  na

 confederação

e n o

  Estado federativo, porque este

  - um a

  associação

  de

direito público, portanto u m Estado -  seria fundamentalmen-

t e diferente daquele — u m a  associação de direito internacio-

nal, e portanto mera comunidade contratual  — voltaremos  a

tratar adiante. Devemos aqui primeiramente analisar  o fato

ilícito  que é precondição d a intervenção federal; a esse  res-

peito  a teoria  não vê  diferença entre confederação de  esta-

dos e Estado federativo. E m  ambos o s casos trata-se da vio-

lação  de um  dever imposto pelo ordenamento federal  a um

estado que é parte do conjunto. O estudo refere-se portanto a

dois momentos: o ordenamento  que foi violado pelo fato ilí-

cito, ou seja, o ordenamento cuja norma estabelece a condu-

ta

  legal

  d o

  estado;

  e o sujeito  de

  onde provém

  a

  violação,

isto

 é, o

 sujeito

 a

 quem

  se

  imputa

  o

 fato ilícito.

Ainda

  que

  possa parecer bastante óbvio, devemos

  no

entanto enfatizar

  que se

  trata aqui

  de problemas jurídicos,

e,

 assim,

  de

  estudo

  n o

  campo

  das  normas jurídicas.  A f im

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5 2

IIANS KELSEN

d e

 obter-se

 um a

 clara compreensão

 é

 pois recomendável

  re-

nunciar  a o auxílio  da  imagem antropomórfica  do Estado,  e

de um poder manejado  por ela. À  idéia comum,  o fato ilíci-

to que

 condiciona

  a

  intervenção federal aparece como

  uma

ofensa  a o  Estado central  ou ao  poder federal  po r  parte  de

u m

  estaúo-membro

 ou

 estado singular;

 e

 essa idéia obscure-

ce

 desde

  o

 princípio

  as

 relações jurídicas

  em que

 aquele

  fa -

to se

 coloca.

  U m d o s

 inconvenientes mais sérios

  da

 personi-

ficação d o  Estado é justamente  que e la se torna  u m a  essên-

cia

  autônoma

  em

  relação

  ao

 ordenamento jurídico, inserin-

.do-se entre  os  diferentes estratos  q u e  compõem  o  sistema

de

  normas, impedindo

  a

 visão

  dos

 vários graus existentes

 e

o exame  de suas relações recíprocas. Essa situação vale  em

medida máxima para

 a

 relação entre

 o

 ordenamento jurídico

de um Estado qualquer e o ordenamento internacional; con-

tudo, desempenha também

 u m

 certo papel

 n o

 problema

 que

nos ocupa, tanto mais  que a relação entre o ordenamento  in-

ternacional  e os ordenamentos jurídicos dos Estados repete-

se na

 ligação entre

 a

 Constituição federal

 e o s

 ordenamentos

dos

  estados-membros.

  Uma vez que o

  fato ilícito

  e m

  ques-

tão é

  visto como ofensa

  de um

  estado

  ao

  Estado central

  o u

ao

 poder federal,

 a

 discussão desde

  o

 princípio

 é

 apenas

 so -

bre uma

  violação

 de

 dever

 p o r

 parte daquele.

 A

 possibilidade

de um

  ilícito imputável

  ao

 Estado central

  ou ao

 poder fede-

ral não é absolutamente cogitada, sendo assim a intervenção

federal concebida apenas como  a to coercitivo  que o Estado

central  ou o  poder federal dirigem contra  o  estado-membro

o u o

  estado singular.

  N a

  relação

  de

  subordinação

  que se

supõe existir especialmente entre Estado central  e  estado-

membro

  (no

 Estado federativo), então, torna-se naturalmen-

te  impensável  u m a  intervenção contra  o  Estado central  - a

qual

  só se

  poderia imaginar como ação

  do

  estado-membro

(ou dos

 estados-membros) contra

  o

 Estado central.

  E

 assim

se  produz desde  o  princípio  na  representação ordinária  do

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HANS KELSEN

matérias, sendo válidos  em  partes  do território  (o dos esta-

dos-membros  ou  estados singulares)  -  está sujeito apenas  à

Constituição total; através desta, Estado central  e  estados-

membros

  se

  coordenam.

  A

 Constituição total forma, junto

c o m o s

 ordenamentos parciais

 por ela

 instituídos

 - o s

 quais,

por sua vez,  formam as entidades parciais  da  assim-chamada

"federação"

 ou d o

  erroneamente chamado "Estado central",

b em  como  dos estados-membros — a entidade total, que só é

denominada "Estado"

 — se co m

  razão

  ou não ,

  deixemos

  em

aberto  - no  caso  de um  Estado federativo [Bundestaaf].  O

fato  de que no  Estado federativo  o  ordenamento parcial

coordenado  aos assim-chamados estados-membros  ou esta-

dos

  singulares,

  ao

 qual

  a

 Constituição total concede apenas

u m  limitado âmbito objetivo de  validade  - que é uma  vali-

dade

  espacial

  referente

  a

  todo

  o

  território

  da

  federação

seja denominado como "Estado central", pode (abstraindo-

se de uma

  tendência centralista talvez inconsciente) atri-

buir-se a que aquela que é

 cronologicamente

  a

 primeira

  Cons-

tituição

 d o

 Estado federativo

 e que se

 apresenta como

  Consti-

tuição total,

  designa  via de  regra para  sua  modificação  e

aperfeiçoamento

 o

 mesmo órgão

 a que

 compete

 a

 modifica-

ção e/ou  aperfeiçoamento d o  ordenamento parcial denomi-

nado como "Estado central", "União",

  Reich .

  Mais preci-

samente,  o  titular  do  mesmo órgão  que atua como órgão  da

Constituição total

 ou da

 entidade jurídica total criada

 po r ela -

isto é, como órgão de produção, modificação e aperfeiçoamen-

to

  desse ordenamento

  -

  funciona também como órgão

  d o

ordenamento parcial denominado "Estado central", "União",

Reichou  da  entidade parcial criada  por ele , ou  seja,

como órgão

  de

  produção, modificação

  e

  aperfeiçoamento

desse ordenamento parcial. Esse vínculo pessoal entre orde-

namento total  e  parcial, entre entidade total  e  parcial,  faz

com que  ambos pareçam  -  dir-se-ia  que  como numa redu-

ção de  perspectiva  -

  um só

  ordenamento,

  uma só

  entidade,

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

5 5

atribuindo assim

  ao

 ordenamento parcial

  ou à

 entidade

  par-

cial  d a  União  ou do Reich  u m a  qualidade  q u e  cabe apenas

ao ordenamento e à entidade totais: a qualidade de um orde-

namento  que  está  acima  d o s  estados-membros  ou  estados

singulares,  a  qualidade  de  Estado  centralAssim também,

pelas mesmas razões, confere-se erroneamente  a competên-

cia exclusiva  - que só

 pode repousar sobre

 a

 Constituição

 to-

tal — a o ordenamento parcial  do

 assim-chamado Estado

  cen-

tral (União,

  Reich)

2

.  Se com a

  primeira Constituição

  do

Estado federativo

 nã o é

  instituído, para

  a

  modificação

 e/ou

aperfeiçoamento  d a  Constituição total, nenhum legislador

diferente do órgão legislativo d a União ou do Reich — ou seja,

do  assim-chamado Estado central  - e se a  modificação  da

Constituição total  é  também função  do  legislador federal

(ou do  Reich),  n ã o

  podemos

  -

  como corresponde

  à

  idéia

corrente

 -

  interpretar essa circunstância

 no

 sentido

 de q ue a

1. Perde-se n a tradução o paralelo e a assonância entre

 über

  ("acima") e

Ober[staat] ("Estado central").

 (N. do T.

2. Cf. sobre  o assunto a minha Allgemeine Staatslehre  (Teoria geral  do

Eslado), Berlim,

  1925, pp. 199 ss. Cf.

 ainda NAWIASKY,

 Der

  Bundesstaat

  ais

Rechtsbegrijf

  ( O

 Estado federal como conceito jurídico"), Tübingen,

  1920,

pp. 25 ss. NAWIASKY reconheceu acertadamente que, no  Estado federativo, o

assim-chamado Estado central

  não é

  superior,

  m as

 equipara-se

  aos

 estados-

membros. Manifestamente guiado  p or  inclinações federalistas, ele  compen-

sou o  erro  da  teoria dominante, unitário-centralista,  do  Bstado federativo.

Porém

  tal

 erro

  - que se

 origina

 de

 tendências políticas

  - foi

 "sobrecompensa-

do , eis que  também  ele era  orientado p or  tendências politicas.  De  fato, ele

não

  atenta para

  a

  Constituição total,

  que

 está acima  tanto

  do

 Estado central

como  dos  estados-membros,  e  coordena, antes  de  tudo, tanto estes como

aquele, delimitando seus respectivos âmbitos d e validade e , assim, constituin-

do-os

 d e

 modo igual como comunidades parciais  NAWIASKY descuida dessa

Constituição total situada

  em

  nível  superior  porque pretende fazer valer

como soberanos  tanto o Estado central como os estados-membros. Na verda-

de, nem o

  Estado central

  nem os

  estados-membros, nenhuma dessas duas

comunidades parciais  é "soberana", ma s s im, se algo tiver que o ser, a comu-

nidade total constituída pela Constituição total.

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5 6

HANS KELSEN

Constituição total

  e

  assim, particularmente,

  a  distribuição

das  competências  entre União  {Reich)  e  estados-membros

sejam colocadas, como  um a  competência jurídica material

qualquer, dentro

 d as

 atribuições

 da

 União

 -

  configurada pela

Constituição total antes de tudo - como entidade parcial. Tal

construção obscurece

 a

  estrutura específica

 do

 Estado fede-

rativo. Antes, devemos neste caso distinguir claramente  n o

legislador federal

  -

  aliás, tanto quanto

  no

  legislador

  dos

estados-membros — três  funções distintas:  1) leis ordinárias

d a

  União

  (ou do  Reich

) promulgadas

  co m

  base

  n a

  Cons-

tituição federal (ou do

 Reich)

  e n a Constituição total; 2)  leis

constitucionais pelas quais seja regulada

  a

  Constituição

federal  (ou do Reich)  em  sentido estrito, isto é, a organiza-

ção da

 atividade legislativa

  do Reich  (ou da

 União)

  e de sua

atividade executiva suprema» enquanto organização

  de uma

comunidade parcial;  3) leis constitucionais pelas quais seja

modificada

 e/ou

 aperfeiçoada

 a

 Constituição

 total  (tal

 como

estiver assentada naquela  que for cronologicamente  a pri-

meira Constituição  e a  quem,  sob  qualquer circunstância,

cabe  a atribuição  d e  competências). Havendo coincidência

do

 legislador federal

 (ou d o Reich)  com o

 legislador respon-

sável pela Constituição total,

 as

 leis constitucionais mencio-

nadas n o s dois últimos itens -  apesar  da diversidade de fun -

ções

  qu e

  cumprem

  - não se

  diferenciam exteriormente.  In -

ternamente,  porém, isto  é, de  acordo  com seu  conteúdo,

elas podem

  ser

  distinguidas.

  A

  Constituição total pertence

necessariamente  a  atribuição  de  competências entre União

e

 estados-membros.

  A

 Constituição

  que é

 cronologicamen-

te a primeira  do Estado federativo poderia límitar-se a fazer

tal

 atribuição, instituindo então

  u m

  órgão para

  a

  modifica-

ção e o,  aperfeiçoamento dessa primeira Constituição,  a

qual consiste fundamentalmente

 na

  mencionada atribuição

de  competências,  e um  primeiro órgão legislativo para  a

União

  (ou o Reich)

  como ordenamento parcial;

  e, de

  resto,

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

5 7

atribuir a este último  não apenas faculdade legislativa mate-

rial

  no

  âmbito

  d a

  competência adjudicada

  à

  União,

  mas

também

  a

  autonomia constitucional plena,

  ou

  seja,

 a

 União

poderia (através de seu órgão legislativo) determinar sua pró-

pria Constituição (como Constituição  de um  ordenamento

parcial,

  de uma

 entidade parcial),

  de

  modo idêntico

  a

 como

estão autorizados (pela Constituição total)

 o s

 estados-mem-

bros.  A  modificação  da  Constituição total  — isto  é, o poder

d e  atribuir competências  e  determinar  o órgão  q u e  outorga

ta l

 Constituição, bera como

  o

 respectivo procedimento

  - es-

taria reservada

  ao

  órgão

  q u e

  outorga

  a

  Constituição total.

Neste caso ficaria clara  a  paridade entre estado-membro  e

União como dois ordenamentos parciais sujeitos; a um a

mesma Constituição total.

  A

  Constituição

  que é

  cronologi-

camente

  a primeira  - e que é po r

  inteiro

  u m a

  Constituição

total -  pode porém,  e  assim  o faz via de  regra,  não  instituir

nenhum órgão específico, diferente  do  legislador federal

(ou do  Reich

) para

  a

  modificação

  e o

  aperfeiçoamento

  da

Constituição total. Neste caso,

  não se

  limitará apenas

  a ins-

tituir um primeiro órgão legislativo federal  (ou do Reich)  ao

qual caiba, além  d a  legislação federal,  a  elaboração  d a

Constituição federal propriamente dita,

 m a s

 antes

 —

 diferen-

temente

  do que faz em

  relação

  ao s  estados-membros

,

  aos

quais concede autonomia constitucional  -  regulará desde  o

início toda  a  Constituição federal, enquanto ordenamento

parcial;

  de

  modo

  q u e

  toda

  a

  Constituição federal torna-se

u m a

 parte

  da

 Constituição total. Assim, qualquer modifica-

ção da  Constituição federal aparece como modificação  da

Constituição total. Isto porém  não  significa nada para  a

União, pois

 é seu

  legislador

 que

 realiza essa modif icação

 d a

Constituição.

  Em ta l

  caso, toda

  a

  Constituição federal

 per-

tence  à  Constituição total.  Se  porém  a  Constituição,  que é

cronologicamente  a  primeira  a  regular certos traços funda-

mentais

  das

  Constituições

  do s

  estado

s-membros,  de

  modo

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5 8

HANS KELSEN

que os

 órgãos legislativos destes possam modificar

 o u

  aper-

feiçoar

 as

 respectivas Constituições somente dentro

 dos

 limi-

tes

 colocados pela Constituição total,

 e se,

 assim,

 os

 estados-

membros tiverem apenas  u m a  autonomia constitucional  li-

mitada, e a União absolutamente nenhuma, então pertencem

à  Constituição total, juntamente  c o m  toda  a  Constituição

federal, os traços fundamentais dos estados-membros. Quando

portanto  o  órgão legislativo federal modifica esses traços

fundamentais  -  estabelecidos  n a  primeira Constituição  -

pratica  um ato de  legislação constitucional total.  O  mesmo

vale para

  a

  situação

  em que o

  órgão legislativo

  da

  União,

em lei  constitucional, modifica  a divisão  de competências.

Também aqui e le atua como órgão d a Constituição total, da

entidade total.

  E

  esse

  é o

  caso

  em

  qualquer circunstância,

uma vez que a

 primeira Constituição

 do

 Estado federativo

 -

enquanto Constituição total  -  deve necessariamente  c o m -

portar como conteúdo mínimo  a  divisão  d e  competências

entre União

  e

 estados-membros,

  que

  representa

  o

 momento

organizativo fundamental para  o  Estado federativo  (bem

como para  a confederação  de  estados). Quando  a  primeira

Constituição  do Estado federativo regular  n ã o  apenas  a atri-

buição

 de

  competências,

 m as

  também toda

 a

 Constituição

 da

federação

 e

 certos traços fundamentais

 das

 Constituições

 dos

estados-membros

  - e

  esse

  é o

  caso tanto

  do  Reich

  alemão

quanto

  da

 Áustria

  os

 três âmbitos normativos característi-

cos da

 estrutura

 do

 Estado federativo

 se

 comporão

 da

 seguin-

te

  maneira:

  1) a

  Constituição total,

  que

  contém

  ao

  mesmo

tempo

  a

  Constituição federal

  e os

  traços fundamentais

  das

Constituições  dos  estados-membros;  2) o  ordenamento  da

União, constituído  p o r normas  de direito material (leis,  nor-

m as de execução) no âmbito da competência federal objetiva,

baseado diretamente sobre  a Constituição total  (que  abrange

a Constituição federal); e 3) o ordenamento  de  cada estado-

membro isoladamente, formado pela Constituição

  que - no

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

5 9

âmbito  da  Constituição total  - é  instituída  por e le  autono-

mamente,

  b em

 como pelas normas

  d e

 direito material

  ado-

tadas

  n o

  âmbito

  de sua

  competência

  d e

  estado-membro.

Deve-se atentar, além disso, para  o  fato  de que a  Consti-

tuição total,

  tal

  como

  se

 apresenta naquela

  que é

  cronolo-

gicamente  a  primeira Constituição  d o  Estado federativo,

pode conter

  não

  apenas toda

  a

  Constituição

  da

  federação

e, em   maior  ou menor medida,  os  traços fundamentais das

Constituições  d os  estados-membros,  m a s  também deter-

minadas disposições

  a

 respeito

  do conteúdo  das

 normas

  de

direito material

  q u e

  devem

  ser

 emitidas

 n o

  âmbito

 d a c o m -

petência federativa

  e n o

  âmbito

  d e

  competência

  d o s

  esta-

dos-membros. Assim acontece quando  ela  apresenta  u m

catálogo de direitos fundamentais e d e direitos de  liberdade.

Isso equivale

  a

  dizer, essencialmente,

  q u e

  tanto

  a s

  leis

  d a

União como  as  leis  do s  estados-membros  não  estão autori-

zadas

  a

  conter certas disposições

  q u e

  limitam

  a

  liberdade

d o s  súditos,  ou não as  podem conter  s e m q u e  seja violada

a

 Constituição total.

  Também isso

 se

 aplica

 às

 Constituições

federais

 d o Reich

  alemão

 e da

 Áustria. Nesse caso,

  não ape-

nas a  autonomia constitucional  das  comunidades parciais

d a

  União

  e dos

  estados-membros

  é

  limitada,

  m a s

  também

sua  autonomia legislativa.

II.

Somente depois dessa análise da estrutura particular  do

Estado federativo

 ( d e

 resto, essencialmente

  a

 mesma encon-

trada  n a  confederação  d e  estados) podemos responder  de

modo incontestável  à questão sobre qual ordenamento é vio-

lado pelo fato material

  que

 condiciona

  a

 intervenção federal

e se essã violação pode partir apenas  do  estado-membro  ou

também

 da

 União,

 o

 assim-chamado Estado central.

 D e

 fato,

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6 0

HANS KELSEN

somente após essa análise estrutural  a  questão pode efetiva-

mente

  ser  colocada  e sua

  importância compreendida.

  E um

ordenamento parcial  ou é a Constituição total  q ue normati-

za o

  fato

  ao

  qual está ligada

  a

  intervenção federal,

  ou

  mais

precisamente, q ue liga a intervenção federal a um determinado

fato? Agora

  a

 pergunta

  é

 possível,

  e com a

 correta colocação

do problema está garantida -  como  em qualquer parte e tam -

bém  aqui — a resposta correta.

Percebe-se logo, assim,

 que o

 fato ilícito

 q u e

 condiciona

a  intervenção federal só pode  ser uma violação da Constitui-

ção  total, pois apenas esta pode impor deveres  aos estados-

membros enquanto tais, porém  não o  assim-chamado Esta-

do

 central,

  que

 está

 coordenado  a

 esses estados-membros.

 Se

porém

  há

  apenas

  u m a

  violação

  do

  ordenamento federal

 en-

quanto ordenamento parcial,  ela não pode  ser  imputada  ao

estado-membro enquanto

 tal.

 Percebe-se também

  que

 podem

ser

 violados

 n ão

 apenas deveres impostos pela Constituição

total  aos  estados-membros,  m as  também deveres  q ue  essa

mesma Constituição impõe

  ao

  assim-chamado Estado

  cen-

tral, à União ou Reich  enquanto tais. Esses deveres referem-se

antes

  de

 mais nada

  a

  atos legislativos. Assim,

  um

  dever

  im -

posto pela Constituição total

  é

  violado quando

  a lei de um

estado-membro ultrapassa  a competência prescrita  ou quan-

do,

 ainda dentro

  de tal

 competência, adota

 u m

  conteúdo

 ve-

dado pela Constituição total; quando,  por exemplo,  uma lei

constitucional  do  estado-membro,  em  contradição  com a

Constituição total, introduz  a monarquia  ou suprime  a liber-

dade

  de

 religião

 e de

 consciência garantida

 por ela. Tal

 viola-

ção da

 Constituição total,

 n o

 entanto, pode acontecer

 não ape-

nas mediante leis dos estados-membros, m as também median-

te

  leis

  da

 União

  {Reich).

  Isso torna-se

  de

  imediato evidente

quando esta ultrapassa seus limites de competência, pois nesse

caso está interferindo diretamente

  na

  esfera

  de

  competência

dos estados-membros. Aqui porém trata-se  de uma  violação

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

61

da

 Constituição total, exatamente como

 no

  caso

 em q ue, em

contradição

 c o m a

 Constituição total,

 a

 forma

 d o

 Estado

  fos-

se modificada ou a  liberdade  de  opinião suprimida por uma

le i

 federal. Isso

 se

 tornaria

 d e

 imediato evidente

 n os

 dois

 úl-

timos casos

 se a

 alteração

 da

 Constituição total

 e o

 poder

  le -

gislativo federal fossem entregues cada

  u m a

  órgãos dife-

rentes. Como esse,  via de  regra,  não é o  caso,  não nos da-

m os  conta  de que a  forma  d e  Estado  da  União  -  república

ou

 monarquia

 - é

 apenas

 a

  forma

 de

 Estado

 de um a

 entidade

parcial, exatamente como

  a de um

  estado-membro.

  Em ou-

tras palavras,  se -  como  via de  regra  é o  caso  - a  primeira

Constituição do Estado federativo, enquanto Constituição to-

tal,

  regula toda

  a

  Constituição

  da

  federação

  e não se

  limita

apenas

  a

 estabelecer traços fundamentais

 —

 como

  e m

  relação

aos  estados-membros  -  então  qualquer  violação  da  Cons-

tituição federal, enquanto Constituição  de uma  entidade  par-

cial,

  é ao

 mesmo tempo violação

 da

 Constituição total.

 Ape -

nas que,

  como

  o

 procedimento

  de

  alteração

  da

 Constituição

total coincide

  com o

  procedimento

  de

  alteração

  da

  Cons-

tituição federal e como o legislador federal é, ao mesmo tempo,

legislador responsável pela Constituição total,  ao servir-se  de

uma lei

 constitucional

 ele

 evita qualquer violação

 da

 Consti-

tuição total,

 ao

 passo

 que o

 legislador

 do

 estado-membro

 não

pode superar os limites traçados pela Constituição total n e m

mesmo através de lei constitucional (pressupõe-se aqui, natu-

ralmente,

  que

  haja

  u m a

  diferença

  de

  procedimento entre

  a

legislação ordinária

  e a

 constitucional). Violações

  da

  Cons-

tituição total,  no  entanto, podem ocorrer  n ão  apenas  m e-

diante atos legislativos,

 m as

 também mediante atos executi-

vos, na

 medida

  e m q u e

 tais atos estejam normatizados dire-

tamente  na  Constituição total. Pode-se tratar aqui tanto  de

atos executivos  dos estados-membros como  da União.

É

  condição

  da

 intervenção federal

  que o

 estado-membro

enquanto  ta l

 tenha violado

 seu

 dever.

 O

 fato ilícito

 é

 imputado

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6 2

HANS KELSEN

ao

  estado

  enquanto

  tal assim como

  a

 intervenção federal

  se

dirige contra  o estado enquanto  tal e não  contra  u m  indiví-

duo; é assim, pelo menos,  que  está formulada a  teoria tradi-

cional,  b e m  como  o  texto  d as  Constituições federais.  Ora

não

 devemos desenvolver aqui toda

 a

 problemática

 do tão dis-

cutível conceito  de  ilícito estatal; bastará apenas investigar

em que

  sentido

  é

 possível atribuir atos

  de

  Estado

  à

 União

  e

ao  estado-membro enquanto entidades parciais distintas;

qual

  é o

 critério para

  que um ato de

 Estado deva valer como

ato da União e não de um  estado-membro, e vice-versa. Num

primeiro momento,

  nos  contentaremos  com o  fato  de que a

violação  de um  dever designado como próprio  do  Estado,

n a

  medida

  em que o ato de seu cumprimento

  vale como

  ato

de

  Estado, seja também imputada

  ao

  Estado, considerada

como um ilícito d o Estado. Deve-se porém estabelecer  que só

poderemos falar

 do

  estado-membro enquanto

  tal,  nos  limi-

tes da sua

  própria competência,

  já que o  estado-membro

enquanto

  tal - do

 mesmo modo

  que a

 União

 -

  existe apenas

dentro desses limites.  Se um ato  entra  na  competência  da

União, é imputado a ela, ou seja, co m referência à unidade des-

se

 ordenamento

 definido pela  sua  competência,  ele é u m ato

estatal  da  União, independentemente  de  qual seja  a  espécie

de

 órgão designado para praticar esse

  ato.

 Segue-se

  daí que

no s casos d a assim-chamada

 execução federal indireta

  (admi-

nistração indireta

  do Reich

) através

  do

  estado-membro

  - ou

melhor, através de autoridades que

 em

 outros casos

  atuam co-

m o

 órgãos

 d o

  estado-membro,

 mas que

 nessa função

 de exe-

cução federal indireta

  são de

  fato órgãos

 federais

  —

  o

 esta-

do-membro  enquanto  ta l  nao  entra  em  consideração.  E m

outras palavras:

  no

 caso

 da

 assim-chamada execução federal

indireta os atos correspondentes à competência da União de-

vem ser

 imputados

  não ao

 estado-membro,

  mas à

 União,

 en-

quanto entidade parcial. Nesses atos quem ag e é a União e não

o estado-membro, ainda que os titulares dessa função federal

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

6 3

sejam indivíduos

 que em

 outras funções

 - que se

 incluem

 na

competência

  do

 estado-membro, isto

 é,

 dentro

 da

 competên-

cia

 executiva autônoma

  do

  estado-membro

 -

  agem como

 ór-

gãos deste.

 N o

  âmbito

  da

  execução federa indireta,

  os fun-

cionários que em outros casos agem como órgãos do estado-

membro  são sem dúvida órgãos federais, mais precisamente

autoridades federais co m  competência limitada  a uma par-

te do  território  da  federação. Enquanto tais, estão subordi-

nados  às  autoridades federais centrais,  e -  nesse âmbito  -

sujeitos  às  suas ordens.  Se por  execução federal indireta

deve ser entendida ta l relação jurídica - e esse é o caso tanto

segundo a Constituição do Reich alemão (arts. 14,15) como se-

gundo a Constituição federal austríaca (arts. 102,103) -  então

não se pode, quando  se trata  de funções da execução federal

indireta, falar

 de um

 dever

 do

 estado-membro

 enquanto

  ta l

 de

cumprir essas funções. Essa interpretação

 — e

 aqui

 não se

 trata

de

 nada mais

 que a

 interpretação

 de um

 fato jurídico

 -

  seria

 in-

compatível

 com a

 coordenação entre União

 e

 estado-membro,

que é  essencial para  a  estrutura  do  Estado federativo. Pois

nesse caso estamos claramente diante

  de uma

  relação entre

superior

  e

 subordinado,

 j á

  pelo fato

  de que são

  leis federais

que são

 executadas,

 e a

 execução

  por sua

 natureza está subor-

dinada

  à

  legislação. Contudo, onde

  se

 estabelecesse para

  os

órgãos incumbidos

  d a

 execução

  de

 leis federais

 um

  dever

  de

obediência

  em

 relação

 à s

 autoridades federais, como

 na

 admi-

nistração indireta prevista n a Constituição do Reich  alemão e

na Constituição federal austríaca, haveria - se essa execução

fosse atribuída  em  instância inferior e  intermediária  ao esta-

do-membro, porém  em  instância superior  à  União  - uma

relação  de superioridade  e subordinação entre estado-membro

e União. N a verdade, porém, trata-se somente de um a relação

interior

  à

 União, isto é , entre duas autoridades federais, quais

sejam: um a autoridade federal central, direta,  e um a autorida-

de federal local, indireta  -  partindo-se sempre do pressupôs-

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HANS KELSEN

to de que

 União

 e

 estado-membro

 só

 existem dentro

 de

 suas

competências, ou  seja, que a atribuição  à União e ao estado-

membro, como referência

 de

 atos

 de

 Estado

 à

 unidade

 de or-

denamentos parciais,  se orienta

 segundo

  o

 âmbito objetivo

de  validade  desses ordenamentos,

  os

  quais somente podem

ser diferenciados segundo esse âmbito objetivo de validade.

Quanto à estrutura da execução federal indireta,  existem

algumas diferenças entre

  a

 Constituição

  do

 Reich  alemão

  e

a austríaca.  O que a  Constituição austríaca denomina  exe-

cução federal indireta" aparece na Constituição alemã como

"supervisão

 do

 Reich .

  Além disso,

 a

 competência legislati-

va do Reich  segundo a Constituição alemã coincide, em  toda

sua

 extensão,

 com sua

 competência executiva,

  de

 modo

  que

em todas a s matérias n as quais o Reich  tenha competência le -

gislativa cabe-lhe também  a execução

3

. Essa execução é par-

cialmente  descentralizada  de  maneira  que,  segundo  a  Cons-

tituição, a s leis d o Reich  ~ desde que não disponham de modo

diferente

 —

 devem

  ser

 executadas pelas autoridades

  do

 esta-

3. O art. 5? da  Constituição alemã diferencia,  d o  mesmo modo  que a

Constituição austríaca  n o s  arts.  10 s s . ,  entre matérias  d a União  e  matérias  dos

estados: "matérias

  d o

  Reich e  "matérias

  d o

  estado", confiando

  o

  exercício

d o

 poder públi co nestas

  a o s

  órgãos estaduais, naquelas

  a o s

  órgãos

 d o

 Reich.

  O

"poder público"

  s e

  expressa

  nas

  funções legislativa

  e

  executiva.

  U m a

  divisão

d a s

  matérias entre

  a

 competência

  d o

 Reich

  e a do s

  estados acontece,

  n o

  entan-

to ,  somente  c o m  relação àf u n ç ã o legislativa.  N o s  arts.  6? ss . são  indicadas  a s

matérias

  q u e

  recaem

  n a

  competência

  legislativa  d o  Reich  o u d o s

  estados.

U m a  divisão distinta  d a s matérias, respeitante  à  função executiva  - tal  como

acontece  na  Constituição austríaca  - nã o é  realizada. Antes,  o art. 14 se  limi-

ta a

  estabelecer

  que as

  leis federais devem

  s e r

  cumpridas pelas autoridades

estaduais,

  na

  medida

  e m q u e

  tais leis

  n ã o

  disponham

  d e

  modo diferente. Isto

n ã o

  significa, eventualmente,

  que o

  Reich  tenha apenas competência legi sla-

tiva, porém

  n ã o

  executiva;

  ma s s i m, a o

  contrário,

  que o

 Reich,  onde quer

  que

tenha competência legislativa,

  tem

  lambem competência executiva.  A  execu-

ç ã o d a s  leis  d o  Reich  é  "matéria  d o Reich n o  sentido  do art. 5f; o  poder  p ú -

blico  -  isto  é ,  aqui,  o  poder  d o

 Reich

  - é  exercido nessas matérias  p o r órgãos

do

  Reich

,

  e m

  parte indiretos

  (art. 15), em

  parte diretos

  (art. 16).

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8/17/2019 KELSEN Hans. Jurisdicao Constitucional

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

65

do  (art. 14), que  agem aqui como autoridades  indiretas  do

Reich.  A

  execução

  de

  leis

  d o  Reich  -  e

  esse

  é o

  âmbito

  da

competência

  do Reich  no

  setor executivo

  - se dá

 portanto

através  de  suas autoridades diretas  ou  indiretas.  A  posição

das

  autoridades indiretas

  é

  definida pela

  supervisão  do

Reich  regulada  no art . 15. Na  Constituição austríaca  a com-

petência legislativa

  da

  União parece

  ser

  mais ampla

  que a

executiva. Abstraindo-se  da jurisdição,  que é  atribuição  fe -

deral, existem leis federais  que são  executadas  em  todas  as

instâncias

  p o r

  autoridades federais próprias (administração

federal

 direta)',

 depois, leis federais

 que -

  dentro

  de um âm-

bito

 de

 ação delegado

 e sob

 supervisão federal

 - sào

 executa-

d as pelas autoridades estaduais em  instância intermediária e

inferior (administração federal

 indireta),, e

 finalmente leis

 fe -

derais

 que são

 executadas pelas autoridades estaduais

 em

 todas

as  instâncias sem supervisão federal. Aqui a Constituição  fe -

deral fala

 de

 matérias

 que se

 incluem

 n a

 competência

 d a

 União

no que  toca  à  função legislativa  e n a  competência  d os  esta-

dos no que

 toca

  à

 atividade executiva,

 de

 modo

  que o

 estado

aqui parece executar leis federais dentro

 de sua

 própria

  c o m -

petência. N o  entanto essa interpretação que a Constituição -

p o r

 motivos políticos

  - dá ao

 fato material real, positivo,

 não

é, em absoluto, incontestável. A diferença entre a execução de

leis federais

 que

 aparece como administração federal indireta

e a que

 aparece como administração autônoma

  do

 estado

 é a

seguinte: n o primeiro caso a tramitação pelas instâncias admi-

nistrativas

 vai, em

  princípio,

  até as

 repartições federais

 cen-

trais,  mas no segundo caso termina  nos governos estaduais;

e no

  primeiro caso cabe

  às

  repartições federais centrais

  u m

direito

 de

  instrução

 e m

  relação

 ao

 chefe estadual

  -

  titular

 da

administração federal indireta

 — m a s

  isso

 não

  acontece

  com

a

 execução

 de

 leis federais

 no

 âmbito

 d a

 assim-chamada admi-

nistração autônoma  do  estado. Onde  a  Constituição federal

fala

 de uma

  "competência

 do

 estado" para

  a

 execução

 de

 leis

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8/17/2019 KELSEN Hans. Jurisdicao Constitucional

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66

IIANS KELSEN

federais,

 nã o

 estamos diante

 de

 outra coisa

 que um

 grau mais

alto de descentralização n a execução d e tais leis; como porém

a

 legislação

 não é ,

 essencialmente, outra coisa

 que a

 regulação

da

 execução, também

  n o

  caso

  d e u m a

 execução

  tã o

 descen-

tralizada trata-se apenas da concretização d e u m a competên-

cia da

 União. Isto

  se

  mostra

  c o m

  maior clareza quando

  por

exemplo

  a

  União,

  e m

  virtude

  de sua

  própria competência

legislativa  n um  determinado setor administrativo,  se  limita

a

 revogar

  as \e is que

 autorizavam

 a s

 autoridades administra-

tivas  do  estado  a desenvolver suas atividades, estabelecendo

assim plena liberdade nessa esfera. Nesse caso

 a

 competência

executiva

  do

  estado

  - ao

  menos enquanto

  não for

  editada

nenhuma  le i federal  que  autorize  a  atividade administrativa

das  autoridades  do  estado  - é  eliminada  ou  dada apenas

potencialmente.

 N a s

 matérias

  a

 cujo respeito

  a

 Constituição

austríaca atribui  à  União somente  a  função legislativa,  a

executiva porém  aos estados, a União, em verdade, também

é dominus litis no que

 toca

 à

 execução.

 A

 competência legisla-

tiva contém

  - sem

 prejuízo

 da

 mais ampla descentralização

  - a

competência executiva.

A Constituição alemã  sem dúvida  não conhece um a des -

centralização

  tão

  ampla

  na

  execução

  de

  leis

  do  Reich  tal

como estabelecido

  na

  Constituição austríaca para todos

  os

casos  em que  esta fala  de uma  competência legislativa  da

União,  mas de uma competência executiva  dos estados. Não

existe execução

  de

  leis

  do Reich  sem a

  supervisão

  do pró-

prio

 Reich.

  A

 execução

 de

 leis

 d o

 Reich

  é, se não

 direta, pelo

menos sempre indireta, o u seja, execução p o r parte  de auto-

ridades  d o s  estados  sob  supervisão  do Reich.  E m  compen-

sação,

 a

 administração indireta

  do Reich  (no que se

 refere

 à

comparação com a Constituição austríaca, deve-se falar ape-

nas de administração  indireta d o Reich),  regulada  do ponto

de

 vista

  da

  supervisão

  do

 próprio

 Reich,  é em um

  ponto

  m e-

nos centralista  que a administração federal indireta contem-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

67

piada pela Constituição austríaca.

  A

  disposição desta últi-

m a,  segundo  a  qual  n as  matérias  da  administração federal

indireta

  a

 cadeia

  de

  instâncias administrativas

  vai, a não ser

que  expressamente disposto  de  outra forma  por lei  federal,

até os

 ministérios federais competentes",

  n ão

  encontra

  aná -

logo

 n a

 Constituição alemã.

 E m

  contrapartida,

 o

 governo fede-

ra l , be m  como qualquer ministro federal competente n o â m -

bito

 d a

 administração federal indireta, pode dirigir normas

 ge-

rais e  individuais (decretos e ordens administrativas) apenas

ao chefe estadual,

  porém

 não a

 membros

 do

 governo estadual

incumbidos

 d e

 matérias

 d a

 administração federal indireta,

 nem

a outras autoridades estaduais inferiores. Segundo  a  Cons-

tituição alemã,

  o

  governo

  do Reich  (não os

  ministros isola-

damente),  a  título  de  supervisão  do  Reich,  pode transmitir

"instruções gerais", portanto normas gerais,

  às

  autoridades

estaduais encarregadas

  da

 execução

 das

  leis

 do Reich,  e nã o

apenas  ao governo estadual, m a s também diretamente às res-

pectivas autoridades. Normas individuais, ordens administra-

tivas,

  no

  entanto,

  só

  podem

  ser

  transmitidas

  aos

  governos

estaduais,

  e

  apenas

  se

 forem eliminadas deficiências eviden-

ciadas

  no

 cumprimento

  d e

  leis

  do Reich  (a

  assim-chamada

censura  p o r deficiências d o art. 15, § 3?): um a  limitação que

a

 Constituição austríaca

  não

 conhece. Apesar dessas diferen-

ças  existe, tanto  n a  Constituição alemã como  n a  austríaca,

u m a relação  de  superioridade  e subordinação

  entre

 as

 auto-

ridades federais centrais

  diretas  e as

  autoridades estaduais

que

  atuam como autoridades federais locais

  indiretas.

  O

governo

  d o Reich

  alemão

  é

  autoridade superior

  em

  relação

aos  governos estaduais tanto quanto  o  governo federal  aus-

tríaco

  em

  relação

  aos

  chefes estaduais,

  e

  isso

  na

  medida

  em

que  tanto  os  governos estaduais alemães, como  os  chefes

estaduais austríacos

 estão vinculados  às normas gerais, e espe-

cialmente  à s  normas individuais  que o

 governo

  do Reich  e o

governo federal austríaco t êm poder de estabelecer, o primeiro

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68 HANS KELSEN

a título de  supervisão do

 Reich,

  o segundo no âmbito da admi-

nistração federal indireta. Também nesses dois casos

  não há

um a

 relação

 d e

 superioridade

 e

 subordinação entre

 o

 Reich

  e os

estados;

 tal

 relação seria

 -

 como mostramos acima

 -

  incompa-

tível com a coordenação entre União

 [Reich\

 e estado-membro,

essencial

  ao

 Estado federativo. Essa relação existe  no  interior

do

 Reich  (isto

 é, da

 União), entre duas autoridades

 do

 Reich

4

.

4 .  Tenho consc iência  d e q u e , c o m a  v isão defendida ac ima, coloco-me

e m

  desacordo

  c o m o

  ensinamento tradicional

  d e q u e a

  supervisão compete

  a o

Reich

  e m

  relação

  a o s

  e s lados  enquanto tais

  ( c f . a

  respeito  ANSCHOTZ,  Die

Verfassung

  de s

  Deutschen Reiches,

  Ein

  Kommentar fiir Wissenschaft

  und

Praxis  ( A  Const i tuição

  d o

 Reich  Alemão,

  u m

  comentário para ciência

  e p r á -

tica"),

  3 ° e 4 ? e d s . , p p . 7 5 s s . ) . P o r

  trás desse construto

  - e n ã o s e

  trata aqui

  d e

outra coisa  -  acha-se  u m a  certa tendência desceníralista.  A o  afirmar  q u e a

supervisão

  d o

  Reich

  s e

  aplica

  a o s

  estados  enquanto  tais, que rem os dizer

  q u e

e la -  c o m o  s e  exprime  c o m  exatidão

  ANSCHÜTZ

  -  ''abrange  o s  estados como

unidades fechadas"  ( i b . , p . 7 6 ) ;  isto significa  q u e a s  autoridades centrais  d o

Reich,

  s o b o

  t í tulo

  d a

  supervisão, "podem endereçar diretamente suas preten-

sões

  e

  disposições sempre

  e

  somente

  a o  governo  q u e

  personif ica

  e

  representa

externamente  o  estado,  m a s n ã o à s  autoridades estaduais subordinadas  a  este"

(ib.).

  M a s

  m e s m o

  q u e , n o

  plano

  d o

  direito positivo,

  ta l

  intervenção direta

  d a s

autoridades centrais sobre  a s  autoridades subalternas  e tal  exc lusão  d a s  autor

ridades intermediárias estivessem fora

  d e

  questão, isso ainda

  n ã o

  seria razão

suficiente para negar

  a

  atribuição

  d o s

  atos dessas autoridades subalternas

  à

entidade jurídica  d a  qual  a s  autoridades centrais atuam como órgãos.  A  forma

d e  descentralização pela qual  a  autoridade central  s ó  pode dirigir-se  à  autori-

dade subalterna através

  d e u m a

  autoridade intermediária também

  s e

  acha,

  o c a -

sionalmente,  n o  Esta do unitário centralista Porém, indep ende nteme nte dis so,

a  Const i tuição  d o

  Reich

  alemão  d e  modo algum regulou  a supervisão  d o

 Reich

d e

  m o d o

  t ã o

 descentralista. Afinal ,

 o

  governo

  d o

  Reich  po de dirigir-se,

 p o r

 mei o

d a s

  "instruções gerais"

  d o a r t . 1 5 - 2 ,

  também  diretamente

  à s

  autoridades

  d o

estado subordinadas  a o  respectivo governo. Existem também outros casos,

c o m

  regulação legal específica,

  d e

  influência direta

  d o

  g o v e r n o

  d o

  Reich

  s o -

b r e

  autoridades estaduais

  ( c f .

  ANSCHÜTZ,

  i b . , p .

  7 6 ) .

  N ã o s e

  pode, decerto,

  in -

terpretar todos esses casos como "exceções"  d e u m a  "regra"  n ã o  expressa  n o

direito positivo.  A  Constituição federal austríaca,  q u e n o s  casos  d a  adminis-

tração federal indireta realmente exclui qualquer influência direta sobre

  a s a u -

toridades subordinadas

  a o

  chefe estadual

  e a té

  mesmo sobre outros membros

d o  governo estadual, inclui  n a  competênc ia  d a  U n i ã o  o s  atos  d e  e x e c u ç ã o  d a s

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

69

A f im de

 apoiar essa concepção pode-se apontar também

para o fato de que pode haver não apenas u m a execução fede-

ra l

  indireta, isto

  é , um a

  execução

  das

  leis federais

 po r

 parte

dos estados-membros, m a s  também o contrário:  u m a execu-

ção

 direta

  de

  leis

  d o s

 estados-membros

 p o r

 parte

  de

 órgãos

federais;

 e que

 tais órgãos federais,

 na

 medida

 em que

 execu-

tam

  leis

 dos

  estados-membros, efetivando competências

  dos

autoridades estaduais aqui  s o b  exame. Deve-se considerar também  que a

estrutura  d a  supervisão  d o

  Reich

  —  claramente carregada  d e  tendências

 fede-

ralistas  -  c o m o  u m  direito  d e  soberania  d o  Reich  dirigido contra  o  estado

enquanto  t a l , s e  examinada  a  fundo  d e  modo conseqüente, Jeva necessaria-

me nte

  a u m a

  interpretação bastante

  unitária  d a

  relação entre

  Reich  e

  estado.

S e a  supervisão  d o  Reich  é  dirigida contra  o  estado enquanto  ta l ,  então  o  esta-

d o  enquanto  t a l t e m q u e  estar sujeito  a o

  Reich,

  e a  idéia, essencial para  o

Estado federativo,  d e u m a  coordenação entre  Reich  e  estado,  é  destruída.  P o r

i sso  ANSCHOTZ, muito coerentemente, afirma:  " N o  presente caso  ( d e  censura

p o r  def ic iênc ia  n o  e xe r c íc io  d a  supervisão  d o

  Reich), Reich

  e  estado  n ã o s e

colocam frente  a  frente c o m o iguais,  m a s s i m  como soberano  e  súdito.  A  c e n -

sura  é um a t o de  soberania  d o

  Reich

  diante  d o  estado, submetido  a o s e u  poder"

( ib . , p . 7 8 ) . Na

  verdade

  -

  i sto

  é , s e n o s

  atemos apenas

  a o

  fato material real

  -

e la é a  ordem dada  p o r u m  órgão direto  d o  Reich  a u m  órgão indireto  d o

m e s m o

  Reich.

  N o s  atos deste último  nã o é o  estado  q u e s e  toma existente,

m a s s i m o  Reich  - e i s q u e s e  trata  d e u m a  competência  d o  Reich.  S e  partimos

desse ponto  d e  vista, podemos também evitar  a  construção artificiosa  q u e

ANSCHÜTZ

  s e v ê  constrangido  a fazer quando  d i z a  respeito d a s  instruções gerais

d o  governo  d o  Reich  à s  autoridades estaduais  d e  acordo  c o m o a r t . 1 5 - 2 : " O

governo  d o

  Reich

  a s  emite,

 pode-se dizer, 'como  se

fo sse  a  instância adminis-

trativa superior  a o  governo estadual  ( o q u e e l e n ã o  é.. .)"  ( ib . , p . 7 7 ) .  Po i s  o

  d o  Reich  é  instância administrativa superior  e m  relação  à s  autorida-

  estaduais

  q u e

  atuam como autoridades indiretas

  d o

  Reich.  A

  re lação

  d e

superioridade consiste fundamen talmente  e m q u e u m  órgão está vinculado  à s

normas, especialmente  a s

  individuais,

  a s  ordens administrativas,  q u e u m

outro órgã o está autori zado  a  emitir. Contestar  u m a  relação  d e  superioridade

entte governo  d o  Reich

  t

  governos estaduais está  e m  contradição  c o m a s  dispo-

  d a  cláusula

  2 6,

  particularmente,  d a  cláusula  3? do art . 15 . Se em  lugar

d a  expressão abreviada "governo estadual" falássemos  d e  indiv íduos  q u e ,

  em

  outros casos  co m o autoridades  estaduais,  n o  c aso  do art . 1S  atuam

como autoridades

  d o  Reich,  o u

  seja, como autoridades subordinadas

  a o

  gover-

n o d o  Reich,  n ã o  existiria nenhum problema.

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8/17/2019 KELSEN Hans. Jurisdicao Constitucional

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70

HANSKELSEN

próprios estados-membros, atuam como órgãos

 d os

  estados-

membros,

 do

 mesmo modo

 que,

 inversamente,

 as

 autoridades

destes

 se

 transformam

 e m

 autoridades federais indiretas quan-

do

 executam leis federais. Assim,

 p o r

 exemplo,

 a

 Constituição

federal austríaca prevê expressamente,  no art. 97, a possibili-

dade  de que  leis estaduais  — e m  matérias  que  recaiam tanto

executiva quanto legislativamente n a competência do estado -

confiem

  a

 própria execução

  a

 autoridades federais.

  Se

  atri-

buíssemos esses atos executivos

  à

  União,

  do

  mesmo modo

como erroneamente

  se

 atribuem

 ao

 estado

 o s

 atos

 d a

 assim-

chamada execução federal indireta

 - na

 medida

  em que

 neste

último caso

  se

 fala

 d e u ma

 obrigação,

 p or

 parte

 do

 estado,

  de

executar leis federais -  então haveria,  no  caso mencionado

acima  d e administração indireta  do  estado, u m a  subordina-

ção da União ao estado-membro. Entretanto devemos  ter em

mente

  que a

 concepção tradicional

  do

 Estado federativo

 não

iria

 se

 opor

 a

 semelhante noção porque,

 po r

 exemplo,

 é

 impos-

sível haver entre União

 e

 estado-membro qualquer relação

 de

subordinação

  e

  superioridade,

  mas s im o

  contrário, porque

se

 considera

  que a

 União, identificada

 com a

 entidade total,

está colocada essencialmente acima

  dos

 estados-membros.

Embora

  a

  teoria alemã

  do

 direito público apresente

  os

órgãos

 da

 administração indireta

  do Reich

  definidos

 nos

 arts.

14 e 15 da

 Constituição como órgãos

 do Reich,

  ainda

  que

  in -

diretos,  não se

 duvida

  no

  entanto

  - e com

  razão

  - de que a

Constituição também prevê como

 condição para

  a

  interven-

ção do

 Reich

  a

 inexecução

 de um a lei do

 Reich

  por

 parte

 das

autoridades estaduais consideradas como órgãos indiretos

do Reich.  A seguinte disposição do art. 48 da Constituição do

Reich

  alemão:

  Se um

  estado

 não

 cumpre

 os

 deveres

 que lhe

cabem segundo  a Constituição  ou  leis  do Reich,  o presiden-

te pode obrigá-lo  a  tanto  c o m  auxílio  das  forças armadas"

é  interpretada,  de  modo bastante generalizado  e  correto,

no

  sentido

  de que

 devem valer como violações

 d os

 deveres

do

  estado

  n ã o

  apenas

  a

  invasão

  d e

  competência,

  não ape-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

71

nas a violação  do art . 17, m as  também  dos arts.  14 e 15, vale

dizer, das disposições concernentes à administração indireta

do

 Reich

  p or

  meio

  d o s

 governos estaduais.

  No art . 48, por-

tanto,

  são

  indicadas também como "deveres

  do  Reich'''  as

funções

 da

  administração

 do  Reich  a

  serem desempenhadas

po r

 órgãos (indiretos)

 do Reich,

  embora

  o art. 15 não

 fale

 de

deveres

  d o

  "estado",

  m as s im do

  governo estadual",

  das

autoridades estaduais",

  d as

 autoridades centrais

 do

 estado",

e se

 possa deduzir

  se m

 problemas

  que e le

  alude

  aos

  indiví-

duos

  q u e

  em  outros casos  atuam como governos estaduais,

autoridades estaduais, autoridades centrais

  d o

  estado.

  Se

portanto n ão  existe dúvida  de que  segundo  o art . 48 a  inter-

venção  do Reich  também pode acontecer  n o  caso  de que as

autoridades indiretas  d o  Reich  indicadas  no art . 15 não

cumpram seus deveres  ali  transcritos, pode-se discutir  se o

art. 48  qualifica  co m  razão esse fato como violação  de um

"dever do estado".  Um a vez que se trata aqui apenas de uma

interpretação teórica  p o r  parte  do  legislador,  que de  modo

algum pode

  se r

 vinculante,

  não se

 arranha

 o

 direito positivo

se respondemos negativamente  a essa questão d a única teoria

pertinente,  e assim afirmamos que a intervenção federal não

está prevista apenas para  o caso  em que um  estado-membro

enquanto  ta l

  viole

  o s

  deveres

  que lhe

  impõe

  a

 Constituição

total,

 m as

 também para

 o

 caso

 em que

 determinados órgãos

 fe-

derais não

 cumpram certos deveres

 q ue

 lhes

 são

 impostos pela

Constituição.

III.

Também

 nos

 casos

 em qu e, por

 força

 do

 princípio

 d e

 atri-

buição aqui referido, pode-se falar

 de um

  "dever

  do

 estado-

membro", é no entanto recomendável n ão perder de vista  - po r

causa dessa imagem auxiliar do estado como sujeito ou titular

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72 HANSKELSEN

do dever — o fato material real: que

 indivíduos

  qualificados d e

determinado modo pelo ordenamento estatal

  são

 obrigados

-

  enquanto órgãos

  do

  estado

  - a uma

  determinada conduta.

Todos

  os

 deveres jurídicos, inclusive

  os

 interpretados como

sendo  d o  Estado", podem  ter por  conteúdo apenas  a con-

duta

  de

  indivíduos.

  Se um

  "estado"

  é

  obrigado pelo ordena-

mento  a u m a  determinada conduta, isso  não  significa outra

coisa  que uma  espécie  de  obrigação

  indireta

,  n a  medida  e m

que o  ordenamento  que  impõe  a  obrigação regula  a  conduta

enquanto  ta l a f im de  definir  o  indivíduo  q u e  deverá tê-la,

instituindo porém

  u m a

  outra figura

 qu e é o

 "Estado obriga-

do . Esse recuo  até o fato material real  da conduta  do indiví-

duo, que é

  interpretada como conteúdo

  de um

  dever

  d o

Estado",  é d e grande importância quando  se trata de  imputar

ao

 estado

  não o dever,  mas a violação  do

 dever,

 u m

  fato ilíci-

to.  Pois somente essa redução mostra  que a  atribuição  d o

cumprimento  do

  dever,

  ou

  seja,

  de um ato jurídico,  tem um

sentido totalmente diverso  d a  imputação  d a  violação  do

dever,

  ou

  seja,

  de um ato

 ilícito

5

.

  Se no

 primeiro caso esta-

m o s diante daquela  que denominei atribuição "central", isto

é, a referência de um fato material, regulado de determinado

modo,

  à

 unidade

  do

 ordenamento regulador (atribuição à

pes-

soa ,

  no  segundo  se  trata daqueLa  que  denominei atribuição

"periférica", isto

 é, a

  ligação

  de

 dois fatos materiais através

d a norma  que os define como condição e conseqüência (atri-

buição

 ao fato material

6

).  O

 fato

 de que um a

 ilegalidade,

 um

ato

  ilícito,

  não

  possa

  ser

  imputado

  ao

  Estado

  n o

  mesmo

sentido  de um

  ato  lícito

, isto  é, de um ato -  como  se costu-

m a

  dizer figuradamente

  -  desejado

  pelo Estado,

  de um ato

5 .

  Perde-se

  na

  tradução

  o

  paralelo

  e a

  assonância entre Rechtsakt

  ("ato

jurídico")  e

  Jnrechtsakt

  ("ato  ilícito"),  (N . d o T . )

6. Cf. a  respeito  o s  meus  Haupiprobteme

  de r

  Staatsrechtslehre  ("Pro-

blemas centrais

  d a

  teoria

  d o

  direito público"),  2

ed. , pp. IX ss. , e

  minha

Allgemeine Siaatslehre

,

  op . c i t . , pp . 4 8 ss . , 65 ss . , 21 2 , 24 8 , 26 7 ss .

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

73

previsto especificamente

  no

 ordenamento estatal como devi-

do,

  é facilmente compreensível.  Se  porém quisermos enten-

der o que a

 imputação

 de um

 fato ilícito

 a o

 Estado pode

  efe-

tivamente significar,

  é

  necessário primeiramente esclarecer

o

  significado

  da

  relação definida como imputação

  de um

fato ilícito dentro  d a  esfera d a s  ações e omissões d o  indiví-

duo.  Também aqui  o que  importa  - no  âmbito  do  conheci-

mento jurídico  -

  não é

  qual indivíduo originou

  o

  fato

  num

sentido fisico-psíquico, quem

 é o

 autor físico-psíquico,

 m a s

sim a

  qual indivíduo está  ligado juridicamente

  um

  fato

material (dentro

  do

  qual

  a

  conduta flsico-psíquica

  do

  indiví-

duo, via de  regra, constitui elemento essencial). Nesse senti-

do, um

  fato ilícito

 é

  imputado

  a

  determinados indivíduos

 na

medida

  em que a

 pena

  - o ato

 coercitivo

  da

 punição

 ou exe-

cução - ,  ligada a esse fato ilícito n o preceito jurídico,  se diri-

ge contra tais indivíduos. A  relação designada como "impu-

tação" liga

 um

 determinado fato ilícito

 da

 conduta individual

a um ato

 coercitivo característico

 do

 direito

  e

 qualifica

 o pri-

meiro como "ilícito".  U m a  determinada punição  é referida a

u m determinado fato ilícito (punível) ou  vice-versa.  Se a lin-

guagem corrente afirma

 que um

 determinado fato,

 u m a

 deter-

minada conduta,

  é

 imputada

  a

 determinado individuo,  trata-

se de uma

  abreviação  — explicável

  po r

 diferentes razões

  que

não podemos expor mais detidamente aqui.  N o  lugar  do su-

porte fático [Talbestand]  da norma coercitiva — de que faz par-

te o

 indivíduo

 c om

 relação

 ao

 qual esse

 a to

 deve

 ser

 executado

-

  entra,

 na

 visão corrente

 da

 relação

 de

 imputação

 -

  dir-se-ia

como

 pars

  pro

  toto

  - ,

  justamente esse determinado indiví-

d u o  sobre o qual recai  a coerção. Através do  indivíduo deter-

minado contra

  o

 qual

  ele se

 dirige,

  o ato

  coercitivo

  é

 carac-

terizado  por seu  objeto específico.

  O

  fato

 é

  imputado àque-

le que — por  causa  d o próprio fato — deve ser punido. Essa  é

a  formulação  da  imputação  sob o  ponto  de  vista  do  direito

positivo.

  U m a

 outra questão

 é: a

 quem determinado fato deve

ser - com

 justiça

  -

  imputado, isto

  é,

  como

  o

  suporte fático

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL  7 5

também pode  ser  imputado àquele  que não é o autor psíqui-

co,

 ainda

 que a

 consciência jurídica possa

 ser

 mais

 ou

 menos

contrária

 a

 isso.

 D e

 fato,

 os

 modernos ordenamentos jurídicos

incluem numerosos casos

  d e

  ilícito não-culposo,

  da

  assim-

chamada responsabilidade objetiva.

O que ,  portanto, pode significar  a  imputação  ao  "Esta-

do de um   fato ilícito?  A f im de examinar  a fundo esse pro-

blema,  é necessário conceber essa imputação  ao  Estado  co -

m o

  caso

  de

 imputação  de um  ilícito  a uma pessoa jurídica.

  A

esse respeito,

  não é

 possível reconhecer

  de

  antemão

  que de-

veria existir, como

  p o r

  vezes

  se

  assume, alguma diferença

entre

  o

 Estado

  e as

 outras pessoas jurídicas. Carece

  de fun-

damentação suficiente

  a

  teoria, freqüentemente apresenta-

da,  segundo  a  qual somente  ao  Estado  se  poderia imputar

u m  ilícito

 culposo

  e portanto

 punível,

  ao passo  que às outras

pessoas jurídicas  -  interiores  ao  Estado  - se  poderia impu-

ta r

  apenas

  o

  ilícito civil

7

,

  o u

  seja,

 u m

 fato ilícito

  ao

  qual

  se

liga

  n ã o u m a

  punição

  mas s im a

  execução, supondo-se

  que

tal

 fato ilícito

  n ão

  precisasse conter

  o

 momento subjetivo

 da

culpa.

 Que na

  linha

 d o

 direito positivo nada

  se

 oponha

 a que,

em

 determinados casos,

  a

 execução seja ligada apenas

  a um

fato ilícito culposo, é algo bastante evidente,  do mesmo m o -

do como  a pena pode seguir-se  a u m  fato não-culposo. De-

ve-se separar

  bem o

 ponto

  de

  vista

  da

 política

  do

 direito

  e o

da  teoria jurídica.

  M a s

  isso

  é

  apenas acessório.

  O que im-

porta

  é

  saber

  por que o

  ilícito cometido culposamente,

  ou

seja, punível, deve

  ser

  imputável apenas

  ao

  Estado

  e não às

outras pessoas jurídicas.

  O

  fato

  a ser

  imputado

  não é - no

sentido físico-psíquico  -  produzido pelo "Estado"  o u  pela

"pessoa jurídica",  mas s im, em  ambos  os casos, apenas  por

u m   indivíduo  que  pode agir  (ou se omitir) culposamente ou

não. A

 questão sobre

 a

 quem

  u m

 fato ilícito

  é

 juridicamente

7 .

  JELLJNEK,

 Die  Lehre  von den  Staatenverbirtdungen,  p. 49 .

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76

HANS KELSEN

imputado resolve-se

 -

  como

  se

 depreende

 do

 exposto acima

- não  segundo  o  indivíduo  que o  produz  no  sentido físico-

psíquico

  - e

 apenas neste pode haver

  o

  momento

  da

  culpa

  -

mas sim

 tendo

 em

 vista

 o

 indivíduo

  com

  relação

 ao

 qual deve

ser  executado  o ato  coercitivo,  e que não  precisa coincidir

com o autor físico-psíquico.

Pois  bem, com  relação  a quem  é executado  o ato coer-

citivo, quando  se  trata  de uma pessoa jurídica, p or  exemplo

u m a

  associação

  ou o

  Estado? Aqui,

  d e

  início, parece

  h a -

ver um a diferença entre pena  e execução civil.  Se é verdade

que a

 pena

 pecuniária

  e a

 execução civil

 n ã o

 apresentam

  se-

quer

  u m a

  diferença superficial, pois

  a

 primeira,

  tal

  como

  a

segunda, consiste na privação compulsória de um valor patri-

monial e pode desembocar num ato idêntico à execução civil,

existe por outro lado a propensão a considerar pessoas jurídi-

cas enquanto tais como sujeitas à execução civil e à pena pecu-

niária,

  m a s n ã o à

 privação

  da

 liberdade

  ou da

 vida (pena

  de

morte)

  e a

 atos coercitivos assemelhados

 -

  porque represen-

t am um mal  físico-psíquico infligível apenas  ao  corpo  do

individuo. Quando

  se crê que uma

  associação poderia sofrer

execução  e ser  condenada  a uma  pena pecuniária,  mas não

sofrer

  a

  pena privativa

  de

  liberdade

  ou

  mesmo

  a

  pena

  de

morte, isto é sem dúvida u m erro, provocado pelo fato de não

se  olhar através  do véu que o  conceito  de  pessoa jurídica

estende sobre

  a

  realidade

  dos

  fatos materiais

  do

  comporta-

mento individual.

  Que a

  pessoa jurídica seja proprietária

de bens  é apenas um a expressão abreviada para dizer que es-

ses

  bens pertencem

  ao s

  indivíduos

  que a

  formam,

  que seu

usufruto e disposição, porém,  são disciplinados ao modo par -

ticular previsto

  no

  regulamento

  da

  associação, portanto

  de

maneira diferente d a assim-chamada propriedade individual.

Mais que da propriedade da pessoa jurídica, poder-se-ia falar

de uma propriedade corporativa  dos  indivíduos.  U m a  dimi-

nuição forçada dessa propriedade

  - no

  curso

  de uma

  execu-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

77

ção civil  ou da execução  de uma  pena pecuniária  -  significa

portanto  q u e  todos

  os

  membros

  da

  corporação  são compul-

soriamente privados

  de um

 valor patrimonial,

  em

 conseqüên-

cia de um  fato ilícito eventualmente praticado por apenas u m

único membro  — o  órgão  que  atuou ilegalmente culposa-

mente  ou não. É o  caso típico  da  responsabilidade coletiva

ou da  responsabilidade objetiva,  esta também quando  a san-

ção contra o patrimônio social se deve aplicar apenas em caso

de ação ou omissão culposa do

 órgão social.

  Ora , seria igual-

mente possível um a norma de direito positivo que, no caso de

u m

 ilícito cometido pelo órgão social, previsse

 a

 reclusão

 ou

a

 pena capital para todos

 os

 membros

 d a

 associação.

  E

 esses

atos coercitivos

  se

  dirigem

  n e m

  mais

  n em

  menos contra

  a

associação enquanto

  tal,

  isto

  é, de

  modo nada diferente

  da

execução civil

 ou da

 pena pecuniária;

 com a

 diferença

 de que

nossa consciência jurídica rejeita tais sanções como demasia-

do

 cruéis.

 E

 como acontece

 c o m

  freqüência,

  o que é um pos-

tulado

 de política  d o

 direito, quando ressaltado emotivamen-

te com

  certa intensidade, ganha

  u m a

  roupagem

  de

 teoria

  do

direito, isto  é,  transforma-se n a  seguinte doutrina:  a  pessoa

jurídica está,  de  acordo  com sua  essência,  sujeita apenas  à

execução civil, eventualmente à pena pecuniária, m as não às

penas privativas  de  liberdade  ou de  morte.  E na  medida  em

que se  considera  -  reinterpretando igualmente  u m  postula-

do político-jurídico como verdade teórico-jurídica - a puni-

ção (ou  pelo menos  as  penas privativas  de  liberdade  ou de

morte) ligadas

 po r sua

 essência apenas

  a u m

 fato ilícito

 p ro -

duzido culposamente  (nenhuma punição sem culpa), chega-

se à  suposição  de que a pessoa jurídica seria imputável  ape -

nas por ilícito civil, isto  é, com abstração  da culpa.

A  opinião  de que a  pessoa jurídica pode  ser  imputada

pelo fato exterior d a conduta ilícita de um órgão, porém

  não

com o

 momento

  da

 culpa, pois este, enquanto processo

  psí-

quico

 q u e

 ocorre

 n o

  interior

  de

 cada pessoa, seria altamente

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78 HANSKELSEN

individual  e portanto intransferível, praticamente não requer

— p o r

 carecer

 de

 qualquer fundamento

 - um a

 refutação mais

detalhada.

 O ato

 exterior

 de um

  indivíduo

 não

 pode

  ser

 sepa-

rado  de seu motivo psíquico,  e este, tanto quanto aquele,  in-

dividualmente  e do ponto  de  vista externo  ao  direito,  não é

transferível.

E is porém -  afirma a teoria tradicional  - que justamen-

te o Estado, diferindo das  outras pessoas jurídicas, teria  c a -

pacidade para

 o

 ilícito culposo; isto significa

 que, no

 âmbito

do

 direito internacional,

 u m

 fato ilícito culposo pode

 ser im -

putado

  ao

  Estado

  co m

  relação

  a

  outros Estados

  (e

  também

dentro

 da

 esfera

 d o

 Estado federal

 n a

 relação entre

 o

 estado-

membro e o assim-chamado Estado central). Por que, no en -

tanto, deveria justamente  a pessoa jurídica "Estado"  ser ca-

paz de cometer u m ilícito culposo, quando, também nesse ca-

so, é o

 indivíduo

 q ue

 pode, culposamente

 ou não,

 produzir

 o

fato ilícito? Essa evidente incongruência  da  teoria  se explica

imediatamente quando

 n o s

 perguntamos qual

 é o ato

 coerci-

tivo  que, segundo o direito internacional, é posto como conse-

qüência  d o  fato ilícito  a ser  imputado  ao  Estado,  e  contra

qual indivíduo  ele se  dirige. Trata-se,  ao f im e ao  cabo,  da

guerra,  isto é, um complexo de atos coercitivos, quais sejam:

destruição e confisco forçado d e bens objeto de propriedade

privada ou coletiva dos indivíduos q ue compõem o Estado, pri-

vação forçada  da  liberdade  e da  vida  de  indivíduos  que

"pertencem"

 ao

 Estado contra

 o

 qual

 se faz

 guerra. Apesar

 de

que

 talvez

  se

 resolva ainda dizer

  que o

 "Estado"

 é

 saqueado

quando  a propriedade privada  de seus súditos é destruída ou

confiscada  na  guerra,  não se considerará possível  que o Es-

tado seja feito prisioneiro, ferido e mutilado, ou receba a pe-

na de morte.  Se decompusermos  a "guerra"  nos atos coerci-

tivos isolados  de que é formada, teremos  que afirmar  que se

dirige somente contra

  os

  indivíduos atingidos

  por ela. E

se  ainda assim  nos  atemos  ao uso  lingüístico  - e se trata  de

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

79

um uso enganoso, que se apresenta como "teoria" do direito

internacional

  -

  segundo

  o

 qual

  a

  guerra enquanto

  tal é

  feita

somente contra  o Estado enquanto  ta l  e não  contra  o s  indi-

víduos

  que

  compõem

  o

 Estado, trata-se

  co m

  essa termino-

logia apenas

  de

  colocar

  um véu

  sobre

  o

  fato

  de que ,

  como

conseqüência de um ilícito produzido por um ou mais indiví-

duos determinados

 -

  enquanto órgãos

 d o

 Estado

 - ,

 prevê-se

um a to  coercitivo  ou um  complexo  de  atos coercitivos  que

se

  dirigem essencialmente contra

  indivíduos totalmente

diversos

  daqueles

  que —

 culposamente

  ou não —

 produziram

o

  fato ilícito.

  C o m

  isso pretende-se ofuscar

 o

  fato

  de que se

trata

  de um

  caso

  de

  responsabilidade coletiva

  e

  objetiva

  que

fere a nossa consciência jurídica. E com  isso torna-se claro o

motivo

  do

  esforço

 p o r

  reconhecer

  a

 capacidade

  do

  Estado

  -

diferentemente das outras pessoas jurídicas  - d e cometer  ilí-

citos culposos. A  guerra  é, pois, um a punição idêntica  ao ato

coercitivo,

  é uma

  pena privativa

  de

  liberdade

  e de

  morte,

elevada, d o ponto de vista quantitativo e qualitativo, à máxi-

m a

 potência.

 É u m a

 pena

  que

 atinge basicamente

  os

 inocen-

tes. Se essa punição  se dirige contra o Estado enquanto  tal -

com o que se  mascara  o  fato  da  responsabilidade coletiva,

doloroso para nossa consciência jurídica

 —

 então

 se

 deve

 t am-

b é m , para  que não se possa infligir a pena mais terrível  sem

u m a

 culpa, poder afirmar

 que o

 Estado contra

 o

 qual

 se

 dirige

a  guerra pode cometer ilícitos culposos; deve-se gerar  uma

aparência

  de

 responsabilidade pcrr culpa. Dentro

  do

 ordena-

mento jurídico

 de

 cada Estado

 o

 desenvolvimento

 da

 técnica

jurídica acompanhou o refinamento da consciência jurídica até

alcançar

 o

 ponto

 em q ue -

  abstraindo-se

 de

 alguns casos

 pa r -

ticulares - a responsabilidade coletiva e objetiva cedeu lugar

à

 responsabilidade individual

  e po r

  culpa.

  E la

 ainda perma-

nece, contudo, n o âmbito  das relações internacionais. Como

no entanto justamente esse âmbito n ão pode prescindir de uma

ideologia

 do pathos

  moral,

 é

 afinal muito compreensível

 que

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8/17/2019 KELSEN Hans. Jurisdicao Constitucional

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80

HANS KELSEN

a fraseologia jurídica pretenda mascarar a realidade dos fatos,

isto é , aquela  do direito positivo.

Se

 reconhecemos

  que um

 fato ilícito deve

  ser

 imputado

ao

 indivíduo

 a

 quem

 -

  como

 seu

 objeto específico

 - se

 dirige

o ato

 coercitivo previsto como conseqüência

 de tal

 fato, então

compreendemos

  que não se pode absolutamente falar  de im-

putação  de um fato ilícito  a uma pessoa jurídica,  ou seja, f a -

lar  naquele sentido específico  em que o conceito  de pessoa

jurídica encontra

  sua

  particular legitimação.

  A

 pessoa jurí-

dica

  é -

  enquanto personificação

  do

  ordenamento jurídico

total (Estado)

 ou de um

 ordenamento jurídico parcial

 —

 essen-

cialmente

 sujeito.

  Imputação

  à

 pessoa significa referência

 a

alguma coisa imaginada positivamente como autor

 ou

  titular

de uma

 ação

 ou

 omissão,

 e m

 resumo,

 de um

 fato determinado;

chama-se pessoa

 o

 sujeito

 de um a

 conduta autorizada

  ou im-

posta; pessoa é o sujeito

  de

 deveres

  e

 direitos.  E a referência

à unidade do ordenamento, total o u parcial, q ue estabelece d e-

veres e faculdades. O  indivíduo atingido pelo  a to coercitivo

é objeto

  passivo,

 e não

  sujeito desse

 ato. Por

 isso será possí-

vel

 relacionar

  o cumprimento  do ato

 coercitivo,

 da

 pena,

  da

execução,

 a

 algo

 q u e

 seja

 sujeito

  desse ato

,pessoa, m as não

o ser

 passivamente punido

  ou

  executado.

  A

  imputação

  que

abrange

  o ato

 coercitivo

 e

 pode

 ser

 caracterizada pelo objeto

específico

 ao

 qual

 é

 dirigida

 — em

 resumo,

 o

 indivíduo puni-

do ou

 executado

  - não é

 imputação

  à

 pessoa,

  m as sim

 impu-

tação

  - de um

  fato material

  -  a um

 fato material.

  Mesmo

quando

  o ato

 coercitivo

  se

 dirige contra todos

  os

  indivíduos

que -

  como

  se diz sem

 exatidão

 -

  formam

 a

 pessoa jurídica,

n ã o

 pode

  ser

 vista como atingida pelo

  a to a

 pessoa jurídica

enquanto

  tal,  e

 portanto

 se

 considerar

 o

 fato ilícito como

  im -

putado

 à

 pessoa jurídica enquanto

  tal. O

  fato, pois,

  de que a

pessoa jurídica,  a  corporação, seja "formada"  por  determi-

nados indivíduos,  n ã o significa outra coisa  que: determina-

da

 conduta

  de

 determinados indivíduos constitui

  o

 conteúdo

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

81

das

  normas,

  é

  prevista

  por

  normas

  que

  formam

  um

  sistema

unitário, u m ordenamento total ou parcial; em outras palavras,

qu e indivíduos são  autorizados  ou  obrigados p o r esse orde-

namento

 a uma

 determinada conduta.

 O

  indivíduo,

 ao

 consti-

tuir

  o objeto  do ato

  coercitivo

  que é

 executado

  com

  relação

a ele por outros indivíduos, n ão pratica u m a  conduta regula-

da  como dever  ou  faculdade. Por  isso  a  criatura  do  ordena-

mento

 que se

 apresenta como pessoa jurídica pode certamen-

te ser

 tida como sujeito

 do ato

 coercitivo

 que

 apenas

 um

 único

indivíduo produz,

  mas não

 como sujeito passivo

 da

 coerção,

mesmo quando todos

 os

 indivíduos cuja conduta

  é

 estabele-

cida pelo ordenamento devam sofrer esse  ato  coercitivo.  Se

dizemos

  que é

  a

  associação  qu e

  sofre execução quando

  a

execução

  -

  mesmo

  q u e

  apenas indiretamente

  — se

  dirige

contra todos  os  seus membros (isto  é, quando  o patrimônio

social  é  compulsoriamente reduzido),  e  neste sentido  se

imputa  à

  associação  o

  ilícito

  que é o

  motivo

  d a

  execução,

essa linguagem significa

 de

 forma clara algo

 totalmente dife-

rente

  do que em

  geral

  se

  entende

  p o r

  pessoa jurídica

  da

associação. A associação aqui é apenas expressão para indi-

car

  todos

  os

  seus membros,

  a

 expressão

  de uma  soma.  Não

se

  poderia portanto falar

  d e u m a

  execução contra

  ela, e

assim  lhe  imputar  o  fato ilícito, quando  a execução  se diri-

gisse, por exemplo, apenas contra  o patrimônio do órgão  que

produziu

 o

 fato ilícito,

 ou dos

 membros

 da

 direção. Enquanto

pessoa jurídica, porém

 -

 nisso concordam todas

 as

 teorias

a

  associação

  é

  algo diferente

  da

  mera soma

  dos

  indivíduos

que a  compõem.  Se  configuramos  a  pessoa jurídica como

um a  entidade diferente  dos  indivíduos  que a compõem,  que

está

 acima

  deles,

  e

 cuja vontade

 não só não é a

 vontade

  dos

indivíduos

  m a s

  pode também lhes

  ser  contrária,

  isto

  so-

mente  é possível porque  na pessoa jurídica  é personificado

o ordenamento  que  obriga  e autoriza  os  indivíduos  e que se

dirige, justamente

 no ato

 coercitivo, contra

  os

  indivíduos

 que

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82

HANSKELSEN

devem

  ser

 nitidamente distinguidos.

  Se

 esta

 é a

 pessoa

 que se

apresenta

  no ato

 coercitivo contra

  os

  indivíduos interessados

- e qu e é

 configurada como sujeito desse

 ato

 apenas para

 cla-

rificar, mediante personificação,  a  objetividade  do  ordena-

mento  e m  relação  ao  indivíduo então  é  simplesmente

absurdo utilizar essa imagem auxiliar  da  pessoa jurídica  de

u m a maneira em que o ato coercitivo possa se dirigir contra a

pessoa jurídica enquanto

 tal.

 Trata-se portanto

 de um uso lin-

güístico enganoso dizer

  que a

 execução civil

  se

 dirige contra

a

  associação enquanto

  tal, na

  medida

  em que se

  desperta

  a

impressão de que se estaria diante d a associação à qual se faz

referência quando  se  fala  da  associação como sujeito  de

deveres e direitos, como sujeito de atos jurídicos. O significa-

do ético-político  q u e esse uso enganoso assume quando,  no

direito internacional,  se  afirma  o ato  coercitivo  da  guerra

como sendo dirigido contra  o  Estado "enquanto  tal ,  impu-

tando-se assim  a este o  ilícito cometido p o r  indivíduos  con-

vocados

  a

  atuar como órgãos

  do

  Estado

  já foi

  esclarecido.

Assim adquirimos para

  o

 ulterior desenvolvimento deste

 es-

tudo

  o

  conhecimento

  de que nem a

  pena,

  nem a

  execução

civil podem  ser dirigidas contra  u m a  corporação interior  ao

Estado enquanto pessoa jurídica, nem. a guerra contra  o Es-

tado enquanto

  tal; que

  portanto

  não é

  possível imputar

  u m

fato ilícito

  a uma

 pessoa jurídica,

  n e m

  mesmo

  à do

  Estado;

e que o uso  lingüístico contrário  a isto serve apenas para en-

cobrir

 o

 fato real

 d e u m a

 responsabilidade coletiva

 e

 objetiva,

ou seja, a regulação de um ato coercitivo para o fato produzi-

do  culposamente  ou não por um  determinado individuo  —

como órgão coletivo —, sendo qu e tal ato se dirige contra ou-

tros indivíduos,  de fato contra todos os indivíduos cuja con-

duta está regulada

  por um

  ordenamento

  que se

  expressa

  n a

pessoa jurídica  à qual  se  imputa  o fato ilícito.

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

83

IV.

A

 aplicação deste conhecimento

 n as

 circunstâncias

 pró -

prias do Estado federativo acontece po r s i mesma. Interven-

ção

 federal

 é, no seu

 fato material exterior,

 um a to

 coercitivo

análogo  à  guerra.  É u m a  intervenção  da  força armada  - da

União

 ou de

 vários estados-membros

 -

  contra

 o

 estado-mem-

bro que

  viola

  o

  próprio dever,

  e se

  realiza mais

  ou

  menos

como  u m a  guerra  q u e  fosse feita contra esse estado. Isso

significa

  que nas

  relações entre federação

  (ou o

  Estado

  e m

sua

 totalidade)

  e

 estado-membro

  é

 usada

  a

 mesma primitiva

técnica jurídica

  que o

  direito internacional utiliza

  nas

  rela-

ções entre Estados.

  Q u e

  deva

 ser

 assim porque somente essa

técnica jurídica corresponde  à  essência  do  Estado  nas  suas

relações

  c o m o s

 outros Estados

 é um a

 concepção

 de que vol-

taremos a tratar mais tarde. Aqui, como resultado  do estudo

q u e

  precede, deveremos apenas afirmar

  que a

  intervenção

federal

 -

  ainda

 que a

  Constituição

 o

 diga textualmente

  - não

se

  dirige contra

  o

  estado-membro enquanto

  tal,

  isto

  é, en-

quanto pessoa jurídica;

  e que a

 afi rmação contrária

  da

 teoria

e d o  texto constitucional  que a  segue  n ão  significa outra

coisa

 que : por

 causa

  d e u m a

 violação

  de

 deveres

 que

 consti-

tu i

  condição para

  a

  intervenção federal,

  se

  estabelece

  u m a

responsabilidade coletiva  dos  indivíduos  q u e  compõem  o

estado-membro. Mais ainda: significa

  que , não

  obstante

  o

teor literal  d a Constituição,  a violação  do dever  que  consti-

tu i

  condição para

  a

  intervenção federal

 não

  pode

  ser

  inter-

pretada como ilícito imputável  ao  estado-membro enquanto

tal. E  isso  n ão  apenas quando  se  trate  da  violação  de  dever

de um

  órgão

 federal  -

  indireto

  - m as

  também

  n o  caso  d e

violação  d e dever p o r  indivíduos  que, se tivessem cumprido

o

  dever violado, estariam atuando apenas como órgãos

  do

estado-membro.  A disposição d e u m a Constituição segundo

a

  qual, quando

  um

  estado-membro

  não

  cumpre

  os

  deveres

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84

HANS KELSEN

por ela impostos deve-se proceder à  intervenção federal, não

significa senão  que os súditos  do  estado-membro  são  coleti-

vamente responsáveis pelo cumprimento,

 por

 parte

 d os

 órgãos

designados pela Constituição

  do

  estado-membro,

  de

  certos

deveres estabelecidos pela Constituição total  com  respeito

ao  exercício  da  competência  do  estado-membro;  m a s  além

disso:  que os  súditos  do  estado-membro  são  também coleti-

vamente responsáveis pelo cumprimento, p o r parte de certos

órgãos federais,  mais precisamente

 os

 órgãos federais indire-

tos,  de deveres  que a Constituição  - em seu aspecto de Cons-

tituição total

  -

  lhes impõem

  co m

  respeito

  ao

  exercício

  da

competência  da  União. Esse  é o fato material  nu e cru;  fica

assim destruída  a aparência de justificação  que a  fraseologia

utilizada pela teoria

  e

 pela prática claramente

  se

 propõe:

  de

que

 somente seria justo

 e

 equânime, quando

  um

 estado-mem-

bro

 "enquanto

 tal se

 torna culpado

 de uma

 violação

 d e

 dever,

proceder contra  o  estado-membro "enquanto  tal , recorren-

do-se assim

  à

  intervenção federal,

 e não à

 punição

 do

 titular

do órgão  que se comportou culposamente.

C o m isso entretanto liquida-se também a tentativa - oca -

sionalmente efetuada - de deduzir da

 essência

  do

 Estado

  fe-

derativo,

  d a

  natureza

  da

  coisa,

  a

  intervenção federal como

ato coercitivo dirigido contra o estado-membro enquanto tal, e

assim também  a inadmissibilidade  de  chamar  à responsabili-

dade po r  casos d e violação da Constituição federal apenas os

indivíduos culpados.

  A

  Constituição

  dos

  Estados Unidos

  da

América

  -

  assim

  se

  ensina

  po r

  vezes

8

  —

  teria sido original-

mente interpretada  no  sentido  de que não  previa qualquer

violação constitucional (alta traição,  treason)  p o r parte  dos

estados-membros enquanto tais  e que  portanto autorizava

apenas a punição  de indivíduos.  C o m a Guerra  de Secessão,

todavia, teria havido

 a

 necessidade

 de

 reconhecer

 que os

 esta-

8 .  JELLINEK,  o p . c i t . , p ,  5 0 ,

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

85

dos-membros enquanto tais teriam violado

  a

 Constituição

 e

cometido alta traição, sendo portanto considerados "rebel-

d e s e

 punidos enquanto tais,

 na

 medida

  em que

  seus direitos

-

  ainda

  que

 temporariamente

 -

  foram reduzidos

  e

 posta

 um a

autoridade militar  n o  lugar  d o  governo autônomo. "Portan-

to ,  como reparação pela guerra civil,  a União  n ão  reduz  os

direitos  dos  indivíduos,  ela até  mesmo anistia  o  presidente

d a Confederação; m a s reduz os direitos dos estados,  reconhe-

cendo

 que os dez

 estados  estavam

 em

 rebelião. A natureza  da

coisa  prevaleceu sobre

  a

 teoria

  de que a

 União

  não

 teria

  que

ver com os

  estados,

  mas s im com

  indivíduos." Permanece

em

 aberto

 se a

 interpretação original

 d a

 Constituição

 dos Es-

tados Unidos, aqui mencionada,

 é ou não

  exata.

  Mas da c i r-

cunstância

 de que a

 Suprema Corte

 d a

 União tenha decidido

"that

  the

 rebel states made their

  war as

 States..." resulta

  tão

pouco que essa construção, aceita por motivos políticos, seja

teoricamente

  correta, quanto  de um  texto constitucional  se

possa deduzir  a  exatidão teórica  de  qualquer interpretação

de um

 fato material.

  Que a

 instauração

 de um

 regime militar

não teria reduzido o s direitos do s súditos -  assim privados  de

seu direito de autodeterminação política — m a s o direito dos

estados  é  insustentável

 j á à

 primeira vista.

  O

 problema todo

deve

  ser

  formulado corretamente nestes termos:

  se a

 Cons-

tituição estabelece apenas

  a

  responsabilidade individual

  e

culposa

  de

 pessoas

  que a

  transgridem

  ou

  também

  a

 respon-

sabilidade coletiva

 e

 objetiva.

 E é de

 fato impossivel

 e

 contra-

ditório

  em si

 mesmo

  o

  intuito

  de

  deduzir

  a

 partir

  da

  essência

do Estado a sua capacidade - que outras corporações interio-

res ao Estado não possuem - de sofrer um a to coercitivo d i-

rigido contra  a entidade enquanto  tal , e não  contra  o indiví-

duo .

  "Também quando

  n o

  Estado

  a

  corporação

  é o

  objeto

imediato

  da

  coerção, esta

  se

 aplica

  em

  última instância

  aos

indivíduos

  que a

  compõem.

  A

  dissolução

  d e u m a

  associa-

ção por

  ordem judicial

  a

  título

  de

 punição,

  p o r

  exemplo,

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86

HANS KELSEN

não se

 dirige contra

  a

  associação enquanto

  tal , mas

 contra

  o

conjunto  dos  seus membros."

9

  Ora, não se  compreende  por

que não é

 possível afirmar

  que a

 pena

  de

 dissolução atinge

 a

associação enquanto

  tal,

  tanto mais

  que ela

  deixa

  de

  existir,

enquanto

  é

 possível dizer

  que uma

  execução civil

  que

  atinge

o

 patrimônio

 da

 associação dirige-se contra esta como asso-

ciação. E m  ambos os casos são atingidos todos os membros.

Como

  se

 depreende

 do que

  dissemos anteriormente,

 por ne-

nhum outro motivo se pode afirmar que a intervenção federal

atinge

 o

 estado enquanto

 tal; e em

 ambos

 o s

 casos

 o

 conceito

de

 pessoa jurídica

  é

 utilizado

  de

 forma errônea.

  A

  contradi-

ção pode ficar evidente quando  o mesmo autor afirma  que a

intervenção federal

 - qu e ele

 contrapõe

  ao ato

 coercitivo

 di-

rigido contra

  a

 associação porque

  em

  última instância "atin-

g e

apenas

 os

 membros

 — se

 dirige não  contra cidadãos  iso-

lados  d o  estado  em questão,  mas sim  contra este último,  e

atinge culpados  e inocentes"

l0

.

  A

  intervenção federal

 só se

dirige" contra

  o

  Estado,

  n ã o

  contra

  os

  cidadãos inocentes;

estes

 ela

 apenas "atinge".

 D e

 modo

 que a

  intervenção (fede-

ral), por sua vez, não

 diferentemente

 d a

 guerra, deve atingir  o

individuo

  apenas

 n a

 medida

 em que

 isso

 é

 indispensavelmen-

te

 requerido pela

  sua

  natureza

  d e

  coerção dirigida contra

  o

estado"

11

. Portanto

 a

 intervenção federal

 -

  assim como

 a

 puni-

ção à

 associação

  -

  "atinge"

  os

  indivíduos

É da sua

 nature-

za

 atingi-los, porém apenas

 n a

 medida

  e m q u e

  isto seja

  ine-

vitavelmente necessário  p o r  causa  de sua  natureza  de  coer-

ção

  dirigida "contra

  u m

  estado"

  - e

  justamente

  p o r

  isso

também contra  os indivíduos

Nesse contexto devemos discutir

 a

 questão sobre qual

 é a

relação

  d a

  intervenção federal

  com a

  guerra

  no

  sentido

  d o

9 .  JELLINEK,  op . c i t . , p .  3 1 1 .

10. Id. , p. 50 .

l i . I d . , p .  3 1 1 .

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

87

direito internacional, sendo esta

 t ão

 similar àquela. Aqui,

 co-

m o d e

 costume, cumpre distinguir entre confederação

 de es-

tados

  e

  Estado federativo,

 e

  definir,

 n o

  primeiro caso,

  se a

Constituição estabelece

 u m a

 intervenção federal

 ou não. No

segundo caso

  só é

 possível reagir

  à

 violação

  da

 Constituição

federal

 por

 parte

 de um

 estado-membro mediante

 a

 guerra

 da

confederação contra este, isto

  é,

 mediante

 o ato

 previsto

 pe-

lo  direito internacional geral para  a violação jurídica.  Se a

Constituição prevê  u m a  intervenção federal, isso deve  ser

interpretado n o sentido de que os estados reunidos e m confe-

deração renunciam

  à

  guerra como reação específica contra

violações do ordenamento federal, ainda qu e ta l renúncia não

seja declarada expressamente.  A  situação  não é  essencial-

mente distinta daquela  do Estado federativo, cuja Constitui-

ção prevê  a intervenção federal. Através  de um conteúdo  si-

milar, o convênio confederativo aproxima-se da  Constituição

do

 Estado federativo, tanto mais quando

 se

 considera

 que com

a

 previsão

 da

  intervenção federal para

 o

 caso

 de

 violação

 da

Constituição,

 a

 decisão sobre

 se foi

 cometido

 u m

 ilícito

 é con-

fiada

 a uma

 determinada instância

 — via de

 regra,

  ao

 mesmo

órgão

  que

  deve decidir sobre

  a

  intervenção federal;

  e que

assim introduz-se

 u m a

 modificação marcadamente centralis-

ta

  em

  relação

  à

 competência jurídica

  n a

  esfera

 do

 direito

  in-

ternacional geral. Deve

 ser

 rejeitada

 a

 concepção corrente,

 se-

gundo

 a

 qual,

 a

 partir

 d o

 fato

 de q ue a

 confederação

 de

 estados

repousa sobre  um  tratado  de direito internacional, conclui-se

que

 nesse caso

 se

 estabelece apenas

 u m

 poder

 d a

 associação

  e

não um poder do Estado,  de modo que apenas meios d e coer-

ção de  direito internacional  e não de direito público,  portan-

to  apenas atos coercitivos contra  estados enquanto tais  se-

riam possíveis

12

.  O  tratado  de  direito internacional, isto  é, o

12 .

  Refiro-me neste caso

  à

  minha  Âllgemeine Siaatslehre,

  pp. 193 ss .

[trad. bras.,  Teoria geral  do  Estado,  S ã o Paulo, Martins Fontes ,  e m preparação].

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

89

sanção do direito internacional. N o âmbito de um a Constitui-

ção -

  seja

 de um

 Estado federal

 ou de um a

 confederação

 d e

estados

  - que

 preveja

 a

 intervenção federa],

 é

 condição neces-

sária para esta

 a

 verificação

 de que o

  estado-membro contra

o  qual  ela se dirige  - e a disciplina usual  da  intervenção  fe -

deral

  se dá

  somente para

  o

  caso

  em que um

  estado-membro

viole

  o s

  próprios deveres

  -

  tenha produzido

  u m

  fato ilícito.

A resistência armada organizada contra a intervenção federal,

portanto,  é

  rebelião, revolução,

  ou  como quer  que se  queira

denominar tais atos

  d e

 força. Estabelecer

  se e em que

 medi-

da

  existe

  a

  possibilidade efetiva

  de

  tratar tais atos

  de

  força

como delitos

  de

  indivíduos,

  e de

  responsabilizá-los pessoal-

mente,  não é uma  questão distinta daquela  que  surge  em

caso

 de

 revolução dentro

 do

 assim-chamado Estado unitário.

O que

 importa

 é

 simplesmente estabelecer

 que a

 situação cria-

da com

 resistência organizada

 e

 armada contra

 u m a

  interven-

ção federal não é

 guerra  no  sentido  do  direito internacional,

mas s im guerra civil. Para nossa consciência jurídica, isso é

mais terrível

 do que a

 guerra,

 po r

 muitas razões

 e

 independen-

temente

 do

 fato

 de que

 todas

 a s

 normas

 d e

 direito internacio-

nal que limitam a guerra não encontram aplicação imediata na

ação bélica que se denomina intervenção federal. Se a própria

Constituição

 não

 introduz algum limite

 — o que n ão é o

 caso

das

  Constituições

  até o

 momento

 em

 vigor

 - os

 atos coerciti-

vos  ficam inteiramente  à discrição  do  órgão encarregado  da

intervenção federal.

A

 questão político-jurídica sobre

 se a

 intervenção federal

poderia

  ser

  substituída

  por

 outro método melhor

  de

  coerção

merece, portanto,  a  mais séria análise.  Que e la , porque  pro-

vém da essência  do Estado federativo, seja absolutamente n e -

cessária,

  d e

 modo

  que

  seria incompatível

  com a

 natureza

  d o

Estado federativo qualquer outro modo

  de

  reagir

  à

 violação

da  Constituição federal,  é uma  concepção  que, à luz do ex-

posto  até aqui, devemos considerar totalmente errônea. Ela só

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90

HANS KELSEN

se

 pode apoiar sobre

  a

  idéia

  de que o

 Estado federativo seja

u m a  associação de Estados  e que portanto as relações entre a

União,

  o

 assim-chamado Estado central,

  e os

 estados-mem-

bros, sejam relações  internacionais [.zwischenstaatlich];  que

portanto estejamos

  n a

  esfera

  do

  direito internacional;  mais

ainda, sobre

  a

  idéia

  de que o

 estado, nessa esfera, isto  é,

  en-

quanto personalidade

  de

 direito internacional, seja capaz

  de

delitos,

  e que

 portanto

  a

 reação

 ao seu

 ilícito

 só

 possa acon-

tecer

  n a

  forma

  de um a to

 coercitivo dirigido "contra

  o

 esta-

do  enquanto  tal . Um  novelo  d e erros jurídicos, destinados

apenas

  a

  obstruir

  u m

 desenvolvimento técnico-jurídico,

 po r

algum motivo considerado indesejável,  c o m  argumentos

oriundos

  d a

  essência"

 do

 Estado,

 ou do

 direito,

 ou do

 direi-

to

  internacional. Mediante

  a

  análise feita anteriormente

sobre

  a

  imputação

 do

 fato ilícito, tiramos

 o

 chão

 a

 esse argu-

mento,

  e

 deixamos

 o

  caminho livre para

  que a

  questão seja

discutida como

 u m

 problema puramente técnico-jurídico.

Se

 enxergamos

 n o

 direito

 um

 instrumento técnico-social

para realizar

 o u

 manter

 u m a

 situação social desejável, através

da disposição de que a um a situação socialmente danosa  se-

j a  infligido um m al , e le então é reconhecido, essencialmen-

te ,

 como ordenamento coercitivo,

  e a

 norma jurídica, portanto,

como norma

 que

 impõe

 a

 coerção, isto

 é ,

 como norma

 q ue l i-

ga

 determinado fato material

 a u m

 conseqüente

 ato

 coercitivo

(qualificando assim como ilícito

 o

 fato condicionante).

 O

  de-

senvolvimento técnico-jurídico,

  através

 do

 qual

 o

 direito

 se er-

gue do estado primitivo, segue principalmente e m duas dire-

ções: conforme a primeira, o ato coercitivo previsto pelo orde-

namento

  se

 dirige fundamentalmente

 -

  salvo certas exceções

-

  contra

 u m

 indivíduo cuja conduta corresponde

 d e

 algum

 m o -

do ao

 fato material

 que é

 condição para

 a

 pena, seja porque essa

conduta produziu a situação social danosa d e maneira causal

e culposa, seja porque não a impediu. Trata-se d o caminho que

leva

  da

  responsabilidade

  p o r

  culpa alheia

  e

 particularmente

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

91

da coletiva, à responsabilidade individual, da responsabilida-

de

 objetiva

  à

 responsabilidade

  por

  culpa.

  A

  responsabilidade

p o r

 culpa alheia

  e,

 particularmente,

  a

 responsabilidade objeti-

va são cada  vez mais limitadas,  e a execução  do ato coerciti-

vo, originalmente deixada ao próprio indivíduo ferido em seus

interesses,

  é

 tirada deste

 e

 confiada

 a u m

  órgão específico,

  a

u m

  indivíduo

  que ,

  sendo distinto tanto

  do

  ofendido quanto

do ofensor, atua

 objetivamente

  em todos os casos d e  ilícito. A

ulterior diferenciação dessa função, q ue  concretiza  a norma

jurídica abstrata,

  na

  constatação judicial  do  lícito,  bem  como

na

 determinação

  da

 pena

  por um

 órgão,

 e

 execução dessa pena

por um outro, e mesmo  o caráter judiciário do respectivo pro-

cedimento, são situações já percebidas atualmente como natu-

rais,

 no

 âmbito

 d o

 direito interno. Quando

  se

 trata

 d e

 atos coer-

citivos menos sensíveis, como pena

 e

 execução administrativa,

parece-nos necessária hoje pelo menos  u m a  jurisdição  que

controle  o  procedimento administrativo após esgotados  o s

meios jurídicos ordinários.

Se no s

 aproximamos

 do

 problema

  - que

 deve

  ser

 resol-

vido com a intervenção federal - com essas exigências políti-

co-jurídicas  de  validade absolutamente geral  porque liga-

das à

 técnica

  de

  todo

  o

 direito,

 não

  limitadas,

 por sua

 nature-

za, a

 setores específicos como

  o

 direito civil, penal

  ou

  admi-

nistrativo,  não se faz necessária  -  após  o que se  disse acima

—  qualquer comprovação pormenorizada  de que ta l solução

é

  tecnicamente atrasada,

  e já não

  corresponde

  a

 nosso senso

de

 direito.

 N ã o

 apenas

 e

 talvez

 não

 tanto porque

 a

 intervenção

federal representa  u m  caso  d e  responsabilidade coletiva  e

objetiva, pois justamente nesse ponto u m a  tentativa  de justi-

ficá-la

 não

 parece totalmente impossível. Onde

  o

 sentimento

d a

  singularidade

  e

  especialidade

  do

  Estado ainda

  é

  muito

forte n os  indivíduos  que  formam o estado-membro,  o senti-

mento  de justiça,  n a  medida  em que se trate  de relações  da

comunidade

 com o

 exterior, pode

 de

 fato

 ter

 ainda

 um

 caráter

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92

HANSKELSEN

coletivo,  e não um caráter marcadamente individual. Talvez

se queira  —

 como podemos observar ainda mais claramente

na

 esfera

  de

 relações interestatais

  da

  comunidade

  de

 direito

internacional  e m  geral  - ver  punido  o  ilícito cometido  por

u m

  membro

  ou

  certos membros contra outros Estados

  não

naqueles mesmos membros,

 mas s im, se

 tanto,

 de

 preferência

em todos  os membros.  Nã o se pode  no entanto negar  que se

trata

  aí

 apenas

  de

 restos

 de

 concepções jurídicas

  não de

 todo

superadas,  e que  justamente  n o  Estado federativo  o  senti-

mento

 q u e

 liga

 o

 indivíduo

 à

 comunidade parcial

  é

 paralisa-

do

  pelo sentimento produzido pela filiação

  à

  comunidade

total; observe-se  que a  legitimidade desse momento senti-

mental como medida

  de

  avaliação político-jurídica talvez

ainda esteja  por ser  demonstrada.  A  intervenção federal  é

particularmente insatisfatória sobretudo quando  - o que de

fato

  é a

  regra

  - a

  instância incumbida

  de

  constatar

  o

  fato

material ilícito

 que a

 condiciona

 carece

  do

 caráter

  da

 objeti-

vidade judicial.  Se, em virtude das particularidades da situa-

ção

  politico-psíquica, talvez ainda possamos eventualmente

pôr em

  dúvida

  a

  necessidade

  de

  eliminação

  d a

  intervenção

federal  e sua  substituição pela responsabilidade individual

do s

 órgãos

 que

 violam culposamente  o ordenamento federal,

ainda assim

  não nos

 podemos fechar,

 em

 hipótese alguma,

  à

exigência de qu e a pena prevista pela Constituição para o ca-

so de  determinadas violações jurídicas  não deva  ser  aplica-

da sem

 constatação

 objetiva

  do

 fato ilícito

 por um

 órgão

 que

atue o quanto possível como tribunal.  Tal exigência poderia

no mínimo  ser contraposta à tão cara referência que se faz à

natureza

  d o

  Estado

  e

  especialmente

  do

  Estado federativo.

De

 fato,

 o

  passo decisivo

  no

 plano técnico-jurídico,

 ou

 seja,

retirar  d o  estado  q u e  comete  um  ilícito  a  decisão sobre  sua

ocorrência,

 esse passo oriundo

  do

  direito internacional

  ge-

ra l

,

 essa reviravolta

 centralista,  j á é

 concretizado pelo prin-

cípio

 d o

 Estado federativo enquanto

 tal. A

 única questão

 pos-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

93

sível

 é

 sobre

 s e o

 órgão convocado

 a

 decidir deve

 ter as

 garan-

tias d a objetividade judicial  ou não.

 E a

 idéia

  do

 Estado fede-

rativo

  ê

 justamente

  que a

 existência, isto

  é, a

 esfera jurídica

dos  estados-membros, seja garantida,  bem  como  a do assim-

chamado Estado central (federal).  A

 objetividade

 d a

  instân-

cia

  convocada

  a

 decidir sobre

  o

 fato ilícito

  que

  condiciona

  a

intervenção federal só pode valer como garantia desse princí-

pio que

 nasce

 da

 idéia

  de

 Estado federativo

13

.

 A

 apuração

 do

fato ilícito através  de um  tribunal independente  é, por  certo,

plenamente compatível

  em

  teoria

  com a

  intervenção federal

n a

  forma

 de um a

 ação militar, portanto

  co m u m a

 responsabi-

lidade coletiva e objetiva. N o entanto,  não se pode negar que

se o

 fato ilícito

 é

 apurado

 n o

 curso

 de um

 processo

 judiciário

e se portanto é preciso verificar se ocorreu violação d a Cons-

tituição federal,

 e

 quais

 são

 precisamente

  os

 titulares

 dos ór-

gãos

  que a

  cometeram, torna-se difícil responsabilizar

  ou-

tros indivíduos além desses,  e  mesmo isso apenas quando

houver conduta culposa.

 O

 procedimento judiciário deve

 rom-

per a

 ficção

  de que é um

  "Estado"

  que

 viola

  a

 Constituição,

eliminando assim

  a

 justificativa para

  que

  súditos inocentes

devam sofrer

 p o r

 esse motivo.

O  órgão encarregado  d e  apurar  se um  estado-membro

violou

  os

 deveres

  que lhe

 impõe

  a

 Constituição será sempre

— com  respeito  a sua função  — u m  órgão da  Constituição  to -

tal,

  mesmo quando

  o

 titular

  do

 órgão atuar

  em  outros casos

apenas como órgão

 da

  União, isto

 é,

 como entidade parcial.

Trata-se pois

  d e u m a

 função regulada pela Constituição

  to -

tal,

 para

  sua

  defesa.

  A

  exigência

  da

  objetividade desse

  ór-

gão, porém, significa  que sua titularidade não pode  ser con-

13. Cf. a

 respeito

  o m e u

  ensaio "Verf assungs-und Verwaltvingsgerichts-

barkeit  i m  Dienste  d e s  Bundesstaates  u s w" . ( " A  jurisdição constitucional  e

administrativa

  a

 serviço

  d o

 Estado federativo, etc."),

  in

 Zeitschriftfíir Schweize-

risches Rechi, Neue Folge,  vo l . LX I1, pp. 173 ss .

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

95

pela Constituição total,  ou violar, dentro dos  limites de com -

petência,

  as

 disposições constitucionais relativas

  ao

 conteú-

do das

  leis. Tanto

  u m a

  quanto

  a

 outra devem poder

  ser cas-

sadas pela instância objetiva estabelecida para  a  defesa  da

Constituição total;  e  assim como  os  ministros  do  estado-

membro  qu e  assinam  a lei e são por ela  responsáveis,  tam-

bém os

  ministros federais devem poder

  ser

  destituídos

  por

esse tribunal.

V.

Se examinamos a Constituição do Reich  alemão à luz dos

princípios desenvolvidos acima, vemos  que ela não oferece

u m

 resultado satisfatório

 no

 plano técnico-jurídico;

 e

 isso

 em

vários sentidos: seja

 c om

 respeito

 à

 questão

  da

 apuração

 ju -

diciária  do  ilícito, seja  em relação  à forma  do ato coercitivo

correspondente  ao  ilicito, seja, enfim, d o  ponto  de  vista  da

paridade entre União

 [Reich]

 e

 estados-membros

 [Lãnder]

 que

o

  princípio

  do

 Estado federativo requer.

Quanto  ao primeiro ponto, estamos ante  u m  defeito re-

dacional  que  produz  u m a  falta  de  clareza bastante grave.

Depois

  que os

 arts.

  13 e 15

 prevêem

  a

 possibilidade

  de que

determinadas controvérsias sejam decididas através

  do  Tri-

bunal Federal  de Justiça [Staatsgerichtshof  ], o art. 19 esta-

belece  em  linhas bastante gerais  que  sobre "controvérsias

de

 natureza não-privada" entre

  u m

  estado

  e o

 Reich,

  desde

qu e

 outra corte

 n ã o

 seja competente, deve decidir

  - por pro-

vocação  de uma das partes — o Tribunal Federal,  e que a sua

decisão deve  ser  executada pelo presidente  do  Reich.  U m a

vez que o Reich  -  enquanto entidade parcial  - tem  tanto  in-

teresse

  em que um

  estado cumpra

  os

 deveres

  que lhe

  impõe

o

 ordenamento total quanto

  um

 estado

  tem

 interesse

  em qu e

o  Reich  -  enquanto entidade parcial  - não  viole  o  ordena-

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96

líANSKELSEhi

mento total, qualquer violação desse tipo pode apresentar-

se

 como "controvérsia entre estado

 e

 Reich'''. Naturalmente,

também seria possível deixar

  d e

  tratar

  a

  inobservância

  da

Constituição total  p or  parte  do s  órgãos federais (d o

 Reich)

da  mesma forma como  um  litigio entre Reich  e  estado,  to -

mando

  p or

  base assim

  um

  princípio diferente

  d o

 princípio

processual civil,

  que usa

 como alavanca

 o

 interesse  das par-

tes.

  E m  todo caso, tanto  o Tribunal Federal quanto  o presi-

dente

 d o

 Reich,

  que

 executa suas decisões, aparecem, segun-

do o art . 19,

 como órgãos

  da

 Constituição  total.  Sentença

  e

execução poderiam

 -

 assim parece

 à

 primeira vista

 -

  dirigir-

se  contra ambas  as  entidades parciais, tanto contra  o

  Reich

quanto contra

  o

 estado;

  e a

  execução coercitiva

  só

  poderia

acontecer

 co m

 base numa decisão judiciária

 que

 constatasse

o fato ilícito.  O art. 19, porém,  não  está sozinho. Evidente-

mente,  sem que se tivesse consciência  de  todo  o alcance  do

teor adotado

  no art . 19,

 formulou-se

  o art . 48-1, o

 qual,

  p a -

ra

 certos casos

 j á

  tratados

  no art. 19,

 vale dizer

  o

 não-cum-

primento

  de um

  dever imposto

  ao

  estado, confia

  ao

  presi-

dente  d o

 Reich

  a execução contra  o estado, porém  sem uma

referência clara  ao procedimento prescrito  no art. 19.

  O s

dois artigos

  são, por

  seus teores, inconciliáveis. Assim,

  co-

m o  acontece  co m  freqüência em  erros redacionais,  há

  duas

possibilidades

  de

  interpretação:

  ou o art. 19 restringe  o art.

48-1 , ou

  este último restringe

  o

  primeiro. Diante dessa

  si-

tuação,

  não é de

 admirar

  que

  ambas

  as

  interpretações sejam

defendidas

  e que

  justamente

  os

  dois maiores especialistas

em  direito público  se contradigam  a respeito. Triepel

14

 afir-

ma que o

 presidente

  do

 Reich

  n ã o

 pode ordenar

  a

 execução

do art . 48

  antes

  que a

  corte competente tenha constatado

validamente,  de acordo  com os arts.  19, 15 ou 13, a existên-

14 . TRJEPEL, Streiiigkei/en zwischen Reich  un d  Lõndem  ("Confli tos entre

Reich

  e

 estados"),

 Feslgabe Jiir Wilhelm Kahl,

  Tübingen,

  1923 , pp . 61 ss .

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

97

cia da

 precondição estabelecida

 no art. 48*.

 Esta solução seria

sem

 dúvida

 a

 mais perfeita

 do

 ponto

 de

 vista técnico-jurídico,

*  Como  o art. 48 da Constituição  d e  Weimar passa  a ser  freqüentemen-

te  referido nestas páginas, parece útit reproduzi-lo:

" S e u m   estado  n ã o  cumpre  o s  deveres  q u e l h e  incumbem  p or  força  da

Constituição  o u d a s  leis  d o

  Reich,

  o  presidente  d o

  Reich

  pode obrigá-lo  c o m

ajuda  d a  força armada.

Achando-se

  a

  segurança

  e a

  ordem públicas gravemente perturbadas

 o u

comprometidas,  o  presidente  d o

  Reich

  pode tomar  a s medidas para  s e u  resta-

belecimento,

  e

  havendo necessidade pode valer-se

  d a

 força armada. Para isso,

pode suspender parcial

  o u

  totalmente

  o

  exercício

  d o s

  direitos fundamentais

garantidos  n o s  arts.  114 , 115 , 117 , 118 , 123 , 124 e 153 .

O

  presidente

  d o  Reich

  deve

  dar

  imediato conhecimento,

  ao  Reichsíag,

d e  qualquer medida adotada  c o m  base  n as  cláusulas  1 e 2  deste artigo. Essas

medidas deverão

  ser

  ab-rogadas

  p or

  determinação

  d o Reichsíag.

Havendo perigo  n a  demora, pode  o  governo  d e u m  estado,  c o m  relação

a o s e u

  território, adotar medidas provisórias

  ta l

  como indicado

  n a

  cláusula

segunda. Essas medidas devem  ser ab-rogadas p or  determinação  d o presiden-

te do Reich  ou d o Reichsíag.

L ei d o

  Reich

  trará dis pos ições neces sárias ness a matéria."

F o i

  invocando esse artigo

  q u e o

  presidente

  d o

  Reich

  pôs-se

  a

 editar

  inú-

meros decretos  c o m  força  de iei  (

Notverordnungen

), assemelhados,  n o  caso,

a  medidas provisórias, visto  q u e  poderiam  s e r  desautorizados pelo Parla-

mento. Escrevendo

  e m 1 9 3 1

  sobre essa interpretação

 e

 prática abusivas, Kel sen

prevê  o  colapso  d a  Constituição,  q u e  viria dois anos depois  ( v e r  "Quem

deve  ser o  guardião  d a Constituição").  N o  texto sobre  " O  controle judicial  d e

constitucionalidade", Kels en afirma  q u e " o u so  impróprio  do art. 48 da Cons-

tituição  d e  Weimar  [ . . . ] foi o  meio pelo qual  s e  destruiu  o caráter democráti-

co da  República alemã  e s e  preparou  o  advento  d o  regime nacional-socialis-

ta " (verp.  3 0 6 deste volume, nota  2 ) . Friedrich Müller informa q u e " o primei-

ro

  presidente, Friedrich Ebert, emitiu

  n o s

  anos

  d e

  1919-25 nada menos

  d e

163 decretos emergenciais. Essa tendência  fo i  retomada  e aguçada  a partir d a

crise econômica mundial  de 1929 { . . . ]  pode-se afirmar  q u e a partir  de 1930

u m   trabalho parlamentar eficaz deixara  d e  existir  n o  nível  d o

  Reich

  e  tinha

sido substituído  p or u m  regime descaradamente presidencialista"  ( " A s  medi-

d a s

  provisórias

  n o

  Brasil diante

  d o

  pano

  d e

  fundo

  d as

  experiências alemãs".

R i o d e  Janeiro,  17Í  Conferência Nacional  d a O A B , 1999 , c f .  Eros Roberto

Gran e  Willis  S. Guerra Filho (orgs.). Direito constitucional (estudos

  em

  home-

nagem

  a

  Paulo Bonavides

),

  S â o

  Paulo, Malheiros Editores,

  2 0 0 1 , p . 3 4 1 ) .

(N. do R. T . )

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8/17/2019 KELSEN Hans. Jurisdicao Constitucional

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98

HANSKELSEN

podendo  se  apoiar  no  teor amplo  do art. 19. Anschütz

15

,  ao

contrário,

  diz que

  segundo

  o art. 48 o

  presidente

  d o  Reich,

mesmo

 sem

 decisão anterior

 d a

 Corte competente, deve deci-

dir se um

  estado viola

  ou não o seu

  dever, estando conse-

qüentemente autorizado

  a

  proceder

  à

  intervenção

  do

 Reich

contra

 o

 estado

 que

 tenha agido ilegalmente. Essa concepção

poderia argüir

  em seu

  favor

  que se o art . 48

  tivesse deseja-

do contemplar a intervenção do Reich apenas como execução

material  de uma  decisão judiciária, deveria  de  algum modo

tê-lo enunciado expressamente. Pois

  o art . 48-1 não diz res-

peito apenas

 à

 intervenção

  enquanto

 tal , m as

 fala também

 d a

sua

 precondição, isto

 é, que um

  estado

  n ã o

  cumpra

  os

  deve-

res de que

 está incumbido segundo

  a

 Constituição

  ou as

 leis

do  Reich.  Isso porém  - no  plano  do  direito positivo  - só

pode significar  o mesmo  que :  quando  o  órgão estabelecido

para tanto pelo ordenamento jurídico constatar validamente

que um

 estado

 não

 cumpre

 o s

 deveres

  que lhe são

  impostos.

Se

 partimos

 do

 pressuposto

 de que o art . 48-1 não é

 limitado

pelo  art. 19 - e tal  limitação  n ã o  pode  ser  depreendida  do

teor literal  do art. 48 -  então cabe apenas  ao próprio presi-

dente

  do

  Reich,  porque deve decidir sobre

  a

  intervenção,

decidir também sobre

 a

 questão prévia:

 a

 existência

 de

 ilícito.

Tal

  interpretação,-permitida pelo teor

 do ar t . 48 ,

 significaria

porém

 que a

 Constituição

 de

  Weimar estaria, neste ponto

  im -

portante, tecnicamente atrás

  d a

  Constituição

  de

  Bismarck-,

pois, nesta,

 o art. 19

 entrega

 a

 decisão sobre

 a

 intervenção

 d o

Reich  ao Conselho Federal, ou seja, a um órgão cuja composi-

ção

 garante

 a

 objetividade

 n u m

 grau superior

 ao qu e se

 pode

esperar

  d o

  presidente

  do

  Reich,

  que é

  antes

  de

  mais nada

órgão

  do

  Reich  (enquanto entidade parcial).

  A o

  argumento

que

  Anschütz apresenta

  em

  favor

  de sua

  tese

  e

  contra

  a de

Triepel, isto

 é, que

 esta seria

 em

 realidade

  u m a

 concepção

 de

15.  Anschütz,  o p .  cit . ,pp.  168 ss .

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

99

direito privado

 e

 direito processual civil

 que se dá

 ares

 de

 tese

de direito público" e qu e simplesmente não se adapta à rela-

ção de

  direito público

  do

 Reich

  co m

 seus membros,

  os

  esta-

dos , não é

  possível aderir

  po r

  motivos desenvolvidos

  na

parte geral deste ensaio.

 A

 exigência

 de que o

 fato ilícito

 que

fundamenta

  o ato

  coercitivo seja apurado

  por um

  tribunal

objetivo

 é

 postulado técnico-jurídico

 de

 modo nenhum váli-

do

 apenas para

  o

 direito civil,

 m a s

 interessa

  a

 toda

  a

 área

  d o

direito.

 A

 divergência entre Triepel

 e

 Anschütz

 não

 pode

  ser

decidida

  de

 forma unívoca

  em

  favor

  de um ou de

  outro.

  D o

ponto

 d e

 vista

 da

 interpretação

 científica,

  devemos admitir

 que

ambas

 as

 opiniões

 são

 possíveis. Decerto, Anschütz

 não pa-

rece ser muito conseqüente quando,  ao interpretar o art. 48-1,

no

 mínimo leva

 em

 consideração

 o art. 19, n a

 medida

 em que

afirma que ao estado contra  o qual, após  a decisão  do presi-

dente, deve ser dirigida a intervenção do Reich, cabe apelo ao

Tribunal Federal; q u e esse recurso n ã o possui efeito suspensi-

vo, mas que o presidente,  e m  caso  de decisão adversa, deve

suspender

 a

 intervenção. Isto porque,

 n o

 caso

 de o

 estado

 re-

correr ao Tribunal Federal contra a decisão do presidente, es-

taríamos diante de um a  "controvérsia d e cunho não-privado"

entre o

 Reich

  e o estado, e aí se aplicaria  o art. 19. Esse artigo

porém

  -

  assim temos

  que

 supor

  -

  autoriza

  a

  provocação

  do

Tribunal Federal

 n ão

 apenas

 na via

 recursal, portanto

 não ape-

nas

 contra

 a decisão  de um

 litígio

 e m

 primeira instância,

 ma s

sim

 instituindo

 o

 Tribunal Federal como

 primeira

  instância

 pa-

ra a

 decisão

 do

 litígio.

 E não se

 pode negar

  que tal

 litígio

  de

cunho não-privado

  j á

  existe

 antes  da

  decisão

  do

 presidente

do Reich,

 como Triepel acertadamente considera. Esse litigio

é

 decidido

  -

  segundo Anschütz apenas

  em

  primeira instân-

cia -

  pelo presidente, quando este entende

  que um

  estado

não

 cumpriu seus deveres;

  mas, se o art . 19

 pode realmente

ser

  invocado para

  o

  conflito

  a que se

  refere

  o art . 48, não

compreende

  por que

  isto somente deveria

  ser

  possível após

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100

HANS KELSEN

u m a decisão do presidente; visto qu e, se o apelo ao Tribunal

Federal

  fo i

  feito

  e

  pode

  ser

  feito

 j á  antes  de tal

  decisão,

  a

intervenção

 do

 Reich

  não é

 possível

 com

 base apenas

 na sen-

tença

  do

  Tribunal Federal.

  Não se

 pode certamente admitir

que a Constituição do Reich  tenha desejado instituir duas  ins-

tâncias independentes uma da outra para a decisão do mesmo

litígio. Porém

  o

 preceito

  de que a

 decisão

  do

 presidente

  de-

ve

 ceder quando intervém

  um a

 decisão contrária

 do

 Tribunal

Federal

  n ã o

  pode

  - na

  falta

  de

  tuna disposição expressa

  da

Constituição  - ser deduzido p o r meio d a  simples interpreta-

ção. Se o art . 48-1 não

 significa

  que a

 violação

  ali

 transcri-

ta - que

  sempre

  se

  expressará como

  u m a

  discrepância

  d e

opiniões sobre aquilo

  a que um

  estado está obrigado

  -

  não

pode  absolutamente

  ser

  subsumido

  no art. 19,

 então nada

  se

opõe à tese de Triepel.  Se porém acreditamos poder interpre-

tar o art. 48-1 no

  sentido

 de que

 cabe

 ao

 presidente

 a

 decisão

sobre

  se um

  estado violou

  ou não seu

  dever,

  não há

  razão

suficiente para

  dar a tal

  decisão

  o

 caráter

  de uma

 mera

  sen-

tença

  d e

 primeira instância, anulável pelo Tribunal Federal.

Enquanto

 o art. 48-1

 prevê apenas

  o

 caso

 de que um es-

tado

  não

  cumpra

  os

  deveres

  que a

 Constituição

  ou as

  leis

  do

Reich

  lh e

 impõem, abarcando

 aí

 também

 o

 caso

 d e

 não-cum-

primento  d e deveres p o r parte  de  órgãos indiretos  do Reich,

o art. 19, do

 mesmo modo

 que os

 arts.

 13 e 15,

 trata

 Reich  e es-

tado

 de

 forma absolutamente paritária.

 N as

 controvérsias entre

Reich

  e

 estado

 - e se há um a

 controvérsia jurídica,

 ela

 pode

 só

tratar

 da

 questão sobre

 se o

 Reich

  ou o

 estado violou

 a s

 normas

que os

 vinculam

  - a

 corte competente deve decidir

 por pro-

vocação  de uma das partes litigantes, de modo que a decisão

pode dirigir-se tanto contra o Reich como contra u m estado, e

o

 presidente

 do Reich

 deve executá-la,

 n ão

 importando contra

quem.

 N o

 entanto, defende-se reiteradamente

 a

 opinião

 de que

a

 execução

 de uma

 decisão

 d o

 Tribunal Federal contra

 o Reich

estaria excluída

  com

 base

  no art. 19.

 Triepel porém

  a

 consi-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

101

dera possível e m certas circunstâncias

16

. Também nesse ponto

a Constituição do Reich  alemão n ã o possui a clareza desejá-

vel,

 sobretudo porque carece

  de uma

 definição mais precisa

da expressão, bastante geral e ambígua, "execução da sentença"

[Urteilsvollstreckung].  Apenas

  um

  tipo  de execução  é espe-

cificado em detalhe: a execução

  do

  Reich [Reichsexekution]

contra  u m  estado,  de  acordo  com o ar t . 48-1.  Esta porém

não é inequivocamente definida como a execução de uma

 de-

cisão  do Tribunal Federal.  Se a discutível instrução  do art. 19

deve ainda oferecer u m a possibilidade de aplicação diferente

da

 execução

 d e u m a

 decisão

 do

 Tribunal Federal

 n a

 forma

 de

intervenção  do  Reich  ordenada pelo presidente contra  um

estado - e justamente essa última possibilidade é duvidosa, p e -

lo exposto anteriormente — então teremos mesmo que aceitar

o parecer de Triepel, pelo qual com a disposição  do art. 19-2,

que confia  ao presidente  a execução  da decisão  do Tribunal

Federal, conferem-se a o presidente plenos poderes para  ado -

tar e  ordenar todas  as  medidas necessárias  à  efetivação  do

conteúdo

  da

 decisão.

  O

 presidente, assim,

 é não

 apenas auto-

rizado,  m as  também obrigado,  a  ab-rogar disposições  e de-

cretos próprios e d e outros órgãos do

 Reich,

  e até mesmo leis

do

 Reich,

 caso este tenha sido condenado a eliminá-las". Tal

interpretação certamente resultaria de todo o espírito que sus-

tenta  a cláusula  lf do art. 19, que  trata

 Reich

  e estado como

partes  de  mesmo nível, acima  das  quais, como autoridade

decisória, está o Tribunal Federal. É evidente que a Constitui-

ção aí

  considera

  o

  Reich

  e o s

  estados como entidades

  par -

ciais coordenadas, o Tribunal Federal e o presidente do Reich,

porém, como órgãos  da  entidade total;  um a  concepção  que

infelizmente  não é  mantida quando  o Reich  é  simplesmente

identificado  com a  entidade total,  e  assim presumido como

superior  aos estados. A interpretação de Triepel portanto  cer-

16 .  TRIEPEL,

  o p . c i t . , p .

  1 1 1 .

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102

HANSKELSEN

tamente corresponde mais

 à

 idéia

 do

 Estado federativo

 do que

a que  considera como simplesmente impossível  u m a  inter-

venção contra

  o

 Reich.

  N ão

 obstante,

 não se

 pode encobrir

 a s

dificuldades no  caminho de tal  interpretação. È preciso antes

d e

 mais nada observar

  que o

 caso referido

 p o r

  Triepel

  - no

qual

 a

 decisão

 d o

 Tribunal Federal determina

 a ab-rogação  de

u m a  norma instituída  por um órgão d o

 Reich,

  e se a ab-roga-

ção não se dá

  pelo órgão competente

  noutros casos  e por-

tanto diretamente contemplado n a decisão,  t e m q u e aconte-

cer

 através

 do

 presidente

 do Reich  - não

 pode

  ser

 visto como

execução

  de um a

 decisão

  no

 sentido estrito

  da

 palavra. Toda

sentença  d e acolhimento  - qu e não seja mera constatação de

u m a

 relação jurídica

 e

 portanto

 não

 demande execução

 — dis-

ciplina  a  obrigação  do réu a um a  determinada conduta, esta-

belecendo porém

  ao

 mesmo tempo, para

  o

  caso

  de

  inobser-

vância,

  a

  obrigação

  de um

  órgão público

  de

  proceder, seja

mediante a exigência de uma reparação, seja mediante execu-

ção

 direta, contra

  a

 parte

  que tem

  conduta contrária

  à

 deci-

são. A

  conduta dessa parte

  d e

  acordo

  com a

  decisão

  não é

execução,  m as s im cumprimento  da

 decisão.

 D o

 mesmo

 m o -

do a alternativa denominada exigência  de reparação,  que no

seu

  posterior desenvolvimento pode conduzir

  a uma ve r -

dadeira

  execução  de

  sentença contra

  a

  parte

  q u e

  viola

  seu

dever. Execução  de sentença, n o sentido próprio e estrito d a

expressão,

  é

 somente

 o ato  coercitivo,

  dirigido contra

  a

 parte

que se conduz contrariamente à sentença. Se uma decisão do

Tribunal Federal obriga

 o

 Reich

  a

 ab-rogar

 um a lei ou um de-

creto

 e se - no

 caso

 de que o

 parlamento

 ou o

 governo

 d o Reich

n ão editem, n o âmbito d as respectivas competências, a lei ou

decreto ab-rogatório

 — a

 competência para esses atos

 é,

 nessas

circunstâncias, transferida para  o presidente. Portanto, não se

pode deduzir

 sem

 mais

 nem

 menos

 tal devolução  de competên-

cia a partir da disposição q ue obriga o presidente a "executar"

a

  sentença

  do

 Tribunal Federal.

  Uma ta l

  interpretação seria

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL 103

mais factível se a Constituição tivesse incluído expressamen-

te no

 poder discricionário

  do

 presidente

  do

 Reich  a faculdade

de

 definir

  a

 modalidade

  de

 execução

  da

 sentença.

  Neste caso

se poderia, c o m mais desembaraço do que o consentido pela

acanhada disposição  do art. 19-2,  aceitar  que o presidente,  a

título  de  execução  de sentença, pode exigir também  uma re-

paração — o que equivaleria a um a devolução de competência.

Mas a disposição do art. 19-2 também  é bastante lacunosa  no

que diz respeito à execução de sentença, no sentido estrito d e

a to coercitivo dirigido contra a parte que se conduz contraria-

mente

 à

 sentença. Também esse

 ato

 deveria estar definido

 d e

modo geral, isto

  é, na lei que o

  tribunal deve aplicar

  em sua

decisão.

 E se a

 configuração desse

 ato

 coercitivo deve

 ser dei-

xada

 ao

 próprio poder discricionário

 d o

 tribunal

 ou de um o u-

tro

 órgão, qual seja

 o

 presidente

 d o Reich  que

 executa

 a

 senten-

ça, tal

 delegação

 -

  extremamente insólita

 -

  deveria

 n a

 verdade

de algum modo estar expressa na lei. A lei propriamente  de-

fine apenas u m único ato coercitivo: aquele dirigido contra u m

estado,

 a

 execução

 d o

 Reich,

  cuja conexão

 com a

 instrução

 d e

execução  do art. 19-2 é, como j á  mencionamos, duvidosa.

Enquanto  o  "cumprimento"  d e u m a  sentença dirigida

contra  o Reich  seria possível  sem  problemas  —  seja através

do órgão competente primário, seja d o secundário - na medi-

da em que a Constituição contém  u m a disposição  a respeito

ou na  medida  em que se poderia, como Triepel, interpretar a

cláusula  2Í do art. 19 nesse sentido, u m a "execução", no sen-

tido estrito

 d a

 palavra,

 de

 sentença contra

 o

 Reich,

  parece

 ser

de

  todo impossível. Isso

  n ão

 porque

  a

 entidade total carece

de

 órgãos independentes

 em que o

 titular

 n ã o

 seja

 a o

 mesmo

tempo tanto

 do Reich

  quanto

 de uma

 entidade parcial,

 mas so-

bretudo porque

 não tem

 sentido

 um a

 execução contra

 o Reich

semelhante

  a uma

  execução

  do Reich

  contra

  u m

  estado,

  ou

seja,

 n o

  sentido

 de um a

 responsabilidade coletiva

 e

 objetiva.

C om

 efeito, como

  fo i

 demonstrado,

  tal ato não

 pode absolu-

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104

HANS KELSEN

lamente

  ser, em

  contradição

  com a

  terminologia, dirigido

contra  o

 Reich

  "enquanto  tal , mas sim contra  os indivíduos

que compõem  o

 Reich.

  E são justamente

 esses mesmos

  indi-

víduos

  q u e

  formam

  a

  entidade

  total  da

  qual

  - e

  somente

  da

qual - se pode fazer proceder tal execução. O s estados-mem-

bros

 são

 entidades

 parciais  não

 apenas

 n o

 mesmo sentido

 em

que o Reich  também é apenas entidade parcial, ou seja, no se n-

tido

 de qu e o

 ordenamento

 que

 constitui essa entidade

 é com -

petente apenas e m relação  a determinadas matérias,  no sen-

tido

 de ser o

 âmbito

 d e

 validade desse ordenamento limitado

no

 plano objetivo,

  e portanto esse ordenamento, e m virtude da

limitação  de seu  âmbito objetivo  de validade,  ser um

 ordena-

mento parcial;  o s ordenamentos parciais q u e  constituem  os

estados-membros

 são

 limitados também

 n o

 plano

 territorial

e

 pessoal,

  ou seja, a apenas u m a parte do território e da popu-

lação. Isso não  se verifica na entidade parcial  do Reich,  cujo

âmbito

 d e

 validade territorial

 e

 pessoal coincide

 com o da en-

tidade total. U m a execução pela qual a vontade d a entidade to-

ta l

 seja coercitivamente realizada contra

 u m a

 entidade parcial,

imputando-se responsabilidade coletiva e objetiva a um a par -

te dos

 indivíduos

 q ue

 compõem

 a

 totalidade, ainda

 é de

 certo

modo pensável como racional. O limite é ultrapassado com a

idéia

 de uma

 "execução contra

 o Reich :  o

 sujeito

 da

 execução

aí não se deixaria separar do seu objeto.

Isso porém

 n ã o

 significa absolutamente

 q u e a paridade

entre Reich

  e

 estado-membro

  não seja tecnicamente realizá-

vel na  execução  de  sentenças contra ambos.  O  problema  é

imediatamente solucionado quando

  se

 substituí

  a

 responsa-

bilidade coletiva e objetiva pela responsabilidade individual

e  subjetiva  dos  órgãos  do

 Reich

  que  violam  o  ordenamento

total,

  e tão

  logo

  se

 institui, como instância para averiguação

da  violação  e aplicação  da  sanção, um  tribunal objetivo que

não seja apenas órgão da Constituição total no tocante à fun-

ção,

  m a s  seja também,  c o m  respeito  à

 composição,

  órgão

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

105

comum

  do(s)

  estado(s)-membro(s)

  e d o Reich

  enquanto

  en-

tidades parciais;

  e

 quando

  se

 confia

  a

 execução

  da

  senten-

ça a um

 órgão constituído dessa forma,

 ou

 pelo menos

  ana-

logamente,  que -  independente  d e  órgãos  de  entidade  par-

cial, e especialmente  do governo do

 Reich

  -  esteja e m  condi-

ções de executá-la, inclusive eventualmente contra membros

do próprio governo d o

 Reich,

  assim como  dos governos  dos

estados.

V I .

A  Constituição austríaca  de lf de outubro  de 1920 não

prevê absolutamente u m a  intervenção federal n o sentido es-

trito  da  expressão,  ta l  como regulada  no art . 48 da  Consti-

tuição do Reich  alemão

17

.  O que deve acontecer então, quan-

do um   estado n ã o  cumpre  o s deveres  que lhe  cabem segun-

do a Constituição  o u  segundo  as  leis editadas  co m  base  na

Constituição?

E m primeiro lugar, a violação d a Constituição federal por

parte de um estado pode  se dar mediante um a

  le i

 estadual.  A

Constituição federal contém disposições bastante amplas, tanto

no que  concerne à forma  da legislação estadual  - o seu proce-

dimento quanto n o referente ao seu conteúdo;  com relação

a

  este devem-se considerar sobretudo

  as  disposições sobre  a

1 7 . Uma v e z q u e a Constituição austríaca  fo i adotada  c o m  base  n o s p ro -

jetos

  q u e

  elaborei

  p o r

  incumbência

  d o

  governo, posso afirmar

 q u e a

  diferencia-

ç ã o  entre essa Constituição  e a do Reich  alem io quanto  à questão  d a  interven-

ç ã o  federal  se deu de mane ira consciente.  D e  fato, a  situação politico-psíquica

determinante para

  a

  solução técnico-jurídica

  d o

  problema,

  tal

  como indicado

neste ensaio,  e ra na  Áustria diversa  d a  existente  n o  Reich  alemão.  O s  estados

federados austríacos

  n ã o

  eram estados outrora independentes,

  ma s s im p r o -

víncias autônomas.  A  consciência  d a  filiação a ura estado  [Lartd]  na Áustria  -

apesar  d o  crescente ânimo federalista desde  a  queda  d o  Império  - n a  verdade

nunca

  f o i t ã o

  forte quanto

  o

  sentimento

  d e

  filiação

  a o

  todo

  d o

  Estado.

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106

HANS KELSEN

competência.  Toda  lei  estadual  inconstitucional pode  ser im-

pugnada pelo govemo

 federal

  junto

 à

 Corte Constitucional,

 a

quem compete anulá-la. Para

 que a

 anulação entre

 em

  vigor,

 é

necessário que seja publicada  no  Diário Oficial  do estado. A

diferença técnico-jurídica determinante em relação à Consti-

tuição alemã consiste apenas

  em que a

 Corte Constitucional

n ã o

 pTonuncia para

  o

  estado

  a

 obrigação

  de

 anular

  a lei in-

constitucional,  mas é a própria Corte  que, de  acordo  com a

Constituição federal, tem o poder de cassá-la; também n o fato

de que a

 Corte obriga

 diretamente  o

 chefe estadual, portan-

to um

  órgão estadual

  definido individualmente

,

  à

  imediata

publicação

 da

 anulação

 no

 Diário Oficial.

  O

 mesmo vale para

decretos  ilegais  d as  autoridades estaduais. Também aqui

existe u m direito d e impugnação d o governo federal diante d a

Corte Constitucional,

 e a

 obrigação

 -

 estabelecida diretamente

pela Constituição federal para

 as

 autoridades

 com

 competên-

cia, segundo a Constituição estadual, para editar decretos  - de

publicar

  a

  anulação decorrente

  da

 decisão

  d a

  Corte Consti-

tucional (arts.

  139 e 140 da lei

  constitucional federal).

N o s casos mencionados a té aqui,  a obrigação do estado

-  apenas  n u m sentido muito impróprio podemos falar aqui

de um

  "dever"

  d o

  estado

  -

  consiste

  em dar (ou não) a

  suas

leis

  e

  decretos

  u m

  determinado  conteúdo,

  ou em

  observar

nisso um certo procedimento, ficando à su a discrição, ou seja,

dos  seus órgãos legislativos  e  executivos,  se  leis  e  decretos

devem

  se r

  editados

  ou não. Em

 determinados casos, porém,

a

  Constituição federal estabelece para

  o

  estado

  a

  obriga-

ção de  editar leis.  N a  medida  em que à  União  é  reservada

apenqs  a  legislação sobre  os princípios,  sua  execução  por-

menorizada cabe, dentro

  do

  quadro legal federal básico,

  ao

legislador estadual. A lei federal de princípio pode até mesmo

determinar  um prazo para  a edição de  leis estaduais  de exe-

cução  (art . 15-2). Além disso, os estados estão também obri-

gados

 a

 tomar medidas

 que,

 dentro

 da sua

 esfera

 de

 atividade,

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL 107

sejam necessárias para

  a

 execução

  de  tratados internacionais

(art.  16-1).  Se a lei  estadual necessária para  a  execução  de

uma lei  federal  de  princípio  ou de um  tratado internacional

(neste último caso podem

  ser

  considerados também decretos

ou

 atos administrativos concretos

  do

  estado)

  não é

 publicada

dentro  do prazo estabelecido,  a competência para editar  a lei

de  execução  (no  segundo caso, também  as  outras medidas)

passa para

  a

  União.

 Poderíamos representar esse fato mate-

rial

  de um

  modo

  em que o

  "dever"

  do

  estado

  de

 editar

  cer-

ta s leis estaria recebendo  a sanção de perda  da competência.

N a  perspectiva  do conceito  de dever aceito aqui,  só podería-

m os

  falar

  de uma

  competência eventual

  da

  União

  e de uma

devolução

  de

 competência  em seu

  favor.

No que

  concerne

  às

  obrigações

  do

  estado

  n a

  área  exe-

cutiva  — trata-se apenas da atividade administrativa,  já que o

estado não tem qualquer competência jurisdicional -  deve-se

considerar

 e m

 primeiro lugar

 o

 âmbito

 d a administração fede-

ral

  indireta,  no  qual  se  encontram  os  casos principais  que,

segundo o art . 48 da Constituição alemã, representam a con-

dição para

 a

 intervenção

 do Reich.

  Segundo

 a

 Constituição

 fe-

deral austríaca,

 a

 administração federal indireta

 não se

 verifica

sempre que as leis federais devem  ser executadas p o r autori-

dades estaduais, como n o Reich  alemão, mas sim apenas quan-

do

 leis federais,

 cuja execução seja expressamente atribuída

pela Constituição

  à

  competência federal

, devam

  ser

 executa-

das no

  âmbito

  dos

  estados

  não po r

  autoridades

  d a

  própria

União, mas por autoridades administrativas estaduais. Há ca-

sos em que as leis federais s ão executadas pelo estado na sua

própria esfera

 de

 atividade, isto

 é ,

 enquanto administração

 es-

tadual autônoma.

 N o q u e

  concerne

  à

 administração federal

indireta p o r parte d o estado,  a Constituição federal n ão esta-

belece aqui  n em  sequer terminologicamente  u m  "dever  do

estado

" enquanto

 tal, mas sim

 exclusivamente deveres

 de cer-

to s

  indivíduos referidos

 direta

  e

 individualmente  na

  Consti-

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108

HANS KELSEN

tuição federal, os quais atuam  em outros casos como órgãos

estaduais:

  o

 chefe estadual,

  seu

 substituto

 e

 certos membros

do  governo estadual que» segundo  a lei  orgânica  de tal go-

verno,

  têm a seu

  cargo atividades

  da

  administração federal

indireta

  (art. 103). O

  chefe estadual

  não é

  apenas obrigado

pela Constituição federal  a  administrar  conforme

  a lei,

  mas

deve também executar

  o s

 decretos

 do

 governo federal,

 e par -

ticularmente suas

 instruções.

  Caso outros membros

 do

 gover-

no estadual também sejam encarregados de matérias da admi-

nistração federal indireta,

 o

 governo federal

  só

 pode lhes

  di-

rigir instruções  por  meio  do  chefe estadual. Tais órgãos  são

pessoalmente responsáveis diante  d o  govemo federal pela

observância dessas instruções, assim como pela legalidade

  de

seus atos,  e o governo federal pode fazer valer  ta l  responsa-

bilidade mediante acusação junto

  à

  Corte Constitucional.

Esta, caso constate u m a violação culposa  do direito, particu-

larmente

 a

 inobservância culposa

 d e

 ordens

 do

 govemo fede-

ral, deve proferir contra  o acusado  u m a  decisão condenató-

ria. As penas  são: a  simples constatação  da  violação come-

tida,

  a

 perda

  do

 cargo

  e,

 eventualmente, também

  a

 perda

 dos

direitos políticos. O princípio  da responsabilidade subjetiva

substituiu aqui conscientemente

 a

 responsabilidade coletiva

 e

objetiva ligada

 à

 execução federal.

N o  âmbito  da

  administração estadual autônoma

,  uma

quebra

  d a

  Constituição federal mediante

  a to

 administrativo

individual pode configurar-se como inconstitucionalidade

direta caso  tal ato administrativo do estado viole um dos d i -

reitos fundamentais

  e de

  liberdade garantidos constitucio-

nalmente. Nesse caso,  o remédio  é  dado  por um  recurso  da

parte lesada

  em seu

  direito

  à

  Corte Constitucional,

  que é

competente para cassar  n ão apenas atos ilegais  da  adminis-

tração federal

 mas  também  da  administração estadual  (art .

144). Uma vez que a

 Constituição federal

 —

 enquanto Cons-

tituição total -  exige a conformidade com a lei para toda ati-

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110

HANS KELSEN

dente a partir  da sua função. Eles são , é verdade, denomina-

dos

  tribunais

 federais,

  pois toda

  a

  atividade judiciária

  in-

clui-se  na competência  da União enquanto entidade parcial.

Porém

  a

 composição desses tribunais mostra claramente

 que

existe

  u m a

  consciência

  de seu

  caráter como instâncias

  si-

tuadas acima das entidades parciais da União e dos estados-

membros. União

 e

 estados-membros participam igualmente

da  formação  de  ambos  os  tribunais. Metade  dos  membros

d a

  Corte Constitucional

  é

  escolhida pelo Conselho Nacio-

nal, ou

 seja, pela representação

 de

 todo

 o

 povo

 d a

  federação,

e a outra metade pelo Conselho Federal,  ou seja, pela repre-

sentação  dos estados-membros  na instância legislativa  cen-

tral.

 O s

 membros

 da

 Corte Administrativa,

 é

 verdade,

 são to-

dos  nomeados pelo presidente federal  p o r  proposta  do

governo federal;

 tal

 proposta, porém, necessita

  da

 aprovação

da

 comissão principal

  do

 Conselho Nacional

  com

 relação

  a

metade dos membros, e do Conselho Federal para a outra m e-

tade. Além disso,  a Constituição prevê  que de  qualquer  se-

ção da Corte Administrativa chamada  a julgar  ato da admi-

nistração estadual deve fazer parte

  - via de

 regra

  - u m

 juiz

oriundo  do serviço judiciário  ou  administrativo desse esta-

do-membro

  (art .

  133-2).

A

 Constituição austríaca deixa claro

 o

 empenho

  em tra-

ta r  União  e  estados-membros  de  modo paritário  co m re s-

peito

 às

 garantias

  da

  constitucionalidade direta

  e

 indireta

  de

suas funções. Assim como leis

 estaduais

  inconstitucionais e

decretos

  estaduais

  ilegais podem

  ser

  impugnados pelo

  go-

vemo federal e cassados pela Corte Constitucional, também

as

  leis

 federais

  inconstitucionais

  e

 decretos

 federais

  ilegais

podem  ser  impugnados  po r  qualquer

  governo estadual

  e

cassados pela Corte. Assim como

  a

  Constituição federal

  -

enquanto Constituição total  -  obriga  o chefe estadual  a pu-

blicar

  a

  anulação

  de

  leis estaduais, também obriga

  o chan-

celer federal

  a publicar no

 Diário Oficial

  a anulação  de leis

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

111

federais ocorrida  p o r  sentença  da  Corte Constitucional;  na

anulação  de  decretos federais,  ela  obriga  o  órgão federal

competente para  sua  edição. Além disso,  a  Corte Constitu-

cional  tem a  possibilidade  de  examinar  de  oficio quanto  à

sua  constitucionalidade  e  legalidade,  e eventualmente cassar

tanto leis e decretos estaduais quanto federais, quando forem

pressupostos  de uma  decisão  sua.

O

 principio

  o

  direito federal prevalece sobre

  o

 direito

estadualque pode prejudicar muito seriamente a paridade

entre  a União  e o estado,  é  rejeitado pela Constituição  aus-

tríaca, em consciente contraste  com a Constituição do

 Reich

alemão. O direito federal deve prevalecer sobre o direito es -

tadual inconstitucional,  m a s também vice-versa. Isso, natu-

ralmente, pode valer  -  trata-se aqui apenas  de  normas jurí-

dicas gerais, leis e decretos -  apenas para o foro encarregado

do

  controle

  e

  cassação

  d e

  leis

  e

  decretos, portanto apenas

para

  a

  Corte Constitucional.

  N o

  âmbito

  dos

  outros órgãos

aplicadores

 d o

 direito vale, para

  a

 relação entre

  o

 direito

  fe -

deral  e o  estadual,  o  princípio

  lex

 posterior derogat priori;

portanto, também

  a í

 existe

 paridade.

Uma vez que não

 está prevista

  a

 aplicação mediante

  lei

federal

  de uma le i

  estadual

  ou de um

  tratado internacional

concluído  por um  estado  (a  conclusão de  tratados  é compe-

tência exclusiva  da federação),  não pode haver  a devolução

de uma competência federal ao estado, análoga à devolução d e

u m a  competência estadual  à União. Coisa similar vale para

a  atividade executiva.  Uma vez que  inexiste execução  de

leis estaduais p o r parte  de órgãos federais

 na

 esfera

  de

 ativi-

dade  da  União  -

  análoga

  à

  execução

  de

  leis federais

  na

esfera  de  atividade  d a  administração estadual'

8

  também

18.  Isso  n o  entanto  fo i  contestado  e m  relação  a u m  caso  (art. 10 da Lei

Constitucional Transitória).

  Cf . , a

  esse respeito,

  a

  decisão

  d a

  Corte Constitu-

cional  G. 1/26 de 17 de  dezembro  de 1926 .

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112 HANS KELSEN

não se faz

  necessária

  a

 possibilidade

  d e o

 governo estadual

impugnar atos administrativos federais contrários

  à lei do

estado, análoga

 à

 impugnação, pelo ministro federal compe-

tente, d e atos administrativos estaduais em desacordo  com a

le i

  federal.

  A

  execução

  de

  leis estaduais através

  d e

  órgãos

federais

 na  esfera  de  atividade  de  ação delegada  da  União,

u m a  espécie  d e  administração estadual indireta através  de

órgãos federais  —  análoga  à  administração federal indireta

através d e órgãos estaduais  só é possível excepcionalmen-

te.

 Segundo

  o art . 97-2, uma lei

 estadual pode,

  em

  matérias

n as

  quais

  a

 execução

  se

  inclua também

  na

  competência

  do

estado, confiar essa execução,  ao menos  em parte,  a órgãos

federais, desde  que o governo federal  dê seu  consentimento

a

  essa transferência antes

  da

  publicação dessa

  lei . Sem

dúvida,

  a

  relação entre

  o

 governo estadual

  e as

 autoridades

federais que atuam  n a  execução  de tal lei estadual como  ór-

gãos

  estaduais

  indiretos

  não é

  regulada pela Constituição

d e

 modo análogo

 à

 relação entre autoridades federais

 e

 esta-

duais n o  caso  da administração federal indireta. N o  caso  d e

autoridades federais encarregadas  da  execução  de uma lei

estadual agirem contra

  a lei ou

  contra

  a

  instrução

  do

 gover-

no

 estadual, este

 não tem

 possibilidade

 de

 aplicar sanção

 con-

tra os titulares do órgão que tenham agido de maneira culpo-

sa. Essa lacuna técnica,  no entanto, não tem na prática qual-

quer importância, pois, como  fo i  dito, trata-se apenas  de

casos excepcionais. Quando leis federais

 são

 executadas

 por

órgãos federais diretos, temos

  as

 mesmas garantias

  de

 lega-

lidade existentes

  n o

  caso

  de

  execução

  d e

  leis estaduais

  por

órgãos do próprio estado: direito d e recurso d as partes à Cor-

te

 Administrativa,

  e

 quando forem violados direitos garanti-

do s

  constitucionalmente,

 à

 Corte Constitucional.

A s  disposições  d a  Constituição austríaca  a té  aqui  des-

critas tornam supérflua

 um a

  intervenção federal

 n o

  sentido

do art . 48-1 da Constituição d o Reich alemão. Somente pode-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

113

se tratar da execução  de decisões  da  Corte Constitucional  ou

da  Corte Administrativa.  N a medida  em que as decisões  da

Corte Constitucional forem sobre certas demandas

 de

  direito

patrimonial

  -

  tiradas

  da via  legal regular

  -

  contra

  a

  União,

um

 estado

  ou um

 município

  (art. 137), a

 execução

  é

 realiza-

da

  pelos tribunais regulares. Quanto

  às

  outras decisões

  da

Corte Constitucional

  - e

 nessa categoria entram todas

  as de-

cisões aqui  consideradas - o art. 146 da lei constitucional  fe -

deral,  de modo similar  ao art. 19-2 da Constituição  do Reich

alemão, confia a execução  ao presidente federal.  Porém, di-

ferentemente desta,

  a

  Constituição austríaca coloca

  expres-

samente  no poder discricionário  do presidente  a modalidade

de

  execução

  e a

  definição

  d o s

 órgãos federais

  ou

 estaduais

necessários para

  a sua

  realização.

  A

 execução

  d as

 decisões

d a

 Corte Constitucional sobre demandas segundo

  o art. 137

é

  realizada pelos tribunais regulares.

  A

  execução

  das

  outras

decisões

  da

  Corte cabe

  ao

  presidente federal.

  E la

  deve

  ser

realizada,  de  acordo  com  suas instruções,  pelos órgãos  da

União

  ou dos

  estados

  por ele

 designados

 segundo

  sua

  discri-

ção.  O requerimento  de  execução  d e  tais decisões deve  ser

apresentado pela Corte Constitucional  ao  presidente fede-

ral . Certamente  n e m  todas  as  decisões  da  Corte Constitu-

cional  são  aptas  a uma  execução imediata, como  se dá com

as

 decisões

  que

 cassam atos administrativos individuais

 vio-

ladores

 de

 direitos constitucionalmente garantidos;

 aí , de fa-

to, o

  efeito jurídico

  da

  anulação

  da

  norma inconstitucional

está

  diretamente

  ligado

  à

 decisão

  da

  Corte Constitucional.

Se a

  autoridade administrativa

  - d a

  União

  ou do

  estado

  -

contrariando a Constituição, n ão adotasse nenhuma nova de-

cisão ou disposição, ou não se ativesse, ao fazê-lo, ao enten-

dimento da Corte Constitucional, seria possível  ou um novo

recurso  à  Corte  ou uma  ação  de  indenização  p o r  atividade

administrativa ilegal,

 e

 portanto

 a

 execução sobre

 o

 patrimô-

nio do

  órgão federal

  ou

  estadual

  que

  tivesse agido ilegal-

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114

HANS KELSEN

mente. Esta última  via no  entanto,  que o art . 23 da  Cons-

tituição federal a o menos em princípio fa z esperar, ainda não

pode

  se r

  seguida,

  eis que

  ainda

  não fo i

 editada

  a

 necessária

le i  federal relativa  à  responsabilidade  po r  danos derivados

de atividade executiva ilegal.  O mesmo vale para  as decisões

cassatórias  da  Corte Administrativa. Diferente  é a  situação

das decisões  da Corte Constitucional  com as quais  são anu-

ladas leis o u decretos, pois  aí a anulação, para tornar-se  e f i -

c a z , deve  ser publicada.  O q u e acontece  se o chefe estadual

ou outro órgão competente  se recusa  a providenciar  a publi-

cação  a que a Constituição obriga? Um a vez que o presiden-

te

 federal

 é

 autorizado pela Constituição

 a

 estabelecer como

 a

decisão

  da

 Corte Constitucional deve

 ser

 executada,

  ele mes-

mo

 pode fazer

 com que a

 anulação

  da lei ou do

 decreto esta-

dual seja publicada pelo órgão federal

 ou

 estadual

 que

 consi-

derar idôneo.  Por "execução" da  decisão  da  Corte Constitu-

cional  n o  sentido  do art. 146 não se deve entender apenas  o

ato

 coercitivo contra

 o

 órgão cuja conduta

  lhe é

 contrária,

 j á

que aí haveria apenas  um  tipo  de decisão passível d e execu-

ção, ou  seja,  a  decisão condenatória  da  Corte Constitucio-

nal . Deve-se entender também  a exigência  de reparação,  fei-

ta  pelo presidente federal. Essa interpretação  do art. 146 da

Constituição austríaca

  é

 mais facilmente admissível

  que uma

interpretação análoga

 do art. 19 da

 Constituição

 d o Reich ale-

mão , nã o

 apenas porque

  o art. 146

 autoriza expressamente

  o

presidente federal

  a

 definir

 a

 modalidade

  de

  execução,

  mas

também porque

 -

  especialmente

 no

 caso

 d e

 anulação

 de

  leis

e

  decretos

  - não se

  trata propriamente

  de que a

  respectiva

competência passa para

  o

 presidente

 a

 título

  de

 execução

  de

sentença da Corte (como é o caso quando,  no sentido do art.

19-2, o presidente  do Reich  está autorizado  a anular  uma lei

ou  decreto desde  que o  Tribunal Federal tenha condenado

o  Reich  ou um

  estado

  a tal

  anulação,

  e

  estes

  n ã o

  tenham

cumprido

  a

  decisão).

  D e

  fato, segundo

  a

 Constituição

  aus-

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116

HANS KELSEN

da administração federal indireta. Nesse caso só é exeqüível

a  decisão  que  determina  a perda  do  cargo;  e a  execução  se

impõe

  se o

 órgão condenado

  se

 recusa

  a

 cumprir

 a

 decisão

 -

isto

  é,

  deixar

  seu

  posto

  - e

  continua

  a

  desempenhar suas

funções, ainda

  qu e

  ilegalmente.

  A

  execução significa aqui

impedir coercitivamente

  a

  continuação ilegal

  n o

  cargo.

  O

presidente federal

  é

  autorizado

  a

  proceder

  a

  essa coerção

contra  o  órgão  que age  contra  a decisão, podendo empregar

todos  os  meios  q u e  considere convenientes,  em  particular

dos

 órgãos

 da

 União

  ou dos

 estados,

  que

 considere idôneos.

Como  se  trata apenas  de um ato  coercitivo dirigido  contra

uma  pessoa determinada,  é de  escassa importância  a  ques-

tão, de fato duvidosa segundo a Constituição, sobre se o pre-

sidente pode também empregar

  o exército federal.

  Segundo

o art . 80, não é ele que

  pode dispor

  d o

  exército,

  m as

 outros

órgãos:  o Conselho Nacional  ou o  governo federal, isto  é, o

ministro do Exército. A escolha d os órgãos a serem emprega-

dos na

  execução, conferida

  ao

  presidente

  no art . 146,

 pode

portanto  ser  vista como limitada pelo  art . 80.  Isso inicial-

mente estava fora de dúvida, quando  a disposição  a respeito

da

  execução

  das

 decisões

  da

  Corte Constitucional

  não pro-

feridas sobre demandas baseadas

  no art. 137

 ainda estava

  in-

serta, como disposição

 de lei

 ordinária,

 na lei a

 respeito

 da or-

ganização

 e

 procedimento

 da

 Corte

 (art. 34 -2 da lei

 federal

 de

13 de

 julho

  de

  1921).

  C om a

 emenda constitucional

  de 1925,

essa disposição,

 que

 confere

 a o

 presidente federal

 u m

  poder

discricionário

 tão

 amplo,

 foi

 incorporada como

 art.

  146-2,

 ao

texto  d a Constituição federal, assumindo portanto  o  caráter

de  disposição constitucional  e  podendo assim  ser  vista  co-

m o u m a  limitação  do art . 80  relativa  ao poder  de  dispor  do

exército federal. Porém, toda

  a

  elaboração

  da

  Constituição

federal, assim como

 a

 emenda

  de 1925,

 indica

  que com

 essa

incorporação

 do art. 34-2 da lei

 sobre

 a

 Corte Constitucional

no

 texto

 da

 Constituição federal

 não se

 tencionava modifica-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

117

ção ou

  limitação

 d o art . 80, já

 pelo simples fato

 de que

 para

executar  um a decisão dirigida contra  uma só pessoa  não há

necessidade

  de

  empregar

  o

  exército, bastando

  a

 polícia.

  À

parte isso, existe entre

 os

 arts.

  80 e 146 da

 Constituição

 aus-

tríaca,  n o  plano puramente técnico-jurídico,  u m a  relação

análoga

  à

 existente entre

  o s

 arts.

  19 e 48-1 da

  Constituição

alemã,  dos quais, igualmente,  um só pode  ter validade  ple-

na, e não  limitada  em seu  teor literal, às expensas  d o outro.

N o

  caso

  da

  Constituição austríaca, trata-se

  n a

  prática

  de

u m a  questão secundária. D e  fato, o problema básico em tor-

no do

  qual gira

  o

  conflito entre

  o art. 19 e o art. 48-2 da

Constituição alemã

 — ou

 seja,

 se a

 intervenção federal

 só se-

ria possível como execução  d e u m a  decisão judiciária obje-

tiva

  -  é resolvido inequivocamente  na

 Constituição austría-

ca não  apenas  no  sentido  da  execução  de uma  sentença;  é

também  a  execução  das  decisões  da  Corte Constitucional,

q u e

  possui função análoga

  à da

  execução federal

  do art .

48-1 da  Constituição alemã,  e não é  em  absoluto prevista

como intervenção federal  no

  sentido

  de ato

  coercitivo

  que

estabelece  u m a responsabilidade coletiva  e objetiva, dirigi-

do contra u m a entidade parcial da federação "enquanto  tal ,

isto

  é,

  contra

  os

  indivíduos

  q u e

  formam essa entidade

  par-

cial.  A  técnica jurídica primitiva  da  intervenção federal

está completamente superada.

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I

A

 jurisdição constitucional

(Exposição  de  Hans Kelsen)*

*  Esse texto  fo i publicado pela primeira  v e z e m  francês:  L a  garantie juri s-

dictionelle  de la  Constitution  ( L a  justice constitutionelle)",  n a  Revue  de  Droit

Public  et  Science Politique,  35/197-257,  1 9 2 8 , e c o m  base  n a  versão francesa

f o i

  feita

 a

  presente tradução.

 O

  texto

  e m

  alemão

  f o i

 publicad o posteriormente

 e m

Verõffentlichungen  de r  Vereinigung  de r  deutschen Siaalsrechtslehrer,  Heft  5 ,

p p .  31-88,  sob o  título "Wesen  u n d  Entwicidung  d e r Staatsgenchtsba/kei "

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Preâmbulo

O

 presente estudo trata

  d o

 problema

  d a

 garantia jurisd i-

cional

  d a

 Constituição, geralmente chamada jurisdição cons-

titucional,

  d e u m

 duplo ponto

  d e

  vista.

E le

  expõe primeiramente

  -

  questão teórica

 - a

 natureza

juríd ica dessa garantia, baseando-se

  e m

 última análise

  no s is -

tema de que o autor f e z u m a exposição geral  em sua

 Teoria

 ge-

ral do

  Estado {Allgemeine Staatslehre,

  Berlim, 1925).

E m seguida, busca -  questão prática - o s melhores meios

d e  concretizá-la. Para tanto,  o  autor  se  apóia  n a s  experiên-

cias  que vem  realizando h á vários anos n a qualidade d e m e m -

bro e  relator permanente  d a  Suprema Corte Constitucional

da Áustria.  D e  fato, a  Constituição austríaca,  que fo i  votada

em 1 9 2 0 co m

  base

  n u m

  projeto

  p o r e l e

  elaborado

  a

 pedido

do

 governo austríaco,

  deu à

 instituição

  d a

 jurisdição constitu-

cional

  u m

  desenvolvimento mais completo

  d o q u e

 qualquer

outra Constituição anterior.

I O problema jurídico  da  regularidade

1. A garantia jurisdicional  da  Constituição - a jurisdição

constitucional  - é um  elemento  d o  sistema  d e  medidas  téc-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL 125

ção e  execução  não são  duas funções estatais coordenadas,

m as

  duas etapas hierarquizadas

  do

  processo

  de

  criação

  d o

direito,

  e

  duas etapas intermediárias. Porque esse processo

não se limita apenas à legislação,  mas ,  começando  na esfera

d a

  ordem jurídica internacional, superior

  a

  todas

  a s

  ordens

estatais, continua n a Constituição, para chegar enfim, através

das

 etapas sucessivas constituídas pela

  lei,

 pelo regulamen-

to, e em

 seguida pela sentença

 e

 pelo

 a to

 administrativo,

 aos

atos de execução material destes últimos. Essa enumeração,

de que só

 consideramos aqui

  as

 fases intra-estatais, pretende

apenas indicar  de  forma esquemática  as  etapas principais

desse processo,

 n o

 decorrer

 d o

 qual

 o

 direito regula

 sua pró-

pria criação

 e o

 Estado

  se

 cria

  e

 recria

  sem

 cessar

  com o di-

reito. Constituição, lei, regulamento, a to administrativo e sen-

tença,

  ato de

  execução,

  são

  simplesmente

  as

  etapas típicas

da formação da vontade coletiva n o Estado moderno. Claro,

a

  realidade pode diferir desse tipo ideal. Para

  dar

  exemplo

de uma das  modificações possíveis  do  curso típico  do pro-

cedimento  de  criação  do direito:  não é necessário  que o re-

gulamento, isto

  é , uma

  norma geral

  que

  emana

  das

  autori-

dades administrativas,  se insira entre a lei e o ato  individual;

ou

 ainda,

  é

 possível

  que o

 regulamento intervenha imediata-

mente com base na Constituição, e não apenas como execução

de uma le i . Mas aqui  nos ateremos,  em princípio,  à hipótese

do

  tipo indicado.

Como  a Constituição regula,  no essencial,  a elaboração

das leis, a legislação é, com respeito a ela, aplicação do direi-

to . Com  relação  a o  decreto  e a  outros atos subordinados  à

lei, ela é, ao contrário, criação  do  direito;  o decreto  é, tam-

b é m ,

  aplicação

  do

 direito

  com

  respeito

  à lei e

 criação

  do di-

reito  co m  respeito  à  sentença  e ao ato  administrativo  que o

aplicam. Estes,

 por sua vez, são

 aplicação

 d o

 direito,

 se

 olhar-

m o s

 para cima,

  e

 criação

 do

 direito,

  se

 olharmos para baixo,

isto  é, no que concerne  aos atos pelos quais  são  executados.

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1 2 6  HANS KELSEN

O

  direito,

  no

  caminho

  que

  percorre desde

  a

 Constitui-

ção até os

 atos

  de

 execução material,

  não

 pára

  de se

 concre-

tizar. Enquanto

 a

 Constituição,

  a lei e o

 decreto

  são

  normas

jurídicas gerais, a sentença e o ato administrativo constituem

normas jurídicas individuais.

A  liberdade  do  legislador,  que só  está subordinado  à

Constituição, submete-se  a  limitações relativamente fracas;

seu

  poder

  d e

  criação permanece relativamente grande.

  A

cada grau qu e se desce, a relação entre liberdade e limitação

se  modifica  em  favor do  segundo termo:  a parte  d a  aplica-

ção

 aumenta,

  a da

 livre criação diminui.

2. Cada grau  da ordem jurídica constitui, pois, ao mesmo

tempo,

 u m a

 produção

 d e

 direito

 com

 respeito

 ao

 grau inferior

e uma

 reprodução

 do

 direito

 com

 respeito

 ao

 grau superior.

A

  idéia

  de

  regularidade

  se

 aplica

  a

 cada grau,

  n a

 medi-

da em que é

  aplicação

  ou

  reprodução

  do

  direito. Porque

  a

regularidade nada mais

  é que a

 relação

  de

  correspondência

de um

  grau inferior

 com u m

  grau superior

  da

 ordem jurídi-

ca. Não é

 apenas

 n a

 relação entre

 os

 atos

 de

 execução mate-

rial

  e as

 normas individuais

 -

  decisão administrativa

  e sen-

tença  o u  também entre esses atos  d e  execução  e as nor-

m a s  legais  ou  regulamentares gerais,  que podem  ser  postu-

ladas a regularidade e as garantias técnicas apropriadas para

assegurá-la,  m a s  também  n a s  relações entre  o  decreto  e a

lei, e

  entre

  a lei e a

  Constituição. Assim,

  as

  garantias

  d a

legalidade

  dos

 decretos

 e da

 constitucionalidade

 d as

 leis

  são

tão

 concebíveis quanto

 as

 garantias

 da

 regularidade

 do s

 atos

jurídicos individuais.

Garantias

  da

  Constituição significam portanto garan-

tias  da regularidade  das  regras imediatamente subordinadas

a Constituição, isto é, essencialmente, garantias  da constitu-

cionalidade  das  leis.

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

127

3. O  fato de qu e a aspiração  a garantias  da Constituição

se manifeste vivamente e de que a questão seja discutida cien-

tificamente ainda hoje

  - ou,

  mais exatamente,

  só

  hoje

  - se

deve  ao  mesmo tempo  a razões teóricas  e políticas.  Por um

Jado,

  não faz

 muito

  q u e

 surgiu

  na

 doutrina

  a

  idéia

  da

  estru-

tura hierárquica

  do

 direito,

 ou — o que é a

 mesma coisa

 — da

natureza jurídica

 da

 totalidade

 das

 funções estatais

 e de

 suas

relações recíprocas.  Po r outro lado,  se o  direito  dos  Estados

modernos,  que  apresenta  u m a  grande quantidade  de  institui-

ções destinadas  a  garantir  a  legalidade  d a  execução,  só

toma,  ao contrário, medidas muito restritas para assegurar a

constitucionalidade

 d a s

  leis

 e a

  legalidade

 d o s

 decretos, isso

se

 deve

 a

 motivos políticos;

 e

 esses motivos,

 po r sua vez , não

deixam

  de

 influenciar

 a

 formação

 d a

 doutrina,

  que

 deveria

 ser

a

 primeira

  a

  fornecer esclarecimentos sobre

  a

 possibilidade

e a

 necessidade

  de

 tais garantias.

É o que acontece, em particular, com as democracias par-

lamentares da Europa originárias de monarquias constitucio-

nais. A teoria jurídica da monarquia constitucional ainda tem

atualmente  -  onde essa forma  de Estado tende  a passar para

o

 segundo plano

  - u m a

  grande influência. Seja consciente-

mente, onde

  se

 pretende organizar

 a

 República

  co m

  base

 no

modelo

 da

 monarquia,

 c o m u m

 forte poder presidencial, seja

inconscientemente,

 a

 doutrina

 do

 constitucionalismo determi-

na em

 grande medida

  a

 teoria

  do

 Estado. Como

  a

 monarquia

constitucional originou-se  da monarquia absoluta,  sua dou-

trina  é, conseqüentemente, guiada  sob muitos aspectos pelo

desejo d e fazer q ue pareça a menor e mais insignificante pos -

sível a diminuição sofrida pelo monarca, outrora absoluto. N a

monarquia absoluta,

  a

 distinção entre

  o

 grau

  da

 Constituição

e o

 grau

 das

 leis

 é,

 decerto, teoricamente possível,

 mas não de-

sempenha

 na

 prática nenhum papel,

 já que a Constituição  c o n -

siste unicamente

 n o

 princípio

 de que

 toda expressão

 da

 vontade

do

 monarca

 é uma

 norma jurídica obrigatória.

 Não há

 portanto

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128

HANS KELSEN

forma constitucional particular, isto

 é ,

 normas jurídicas

  que

submetem

  a

 regras diferentes

 a

 elaboração

 d as

 leis

 e a

 reforma

d a

 Constituição; nela

 não tem

  sentido

 o

 problema

  da

 consti-

tucionalidade

 das

 leis.

 A

 transição para

 a

 monarquia constitu-

cional acarreta, precisamente a esse respeito, um a modificação

decisiva, qu e se exprime de maneira assaz característica na ex-

pressão "monarquia constitucional". A maior importância que

a

 noção

  de

 Constituição adquire então,

  a

 existência

  de uma

regra

 -

  regra

  que é

 precisamente

  a

 Constituição

 -

  segundo

 a

qual

  as

  leis

 só

 devem

  ser

 feitas

 d e

 certa forma,

 a

 saber,

  com

a

  colaboração

  da

  representação nacional;

  o

  fato

  de que

 essa

regra

 não

 pode

 ser

 modificada

 com a

 mesma simplicidade

 que

outras regras gerais

 de

 direito

 - as

 leis isto

 é, que

 existe

 ao

lado da forma legal ordinária um a  forma especial mais difícil,

a forma constitucional (maioria reforçada, votações múltiplas,

assembléia constituinte especial), tudo isso expressa

 o

 desloca-

mento decisivo de poder. Poder-se-ia pensar, pois,  que a m o-

narquia constitucional devia

 ser um

 terreno

 d e

 primeira ordem

para a enérgica afirmação do problema d a constitucionalidade

das

 leis

 e, po r

 conseguinte,

 das

 garantias

 da

 Constituição.

 Foi

exatamente  o contrário que ocorreu. A doutrina constitucio-

nalista

  na

  verdade velou

  o

  novo estado

  de

  coisas, perigoso

para

  o

 poder

  do

 monarca.

 E m

 oposição

 à

 realidade constitu-

cional,

  ela o

 apresenta como

 o

 único,

  ou em

 todo caso

 o ver-

dadeiro, fautor

 da

 legislação, declarando

 qu e a lei é

 expressão

unicamente

 da sua

 vontade, reduzindo-se

 a

 função

 do

 Parla-

mento  a u m a adesão mais  ou menos necessária, secundária,

não essencial. E o caso da sua célebre tese d o "principio m o -

nárquico",

 que nã o se

 deduz

 da

 Constituição,

 m as é , por

 assim

dizer, inserido nela

  do

 exterior para interpretá-la

 num

 sentido

político determinado, mais exatamente para deformar o direi-

to positivo co m ajuda de um a ideologia que lhe é estranha. O u

ainda

 da

 célebre distinção entre

 o

 mandamento

 da lei, que e m a-

naria unicamente

  do

 monarca,

  e o

 conteúdo

  da lei, que

 seria

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

129

acordado entre

 o

 monarca

 e a

 representação nacional. Essa

 con-

cepção tem po r resultado não se considerar como u m a imper-

feição técnica

  da

  Constituição,

  m a s

 antes como

  seu

  sentido

profundo,

 que um a le i

 deva

  ser

 tida

 p o r

 válida

 a

 partir

 do m o -

mento

  em que é

 publicada

  no Diário Oficial  com a

 assinatu-

ra do monarca, independentemente do fato de as prescrições

relativas

 à sua

 adoção pelo Parlamento terem

 ou não

 sido

 obe-

decidas. Assim, reduz-se a quase nada — pelo menos teorica-

mente

 - a

 evolução capital

 d a

 monarquia absoluta

 à

 monarquia

constitucional, e e m todo caso,  o problema  da constituciona-

lidade d as leis e das suas garantias. A inconstitucionalidade d e

um a le i

 assinada pelo monarca, a fortiori

  sua

 anulação

 por tal

causa, não podem de  forma alguma  se apresentar à consciên-

c ia

 jurídica como questões

  de

 interesse prático. Além disso,

a doutrina constitucionalista, apoiando-se muito menos  n o

texto

  d a

  Constituição

 a que

 fizemos alusão acima, reivindi-

ca para  o monarca, n ã o apenas a sanção dos textos de lei, mas

também,

  com ela e

 nela,

  a

 promulgação exclusiva

  das

  leis.

Assinando

  o

 texto votado pelo Parlamento,

  o

 monarca ates-

taria

  a

  constitucionalidade

  d a

  elaboração

  da lei.

  Existiria

portanto,  de  acordo  com  essa doutrina, certa garantia, pelo

menos quanto

 a u m a

 parte

  do

 procedimento legislativo;

 m as

é precisamente a instância que deveria ser controlada qu e rei-

vindica

  a

 função

 de

 controle.

  S em

 dúvida,

  a

 rubrica ministe-

rial acrescenta um a responsabilidade ao ato do monarca, ma s

a

 responsabilidade ministerial

  é

 privada

  de

 interesse prático

n a

  monarquia constitucional,

  n a

  medida

  em que é

  dirigida

contra

  os

  atos

  do

  monarca

  e só

  pode

  ser

  levada

  em

  conta

quando  se  trata  de  vícios  do  procedimento legislativo  que

cabem

  ao

 Parlamento, visto

  que é

 este mesmo

  que o

 efetua.

A

 teoria, ainda hoje muito difundida

 e

 defendida

 com os

mais diversos argumentos, de que é preciso retirar dos órgãos

de

 aplicação

 do

 direito todo

 e

 qualquer exame

 da

 constitucio-

nalidade  das  leis,  de que se  deve conceder  ao s  tribunais  no

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130

HANS KELSEN

máximo  o  contTole  d a regularidade  da publicação,  de que a

constitucionalidade

  d a

  elaboração

  d a s

 leis

 é

 suficientemente

garantida pelo poder

  d e

 promulgação

 d o

 chefe

 de

 Estado,

  e a

consagração pelo direito positivo dessas concepções políticas

n a s

 próprias Constituições

 d as

 atuais repúblicas devem-se

 e m

b o a

 parte

  à

 doutrina

 d a

 monarquia constitucional, cujas idéias

influenciaram, mais  o u menos conscientemente, a organização

d a s democracias modernas.

I I .

 A  noção  de  onstituição

4 . A questão d a garantia  e d o modo de garantia  d a Cons-

tituição, isto  é, da  regularidade  d o s  graus  d a ordem jurídica

que lhe são

  imediatamente subordinados, pressupõe, para

se r

  resolvida,

  u m a

  noção clara

  de

  Constituição. Somente

  a

teoria aqui desenvolvida,  d a estrutura hierárquica  d a  ordem

jurídica, está

  e m

  condições

  d e

 proporcioná-la.

  N ã o é

 exage-

ro

  nenhum afirmar

  q u e

  somente

  e la

  permite apreender

  o

sentido imanente dessa noção fundamental

  de

  "Constitui-

ç ã o , c o m a

  qual

 j á

  sonhava

  a

  teoria

  do

  Estado

  d a

  Antigui-

dade, porque essa noção implica

  a

  idéia

  d e u m a

  hierarquia

d a s  formas jurídicas.

Através

  d a s

  múltiplas transformações

  p o r q u e

  passou,

a noção  d e Constituição conservou  u m núcleo permanente:  a

idéia

  d e u m

 princípio supremo determinando

 a

 ordem estatal

inteira

 e a

 essência

 da

 comunidade constituída

 p o r

 essa ordem.

Como quer  que se defina a Constituição,  ela é sempre  o f u n -

damento  d o  Estado,  a  base  d a  ordem jurídica  q u e s e  quer

apreender.

  O que se

 entende antes

  d e

 mais nada

  e

 desde

 s e m -

p r e p o r  Constituição  - e, sob esse aspecto,  ta l noção coincide

c o m a d e

  forma

 d o

 Estado

  - é um

 princípio

  em que se

 expri-

m e

 juridicamente

 o

 equilíbrio

 d a s

 forças políticas

 no

 momento

considerado,

 é a

 norma

 q ue

 rege

 a

 elaboração

 das

 leis,

 das nor -

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JURJSD/ÇÂO CONSTITUCIONAL

131

m as gerais para cuja execução  se exerce a atividade d os orga-

nismos estatais, dos  tribunais e das autoridades administrati-

vas.

 Essa regra para

  a

 criação

 das

 normas jurídicas essenciais

do

 Estado,

 a

 determinação

 dos

 órgãos

 e d o

 procedimento

 da

legislação, forma

 a

 Constituição

 n o

 sentido próprio, original

e

 estrito

 da

 palavra.

 E la é a

 base indispensável

  das

 normas

 ju -

rídicas  que regem a conduta recíproca dos membros da coleti-

vidade estatal, assim como das que determinam os órgãos ne-

cessários para aplicá-las e impô-las, e a maneira como devem

proceder, isto

 é, em

  suma,

  o

  fundamento

 da

 ordem estatal.

Donde

  a

  idéia

  de lhe

 proporcionar

  a

 maior estabilidade

possível,

 de

 diferenciar

 as

 normas constitucionais

 d as

 normas

legais, submetendo-se  sua reforma a um procedimento espe-

cial q ue comporta condições difíceis de serem reunidas. Surge

assim  a distinção entre a forma constitucional e a forma legal

ordinária.

 N o

  limite, somente

  a

 Constituição,

  no

 sentido

  es-

trito

 e

 próprio

 d a

 palavra, está revestida dessa forma especial;

ou -

  como

 se tem o

 costume,

 se não a

 felicidade,

 de

 dizer

 - a

Constituição n o sentido material coincide com a Constituição

no  sentido formal.

S e o direito positivo conhece u m a  forma constitucional

especial, distinta

 da

 forma legal, nada

 se

 opõe

 a que

 essa

 fo r -

m a

  também seja empregada para normas

  que não

 entram

  n a

Constituição

 no

 sentido estrito,

 e

 antes

 d e

 mais nada, para

 nor-

mas que

 regulam,

 não a

 criação,

 m as o

 conteúdo

 das

 leis.

 D aí

resulta  a noção de Constituição no sentido lato. É ela qu e es-

tá em

 jogo quando

 a s

 Constituições modernas contêm

 não ape -

nas regras sobre os órgãos e o procedimento d a legislação, m as

também

 u m

 catálogo

 de

 direitos fundamentais

 dos

 indivíduos

ou de

  liberdades individuais.

 C om

  isso

 — é o

 sentido primor-

dial, senão exclusivo, dessa prática

  a

  Constituição traça

princípios, diretivas, limites, para o conteúdo d as leis vindou-

ras. Proclamando a  igualdade dos cidadãos diante da lei, a li-

berdade de consciência,  a inviolabilidade da propriedade,  na

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132

HANS KELSEN

forma habitual

 de uma

 garantia

 a os

 sujeitos

 de um

 direito

 sub-

jetivo

 à

  igualdade,

 à

 liberdade,

 à

 propriedade,

 etc., a

 Consti-

tuição dispõe, no fundo, que as leis não apenas deverão ser ela-

boradas

 d e

 acordo

 com o

 modo

 que ela

 prescreve,

 m as

 também

n ã o

 poderão conter disposição

 que

 atente contra

  a

 igualdade,

a

 liberdade,

  a

 propriedade,

 etc. A

  Constituição

  não é ,

 então,

unicamente

 u m a

 regra

 de

 procedimento,

 m as

 também

 uma re-

gra de

 fundo;

 p or

 conseguinte,

 uma lei

 pode

 ser,

 então, incons-

titucional, seja por causa de uma irregularidade de procedimen-

to em sua elaboração, seja em decorrência  da contrariedade

de seu  conteúdo  aos  princípios  ou  diretivas formulados  na

Constituição, quando excede o s limites estabelecidos por esta.

Por

 isso costuma-se distinguir

 a

 inconstitucionalidade

 fo r -

mal da inconstitucionalidade material das leis. Essa distinção

só é

 admissível

  com a

 reserva

 de que a

 inconstitucionalidade

dita material

  é, em

 última análise,

  u m a

  inconstitucionalida-

de

 formal,

 n o

  sentido

  de que um a le i

 cujo conteúdo está

  em

contradição  com as prescrições  da  Constituição deixaria  de

ser

 inconstitucional

 se

 fosse aprovada como

 lei

 constitucional.

Trata-se sempre, portanto,

 de

 saber

 se o que

 deve

 ser

 observa-

do é a

 forma legal

 ou a

 forma constitucional.

  Se o

 direito

 p o -

sitivo não diferencia essas duas formas, o estabelecimento de

princípios,

 de

 diretivas,

 de

 limites para

 o

 conteúdo

 d as

 leis

 não

tem

 sentido jurídico

 e não

 passa

 de uma

 aparência desejada

 por

motivos políticos, como

 são

 aliás

 as

 liberdades garantidas

 n a

forma constitucional no caso freqüente em que a Constituição

autoriza

  a

 legislação ordinária

  a

 limitá-las.

5. As

  disposições constitucionais relativas

  ao

 processo

legislativo

  e ao

 conteúdo

 d as

  leis

 só por

  leis podem

  ser pre-

cisadas.  A s  garantias  da  Constituição  n ã o  passam, pois,  d e

meios contra as leis inconstitucionais; mas a partir d o momen-

to em que, por intermédio da idéia de forma constitucional, a

noção de Constituição é ampliada a outros objetos que não o

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL  1 3 3

procedimento legislativo

 e a

 determinação

 d e

 princípio

 do con-

teúdo

 das

 leis,

 é

 possível

  que a

 Constituição

  se

 concretize

 e m

formas jurídicas que não sejam as leis, em particular em decre-

tos ou até em

  atos jurídicos individuais.

  C o m

  efeito,

  o con-

teúdo

  da

 Constituição pode tornar inútil

  uma lei , do

 mesmo

modo

 que uma lei

 pode

 ser tal que não

 requeira

 um decreto

 para

receber aplicação  e m  atos administrativos  ou jurisdicionais

individuais. A Constituição pode, p or exemplo, dispor que, em

condições perfeitamente predeterminadas, poderão

  ser

 estabe-

lecidas normas gerais,

 não

 mais

 por uma

 votação parlamentar,

m as por um a to do governo:  são os decretos de necessidade,

que se acham então n o mesmo grau das leis, que têm a mesma

força

 q ue

 elas,

 as

 substituem

 e as

 modificam,

 e são

 imediata-

mente subordinados

 à

 Constituição,

 ao

 contrário

 d os

 simples

decretos complementares, q u e podem se r portanto, tal como

as

 leis, imediatamente inconstitucionais

 e

 contra

 o s

 quais,

 por

conseguinte,

 d o

 mesmo modo

 q u e

 contra

 as

 leis inconstitucio-

nais, devem  se dirigir as  garantias da Constituição.

M as

 nada

 se

 opõe tampouco

 a que

 sejam estabelecidas

 n a

forma constitucional normas

 que não

 contenham apenas prin-

cípios, diretivas, limites para

  o

 conteúdo

 das

 leis vindouras,

  e

devam  por conseguinte  ser  concretizadas  p o r  intermédio  de

leis, m as que, ao contrário, regulem um a matéria tão comple-

tamente

  q u e

  sejam

  d e

  imediato aplicáveis

  ao s

  casos

  con-

cretos

 p o r

 atos jurisdicionais

 e,

 mais ainda, administrativos.

Assim é quando a Constituição, nesse sentido lato, determina

como

 são

 designados certos órgãos executivos supremos (chefe

d e

 Estado, ministros, tribunais superiores, etc.),

 de tal

 modo

que possam  ser criados  sem a intervenção de nenhuma regra

de detalhe que complete a Constituição  - lei ou regulamento

m as em

 aplicação imediata

 da

 própria Constituição. Essa

 m a-

téria aparece efetivamente inclusa

 na

 noção corrente

 de

 Cons-

tituição. Entende-se tradicionalmente p or Constituição  - no

sentido material  - não apenas as regras relativas aos órgãos e

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134

HANS KELSEN

ao

 procedimento legislativo,

 m as

 também

 as que se

 referem

 aos

órgãos executivos superiores,  e, além delas,  a determinação

das

 relações

 de

 princípio entre

 o

 Estado

 e o s

 cidadãos, desig-

nando-se

 c o m

 isso simplesmente

 o

 catálogo

 dos

 direitos funda-

mentais, isto

 é,

 para

 nos

 exprimirmos

 de

 modo juridicamente

correto, certos princípios relativos ao conteúdo das leis. A prá -

tica dos Estados modernos também corresponde a essa noção,

e

 suas Constituições

 e m

 geral apresentam esses três aspectos.

Se assim é, não são apenas as normas gerais -  leis ou de-

cretos  - que são  imediatamente subordinadas  à  Constitui-

ção e que, por

 conseguinte, podem

  ser

 imediatamente incons-

titucionais,

  m as

  também

  os

  atos individuais.

  O

  número

  de

atos individuais imediatamente subordinados  à  Constituição

pode naturalmente

  ser

  estendido

  à

  vontade, bastando,

  por

u m a  razão politica qualquer, revestir  a forma constitucional

das  normas jurídicas diretamente aplicáveis  aos  casos  con-

cretos

 - p o r

  exemplo, votai como leis constitucionais

  as

 leis

sobre

 a s

 associações

  ou as

  Igrejas.

 Se be m qu e uma

 garantia

d a  regularidade  dos  atos  de  execução  das leis tenha,  em sua

forma,

 o

 caráter

 de um a

 garantia

  da

 Constituição,

 é

 evidente

qu e

  aqui, pelo fato

 de a

 noção

  de

  Constituição

  ser

 ampliada

demasiado além  de seu  domínio original  e por  assim dizer

natural

 - o

  domínio

 que

 resulta

 da

 teoria

 da

 estrutura hierár-

quica  do  direito  a  garantia específica  da  Constituição,

cuja organização técnica

  (a

  jurisdição constitucional) deve-

rá ser

 estudada

 e m

 seguida,

 i ã o

 pode

 se dar

 diretamente,

 por-

que o caráter individual do ato inconstitucional criaria um con-

curso evidente

  da

  jurisdição constitucional

  c o m a

 jurisdição

administrativa, sistema  de  medidas destinadas  a  garantir  a

legalidade  da execução  e, em particular,  da  administração.

6. Em todos o s casos a té aqui considerados, tratava-se e x-

clusivamente

  de

 atos imediatamente subordinados

 à

 Consti-

tuição

  e , po r

 conseguinte,

  de

  fatos

 de

  inconstitucionalidade

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

135

imediata. Distinguem-se notadamente desses atos

 os que não

são

 mais imediatamente subordinados

  à

 Constituição

  e que,

por conseguinte, só podem ser mediatamente inconstitucionais.

Quando

  a

 Constituição estabelece expressamente

  o

 prin-

cípio

  da

  legalidade

  d a

  execução

  em

  geral

  e dos

  decretos

  em

particular, essa legalidade significa ao mesmo tempo consti-

tucionalidade,  d e  forma indireta. Sublinhemos aqui  em pa r -

ticular, por se tratar d e normas gerais, o decreto regulamentar,

cuja preocupação em  assegurar a legalidade também pode ser

classificada, p o r motivos que examinaremos adiante, entre as

funções d a jurisdição constitucional. Notemos,  de resto, que

a  inconstitucionalidade direta  n em  sempre  se  deixa distin-

guir nitidamente  da  inconstitucionalidade indireta, porque,

entre esses dois tipos, podem  se inserir certas formas mistas

ou  intermediárias.  É o que acontece, p o r exemplo, quando  a

Constituição autoriza imediata, diretamente, todas

  as

  autori-

dades administrativas

 o u

 algumas delas

 a

 baixar regulamentos

nos

 limites

 da sua

 competência, para assegurar

 a

 execução

 das

leis  que têm de aplicar. Essas autoridades derivam então seu

poder regulamentar imediatamente

  da

 própria Constituição.

M as o que

 elas devem dispor—isto

 é, o

 conteúdo

 d e

 seus regu-

lamentos

 - é

 determinado pelas leis

  que se

 encontram entre

elas

 e a

 Constituição. Esses decretos regulamentares

 se

 distin-

guem

 de

 forma evidente, precisamente

 p o r

 causa

 do seu

 grau

de

 proximidade

 d a

 Constituição, daquele outro tipo

 de

 decreto

a que

 aludimos acima,

 os que

  derrogam

  as

  leis

  ou as

 substi-

tuem,  que são imediatamente subordinados à Constituição e,

po r conseguinte, só podem ser inconstitucionais, e não ilegais.

Outro caso: quando a Constituição estabelece princípios

relativos  ao conteúdo  d as  leis, p o r  exemplo  u m  catálogo  de

direitos fundamentais, os atos administrativos praticados para

aplicação dessas leis podem ser inconstitucionais, num sentido

ainda diferente do qu e o é qualquer ato administrativo ilegal.

Se, por  exemplo,  a  Constituição dispõe  que a expropriação

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136

HANS KELSEN

só  pode ocorrer mediante plena  e  cabal indenização,  e se,

num

  caso concreto, procede-se

 à

 expropriação

 c om

 base numa

le i perfeitamente constitucional q ue também estabeleça o prin-

cípio

 d a

 indenização plena,

 mas em

 contradição

 c om

 suas

 dis-

posições — isto é, sem indenização —, o ato administrativo não

é ilegal — e por conseguinte indiretamente inconstitucional  - no

sentido ordinário, porque

 ele nã o vai

 apenas contra

 a lei e, por

conseguinte, contra o princípio constitucional geral da  lega-

lidade  da  execução,  m as  também contra  u m  princípio espe-

cial expressamente estabelecido pela Constituição,

  a

  saber,

que toda expropriação deve ser acompanhada por uma plena e

cabal indenização e, portanto, ultrapassa esse limite especial

que ela

 impõe

 à

 legislação. Seria compreensível então

 que se

pusesse

 em

 movimento contra

  o s

 atos ilegais dessa natureza

um

 mecanismo

  que

 servisse

 de

  garantia

  da

 Constituição.

O princípio constitucional da legalidade da execução não

significa apenas que todo ato de execução deva ser conforme

à lei, mas essencialmente que só pode haver ato de execução

com

 base numa

 lei,

 autorizado

 po r um a lei. Se, por

 conseguin-

te , um a

 autoridade estatal

 -

  tribunal

 ou

 agente administrativo

—  produz um ato sem nenhuma base legai, esse ato não é pro -

priamente ilegal, pois falta um a lei com relação à qual se pos-

sa

 apreciar

 sua

 legalidade,

 m as é um ato sem lei e ,

 como

 tal,

imediatamente inconstitucional. Pouco importa

 q u e

 esse

 ato

sem lei não se refira a nenhuma  lei ou que a menção a um a

lei seja puramente fictícia, como no caso em qu e , por exem-

plo, a

 administração expropriasse

 u m a

 casa urbana invocando

um a lei que autoriza a expropriação de imóveis rurais para um a

reforma agrária. Por mais claramente que este caso se distin-

ga do

 caso precedentemente examinado,

 de um a

 expropriação

ilegal por não ser acompanhada de indenização, não se deve

dissimular porém que, em geral, o limite entre atos  sem lei ,

e por

 conseguinte imediatamente inconstitucionais,

 e

 atos

 ile-

gais, e por conseguinte de uma inconstitucionalidade simples-

mente mediata,

  não é

 perfeitamente nítido.

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138 HANS KELSEN

tem

  preponderância quanto

  à lei e

  mesmo quanto

  à

  Cons-

tituição,

 n a

  medida

  e m que

 pode derrogar

  uma le i

  ordinária

ou

  constitucional,

  ao

 passo

  que o

  inverso

  é

  impossível.

  Se-

gundo

 as

 regras

 do

 direito internacional,

  um

  tratado

 só

 pode

perder

  sua

  força obrigatória

  em

  virtude

  de

 outro tratado

  ou

de

 certos outros fatos determinados

 po r e le , m as não po r a to

unilateral

  de uma das

 partes contratantes, notadamente

  não

po r um a íe i . Se um a lei ,

 mesmo

  um a lei

 constitucional,

 con-

tradiz

  u m

  tratado,

 ela é

 irregular,

  a

 saber, contrária

  ao

 direi-

to

  internacional.

  Ela vai

  imediatamente contra

  o

  tratado,

  e

mediatamente contra

  o

 princípio

 pacta sunt servanda.

Outros atos estatais qu e nã o as leis podem, naturalmen-

te, ser contrários ao direito internacional, se violarem, mediata

ou imediatamente, seja o princípio d o respeito das convenções,

seja outras regras d o direito internacional geral.  Se supuser-

mos , por

  exemplo,

  que

  existe

  u m a

  regra

  de

  direito interna-

cional segundo

  a

 qual

  os

 estrangeiros

  só

 poderiam

  ser

 expro-

priados mediante plena

 e

 cabal indenização, qualquer

 lei

 cons-

titucional, qualquer

  lei

  ordinária, qualquer

  ato

  administrati-

vo,

 qualquer sentença

 que

 determinasse

 a

 expropriação

 de um

estrangeiro

 sem

  indenização, seriam contrários

 ao

 direito

  in-

ternacional. Deve-se notar,

 d e

 resto,

 que o

 próprio direito inter-

nacional

  n ão

  pronuncia

  a

 nulidade

  dos

  atos estatais

  que lhe

sejam contrários,

 e

 ainda

 não

 elaborou

  um

 procedimento pelo

qual esses atos irregulares possam

  ser

 anulados

 por um

 tribu-

nal

 internacional. Eles permanecem válidos, pois,

 se não

 forem

anulados

 no

 curso

 de um

 procedimento estatal.

 E m

 última

 aná-

lise, o direito internacional não tem outra sanção além da guer-

ra, qu e nã o faz desaparecer o ato contrário à s suas regras. Isso

não impede qu e o direito internacional, se supusermos sua pri-

mazia, pode constituir u m padrão da regularidade de todas as

normas estatais, inclusive a mais elevada delas, a Constituição.

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL 139

I I I . As  garantias  da  regularidade

8. Tendo esclarecido suficientemente  a noção  d e Cons-

tituição, e com  isso a natureza d a constitucionalidade  e da in-

constitucionalidade, podemos examinar agora  a questão  das

garantias necessárias  à proteção  da  Constituição.

Trata-se das garantias gerais que a técnica jurídica moder-

n a

 desenvolveu quanto

  à

 regularidade

 d o s

 atos estatais

  em g e -

ral .

 Elas

  são

 preventivas

 o u

 repressivas, pessoais

 o u

 objetivas.

A) As

 garantias preventivas tendem

  a

 evitar

 a

 produção

  d e

atos irregulares.  A s garantias repressivas reagem contra  o ato

irregular

  u m a v e z

  produzido, tendem

  a

  impedir

  su a

  renova-

ção n o

  futuro,

 a

 reparar

  o

 dano

  que e l e

  causou,

  a

 fazê-lo

 d e -

saparecer

 e ,

 eventualmente,

 a

 substituí-lo

  p o r u m a t o

 regular.

Esses dois elementos também podem, naturalmente,

  ser

unidos numa

  só e

 mesma medida

  d e

 garantia.

Entre

  as

 numerosas garantias puramente preventivas

 pos-

síveis, encontra-se  e  deve  ser  aqui considerada antes  de  mais

nada a organização e m  tribunal  da autoridade q u e cria  o direi-

to,  isto

  é,

  a  independência  d o  órgão  — pela inamovibilidade,

p o r exemplo - , consistindo essa independência em qu e ele nã o

pode  ser  juridicamente obrigado,  n o  exercício  d a s  suas  f u n -

ções, p o r nenhuma norma individual (ordem)  d e outro órgão,

em  particular  d e u m  órgão superior  o u  pertencente  a  outro

grupo  de  autoridades,  e por conseguinte  em q u e só está preso

às  normas gerais, essencialmente  à s  leis  e aos  regulamentos.

O  poder  d e  controlar  a s  leis e o s regulamentos, concedido  ao

tribunal,

  é

  outra questão.

  A

  idéia, ainda muito difundida,

 d e

qu e

  somente

  a

  regularidade

  d a

  jurisdição pode constituir

  tal

garantia, repousa

  n a

  hipótese equivocada

  de que

  entre juris-

dição

 e

 administração existe,

 d o

 ponto

 d e

 vista jurídico, isto

 é ,

d a

  teoria

  ou da

  técnica jurídicas,

  u m a

  diferença

  d e

  natureza.

Or a ,

  precisamente

  d o

  ponto

  de

  vista

  da sua

  relação

  com as

normas

 d o s

 graus superiores

 -

  relação decisiva para

 o

 postula-

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1 4 0  HANS KELSEN

do da

 regularidade

  do

 exercício

  da

 função

  não se

 pode

 per-

ceber ta l diferença entre administração e jurisdição, nem mes -

m o

 entre execução

 e

  legislação.

 A

 distinção entre jurisdição

 e

administração reside exclusivamente n o modo de organização

dos

 tribunais.

 A

 prova disso

 é a

 instituição

 d a

 jurisdição admi-

nistrativa,  que  consiste seja  em que atos administrativos, isto

é,

 atos normalmente produzidos

 por

 autoridades administrati-

vas, são produzidos por tribunais, seja  em que a regularidade

dos

 atos produzidos pelas autoridades administrativas

  é con-

trolada

 por um

 tribunal,

 e por

 conseguinte

 são

 anulados

 no ca-

so de

  serem tidos

  por

  irregulares,

  e

  eventualmente

  até

  refor-

mados, isto

  é,

  substituídos

  por um ato

  regular.

  A

  tradicional

oposição entre jurisdição e administração, e o dualismo basea-

do

  nessa oposição, existente

  nos

  aparelhos estatais

  de exe-

cução,  só podem  ser  explicados historicamente,  e são  fada-

dos a

 desaparecer

 se não

  forem, enganadores

 o s

 sintomas

 que

j á

  indicam

 u m a

 tendência

  à

 unificação desses aparelhos.

 D o

mesmo modo, é só historicamente que podemos explicar por

que a

 independência

  de um

 órgão

 em

  relação

 a

 outro

  é

 vista

como  u m a garantia  do exercício regular d as  suas funções.

A

 organização

 em

 tribunal

 do

 órgão

 d e

 criação

 do

 direito

é não apenas a garantia preventiva mais característica da regu-

laridade

 dos

 atos

 a

 produzir,

 m as

 também

 a

 primeira

 do

 grupo

de garantias que chamamos pessoais. A s outras são a respon-

sabilidade penal

 e

 disciplinar, assim como

 a

 responsabilidade

civil

 do

 órgão

 q u e

 produziu

  um ato

 irregular.

B)

  A s

 garantias objetivas,

 que têm ao

 mesmo tempo

 u m

caráter repressivo acentuado, são a nulidade ou a anulabilidade

do ato

 irregular.

A nulidade significa que um ato que pretende  ser um ato

jurídico, especialmente

 u m a to

 estatal,

 não o é

 objetivamen-

te po r ser irregular, isto é, por não preencher os requisitos que

um a

 norma jurídica

 de

 grau superior

 lhe

 prescreve.

 O ato

 nulo

carece

 de

 antemão

 de

 todo

 e

 qualquer caráter jurídico,

 de

 sorte

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

141

que não é necessário, para  lhe retirar  sua qualidade usurpada

de ato jurídico, u m outro a to jurídico. Se, em vez disso, tal ato

fosse necessário,

 n ã o

 estaríamos diante

 de um a

 nulidade,

 m a s

de um a

 anulabilidade. Todos, autoridades públicas

 e

 cidadãos

em geral,  têm o direito  de  examinar  em  todas as  circunstân-

cias  a  regularidade  do a to nulo,  de declará-lo irregular  e de

tratá-lo, em conseqüência, como não-válido, não-obrigatório.

Somente

 n a

 medida

 em que o

 direito positivo limite esse poder

de

 examinar qualquer

 ato que

 pretenda

 ter o

 caráter

 de ato ju -

rídico e de decidir sobre a sua regularidade, reservando-o  sob

condições precisas a certas instâncias determinadas, é que um

ato que sofra de um vício jur ídico qualquer pode não ser con-

siderado

 a priori

  nulo,

 m as

 somente anulável.

 N a

 ausência

 de

ta l

 limitação, qualquer

 ato

 jurídico viciado deveria

  ser

 consi-

derado nulo, isto  é, como  não sendo um a to jurídico.  D e fato,

os diversos direitos positivos contêm restrições acentuadas ao

poder

 que, em

 princípio, cabe

 de

 direito

 a

 qualquer

 um de tra-

tar os

  atos irregulares como nulos.

  E m

  geral,

  os

  atos

  dos

particulares

  e os

  atos

  das

  autoridades

  são

  tratados

  d e

  forma

diferente quanto a esse aspecto. E m linhas gerais, constata-se

u m a tendência a tratar o s atos d as autoridades públicas, inclu-

sive

 os

 atos irregulares, como válidos

 e

 obrigatórios enquanto

outro

 ato de

 outra autoridade

 não os faz

 desaparecer.

 A

 ques-

tão da

 regularidade

 ou da

 irregularidade

 dos

 atos

 d as

 autorida-

des não deve se r decidida pura e simplesmente pelo cidadão o u

pelo órgão estatal a que estes se dirigem pedindo obediência,

m a s

 pela própria autoridade

  q u e

 produziu

  o ato

 cuja regula-

ridade

  é

  contestada,

  ou por uma

 outra autoridade cuja deci-

são é provocada p o r meio de um procedimento determinado.

Esse princípio, aceito  e m  mais  ou menos larga medida

pelos diferentes ordenamentos,  e que  podemos denominar

princípio

 de

 autolegitimação

 d o s

 atos

 das

 autoridades públi-

cas ,

  comporta certos limites.

  O

 direito positivo nunca pode

decidir  que  qualquer  ato que se apresente como  ato de uma

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142

HANS KELSEN

autoridade pública deva,

  sem

  distinção,

  ser

  considerado

  tal

até ser  anulado  por um ato  emanado  de  outra autoridade.

Evidentemente, seria absurdo exigir tal procedimento para a

anulação, p o r exemplo, de um ato emanado de um  indivíduo

que não tem , sob nenhum aspecto, a qualidade de autoridade

pública.

  Ma s , p o r

  outro lado, tampouco

  é

 possível conside-

rar a priori

  como nulo qualquer

 a to

 produzido

 por um a

 autori-

dade incompetente

 ou

 constituída

 de

 forma irregular,

 ou

 ainda

segundo  u m procedimento irregular. O problema d a nulidade

absoluta, dificílimo tanto teórica quanto tecnicamente,

  só diz

respeito  à  questão  das  garantias  da  Constituição  na  medida

em que é

 necessário afirmar

 que

  também deve

  ser

  contem-

plada  a  nulidade  - que  nunca pode  ser  totalmente excluída

pelo direito positivo

 — dos

 atos imediatamente subordinados

 à

Constituição, e que, po r  conseguinte,  a nulidade desses atos

também  é, em certo sentido, u m a garantia  da Constituição.

N e m os

 cidadãos

 nem as

 autoridades públicas devem

 con-

siderar como  lei qualquer  ato que assim  se  intitule.  Sem dú-

vida nenhuma, pode haver atos

 que de lei só têm a

 aparência.

M as não se pode definir por meio de uma fórmula teórica ge-

ral o

 limite

 q ue

 separa

 o ato

 nulo

 a priori,  que é uma

 pseudolei,

de um a to legislativo viciado m a s válido,  de uma lei incons-

titucional. Somente

 o

 direito positivo poderia assumir essa

 ta-

refa;

  mas ele

  geralmente

  não o faz, em

  todo caso

  não o faz

conscientemente nem de maneira precisa. N a maioria das ve-

zes, deixa a solução dessa questão aos cuidados da autorida-

de a  quem cabe decidir, quando  um  indivíduo  -  cidadão  ou

órgão estatal

  - se

  recusa

  a

  obedecer

  ao ato em

  apreço,

  ale-

gando qu e era uma pseudolei. Mas, com isso, o ato em apreço

sai da

 esfera

 da

 nulidade absoluta para ingressar

 na da

 simples

anulabilidade. Porque n ão podemos deixar de ver, na decisão

da

 autoridade

 de que um a to a que se

 recusou obediência

 não

era um ato jurídico,  a anulação desse ato com certo efeito re-

troativo. O mesmo nã o se dá quando o direito positivo esta-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

143

belece u m mínimo d e condições que devem ser reunidas p a -

ra que o ato

 jurídico

  n ão

 seja nulo

  a priori.  É o que

 aconte-

ce , por exemplo, quando a Constituição determina  que  tudo

o que for

 publicado como

 lei no

  Diário Oficial

  deve valer

 c o-

mo lei ,

 quaisquer

 q ue

 possam

  ser

 suas outras irregularidades,

enquanto não fo r anulado p o r u m a instância qualificada para

tal.

 Porque,

 no f im das

 contas,

 é

 sempre

 u m a

 autoridade públi-

ca que deve declarar  de forma autêntica  se as condições  m í-

nimas foram ou não respeitadas, senão qualquer  um poderia

se

 dispensar

 de

 obedecer

 às

 leis, alegando simplesmente

  que

não são  leis.

D o

 ponto

 de

 vista

 do

 direito positivo,

 a

 situação daquele

a

 quem

 u m ato é

 dirigido

 com a

 pretensão

 de ser

 obedecido

 é,

sem  exceção, a seguinte: se considerar o ato nulo, ele pode se

recusar

 a

 obedecê-lo,

 m as

 sempre agindo

 por sua

 conta

 e

 risco,

isto é, ele corre o risco de que, processado po r desobediência,

a

 autoridade diante

 d a

 qual comparece

 não

 considere

 o ato nu -

lo ou

 declare preenchidas

 as

 condições mínimas estabelecidas

pelo direito positivo para sua validade, sob reserva da sua anu-

labilidade ulterior.

 N o

 caso contrário,

 a

 decisão

 d a

 autoridade

significa a cassação do ato com efeito retroativo até o momen-

to em que foi

 produzido. Essa interpretação

 se

 impõe porque

a

 decisão

 é o

 resultado

 de um

 procedimento

 que tem po r

 obje-

to a nulidade do ato — nulidade que, de início, é simplesmente

afirmada pelo interessado

 —;

 porque, conseqüentemente,

 a nu-

lidade não pode d e forma alguma ser considerada como defi-

nida antes d a conclusão d o procedimento, q ue poderá conduzir

a um a

 decisão

 que a

 nega;

  e

 porque

 a

 decisão deve

 te r

 neces-

sariamente u m caráter constitutivo, mesmo se em seu texto ela

pronuncia

 qu e o ato era

 nulo.

 D o

 ponto

 de

 vista

 do

 direito

 p o -

sitivo, isto

  é, da

  autoridade

  q u e

  decide sobre

  o ato

  suposta-

mente nulo, nunca h á nada mais que a anulabilidade, nem que

apenas

 no sentido  de que é

 possível apresentar

 a

 nulidade

 co-

m o u m  caso-limite d e anulabilidade - um a anulação com efei-

to retroativo.

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1 4 4

HANS KELSEN

A

 anulabilidade

 do ato

 irregular significa

 a

 possibilidade

de fazer que ele desapareça, juntamente com suas conseqüên-

cias jurídicas.

 A

 anulação comporta,

 na

 verdade, vários graus,

seja quanto

 a seu

 alcance, seja quanto

 a seu

 efeito

 n o

 tempo.

Do primeiro ponto d e vista, ela pode - é um a primeira so-

lução

 -

  limitar-se

 a um

 caso concreto.

  Se se

 tratar

  de um ato

individual, isso é evidente. M as é bem diferente quando se tra-

t a de um a

 norma geral.

 A

 anulação

 de um a

 norma geral fica

confinada ao caso concreto quando as autoridades -  tribunais

ou

 autoridades administrativas

 — q u e

 deveriam aplicar

 a nor-

m a

 podem

  ou

 devem recusar

 sua

 aplicação

 n o

 caso

 que

 lhes

 é

levado

  a

 exame,

  por a

  considerarem irregular,

  e

  decidir

  em

conseqüência como se ela nao estivesse e m vigor, m a s quan-

do ,

 para

  o

 resto, essa norma permanece

  em

 vigor

  e

 deve

  ser

aplicada e m outros casos p o r outras autoridades, as quais o u

não têm o poder de examinar sua regularidade e decidir a res-

peito desta,

  ou, se o têm, a

 consideram regular.

 A

 autoridade

chamada a aplicar  a norma geral, que tenha o poder  d e retirar

sua

  validade

  no

 caso concreto

  se

  reconhecer

  sua

  irregulari-

dade,  tem na realidade o poder de anulá-la—porque fazer d e -

saparecer

  a

 validade

  d e u ma

  norma

  e

 anulá-la

  são uma só e

mesma coisa - , mas a anulação é simplesmente parcial, limi-

tada

 ao

 caso

 em

 exame.

 É

 essa

 a

 situação

 dos

 tribunais

 - m as

não das autoridades administrativas — no que concerne aos re-

gulamentos,

  de

 acordo

 com boa

 parte

  das

 Constituições

 m o -

dernas.

 M as, no que

 concerne

 às

 leis,

 em

 regra geral eles estão

longe

 de

 possuir poderes

 de

 controle

 tão

 extensos.

 N a

 maior

parte

  dos

 casos eles

 n ã o

 podem examinar

 a

 regularidade,

  is-

to é, a constitucionalidade das leis s ob todos os aspectos, m as

apenas verificar

 a

 regularidade

 da

 publicação

 da lei; po r con -

seguinte n ão podem declinar sua aplicação n o caso concreto,

salvo

 em

 razão

 de uma

 irregularidade cometida nessa publica-

ção. Os defeitos e a insuficiência de uma anulação assim limi-

tada

  ao

 caso

 em

 exame

  são

 evidentes. Disso resulta, antes

 de

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL 1 4 5

mais nada, a falta d e unidade da s soluções e a insegurança  do

direito  daí  resultante,  que se faz  sentir desagradavelmente

quando

 um

 tribunal

  se

 abstém

  de

 aplicar

 u m

 regulamento

 ou

mesmo

  uma lei por

  considerá-los irregulares, quando outro

tribunal faz o contrário e quando é vedado às autoridades admi-

nistrativas recusar  a aplicação  da  norma,  se  também forem

chamadas

  a

 intervir.

  A

  centralização

  do

 poder

  de

  examinar

a

 regularidade

 d as

 normas gerais certamente

  se

 justifica

 sob

todos

  os

 aspectos.

  Mas se se

  decide confiar esse controle

  a

u m a autoridade única, torna-se possível abandonar a limita-

ção da anulação ao caso concreto e adotar o sistema  da anu-

lação total, isto

 é,

 para todos

 os

 casos

 em que a

 norma deveria

te r

 sido aplicada.

 É

 óbvio

  que um

  poder

  tão

 considerável

  só

pode  ser confiado a u m a  instância central suprema.

Quanto  ao seu alcance n o  tempo,  a anulação pode  se li-

mitar a o futuro ou, ao contrário, também se estender a o passa-

do,

 isto

 é ,

 ocorrer

 com ou sem

 efeito retroativo. Naturalmente,

essa diferença

 só t em

 sentido para

 os

 atos

 q u e

 tenham conse-

qüências jurídicas duradouras; ela diz respeito portanto, antes

de mais nada, à anulação das normas gerais. O ideal da segu-

rança jurídica requer  que , geralmente,  só se  atribua efeito à

anulação

 de uma

 norma geral irregularpro futuro,  isto

 é, a pa r-

tir da

 anulação. Deve-se considerar inclusive

  a

 possibilidade

de não se deixar  a anulação entrar em vigor antes de expirar

certo prazo. D o mesmo modo q u e pode haver razões válidas

para fazer

 a

 entrada

  em

 vigor

 d e u m a

 norma geral

  ser

 prece-

dida

 por um a

  vacatio legis,

 também poderia haver motivos

 p a-

ra que um a

 norma

 só

 deixasse

 de

 vigorar expirado certo prazo

a partir da sentença d e anulação. N o entanto, certas circuns-

tâncias podem tornar necessária u m a anulação retroativa. Não

se

 deve pensar apenas

 n o

 caso extremo, precedentemente

 con-

siderado,

 de um a

 retroatividade ilimitada,

 em q ue a

 anulação

do ato equivale à sua nulidade, quando, de acordo com a apre-

ciação soberana da autoridade competente para anulá-lo ou em

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1 4 6  HANS KELSEN

virtude

  d a

 exigência pelo direito positivo

  de um

  mínimo

  de

condições para

 sua

 validade,

 o ato

 irregular deve

 ser

 reconhe-

cido como sendo pura e simplesmente u m pseudo ato jurídico.

Deve-se considerar antes

  de

 mais nada

  u m

 efeito retroativo

excepcional, limitado

 a

 certos casos específicos

 ou a um a cer-

ta categoria  de casos.

Para organizar tecnicamente a anulação de um ato, é tam -

b é m d e  grande importância saber  se  poderá emanar apenas

do próprio órgão que o produziu  ou se será confiada a outro

órgão.  A adoção  d o primeiro  dos dois procedimentos deve-

se antes d e tudo  a condições de prestígio. Pretende-se evitar

que a autoridade do órgão que editou a norma irregular e que

é

 considerado como órgão supremo,

  ou que

 pelo menos

 age

sob o controle e responsabilidade de um órgão supremo,  se-

j a

  enfraquecida

 —

 especialmente

  se se

 tratar

  de uma

  norma

geral - com o fato de outro órgão ser autorizado a anular seus

atos  e se colocar,  c o m isso, acima dele, quando  ele deve  ser

considerado supremo.  Não é apenas a  soberania do órgão

q u e produziu o ato irregular, m as também  o dogma da sepa-

ração  dos  poderes  que é  invocado aqui para evitar  a  anula-

ção dos atos de um a  autoridade po r outra.  É o que acontece,

por exemplo, quando se trata do s atos das autoridades admi-

nistrativas supremas

 e

 quando

 a

 instância eventualmente

 cha-

mada  a anulá-los deveria estar fora da organização adminis-

trativa e ter, tanto por sua função como por sua organização,

o

 caráter

 d e

 autoridade jurisdicional independente, isto

 é, de

tribunal. Dado

 o

 caráter mais

 que

 problemático

 da

 distinção

entre judiciário

 e

 administração,

 a

 invocação

 da

 separação

 dos

poderes

  t e m ,

 nesse caso,

 tão

 pouco valor quanto

 a da

  sobe-

rania

do

 órgão. Aliás,

 os

 dois argumentos

 têm um

 papel

 par-

ticular

 n a

  questão

 das

  garantias

 da

 Constituição.

  A

 pretexto

de que a

 soberania

 d o

 órgão

 q ue

 produz

 um ato

 irregular

 ou de

que a separação dos poderes devem ser respeitadas, deixa-se a

anulação do a to irregular à discrição desse mesmo órgão,  só

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL 1 4 7

se

  concedendo

  aos

  interessados

 o

 direito

 de

 fazer

 u m

 pedido

de

 anulação desprovido

 de

 força vinculatória, simples repre-

sentação .

  O u

 então existe

 u m

 procedimento regular

  que de-

ve

 levar

 à

 ab-rogação

 do ato

 irregular

 por seu

 autor,

 m as o ato

provocatório

  do

 procedimento obriga

  a

  autoridade apenas

  a

iniciá-lo,

 mas não a

 terminá-lo

 de

 certo modo, isto

 é ,

 pela

 anu-

lação

  do ato

  impugnado. Essa anulação permanece pois

  no

âmbito

 do

 poder discricionário, embora legalmente condicio-

nado, do próprio órgão que produziu o ato irregular e que ne-

nhum órgão superior controla. Seria necessário enf im consi-

derar  u m  terceiro sistema,  que aliás constitui  u m a  transição

para o segundo tipo indicado: a questão da regularidade do ato

é resolvida  por outra autoridade, mas a anulação é reservada

ao órgão que a produziu. Esse órgão, entretanto, pode  ser ju -

ridicamente obrigado pela decisão  do outro órgão  de anular

o ato reconhecido como irregular; a execução dessa obrigação

pode

 até ser

 vinculada

 a u m

 prazo.

 M a s n e m

 mesmo essa

  va-

riante proporciona

 u m a

 garantia suficiente, inútil prová-lo

 em

detalhe. Essa garantia só existe se a anulação do ato irregular

fo r

 pronunciada imediatamente

 por um

 órgão completamente

diferente

 e

 independente daquele

 que

 produziu

 o ato

 irregular.

Atendo-nos

 à

 divisão tradicional

 das

 funções estatais

 e m

 legis-

lação, jurisdição

 e

 administração, assim como

 à

 divisão

 cor-

respondente

  do

 aparelho estatal

 e m

 três grupos

 d e

 órgãos

 - um

aparelho legislativo, um aparelho jurisdicional e u m aparelho

administrativo - ,  devemos distinguir entre  o caso  em que a

anulação de um a to irregular permanece  n o interior do mes-

m o aparelho (por exemplo, n o caso  em que os atos adminis-

trativos ou as sentenças irregulares são anulados por um novo

ato administrativo ou por uma nova sentença, isto é, por um ato

que

 emana

 de uma

 autoridade pertencente

 ao

 mesmo grupo

 de

órgãos, autoridade administrativa superior  nu m caso, autori-

dade judiciária superior no outro) e o caso em que a autoridade

que anula pertence a outro grupo de órgãos. O recurso hierár-

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1 4 8

  IIANS KELSEN

quico pertence

  ao

 primeiro tipo;

 a

 jurisdição administrativa

é exemplo do segundo. É uma característica dos modernos sis-

temas jurídicos

  ser a

 regularidade

  dos

 atos jurisdicionais

  ga-

rantida quase  sem  exceção  po r meios  d o  primeiro tipo.  D e

fato, a  independência do s tribunais é vista como um a garan-

tia  suficiente da regularidade de  seus atos.

A

  anulação

  do ato

  irregular levanta

  o

 problema

  de sua

substituição

 por um ato

 regular.

 A

 esse respeito

  é

 necessário

distinguir duas possibilidades técnicas:

 a

 autoridade compe-

tente também pode ter o poder de substituir o ato anulado por

um ato

 regular, isto

 é, não

 apenas anulá-lo como também

  re-

formá-lo; ma s a elaboração  do ato regular pode  ser deixada

ao  encargo  da autoridade cujo a to  irregular  fo i anulado.  Se

ela estiver então vinculada  à solução jurídica  que o órgão de

anulação formulou

  na sua

  decisão

  (por

  exemplo,

  n a

  forma

de motivos), sua independência sofre um a restrição, fato que, se

se

 tratar

 d a

 anulação

 de uma

 sentença,

 não

 deve

 ser

 menospre-

zado

  ao se

 apreciar

 a

 independência

  dos

 juízes como garan-

tia

 específica

 da

 regularidade

  da

 execução.

V As  garantias  da  constitucionalidade

Entre  as  medidas técnicas precedentemente indicadas,

que têm po r objeto garantir a regularidade d as funções esta-

tais,

  a

 anulação

  do ato

  inconstitucional

  é a que

 representa

  a

principal

  e

 mais eficaz garantia

  d a

  Constituição.

  O que não

quer dizer

 que não se

 possa considerar outros meios

  de

 asse-

gurar  a regularidade dos atos  que lhe são subordinados.

Sem  dúvida, a garantia preventiva, pessoal  - a organiza-

ção em  tribunal  do órgão q ue produz  o ato  fica excluída  de

antemão.

 A

 legislação,

 de que

 tratamos aqui

 em

 primeira linha,

não pode  ser confiada a um  tribunal, n ã o  tanto p o r causa  d a

diversidade

 das

 funções legislativa

 e

 jurisdicional,

 m as

 antes

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL  1 4 9

porque  a organização  do  órgão legislativo  é  essencialmente

dominada

 por

 outros pontos

 de

 vista

 que não o da

 constitucio-

nalidade de seu funcionamento. Aqui quem decide é a grande

antítese entre democracia  e autocracia.

Já as

 garantias repressivas

 — a

  responsabilidade consti-

tucional

  e a

 responsabilidade civil

 d os

 órgãos

 que

 viessem

  a

produzir atos irregulares

  - são

 perfeitamente possíveis,

 mas

apenas no que concerne à legislação, e não, é claro, no que diz

respeito

 ao

 Parlamento como

  tal ou a

 seus membros:

  um ór -

gão

 colegiado

 não é, por

 diferentes motivos, sujeito apropria-

do de

 responsabilidade penal

  o u

 civil.

 N o

 entanto,

  os

 indiví-

duos associados  à  legislação  -  chefe  de  Estado, ministros  -

podem  ser  responsabilizados pela inconstitucionalidade  das

leis, principalmente

 se a

 Constituição dispuser

 q u e

 assumam,

pela promulgação  o u  pela sanção,  a  responsabilidade pela

constitucionalidade  do procedimento legislativo.  D e  fato,  a

instituição

  da

  responsabilidade ministerial, característica

  das

Constituições modernas, também serve para assegurar

 a

 cons-

titucionalidade

  das

  leis,

 e é

 óbvio

  que

 essa responsabilidade

pessoal d o órgão pode ser empregada para garantir a legalidade

dos regulamentos e também, em particular, a regularidade dos

atos individuais imediatamente subordinados

 à

 Constituição.

Quanto

  a

 esse último ponto, também

  é

 possível pensar

em especial n a responsabilidade pecuniária pelos danos  cau-

sados  p o r  atos irregulares. Todavia, como prova  a  história

constitucional,

  a

 responsabilidade ministerial

 não é um

 meio

muito eficaz,

 e

 mesmo

  as

 outras garantias pessoais

 são

  igual-

mente insuficientes pois  não atingem  a força obrigatória  d o

ato  irregular,  em particular  da lei  inconstitucional. Dado  es-

se

  estado

  de

  coisas,

  é

  difícil dizer

  a té

  mesmo

  que a

 Cons-

tituição seja u m a  garantia: ela só o é verdadeiramente quan-

do a anulação  dos atos inconstitucionais  é possível.

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150

HANS KELSEN

1. A

 jurisdição constitucional

9. Não há hipótese  de garantia  da  regularidade  em que

possa ser maior a tentação d e confiar a anulação d o s atos  ir-

regulares

  a o

  próprio órgão

  que os

 produziu

  do que a da ga-

rantia

 da

 Constituição.

 E, em

 nenhum caso, esse procedimento

seria, precisamente, mais contra-indicado.

  C om

 efeito,

 a úni-

ca

 forma

 em que se

 poderia vislumbrar,

 e m

 certa medida,

 um a

garantia eficaz da constitucionalidade (declaração de irregu-

laridade por um terceiro órgão e obrigação do órgão autor do

ato irregular de anulá-lo) é impraticável nesse caso, porque o

Parlamento

 não

 pode,

 p o r

 natureza,

 ser

 obrigado

 de

 modo

 e f i -

caz. E seria ingenuidade política contar que ele anularia u m a

le i votada po r e le próprio pelo fato d e outra instância a ter de -

clarado inconstitucional*.

 O

 órgão legislativo

 se

 considera

 n a

realidade

 u m

 livre criador

 do

 direito,

 e não um

 órgão

 de

 apli-

cação

 do

 direito, vinculado pela Constituição, quando teori-

camente ele o é s im, embora numa medida relativamente res-

trita. Portanto  não é com o próprio Parlamento que podemos

contar para efetuar

  sua

  subordinação

  à

 Constituição.

  É um

órgão diferente dele, independente dele  e, por conseguinte,

também  de  qualquer outra autoridade estatal,  que  deve  ser

encarregado

  da

  anulação

  de

  seus atos inconstitucionais

  -

isto é , um a jurisdição  ou um  tribunal constitucional.

Costumam-se fazer certas objeções a esse sistema. A pri-

meira, naturalmente,  é que tal instituição seria incompatível

com a

 soberania

 d o

 Parlamento.

 Mas, à

 parte

 o

 fato

 de que não

se pode falar de soberania de um órgão estatal particular, pois

a soberania pertence no máximo à própria ordem estatal, esse

argumento

 cai por

 terra pelo simples fato

 de q ue é

 forçoso

 re-

* N o

  Brasil,

  p o r

  força

 d a

  disposição constitucional, muitas normas

  a n u -

ladas pelo Supremo Tribunal Federal tiveram

  su a

  execução suspensa medi-

ante resolução  d o  Senado  (v . ar t . 52-X da Constituição  d e  1988).  (N . d o R . T . )

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

151

conhecer que a Constituição regula no f im das contas o pro-

cesso legislativo, exatamente

 da

 mesma maneira como

 as

 leis

regulam o procedimento do s tribunais e das autoridades  admi-

nistrativas, que a legislação é subordinada à Constituição exa-

tamente como

 a

 jurisdição

  e a

 administração

  o são à

  legisla-

ção , e que, por conseguinte, o postulado da  constitucionalida-

de das

  leis

  é,

 teórica

  e

  tecnicamente, absolutamente idêntico

ao postulado da legalidade  da jurisdição e da administração.

Se, ao

 contrário dessas concepções,

  se

 continua

  a

 afirmar

 a

incompatibilidade

  da

 jurisdição constitucional

  com a

  sobera-

nia do

  legislador,

  é

  simplesmente para dissimular

  o

  desejo

do

 poder político,

 que se

 exprime

 n o

 órgão legislativo,

 de não

se  deixar limitar pelas normas  da  Constituição,  em  patente

contradição, pois,

  com o

 direito positivo.

 N o

 entanto, mesmo

se tal  tendência  fo r aprovada  p o r  motivos  de  oportunidade,

não há argumento jurídico  em que e la possa  se embasar.

Não é

 muito diferente

 o que

 ocorre

  com a

 segunda obje-

ção, decorrente do princípio da separação d os poderes. Claro,

a

 anulação

de um ato

 legislativo

 por um

 órgão

  que não o ór-

gão legislativo mesmo, constitui u m a intromissão n o  poder

legislativo , como

 se

 costuma dizer.

 Mas o

 caráter problemá-

tico dessa argumentação logo salta

  aos

 olhos,

  ao se

 conside-

rar que o órgão  a que é confiada a anulação das  leis incons-

titucionais

  n ão

 exerce

  u m a

  função verdadeiramente jurisdi-

cional, mesmo  se , com a independência d e seus membros, é

organizado

 em

 forma

  d e

 tribunal. Tanto quanto

 se

 possa distin-

gui-las,

  a

 diferença entre função jurisdicional

  e

  função

  le-

gislativa consiste antes

  d e

  mais nada

  em que

  esta cria

  nor-

m a s gerais, enquanto aquela cria unicamente normas indivi-

duais

1

.  Ora ,  anular  uma le i é  estabelecer  u m a  norma geral,

1. N â o

  podemos menosprezar aqui

  o

  falo

  d e q u e

  mesmo essa distinção

n ã o é u m a

  distinção

  d e

  princípio

  e de que o

  legislador,

  e m

  particular

  -

  espe-

cialmente

  o

 Parlam ento tam bém pod e estabelecer norm as individuais.

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1 5 2

HANS KELSEN

porque

 a

  anulação

  de uma lei tem o

 mesmo caráter

 de

 gene-

ralidade qu e sua elaboração, nada mais sendo, por assim dizer,

que a

 elaboração

 c om

 sinal negativo

 e

 portanto

 e la

 própria

 uma

função legislativa.

 E um

 tribunal

 q ue

 tenha

 o

 poder

 d e

 anular

 a s

leis é, po r conseguinte, u m órgão do poder legislativo. Portan-

to poder-se-ia interpretar  a  anulação  d as  leis  po r um  tribu-

nal

  tanto como

  u m a

  repartição

  do

  poder legislativo entre

dois órgãos, quanto como

  u m a

  intromissão

  n o

  poder legis-

lativo.  Ora , nesse caso,  não se  costuma falar de  violação  do

princípio  da separação dos poderes, como, p or exemplo, quan-

do nas

 Constituições

 das

 monarquias constitucionais

 a

 legisla-

ção é confiada e m princípio ao Parlamento em conjunto com o

monarca, m as em certas hipóteses excepcionais o monarca, em

conjunto

 com os

 ministros,

 tem o

 direito

 de

 editar decretos

 que

derrogam

  as

 leis. Levar-nos-ia longe demais examinar aqui

 os

motivos politicos que deram origem a toda essa doutrina da se-

paração dos poderes, embora seja essa a única maneira d e evi-

denciar

 o

 verdadeiro sentido desse princípio, função

 do

 equi-

líbrio constitucional. Para mantê-lo

 n a

 República democrática,

só pode ser levado razoavelmente em conta, dentre esses dife-

rentes significados, aquele que a expressão divisão dos pode-

res

traduz melhor

 que a de

 separação, isto

 é, a

 idéia

 da

 repar-

tição do poder entre diferentes órgãos, n ão tanto para isolá-los

reciprocamente quanto para permitir um controle recíproco d e

uns

 sobre

  os

 outros.

 E

 isso

 não

 apenas para impedir

 a

 concen-

tração

 de u m

 poder excessivo

 n as

 mãos

 de um só

 órgão

  - con-

centração que seria perigosa para a democracia  m as também

para garantir

  a

  regularidade

  do

  funcionamento

 d o s

 diferen-

tes

 órgãos.

 M as

 então

 a

 instituição

 d a

 jurisdição constitucional

não se acha de forma alguma  em contradição  com o princípio

da

 separação

 dos

 poderes;

 ao

 contrário,

 é uma

 afirmação dele.

A  questão de saber  se o órgão chamado  a anular  as  leis

inconstitucionais pode  ser um  tribunal  é , por  conseguinte,

desprovida

  de

 importância,

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

  1 5 3

Sua

 independência diante

 do

 Parlamento como diante

 do

governo

  é um

  postulado evidente. Porque precisamente

  o

Parlamento  e o  governo  é que  devem  ser,  como órgãos par -

ticipantes

  do

  processo legislativo, controlados pela jurisdi-

ção constitucional. Caberia no máximo examinar se o fato de

a anulação das leis ser, ela própria, u m a função legislativa, não

acarretaria certas conseqüências particulares

 no que

 concerne

à composição e à nomeação dessa instância. M as na realidade

não é

 assim. Porque todas

 as

 considerações políticas

  que do-

minam a questão d a formação do órgão legislativo n ão entram

em linha de conta quando se trata da anulação das leis. É aqui

que

 aparece

  a

 distinção entre

  a

 elaboração

  e a

 simples

  anu-

lação das leis. A anulação de um a lei se produz essencialmen-

te

 como aplicação

 d as

 normas

 da

 Constituição.

 A

 livre criação

que  caracteriza  a  legislação está aqui quase completamente

ausente. Enquanto

 o

 legislador

 só

 está preso pela Constituição

no que

 concerne

 a seu

 procedimento

  - e, de

 forma totalmen-

te excepcional, no que concerne ao conteúdo das  leis que de-

ve editar, e mesmo assim, apenas p o r princípios ou diretivas

gerais  a atividade do legislador negativo, da jurisdição cons-

titucional,

 é

 absolutamente determinada pela Constituição.

 E

é

 precisamente nisso

 que sua

 função

 se

 parece

 com a de

 qual-

quer outro tribunal  em geral:  ela é principalmente aplicação

e

 somente

 em

 pequena medida criação

 d o

 direito.

 É, por con -

seguinte, efetivamente jurisdicional. Portanto o s mesmos prin-

cípios essenciais

  q u e

  presidem

  sua

  constituição

  são

 válidos

para  a organização  dos  tribunais  ou dos órgãos executivos.

A esse respeito, não se pode propor um a solução unifor-

m e

  para todas

  as

 Constituições possíveis.

 A

 organização

  da

jurisdição constitucional deverá se adaptar às particularidades

de  cada  um a  delas.  Eis,  contudo, algumas condições  de al-

cance

  e

 valor gerais.

O número de seus membros não deverá  ser elevado, pois

é

 sobre questões

 d e

 direito

 que ela é

 chamada

 a se

 pronunciar,

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1 5 4  HANS KELSEN

e ela

 deve cumprir

  u m a

  missão puramente jurídica

  de

  inter-

pretação

  d a

  Constituição. Entre

  os

  modos

  de

  recrutamento

particularmente típicos,  não poderíamos preconizar  sem re-

servas

 n e m a

 simples eleição pelo Parlamento,

 nem a

 nomea-

ção

 exclusiva pelo chefe

 d e

 Estado

  ou

 pelo governo. Talvez

fosse possível combinar ambas,

 p or

 exemplo

 com o

 Parlamen-

to

 elegendo juízes apresentados pelo governo,

 que

 deveria

 de-

signar vários candidatos para cada  uma das  vagas  a  serem

preenchidas,

  ou

 vice-versa.

 E da

 mais alta importância

  con-

ceder, n a composição d a jurisdição constitucional, u m  lugar

adequado  aos juristas  d e carreira.  Por  exemplo, poder-se-ia

conseguir isso atribuindo às Faculdades de Direito, ou a um a

comissão comum  d e todas as Faculdades de Direito do país,

u m direito d e apresentação para pelo menos um a parte das va-

gas, ou também atribuindo ao próprio tribunal o direito de fazer

um a

 apresentação para cada vaga

 q ue

 suija

 ou de

 preenchê-las

por

 eleição, isto

  é, por

  cooptação.

  D e

 fato,

 o

  tribunal

  tem o

maior interesse em fortalecer sua autoridade trazendo a si es-

pecialistas eminentes. Também

 é

 importante excluir

 d a

 juris-

dição constitucional

 os

 membros

 do

 Parlamento

 ou do

 governo,

já que são precisamente os atos  de ambos  que ela deve  con-

trolar.

 É tão

 difícil quanto desejável afastar qualquer influência

política da jurisdição constitucional. Não se pode negar que os

especialistas também podem  -  consciente  ou  inconsciente-

mente - deixar-se determinar por condições d e ordem política.

Se esse perigo fo r particularmente grande,  é quase preferível

aceitar,

 em ve z de um a

 influência oculta

 e por

 conseguinte

  in-

controlável  dos partidos políticos,  sua participação legítima

na

 formação

 do

 tribunal,

 p o r

 exemplo fazendo

 que um a

 parte

das

 vagas seja preenchida

  por

 eleições realizadas pelo Parla-

mento, levando-se e m conta a força relativa dos partidos. Se as

outras vagas forem atribuídas  a especialistas, estes poderão

levar muito mais em conta as condições puramente técnicas,

porque então

  sua

  consciência política

  se

  veria aliviada pela

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

1 5 5

colaboração

 d os

 membros

 a que

 caberia

 a

 defesa

 d os

 interes-

ses propriamente políticos.

O objeto  do  controle  de  constitucionalidade

10.1. A s

 leis cuja inconstitucionalidade

 é

 alegada cons-

tituem  o objeto principal d a jurisdição constitucional.

Por

 leis, cumpre entender

 os

 atos assim denominados

 dos

órgãos legislativos, isto é, nas democracias modernas, dos par -

lamentos centrais  ou ,  tratando-se  de um  Estado federativo,

locais.

Devem  ser  submetidos ao controle da jurisdição consti-

tucional todos

  os

 atos

  que

  revestem

  a

 forma

 de

  leis, mesmo

se contêm tão-somente normas individuais, por exemplo o or-

çamento

  ou

  todos

  os

  outros atos

  que a

  doutrina tradicional,

por um a razão qualquer, tende a ver, a despeito de sua forma

de lei, como

  simples atos administrativos.

 O

 controle

 da

 regu-

laridade

 de

 tais atos

 n ã o

 pode

  ser

 confiado

 a

 nenhuma outra

instância

  que não a

 jurisdição constitucional.

  M as

 mesmo

  a

constitucionalidade d e outros atos do Parlamento, que segun-

do a

 Constituição

 t êm

 caráter obrigatório

 sem

 revestir neces-

sariamente a forma d e leis, n ão sendo exigida sua publicação

no Diário Oficial,

 como

 o

 regimento interno

 d o

 Parlamento

 o u

a votação do orçamento (supondo-se, naturalmente,  que am -

bos não

 precisem existir

 n a

 forma

 d e

 leis)

 e

 outros atos seme-

lhantes, deve

  ser

 verif icada pela jurisdição constitucional.

D o

 mesmo modo, todos

 os

 atos

 que

 pretendam valer

 co-

m o leis, mas que não o sejam devido à falta de uma condição

essencial qualquer (supondo-se, naturalmente,

 que

 eles

 não se-

j a m viciados pela nulidade absoluta, caso em que não pode-

riam  ser objeto de um procedimento de controle), assim como

os

 atos

 que não

 pretendam

  ser

 leis,

 m as que

 segundo

 a

 Cons-

tituição deveriam  ser, e que - por exemplo, para escapar  do

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1 5 6 HANS KELSEN

controle

 de

 constitucionalidade

  -

  tenham sido inconstitucio-

nalmente revestidos

  de

  outra forma,

 por

  terem sido votados

pelo Parlamento como simples resoluções não publicadas,  ou

publicados como simples regulamentos.

 N o

 caso,

 p or

 exem-

plo, em que a

 jurisdição constitucional devesse controlar

 ape-

nas a  constitucionalidade  das  leis  e em que o  governo,  não

podendo obter a aprovação de um a lei, disciplinasse p or meio

de  decreto  u m a  matéria  que ,  segundo  a Constituição,  só o

pode  ser por via  legislativa, esse decreto  q u e  faria inconsti-

tucionalmente  as vezes  de lei  deveria poder  ser  impugnado

na jurisdição constitucional.

Esses exemplos não são imaginários. Viu-se n a Áustria  o

Parlamento de um estado-membro  da Federação tentar regu-

lamentar certa matéria por meio de um a simples resolução não

publicada, p o r saber que um a lei seria anulada pela jurisdição

constitucional.

  Se se

  quiser impedir

  que o

 controle jurisdi-

cional seja contornado, tais atos deverão  ser  levados àquela

jurisdição. E esse princípio deve-se aplicar, por analogia, a to-

dos os outros objetos do controle  d e  constitucionalidade.

11. II. A competência da jurisdição constitucional não de-

ve se limitar  ao controle da constitucionalidade das leis.

E la  deve-se estender primeiramente  aos  decretos  com

força de lei, atos imediatamente subordinados à Constituição

cuja regularidade consiste exclusivamente — conforme já in-

dicado  - em sua constitucionalidade. É o caso, notadamente,

dos

 decretos

  de

 necessidade.

 O

 controle

 da sua

  constituciona-

lidade  é  tanto mais importante porque qualquer violação  à

Constituição significa aqui

 um

 atentado

 ao

 limite,

  tão

 impor-

tante politicamente,

  que se

  estende entre

  a

 esfera

 do

  gover-

no e a do

 Parlamento. Quanto mais estritas

  as

 condições

  em

que a

 Constituição

  os

 autoriza, tanto maior

  o

 perigo

  de uma

aplicação inconstitucional dessas disposições, e tanto mais n e-

cessário um controle jurisdicional de sua regularidade. D e fato,

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

1 5 7

a

 experiência ensina

  que ,

 onde

 a

 Constituição autoriza esses

decretos  de necessidade,  sua  constitucionalidade  é  sempre,

com ou sem

 razão, apaixonadamente contestada.

 É

 muito

 im -

portante

 que

 exista, para resolver esses litígios,

 u m a

  instância

suprema cuja objetividade seja inconteste, principalmente

 se,

por exigência das circunstâncias, eles se produzem  em domí-

nios importantes.

N ã o

 apresenta dificuldade

 o

 controle

 da

 constitucionali-

dade, pela jurisdição constitucional,

 dos

 decretos

 que

  derro-

gam as leis, pois na hierarquia  dos fatos jurídicos tais decre-

tos se

 encontram

  no

 mesmo nível

 das

 leis,

 e às

 vezes

  até são

chamados

  de

  leis

  o u

  decretos

  co m

  força

  de lei . Mas

  seria

  o

caso  de  atribuir igualmente  à jurisdição constitucional  o con-

trole da constitucionalidade  dos simples decretos regulamen-

tares.

  Sem

 dúvida esses decretos, conforme

 já

  dissemos,

 não

são

 atos imediatamente subordinados

 à

 Constituição;

  sua ir-

regularidade consiste imediatamente  em sua  ilegalidade,  e

apenas  de forma mediata  em sua  inconstitucionalidade.  Se,

apesar disso, propomos estender

 a

 eles

 a

 competência

  da ju-

risdição constitucional,

 não é

 tanto

 em

 consideração

 à

 relati-

vidade precedentemente assinalada  da oposição entre consti-

tucionalidade direta

 e

 constitucionalidade indireta, quanto

 em

consideração

 ao

 limite natural entre atos jurídicos gerais

 e

 atos

jurídicos individuais.

O  ponto essencial  na determinação  da  competência  da

jurisdição constitucional

  é, de

  fato, delimitá-la

  de

  maneira

adequada

 em

 relação

  à

 competência

 da

 jurisdição administra-

tiva  q u e  existe na  maioria  dos Estados.  De um ponto  de vista

puramente teórico, seria possível basear  a  separação dessas

duas competências

  n a

  noção

  de

  garantia

  d a

  Constituição,

atribuindo

  à

 jurisdição constitucional

  a

 decisão

  da

 regulari-

dade  de  todos  os  atos imediatamente subordinados  à  Cons-

tituição. Seriam então indubitavelmente  de sua  competência

casos

 que, em

 muitos Estados,

  são

 hoje

  da

  competência

  dos

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1 5 8

HANS KEISEN

tribunais administrativos, p o r exemplo  os  litígios relativos  à

regularidade  dos  atos administrativos individuais imediata-

mente subordinados  à Constituição.  Por outro lado,  ela não

se  estenderia  ao  controle  de  certos atos jurídicos  que  hoje

n ão

 pertencem,

  em

 geral,

  à

 jurisdição administrativa.

  Ora, a

jurisdição constitucional

 é

 certamente

 a

 instância mais quali-

ficada para pronunciar

 a

 anulação

 d os

 decretos ilegais.

 E não

apenas porque,

  com

  isso,

  ela não

  disputaria

  a

  competência

atualmente reconhecida

 - em

  geral

  - aos

 tribunais adminis-

trativos,

  e

  limitada

  em

  princípio

  à

  anulação

  dos

  atos admi-

nistrativos individuais,

  m a s e m

  particular porque

  há uma

afinidade íntima entre

 o

 controle

 da

 constitucionalidade

 das

leis

 e o

 controle

 da

 legalidade

 d os

 decretos, devido

 a seu

 cará-

ter

  geral. Dois pontos

  de

  vista concorrem,

  por

  conseguinte,

para

 a

 determinação

 d a

 competência

 da

 jurisdição constitucio-

nal: de um

 lado,

 a

 noção pura

 de

 garantia

  da

 Constituição,

 que

levaria

 a

 colocar

 na sua

 esfera

 o

 controle

 de

 todos

 os

 atos

 ime-

diatamente subordinados  à  Constituição,  e  somente eles;  de

outro,

  a

  oposição entre atos gerais

  e

  atos individuais,

  que

levaria

  a

 incluir nela

  o

 controle

  das

 leis

 e

 também

  dos

 decre-

tos.

 Deixando

 d e

 lado todo

 e

 qualquer preconceito doutrinal,

é  preciso combinar esses dois princípios  de  acordo  com as

necessidades da Constituição considerada.

12. III. Se os  decretos forem postos  no  domínio  da ju-

risdição constitucional, podem surgir certas dificuldades

 n o

q u e

  concerne

  à sua

 delimitação exata, devido

  a que há cer-

tas

 categorias

 de

 normas gerais

 que não se

 deixam facilmen-

te

  distinguir

  dos

  regulamentos, notadamente

  as que

 estão

  na

esfera

 d a

 autonomia municipal, mediante deliberação

 das câ-

maras

 e

 outras autoridades municipais,

 ou

 ainda

 as que

 estão

contidas em  atos jurídicos que só se tornam obrigatórios m e-

diante  a  aprovação  por uma  autoridade pública  (por  exem-

plo: tarifas d as companhias ferroviárias, estatutos das socie-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL 1 5 9

dades p o r ações, contratos coletivos de trabalho, etc. . Entre as

regras gerais de direito  qu e emanam exclusivamente  de uma

autoridade administrativa, isto

 é , o

 regulamento

 stricto sensu,

e o s atos jurídicos gerais de direito privado, é de fato possível

um

 grande número

  de

 graus intermediários. Toda demarca-

ção entre eles sempre será, portanto, mais ou menos arbitrá-

ria. Com  essa reserva, podemos recomendar submeter  ao

controle  da  jurisdição constitucional apenas  as  normas  ge-

rais

 que

 emanam exclusivamente

 de

 autoridades públicas,

 se-

ja m

 elas autoridades centrais

  ou

  locais, autoridades estatais

no

 sentido estrito

 da

 palavra, autoridades regionais

 ou até mu -

nicipais.  O município também  é membro  do Estado,  e  seus

órgãos  são órgãos estatais descentralizados.

13. IV

 Como indicamos anteriormente,

 do

 ponto

 de

 vista

do

 primado

 da

 ordem estatal

 os

 tratados internacionais também

devem

 ser

 considerados como atos imediatamente subordina-

dos à

 Constituição. Normalmente eles

 têm o

 caráter

 d e

 regras

gerais. Se se achar necessário instituir u m controle de sua regu-

laridade, pode-se pensar seriamente

  em

  confiá-lo à jurisdição

constitucional. Nada  se opõe, juridicamente, a que a Consti-

tuição

 de um

 Estado

 lhe

 atribua essa competência,

 com o

 poder

de

 anular

 os

 tratados

 qu e

 reconhecer como inconstitucionais.

A

 favor dessa extensão

 da

 jurisdição constitucional poderiam

ser  invocados argumentos  de  peso. Sendo  u m a  fonte  de di-

reito equivalente à lei, o tratado internacional pode derrogar as

leis; portanto é do maior interesse político que ele seja confor-

m e à

 Constituição

 e

 respeite

 em

 particular

 as

 regras desta

 que

determinam

 o

 conteúdo

 d as

 leis

 e dos

 tratados. Nenhuma regra

de

 direito internacional

  se

 opõe

 a

 esse controle

 dos

 tratados.

Se,  como devemos admitir,  o  direito internacional autoriza

os Estados a determinar e m suas Constituições o s órgãos que

podem firmar validamente tratados, isto é , firmá-los de forma

que

 obriguem

 as

 partes contratantes,

 n ão

 pode

 ser

 contrário

 ao

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

1 6 1

como sendo unilateral.

  M as

 essa

  é um a

 questão estranha

  ao

objeto desta exposição,  e é um a  solução  que o  desenvolvi-

mento técnico

  do

  direito internacional

  no

  momento atual

talvez  não nos  permita considerar possível.

14. V Em que

 medida, enfim, devem-se incluir

 na

 juris-

dição constitucional atos jurídicos individuais?  A  questão

não se

 aplica

  aos

 atos

  dos

 tribunais.

  N o

  simples fato

  de um

ato  jurídico  ser  produzido  por um  tribunal, vê-se  um a ga -

rantia suficiente  de sua regularidade. Q u e essa regularidade

consiste imediatamente

 ou

 mediatamente numa constitucio-

nalidade,

  não é, de

 modo geral, motivo suficiente para reti-

rar

 esses atos

 das

 jurisdições

 de

 direito comum

  e

 atribuir

 seu

conhecimento

  a u m

 tribunal constitucional especial.

  M as os

atos individuais produzidos pelas autoridades administrati-

vas ,

 mesmo

  se

  imediatamente subordinados

  à

 Constituição,

tampouco devem  ser  submetidos  ao  controle  do  tribunal

constitucional, mas s im, pelo menos em princípio, ao do s tri-

bunais administrativos. Isso antes

  de

 mais nada

  no

  interesse

de uma

  delimitação clara

  de sua

  respectiva competência,

  a

f im de

  evitar conflitos

 de

  atribuição

  e

 duplas competências

q ue

  podem facilmente

  se

  apresentar, devido

  ao

  caráter

  so-

bremaneira relativo  d a  oposição entre  constitucionalidade

direta

  e

  constitucionalidade indireta. Restariam pois para

  a

jurisdição constitucional unicamente  os  atos jurídicos indi-

viduais

  que são

  obra

  d o

  Parlamento, quer revistam

  a

  forma

de uma lei ,

 quer

  a de um

 tratado internacional;

  m a s é

 como

leis

  ou

  regulamentos

  que

  entram

  em sua

  competência.

  N o

entanto seria possível estendê-la

 a

 esses atos, mesmo

 se não re-

vestidos da forma de leis ou de tratados, e mesmo  se não ime-

diatamente subordinados à Constituição, contanto que tenham

caráter obrigatório, porque

  sem

  isso inexistiria qualquer

 pos -

sibilidade  de  controlar  sua  regularidade.  D e  resto,  só pode-

ria se

 tratar

 de um

 número limitadíssimo

 de

 atos. Naturalmen-

te , também seria possível  dar à jurisdição constitucional, por

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1 6 2

HANS KELSEN

razões  de prestígio ou outras, o controle d e certos atos indivi-

duais

 do

 chefe

 de

 Estado

 ou do

 chefe

 d o

 governo, supondo-se

que se deseje, d e modo geral, submetê-los a um controle jurí-

dico. Assinalemos enfim

  que

  pode

  ser

  oportuno, eventual-

mente, fazer

  do

  tribunal constitucional

  um a

  Suprema Corte

de  Justiça, encarregada  de julgar  os  ministros acusados,  u m

tribunal central

  de

  conflitos,

  ou

  atribuir-lhe outras compe-

tências mais, para evitar a instituição d e jurisdições especiais.

D e fato, é preferível, de modo geral, reduzir  o mais possível

o

 número

  d a s

 autoridades supremas encarregadas

  de

 fazer

 o

direito.

15. VI.  Parece ponto pacífico  que o  tribunal constitu-

cional  só  pode julgar normas ainda  em  vigor  n o  momento

em que

 toma

 um a

 decisão.

 Por que

 anular

 u m a

 norma

  que já

deixou

  de

 vigorar?

 N o

 entanto, examinando melhor

  a

 ques-

tão , percebemos  que pode haver motivos para aplicar  o con-

trole de constitucionalidade a normas já ab-rogadas. D e fato,

se uma

  norma geral

  -

  somente

  as

 normas gerais

  são

 consi-

deradas aqui  -  ab-roga outra norma geral  se m  nenhuma

retroatividade,

  as

 autoridades deverão continuar

  a

 aplicar

  a

norma ab-rogada a todos os fatos que se produziram quando

ela  ainda estava  em  vigor.  Se se  quiser afastar essa aplica-

ção em

  razão

  da

  inconstitucionalidade

  da

  norma ab-rogada

-  supondo-se que não foi o tribunal constitucional que a anu-

lou - , é preciso  que  essa inconstitucionalidade seja estabe-

lecida

 de

 maneira autêntica

 e que,

 assim, seja retirado

 da nor-

m a o  derradeiro resto  de  vigor  que ela  conserva.  M as  isso

supõe

 u m a

  decisão

 do

 tribunal constitucional.

A

 anulação

 de um a

 norma inconstitucional pela jurisdi-

ção constitucional  -  ainda  se  trata aqui principalmente  das

normas gerais  - a  rigor  só é  necessária quando  ela é  mais

recente do que a Constituição. Porque, tratando-se de um a lei

anterior à Constituição e em contradição com ela , esta a der-

roga,

 em

 virtude

 do

 princípio

 da lexposterior;

  portanto pare-

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1 6 4 HANS KELSEN

ab-rogou expressamente

 e

 confiá-lo

 ao

  tribunal constitucio-

nal

  central,

  o que

  equivaleria

  a

 retirar

  da

  nova Constituição

a força derrogatória  no que concerne  às leis antigas  que ela

não

  anulou expressamente

  e

 substituí-la pelo poder

  de anu-

lação d o  tribunal constitucional.

3.  O critério  do  controle  de constitucionalidade

Qual será  o critério que a jurisdição constitucional apli-

cará  no  exercício  de seu  controle?  Q u e  normas deverá  as-

sentar como base de suas decisões? A resposta  a essa questão

j á

  decorre,

  e m b o a

 parte,

  d o

 objeto

 do

 controle.

É  óbvio  que , no  caso  d o s  atos imediatamente subordi-

nados à Constituição, é sua constitucionalidade, e no d os atos

que só

 mediatamente

  lhe são

  subordinados

  é sua

  legalidade

que

 deve

 ser

 controlada;

  ou,

 mais geralmente, para todo

 ato,

é sua conformidade às normas do grau superior  que deve ser

verificada.

 É

 igualmente evidente

 que o

 controle deve

 ser

 exer-

cido tanto sobre

 o

 procedimento segundo

 o

 qual

 o ato foi ela-

borado como sobre

 seu

 conteúdo,

 se as

 normas

 do

 grau supe-

rior também contiverem disposições sobre esse ponto.

Dois aspectos devem entretanto

  ser

  examinados mais

detalhadamente.

16. Em primeiro lugar, podem  as normas  do  direito  in-

ternacional  se r  utilizadas como critério  de controle?  De fa -

to, é possível  que um dos atos cuja regularidade é submetida

ao controle esteja em  contradição,  não com uma lei ou com

a Constituição, mas com um tratado internacional ou com uma

regra

  do

  direito internacional geral.

  Uma le i

  ordinária

  que

contradiga

  u m

  tratado internacional anterior também

  é

 irre-

gular  em relação  à Constituição, porque, autorizando certos

órgãos  a  firmar tratados internacionais, esta  faz  deles  um

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL 1 6 5

modo de formação d a vontade estatal; ela exclui portanto, em

conformidade

  com a

  noção

  de

  tratado

  que

  adotou,

  sua ab-

rogação  ou sua modificação po r lei  ordinária.  Uma le i con-

trária

  a u m

  tratado

  é , por

 conseguinte

  -

 pelo menos indireta-

mente inconstitucional.

  M as

 para poder afirmar

  que mes -

mo uma le i  constitucional  que viole  u m  tratado  é  irregular,

é

 necessário colocar-se

  de um

 ponto

  de

 vista superior

  ao da

Constituição,  do ponto d e vista  do primado da ordem jurídi-

ca

  internacional, porque somente

  aí o

 tratado internacional

aparece como ordem parcial superior

  ao s

  Estados contra-

tantes,

  e

 entrevê-se

  a

 possibilidade

  de que

  atos estatais,

  em

particular

 a s

  leis, regulamentos,

  etc.,

 submetidos

  ao

  contro-

le da  jurisdição constitucional, podem violar  n ão apenas  as

regras particulares

 de u m

  tratado internacional,

 e por

 conse-

guinte, indiretamente,  o  princípio  do  respeito  aos  tratados,

m as também outros princípios do direito internacional geral.

Deve-se permitir

  que o

 tribunal constitucional também

anule  os atos estatais submetidos  a seu  controle  p o r  contra-

riarem

  o

 direito internacional?

Contra  a anulação  das leis ordinárias contrárias  aos tra-

tados  - ou dos  atos equivalentes  o u  subordinados  a  essas

leis

  - não se

 pode levantar nenhuma objeção séria.

 D e

  fato,

essa competência  se  moveria absolutamente  no  terreno  da

Constituição,

 qu e é - não se

 deve esquecer

 - o

 terreno

 da ju s-

tiça constitucional.  O mesmo vale para  a anulação d as leis e

d o s atos equivalentes  ou inferiores à lei po r violação de uma

regra

  do

 direito internacional geral, supondo-se

 que a

 Cons-

tituição reconheça expressamente essas regras gerais, isto é,

as

 integre

 na

 ordem estatal

  sob a

 denominação

 de

 regras

  g e -

ralmente reconhecidas do direito internacional, como fize-

ram

 certas Constituições recentes.

  C o m

 efeito, nesse caso

  a

vontade  da  Constituição  é que  tais normas sejam respeita-

das  também pelo legislador; portanto  é  preciso assimilar

completamente,

  às

 leis inconstitucionais,

 as

 leis contrárias

  ao

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1 6 6

HANS KELSEN

direito internacional. A solução é a mesma, tenham essas nor-

m as

 sido acolhidas pela Constituição

 no

 nível

 de

 leis consti-

tucionais  ou não . Porque,  e m  ambos  os casos,  sua acolhida

significa q ue elas não podem  ser afastadas po r um a lei ordi-

nária. Essa acolhida solene deve exprimir

  a

 vontade

  de ga-

rantir  o respeito  ao direito internacional,  e é à solução preci-

samente contrária

  que

 chegaríamos

 se,

 apesar dela, qualquer

le i ordinária pudesse violar  o  direito internacional  sem que

se

 visse nisso,

  do

 ponto

  de

 vista

  da

  Constituição

  que a con-

tém, uma  irregularidade.

Mas é bem diferente o que sucede quando,  de um  lado,

a

  Constituição

  não

  contém esse reconhecimento

  do

  direito

internacional geral, e, de outro, mesmo se o contém, quando

se trata  de  leis constitucionais contrárias  ao  direito interna-

cional geral

 ou

 mesmo convencional. Porque, para

 a

 jurisdição

constitucional, órgão estatal,

 a

 validade

  das

 normas interna-

cionais

  qu e

 deve aplicar para

  o

 controle

  dos

 atos estatais

  só

pode derivar da Constituição que as abriga, isto é, as põ e e m

vigor para o domínio interno do Estado, d a Constituição que

criou

  o

 tribunal constitucional

 e que

 poderia,

 a

 qualquer

  ins-

tante, suprimi-lo.  Por mais desejável q ue  fosse ver  todas  as

Constituições acolherem, seguindo o exemplo das Constitui-

ções alemã

 e

 austríaca,

 as

 regras

 do

 direito internacional geral

de maneira  a permitir  sua aplicação  por um  tribunal consti-

tucional estatal,

  há que

 convir porém

  que, na

 falta desse

  re-

conhecimento, nada autorizaria juridicamente o tribunal cons-

titucional

  a

 declarar

  uma lei

 como contrária

  ao

 direito inter-

nacional; assim como

  há que

  convir, tendo havido esse

  re-

conhecimento, que a competência  do tribunal se detém diante

da

 reforma

 da

 Constituição. Claro,

 é

 possível

 que, de

 fato,

 u m a

jurisdição constitucional aplique  as  regras  do  direito inter-

nacional mesmo nessas duas hipóteses.

 N o

 entanto,

 ao

 fazê-lo,

ela não encontraria mais  sua justificação jurídica n o âmbito

da

  ordem estatal.

  Uma le i

 constitucional

  não

  pode atribuir

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

1 6 7

essa competência

  a u m

  tribunal constitucional;

 u m

  tribunal

constitucional

 que

 anulasse

 um a le i

 constitucional

  ou

 mesmo,

apesar do não-acolhimento  das regras  do direito internacio-

nal, uma lei

 ordinária

  p o r

 violação dessas regras,

  n ã o

 pode-

ria

 mais

  ser

 considerado órgão

  d o

 Estado cuja Constituição

o criou, rnas apenas como órgão de uma comunidade jurídi-

ca superior a esse Estado. E , ainda assim, somente  p o r  suas

intenções, porque a Constituição da comunidade jurídica  in-

ternacional  n ão  contém qualquer norma  que dê a um  órgão

estatal qualidade para aplicar  as  regras  do  direito interna-

cional geral.

17. Se a  aplicação  das  normas  do  direito internacional

pelo tribunal constitucional  é  submetida  às  limitações  que

acabamos d e indicar, a aplicação de outras normas que não as

normas jurídicas,

 de

 normas suprapositivas quaisquer, deve

ser

 considerada radicalmente excluída.

 À s

 vezes vemos afir-

mado

  que há ,

  acima

  d a

  Constituição

  de

  qualquer Estado,

certas regras naturais  de  direito  que as  autoridades estatais

encarregadas

  da

  aplicação

  do

 direito também deveriam

  res-

peitar.

  Se se

 trata

  de

 princípios incorporados

  à

 Constituição

ou a um

  outro grau qualquer

  d a

  ordem jurídica,

  que são

deduzidos

  do

  conteúdo

  do

 direito positivo

  p o r

  abstração,

  é

coisa bastante inofensiva formulá-los como regras

  de

  direi-

to

  independentes. Eles

  são

  aplicados então

  com as

  normas

jurídicas

  às

  quais estão incorporados,

  e

  tão-somente

  com

elas. M as, se se trata d e princípios que não foram traduzidos

em  normas  de  direito positivo,  mas que  deveriam sê-lo  só

porque seriam equitativos  -  muito embora  o s protagonistas

desses princípios já os considerem, de modo mais o u menos

claro, como direito  —,  estamos então simplesmente diante

de postulados  que não são juridicamente obrigatórios, que na

realidade exprimem apenas  os  interesses  de certos grupos e

que são formulados visando os órgãos encarregados da cria-

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1 6 8

HANS KELSEN

ção do direito, e não  apenas  o legislador, cujo poder  de rea-

lizá-los  é  quase ilimitado,  m a s  também  o s  órgãos subordi-

nados  que não têm  esse poder, a nã o ser numa medida tanto

mais reduzida quanto  sua função mais comportar um a maior

parte  d e aplicação  do direito,  o s quais,  no  entanto,  o têm na

mesma medida  em que conservam  u m  poder discricionário,

isto  é, na jurisdição  e na  administração, quando  têm de es-

colher entre várias interpretações igualmente possíveis.

É

  precisamente nesse fato

  de que a

  consideração

  ou a

realização desses princípios  - a que não se pode  até hoje,  a

despeito

  de

  todos

  o s

  esforços envidados nesse sentido,

  dar

u m a

 determinação

 u m

 tanto unívoca

 que

 seja

 - não têm nem

podem

  ter, no

  processo

 d e

 criação

  do

 direito, pelos motivos

precedentemente indicados,  o  caráter  d e u m a  aplicação  do

direito

 n o

 sentido técnico,

 q ue

 encontramos

 a

 resposta

 à

 ques-

tão de saber  se eles podem  ser aplicados p o r u m a jurisdição

constitucional.

 E é só

 aparentemente

 que não é

 assim, quan-

do,  como  à s vezes acontece,  a própria Constituição  se refe-

re a

 esses princípios invocando

 os

 ideais

 de

 eqüidade, justiça,

liberdade, igualdade, moralidade,  etc., sem  esclarecer  nem

um

 pouco

  o que se

  deve entender

  p or

  isso.

  Se

 essas fórmu-

las não encerram nada mais que a ideologia política corrente,

com que toda ordem jurídica  se esforça por se paramentar, a

delegação d a eqüidade, d a liberdade, da igualdade, da justiça,

da  moralidade,  etc.  significa unicamente,  n a  falta  de uma

precisão desses valores,  q u e  tanto  o  legislador como  os ór-

gãos de execução da lei são autorizados a preencher de forma

discricionária  o  domínio  que  lhes  é  confiado pela Consti-

tuição e pela lei. Porque as concepções de justiça, liberdade,

igualdade, moralidade, etc . diferem tanto, conforme o ponto

de

 vista

  dos

  interessados,

  que, se o

 direito positivo

 não con-

sagra

 u m a

 dentre elas, qualquer regra

 de

 direito pode

  ser jus -

tificada por uma dessas concepções possíveis.  E m todo caso,

a

  delegação

  dos

 valores

  em

 questão

  n ã o

  significa

 e não p o-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

1 6 9

de

  significar

 que a

 oposição entre

  o

 direito positivo

 e a con-

cepção pessoal que eles possam  ter da liberdade,  da  igualda-

de, etc.

  possa dispensar

  os

  órgãos

  de

  criação

  do

  direito

  de

aplicá-lo. A s fórmulas e m questão não têm portanto, de m o-

do

 geral, grande signif icado. Elas

  n ão

 acrescentam nada

  ao

estado real  do direito.

M a s ,

  precisamente

  no

  domínio

  da

  jurisdição constitu-

cional, elas podem desempenhar  um  papel extremamente

perigoso.

  A s

  disposições constitucionais

  q u e

  convidam

  o

legislador  a se conformar à justiça,  à eqüidade,  à igualdade,

à  liberdade,  à  moralidade,  etc.  poderiam  ser  interpretadas

como diretivas concernentes

  ao

  conteúdo

  das

  leis. Equivo-

cadamente,  é claro, porque  só seria assim  se a  Constituição

estabelecesse

  u m a

  direção precisa,

  se ela

  própria indicasse

u m critério objetivo qualquer. N o  entanto,  o  limite entre  es-

sas

 disposições

 e as

 disposições tradicionais sobre

 o

 conteú-

do das leis,  que encontramos n a s Declarações de direitos  in-

dividuais,

  se

  apagará facilmente,

  e

 portanto

  não é

  impossí-

vel que um tribunal constitucional chamado  a se pronunciar

sobre

 a

 constitucionalidade

 de um a lei

 anule-a

 po r ser

 injus-

ta, sendo  a justiça  um  princípio constitucional  que e le deve

p o r

 conseguinte aplicar.

  M as

  nesse caso

  a

 força

  do

 tribunal

seria  tal, que deveria ser considerada simplesmente insuportá-

vel. A concepção  que a maioria  dos  juizes desse tribunal  ti-

vesse

  da

  justiça poderia estar

  em

  total oposição

  com a da

maioria da população,  e o estaria evidentemente com a con-

cepção

 da

 maioria

 do

 Parlamento

 que

 votou

 a lei. É

 claro

 que

a

  Constituição

  n ão

  entendeu, empregando

  u m a

  palavra

  tão

imprecisa

  e

  equívoca quanto

  a de

 justiça,

  ou

 qualquer outra

semelhante, fazer  que a  sorte  de  qualquer  le i  votada pelo

Parlamento dependesse

 da boa

 vontade

 de um

  colégio

 c o m -

posto d e u m a maneira mais ou menos arbitrária d o ponto de

vista político, como

 o

 tribunal constitucional. Para evitar

  tal

deslocamento  de poder  - que ela com  certeza  não  deseja  e

que é  totalmente contra-indicado  do ponto  de vista político

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1 7 0

HANS KELSEN

- do

  Parlamento para

  u m a

  instância

  a ele

  estranha,

  e que

pode  se  tornar representante  de  forças políticas diferentes

das que se  exprimem  no  Parlamento,  a  Constituição deve,

sobretudo  se  criar  u m  tribunal constitucional, abster-se

desse gênero

  d e

  fraseologia,

 e se

 quiser estabelecer princí-

pios relativos

  ao

  conteúdo

  das

  leis, formulá-los

  da

  forma

mais precisa possível.

4 .

  O

 resultado

  do

  controle

  de

 constitucionalidade

18.  a Resulta  de  nossas explicações precedentes  que,

se quisermos  que a  Constituição seja garantida  com  eficá-

cia, é

  necessário

  que o ato

  submetido

  ao

  controle

  do

  tribu-

nal

 constitucional seja diretamente anulado

 p o r

 decisão

 pró -

pria,

  se

  considerado irregular. Essa decisão, mesmo

  se se

referir

 a

 normas gerais

 - e é

 precisamente esse

  o

 caso prin-

cipal - ,  deve  ter força anulatória.

b

Dada a extrema importância da anulação de um a nor-

m a  geral,  e em  particular  de uma lei, é  lícito indagar  se não

seria

  o

  caso

  de

  autorizar

  o

  tribunal constitucional

  a só anu-

lar um a to por

  vício

  de

 forma, isto

  é, por

  irregularidade

  n o

procedimento,  se esse vício  fo r particularmente importante,

essencial, deixando-se  a  apreciação desse caráter  à  inteira

liberdade

  d o

 tribunal, porque

  não é bo m que a

 Constituição

proceda  de uma  forma geral  à dificílima distinção entre  ví-

cios essenciais e não essenciais.

c

Seria necessário examinar também  se não seria bom ,

n o  interesse  da  segurança jurídica, encerrar  a anulação,  em

particular

 das

 normas gerais

 e

 principalmente

 d as

 leis

 e dos

tratados internacionais,

  n u m

  prazo fixado pela Constitui-

ção , por  exemplo, três  a  cinco anos  a  partir  da  entrada  em

vigor

  da

 norma

 a

 anular. Porque

 é

 extremamente lamentável

ter de anular p o r inconstitucionalidade uma lei, e ainda mais

um

  tratado, depois

 de

  terem vigorado

 p o r

  longos anos.

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

1 7 1

d

E m

  todo caso, seria

  b o m , no

  interesse

  da

 mesma

  se-

gurança jurídica,

  não

  atribuir

  em

  princípio nenhum efeito

retroativo

 à

 anulação

 d a s

 normas gerais, pelo menos

 no sen-

tido

  de

  deixar subsistirem todos

  os

  atos jurídicos anterior-

mente

 produzidos

  com

  base

  na

 norma

  em

  questão.

  Mas

  esse

mesmo interesse  não  existe  n o  caso  d os  fatos anteriores  à

anulação  que, no  momento  em que a  anulação  se  produz,

ainda  n ã o foram objeto  de  nenhuma decisão  de uma  autori-

dade pública e que, se fosse excluído qualquer efeito retroa-

tivo  d a sentença  d e anulação, deveriam sempre  ser julgados

de

  acordo

  com

  esta

  —

  pois

  a

  norma geral

  só é

  anulada

 pro

futuro, isto

 é ,

 para

 os

 fatos posteriores

 à

 anulação.

 A

 seqüên-

cia

  mostrará

  que

  essa retroatividade limitada

  é

  mesmo

  ne-

cessária

  e m

  certa organização

  d o

 procedimento

  do

 controle

de

  constitucionalidade.

S e u m a

 norma geral

  é

 anulada

  sem

 efeito retroativo,

  ou

pelo menos  com o efeito retroativo limitado  q u e acabamos

de  indicar;  se, por  conseguinte, subsistem  as conseqüências

jurídicas

  que ela

 produziu antes

 da sua

 anulação,

 ou em

 todo

caso  as que se exprimiram  em sua aplicação pelas autorida-

des,  isso  e m  nada  diz  respeito  aos  efeitos  que sua  entrada

em  vigor teve sobre  as  normas  que  regulavam  até  então  o

mesmo objeto, isto  é, a  ab-rogação  das  normas contrárias

conforme

 o

 princípio  lex posterior derogat priori.  Isso

  sig-

nifica

 que a

 anulação

  de uma le i , por

 exemplo pelo tribunal

constitucional,

  não

 acarreta

  d e

  forma alguma

  o

 restabeleci-

mento

  do

  estado

  de

 direito anterior

  à sua

 entrada

  e m

  vigor,

que e la não faz

  reviver

  a lei

  relativa

  ao

  mesmo objeto

  que

havia sido ab-rogada. Resulta  d a anulação,  p o r  assim dizer,

u m vazio jurídico.  A matéria qu e era a té então regulada de i -

xa de sê-lo; obrigações jurídicas desaparecem; segue-se a li-

berdade jurídica.

Poderão resultar

  daí

 conseqüências desagradabilíssimas.

Sobretudo

 se a lei nã o f o i

 anulada

 p o r

 causa

 do seu

 conteúdo,

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8/17/2019 KELSEN Hans. Jurisdicao Constitucional

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1 7 2

HANS KELSEN

m as

  apenas

 po r

 causa

 de um

  vício

  de

 forma qualquer

  que se

produziu quando  da sua elaboração,  em particular quando  a

elaboração  de uma lei  para regular  o  mesmo objeto requer

u m  prazo muito longo. Para remediar esse inconveniente,  é

b om  prever  a possibilidade  de diferir  a entrada  em vigor  da

sentença d e anulação até a expiração de certo prazo a contar

da sua

 publicação.

Pode-se cogitar ainda  de outro meio,  que consistiria  em

autorizar

  o

  tribunal constitucional

  a

 pronunciar,

  na

  decisão

que  anula  u m a norma geral,  que a entrada  em  vigor  da anu-

lação voltará

  a

 fazer vigorar precisamente

  as

  normas gerais

que

 regiam

  a

 matéria antes

  da

  intervenção

  da

 norma anula-

da.

  Seria

 b o m ,

  nesse caso, deixar

  ao

 próprio tribunal

  o cui-

dado

  de

  decidir

  em que

  caso quer fazer

 uso

  desse poder

  de

restabelecer

 o

 antigo estado

 de

 direito. Seria lamentável

 que

a Constituição fizesse d a reaparição desse estado u m a  regra

geral imperativa, para todos  os  casos  de  anulação  das nor-

m a s gerais.

Seria preciso talvez abrir  u m a exceção para  a  anulação

de uma lei que

 consistisse unicamente

 na

 ab-rogação

 de uma

lei até

  então

  em

  vigor;

  seu

 único efeito possível seria

  o de-

saparecimento

  da

 única conseqüência jurídica

  que a lei

 teve

- a

 ab-rogação

 da lei

 antiga

 - , a

 saber,

 sua

 entrada

 e m

 vigor.

U m a

 disposição geral como

  a que

 acabamos

 d e

  cogitar

n ão

  poderia

  ser

  considerada,

  a não ser

  supondo-se

  que a

Constituição contemple

  a

 anulação

  das

  normas gerais

  num

certo prazo

  a

 partir

  da

  entrada

  em

  vigor destas,

  de

  forma

  a

impedir

  o

 retorno

  em

  vigor

  de

 normas jurídicas demasiado

antigas  e incompatíveis  com as novas condições.

O  poder  que  seria conferido desse modo  ao  tribunal

constitucional,

  de

  fazer

  as

  normas entrarem positivamente

em

  vigor, acentuaria sobremodo

  o

 caráter legislativo

  da sua

função, ainda que só se referisse a normas q ue já haviam sido

postas  em vigor pelo legislador regular.

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL 1 7 3

e

O

  dispositivo

  d a

  decisão

  do

  tribunal constitucional

será diferente conforme diga respeito

  a um ato

 jurídico

  (es-

pecialmente

  um a

  norma geral) ainda

  em

  vigor

  no

  momento

em que é pronunciada  — e  é  esse  o caso normal  ou se tal

norma  j á  tiver sido ab-rogada nesse momento,  m as  ainda

deva  ser aplicada  a fatos anteriores. N o segundo caso, à deci-

são do  tribunal constitucional cabe apenas, como  j á  indica-

m o s , anular  u m  resto  d e  validade,  o que nem por  isso deixa

de ser um julgamento constitutivo  e de anulação. A fórmula

d a decisão poderia  ser então,  em vez de  considere-se  anu-

lada  a lei , a lei era inconstitucional . Isso teria po r  conse-

qüência excluir a aplicação da lei declarada inconstitucional

também

  aos

 fatos anteriores

  à

 decisão.

O

  dispositivo será idêntico, tanto

  faz se a

  norma geral

examinada pelo tribunal constitucional

  é

 posterior

  ou

  ante-

rior

 à

 Constituição

  c o m a

 qual está

 e m

  contradição.

  E m a m -

bos os

 casos,

  a

 decisão pronunciará

 a

 anulação

  da

 norma

  in-

constitucional.

j ) Cumpre notar enfim que a anulação n ão  deve se apli-

ca r

 necessariamente

  à lei

  inteira

  ou ao

 regulamento inteiro,

m as

 também pode

  se

 limitar

 a

 algumas

  das

 suas disposições,

supondo-se naturalmente

  que as

  outras permanecerão

  ape -

sa r de

 tudo aplicáveis

 ou

  ainda

  n ã o

 tenham

  seu

  sentido

 m o -

dificado

  de

  modo inesperado. Caberá

  ao

  tribunal constitu-

cional apreciar livremente se quer anular a lei ou o regulamen-

to inteiros,  ou  simplesmente algumas  das suas disposições.

5.

  O

 processo

  do

  controle

  de

  constitucionalidade

19. Quais devem ser os princípios essenciais do proces-

so de controle  de constitucionalidade?

a

A

 questão

 do

 modo

  de

 introdução

  do

 processo diante

do

  tribunal constitucional

  t em uma

 importância primordial:

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1 7 4

HANS KELSEN

é de sua  solução q u e depende principalmente  em que medi-

da o  tribunal constitucional poderá cumprir  sua  missão  de

garante  da Constituição.

A

 mais forte garantia consistiria certamente

  em

 autori-

za r um a actio popularis:  o  tribunal constitucional seria obri-

gado

 a

 examinar

 a

 regularidade

 d os

 atos submetidos

 à sua ju -

risdição,

 e m

  particular

  das

  leis

 e dos

 regulamentos,

  a

 pedido

de

 quem quer

  que

 seja.

 É

  incontestavelmente dessa maneira

que o

 interesse político

 e m

 eliminar

 os

 atos irregulares rece-

beria

  a

 satisfação mais radical.

  N o

  entanto,

  não se

 pode

  re-

comendar essa solução, porque  ela  acarretaria  um  perigo

considerável

  de

 ações temerárias

 e o

 risco

 de um

  intolerável

congestionamento

  das

  funções.

Entre várias outras soluções possíveis, podemos indi-

car as que

 seguem.

Poder-se-ia autorizar

 e

 obrigar todas

  as

 autoridades

 p ú -

blicas

  que ,

  devendo aplicar

  u m a

  norma

  no

  caso concreto,

tivessem dúvidas quanto à sua regularidade, a interromper o

respectivo processo

  e

  apresentar

  ao

  tribunal constitucional

u m

  pedido motivado

  d e

  exame

  e de

  eventual anulação

  da

norma. Poder-se-ia também

  só

  conceder

  tal

  poder

  a

  certas

autoridades superiores

  ou

  supremas

  -

  ministros

  e

  tribunais

superiores

  —, ou

 ainda restringi-lo

 aos

 tribunais,

  se bem q ue

a

  exclusão

  da

  administração

  n ã o

  seja perfeitamente just ifi-

cável, dada

  a

 aproximação crescente entre

 seu

 procedimento

e o da justiça.  Se o tribunal constitucional anulasse  a norma

contestada

  — e

 nesse caso somente

  a

 autoridade requeren-

te nã o deveria mais aplicá-la  ao caso concreto que provocou

seu

 pedido,

  m as

 decidir como

  se a

 norma,

  que de

 modo

  ge-

ral só é anulada pro

 futuro

  - não  vigorasse mais quando  o

caso  se  produziu. Esse efeito retroativo  da  anulação  é uma

necessidade técnica porque,  sem ele, as  autoridades encar-

regadas da aplicação do direito não teriam interesse imedia-

to, e por conseguinte suficientemente poderoso para provo-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

1 7 5

car a

  intervenção

  do

  tribunal constitucional.

  Se

  essa inter-

venção

  se

 produz exclusiva

  ou até

  principalmente

  a

 pedido

dessas autoridades judiciárias  e  administrativas,  é  preciso

encorajá-las a apresentar tais pedidos, atribuindo nesse caso

à anulação u m efeito retroativo limitado.

Seria muito oportuno aproximar u m pouco  o pedido  ao

tribunal constitucional  de um a  adio popularis, possibilitan-

do que as partes de um processo judiciário  ou administrativo

o  promovam contra  o s  atos  d as  autoridades públicas  - sen-

tenças  ou  atos administrativos  - por  terem sido produzidos

em execução de um a norma irregular, de um a lei inconstitu-

cional  ou de um  regulamento ilegal, apesar  de  serem  sem

dúvida imediatamente regulares. Tratar-se-ia então,

  não de

u m a

 pretensão diretamente aberta

  aos

 cidadãos,

  mas de um

meio

 de

 fato, indireto,

  de

 provocar

 a

 intervenção

 d o

 tribunal

constitucional, pois suporia

  que a

  autoridade judiciária

  ou

administrativa chamada

  a

 tomar

 u m a

 decisão compartilhas-

se o

  ponto

  de

  vista

  da

  parte

  e

  apresentasse,

  em

  conseqüên-

cia

 disso,

  o

 pedido

  de

 anulação.

N o s Estados federativos, o  direito de apresentar  o pedi-

do

  deve

  ser

  concedido

  aos

  governos

  dos

  estados federados

contra

  os

  atos jurídicos emanados

  da

  União,

  e ao

  governo

federal contra

  os

  atos

  dos

  estados federados.

  D e

  fato,

  em

tais Estados,

 o

 controle

 de

 constitucionalidade

 tem po r

 prin-

cipal objeto

 a

 aplicação

 das

 disposições

 de

 fundo caracterís-

ticas d as Constituições federais, que delimitam a competên-

cia respectiva  da União  e dos estados federados.

U m a  instituição totalmente nova,  m a s q u e  mereceria  a

mais séria consideração, seria  a de um  defensor  da  Consti-

tuição junto ao tribunal constitucional, o qual, como o minis-

tério público no processo penal, introduziria

 ex

 officio  o pro-

cesso do controle d e constitucionalidade dos atos que estimas-

se  irregulares. É claro  que o titular de ta l  função deveria  ser

revestido

 de

 todas

 as

 garantias imagináveis

 de

 independência,

tanto

 em

 relação

 ao

 governo como

 em

 relação

 a o

 Parlamento.

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1 7 6

HANS KELSEN

No que

  concerne

  em

  especial

  ao

  controle

  de

  constitu-

cionalidade  das  leis, seria extremamente importante conce-

der

 também legitimação

 a uma

 minoria qualificada

 d o

 Parla-

mento.  E isso tanto mais  que a jurisdição constitucional,  co-

m o mostraremos mais adiante, deve necessariamente servir,

nas democracias parlamentares,  à proteção  das minorias.

Pode acontecer, enf im,

 que o

 tribunal constitucional

  in-

troduza ex  officio  o processo de controle co m relação a uma

norma geral sobre cuja regularidade pairem dúvidas. Isso

 p o -

de

  acontecer

  n ão

  apenas quando,

  po r

  exemplo, chamado

  a

examinar

  a

  legalidade

  de um

  regulamento,

  ele se vê

  diante

da inconstitucionalidade  da lei com a qual esse regulamento

estaria  em  contradição, m a s também,  em particular, quando

é

 chamado

  a

 decidir sobre

 a

 regularidade

  de

 certos atos jurí-

dicos individuais

  dos

  quais apenas

  a

  legalidade

  é

  imediata-

mente questionada, enquanto  a  constitucionalidade  só o é

mediatamente.  O  tribunal suspenderá então, assim como  as

autoridades qualificadas para recorrer

 a ele, o

 processo rela-

tivo

  ao

  caso concreto

  e

  procederá, desta

  vez  ex  officio,  ao

exame

  da

 norma

 q ue

 deveria aplicar nesse caso.

  Se

 anulá-la,

deverá, como

 as

 autoridades requerentes

 num

 caso análogo,

decidir  a  controvérsia pendente como  se a  norma anulada

não  fosse aplicável  a tal caso.

N o caso em que é chamado a decidir também sobre a re-

gularidade

  de

 atos individuais,

  e em

 particular sobre

 os

 atos

das

 autoridades administrativas,

 o

 tribunal constitucional deve

naturalmente poder

  ser

 provocado pelas pessoas cujos inte-

resses juridicamente protegidos foram lesados pelo  ato irre-

gular.

  Se,

  também nesse caso, estas tiverem

  a

 possibilidade

de  levar  o ato  jurídico individual  ao  tribunal constitucional

por

 irregularidade

 d a

 norma geral, para cuja execução regular

ele foi produzido,  o s  cidadãos terão,  em  medida muito mais

vasta  do que no caso  de  recurso  po r ocasião  de um processo

judiciário

 ou

 administrativo,

 a

 possibilidade

 de

 levar indireta-

mente normas gerais ao próprio tribunal constitucional.

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

111

20. b

Para

  o

 processo diante

 do

 tribunal constitucional,

cumpre recomendar

 de

 maneira geral

 o

 princípio

 da

 publici-

dade

 e do

 caráter oral, embora

  se

 trate principalmente

 d e

 ques-

tões

 d e

 puro direito

 e a

 ênfase recaia evidentemente

 nas

 expli-

cações  de  direito  das  peças escritas  que as partes venham  a

apresentar  - ou, mesmo, devam apresentar — ao tribunal. O s

casos de que o tribunal constitucional trata são de um interes-

se geral  tão considerável que não se poderia excluir em prin-

cípio  a publicidade  do procedimento,  q u e somente  uma au -

diência pública garante. Poderíamos  a té perguntar  se o ju l-

gamento pelo colégio  de juízes também  n ão deveria ocorrer

em audiência pública.

Deveriam ser associados ao procedimento de controle: a

autoridade cujo  ato é  contestado, para permitir  que  defenda

sua  regularidade;  a  instância  de que  emana  o  pedido; even-

tualmente também

  o

 particular interessado

  no

  litígio diante

do

 tribunal

 ou da

 autoridade administrativa

 que deu

 ensejo

 a o

processo

 de

 controle,

 ou o

 particular

 que

 tinha

 o

 direito

 de le-

var imediatamente  o ato ao  tribunal constitucional.  A  auto-

ridade seria representada pelo chefe hierárquico, pelo presi-

dente

 ou por um dos

 funcionários,

 se

 possível versado

 em d i -

reito. Quanto

  aos

  indivíduos, seria

  b o m

  tornar obrigatória

  a

constituição  de advogado, devido  ao caráter eminentemente

jurídico  do litígio.

21

. c

A decisão do tribunal constitucional, quando o pe-

dido  é  acolhido, deve pronunciar  a  anulação  do ato  contes-

tado de maneira  q u e  apareça como conseqüência  d a própria

decisão.

Para  a anulação das normas  que só entram  em vigor por

sua publicação, o ato de anulação, no caso a decisão do tribu-

nal  constitucional, também deveria  ser publicada,  e da mes-

m a maneira  que a norma anulada  o foi. Embora  não se deva

afastar

  a

 priori  a  idéia  de  dotar  o  tribunal constitucional  de

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

1 7 9

V.

 O significadojurídico  e politico  da jurisdição constitucional

22 . U m a  Constituição  em que  falte a garantia  d a anula-

bilidade  dos  atos inconstitucionais  não é  plenamente obri-

gatória,

  no

 sentido técnico. Muito embora

  não se

  tenha

  e m

geral consciência disso, porque

 u m a

  teoria jurídica domina-

da

 pela política

 não

 permite tomar

 tal

 consciência,

 um a

 Cons-

tituição

  em que os

 atos inconstitucionais,

  e em

 particular

  as

leis inconstitucionais também permanecem válidos

 - na m e-

dida

 em que sua

  inconstitucionalidade

 não

 permite

 que

 sejam

anulados  -  equivale mais  ou  menos,  do ponto  de vista  pro-

priamente jurídico,

  a u m

 anseio

 sem

 força obrigatória. Toda

lei,

 todo regulamento,

  e

 mesmo todo

  ato

 jurídico geral

  p ro -

duzido pelos indivíduos,  t e m u m a  força jurídica superior  à

de tal Constituição, à  qual  no  entanto  são  subordinados e da

qual todos eles deduzem sua validade. O direito positivo zela

para  que possa  ser anulado todo a to — excetuada a Constitui-

ção - que  esteja  e m  contradição  c o m u m a  norma superior.

Esse grau deficiente de força obrigatória real está  e m  desa-

cordo  com a aparência  de firmeza, q u e chega  ao extremo  da

fixidez, conferida à Constituição  ao submeter sua reforma a

condições estritas.

  Por que

 tantas precauções,

  se as

 normas

d a

  Constituição, embora quase imodificáveis,

  são na

  reali-

dade quase

 sem

 força obrigatória? Claro, mesmo

 u m a

 Cons-

tituição

  que não

  preveja tribunal constitucional

  ou

  institui-

ção

 análoga para

  a

 anulação

  d o s

 atos inconstitucionais,

  não

é totalmente privada  de sentido jurídico.  Sua violação pode

receber certa sanção, pelo menos quando estabelece

  a res-

ponsabilidade ministerial, sanção dirigida contra certos

  ór-

gãos associados

  à

 elaboração

 dos

 atos inconstitucionais,

  su-

pondo-se

 que

  sejam culpados.

  Mas, à

 parte

  o

  fato

 de que tal

garantia, conforme

 já

 observamos,

 não é em si

 muito eficaz,

p or

 deixar subsistir

 a lei

 inconstitucional,

 não se

 pode admi-

tir

  nesse caso

  que a

  Constituição deixe

  de

  estabelecer

  um

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1 8 0

HANS KELSEN

processo legislativo único,

  e de

  fixar princípios quanto

  ao

conteúdo

 das

 leis.

 A

 Constituição

 diz sem

 dúvida

 em seu tex-

to e

 quer dizer

  que as

  leis

  só

 devem

  ser

 elaboradas desta

  ou

daquela maneira e que não devem te r este ou aquele conteú-

do; m as ,  admitindo-se  que as leis inconstitucionais também

serão válidas,  ela  indica  n a  realidade  que as  leis podem  ser

elaboradas d e outro modo e que seu conteúdo pode  ir de en-

contro  aos  limites assinalados; porque  as leis inconstitucio-

nais também  só podem  ser válidas  em virtude  de uma  regra

da

 Constituição; elas também devem

 ser, de um

  modo

  ou de

outro, constitucionais,

 já que

 válidas.

 M as

 isso significa

 que

o

 processo legislativo expressamente indicado

 n a

  Constitui-

ção e as

 diretivas nela estabelecidas

  não são, a

  despeito

  das

aparências, disposições exclusivas,

  m as

  apenas alternativas.

Que as Constituições  em que está ausente a garantia  da anu-

labilidade  dos atos inconstitucionais  na  verdade  não são as-

sim interpretadas, é a estranha conseqüência desse método,  a

que j á

  fizemos várias vezes alusão

  e que

  dissimula

  o con-

teúdo verdadeiro

  do

  direito

  p o r

  motivos políticos

  que não

correspondem propriamente

  aos

 interesses políticos

  de que

essas Constituições

  são

 expressão.

U m a

  Constituição cujas disposições relativas

  ao pro-

cesso legislativo podem

  ser

 violadas

  sem que

 disso resulte

 a

anulação

  das

 leis inconstitucionais

 tem

 ante

 os

 graus inferio-

res da

 ordem estatal

  o

 mesmo caráter obrigatório

  do

  direito

internacional diante

 do

 direito interno.

 D e

 fato,

 um a to

 esta-

tal

  qualquer

  que

 seja contrário

  ao

 direito internacional

  nem

p o r  isso é menos válido. A única conseqüência dessa viola-

ção é que o  Estado cujos interesses  ela  vulnera pode,  em

última análise, declarar guerra  ao Estado que é seu autor:  ela

acarreta  um a  sanção puramente penal.  D o  mesmo modo,  a

única reação, contra  sua  violação,  de um a  Constituição  que

ignore

 a

 jurisdição constitucional,

 é a

 punição decorrente

  da

responsabilidade ministerial.  É  essa força obrigatória mini-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

1 8 1

ma do  direito internacional  que  incita muitos autores,  sem

dúvida erroneamente,  a lhe  negar  de  modo geral caráter

jurídico.  E são  motivos  de  todo semelhantes  que se  opõem

ao

 fortalecimento técnico

  do

  direito internacional pela insti-

tuição

  de um

  tribunal internacional dotado

  de

  poderes

  de

anulação, e ao aumento da força obrigatória d a Constituição

pela organização  de um tribunal constitucional.

Deve-se

 ter em

 mente

 o que

 precede para poder apreciar

a

  importância

  da

 organização

 da

  jurisdição constitucional.

23. Ao  lado dessa significação geral comum  a todas  as

Constituições,

  a

  jurisdição constitucional também adquire

u m a

 importância especial,

 que

 varia

 de

 acordo

 com os

 traços

característicos  da  Constituição considerada. Essa importân-

cia é de primeira ordem para  a  República democrática,  com

relação

  à

  qual

  as

  instituições

  de

  controle

  são

  condição

  de

existência. Contra

 os

 diversos ataques,

 e m

 parte justificados,

atualmente dirigidos contra

 ela,

 essa forma

 d e

 Estado

 não po-

de se  defender melhor  do que  organizando todas  as  garan-

tias possíveis

  da

  regularidade

  das

  funções estatais. Quanto

mais elas

  se

  democratizam, mais

  o

  controle deve

  ser

  refor-

çado.  A  jurisdição constitucional também deve  ser  aprecia-

da  desse ponto  de  vista. Garantindo  a  elaboração constitu-

cional  das  leis,  e e m particular  sua constitucionalidade m a -

terial,

  ela é um

  meio

  de

  proteção eficaz

  da

  minoria contra

os

 atropelos

  da

 maioria.

 A

  dominação desta

  só é

 suportável

se for exercida  de modo regular. A forma constitucional  es-

pecial,  que consiste  de ordinário em que a reforma d a Cons-

tituição depende

  d e u m a

  maioria qualificada, significa

  que

certas questões fundamentais

 só

 podem

  ser

 solucionadas

 em

acordo

  com a

 minoria:

  a

 maioria simples

  não tem,

 pelo

  m e-

nos em certas matérias,  o direito d e impor sua vontade à mi-

noria. Somente  uma le i inconstitucional, aprovada po r maio-

ria

 simples, poderia então invadir, contra

 a

 vontade

 da

  mino-

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1 8 2

HANS KELSEN

ria, a  esfera  de  seus interesses constitucionais garantidos.

Toda minoria

 - de

 classe, nacional

  ou

 religiosa

 -

  cujos inte-

resses

  são

  protegidos

  de uma

  maneira qualquer pela Cons-

tituição,

  tem

 pois

  um

  interesse eminente

  n a

  constitucionali-

dade

  das

  leis. Isso

  é

  verdade especialmente

  se

  supusermos

um a  mudança  de maioria  que  deixe  à antiga maioria, agora

minoria, força ainda suficiente para impedir  a  reunião  das

condições necessárias à reforma da  Constituição.  Se virmos

a

  essência

  d a

  democracia

  não na

  onipotência

  da

  maioria,

ma s no

 compromisso constante entre

 o s

 grupos representados

no

 Parlamento pela maioria

  e

 pela minoria,

 e por

 conseguin-

te na paz

  social,

  a

 justiça constitucional aparecerá como

  u m

meio particularmente adequado

  à

  realização dessa idéia.

  A

simples ameaça

  do

  pedido

  ao

  tribunal constitucional pode

ser, nas  mãos  da  minoria,  um  instrumento capaz  de  impedir

que a

 maioria viole seus interesses constitucionalmente

  pro-

tegidos,

  e de se

 opor

  à

 ditadura

  da

 maioria,

  não

 menos peri-

gosa para

  a paz

  social

  que a da

 minoria.

24 . Mas é certamente  no Estado federativo que a juris-

dição constitucional adquire

  a

 mais considerável importân-

cia. Não é

  excessivo afirmar

  que a

  idéia política

  do

  Estado

federativo

  só é

  plenamente realizada

  com a

  instituição

  de

u m

 tribunal constitucional.

 A

 essência

  do

 Estado federativo

consiste - se nã o enxergarmos nele u m  problema  de metafí-

sica

  do

  Estado

  mas s im,

  numa concepção inteiramente

  rea-

lista, u m tipo de organização técnica do Estado -  numa divi-

são das  funções, tanto legislativas como executivas, entre

órgãos centrais competentes para todo

 o

 Estado

 ou seu

 terri-

tório (Federação,

 Reich,

  União)

 e uma

 pluralidade

  de

 órgãos

locais, cuja competência  se  limita  a uma  subdivisão  do Es -

tado,  a u m a  parte  de seu  território (estados federados,  pro-

víncias, cantões, etc.),

 co m

 representantes desses elementos

estatais, designados

  de

  maneira mediata (pelos parlamen-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

1 8 3

tos ou

 pelos governos estaduais)

 ou

 imediata (pela população

da

 circunscrição), participando

 d a

 atividade legislativa central,

e eventualmente também  da atividade executiva central.  Em

outras palavras,

 o

 Estado federativo

 é um

 caso especial

 de des-

centralização.

  A

  disciplina dessa descentralização

  é o con-

teúdo essencial  d a Constituição geral  do  estado,  que  deter-

mina principalmente q u e matérias serão regidas p o r leis cen-

trais  e que  matérias  o  serão  po r  leis locais, assim como  as

matérias  que  serão  d e competência exclusiva  d a União  e as

que serão  de  competência exclusiva  dos  estados federados.

A  repartição  das  competências  é o  cerne político  d a  idéia

federalista. Isso significa, do ponto  d e  vista técnico,  que as

Constituições federativas  n ão  apenas regulam  o  processo

legislativo  e  estabelecem certos princípios  a  propósito  do

conteúdo  das leis -  como acontece  com as dos Estados  uni-

tários  - mas  também fixam  as matérias atribuídas  à legisla-

ção

  federal

 e à

 legislação local. Qualquer violação

  dos

  limi-

tes

  assim traçados pela Constituição

  é uma

  violação

  da lei

fundamental d o Estado federativo; e a proteção desse limite

constitucional

 das

 competências entre União

 e

 estados fede-

rados

  é uma

  questão política vital, sentida como

  tal no Es-

tado federativo,

 no

  qual

  a

  competência sempre

  dá

  ensejo

  a

lutas apaixonadas. Mais

  que em

 qualquer outra

 parte,

  faz-se

sentir aqui

  a

 necessidade

  d e u m a

  instância objetiva

  que de-

cida essas lutas

  de

  modo pacífico,

  de um

  tribunal

  ao

  qual

esses litígios possam

  se r

 levados como problemas

  de

 ordem

jurídica  e decididos como  tal -  isto é, de u m tribunal consti-

tucional. Porque qualquer violação da competência da União

por um  estado federado,  ou d a competência  dos  estados  fe-

derados pela União,  é u m a  violação  da Constituição federal

qu e faz da União  e de seus estados u m a unidade. Não se de-

ve confundir essa Constituição total, de que a repartição  das

competências  é parte essencial,  com a  Constituição parcial

da  União,  que lhe é  subordinada, porque, assim como  as

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186 HANS KELSEN

se  costuma qualificar  de  intervenção federa [Bundesexe-

kution]  e que constitui u m problema tão difícil para  a teoria  e

a

 prática

  do

  Estado federativo, deveria

  se

 apresentar

  -

  seja

sob a forma primitiva de uma responsabilidade coletiva e res-

titutória, seja sob a forma tecnicamente mais aperfeiçoada de

u m a  responsabilidade individual  e por  culpa  do  órgão  res-

ponsável

  -

  apenas como

  a

  execução

  de uma

  sentença

  pro-

nunciada pelo tribunal constitucional,

  na

 qual fica estabele-

cida  a  inconstitucionalidade  da  conduta  do  Estado central

ou do

 estado federado.

25. As missões  que se  apresentam para  u m a jurisdição

constitucional  no âmbito de um Estado federativo ressaltam

de forma particularmente clara a afinidade entre a jurisdição

constitucional  e uma jurisdição internacional voltada para  a

proteção  do direito internacional, quando mais não  fosse e m

razão  d a  proximidade  dos  graus  da  ordem jurídica  que se

trata

  de

 garantir.

 E ,

 assim como esta

  tem por

 objetivo tornar

a

  guerra entre

  os

 povos inútil, aquela

  se

  afirma,

  e m

  última

análise, como

  um a

 garantia

  de paz

 política

  no

 Estado.

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II

Debate

  n o

  Instituto Internacional

de Direito Público

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O  presidente agradece  ao  expositor  e  declara aberta  a

discussão.

Duguit pede

 que ,

  antes

  de se

  iniciar

  a

 discussão sobre

 os

vários modos possíveis

 d e

 organizar

 a

 jurisdição constitucional,

se

  discuta

  a

  questão

  da

 classificação hierárquica  [Stufenbau]

das

 regras

 d e

 direito.

 E , a

 esse respeito, declara

 n ão

 poder

 c o m -

partilhar

  as

 idéias

  do

  expositor.

  D e

  fato,

 só é

 possível compa-

rar,

 classificar

 e

 hierarquizar coisas

 d a

 mesma natureza, seme-

lhantes entre si. Ora, a teoria sustentada por Kelsen coloca nu-

m a mesma hierarquia duas coisas totalmente diferentes: de um

lado, as regras (Constituição, leis, regulamentos, etc.), d e outro,

os atos jurídicos (administrativos, jurisdicionais),  que não são

regras.  E la  invoca, para tanto,  a  idéia  de que  qualquer grau

de  regra constitui  u m a  execução  das regras  do  grau superior.

M as

  essa

  é u m a

  idéia inexata

  d as

 regras propriamente ditas

(o

  regulamento,

  p o r

  exemplo,

  não

  executa

  a lei , mas a com-

pleta)

 e

 também

 o é na s

 relações entre

 a s

 regras

 e os

 atos jurí-

dicos,

 que

 cumpre pois a fortiori  isolar.

Kelsen responde, sobre

  o

  primeiro ponto,

  que a

  única

diferença entre  as regras  e os atos jurídicos consiste  em que

as regras  são gerais,  ao passo  que os atos jurídicos  são espe-

ciais,  m as  possuem  u m  caráter comum  que  permite agrupá-

los numa mesma hierarquia:  seu  caráter d e normas.  O s atos

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190

HANS KELSEN

administrativos

  ou

 jurisdicionais

  não são

  regras

  de

  direito,

m a s ,

  como

  a s

  regras

  d e

 direito, normas jurídicas:

  a

 regra

  é

um a

 norma geral,

 o ato

 jurídico

 é u m a

 norma especial

 ou in-

dividual.  C o m  efeito, a norma  se define simplesmente:  um

imperativo, u m  Sollen.  Ora , um  imperativo pode  ser  indivi-

dual, especial, tanto como geral.  O  direito existe tanto  em

forma geral como  e m  forma individual. Quanto  à  segunda

objeção

 de

 Duguit, Kelsen responde

  que

 todo

  ato de

  execu-

ção ou de

 aplicação (dois termos equivalentes) compreende,

ao

  lado

  do s

  elementos

  que j á

  estavam contidos

  na

  norma

que ele

 executa

  o u

 aplica, novos elementos

  que lhe são pró-

prios  e que se  somam  aos  elementos anteriores  da  ordem

jurídica. Dizer  que um ato é um ato de execução  ou de apli-

cação de certa norma  é dizer unicamente  que ele a concreti-

za ou que a

 individualiza: aplicar

 e

 executar

 u m a

 norma

 não

é  simplesmente reproduzi-la,  é  acrescentar  a ela  algo  que

ela não continha. É nisso que  consiste o processo  de criação

de  todo  o  direito,  que vai da  elaboração  da  Constituição  à

execução material,

 f im do

 sistema

 do

 direito, fato material

 e

não

  norma, graças

  à

  qual

  o

  direito, entrando

  em

  contato

c o m a

 realidade social, nela

  se

 insere.

 Se o ato

  administrati-

vo, por  exemplo,  não  fosse norma  e  execução  de  normas,

n ã o poderia  ser visto como  um fenômeno jurídico, porque  o

direito é, em sua essência, norma. Concluindo, Kelsen obser-

va que a

 teoria segundo

 a

 qual

 o ato

 administrativo

 não

  seria

um ato de

 execução

  da lei foi

 muitas vezes inspirada

  por in-

tenções políticas, isto

 é,

 pela idéia

  de

  fazer

 a

 administração

aparecer desvinculada

  de

 normas jurídicas gerais,

  das

  leis.

Duguit mantém

  seu

 ponto

  d e

 vista:

  a

 questão

  de

 termi-

nologia  não lhe  importa, mas e l e continua pensando que re-

gras (normas gerais)  e  atos jurídicos (normas individuais)

são coisas diferentes, que portanto  não se poderia hierarqui-

zar ; que o

  regulamento

  que

  organiza

  u m

  serviço público,

do

  qual

  a lei

  estabeleceu

  o

  princípio,

  não

  executa essa

  lei;

que não se

  pode entender

  p o r

  execução outra coisa

  que a

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

191

consumação

  de um a to

  material prescrito pela

  lei.

  Declara

enfim

  não ver

  como, qualificando

  o a to

  administrativo

  de

norma,  o  administrado seja mais  b em  protegido  do arbítrio

da

  administração.

Jèze propõe encerrar essa discussão preliminar,  de resto

necessária,

 e

 voltar

 ao

 problema objeto

 da

 exposição.

 A

 ques-

tão que  domina  o debate  é a  seguinte:  a  garantia  da  Consti-

tuição deve

  ser

  confiada

  a uma

  jurisdição única

  e

  especial

ou a

  todos

  os

  tribunais? Essa questão

  se

  apresenta

  do mes-

m o modo  no s Estados unitários  e federativos?

Berthélemy insiste

 no

  interesse eminentemente atual

  do

problema.  E m quase todos  os países constata-se  que um dos

poderes tende

  a

  ultrapassar seus limites

  e

  invadir

  o

  campo

do s outros, seja  o poder legislativo  em  relação  ao  executivo,

seja

 o

 inverso.

  Ele se

 pronuncia

  a

 favor

 d o

 controle

  de

 cons-

titucionalidade

 das

 leis

 p o r

 tribunais ordinários.

 N a

  França,

 a

instituição de um tribunal especial f oi e será sempre  uma ilu-

são. N os

 Estados unitários

 não se vê

 quem poderia recorrer

 a

esse tribunal;

  com o

 outro sistema,

  a

 dificuldade

 n ão

 existe.

Gascón

  y

 Marin

  n ão

  está

  d e

 acordo

 co m

  Berthélemy.

 A

Espanha,  em  teoria, conhece  o  sistema  por e le preconizado;

na

 prática, porém, esse sistema

  não deu

  bons resultados,

 j á

que os juízes  não se valem  de seus poderes. Além disso,  tal

sistema  dá  lugar  a julgamentos contrastantes, enquanto  um

órgão

 de

 justiça constitucional único permite

 q u e

 esse grave

inconveniente seja evitado.

Berthélemy declara

  não se r

  contrário

  à

  criação

  de um

tribunal constitucional especial,  mas a  considera,  por si só,

insuficiente.

  O s

  dois sistemas poderiam

  ser

  combinados,

permitindo além disso

  a

  exceção

  de

  inconstitucionalidade

diante dos  tribunais ordinários.

Fleiner expõe

  as

  soluções adotadas nessa matéria pelo

direito suíço.  O  cidadão  que se  considerar lesado  num de

seus direitos individuais pode, segundo

  a

 Constituição fede-

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192

IIANS KELSEN

ral de 1874,  apresentar  à  seção  de  direito público  do  tribu-

nal

  federal,

  u m

  "recurso

  de

  direito público".

  Se o

  recurso

fo i apresentado  no  prazo  de  sessenta dias,  o  tribunal pode

anular

 a le i co m

 base

 na

 qual

  fo i

 adotada

  a

 decisão adminis-

trativa ou jurisdicional, contanto que se trate  de uma lei can-

tonal; transcorrido esse prazo,

  só

  pode anular

  a

 decisão.

 A s

leis federais

 nã o são

  sujeitas

 a

 esse controle

  de

  constitucio-

nalidade;  no  entanto está  em  curso  u m  projeto  de  reforma

da

 Constituição federal,

  com o f im de

 atribuir também esse

poder

  ao

  tribunal federal.

Duguit  se  declara favorável  ao  sistema  de  exceção  de

inconstitucionalidade levada  aos  tribunais ordinários;  con-

dena

  o

  sistema

  de

 ação

  de

 nulidade

 po r

  inconstitucionalida-

de e,

 portanto,

  a

 criação

 de uma

 jurisdição constitucional

  es-

pecial,  que  seria  ou  inoperante, ou muito perigosa porque  se

transformaria numa terceira

  - ou

  numa primeira

  -

  assem-

bléia política.

A  pedido  de  Jèze, Kelsen expõe  os  resultados  da  cria-

ção na

  Áustria, pela Constituição federal

  de 1920, da Su-

prema Corte Constitucional e as conclusões que se pode tirar

dessa experiência, atualmente única.  A té  aqui,  o  funciona-

mento dessa Corte,

 q ue

 pode anular tanto

 a s

 leis federais como

as

 leis estaduais,

  não

 suscitou críticas sérias.

  Sem

  dúvida,

  a

intervenção da política n o exercício do julgamento  é um pe-

rigo inegável

  do

  sistema,

  que é

  necessário enfrentar.

  Mas

acaso  o exercício do controle pelos tribunais ordinários p re -

serva desse perigo? Acaso os juízes não têm um a  orientação

e

 preconceitos políticos?

 O

 exemplo

 da

 Suprema Corte

 a m e -

ricana

  não

  prova isso?

  O

  problema essencial

  é,

 portanto,

  o

da composição  da jurisdição constitucional.  N a  Áustria,  os

juízes

  d a

  Suprema Corte

  são

  eleitos pelo Parlamento;

  mas

somente seis deles, dos vinte, podem  ser escolhidos entre os

membros

  das

 Assembléias legislativas;

 os

 catorze outros

 são

geralmente juristas de carreira, escolhidos notadamente entre

os

 professores

 de

 Direito Público.

  São

 portanto esses

  m e m -

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

193

bros

  não

 parlamentares

  que

  constituem

  a

 maioria

  e

  impõem

as  decisões,  ao  passo  que os  membros parlamentares  dos

partidos opostos se equilibram. Portanto a Constituição aus-

tríaca  deu  espaço  à  política; concedeu-lhe  u m  lugar oficial

na  composição  da  Corte,  o que tem a vantagem  de permitir

que

  seus membros

  n ã o

  parlamentares

  n ão

  levem

  em

  conta

os

  interesses políticos

  em

  jogo,

  já que os

  membros parla-

mentares naturalmente os levam

 em consideração.  A té agora,

esse sistema deu resultados bastante satisfatórios. N o entanto,

desde  já , os  partidos políticos começam  a se  esforçar para

instalar,  nas  vagas  de que os  parlamentares  são  excluídos,

partidários oficiais

 ou

 oficiosos seus.

 É um

 grave perigo.

 O re-

lator ressalta

  que, na sua

  opinião,

  a

  objeção capital

  que se

opõe

  ao

 sistema

  de

 exceção

 de

  inconstitucionalidade

  é a in-

certeza  e a  insegurança  do  Direito  a que ele  conduz, pois

mesmo  o tribunal  de cassação,  que em certa medida faria as

vezes  de  regulador  da  jurisprudência constitucional, pode-

ria, por

  motivos políticos, proferir decisões contraditórias.

Ora, é funesto, para  os cidadãos,  que uma le i  seja declarada

ora

  constitucional,

  ora

  inconstitucional,

  e a

 questão

 da

 cons-

titucionalidade das leis interessa não apenas aos partidos, m as

a  todos  os  cidadãos. Admitir  a  incerteza sobre esse ponto  é

consentir a ruína da Constituição. Aliás,  a diferença técnica,

se não

 política, entre

 os

 dois sistemas

 é

 pouco considerável:

ela

  concerne simplesmente

  à

  centralização,

  à

  concentração

do

  contencioso

  e, em

  segundo lugar,

 ao

  alcance

  do

 julgado,

porque,  no  sistema  da  exceção  de  inconstitucionalidade,

tem-se  a anulação  da le i , mas uma anulação parcial, limita-

da ao caso em exame. O sistema da Corte Constitucional es-

pecial consiste simplesmente

  em

  centralizar

  e

 proporcionar

um

  alcance geral

  ao

 controle

 de

  constitucionalidade.

Thomas expõe

  o

  estado

  e as

  tendências

  do

  direito

  ale-

m ão  sobre esse ponto.  A té  aqui,  o controle  de  constitucio-

nalidade  só se  exerce  na  Alemanha sobre  as  leis estaduais,

mais precisamente sobre  sua  conformidade  às  leis federais;

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194

HANS KELSEN

foi o

 Tribunal Federal

  de

  Leipzig

  que

  recebeu competência

para exercer esse controle: suas decisões

  são

  publicadas

  n o

Diário Oficial  e têm força de lei . Até agora, elas n ã o provo-

caram críticas. N o  entanto, ante  o  silêncio  da  Constituição,

o  Tribunal Federal afirmou,  por uma  decisão  de 20 de no-

vembro

 de 1925, que eJe tinha

 competência para examinar

 a

constitucionalidade  d as  leis federais. Mais  o u  menos  na

mesma época,  o  governo apresentou  u m  projeto,  que  talvez

venha  a ser  retomado pelo governo atual,  que  tenderia  a

proibir

  o

  controle pelos tribunais federais, concentrando-o

nas

 mãos

 do Staatsgerichtshof,

  tribunal

 não

 permanente

 com-

posto metade

 po r

 juízes togados, metade

 p o r

 juízes adminis-

trativos. Essa composição  da jurisdição constitucional — e x -

clusão

  d os

  parlamentares, apelo

  a

 magistrados

  e

 também

  a

professores

 -

  representa

  u m

 progresso

  em

 relação

  à

 organi-

zação austríaca, cujo princípio deve  ser  aprovado.

Berthélemy indica que , a seu ver, se um a jurisdição cons-

titucional única

  é

 indispensável

  no s

 Estados federativos,

 es-

sa

 solução

 n ã o

 vale para

  os

 Estados unitários.

Jèze sugere  que se poderia pensar  em organizar  o con-

trole de constitucionalidade po r meio  ou no âmbito  das pró-

prias assembléias legislativas, isto

 é , um a

 garantia politica

 da

Constituição, permitindo

  que uma

 minoria pedisse

 u m

 voto

a u m a

  maioria especial sobre

  a

 questão

  d e

  saber

  se

 esta

  ou

aquela

  lei não

  deveria

 ser, ela

 mesma, aprovada

  p or

  maioria

especial. Porque

 é

 necessário desconfiar

 do

 espirito conser-

vador

 dos

 juízes

  e

 mesmo

  dos

 juristas,

  que por

 natureza

  são

tradicionalistas e propensos a imobilizar  a interpretação dos

textos:  é perigoso confiar  a eles  a missão  d e  dizer  o direito

em  matéria política.

Jèze declara encerrada

  a

 discussão

 e nã o crê

 necessário

formular resoluções sobre

  u m a

  questão

  em que as

 opiniões

estão

  tão

 divididas.

A

  sessão

  fo i

 encerrada

  às 17h 15.

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III

A

 sanção jurisdicional

  dos

princípios constitucionais

Nota  de R.  Carré  de Malberg)

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  N a

  monarquia absoluta,

  a

  distinção entre

  o

  grau

  d a

Constituição  e o grau  das  leis [...] não  desempenha n a práti-

ca nenhum papel  [...] o problema da  constitucionalidade  das

leis

 não tem

  sentido nela."

Essas palavras, extraídas

  da

  exposição

  tão

  substancial

e  interessante  de H.  Kelsen, poderiam  se  adequar perfeita-

mente, mutatis mutandis,  ao que se pode chamar d e parlamen-

tarismo absoluto. Elas dizem muito

 d o

 modo

 em que, nas

 atuais

condições do direito público francês, s e apresenta  a questão

da criação de um sistema de garantias da constitucionalidade

d as

  leis.

Antes

  de

  mais nada, observemos brevemente

  que tal

questão  só oferece pleno interesse  co m  relação ao conteúdo

das leis, vale dizer  no que concerne  à sua constitucionalida-

de

 material.

  Já no que diz

 respeito

 à

 constitucionalidade

  fo r -

mal, ela não

 deveria

 n e m

  sequer

  ser

 levantada. Acaso

 a pro-

mulgação nã o tem o objetivo preciso e único d e atestar a per-

feição formal da lei, autenticando  seu  texto?  E  esse instituto

acaso

  não

  implica,

  por seu

  próprio objetivo,

  que é

  tarefa

  e

dever exclusivo

  do

  promulgante assegurar-se

  de que a lei,

cuja certidão  de  nascimento  e le  redige, deve corresponder

aos requisitos procedimentais de validade exigidos para a sua

elaboração, requisitos esses

 que, de

 resto, conforme

 a

 Cons-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

199

controle jurisdicional, teve porém outra causa, muito mais

grave.

  Ela se

 prende, sobretudo,

  à

 concepção

 que os

 criado-

res  revolucionários  d o  direito público francês conseguiram

impor

  no que

  concerne

  ao

  modo como

  o

  corpo legislativo

exerce  seu poder  de legislar.

A esse respeito,  são possíveis dois pontos  de  vista.  Po-

de-se

  dar,

 antes

  de

 mais nada,

 que ,

  segundo

  o

 direito vigen-

te, o

  poder legislativo deva

  ser

  considerado

  de

 natureza

  di-

ferente  do  poder constituinte. Isso  se  verifica  nos  Estados

em que a  Constituição  é  concebida como  ato  pelo qual  o

povo, deliberando soberanamente, institui os diversos órgãos

estatais, inclusive

  o

  órgão legislativo, como "delegados",

  a

qu e  confere,  de  forma separada  e  limitada,  o  exercício  de

determinados poderes. Nesse primeiro sistema, o corpo legis-

lativo

 n ã o

 pode

  ser

 confundido

 com o

 povo soberano:

  é um a

simples autoridade investida,

  não da

  soberania,

  mas de um

poder,  e no exercício  das suas funções age d o mesmo modo

derivado  que os  outros corpos  ou  autoridades constituídas

no  exercício  das  suas respectivas funções.  A s  leis  que ele

adota

  são, com

  respeito

  à

  Constituição, apenas atos

  de po-

der  subalterno, legítimos unicamente nos  limites  em que seu

conteúdo, obra  de um  órgão constituído,  nã o  está  em con-

tradição

  com

 nenhuma

  das

 disposições superiores estabele-

cidas pelo soberano, isto

  é,

  pelo povo, autor

  do ato

  consti-

tuinte. Nessas condições,  é  natural  que os juízes  —  embora

sujeitos às leis ordinárias, na medida  em que sua função con-

siste principalmente  e m  aplicá-las  - não  possam  e não de-

vam

  aplicá-las

  a não ser

 depois

  de ter

 como certa

  sua

  regu-

laridade constitucional.

 D e

 fato, diante

  da

 Constituição eles

estão, quanto ao exercício da sua  função e segundo esse ponto

de vista, em pé de igualdade  com o  legislador, dado q ue  este

representa

  o

 povo

  de

  forma não-diferentç

  da dos

 juízes.

  D e

modo

  que ,

  dado

  um conceito

  orgânico semelhante,  os  argu-

mentos

 já

 utilizados pelo juiz Marshall

  em

  favor

 d o

  controle

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200

HANS KELSEN

de constitucionalidade  das  leis, e hoje retomados  po r tantos

publicistas,

  se

 impõem

 c o m u m a

 força

 e uma

 lucidez

 que não

admitem réplicas.

O

  sistema francês

  de

  organização

  dos

  poderes consti-

tuídos tomou, desde  o  início, caminho  bem  diferente.  Dei-

xando

  d e

  lado

  a

  excepcional medida

  em que o rei, sob al-

guns aspectos particulares,

 era

 qualificado

 de

 "representante",

a

 Constituição

  de 1791, na

 esteira

  da

 declaração

 dos

 direitos

de 1789,

  estabeleceu entre

  o

  corpo legislativo

  e as

  outras

autoridades u m a espécie de desigualdade que tinha  uma cau-

sa

 profunda

 e que

 excluía qualquer possibilidade

  de uma se-

paração verdadeira  e  substancial entre poder legislativo  e

poder constituinte. Enquanto  o executivo  e a autoridade j u -

diciária exerciam suas atribuições

  n a

  forma

  e com os

 pode-

res de

  funcionários

 que

  agem

  a

  serviço

  da

  nação,

  a

  assem-

bléia

  d e

 deputados, concebida como

  o

 órgão

  que

 "quer pela

nação",

  se

  tornava

  a

 "representação" mesma desta última

  e

adquiria,  a esse título, a posse da soberania nacional  com os

poderes

  daí

  decorrentes.

  E é

  isso

  que a

  declaração

  de 1789

formulava

 em

  termos penetrantes quando,

  no art .

  6?

a pro-

pósito

  da lei

  oriunda

  das

 decisões

  do

 legislador, dizia

  que é

"expressão

 d a

 vontade geral" (Const.

  1793, art. 4f da

 Decla-

ração

  dos

  Direitos; Const.

  do ano III, art. 6? da

 Declaração

d os

 Direitos);

 e na

 seqüência

 do

 texto precisava

  e

 reforçava

 o

alcance dessa definição especificando que "através dos  seus

representantes todos

 os

 cidadãos" exercem

  o

 direito

 de par-

ticipar da sua formação". Era como dizer que, no corpo legis-

lativo,  n o  momento  da  elaboração  das  leis, está presente  o

próprio povo

  ou a

 totalidade

  dos

 cidadãos.

  O que o

  legisla-

dor decidiu é decisão legislativa  do povo, isto é, nã o de um a

autoridade encarregada pelo povo,

  mas do

 próprio povo

  so-

berano. Abria-se desse modo um abismo jurídico entre o po-

der  legislativo  da assembléia  dos deputados,  que representa

a

  nação,

  e a s

  competências

  das

  outras autoridades,

  que só

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL 201

ocupam cargos como funcionários. Compreende-se portanto

facilmente como, dadas essas premissas,

  a

  Constituição

  de

1791 (tít. III, cap. II, seç. I, art. 3?)

  tenha podido concluir

que na França, não há autoridade superior  à da lei .

Seria fácil objetar  a  essa ideologia revolucionária  g lo-

bal, que se inspirava principalmente n as teorias do Contrato

social,  que o  próprio Rousseau havia demonstrado,  de for -

m a  decisiva,  que o  soberano  não  pode  ser nem  substituído

n em  representado.  E nós ,  analogamente,  n ão  pretendemos

justificar  o  conceito  q u e  identifica  o corpo legislativo  com

o  soberano.  Nós nos  limitamos  a constatar  que esse concei-

to presidiu  a  fundamentação e a orientação  de nosso direito

público orgânico.  E  acrescentemos, sobretudo,  que não po-

d ia deixar  de exercer u m a  influência capital sobre a solução

a dar ao problema  d as relações entre leis  e Constituição.  A s

instituições jurídicas

 não são

 unicamente

 u m

 produto

 de rea-

lidades positivas

 e de

 necessidades práticas:

 as

 idéias, mesmo

quando contestáveis, também adquirem, mediante

  o

  domí-

nio que exercem sobre os espíritos, u m a poderosa influência

sobre

 a

 formação

 do

 direito.

Ora,

  como partiam

  da

  idéia

  de que ,

  através

  do

  Parla-

mento, legisla

  a

  nação composta pela totalidade

  dos

  cida-

dãos,  os  constituintes  de  1789-1791 tomavam  u m  caminho

q u e  devia levá-los logicamente  a  descartar toda  e  qualquer

possibilidade  de  discussão  e de  recurso destinados  a  infir-

mar as leis, mesmo  se por motivos d e  inconstitucionalidade.

O  soberano é sempre igual a si mesmo. Seja quando  o corpo

dos cidadãos  é idealmente representado po r um a  constituin-

te ,  seja quando  é  representado pelo legislador ordinário,  é

sempre o mesmo senhor  que age. E como essa senhoria  não

sofre mudanças  em  relação  à  denominação  - lei ou  Cons-

tituição  - sob a qual é  exercida,  não é  racionalmente conce-

bível  que uma  terceira autoridade possa  ser  chamada  a se

interpor entre o soberano, autor da Constituição,  e u m  legis-

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202

HANS KELSEN

lador que, por sua vez, não se distingue desse soberano. Tan-

to

 mais

  que , no

  sistema estatal edificado pela Revolução,

  a

distância  q u e  separa  o  legislador  dos  outros órgãos consti-

tuídos

 não

 decorria

 de um a

 graduação hierárquica

  dos

 pode-

res . Com efeito, a idéia  de graduação  só pode encontrar  seu

lugar  n as  relações entre autoridades  que exercem  de  forma

sucessiva u m poder uniforme p o r qualidade e natureza. O ra ,

do

  conceito

  de que o

  corpo legislativo

  é

  principalmente

  a

encarnação

  do

  soberano, resulta

  que a

  Assembléia Legisla-

tiva,  de um  lado,  e as autoridades executivas  ou judiciárias,

de outro, n ã o apenas exerciam os poderes do Estado em diver-

sos níveis,  m a s eram também dotadas  de poderes de nature-

za  diferente, de modo  que não se  podia admitir  que  nenhu-

ma das

 autoridades

  do

  segundo tipo julgasse

  a

 obra sobera-

na do

 legislador. Numa palavra,

 com o

 ponto

 de

 vista adotado

pela Revolução quanto

  à

 forma pela qual

  a

 Assembléia

  dos

Deputados exercia

 o

 poder legislativo, ficava comprometida,

desde  o  início,  u m a  real distinção entre leis constitucionais

e leis ordinárias.

D e  fato, e não  obstante  os esforços feitos para fazer-se

duradoura,  a Constituição  de 1791 não previa nenhum meio

jurídico

  q u e

 permitisse provocar

 u m

 exame

 d a

 validade

  das

leis consideradas

 em

  contradição

  com

 suas disposições.

 Ela

afirmava,  é bem  verdade,  em seu  título  I, qu e o  poder  le-

gislativo n ão poderá adotar nenhuma  lei que atente contra  o

exercício d os direitos naturais garantidos pela Constituição";

mas ,

 como essa afirmação

 d e

 princípio

 não era

 acompanhada

de nenhuma sanção positiva, é lícito sustentar que, depois de

te r erigido o Parlamento como soberano efetivo, a Constitui-

ção de 1791  também  lhe dava crédito (tomo a expressão  em -

prestada

  do

  relatório

  do

 presidente Jèze)

1

  e se

  remetia

  à sua

apreciação quanto  ao que ele  podia fazer legislando. Essa

1 V ,  HAURIOU, Prècis  de   droii constitutionnel,  2? ed . , pp. 127 ss .

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

203

conclusão  é  corroborada pela seqüência  do  título  I, que re-

servava

  à lei o

 poder

  de

  impor

  às

  liberdades constitucionais

as condições de exercício ou as limitações julgadas necessá-

rias

 n o

  interesse

  da

 "segurança pública"

  ou

 para

  a

 preserva-

ção dos

 direitos alheios",

  o que, na

  prática, equivalia

  a dar

carta branca  ao  legislador para  a  regulamentação dessas  li -

berdades.

 C om

  isso,

 a

 Constituição

  de 1791

 apenas continua-

va a  aplicar  a  mesma idéia inicial,  a  saber,  a de um  parla-

mento

  que , por

  representação, exprime soberanamente

  a

vontade  do povo.

Claro, objetar-se-á

  que ,

  mesmo

  n a

  concepção

  que

  atri-

bui ao

 povo

  e à sua

  soberania tanto

  a

 obra

  do

  legislador

  co-

mo a dos  constituintes,  é  perfeitamente possível sustentar

que ,

  mediante

  as

  condições restritivas

  que a

  Constituição

estabelece  ao  exercício  do seu  poder legislativo,  o povo  se

autolimitou, no sentido que vedou, a si e à sua representação

legislativa, notadamente

  a

 seus membros individuais, inter-

vi r com  leis ordinárias sobre os princípios estabelecidos por

meio

  da

  Constituição

  e

  sobre

  as

  liberdades reconhecidas

ao s  cidadãos  por tal meio. Tendo  o povo  se vinculado desse

modo,  as  leis ordinárias aprovadas pelo legislador popular

que

 desprezassem

 u m a

 disposição constitucional deveriam

 ser

consideradas irregulares, visto que em todo Estado  a sobera-

nia ,

  popular

  ou não, só

  pode

  ser

  exercida

  n as

  condições

estabelecidas pela ordem jurídica vigente. Seria assim  rea-

berta

  a

 possibilidade

  de

  organizar

  u m

  controle

  da

  validade

constitucional

  d as

  leis. Acaso

  o

 próprio Sieyès, esse grande

teórico da soberania popular, não combinava  sua definição d o

regime representativo

 - n o

 qual, dizia

  ele, o

 povo quer atra-

vés da assembléia d e seus representantes  - com a instituição

de um

 colégio "constitucional",

 que

 teria como encargo

 anu-

lar as  leis que violassem  a  Constituição?

O

  instituto preconizado

  p o r

  Sieyès

  só foi

  introduzido,

porém,

  no ano

  VIII, quando

  as

  idéias sobre

  a

  soberania

  p o -

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

205

as

  dificuldades eventualmente levantadas

  p o r

  esta

  ou

  aque-

la  disposição  da lei, cuja conformidade  com a  Constituição

seja dúbia

  ou

  contestada.

  P or

  meio

  d o

  órgão legislativo,

  o

próprio povo precisará, d e modo definitivo, o alcance da von -

tade

  por e le

  originariamente expressa

  no ato

 constitucional.

Numa palavra, cabe a o corpo legislativo examinar e decidir,

p or

  ocasião

  e no

  curso

  das

  suas deliberações sobre

  u m p ro -

jeto

  de lei, se o

 conteúdo desse projeto

 é

 compatível

  ou não

com a Constituição, isto é, se pode  ser adotado simplesmen-

te por

  meio

  do

  legislativo

  ou se, ao

  contrário, para

  a sua

adoção

  é

 necessário recorrer

  ao

  procedimento especial

  re -

querido para

  as

 modificações

 da lei

 constitucional. Volta-se

assim, mais

  uma vez , à

 supremacia

  do

 Parlamento.

A té  aqui, limitamo-nos  a  falar d a  direção originalmen-

te

 impressa pela Revolução

  à

 solução

  do

 problema

  d as

 rela-

ções entre  lei e Constituição.  M as o que d iz hoje, a esse  res-

peito,

  o art. 8? da lei

  constitucional

  de 25 de

  fevereiro

  de

1875?

 A o

 reservar

 às

 câmaras

  o

 poder

 d e

 declarar

 que

 cabe

a

  reforma

  d as

  leis constitucionais", essa

  lei

  retoma numa

fórmula verdadeiramente expressiva todas

  as

  tendências,

  tra-

dições  e  modos  d e  pensar nascidos  e m  nosso país  do con-

ceito revolucionário

 que vê no

 Parlamento

 a

  imagem

  do so-

berano. Instintivamente,

  a

  Constituição

  de 1875

  veio colo-

car-se,  no que concerne  à sua  interpretação,  n o  sulco traça-

do

  pelos fundadores

  do

  nosso direito público.

  E la

  remete

ao s futuros parlamentares o poder d e avaliar, quando neces-

sário,

  a

 amplitude

  d a s

  limitações

  que se

 pode impor

  às

  leis

ordinárias, nisso obedecendo à consideração de que esses fu -

turos parlamentares  não são, com respeito  ao soberano, dife-

rentes

 p o r

  qualidade

  dos que em 1875

  disciplinaram

  os po-

deres que cabem ao poder legislativo, ainda  que, então, assim

tenham feito

 a

 título

 d e

  constituintes.

 O

 poder

 d as

 câmaras

 de

reconhecerem  sua competência legislativa, decidindo, quan-

do

  necessário,

  se

  "cabe"

  a

  adoção

  de

  certas novas disposi-

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208 HANS KELSEN

Constituição mediante

  a

  introdução

  de um

  controle jurisdi-

cional sobre

  a

  constitucionalidade

  das

  leis.

  N a

  própria

  E u-

ropa,

 o s

 argumentos lhes

 s ão

 fornecidos seja

 p or

 Estados

 que ,

como

  a

 Áustria,

 já

 consagraram

  a

 instituição

  de um

 tribunal

constitucional, seja

 em

 Estados, como

 o

 império alemão,

 nos

quais,  n ão obstante  o deliberado silêncio d a  Constituição,  o

movimento  a  favor do  controle ganha continuamente terre-

no na  doutrina,  a  qual j á é  capaz  de se  apoiar  em  decisões

judiciárias.

Permito-me simplesmente observar,  a esse respeito, que

os

 Estados

  que se

 concedem

  um

 direito público substancial-

mente novo

 n ão

 devem, como

 nós ,

 levar

 em

 conta

 u m

 passa-

do

 cujo início remonta

  a 1789. A

  mentalidade

  do

 povo fran-

cês se

 formou,

 daí em

 diante, numa escola cujos ensinamen-

tos lhe

 apresentaram

  as

  decisões legislativas

  do

  Parlamento

como a expressão da vontade geral do povo:  com ou sem ra-

zão, o povo,  em  nosso país, acostumou-se  a ver na sua as-

sembléia parlamentar

  o

 órgão normal

  e por

  excelência

  qua-

lificado  da  soberania nacional.  N ã o é fácil remar contra  tal

corrente

  e

 conseguir reverter

 um

 passado cuja força política

está consolidada

  p o r

  esses hábitos espirituais.

  E -

  para

  nos

exprimirmos

  em

  termos jurídicos

  - não é

  fácil reduzir

  em

nosso sistema

  de

 direito público

  o

  Parlamento

  ao

 papel

  de

u m a

  simples autoridade

  que ,

  como

  o

  executivo

  ou o

  corpo

judiciário, exerce suas funções

  sob o

  império

  de uma lei

constitucional

  que

  seria tão-somente

  o ato de

  vontade

  pri-

mitivo, fundamental

 e

 efetivamente limitativo

 do

 verdadeiro

soberano.

N o  entanto,  é  essa  a  transformação -  podemos dizer  a

revolução  - por que teriam de passar nossos conceitos e nos-

sas  instituições para  que fosse possível introduzir  em  nosso

regime orgânico um procedimento  de controle jurisdicional

que

  garantisse

  a

  subordinação

  e a

  conformidade

  d as

  leis

  à

Constituição. Enquanto

  o

  espírito público continuar domi-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

209

nado pela idéia

  de que o

 Parlamento concentra

  em si

  legiti-

mamente

  o

 poder

  d e

  expressar

  a

  vontade geral

  e

  enquanto

essa idéia

 se

 achar implicitamente consagrada,

 no

 plano legis-

lativo,  po r  nossa própria Constituição,  n ã o  vemos,  de  fato,

como

  u m

  tribunal

  -

  ainda

  q u e

  recrutado

  nos

  corpos políti-

cos mais conspícuos e fortalecido em seu prestígio pela pa r -

ticipação  das  mais eminentes personalidades  do  mundo j u -

rídico  -  poderia  n a prática discutir, inclusive  no  caso  de re-

cursos  que  contenham censuras  de  inconstitucionalidade,  e

ainda menos contestar deliberações legislativas  que, em

razão da qualidade representativa  d as câmaras,  são conside-

radas como a própria manifestação d a vontade legislativa em

ato do povo francês e têm , no caso,  o valor  de  interpretação

da vontade popular  ta l  como  se manifestou precedentemen-

te na  Constituição.

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  pressão pela

reforma constitucional*

*

  " D e r D r a n g

  z u r

  Verfassungsreform",

 in Neue Freie Presse,

  6.10.1929.

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Se não é

 possível aceitar

  o

 extremismo paradoxal

 da cé-

lebre tese

  de

 Lassalle segundo

  a

 qual

  a

 Constituição

  de um

Estado

 é, em

 última análise,

 o

 exército

 e os

 canhões

 dos

 quais

o governo dispõe — j á que e l a  subestima  a força das idéias, e

sobretudo  das  idéias jurídicas  forçoso  é  conceder  que

  a

Constituição expressa

  as

 forças políticas

  de

  determinado

povo,  é u m  documento  q u e  atesta  a  situação  de  equilíbrio

relativo  n a  qual  os  grupos  em  luta pelo poder permanecem

até  nova ordem.  Se a  exigência  de  modificação  da  Consti-

tuição cresce  a tal  ponto  que não  pode  se r  mais contida,  é

decerto  u m  sinal  de que houve

  um

 deslocamento

  de

 forças

que

 procura

  se

 exprimir

 n o

 plano constitucional.

Tal deslocamento deforças também  é claramente,  o mo-

tivo mais profundo  da  crise politica austríaca,  que

 culminou

na

 tentativa

 da

 reforma constitucional

 que a

 maioria burgue-

sa pretende realizar e m face d a oposição. Se quisermos tomar

posição sobre

  os

  projetos

  de

  modificação

  da

  Constituição

vigente,

 que o

 governo apresentou

 ao

 Conselho Nacional,

  se-

 útil termos

  em

  mente

  a

 situação política

  de que

 resultou,

nove anos atrás,  a

 Constituição

 que se

 pretende mudar.

 C o m

efeito, somente

 u m a  comparação objetiva  da situação  de en-

tão com a de hoje

  permitirá

 u m

 juízo desapaixonado sobre

 a

oportunidade

 e a

 viabilidade

 de

 tais projetos

 e

 talvez

 até

 indi-

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214 HANS KELSEN

que a  direção  em que é necessário aperfeiçoar  a Constitui-

ção, para  q u e seja assegurada  u m a vida tranqüila  e próspera

ao Estado.

A Constituição  de 1920

A Constituição  de 1? de outubro  de 1920

  nasceu

 no âm-

bito

 d a

 coalizão

 dos

 três partidos

 q ue

 formavam

 a

 Assembléia

Nacional Constituinte,

 m a s

 baseia-se

 em

  substância

 no acor-

do

 entre

  os

 dois maiores partidos,

  o

 socialdemocrata

  e o

 cris-

tão-social.  A

  influência

  do

 partido pangermânico

  fo i

 rela-

tivamente pequena.

  N o

  seio

  do

  governo,

  ela foi

 preparada

através da colaboração d o chanceler, d r. Renner, com o vice-

chanceler, Fink, coadjuvado pelo secretário  de  Estado cris-

tão-social,  dr. Mair. Este último havia sido chamado  ao ga-

binete  c o m a  tarefa estritamente pessoal  d e colaborar  p a -

ra a reforma constitucional e administrativa". Por outro lado,

o trabalho recebeu o impulso decisivo  - não podendo o proje-

to de

  Constituição

  ser

  apresentado

  à

 Assembléia Nacional

Constituinte como proposta

  do

 governo

 - da

 comissão cons-

titucional,

 da

 qual eram presidente

 e

 relator, respectivamente,

o dr.

 Bauer

  e o dr.

  Ignaz Seipel. Deve-se sobretudo

  ao pro-

fundo conhecimento

  que

  esses dois eminentes políticos

  ti-

nham

  da

 questão constitucional

 nã o ter a

 Assembléia Nacio-

nal

 Constituinte encerrado

 os

  trabalhos

  sem

 qualquer resul-

tado; devem-se

  ao

  entendimento deles todas

  as

  disposições

essenciais  da  Constituição, estabelecidas  de  acordo  com o

projeto apresentado e ilustrado pelo dr. Seipel. O que  levava

os  socialdemocratas  a acelerar  o s  trabalhos  era o  perigo  de

que a  falência  da  Constituinte pudesse induzir

  os

 governos

das

 provindas [Lãnder],

  que

 pressionavam

  por uma

  Cons-

tituição,  a realizá-la através de um acordo entre o s próprios

Lãnder,

  excluindo  o  parlamento central;  e tal  Constituição

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

215

confederativa  n ão

  podia obviamente agradar

  a u m a

  social-

democracia então orientada

  num

  sentido fortemente centra-

lista. P or outro lado, para o partido cristão-social a rápida con-

clusão do projeto que a situação propunha representava um a

ocasião extremamente favorável para evitar

 u m a

 nova disci-

plina

  dos

  direitos fundamentais

  e de

  liberdade,

  e

 portanto

aquele arranjo

  das

  relações entre Estado

  e

  Igreja, Igreja

  e

escola,  que havia sido realizado n a Constituição  de  Weimar.

Numa nova disciplina d o s direitos fundamentais e de  liber-

dade, dificilmente seria evitada

 a

 solução weimariana, tanto

mais

  que ,

 conforme

  o

 programa

  de

  coalizão acordado entre

os  cristãos-sociais  e os socialdemocratas,  a  Constituição  de

Weimar deveria fornecer o modelo para  a  Constituição aus-

tríaca

 e o

 compromisso

 q ue

 havia sido alcançado,

  no Reich,

entre

  o

  centro

  e a

  socialdemocracia,

  n a

  Áustria

  se

  imporia

por si mesmo. Esse compromisso,  que teria significado um a

forte aproximação  ao  sistema  da  separação entre Igreja  e

Estado,

  teria sido desfavorável

 aos

 cristãos-sociais.

Desse ponto de vista, a Constituição de 1920 foi um re-

sultado legislativo com o qual ambos o s grandes partidos, tão

diferentes e m suas concepções, podiam-se considerar,  e na

época

  de

  fato

 se

 consideraram totalmente satisfeitos.

A República como governo parlamentar

A lei de 1 f de outubro  de 1920, com a qual  a República

austríaca  se  erigiu  e m  Estado federativo,  é  essencialmente

marcada  po r  duas características:  a  Constituição traz todos

os

 traços salientes

 de um Estado federativo  e tem um a

 acen-

tuada índole

 democrático-parlamentar.  O

 elemento federa-

tivo deve  se r atribuído  de novo  à influência do partido cris-

tão-social,  qu e  mostrava então fortes tendências federalis-

tas . A s

  disposições

 q u e

  criam

  u m

 governo parlamentar

 p ro -

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216

HANS KELSEN

vêm, por sua vez , da

 parte socialdemocrática,

  e não

  encon-

traram resistências particulares

  no

  decorrer

  das

  negocia-

ções.  O s  socialdemocratas eram  de  fato, na  época,  o parti-

d o  mais forte,  e sua  esperança  d e  obter  a  maioria  n a s  elei-

ções seguintes

  não era

  vista

  em

  geral

  com

  muito otimismo.

O

  sistema parlamentar, tecnicamente fundado numa oposi-

ção entre maioria  e minoria, cuja dialética leva porém a ten-

são

  entre tese

  e

 antítese

  a uma

  síntese

  e a um

  compromisso

entre

  o s

  opostos,

  n ã o

  pode deixar

  de ser

  eminentemente

vantajoso para u m a  oposição q u e disponha de certo número

mínimo de votos. M as em 1920, co m a possibilidade d e ir pa-

ra a

 oposição,

  os

 cristãos-sociais tinham

  de

 fazer muito mais

as

 contas

  do que os

  socialdemocratas.

  O

 perigo

  de um

  regi-

m e  acentuadamente socialista  era  considerado então muito

maior  do que  hoje.  D e modo  que a  disposição constitucio-

nal  que  beneficia particularmente  a oposição  e que

 requer,

para  a  modificação  da  Constituição,  uma  maioria  de  dois

terços

, teria sido certamente defendida pelos burgueses com

a  máxima energia, mesmo  se os  socialdemocratas houves-

sem

 considerado essa exigência como natural

 e

 típica

 d e

 qual-

quer Constituição escrita.

  E la

 significava então claramente

q u e u m a

 maioria socialista simples

 n o

 Parlamento

 não

 esta-

ria em  condições  de abolir a  garantia constitucional d a pro-

priedade privada  e que uma

  minoria burguesa

  de

  mais

  de

u m

  terço

  dos

 votos bastaria para defender

 o

  sistema capita-

lista. Quão pouco os cristãos-sociais eram contra o parlamen-

tarismo naqueles dias pode-se verificar pelo fato

  de que, no

programa

  de

 coalizão para

  o

 qual acenei, sustentaram

 a exi-

gência de que, no projeto de Constituição e m elaboração, fos-

sem adotadas,  no que  concerne à posição do chefe de Estado,

as

 disposições

 da

 Constituição provisória, isto

  é, que as fun-

ções

  de

  chefe

  de

  Estado

  não

  fossem confiadas

  a um

  órgão

autônomo  m a s a o presidente  do  Parlamento  — e  isso repre-

senta  um  traço particularmente característico  do  governo

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

217

parlamentar.  O  projeto  de  Constituição apresentado mais

tarde pelo secretário  de  Estado cristão-social,  dr.  Mair,

prevê  u m a  figura autônoma  de

  presidente federal

  eleito

pelo povo,  mas não lhe atribui nenhum poder  de nomear  os

ministros  (que  devem  ser  eleitos pelo parlamento)  e não

confia  a ele , mas sim ao  parlamento,  o poder  de  dispor  do

exército, n e m prevê a possibilidade de que edite decretos de

necessidade.  Em 1920, não havia pois nenhum antagonismo

substancial entre  os  dois maiores partidos políticos  da épo-

ca, que visavam  a construir  a República austríaca como go-

verno parlamentar.

Os poderes legislativo  e executivo

C o m a

 eleição

 d o

 primeiro

  Conselho Nacional  com ba-

se na

  nova Constituição,

  os

  socialdemocratas perderam

  sua

posição

 de

 partido mais forte,

 e com

 cerca

  de 38% dos

 votos

retrocederam para  a segunda posição, enquanto  os  cristãos-

sociais,  com  cerca  d e 4 7 % ,  passaram  a  ocupar  a  primeira.

Apesar disso, desde a entrada em vigor da nova Constituição,

o partido social-democrata dispõe no Conselho Nacional  de

muito mais de um terço dos votos. N o  entanto,  a partir desse

momento esteve ininterruptamente  na  oposição  e  durante

todo esse tempo  — n ã o  importa aqui  se voluntariamente  ou

não -  deixou  o  governo  aos  partidos burgueses. Somente

n u m  estado,  o de Viena,  tem uma  maioria preponderante,  e

portanto também forma

  o

 governo.

  E m

 conseqüência dessa

situação,

 o partido socialdemocrata teve antes  de  mais nada

de passar  da posição inicial centralista  a uma posição fede-

ralista,

  enquanto

 no

 partido cristão-social,

 que

 está

 no

 gover-

no

  tanto

  da

  União como

  da

 maior parte

  dos

  estados,

  às ten-

dências federalistas iniciais contrapõem-se

  em

  certas maté-

rias acentuadas aspirações centralistas.

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218

HANS KELSEN

A

  mudança decisiva

  da

 situação política está porém

  no

fato  de que o partido socialdemocrata,  p o r força do sistema

parlamentar introduzido pela Constituição, exerce

  uma in-

fluência determinante

  na

 formação

  da

  vontade estatal

  no

âmbito

  do

  legislativo,  e

 pode manter essa influência mesmo

sem

  estar

  n o

  governo, enquanto, estando

  p o r

  longo tempo

na

 oposição,

 veio perdendo

  a

  influência,

  originalmente

 m u i -

to

  grande,  que

  tinha

  no

  interior

  do

  executivo.  O s

  partidos

burgueses, durante

  a

  década

  e m q u e

  estiveram sozinhos

  no

governo

  da

  União, perceberam estar

  c o m o

  aparelho judi-

ciário

 e

 administrativo quase inteiramente

 n as

 mãos. Isso vale,

em

 particular, para

  os

 dois elementos decisivos:

 o

 exército

  e

a

 polícia.

N ã o é aqui lugar para investigar por que motivos  o pa r -

tido socialdemocrata sofreu d e  repente perdas considerá-

veis nessas duas vertentes t ão delicadas da organização esta-

ta l . No  entanto,  a  realidade  n ã o  pode  ser  negada. Confir-

mou-se novamente  o  velho princípio  de que o  verdadeiro

poder político reside

 não

 tanto

 no

  legislativo quanto

 no exe-

cutivo.

  D e

 modo

  que o

 resultado

  da

 evolução política

  sob o

império

  da

  Constituição federal

  de 1920 é uma

  forte  des-

proporção

  entre

  o

 poder

  da

 oposição

  no

  interior

  do

  legisla-

tivo

  e sua

 falta

 de

 poder

  n o

  interior

  do

 executivo.

D o

  ponto

  d e

 vista sociológico,

  o

  sentido

  d a

  atual crise

constitucional está

  na

  tentativa

  d os

 grupos burgueses

  de le-

var sua

 posição

  de

 poder

  n o

  interior

  do

  legislativo

  ao

  nível

da que

 atingiram

  no

  seio

  do

 executivo;

 e de

  restringir

  ou até

mesmo eliminar

  o

 sistema parlamentar.

  E ,

 assim,

  a

 crise

  d o

parlamentarismo

  que se

 observa

  em

  todos

 os

 estados demo-

cráticos, também

  n a

 Áustria tornou-se aguda.

N a

 avaliação

 da

 reforma constitucional

  não se

 deve

 dei-

xar de

 levar

 e m

 conta, todavia,

  que a

 força

 de um

 grupo

  p o -

lítico

  n ã o

 pode

  ser

 medida apenas

  por sua

 representação

 n o

parlamento

  e por sua

 influência sobre

  os

 órgãos judiciários

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  s   linhas fundamentais

d reforma constitucional

9

 

* D i e

  Grundzüge

  d e r

  Ver fas sungs re fo rm" ,

  in  Neue Freie Presse,

20.10.1929  e  30.10.1929.

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I .

Nova organização  dos poderes legislativos

O s

 projetos

  de lei

 apresentados pelo governo federal

 ao

Conselho Nacional indicam

  u m a

  tentativa

  de

 modificar

  ca-

balmente

  a

 Constituição

  em

  vigor.

  O que se

 pretende intro-

duzir é u m a reforma de  alto  a baixo. Serão substancialmen-

te

 modif icados tanto

  o

 caráter

 parlamentar

  quanto

  a

  forma

federativa, elementos fundamentais da nossa Constituição. A

reforma  do  parlamentarismo  vai na  direção  de um  notável

fortalecimento  do  poder  da  maioria parlamentar,  e é  para

isso que  serve, em particular, a ampliação das atribuições do

presidente federal. O  caráter federativo é modificado na sua

substância, visto  que , ao  lado  da  câmara  de  representantes

dos estados, o atual Conselho Federal, é introduzida um a câ-

mara profissional, elemento totalmente estranho  ao  princí-

pio federativo; e visto que, em particular, o princípio federa-

tivo  sem  dúvida  vai cair para  u m  terço da  população, isto

  é

para Viena,  que  perde  a  posição  de  estado-membro. Para

essa parte importantíssima  d o  Estado ocorre  um a  centrali-

zação administrativa tão ampla que não se poderá mais falar

de Estado federativo. A reforma é tão profunda que cabe sin-

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224

HASS KELSEN

ceramente indagar  se não  estamos diante  de uma

  mudança

total  da Constituição,  no sentido do art . 44 -2 d a lei constitu-

cional federal.

Transformação  do  Conselho Federal

São substancialmente modificados, sobretudo, os órgãos

e o procedimento legislativo federais.  O

 Conselho Nacional

será substituído pelo chamado

  Conselho  dos  Estados  e das

Profissões [Lãnder-und StandemtJ.

  O Conselho dos Estados

[Lãnderat]

  nada mais

  é que o

  Conselho Federal

  da

 Consti-

tuição vigente, essencialmente modificado

  em sua

  compo-

sição. Seus membros não são mais eleitos pelas assembléias

dos  estados; quem  o  comporá,  p o r  assim dizer  a  título  pes-

soal, serão

  os

  chefes

  dos

  governos estaduais

  e,

  nestes,

  os

membros encarregados

 das

 finanças

 (em

 Viena,

  o

 prefeito

 e

o membro do governo encarregado das finanças). A modifi-

cação mais significativa

  no

  plano político está

  no

  fato

  de

que os

 estados  não são

  mais representados  de

 acordo

 com. o

número  de seus habitantes, m a s  todos  o serão  em  igual m e-

dida,

  de

 modo

 que

 Viena

 não

 terá

 o

 quádruplo

 dos

 represen-

tantes

 de

 Voralberg,

 mas sim o

 mesmo número

 d e

 representan-

tes que  este,  que é o menor  dos  estados. Sobre  a  composi-

ção do

 Conselho

 das

 Profissões

 [Stãnderat],

  formado pelos

representantes  das categorias profissionais, o projeto gover-

namental  não contém disposições mais detalhadas,  que são

remetidas

  a uma lei

 constitucional especial. Quanto

  ao pro-

cedimento legislativo,

 o

 Conselho

 dos

 Estados

 e o

 Conselho

das Profissões formam câmaras autônomas. A cada  uma de-

las é

 atribuído

 um

 poder

 de

 veto suspensivo

 das

 deliberações

legislativas

 do

 Conselho Nacional,

 de

 modo

 que o Parlamento

será constituído  não  mais por  duas,  mas por  três câmaras.

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

225

Modificação

  do

 processo legislativo

O

 processo legislativo

  é profundamente modificado, n a

medida em que doravante a legislatura do Conselho Nacional

será subdividida

  em sessões.  O

 Conselho Nacional

  não

  será

mais

 u m

 órgão permanente,

 m as

 será convocado cada

 a no

 pelo

presidente federal para duas sessões ordinárias. Deve-se

  ver

nisso

 u m

 sintoma bastante significativo

 da

 tendência,

 qu e no

projeto

 é

 perseguida também

 de

 outras formas,

 a

 romper

 com

o

 sistema

 de

 governo parlamentar. Essa tendência

 se

 manifes-

ta, em

  particular,

  n o

  fato

  de que é

  conferido

  ao

 presidente

federal

 o

 poder

 de

 dissolver

 o

 Conselho Nacional.

 A

 esse

 res-

peito, causa muita preocupação

 que o

 dever

 de

 convocar novas

eleições dentro de certo prazo é limitado pela cláusula  se cir-

cunstâncias excepcionais a tanto não se opuserem". Isso signi-

fica, n e m mais n e m menos, que depende do poder discricio-

nário  do  governo, responsável  po r  convocar novas eleições,

quanto tempo  a República ficará  sem  Parlamento. Também

se  insere nesse quadro,  e m particular,  a limitação

  da

  imuni-

dade  prevista pelo projeto,  a qual  n ã o  cobrirá mais  os com-

portamentos penais consumados mediante escritos  ou que

n ão tenham nenhuma relação  c o m a atividade desenvolvida

como membro

  do

 Conselho Nacional. Essa

  é uma

  reforma

bem-vinda, pela qual

  fa z

 anos

  não me

  canso

  de

 lutar.

Também

  é

  muito oportuno

  o

  fortalecimento proposto

nas

 disposições sobre

 a  iniciativa popular

:

  u m

 projeto

 de lei

é

  válido quando

  o

  número

  d e

  assinaturas requeridas tiver

sido colhido n o prazo  de um ano. Se o projeto  não for ado-

tado

  sem

 modificações pelo Conselho Nacional

 n o

 prazo

 de

um ano a

  contar

  da sua

  apresentação,

  deve  ser  submetido  a

consulta popular.  A s

 atuais possibilidades

 de

 submeter

 a re-

ferendo

  um a

  deliberação legislativa

  do

  Conselho Nacional

deve-se

  - em

 evidente analogia

  com a

 Constituição alemã

  -

acrescentar

  o

 poder

  do

 presidente federal

 de

  apelar

  ao

  povo

quando

  não

  concordar

  c o m u m a

  deliberação legislativa

  do

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226

HANS KELSEN

Conselho Nacional. Para  a consulta popular  é  introduzido o

voto obrigatório.

  Entre

  as

 disposições mais acentuadamen-

te politicas  d o projeto está aquela  co m  base  na qual

  as mo-

dificações  da  Constituição podem  se r  adotadas  não  somen-

te com a maioria  de  dois terços  d o

 Conselho Nacional,

  mas

também

 p o r

 meio

 d e

 simples referendo popular

 co m

 maioria

absoluta

  d os

 votos válidos, contanto

 que

 solicitado

 p o r

 mais

da

 metade

 d o s

 membros

 do

 Conselho Nacional.

 E

  eliminado

desse modo

 u m

 poder importante

  da

 minoria parlamentar,

  a

qual, mesmo  se dispuser de mais de um  terço dos votos, não

poderá mais impedir a modificação da Constituição.

O  chefe  de Estado

Mas a

 modificação mais importante

  no

  setor

  da

  legisla-

ção

 está

 no

  fato

 de que  se  acrescenta  ao poder legislativo  do

Parlamento

  um

 poder análogo

  ao do

 chefe

 de

 Estado.

  D e fato,

é

 nesse sentido

  que se

 deve entender

  o

 poder

  de

 editar

 decre-

tos de necessidade,  que o

 projeto atribui

 ao

 presidente federal.

Este último deve

  ser

  eleito pelo povo.

  Se na

  votação

popular nenhum

  dos

  candidatos obtiver

  a

  maioria

  dos

  votos

válidos,  o  poder  de  elegê-lo passa  à Assembléia Federal.  Já

que nas condições políticas existentes na Áustria é totalmente

improvável que a primeira votação leve a tal resultado, para a

eleição  do presidente federal vai ser a Assembléia Federal,  na

prática, que será levada em conta, e não o povo. A Assembléia

deve escolher entre  os  três candidatos  que  tiverem obtido  o

maior número de votos n a eleição popular. Assim sendo, exis-

te a possibilidade  de que o Parlamento eleja precisamente  o

candidato

  que

 menos confiança obteve

  do

 povo,

  o que,

 natu-

ralmente, colocará

 o

 Parlamento

 em

 nítido antagonismo

 com

aquele. C om isso o projeto, que está posto sob o signo d o c o m -

bate

  ao

 parlamentarismo, acaba

  po r

  fortalecê-lo.

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

227

A

 duração

  do

 mandato

  de presidente federal n ão será  in -

ferior

 a

  sete anos. Disposição igual pode

  ser

 encontrada

  nas

Constituições alemã

 e

 checoslovaca,

 as

 quais,

 n o

 entanto,

 mui -

to se

  diferenciam nesse aspecto

  das

  Constituições

  de

  outros

Estados democráticos, como a Suíça ou os Estados Unidos.

O  projeto prevê também  a  possibilidade  de

  destituir

  o

presidente

  mediante votação popular. A s condições para isso

são tão complexas, porém,  q u e  dificilmente t a l hipótese p o -

derá

  se

 realizar.

Assembléia Federal

  e

 governo

  dos

  estados

A Assembléia Federal, a quem cabe a eleição d o presiden-

te, é formada pelo conjunto d as três câmaras: o Conselho N a-

cional,

  o

 Conselho

 d os

 Estados

 e o

 Conselho

 d as

 Profissões.

O

 Conselho

 do s

 Estados, nesse  caso,

  é

  formado  não  apenas

pelos chefes

 d o s

 governos estaduais

 e

 pelos membros

  do seu

govemo encarregados

 das

 finanças,

 mas por

  todos

  os

 membros

desses governos

  e do

 senado

  de

  Viena.

 Para se ter um a idéia d a

composição política dessa parte da Assembléia Federal, há que

ter em  mente a disposição segundo a qual, n o futuro, os

 gover-

nos dos

  estados deverão

  ser

  eleitos pelas assembléias esta-

duais  de  acordo  com o principio majoritário.  Isso significa

que , nos

 estados cujos governos foram eleitos

 d e

 acordo

 com

o

 sistema proporcional, faltarão

 os

 representantes

 d a

 oposição.

Essa disposição d o projeto n ão vale porém para

  Viena,

 segun-

do

 cuja Constituição, como

 se

 sabe,

 a

 minoria também

 é

 repre-

sentada  no  governo. Consideradas  as atuais condições polí-

ticas, todos

 os

  estados,

  co m

 exceção

  de

 Viena,

 só

 enviariam

à

  Assembléia Federal representantes burgueses, enquanto,

no que

 concerne

 a

 Viena, participariam

 da

 eleição

 do

 presiden-

te

 federal tanto

 o s

 social-democratas como

  os

 membros

 bur-

gueses do senado  da cidade. Isso significa que a Assembléia

Federal  se compõe  d e duas partes  que não  podem deixar  d e

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228

HANS KELSEN

apresentar,

  n o

  plano político,

  u m a

  estrutura substancial-

mente diferente.

 U m

 partido

 que,

 sozinho

 ou com um

 grupo

menor, tiver

  a

 maioria

  no

  seio

  do

 Conselho Nacional, pode

se apresentar n o Conselho dos Estados e das Profissões como

um a  magra minoria,  de  modo  que na eleição  do presidente

federal é precisamente o Conselho dos Estados e das Profis-

sões  q u e pode desempenhar  o papel decisivo.

Os decretos  de  necessidade

O  presidente federal  qu e  assume  o  cargo desse modo

pode,  de acordo  com o projeto, editar decretos  de  necessida-

de [Notverordnungen]  aprovados pelo governo. Quando  nu-

m a determinada matéria não for  possível esperar  a delibera-

ção do Conselho Nacional, o presidente, para evitar danos  ir-

reparáveis, poderá editar  decretos  que  modificam  as  leis.

Confrontando-se esse poder

 com as

 disposições

 do art. 14 da

velha  lei fundamental  de 1867 sobre a representação  do Im-

pério, salta

  aos

 olhos

  que o

 projeto

 vai

 muito além

  da

 Cons-

tituição

  de 1867. De

 fato,

 de

 acordo

  com o

 citado

  art. 14, os

decretos

  de

  necessidade

  só

  podiam

  ser

  editados

  quando  o

Parlamento  não  estivesse reunido.  Doravante,  ao  contrário,

poderão ser adotados também quando o Parlamento está reu-

nido,  até   mesmo  em   matérias  que  sejam objeto  de um pro-

cedimento parlamentar

  em

  curso.

  O

  presidente federal

  p o -

derá,

  po r

  motivos

  que só a ele

  cabe avaliar, transferir

  s im-

plesmente

 os

 poderes legislativos

 do

 Parlamento

 a si

 mesmo.

Também

 no que

 concerne

  às

 matérias cuja disciplina escapa

ao

 decreto

  de

 necessidade,

 o

 projeto piora

  a

 Constituição

 de

1867. Os

  decretos

  de

  necessidade

  n ão

  podem modificar

  a

Constituição  nem comportar ônus financeiros permanentes

para  o  Estado  ou  obrigações financeiras para  os  cidadãos.

Essa disposição também

  se

  encontra

  no art. 14,

  que no en-

tanto contém igualmente  a proibição  de  alienar  os  bens  do

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

229

Estado,  que o projeto  não  leva  em  consideração.

  D e

  acordo

com a

 Constituição

  de 1867, o

  decreto

  de

 necessidade

  per-

dia sua

 força provisória

  de lei  se não

 fosse apresentado pelo

governo  ao

  Parlamento

  no

 prazo

  de

  quatro semanas,

  ou se

este  não o  ratificasse,  e

  tudo isso automaticamente.

  O pro-

jeto  se limita,  ao contrário, a estabelecer que o governo deve

apresentar  sem demora  o decreto ao Conselho Nacional e só

o

 deve ab-rogar

  se

 esse Conselho

  o

 pedir expressamente.

D e

 resto, segundo

 o

 projeto,

 os

 decretos

 de

 necessidade

podem

  ser

 editados

  n ão

 apenas pelo presidente federal

 ma s

também pelas

 autoridades policiais

:  A s autoridades encar-

regadas

 de

 tarefas relativas

 à

 segurança pública,

  no

 exercício

d e tais tarefas e n o âmbito da sua esfera de ação, podem, se não

houver normas legais particulares,  adotar,

 em

 caso

 d e

 ameaça

à

 tranqüilidade

 e à

 ordem pública,

 ou

 para garantir

 a

 segurança

pessoal

 de

 indivíduos

 ou a

 propriedade privada posta

 em

 peri-

go, as

 disposições necessárias para afastar

 ta l

 perigo,

  e

 podem

declarar punível  sua inobservância." Essa disposição deverá se

tomar o terceiro parágrafo do art. 18 da lei constitucional fede-

ral , qu e

 estabelece

 a

 legitimidade

 d a

 ação administrativa

 e

 fixa

em particular o princípio de que os decretos s ó podem ser edi-

tados para

 a

 aplicação

 das

 leis.

 O

 poder

 de

 editá-los, atribuído

às

 autoridades policiais, deve

 ser

 considerado, portanto, como

uma

  limitação

  do

 princípio

  da

  legalidade

  dos

  decretos.

  A s

autoridades policiais,  no  âmbito  da sua  esfera d e  ação, será

atribuído o poder  de editar decretos que não se limitam a dar

aplicação à s leis. Tais decretos, portanto, podem ser decretos

que

 substituem

  ou

 modificam

  as

 leis.

 Esse

 é o

 único sentido

 em

que se

 pode tomar

  a s

 palavras

  se não

 houver normas legais

particulares". Para

  que o

 projeto

  não

  tivesse

 u m

  alcance

  tão

amplo assim, teria sido necessária u m a formulação totalmen-

te diferente; tanto mais  se considerarmos que os decretos de

polícia,  ao  contrário  dos  decretos  de  necessidade  do  presi-

dente federal, não precisam ser apresentados ao Parlamento, e

que,

 portanto,

 não se

 pode obter

  sua

 supressão

 por

 esse órgão.

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II

Os

 poderes

  do

 presidente federal

O projeto governamental prevê  u m a notável ampliação

dos poderes  do presidente federal.  D o poder  a ele atribuído

de  editar  decretos

  de

  necessidade  j á  falei  n o  artigo prece-

dente.  Se ora  volto  a o  tema  é  porque cumpre ressaltar  que

esse poder,

  q u e

  permite substituir

  o u

  modificar

  as

  leis,

  da

forma como

  é

  configurado

 no

  projeto, serve

  n ão

  tanto para

reforçar

 a

 posição

  d o

  chefe

 de

 Estado quanto para debilitar

a

 influência

 da

 oposição parlamentar.

  E, de

  fato,

 a

 condição

a que,

  segundo

  tal

 projeto, está presa

  a

 possibilidade

 de edi-

ta r

 decretos

  de

 necessidade

  - a

 saber, "quando

  não for pos-

sível  a

 deliberação

  d o

  Conselho Nacional"

 — não poderá  se

verificar,

  estando

  o

 Conselho reunido, pois

  o

 perigo

  de que

o

 Parlamento venha

  a ser

 desautorizado será suficiente para

provocar

  u m a

  solução tempestiva, calando

  u m a

  oposição

que

  pretendesse retardar

  a

  deliberação.

  N o q u e

  concerne

  à

introdução

 de um poder efetivo  do presidente federal  de edi-

ta r  decretos  de  necessidade  -  poder necessário  na  medida

em que o  projeto prevê  u m  intervalo entre  a  cessação  do

velho Parlamento e a convocação  do novo, bastaria limitar a

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232

HANS KELSEN

esse intervalo

  a possibilidade  de  editá-los.

  Somente então

teríamos  u m  verdadeiro poder decretatório,  e não

  um poder

legislativo concorrente,

  como  o que  está previsto  no proje-

to . Como  a

 comissão principal

  do Conselho Nacional  tam-

bém

  pode funcionar

 n o

 citado intervalo, seria natural

  vincu-

lar os  regulamentos (decretos)  do presidente  à  aprovação

dessa comissão  e publicá-los  em  seguida  com a  menção  a

essa aprovação.  Dado que não há possibilidade  de qualquer

tipo

 de

 obstrução

 no

 seio

 da

 comissão,

 não há por que

 excluir

esses representantes do Parlamento.  O s decretos de necessi-

dade deveriam deixar  de  vigorar  se não  fossem  expressa-

mente

  ratificados pelo novo Parlamento

  no

 prazo

  de

 quatro

semanas,

  a

  contar

  da sua

  reunião. Para evitar abusos,

  o tri-

bunal constitucional deveria poder anular

  ex  officio  os de-

cretos

  de

  necessidade pelos seguintes motivos:

  ou

  porque

são  inconstitucionais  em sua  origem,  na  medida  em que se

baseiem  e m pressupostos inconstitucionais,  ou se refiram  a

objetos excluídos  da  disciplina  por  regulamento (decreto);

ou porque  se  tornaram inconstitucionais  na  medida  em que

faltou a rat ificação parlamentar obrigatória e não  foram ab-

rogados. Nada haveria  a objetar, d o ponto de vista democrá-

tico,

 a um

 poder decretatório assim estruturado.

O

  projeto governamental tira

  do

  Conselho Nacional

  o

poder  de  eleger ministros;  a  tarefa  de  nomear  e demitir  os

membros  d o  governo é confiada ao presidente federal. E m -

bora seja verdade  que se pretende alcançar assim  o objetivo

de  tornar  o  governo independente  do  Parlamento, continua

mantida porém

  a

 disposição

 da lei

 constitucional federal

 que

permite

 ao

 Conselho Nacional,

  com

 deliberação adotada

 por

maioria,

  suspender  a  confiança  n o

  governo

  ou nos

  minis-

tros federais,

 e

 nesse caso

  o

  presidente

  tem o

 dever

  de dis-

solver  o  governo  ou  demitir  o  ministro. Assim,  do  sistema

de  governo parlamentar restou  u m a  parte nada irrelevante.

Se ponderarmos que as disposições sobre a eleição do presi-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

233

dente colocam

  tal

  órgão substancialmente

  sob a

  influência

da

 maioria

  dos

 cidadãos, devemos considerar

  que a

 prevista

modificação na  formação do  governo,  em vez de  fazer este

depender  do  chefe  d e  Estado, coloca-o, mais ainda  que no

passado,

 so b a

 influência

 da

 maioria parlamentar.

  Sob tal as-

pecto, absolutamente correto

  n o

  plano técnico-constitucío-

nal, há que considerar  que o ato com o qual o presidente  fe-

deral dissolve  o governo  não está sujeito  à  aprovação minis-

terial.  O

 mesmo vale para

  a

 exclusão, prevista

 no

 projeto,

 da

ratificação pelo ministério

 dos

 atos mediante

 os

 quais

 o pre-

sidente

  executa decisões

  da

  Corte Constitucional.

  Tal ex-

clusão é necessária aqui, porque de outro modo n ão seria pos-

sível  a execução  d e u m a  decisão d a Corte, pronunciada  não

contra

 u m

 estado

 m a s

 contra

 a

 União.

 O s

 atos

 do

 chefe

 de Es-

tado, sujeito, também

  ele, à

 responsabilidade ministerial,

 não

devem  ser  vinculados  sem  exceções  à  ratificação ministe-

rial, como os atos governamentais de um monarca não respon-

sável.

  N o

  entanto, seria ainda menos desejável

  que a res-

ponsabilidade do presidente federal fosse assimilada à respon-

sabilidade ministerial normal  em  toda  sua  extensão, isto  é,

que o

 presidente fosse responsabilizado pelas violações

  cul-

posas

 não

 apenas

 da

  Constituição

 m a s

 também

  das

  leis.

Quem pode dispor  do  exército

O projeto  de  Constituição tira  do Conselho Nacional  o

poder  de dispor  do  exército,  e  transfere-o  ao presidente  fe-

deral,  com o nome  de  "alto comando". N o entanto, essa no -

va atribuição  do presidente  é tão  desprovida  de importância

quanto

  o era a do

  Conselho.

  C om

  efeito,

 o

 projeto desvalo-

riza

  o

 alto comando

  do

 presidente sobre

  o

 exército,

 do me s-

m o  modo  que a lei  constitucional federal desvalorizava  o

poder  de dispor atribuído  ao Conselho Nacional, através  da

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8/17/2019 KELSEN Hans. Jurisdicao Constitucional

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234 HANS KELSEN

cláusula segundo a qual,  se o presidente n ão dispõe do exér-

cito

 n o

 sentido

 da lei

 sobre

 a

 defesa,

 o

 ministro federal

 c o m -

petente dele dispõe, nos limites da autorização recebida pelo

governo.

 E

 como

  a lei

 sobre

 a

 defesa

 n ão

 dará

  ao

 presidente

faculdades diferentes das que dava  ao Conselho Nacional,  e

estas são praticamente desprovidas d e importância, nada m u -

dará

 em

 relação

 à

 situação atual,

 em que

  o

 ministro

  das For-

ças Armadas dispõe  do exército.  A o contrário, a posição desse

ministro sairá fortalecida, visto

  que o

 projeto contém

  u m a

disposição pela qual o poder de comando sobre o exército fe-

deral é exercido pelo ministro federal competente. Em que o

"poder  de  comando"  do  ministro  se  distingue  do  "alto  co-

mando"

  do

 presidente,

  n ã o

  está

  n e m u m

 pouco claro.

A suplência  do  presidente federal

O projeto suprime a regra geral da lei constitucional com

base  n a  qual todos  os  atos  do  presidente,  n ão  havendo  dis-

posição constitucional diversa,

  só

 podem

  ser

  adotados

  por

proposta do governo federal.  Assim,  são expressamente vin-

culados à proposta governamental todos os atos do presiden-

te .

 Essa modificação

 não tem

 nenhuma importância,

 de

 resto.

É

  notável, entretanto,

  que o

  projeto tenha considerado

  ne-

cessário completar

  as

  disposições constitucionais sobre

  a

suplência

  do

  presidente federal pelo chanceler

  com o acrés-

cimo:

  S e o

  impedimento durar

  u m

  tempo previsivelmente

maior, a  suplência deve  ser  regulada  por lei federal O pro-

jeto mostra, portanto, mais

 que a

 Constituição vigente, preo-

cupar-se

  com a

  possibilidade

  de que um

  presidente federal

seja impedido

 de

  exercer suas funções

 por u m

  longo perío-

do,  durante  o  qual  se  concentraria  na  pessoa  do  chanceler

um

  conjunto excepcional

  de

 poderes.

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

O

  ministro

  sem

 pasta

235

Entre  as disposições concernentes  à posição  do gover-

no

  federal, merecem destaque aquelas mediante

  as

  quais

  é

constitucionalmente legitimado

 o

 costume, seguido

 até

 aqui,

de  encarregar

 um

 ministro

  sem

 pasta  da direção de um setor

d a  responsabilidade  d o  chanceler  ou de  outro ministério.

Como

  o

  projeto estabelece

  que o

  ministro

  sem

  pasta

  tem,

nesse caso,

  na

  medida

  em que se

  encarrega concretamente

das  matérias que  incumbem a tal setor, a posição  de um mi-

nistro ordinário,  ele dá ao presidente,  a quem cabe conferir

o

 cargo,

 a

 possibilidade

 d e /racionar

  os

 ministérios

,

  e por con-

seguinte

 a

 faculdade

 de

 criar

  novos ministérios.

A

  intervenção militar autônoma

U m a d a s  inovações mais delicadas  que o projeto  con-

té m para  o setor administrativo é uma  disposição  q ue  signi-

fica

 u m

 nítido retorno

 ao

 sistema militarista.

 A

 Constituição

vigente rejeita

 ta l

 sistema

  de

  modo absoluto,

  só

 consentin-

d o o emprego  do exército federal dentro  do Estado quando

o  legítimo poder civil pedir  sua  colaboração".  A  essência

do militarismo está  d e  fato exatamente  em que , sobre o em-

prego

  do

  exército dentro

  do

  pais, quem decide

  é a

  própria

autoridade militar,

  e não a

  autoridade civil.

  O

  projeto

  pre-

tende limitar  a citada disposição  da Constituição vigente, de

ta l modo que sua aplicação venha a depender apenas do bene-

plácito

  das

  autoridades militares.

  A

  disposição correspon-

dente

  d iz

  assim:

 

A

  intervenção militar autônoma  com os

objetivos indicados

  n o

 parágrafo segundo (defesa

 das

  insti-

tuições constitucionais, manutenção da ordem e da segurança

internas,  etc.) só é  consentida quando  as  autoridades  c o m -

petentes

  não

  forem capazes, por

  motivo

  de

 força maior,  de

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Quem deve  ser o guardião

d a  Constituição?

* W e r

  soll

  d e r

  Hü te r

  d e r

  Verfassung sein?" ,

  in  Die   Justiz. 1930-31,

Heft 11-12,

  v o l . V I , p p .

  576-628.

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I. A  busca político-jurídica  po r  garantias  da  Constitui-

ção ,  ou seja, p o r instituições através das quais seja controla-

d a a

 constitucionalidade

 do

 comportamento

 de

 certos órgãos

de

  Estado

  que lhe são

  diretamente subordinados, como

  o

parlamento

  ou o

 governo, corresponde

  ao

 princípio, especí-

fico

 do

 Estado

 de

 direito, isto

  é, ao

 princípio

  da

 máxima

  le -

galidade

 da

  função estatal. Sobre

 a

 conveniência

  de tal bus-

ca é possível  -  segundo distintos pontos  de vista políticos  e

em  relação  a  distintas Constituições  —  chegar  a  opiniões

bastante diversas. Pode haver situações  em que a  Constitui-

ção não se  efetiva, mesmo  em  pontos essenciais,  de  modo

que as garantias,  ao  permanecer inoperantes, perdem todo o

sentido.  A  própria questão técnico-jurídica quanto  à melhor

configuração d as garantias da Constituição pode  ser respon-

dida  de maneiras muito diferentes, considerando-se  a parti-

cularidade  de cada Constituição  e a divisão  do poder políti-

co que  efetua;  em  particular, estabelecendo  se se  deve  dar

preferência

  às

  garantias preventivas

  ou às

  repressivas,

  se a

ênfase deve

  ser

  colocada

  na

  eliminação

  do ato

  inconstitu-

cional

  ou na

 responsabilidade pessoal

 de

 quem

  o

 pratica,

  etc.

Todos esses temas podem

  ser

 debatidos

 a

 fundo. Apenas

 um

ponto parece

  ter até

  agora ficado fora

  da

  discussão, parece

ser uma

  noção

  de

 obviedade

  tão

  primária

  que

  quase

  não se

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240 HANS KELSEN

considerou necessário salientá-la dentro

  do

 exaustivo deba-

te que o  problema  da  garantia constitucional suscitou  nos

últimos anos:

  o

  fato

  de que ,

 caso

  se

 deva mesmo criar

  uma

instituição através da qual seja controlada  a conformidade à

Constituição  de  certos atos  do  Estado  -  particularmente  do

Parlamento  e do governo  tal controle não deve ser confia-

do a um dos

  órgãos cujos atos devem

  ser

  controlados.

  A

função política

  d a

  Constituição

  é

 estabelecer limites jurídi-

cos ao

  exercício

  do

 poder. Garantia

  da

 Constituição signifi-

ca a

  segurança

  de que

  tais limites

  n ão

  serão ultrapassados.

Se

  algo

  é

  indubitável

  é que

  nenhuma instância

  é tão

 pouco

idônea para  tal  função quanto justamente aquela  a  quem  a

Constituição confia - na  totalidade  ou em  parte — o exercí-

cio do  poder  e que  portanto possui, primordialmente,  a

oportunidade jurídica  e o estímulo político para vulnerá-la.

Lembre-se  que  nenhum outro princípio técnico-jurídico  é

tão  unânime quanto este: ninguém pode  ser  juiz  e m  causa

própria.

Quando portanto

  os

  representantes

  da

  teoria constitu-

cional

  do

 século

 X I X ,

 orientados pelo assim-chamado

prin-

cípio monárquico,

  defendiam

  a

  tese

  de que o

  natural

 guar-

dião  da  Constituição

  seria

  o

  monarca, esta

  n ão

  passava

  -

quem poderia hoje duvidar disso

— de um a

  ideologia muito

evidente,  u m a d a s tantas  que  formam a assim chamada dou-

trina do constitucionalismo, e através  da qual essa interpreta-

ção da

 Constituição procurava mascarar

  sua

 tendência bási-

ca: a de

 compensar

  a

 perda

  de

 poder

  que o

 chefe

  de

 Estado

havia experimentado

  na

  passagem

  da

  monarquia absoluta

para

  a

  constitucional

1

.

  O que em

  realidade

  se

  queria

  era -

por

 razões cujo valor político

 não

 discutiremos aqui

 -

  impe-

dir uma  eficaz garantia  da  Constituição, pelo menos contra

1. Em  minha

  AUgemeine Staatslehre

  ("Teoria geral  d o  Estado"),

Berlim,  1 9 2 5 ,  demonstrei essa tendência  d o  consti tucionalismo  e m  várias  d e

suas teses.

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

241

violações

  p o r

  parte

  de

  quem mais

  a

  ameaçava,

  ou

  seja,

  o

próprio monarca,

  o u ,

 mais precisamente,

 o

 governo,

 ou

 seja,

o

 monarca

  em

  conjunto

 com os

 ministros

 que

 assinavam seus

atos, pois aquele  n ã o podia agir  por si só.  Isso também  per-

tence

  ao

  método

  d a

  ideologia constitucional: falar apenas

do

 monarca, quando

  na

 verdade está agindo

  um

  órgão cole-

giado

  em que o

 monarca

  não é

 parte autônoma. Como

  não

se

 podia declarar abertamente

 o

 verdadeiro objetivo

 político

de

 impedir

 um a

 eficaz garantia

  da

 Constituição,

 ele era mas-

carado

  com a

 doutrina segundo

 a

 qual

  tal

 garantia seria tare-

fa do chefe de Estado.

A  Constituição  da  monarquia constitucional  tem um

acentuado caráter dualístico. Ela divide o poder político entre

dois pólos: Parlamento e governo, sendo  que este já de ante-

m ã o  possui  u m a  certa preponderância sobre  o primeiro,  de

modo algum apenas

  de

 facto,  m as s im também

  de

 jure.  Que

o governo, particularmente  o monarca  que o encabeça, seja

tanto  n a  realidade política quanto  nas normas  da  Constitui-

ção, um   órgão  que  como  o Parlamento exerce  o poder esta-

tal - e

  mesmo

  em

  maior medida

  que

  este

  - não

  pode

  ser

posto

  em

 dúvida; tampouco

  se

 pode duvidar

  de que o

 poder

confiado

  ao

  governo esteja

  em

  permanente concorrência

com o do

 Parlamento. Portanto, para tornar possível

 a

 noção

de que

 justamente

  o

 governo

 - e

 apenas

 ele —

 seria

  o

 natural

guardião  da Constituição,  é

 preciso encobrir

 o

 caráter

  de sua

função. Para tanto serve

  a

 conhecida doutrina:

  o

 monarca

  é

-  exclusivamente  ou não — uma  terceira instância, objetiva,

situada acima

  do

  antagonismo (instaurado conscientemente

pela Constituição)

  d o s

 dois pólos

 de

 poder,

 e

 detentor

 de um

poder neutro. Apenas

  sob

  esse pressuposto parece justifi-

car-se

  a

 tese

  de que

  caberia

  a ele, e

 apenas

  a ele,

  cuidar

  que

o

  exercício

  do

 poder

  não

  ultrapasse

  os

  limites estabelecidos

na Constituição. Trata-se  de uma  ficção de  notável audácia,

se pensarmos  que no  arsenal  do  constitucionalismo desfila

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242

HANS KELSEN

também outra doutrina segundo  a  qual  o  monarca seria  de

fato  o  único, porque supremo, órgão  do exercício  do poder

estatal, sendo também, particularmente, detentor

 do

 poder

 le -

gislativo:

 d o

  monarca,

  não do

 parlamento, proviria

  a

 ordem

para  a lei, a  representação popular apenas participaria  da

definição d o conteúdo  da lei. Como poderia  o monarca,  de-

tentor

  de

  grande parcela

  ou

  mesmo

  de

  todo

  o

  poder

  do Es-

tado,

 ser

 instância neutra

 em

 relação

 ao

 exercício

 de tal

 poder,

e a única c o m vocação para  o controle  de sua  constituciona-

lidade? A objeção  de que se trata  de uma intolerável contra-

dição seria totalmente descabida, pois seria aplicar

  a

 catego-

ria do

 conhecimento cientifico (ciência jurídica

  ou

  teoria

  do

Estado) àquilo que só pode ser entendido como ideologia polí-

tica. N u m  sistema intelectual cujo profundo parentesco  com a

teologia não é ignorado hoje p o r ninguém, o princípio de con-

tradição não tem mais lugar. O que importa não é estabelecer

se as

  teses

  de tal

  teoria constitucional

  são

 verdadeiras,

  mas

sim se

 alcançam

 seu

 objetivo político:

 e de

 fato

 o

 fizeram

 em

medida máxima. Dentro

 da

 atmosfera política

  da

 monarquia,

essa doutrina  do  monarca como guardião

  da

  Constituição

era um  movimento eficaz contra  a busca,  que já  então aflo-

rava

 de

 quando

  em

 quando,

 por um

 tribunal constitucional

2

.

II. Na

  situação política

  em que a

  Constituição demo-

crático-parlamentar do Reich alemão veio inevitavelmente a

se  encontrar  no  momento  e m que  para  sua  própria defesa,

como estimam seus defensores, transigiu

  por

  assim dizer

em

  apenas

  u m

  único

  de

  seus artigos,

  o de n? 48 -

  colocan-

do-se  n u m  espaço jurídico demasiado estreito para conse-

2 .  Trata-se evidentemente  d a  mesma ideologia, somente  q u e a  serviço

d o  principio democrático, quando  s e  proclama  o  parlamento como  guardião

da   Constituição

  porque, como

  d i z

  Bluntschli,

  o

  "corpo legislativo" carrega

e m s u a

  conformação

  a s

  mais importantes garantias

  d e q u e n ã o

  exercerá suas

atribuições  c o m  espírito inconstitucional" (/tUgemeines Staatsrecht,  4 ed . .

1 8 6 8 , v . l , p p .

  561-62).

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

243

guir evitar,

 com tal

 manobra,

  o

 perigo

 de ser

 golpeada

  - num

semelhante estado

  de

 coisas, enfim, seria

  com

  certeza

  c o m -

preensível  se o debate sobre a questão das garantias da Cons-

tituição fosse provisoriamente adiado*.  É  pois surpreenden-

te o

  fato

  de uma

  nova coleção

  de

  monografias sobre direito

público,  as  'Contribuições para

  o

  direito público

  da

  atua-

lidade

"

3

, iniciar

  sua

  série

  c o m u m

  trabalho

  que, com o

 títu-

lo   O guardião  da  Constituição  [Der Hüter  der  Ver/assung],

está dedicado justamente  ao problema  da garantia  da Cons-

tituição. Mais surpreendente ainda, porém, é que esse escri-

to

  tire

  do

 rebotalho

 d o

  teatro constitucional

  a sua

 mais anti-

ga peça, qual seja, a tese de que o chefe d e Estado, e nenhum

outro órgão, seria

 o

  competente guardião

  da

 Constituição,

  a

f im de

 utilizar novamente esse

 já bem

  empoeirado adereço

cênico  na república democrática  em geral  e n a Constituição

de

 Weimar

  em

  particular.

  O que

  mais admira, porém,

  é que

o

 mesmo escrito,

 que

 pretende restaurar

 a

 doutrina

  de um dos

mais antigos e experimentados ideólogos da monarquia cons-

titucional

  - a

  doutrina

  do pouvoir neutre  do

  monarca,

  de

Benjamin Constant  - e  aplicá-la  sem  qualquer restrição  ao

chefe d e Estado republicano, tenha como autor o professor de

direito público

 n a

 Berliner Handelshochschule, Carl Schmitt,

cuja ambição

 é

 mostrar-nos

  o

 quanto muitas formas

 e con-

ceitos tradicionais estão estreitamente ligados  a  situações

passadas,

 não

 sendo hoje mais

 n e m

 sequer 'vinho velho para

odres novos',

  mas s im

 apenas rótulos falsos

 e

 antiquados"

4

,

e que não se cansa  de  lembrar  que a situação  da  monarquia

constitucional  do século  XIX, com sua separação entre Esta-

do e

 sociedade, política

  e

 economia, encontra-se superada"

5

*

  Veja-se

  a

  nota

  d a

  revisão

  á p . 97

  deste volume.

  (N . d o R . T . )

3 .  Beitráge

  zi/m

  òjjemlichen Rechte

  de r

  Gegenwart.  Ed J. C. B.

  Mohr

(Paul Siebeck), Tübingen,

  1 9 3 1 .

4 .  SCHMITT,  Verfassurgslehre,  p. 9.

5 .  SCHMITT, Hüter  de r  Verfassung,  p. 128, cf . tb . p . 11 7.

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244

HANSKELSEN

e que portanto as categorias da teoria  do Estado constitucio-

nal não são aplicáveis à Constituição de um a democraciapar-

Iamentar-plebiscitária como

  a

 Alemanha

  d e

 hoje.

 D aí

 deduz

ele, por

 exemplo,

 que o

 conceito

  de lei

 formal", oriundo

 do

constitucionalismo  do  século  X I X e q u e  deveria assegurar

ao Parlamento, enquanto "legislador", o direito  de aprovar  o

orçamento,

  não

 poderia manter

 seu

 sentido original

 na

 Cons-

tituição

  d e

  Weimar,

  e que

 portanto, apesar

  da

  expressa

  dis-

posição  d o s arts.  85 e 87, não seria  de modo algum "absolu-

ta e  incondicionalmente necessária"  a  forma  de uma lei do

Reich

  para

  a

 fixação

 d o

 orçamento,

  a

 autorização

  de

 crédito

e a

 assunção

  de

 garantias, bastando

  em

 lugar disso

  o

 decre-

to do

 presidente

  na

  forma

 do ar t .

 48-2*. Tentativas simila-

res de dissolver  ou  atenuar  a assim-chamada reserva finan-

ceira  d a Constituição também foram, evidentemente, feitas

pela teoria constitucional,

  que não se viu

  impedida pelo

  con-

ceito

 de

  le i

 formal  de

 sustentar

  que o

 monarca poderia fixar

o

  orçamento

  e

  autorizar crédito mediante decretos

  de ne -

cessidade, como

  p o r

  exemplo demonstra

  a

  teoria

  e a

 práxis

do famigerado art. 14 na Áustria. Porém  a consciência histó-

rico-crítica  que nos

  preserva

  do formalismo irrefletido  de

compreender disposições

 d a

 Constituição

 do Reich

  como

  o

orçamento

 é

 fixado através

 de lei e tal

 aquisição

  (de

 recur-

sos f inanceiros mediante crédito), b e m como  a assunção  de

garantias  a cargo  do  Reich,  só  poderão acontecer  em fun-

ção de um a le i do Reich ,  n o

 sentido

 de que o

 orçamento

  só

pode

  ser

 fixado através

  de lei e que a

 autorização

  de

  crédi-

to e a  assunção  de garantias  só pode  ter  lugar  e m  função de

uma lei —   essa  consciência histórico-crítica  não  deve  nos

* N o

  Brasil, atualmente,

  o

  presidente

  d a

  República costuma editar

medi das provisória s dispondo sobre diretrizes orçamentárias (por ex.,

  M P

  1.817,

d e

  22.3.1999,

  M P

  1.643,

  d e

  18.3.1998)

  e

  abrindo créditos extraordinários

  ( p o r

e x . , M P  1.752-36,  d e  7.5.1999, 1.813,  d e  23.4.1999, 1.725-3,  d e  26.3.1999,

etc.).  ( N . d o R . T . )

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

245

impedir

  de

  retomar

  u m a

  ideologia

  do

  constitucionalismo

que , mais claramente  q u e qualquer outra, traz na  testa o seu

vínculo

  com a

 época,

  seu

  nascimento

  de um a

  situação

  his-

tórico-política específica:

  a

  doutrina

  do pouvoir neutre  do

chefe de Estado Essa fórmula de Constant toma-se, nas mãos

de

  Schmitt,

  u m

  instrumento capital para

  sua

  interpretação

da  Constituição  de  Weimar. Somente  co m  esse auxílio  ele

consegue estabelecer  que o  guardião  da  Constituição  não

seja, digamos

 -

  como

  se

 deveria supor

 a

 partir

  do art . 19 - ,

o Tribunal Federal  ou outro tribunal,  mas s im apenas  o pre-

sidente

 do

 Reich

,

  e

 isso

 j á co m

 base

 n a

 própria Constituição

em

 vigor,

 e não, por

  exemplo, depois

  de um a

  reforma cons-

titucional.

Quando Constant afirma

  que o

 monarca seria detentor

de um  poder  neutro,  apóia essa tese essencialmente  na su-

posição  de que o executivo esteja dividido  em dois poderes

distintos:

 u m

 passivo

  e

 outro ativo,

 e qu e o

 monarca detenha

simplesmente o passivo. Somente enquanto "passivo" é que

tal

  poder seria "neutro". Fica evidente

  a

  ficção

  de se

  apre-

sentar como meramente "passivo"

  o

 poder

  de um

  monarca

  a

quem  a  Constituição confia  a  representação  do  Estado  no

exterior

 -

  sobretudo

  a

 assinatura

  de

  tratados

  a

 sanção

 das

leis,

  o

 comando supremo

  do

 exército

  e da

  frota,

 a

 nomeação

de  funcionários e juízes, entre outras coisas,  e de  contrapô-

lo

 enquanto

  tal ao

 executivo restante, visto como

  u m

  poder

ativo

6

.  A  tentativa  d e  aplicar  a  ideologia  de  Constant  (do

pouvoir neutre

  do

  monarca)

  ao

  chefe

  de

  Estado

  de um a

6 . B.  Constant, originalmente  u m  republicano moderado, toma-se  m o -

narquista depois

  d a

  Revolução, defendendo, após

  a

  queda

  d e

  Napoleão,

  a s

dinastias legitimas  n o  l ivro  De  VesprU  de la  conquête  et de  1'usurpation.

C o m

  esse escrito torna-se também co-fijndador

 d a  ideologia

  da

  legitimidade.

N ã o  obstante, participa  d a  tentativa  d e  colocar Bemadotte  n o  trono; como  a

ação fracassa, Constant passa para

  o

  lado

  d o s

  Bourbons. Escreve

  n o  Journal

de s  Débats  contra Napol eão,  q u e  re tomava  d e  Elba, qualiflcando-o d e  Átila  e

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246

IIANS KELSEN

república democrática torna-se particularmente discutível

se

 estiver relacionada

  com a

 tendência

  de

 estender

 a

 compe-

tência deste último para ainda mais adiante

  do

  âmbito

  nor -

mal de  atribuições  de um  monarca constitucional.  É  verda-

de que, no  intuito  de que o chefe de Estado apareça como  o

apropriado "guardião  da  Constituição", Schmitt caracteriza

o seu  pouvoir neutre  não  como  u m a  instância  q u e  está

acima d o s "detentores de direitos  de decisão e de influência

política",  o u  como  u m  "terceiro mais alto",  n e m  como  se-

nhor soberano  do  Estado",  mas s im  como  u m "órgão justa-

posto", como

  u m

  poder

  que não

  está acima,

  mas s im ao

lado

 d o s

 outros poderes constitucionais".

 A o

 mesmo tempo,

porém, através

  de um a

  interpretação mais

  do que

 extensiva

do art . 48, e le

  procura ampliar

  a

 competência

  do

 presiden-

te do Reich  de

  maneira

  tal que

 este

  n ão

  escapa

  de

 tornar-se

senhor soberano d o Estado, alcançando urna posição de poder

que não  diminui pelo fato  de Schmitt recusar-se  a  designá-

la como "ditadura" e que, em todo caso, segundo  as expres-

sões acima citadas,

  não é

  compatível

  com a

  fiinção

  de um

garante da  Constituição.

Q u e

  Schmitt acredite poder aplicar

  sem

  maiores

  pro-

blemas a tese ideológica do pouvoir neutre  do monarca cons-

titucional

 ao

 chefe

 d e

 Estado

 de um a

 república democrática,

eleito

 sob a

 alta pressão

 d as

 correntes político-partidárias,

  é

tanto mais estranho porque,

 p o r

  vezes,

  ele vê

  claramente

  as

Gengis Khan. Após algumas semanas, porém,  e le é  "memb ro  d o  Conselho  d e

Estado"  e  escreve,  p o r  incumbência  d e  Napoleão,  o s  atos complementares  à s

Consti tuições

  t i o

  Império. Após

  a

  segunda Restauração, Constant

  é

  novamen-

t e

 partidário

  d a  Charle  e d o s  Bourbon.

  Assim,

  p o r

  exemplo,

  e l e d i z n a

  Câma-

r a d o s

  Deputados

  e m 1 8 2 0 : L e s

  Bourbons avec

  la

  Charte sont

  u n

  immense

avantage, parce

  q u e

  c 'est

  u n

  i mmense avantage qu ' une famil ie anüqu e su ru n

trone incontesté." Depois

  d a

  expulsão

  d e

  Carlos

  X

  vamos encontrá-lo nova-

mente como zeloso defensor

  d a

  legitimidade

  d e

  Luís Felipe.

  C f . A . M .

  Dolma-

towsky,

  D e r

  Par lamentar ismus

  i n d e r

  Lehre Benjamin Constants" ,

  i n :  Zeit-

schriftf.  d. ges.  Staaiswissenschaften,  63 .  Jahrgsg,  190 7 , p . 60 2 .

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL 247

circunstâncias reais  q u e  tornam transparente  o caráter ideo-

lógico

  da

  doutrina constitucional

  do

  monarca como guar-

dião  da  Constituição. Assim,  ele  afirma  que na  monarquia

constitucional  o perigo de uma violação da Constituição pro-

vinha  do  governo,  ou  seja,  d a  esfera  do  executivo,  circuns-

tância q ue deveria ser totalmente eliminada pela idéia tanto de

u m  poder "neutro"  d o  monarca  na  função  de  chefe  do go-

verno e do executivo, como  de sua vocação para atuar como

guardião da Constituição Schmitt, aqui, reconhece o perigo

po r  parte  do  governo monárquico  no  século  X IX  apenas

com a  intenção  de  poder afirmar  que  "hoje",  ou  seja,  no

século

 X X e n a

 república democrática,

  o

 temor

  de uma vio-

lação constitucional

  se

 dirigiria "sobretudo contra

  o

 legisla-

dor ,

 isto

 é, não

  contra

 o

 governo presidencial,

  mas sim con-

tra o

  Parlamento. Como

  se hoje  n a

  Alemanha

  a

  questão

  da

constitucionalidade

  d a

  atividade

  que o  governo,

  composto

po r

  presidente

  e

  ministros, desenvolve

  c o m

  base

  no art. 48,

n ã o

  fosse

 u m a

  questão

 de

 vida

  ou

 morte para

  a

  Constituição

de Weimar Deveras,  se não se cogita a possibilidade de vio-

lação constitucional  p o r  parte  do  governo,  a  fórmula  que

proclama  o  chefe  de  Estado guardião

  da

  Constituição  soa

bastante inofensiva;  e não é  mais preciso protestar contra  a

inexatidão de uma fórmula com a qual a função de garantia da

Constituição  não é  reclamada apenas  -  como poderia pare-

cer -  para  a pessoa  d o presidente da  república, mas s im para

o  colégio composto  por ele e os ministros  que  assinam seus

atos. Contudo, faremos  bem se não perdermos  de  vista  que

nessa argumentação trata-se apenas d e u m a teoria política do

"como

  se .

III.

  Para sustentar

  a

  tese

  de que o

  presidente

  do Reich

seria

  o

 guardião

  da

  Constituição, Schmitt

  tem que se

  voltar

contra

  a

 instituição, freqüentemente reclamada

  e em

 muitos

Estados também concretizada,

  d e u m a

  jurisdição constitu-

cional,

  ou

 seja, contra

  a

 atribuição

  da

  função

 de

  garantia

  da

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248

HANS KELSEN

Constituição

 a um

 tribunal independente. Este funciona como

um

  tribunal constitucional central

  na

  medida

  em que, num

processo litigioso, deve decidir sobre  a  constitucionalidade

de

 atos

 do

 Parlamento (especialmente leis)

 ou do

 governo

 (es-

pecialmente decretos) q ue tenham sido contestados, cassando

tais atos  e m  caso  de sua  inconstitucionalidade,  e  eventual-

mente julgando sobre

  a

  responsabilidade

  de

  certos órgãos

colocados  so b  acusação. Pode-se certamente discutir sobre

a conveniência  de tal  instituição, e ninguém afirmará que se

trata

 d e u m a

 garantia absolutamente eficaz

 em

 qualquer

 cir-

cunstância. Mas de todos os pontos de vista segundo os quais

se

  possa debater

  o

 problema político-jurídico

  de um

  tribu-

nal

  constitucional central

  e

  estabelecer seus prós

  e

  contras,

u m ponto  é d e fato insignificante: o de se tal órgão seria  u m

tribunal  e sua

 função verdadeiramente

 jurisdicional.  N o pla-

no da teoria  do direito, essa é realmente um a questão de clas-

sificação muito importante;

  da sua

  solução, contudo, tanto

em

  sentido afirmativo como negativo, nada resulta

  a

  favor

ou  contra  que se confie  a  referida função a u m  órgão cole-

giado cujos membros,

  a ser

  nomeados

  de

 alguma maneira,

tenham garantida  a  plena independência:  u m a  independên-

cia em relação a governo e Parlamento e que chamamos judi-

ciária,

  porque

  nas

 modernas Constituições costuma

 ser con -

cedida a os tribunais (aliás, não apenas a estes). Deduzir, a par-

tir de um

 conceito qualquer

  de jurisdição,  que a

 instituição

aqui referida como

  tribunal constitucional

  seria impossível

ou inconveniente, seria u m caso típico daquela jurisprudên-

cia  conceituai,  que j á

 pode

  ser

  considerada como superada

hoje

  em dia.

É de supor  que  tampouco Schmitt maneje tal argumen-

tação. Porém

 ele faz

 crer

 o

 contrário quando,

 n u m

 escrito

 si-

tuado  n o  plano  da política  do  direito  e na sua  luta contra  a

jurisdição constitucional,

 dá

 ênfase

 à

 questão

 de

 saber

 se ela

seria verdadeira jurisdição, formulando como problema  de-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

249

cisivo  o de se o judiciário  poderia atuar  como guardião

  da

Constituição.  Resulta mesmo estranho que ele , empregando

meios relativamente extensos, creia poder demonstrar  que

os tribunais civis, criminais e administrativos  da Alemanha,

que  exercem  u m  direito  d e  controle material sobre  as  leis

que  devem aplicar,  n ã o  sejam,  n u m  sentido preciso, guar-

diães

  da

  Constituição".

  Por

  motivos pouco compreensí-

veis, porém,

  e le não

  nega esse título

  à

  Corte suprema

  dos

Estados Unidos, embora essa Corte

  n ão

  faça essencialmen-

te

 nada

 de

 diferente

 d o s

 tribunais alemães quando estes exer-

cem seu  direito  de  controle,  ou  seja, n ão  aplicando  ao  caso

concreto

  as

 leis consideradas inconstitucionais.

  Ora, de um

tribunal constitucional central

  co m

  poder

  d e

  cassação

  - ao

qual Schmitt

  não

  negará

  a

  subsunção

  ao

  conceito

  de guar-

dião  da  Constituição,

  ainda

 que não

 queira considerá-lo

 um

"tribunal"  — de ta l "guardião" efetivo,  os  tribunais  que dis-

põem  de seu  poder  de  controle diferenciam-se apenas  no

plano quantitativo, ou seja, n a medida  em que o primeiro não

anula  a lei inconstitucional apenas para  u m  caso concreto  -

como  o s  últimos  - mas s im  para todos  o s  casos.  De que

serve observar então, como  fa z Schmitt,  que a função cons-

titucional de um guardião da Constituição consiste em "subs-

tituir

  e

  tornar supérfluo

  o

 direito geral

  e

  ocasional

  de

  deso-

bediência

 e

 resistência

 que

 repousa

 no

 direito

 de

 controle

 m a-

terial"

  e que

  "apenas então estamos diante

  de um

  guardião

da

  Constituição

 n o

 sentido institucional"? Isso,

 em

 realidade,

n ão  basta para chegarmos  ao  "sentido preciso"  do  conceito

"guardião

  da

 Constituição"; basta apenas para concluir

  que

os

  tribunais, mesmo quando exercem

  o

  direito

  de

  controle,

n ã o

  devem

  ser

  considerados guardiães

  d a

  Constituição".

U m a

  afi rmação meramente terminológica, pois Schmitt

 não

pode desmentir

 que um

  tribunal, quando rejeita

 a

 aplicação

 de

uma lei

  inconstitucional, suprimindo assim

  sua

 validade para

o

 caso concreto, funciona

 n a

 prática como garante

  da

 Cons-

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250 HANS KELSEN

tituição, mesmo

  que não se lhe

 conceda

  o

  altissonante título

de

 "guardião

 da

 Constituição",

 ou

 seja,

 se

 renuncie

 a um a ex-

pressão cujo

 pathos

  já é, por si só, uma  advertência contra

tendências ideológicas ligadas a ela. O q ue importa é determi-

nar a conveniência de se confiar dessa maneira a o s tribunais a

função de garantia  da  Constituição,  e, em caso negativo,  se é

necessário retirar-lhes

 o

 direito

 de

 controle. Será inútil procu-

rar e m

 Schmitt

 u m a

  solução clara desse problema.

Em

 compensação acharemos, como

  fo i

 dito,

 u m a

 gran-

de

  quantidade

  de

 argumentos

  com os

 quais

  se

 procura

  con-

tinuamente  - de  modo bastante assistemático  -  demonstrar

que a decisão sobre a constitucionalidade de leis e a anulação

de  leis inconstitucionais  por um  colégio  de  homens inde-

pendentes,  em  processo litigioso  -  Schmitt realmente  não

leva  em  consideração  a possibilidade  de um controle jurídi-

co de  outros atos imediatamente subordinados  à  Constitui-

ção - , não seria jurisdicional.  Porém os argumentos que apre-

senta nada provam para o ponto determinante, isto é, no plano

da política do direito, m a s também  são inúteis n o plano  teó-

rico-jurídico.

IV

 Tais argumentos partem

  do

 pressuposto errôneo

  de

que

 entre funções jurisdicionais

  e

 funções

 políticas

  existiria

u m a  contradição essencial,  e que  particularmente  a  decisão

sobre  a  constitucionalidade  de  leis  e a  anulação  de  leis  in-

constitucionais seria  um a to político,  donde  se deduz  que tal

atividade  já não  seria propriamente jurisdicional.  Se  deve-

mos dar ao

  termo "política", polissêmico

  e

 excessivamente

m al

  utilizado,

  um

  sentido razoavelmente preciso

  num con-

texto

  de

  oposição

  a

  "jurisdição",

  só

  poderemos supor

  que

seja usado para expressar algo como "exercício

  do

  poder"

(em  contraposição  a um "exercício  do direito"). "Política" é

a  função d o  legislador,  o  qual submete  os  indivíduos  à sua

vontade

  e

  exerce

  um

 poder justamente pelo fato

 d e

  obrigá-

los a  perseguir seus interesses dentro  dos  limites  das nor-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

251

m a s q u e

 impõem, decidindo assim

 os

 conflitos

 de

 interesses,

ao

 passo

  que o

  juiz, enquanto instrumento

  - e não

  sujeito

 -

de tal

 poder, apenas

  faz

 aplicar esse ordenamento criado

 pe-

lo

 legislador.

 T al

 concepção, contudo,

 é

 falsa, porque pressu-

põe que o

 exercício

  do

 poder esteja encerrado dentro

 do pro-

cesso legislativo.

  Não se vê, ou não se

 quer

  ver, que ele tem

sua continuação  ou até,  talvez,  seu real início  na jurisdição,

não  menos  que no  outro ramo  do  executivo,  a  administra-

ção. Se enxergamos  o politico" na resolução de conflitos d e

interesses,  n a  "decisão"  -  para usarmos  a  terminologia  de

Schmitt -  encontramos em toda sentença judiciária, em maior

ou  menor grau,  u m  elemento decisório,  u m  elemento  de

exercício  d e  poder.  O  caráter político  da  jurisdição  é  tanto

mais forte quanto mais amplo fo r o poder discricionário  que

a

  legislação, generalizante

  por sua

 própria natureza,

  lhe de-

ve

 necessariamente ceder.

  A

 opinião

 de que

  somente

  a

  legis-

lação seria política

  - mas não a

  "verdadeira" jurisdição

  - é

tão

  errônea quanto aquela segundo

  a

  qual apenas

  a

  legisla-

ção seria criação produtiva  do direito, e a jurisdição, porém,

mera aplicação reprodutiva. Trata-se,

  em

  essência,

  de

  duas

variantes

  de um

  mesmo erro.

  N a

  medida

  em que o

  legisla-

dor

 autoriza

  o

 juiz

  a

 avaliar, dentro

 de

 certos limites, interes-

ses contrastantes entre  si, e decidir conflitos e m favor de um

ou outro, está  lhe  conferindo u m poder  de criação  do  direi-

to, e portanto  u m poder  que dá à  função judiciária  o mesmo

caráter "político" q u e possui -  ainda que em maior medida -

a legislação. Entre  o caráter político da  legislação  e o da ju -

risdição há apenas u m a diferença quantitativa,  não qualitati-

va. Se fosse d a natureza  da jurisdição  não ser política, então

seria impossível  u m a jurisdição internacional;  ou  melhor:  a

decisão, segundo as normas  do direito internacional,  de con-

trovérsias entre Estados,  que só se distinguem  dos conflitos

internos porque aparecem mais claramente como conflitos de

poder, deveria receber outra denominação.

 N a

 teoria

 do

 direi-

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252

HANS KELSEN

to

  internacional costuma-se distinguir entre conflitos arbi-

tráveis

  e

 não-arbitráveis, conflitos jurídicos

  e de

  interesses

(de  poder), controvérsias jurídicas  e  políticas. Contudo,  o

que

 significa isso? Todo conflito jurídico

  é na

  verdade

  um

conflito

 d e

 interesses

 ou de

 poder,

 e

 portanto toda controvér-

sia jurídica  é uma  controvérsia política,  e  todo conflito que

seja qualificado como  de  interesses,  de  poder  ou  político

pode  ser decidido como controvérsia jurídica, contanto  que

seja incorporado pela questão sobre  se a pretensão  que um

Estado ergue

 em

 relação

 a

 outro

 e que

  este

 se

 recusa

  a

  satis-

fazer -  nisto consiste todo conflito -  está fundamentada no

direito internacional

  ou não. E ta l

 questão sempre pode

  sei

decidida segundo

  o

  direito internacional,

  ou

  seja, juridica-

mente,  o que com  efeito  se  verifica, seja positivamente  -

acolhendo-se  a  pretensão seja negativamente, rejeitan-

do-a.  [Tertium

 non

 datur.\  U m conflito não é "não-arbítrável"

ou político porque, por sua natureza, não possa ser um  confli-

to jurídico e portanto ser decidido através de um tribunal, ma s

sim porque  u m a d a s partes  ou  ambas,  por uma  razão qual-

quer,

  não

  querem deixar

  que

 seja resolvido

  por uma

  instân-

cia

 objetiva.

 A

  tais exigências,

  e às

  tendências contrárias

  ao

desenvolvimento

  da

 jurisdição internacional

  que

  delas

  nas-

cem, a  teoria  do  direito internacional fornece  a  necessária

ideologia  com os  conceitos  de  conflito "arbitrável"  e não-

arbitrável",  de  controvérsia política  e  jurídica. Schmitt  os

transfere para

  o

  âmbito

  do

  direito interno quando

  -

  como

muitos outros professores de  direito público - os diferencia

entre matérias "objeto

 de

 jurisdição"

 [justiziable]  e

 matérias

não  objeto  de  jurisdição"  [nicht justiziable],  a f im de

advertir contra  um a  extensão  da  jurisdição  com  relação  a

estas,  na  medida  em que declara  que com  isso  a jurisdição

 pode

 ser

 prejudicada". Segundo Schmitt

 as

 questões "polí-

ticas"

  não são

  objeto

  de

  jurisdição. Pois

  b e m ,

  tudo

  que se

pode dizer

 d o

 ponto

 de

 vista

 de um

 exame

 de

 orientação

  teó-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

253

rica

  é que a

  função

  de um

  tribunal constitucional

  tem um

caráter político

  de

  grau muito maior

  que a

  função

 d e

 outros

tribunais - e nunca  os defensores da instituição  de um  tribu-

nal

 constitucional desconheceram

  ou

 negaram

  o

 significado

eminentemente político

  das

  sentenças deste

  - mas não que

p or

 causa disso

 ele não

 seja

 u m  tribunal,  que sua

  função

 não

seja

 jurisdicional;  e

  menos ainda:

  que tal

  função

 não

  possa

ser

 confiada

 a u m

 órgão dotado

  de

 independência judiciária.

Isto significaria deduzir justamente  de um  conceito qual-

quer, p or  exemplo  o de jurisdição, elementos para  a confor-

mação da organização estatal.

V Uma vez que  Schmitt  dá um  valor  tão  particular  à

comprovação  de que a  assim chamada jurisdição constitu-

cional  não é de  fato jurisdição, seria  d e  esperar dele  uma

definição clara  e precisa desse último conceito. Essa expec-

tativa, porém, infelizmente  é frustrada.  O que e le  apresenta

como definição

 d e

 jurisdição

 é

 mais

 do que

 escasso,

  e

 acaba

sendo substancialmente

  u m

  retorno

  a

  concepções

  já há

muito reconhecidas como errôneas.

Se

 reunimos suas observações bastante dispersas sobre

essa duvidosa matéria, chegamos

 p or

 exemplo

 à

 seguinte tese:

a

 jurisdição

  por sua

  natureza está ligada

  a

  normas, isto

  é, a

normas

 que

 "possibilitam

 a

 subsunção

 d e u m

 fato material"

 e

além disso

 não são

 "duvidosas

 n em

 polêmicas"

  em seu con-

teúdo. Portanto,

  uma vez que na

  decisão sobre

  a

  constitu-

cionalidade

  de uma le i

  nunca

  se

  trata

  d a

  subsunção

  de um

fato material,  mas s im,  geralmente,  de  "definição  do con-

teúdo  de uma lei  constitucional duvidosa",  não se  estaria

aqui diante de jurisdição. Para começar logo  com a segunda

qualidade  com que a  "jurisdição"  é  aqui caracterizada,  só

podemos expressar nossa admiração,  uma vez que  Schmitt

parece crer  que os  tribunais civis, criminais  e  administrati-

vos, cuja natureza jurisdicional não coloca em dúvida, teriam

aplicado sempre  e  somente normas cujo conteúdo  não era

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254

HANS KELSEN

duvidoso

  n e m

  polêmico,

  que a

  controvérsia jurídica

  a ser

decidida  por um  desses tribunais  é  sempre  u m a  questão  d e

fato  e nunca  um a  assim-chamada questão  d e  direito,  a qual

surge apenas quando

 o

 conteúdo

 da

 norma

 a ser

  aplicada

 fo r

duvidoso  e  portanto polêmico. Como exemplo  de um  caso

em que não i iá "patente contradição" entre  uma lei constitu-

cional

  e uma lei

 ordinária,

  mas s im

 "dúvida

  e

 diferenças

 de

opinião" sobre  se e em que  medida existe  u m a  contradi-

ção , nos é apresentado: "quando  a lei  constitucional deter-

mina

 que as

  faculdades

 d e

 teologia sejam mantidas

 e um a lei

ordinária dispõe  que as  academias  de  teologia sejam supri-

midas".  O  conteúdo  da lei  constitucional  é  evidentemente

duvidoso, porque

  é

  incerto

  se por

  "faculdades

  de

  teologia"

pode-se compreender também "academias

 d e

 teologia". Qual-

quer palavra

  é

 supérflua para demonstrar

 que a

 jurisprudên-

cia dos

  tribunais ordinários

 -

  cujo caráter jurisdicional

  não

pode, nem é nunca posto e m dúvida -  significa e m numero-

sos

 casos

 a

 definição

 d o

 conteúdo

 de uma lei que é, de

 modo

absolutamente idêntico, duvidoso. Quando Schmitt fala

  da

"diferença fundamental entre  a decisão  de um  processo  e a

decisão de dúvidas e diferenças d e opinião sobre o conteúdo

de uma

  disposição constitucional",

  só

  podemos dizer

  que a

maioria

  das

 decisões

 de

 processos

 são

 decisões

 de

 dúvidas

 e

diferenças  de  opinião sobre  o  conteúdo  de uma  disposição

legal.  E, com  efeito, nunca  se  havia feito  u m a  afirmação

sobre  a jurisdição  que  desconhecesse  tã o  completamente  a

sua essência como a seguinte: "Toda jurisdição está ligada  a

normas

  e

 cessa quando

  as

 próprias normas tornam-se duvi-

dosas  e polêmicas  em seu conteúdo". Basta a inversão dessa

frase para trazer

  de

  volta

  a

  verdade simples

  e por

  qualquer

u m  visível  de que a justiça  em  geral  só  começa realmente

quando  as normas  se  tornam duvidosas  e polêmicas  em seu

conteúdo, pois

 do

 contrário haveria apenas controvérsias

 so-

bre  fatos, e não propriamente controvérsias

 jurídicas.

  Pode-se

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

255

duvidar

  de que

  seja conveniente confiar

 a um

  tribunal inde-

pendente

  a

 definição

 do

  conteúdo

  de uma le i

  constitucional

duvidosa,

  e por

 várias razões, pode-se preferir

  que o

 gover-

no ou o

 Parlamento cuidem dessa função. Porém

  é

  impossí-

vel

  afirmar

  que a

  função

 de um

  tribunal constitucional

  não é

jurisdicional quando

  a

 norma

  que

 deve aplicar

  tem

 conteúdo

duvidoso,

 de

 modo

 que sua

 decisão consista

 na

 definição desse

conteúdo; porque

 é

 impossível afirmar

 que a

 incerte2a

 do con-

teúdo da norma seja, no caso  de um a lei constitucional, algo

diferente do que  acontece n o caso  de uma le i ordinária.

O outro critério - pelo qual as normas a serem aplicadas

pelo judiciário devem possibilitar  a  subsunção  de um  fato

material  - não é, realmente, incorreto; porém tanto mais  in-

correta  é a  afirmação  de que a decisão sobre  a  constitucio-

nalidade  de uma le i não  implica  tal  subsunção. Schmitt  in-

felizmente deixa  de explicar melhor o que entende por Tatbe-

stand.  M a s

  talvez possamos supor

  que ele

  veja realizado

  o

procedimento

  de

  subsunção

  da

  maneira mais simples

  e cla-

ra quando um tribunal criminal deva decidir sobre um a acusa-

ção. Se o

 tribunal estabelece

 que o

 comportamento

 d o

 acusado

é

  mesmo aquele fato

  que a lei

  penal prevê como delito,

  ou

seja, como condição

  de uma

 determinada pena, trata-se

 de pro-

cedimento absolutamente idêntico

  ao que se

 verifica quando

u m  tribunal constitucional reconhece como inconstitucio-

nal uma lei impregnada p o r alguém. A inconstitucionalidade

de uma lei  pode consistir  não só —  como parece  à  primeira

vista - no fato de nã o ter sido adotada segundo o procedimen-

to previsto pela Constituição, m as também em que possua  um

conteúdo  que ,  segundo  a  Constituição,  n ão  poderia  ter; a

Constituição,  de  fato,  não  regula apenas  o  procedimento  le-

gislativo, m as também define d e algum modo o conteúdo das

futuras leis, po r exemplo mediante  a fixação de linhas direti-

vas, princípios, etc. Como porém  um a jurisdição constitucio-

nal em  relação  às  leis  só é possível  se as  normas constitu-

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256

HANSKELSEN

cionais materiais

  se

 apresentarem também

  na

  forma consti-

tucional específica, isto  é , como leis qualificadas — pois  do

contrário toda  le i  constitucional material será ab-rogada  ou

modificada  por uma lei ordinária  que com ela  contraste,  não

sendo portanto possível

  uma lei

  inconstitucional

 - o

 controle

da  constitucionalidade  de uma le i por  parte  de um  tribunal

constitucional sempre significa

 a

 solução

 da

 questão sobre

 se

a lei  surgiu  de  maneira constitucional. Pois mesmo quando

uma lei é

 inconstitucional porque

  tem um

 conteúdo inconsti-

tucional,  ela na verdade só o é por não ter sido adotada como

lei que modifica a Constituição.  E mesmo n o caso  de que a

Constituição exclua totalmente determinado conteúdo de lei,

de  modo  que uma le i  constitucional  com tal  conteúdo  não

possa absolutamente

  ser

  adotada,

  por

  exemplo

  a lei de um

estado-membro  que intervém  na competência federal (e que,

mesmo adotada como lei da Constituição estadual, não esteja

conforme

 à

 Constituição federal), ainda nesse caso

 a

 incons-

titucionalidade da lei consiste na sua adoção; não no  fato d e

não ter

 sido adotada

  de

  maneira devida,

  mas no

 simples fato

de ter sido adotada. O suporte fático [Tatbestand]  qu e  deve

ser

 subsumido

 à

 norma constitucional quando

  da

 decisão

  so-

bre a constitucionalidade de um a le i, não é um a novma -  fato

e

 norma

 são

 conceitos distintos

  - mas sim a

 produção

 da nor-

m a, um  verdadeiro suporte fático material, aquele suporte fá-

tico

 que é

 regulado pela norma constitucional

 e que,

 porque

 e

na  medida  em que é  regulado pela Constituição, pode  ser

subsumido

  pela Constituição como qualquer outro suporte

fático  sob  qualquer outra norma. Pois  um  suporte fático  só

pode

  ser subsumido  a uma

 norma

  se

 esta regular esse suporte

fático, ou  seja, estabelecê-lo como condição  ou  conseqüên-

cia.

 Tanto

  se um

 tribunal civil decide sobre

 a

 validade

 de um

testamento ou contrato  ou declara inconstitucional um decre-

to

 para

 n ão

 aplicá-lo

 n o

 caso concreto,

 ou se um

 tribunal cons-

titucional qualifica  uma lei  como inconstitucional,  em to-

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258

HANS KELSEN

essas duas funções

 que

  acreditávamos

  até

 então poder

  con -

siderar

  h á

 muito obsoleta. Trata-se

  da

  concepção segundo

  a

qual  a  decisão judicial  j á  está contida pronta  na lei ,  sendo

apenas "deduzida" desta através

  de uma

  operação lógica:

  a

jurisdição como automatismo jurídico Schmitt af irma

  de

fato c o m  toda seriedade que a "decisão" do juiz  é deduzida

no seu

 conteúdo

  de um a

 outra decisão, mensurável

  e

 calcu-

lável, já  contida  na lei . Também essa doutrina descende  do

estoque

  da

  ideologia

  da

 monarquia constitucional:

  o

 juiz

 tor-

nado independente

  do

 monarca

  não

  deve

  se

 conscientizar

  do

poder  que a lei lhe confere, que -  dado  o seu caráter geral  -

lhe

  deve conferir.

  Ele

  deve crer

  que é um

  mero autômato,

que não produz criativamente direito, m as s im apenas "acha"

direito j á  formado, "acha"  u m a  decisão  j á  existente  na lei.

Tal

  doutrina

  já foi

  desmascarada

  há

  muito tempo

7

.

  Não é

portanto

  tão

 estranho

 qu e

 Schmitt, depois

 de

 haver

  se

 servi-

do  dessa teoria  do  automatismo para separar, como princí-

pio, a  jurisdição como mera aplicação  da lei e a  legislação

como criação

  do

  direito,

  e

  depois

  que ela lhe

  assegurou

  o

principal argumento teórico  em sua  luta contra  a jurisdição

constitucional

 — um a le i não é um a

  sentença,

 um a

 sentença

não é u m a lei —,

 coloque-a

  de

  lado, declarando enfatica-

mente:  E m  toda decisão, mesmo  na de um  tribunal  que

resolva

  u m

  processo mediante

  a

  subsunção

  de um

  fato

material,  há um elemento  de decisão pura  que não pode  ser

deduzido  do conteúdo  da lei . Pois  bem, é justamente dessa

compreensão

  que

  resulta

  o

  fato

  de que

  entre

  lei e

  sentença

n ão  existe diferença qualitativa,  que  esta  é ,  tanto quanto

aquela, produção

  do

  direito,

  que a

  decisão

  de um

  tribunal

constitucional,  por ser um ato de  legislação, isto  é, de pro-

dução

  do

  direito,

  não

  deixa

  de ser um ato de

 jurisdição,

  ou

7 . C f .

  minha  Allgemeine Staalslehre,

  p p . 2 3 1 s s . , 3 0 1 .

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

259

seja,

 de

 aplicação

  d o

 direito,

 e

 particularmente

  que, em fun-

ção de o

 elemento

  da decisão  não se

 limitar

  de

 modo algum

à função legislativa, mas s im também  - e necessariamente -

estar contido

 na

 função judicial, ambas devem possuir cará-

te r politico.  C o m

  isso, porém, torna-se vazia toda

  a

  argu-

mentação pela qual

  o

  controle

  de

  constitucionalidade

  não

seria jurisdição

  p o r

  causa

  de seu

  caráter político. Perma-

nece apenas  a questão sobre  por que um autor  de  inteligên-

cia tão extraordinária como Schmitt  se  enreda  em  contradi-

ções tão palpáveis apenas para poder sustentar a  tese de que

a jurisdição constitucional  nã o seria jurisdição,  mas sim le-

gislação, quando de seu próprio raciocínio se depreende que

ela  pode  e deve  ser as  duas coisas.  É  difícil qu e  haja outra

explicação além desta:  a  tese  de que a  jurisdição constitu-

cional

  não é

 jurisdição

  é tão

  importante, sendo

  até

  mesmo

sustentada

  po r

  Schmitt

  em

  contradição

  com sua

  própria

compreensão teórica, porque constitui

  o

 pressuposto

 de uma

exigência

  da

 política

 do

 direito: como

 a

 decisão sobre

 a

 cons-

titucionalidade  de uma lei e a anulação  de uma le i  inconsti-

tucional  não são jurisdição,  p o r  isso mesmo  ta l  função não

pode  ser  confiada  a u m  colégio  de  juízes independentes,

m a s  deve ser confiada a u m outro órgão. Trata-se apenas de

outro uso da mesma argumentação quando Schmitt divide os

Estados  -  segundo  a  função preponderante  e m  cada caso  -

em Estados jurisdicionais e Estados legislativos, concluindo

do  fato  de que um  Estado  —  como  o  Reich  alemão hoje  -

seja u m Estado legislativo  que : N um Estado legislativo,  ao

contrário,

  não

 pode haver jurisdição constitucional

  ou

 juris-

dição

  do

  Estado como

  o

  apropriado guardião

  da

  Constitui-

ção . Do

  mesmo modo afirma:

  N u m

  Estado

  que não

  seja

puramente jurisdicional, esta

  [a

 jurisdição]

 n ão

 pode exercer

tal

  função." Talvez porém fosse mais correto dizer

  que um

Estado cuja Constituição estabelece

  u m

  tribunal constitu-

cional

  não é, por

  isso mesmo,

  u m

  "Estado legislativo",

  do

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260

HANS KELSEN

que

 concluir, porque

  ta l

 Estado

  não se

 encaixa nesse esque-

m a

 teórico,

 que

 aqui

  n ão

 pode" existir

 um

  tribunal constitu-

cional.

 E

 sempre

  a

 mesma técnica

  de

 deduzir

 de um

 concei-

to

 jurídico pressuposto

 u m a

 configuração jurídica desejada,

a

 típica mistura

  d e

 teoria jurídica

  c o m

  política

  do

  direito

8

.

U m a  pesquisa jurídica científica  que se  ocupa  com a

possibilidade  d e u m a jurisdição constitucional , não  deveria,

8. A

  tese

  d a

  diferença essencial entre

  lei e

  sentença,

  q u e

  ninguém

  c o n -

tradiz  t ã o  energicamente como Schmitt quando af irma  q u e  ambas  têm a

mesma natureza,

  n a

  medida

  e m q u e

  ambas

  s ã o  decisões

, const itui estra nha-

mente, para esse mesmo autor,  a base  d e u m a  polêmica contra  a  teoria  d o g r a -

dualismo defendida  p o r m i m , a  qual , reconhecendo  a  natureza idêntica  d e

legislação  e jur isdição,  v a i e m  busca  d e u m a  diferença quantitativa. Quando  a

teoria  d o  g raduaf ismo  v ê u m a  produção  d e  norma tanto  n a  legislação como  n a

jur isdição, procede  t ã o  metodologicamente quanto Schmitt quando este reco-

nhece  e m  amb as  o  "e lemento  d e  decisão".  D a l s e  explicará  a  veemência  d e

s u a  po lêmica ,  q u e  trabalha menos  c o m  argumentos objet ivos  d o q u e c o m j u í -

z o s d e  valor bastante emocionais, como "abstrações vazias", "metáforas  f a n -

tasiosas", "lógica aguada".  O  resultado  d a  teoria  d o g radual i smo  -  elaborada

p o r m i m c o m

  base numa crítica metodológica radical

  e

  numa luta encarniça-

d a

  contra todo antropomorfismo

 - a  Hierarquia  da s  normas [Hierarchie  der

Normen],

  é  liquidado rapidamente numa nota como  u m  "antropomorf ismo

acrí t ico  e  p r ivado  d e  mé to d o "  e  "alegoria improvisada". Teria pouco senti-

d o , n a  resenha  d e u m  trabalho  q u e é  eminentemente  d e  política  d o  direito,

discutir sobre  u m a  teoria  q u e n ã o  oferecerá outra coisa além  d e u m a  análise

estrutural  d o  direi to . Contento-me portanto  e m  a f i rmar  q u e a  doutr ina  c o n -

tra a  qual Schmitt polemiza  n ã o t e m  quase nada  a v e r c o m a  teor ia defendi-

d a p o r m i m . H á  aqui  u m  mal-entendido grosseiro . Schmitt  c r ê  estar refutan-

d o

  essa teoria quando escreve: "Quando

  u m a

  norma

  é

  mais difícil

  d e

  modif i -

c a r q u e  outra ,

  trata-se  - sob  todos  os  aspectos pensáveis:

  lógico, jur ídi co,

sociológico  — d e  outra coisa  q u e u m a  hierarquia;  u m a  atribuição  d e  compe-

tência  p o r  meio  de le i  constitucional  n ã o  está,  c o m  respeito  a o s  atos emana-

d o s  pelo órgão competente,  n a  posição  d e  autoridade superior (pois  u m a n o r -

matização  n ã o é u m a  autoridade),  e a le i  ordinária  n ã o é , c o m  maior razão,

subordinada  à lei  mais difícil  d e  modif icar ." Pois  b e m , s e e u  sustentasse  q u e

a

  Consti tuição

  s ó

  está "acima"

  da le i

  porque

  é

  mais difícil

  d e

  modif icar

  q u e

esta, então minha teoria seria  d e  fato  t ã o  absurda como Schmitt  a  expõe.

Nessa exposição, porém,  é  ignorado apenas  u m  pequeno detalhe:  q u e e u

diferencio  c o m a  máxima ênfase entre Constituição  n o  sentido material  e

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

261

por f im , ignorar o fato de que já  existe u m  Estado -  precisa-

mente  a Áustria  - em que há  mais  de um  decênio funciona

um a  jurisdição constitucional central perfeitamente organi-

zada. Analisar  a sua  real eficiência seria certamente mais

frutífero  q u e  indagar sobre  a sua  compatibilidade  com o

conceito de Estado legislativo. Schmitt  se contenta  em colo-

car a

  "solução austríaca" entre aspas

  e

  observar

  que no

cansaço

  da

 primeira década após

 o crash,  o

 exame

  do

 signi-

ficado objetivo

 de tal

 alargamento

 da

 jurisdição

 não foi ade -

quado, satisfazendo-se

  com

  normativismos

  e

  formalismos

abstratos". "Normativismos" e "formalismos" seriam uma re-

ferência

 à

  Escola

  d e

  Viena;

  b e m ,

  esta

  não fo i

  impedida

  por

sua

 "abstração"

 de

 realizar

 um

 trabalho criativo-jurídico

 bas-

tante concreto, onde

  se

  inclui

  a

 Corte Constitucional austría-

ca,

 cujo "significado concreto",

 em

  todo caso, Schmitt deixa

de  examinar,  não  descendo para tanto  do  alto  de  suas  pró-

prias abstrações.

A impossibilidade teórica desse método, a sua contradi-

ção  interna, tornam-se manifestas também quando Schmitt,

na  conclusão  de seu escrito, põe-se  a  deduzir  d as  suas  pre-

missas teóricas  o  desejado resultado  d e política  do  direito.

Constituição  n o  sentido formal,  e q u e  fundamento  a  subordinação  d o  nível  d a

lei ao

  nível

  d a

  Constituição

  n ã o

  através

  d a

  forma

  d a

  Constituição, puramente

acidental

  e n ã o

  essencial,

  m a s s i m

  através

  d o s e u

  conteúdo.

  A

  Constituição

interessa como norma  q u e  está acima  d a  legislação porque define  o  procedi-

mento legislativo,

  e e m

  certa medida também

  o

  conteúdo

  d a s

  leis

  ( a s e r e m a -

nado

  c o m

  base

  n a

  Constituição);

  d o

  mesmo modo

  q u e a

  legislação está acima

d a  assim-chamada execução (jurisdição, administração),  e i s q u e  regula  a

formação

  e - em

  medida bastante ampla

  - o

  conteúdo

  d o s

  respectivos atos.

N a  relação entre  o  nivel  d a  legislação  e o da  execução,  a ques tão  d a  alterabi-

lidade mais fácil

  o u

  mais difícil

  n ã o t e m

  nenhum papel. Schmitt deveria

sabê-lo, mesmo

  q u e

  tivesse lido apenas minha comunicação sobre "Essência

  e

desenvolvimento d a jurisdição d o Estado" [Wesen  u n d Entwicklung d e r Staatsge-

richtsbarkeit]

  ( in  Verõjfentlichungen  de r  Vereirtigung  de r  deulschen Staats-

rechtslehrer, Heft

  5 ,

  1928),

  o u a o

  menos

  a p . 36 do

  mesmo escrito.

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8/17/2019 KELSEN Hans. Jurisdicao Constitucional

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262

HANS KELSEN

Lê-se  ali:  "Antes portanto  de  instituir, para questões  e con-

flitos eminentemente políticos,  u m  tribunal como guardião

da

 Constituição, sobrecarregando

  e

 ameaçando

  o

 judiciário

com ta l politização", deveria  ser lembrado  o conteúdo posi-

tivo  da Constituição  de Weimar, a qual,  no juízo  de  Schmitt,

institui

  o

  próprio presidente

  do  Reich

  como guardião. Isto

significa,

 n em

 mais

  n e m

 menos,

  que

 para questões

 e

 confli-

to s

  eminentemente políticos

  não se

  deve instituir

  u m

  tribu-

nal

  como guardião

  da

  Constituição porque através

  da

  ativi-

dade  de tal tribunal a jurisdição seria politizada, sobrecarre-

gada  e ameaçada.  A jurisdição? Como poderia justamente  a

jurisdição  ser  sobrecarregada  e  ameaçada pela jurisdição

constitucional, quando esta última  -  como Schmitt ininter-

ruptamente

  se

  esforçou

  por

  demonstrar

  - não é

  absoluta-

mente

 jurisdição?

Não s e

 pode negar

  que a

 questão lançada

 p o r

  Schmitt

  a

respeito dos limites  da jurisdição e m geral e da jurisdição cons-

titucional

  em

 particular seja absolutamente legítima. Nesse

contexto, porém,  a questão  não  deve  ser colocada como u m

problema conceituai  de  jurisdição,  mas s im  como  um pro-

blema sobre  a  melhor configuração  da  função desta, deven-

do-se separar claramente ambos os problemas. Caso  se dese-

j e

 restringir

 o

 poder

 dos

 tribunais,

 e,

 assim,

 o

 caráter político

da sua

  função

 —

 tendência

  que

 sobressai particularmente

  na

monarquia constitucional, podendo, porém,

  ser

  observada

também

  n a

 república democrática deve-se então limitar

  o

máximo possível

 a

 margem

  de

 discricionariedade

 que as

 leis

concedem

  à

 utilização daquele poder. Além disso

  as

 normas

constitucionais

  a

  serem aplicadas

  por um

  tribunal constitu-

cional, sobretudo

  as que

 definem

  o

 conteúdo

 de

  leis futuras

-

  como

  as

 disposições sobre direitos fundamentais

 e

 simila-

res não

 devem

 ser

 formuladas

 em

 termos demasiado gerais,

n e m

  devem operar

  com

  chavões vagos como "liberdade",

"igualdade", "justiça",

  etc. Do

  contrário existe

  o

  perigo

  de

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

263

u m a

  transferência

 de

 poder

  - não

 previsto pela Constituição

e

  altamente inoportuno

 - do

 Parlamento para

  um a

  instância

externa  a ele , a  qual pode tornar-se  o  expoente  de  forças

políticas totalmente distintas daquelas

  que se

  expressam

  no

Parlamento

9

". Essa porém

  não é uma

  questão específica

 da

jurisdição constitucional; vale também para

  a

  relação entre

  a

lei e os tribunais civis, criminais e administrativos que devem

aplicá-la. Trata-se  d o  antiquíssimo dilema platônico: poli-

teia  ou nomoi?;  reis-juízes ou  legislador régio? D o ponto  de

vista teórico,  a  diferença entre  um  tribunal constitucional

com competência para cassar leis  e u m tribunal civil, crimi-

nal ou administrativo normal é que, embora sendo ambos apli-

cadores

  e

  produtores

  d o

  direito,

  o

  segundo produz apenas

normas individuais, enquanto

 o

 primeiro,

 ao

 aplicar

 a

 Consti-

tuição

  a u m

  suporte fático

 de

 produção legislativa, obtendo

assim

 um a

 anulação

 da lei

  inconstitucional,

  não

 produz,

 mas

elimina

  u m a

 norma geral, instituindo assim

  o  actus contra-

rius

  correspondente

  à

 produção jurídica,

  ou

  seja, atuando

  -

como formulei anteriormente  -  como

  legislador negativo

10

.

Porém entre o tipo d e  função de tal  tribunal constitucional  e

o dos tribunais normais insere-se,  com seu poder  de contro-

le de  leis  e decretos,  u m a  forma intermediária muito digna

de

  nota. Pois

  u m

  tribunal

  que não

  aplica

  no

  caso concreto

um a lei por sua

 inconstitucionalidade

 ou um

 decreto

  por sua

ilegalidade, elimina

  u m a

  norma geral

  e

  assim atua também

9 .

  KELSEN, A

  garantia jurisdicional

  da

  Constituição.

  Essas frase s

  c o r -

relacionam-se  c o m  exposições  q u e  anexo aqui  n a  íntegra  a fim de  mostrar

àqueles  q u e  tenham lido apenas  o  escrito  d e  Schmitt  o  verdadeiro caráter  d e

u m d o s  "zelotes  d e u m  normat ivismo cego",  d e s u a  "lógica normativista  e

formalíst ica"  ( 4 1 ) e d a s  "devastações  q u e  essa espécie  d e  lógica promoveu  n o

concei to

  d e l e i .

  Veja-se

  o q u e

  consta,

  a

 propósito,

  n a

  exposição mencionada,

principalmente  n a s p p .  167-70 deste volume.

10.

  Veja-se

  o q u e

  consta,

  a

  propósito,

  n a

  exposição sobre

  A

  garantia

jurisdicional  d a  Consti tuição", principalmente  n a s p p . 1 5 0 - 3  deste volume.

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264

HANS KELSEN

como

  legislador negativo  (n o

  sentido material

  d a

  palavra

lex—lei). Apenas observe-se  que a  anulação  d a  norma geral

é  limitada  a u m  caso,  não se  dando  -  como  n a  decisão  d e

u m  tribunal constitucional - de modo total,  o u seja, para  to -

dos os

 casos possíveis.

VII. É

  questão

  de

 política

  d o

 direito

  se o

  processo atra-

vés do

  qual

  u m

  órgão dotado

  d e

  independência judiciária

examina  a constitucionalidade  de uma le i  deve  se r  configu-

rado

  ta l

 como

  u m

 processo criminal, civil

  o u

  administrativo

-  particularmente, se deve possuir caráter litigioso - , o u  seja,

se deve s e r formulado d e modo que os prós  e contras d a cons-

titucionalidade

  da le i

  sejam discutidos

  o

 mais publicamente

possível.  Tal processo n ã o é exclusivo  d o judiciário; também

o

  processo administrativo pode

  se r

  assim formulado.

  Se a

propósito  se  fala  d e forma judiciária,  é  porque historica-

mente,

  e até

 hoje,

  e le

 aparece principalmente

  n o s  tribunais.

N a  antiga Atenas, durante ceTto período,  a té  mesmo  o p ro -

cesso legislativo tinha essa configuração: quando

  um a le i an-

tiga devia

  ser

 substituída

  p o r u m a

 nova,

  a

 primeira

  era

 acusa-

d a  diante  d o s  nomótetas.  E  Atenas  c o m  certeza  e ra  tudo,

menos

  u m

  "Estado jurisdicional",

  n o

  sentido

  d a

  conceitua-

ç â o d e  Schmitt.  O processo dialético  do  Parlamento moder-

no é ,  fundamentalmente, algo muito parecido  à  "forma j u -

diciária"

  do

  processo diante

  de um

  tribunal.

  S eu

  objetivo

  é

trazer  à luz  todos  o s prós  e contras  d e determinada solução,

e a  experiência demonstra  q u e  esse resultado  é  mais  b e m

garantido quando

  se

  confia

  o

  ataque

  e a

  defesa

  a

  duas

  ins-

tâncias diferentes. Isso  é  imediatamente possível quando  n a

questão

  e m

 debate existem dois interessados

  o u

 dois grupos

d e

  interesse

  c o m

  orientação distinta. Esse

  é sem

  dúvida

  o

caso  da  questão  d e  inconstitucionalidade  de uma l e i . Con-

flitos  d e  interesse  d e natureza nacional, religiosa, econômi-

ca ,

  antagonismos entre grupos interessados

  em

  centraliza-

ção ou descentralização,  e muito mais.  Dar a tais antagonis-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

265

mos uma  expressão técnico-processual adequada  é tarefa  do

código processual.  O caráter litigioso, o assim-chamado  ca-

ráter judiciário  do  procedimento,  é  também totalmente  in-

dicado quando  se trata  da aplicação d e u m a norma constitu-

cional  q ue  concede  um a  margem larga  de  discricionarieda-

de. O  litígio então n ã o  trata,  ou  melhor,  n ão  trata somente  e

não só

  diretamente sobre

  a

  questão

  da

  constitucionalidade,

m as

 também sobre

 a

  conveniência

 do ato

 impugnado;

 é tam-

b é m u m a

  discussão sobre

  o

  melhor modo pelo qual

  a

  cria-

ção do

 direito

 -

  individual

 ou

 geral

 —

 deve ocorrer dentro

 d o

quadro traçado pela Constituição.  Por exemplo, quando está

em

 questão

  se uma lei

 ordinária fere

 a

 Constituição,

  e o

 teor

desta

  n ão

  oferece orientação precisa sobre esse ponto,

  de

modo

  que a

 decisão

  do

  tribunal constitucional significa,

 em

verdade,  u m  desenvolvimento  da  Constituição  em  determi-

nada direção,  é  precisamente nessa situação  que o  conflito

de  interesses existente  é da  máxima importância.  E  justa-

mente aqui  é de  particular importância  que a vontade esta-

tal , que se  manifesta n a  decisão  do  tribunal constitucional,

aconteça dentro

  de um

  processo

  que

  expresse

  os

  conflitos

de

  interesses existentes.

  E m

  todo processo civil,

  de

  acordo

com a

  liberdade discricionária

  que a lei

  concede

  ao

 juiz,

  o

litígio

  versa também sobre

  a

  oportunidade

  da

  decisão,

  e a

forma judiciária demonstra

  se r

 adequada

  em

 relação

  à

 ativi-

dade

 politica  de

 criação

 do

 direito realizada pelo tribunal,

 na

medida  em que se consuma n a sentença u m a ponderação  de

interesses.

  Para  nã o  falar  do  processo administrativo, cuja

forma judiciária e m nada prejudica a discricionariedade outor-

gada  em medida  tã o  ampla  à administração. Mesmo  que se

quisesse falar,  com  respeito  ao  poder discricionário conce-

dido à aplicação do direito — não em sentido teórico, ma s no

plano  da  política  d o  direito  - , de  normas mais  ou  menos

"sujeitas à jurisdição"  [/ustiziable],  seria totalmente errônea

a  afirmação  de que a  base para  um a possível forma judi-

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266 IIANS KEI.SEN

ciaria" d o procedimento seria suprimida  n a mesma medida

que a norma sujeita à jurisdição".

O

 verdadeiro sentido

 da

 assim-chamada forma judiciária

e sua utilidade para  o processo diante de uma autoridade  que

atue como  guardião  da  Constituição, certamente  não  será

compreendido

 se não se

 contemplar

 o

 fato sociológico básico

de

  onde

  se

  origina

  a

  instituição

  do

  processo litigioso: como

e m  qualquer configuração jurídica, assim também n a decisão

de um

  tribunal

  - e em

 particular naquela

  de um

 "guardião

 da

Constituição"

 -

  tomam parte interesses contrastantes,

 e

  toda

"decisão" versa sobre conflitos

  de

  interesses,

  ou

  seja,

  em

favor  de um ou de  outro,  ou no  sentido  de uma  mediação

entre ambos;

  de

 modo

  que um

  processo

  de

  caráter litigioso,

se não para outras coisas, serve pelo menos para expor clara-

mente  a  real conjuntura  de  interesses. Tudo isso porém  não

pode

  ser

  visto

  se o

  contraste

  de

  interesses existente

  é

  esca-

moteado pela ficção

 de um

 interesse comum

 ou de um a uni -

dade  de  interesses;  o que é  essencialmente diverso  e  essen-

cialmente maior

  do que

  tudo isso pode

  ser, na

  melhor

  das

hipóteses,

  um

  acordo

  de

 interesses. Trata-se

  da

 típica ficção

de que se  lança  m ão  quando  se  opera  c om a "unidade"  da

"vontade" do Estado ou com a "totalidade" do coletivo n u m

sentido outro

  que o

  meramente formal,

  a f im de

  justificar

um a configuração com um certo conteúdo definido da ordem

estatal.

  A

  essa caracterização conduzem também

  as

  consi-

derações

 e m que

 Schmitt desenvolve

 a

 categoria

 d o

 "Estado

total"  em  contraposição ao sistema  do  "pluralismo".

VIII. Ambos os conceitos são  introduzidos a f im de ca-

racterizar a situação constitucional concreta do Reich  alemão.

(O s

  conceitos

  de

  "policracia"

  e

  "federalismo",

 que

  Schmitt

igualmente utiliza

 ao

 lado

 de

 "pluralismo",

  têm um

 papel

 re -

lativamente insignificante.) Por  "pluralismo" Schmitt  c om -

preende  u m a  multiplicidade composta  po r  complexos  de

forças sociais solidamente organizados

  que

 perpassam todo

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

267

o  Estado  - ou  seja, tanto  as  diferentes áreas  da  vida estatal

quanto  os  limites territoriais  dos  estados  e das  entidades

autônomas locais

 - e que

  dominam enquanto tais

  a

 vontade

estatal,

  sem

 deixar

  de ser

 apenas formações sociais (não-es-

tatais)". Quanto  a  esses "complexos  de  forças sociais"  de-

vemos pensar primeiramente  no s  partidos políticos;  já o

fato

 que

  Schmitt caracteriza

  com a

 palavra pluralismo

  con-

siste sobretudo

  no

  estado

  de

  coisas definido

  até

  aqui como

Estado

  de

 partidos.  Como resulta  da conceituaçao,  é precon-

dição decisiva para  um a  estrutura política considerada plu-

ralista

  que

  haja

  u m a

  oposição real entre Estado

  e

  socieda-

de. O

 pluralismo consiste justamente

  no

  fato

  de que a von-

tade estatal é dominada p o r complexos caracterizados como

somente sociais,  expressamente  não-estatais.  Para  que se

possa realmente falar

 d e

  "pluralismo", portanto, deve exis-

t i r uma

  esfera

  de

  vida social livre

  do

  Estado

  de

  onde

  sur-

j a m , partindo  de diferentes pontos, influências sobre  a von-

tade estatal.  E m v e z disso, para Schmitt,  a "mudança para  o

Estado total" consiste

 em que

 desapareça

 o

 conflito entre

 E s-

tado

  e

  sociedade:

  A

  sociedade transformada

  em

  Estado

toma-se  um Estado de economia,  de cultura, assistencial, de

bem-estar, previdenciário;  o Estado transformado  em  auto-

organização

 da

 sociedade,

 e

 portanto

 não

 mais separável

 des-

ta ,

 abarca todo

 o

 social,

 o u

 seja, tudo

 o que diz

 respeito

 à con-

vivência dos seres humanos; im o existe naque\a mais nenhum

setor  a  respeito  d o  qual  o  Estado possa observar  u m a n e u -

tralidade incondicional,

 no

 sentido

 de um a

 não-intervenção".

Nessa "violenta mudança" para

  o

  "Estado total", nessa

  su-

peração  do  Estado liberal  -  não-intervencionista, limitado

apenas  a poucas funções sociais,  que deixava  à sociedade  o

máximo

  de

 espaço livre

 e

 constituía, assim,

  a

 real precondi-

çào da

 contraposição conceituai entre Estado

  e

  sociedade

Schmitt enxerga  o  sinal característico decisivo  do  moderno

"Estado legislativo", considerando também como  tal o Reich

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268

HANS KELSEN

alemão  d a  atualidade.  Que o conceito  de "Estado total",  tal

como  é  definido  até  aqui,  n ã o ofereça qualquer visão nova

da

  realidade sociológica,

  mas s im

 apenas

  u m a

 nova palavra

para

  o que a té

 agora

  se

 costumava denominar "objetivo

  es-

tatal expansivo",  e m contraposição  a "objetivo estatal limi-

tado";

  que o

  Estado total

  do

  século

  X X n ã o

  seja absoluta-

mente, como parece crer Schmitt,

  um

  fenômeno novo, pois

j á o Estado antigo  e do  mesmo modo  o  "Estado absoluto",

isto

 é , o

 Estado policial

 do

 século XVIII, eram "Estado total",

o

 qual, portanto,

  não

 está dialeticamente superado pelos

  an-

teriores;

 qu e j á o

 Estado liberal

  do

 século

 X I X ,

 assim, fosse

u m a  reação contra  u m  Estado total  -  tudo isso  não é de

grande importância.

  D ar

 novos nomes

  a

  fatos

 h á

  muito

  co-

nhecidos

  é

  hoje

  um

  método muito apreciado

  e

  difundido

pela literatura política. Mais notável ainda  é a  tentativa  de

descrever  a  situação real  da  Constituição  do Reich  alemão

com

 duas características

 que se

 excluem mutuamente. Como

é

 possível

  que

  esse estado

  de

 coisas seja,

 p o r

 assim dizer,

  o

ápice

 do

 pluralismo

 e ao

 mesmo tempo

 u m a

 "mudança para

o

 Estado total",

  se o

 pluralismo somente

 é

 possível

  na

 medi-

da em que a

 vontade estatal seja influenciada

 por um a

 esfe-

ra  social, não-estatal,  em  cuja supressão  e  estatização  c o n -

siste justamente a "mudança para o Estado total"? Essa contra-

dição, além disso, coloca Schmitt diante

 de

 dificuldades

 que

não são  irrelevantes.  A  respeito  dos  partidos políticos,

que

 existem também

  no

 Estado total, Schmitt

 diz: os

 parti-

dos, nos

  quais

  se

  organizam

  os

  diferentes interesses

  e ten-

dências sociais,  são a  própria sociedade transformada  e m

Estado d e partidos...". Um a vez que no Estado total não exis-

te

 mais

  u m a

 sociedade, Schmitt precisa tornar

  em

  Estado

  a

sociedade dentro  dos partidos, isto é, apresentar  os partidos

como formação estatal,  n ã o mais social.  C o m  isso, porém,

sua

 categoria

  do

 pluralismo torna-se inutilizável.

  E d e

 nada

serve

  que

 procure encobrir essa contradição, argumentando

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

269

por f im : A

  existência

  de uma

  multiplicidade

  de

  tais

  c o m -

plexos

  q u e

 concorrem entre

  si e se

 mantêm reciprocamente

dentro  de  certos limites,  ou  seja,  a existência  de um Estado

de partidos pluralista, impede  que o Estado total  se  imponha

enquanto  tal com o  mesmo ímpeto  que já  demonstrou  nos

assim-chamados Estados  de partido único, Rússia Soviética

e  Itália".  U m a v e z q u e ,  segundo  a  definição originária,  o

Estado pluralista

  se

  diferencia

  do

  Estado total justamente

pelo fato

 de que

 este absorve

 a

 esfera social, tampouco pode

dar

 resultado essa outra tentativa

 de se

  livrar

 da

 contradição:

C o m a pluralização, porém,  a mudança para  o Estado total

não é

 anulada,

  mas s im

  apenas,

  po r

  assim dizer, parcelada,

n a

  medida

  em que

  cada complexo organizado

  de

  forças

sociais - da associação coral  e do  clube esportivo  à autode-

fesa armada  —  procura tanto quanto possível concretizar  a

totalidade  em si e para  si .  Essa totalidade parcelada  é sim-

plesmente u m a contradictio

  in

 adjecto.

A  razão mais profunda  da  contradição está  em que

Schmitt,  com os  termos "pluralismo"  e  "Estado total",  une

dois pares de opostos que não têm nada  em  comum  - a opo-

sição entre Estado  e sociedade  e a oposição entre u m a  voli-

ção  autocrática-centralista  e  outra democrática-descentra-

lista - e em qu e nos conceitos de "pluralismo" e "Estado  to-

t a l

aparece

  em

 primeiro plano

  ora uma, ora

 outra

  das

 duas

oposições. O Estado total, enquanto Estado que absorve c o m -

pletamente  a  sociedade  e abraça todas  as funções sociais,  é

possível tanto  na forma de democracia - n a qual  o processo

da

 vontade estatal

 se dá na

 luta

 dos

 partidos políticos

 -

  como

na

 forma

 d e

 autocracia,

 n a

 qual

 a

 formação

 d e

 partidos polí-

ticos está excluída.

  O

  Estado "total" pode também

  ser um

"Estado  de  partidos pluralista" porque  um a  expansão  tão

arrojada

  do

  objetivo estatal ainda

  é

  compatível

  com uma

articulação bastante ampla  do  povo  em  partidos políticos.

D o  mesmo modo,  u m  Estado "total" entendido nesse senti-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

271

mesmo modo

  que a

  burguesia

  do

  início

  do

  século

  X I X e m

relação

  ao

  Estado policial "total"

  da

  monarquia absoluta.

U m a

  ideologia

  que

  afirma

 u m a

 unidade inexistente

 de

 Esta-

do e

  sociedade, pois

  a

 luta

  d e

  classes

  n ão

  ocorre como luta

entre órgãos estatais,

  mas s im

  como luta

  que uma

  parte

  da

sociedade

 — que não

  está

 no

 Estado porque

  não se

 identifica

com e le

  conduz contra outra parte

  d a

  sociedade

  que è o

Estado, porque

  e na

 medida

  em que seu

 ordenamento garan-

te os

 interesses dessa parte.

  C o m a

 "mudança para

  o

 Estado

total"

 o

 conflito entre Estado

 e

 sociedade teria perdido

 o seu

sentido. Porém,

  do

 ponto

  de

 vista

  do

  proletariado

  e de uma

teoria social proletária, esse conflito

 tem

 hoje exatamente

  o

mesmo significado

  q u e

  tinha outrora

  do

  ponto

  de

  vista

  da

burguesia

 e de um a

 doutrina burguesa

 do

 Estado

 e da

 socieda-

de,

  sendo

 p o r

  isso

  tã o

 atual

  e

 correto hoje como

  era

 então

11

.

Assim,

  os

  conceitos

  de

  pluralismo

  e

  Estado total

  não

podem resistir

  a u m a

  crítica sociológica.

  Seu

  significado

torna-se claro quando atentamos para

  a

  pronunciada acen-

11. Se —  como salienta Schmitt — a  essência  d o  "pluralismo" é  caracteri-

zada pelo "contraste  c o m u m a  plena  e  compacta unidade estatal"  e se  nesse

conceito

  —

  segundo

  sua

  definição modificada

  —

  reaparece

  o

  contraste entre

Estado  e  sociedade  (o s  partidos políticos  e m  luta entre  si  representando,  t a m -

b é m   como formações estatais,  u m  elemento pluralista), então  u m a  organiza-

ç ã o d o

 tipo Estado federativo

  s ó

  pode

  s e r

 considerada

  u m

  estilhaçamento

  p lu -

ralista  da  unidade  d o  Estado.  O  mesmo vale também para  o desm embramento

d o  Estado através  d e u m a  Constituição corporativa. Quanto  à  demanda pelo

regime econômico  d e u m  Estado  d e  corporações,  d e  sindicatos  ou de  conse-

lhos", Schmitt admite também  q u e s u a  concretização  n ã o  fortaleceria  a un i-

dade  d a  vontade estatal,  m a s  antes  a  ameaçaria;  o s  contrastes econômicos

e

  sociais

  n ã o

  seriam resolvidos

  e

  superados

  ma s s im s e

  colocariam mais aber-

t a e  violentamente, pois  o s  grupos  e m  luta  n ã o  estariam mais obrigados  a

seguir  a v ia  indireta  d a s  eleições gerais  e d a  representação popular". Isso,

porém, significa exatamente

  q u e o

  sistema corporativo

  é

  refutado como

  p l u -

ralista. Totalmente diferente,  n o  entanto,  é o  posicionamento  e m  relação  a o

Estado federativo. Aqui Schmitt admite somente

  a

 "possibilidade"

  d e q u e p lu -

ral ismo

  e

  federal ismo

  -

  sendo

  q u e

  este, segundo

  a

  definição modificada

d e  pluralismo, pode  se r na  verdade somente  u m  caso especial  d o  último  e

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272

HANS KELSEN

tuação valorativa  com que  surgem. Pluralismo:  um  estado

d e coisas em q ue a sociedade reprime o Estado, em que ten-

dências hostis ameaçam

  o

  Estado

  em sua

  existência,

  por o

ameaçarem

  em sua

  unidade; pluralismo significa

  o po -

der de  diversas grandezas sociais sobre  a vontade estatal,

"dissolução

  do

  conceito

  de

  Estado", "divisão

  d o

  Estado",

"estilhaçamento  d a unidade d o Estado e d a Constituição". A

"mudança para

 o

 Estado total"

 é

 evolução

 em

 direção oposta;

é a  vitória  do  Estado sobre  a  sociedade hostil,  é a  situação

da

 assegurada unidade

  do

 Estado. Contra

  as

 forças pluralis-

tas

 hostis

  ao

 Estado,

 que lhe

 ameaçam

  a

 unidade, buscam-se

"remédios"  e  lança-se  a  questão  de se  "seria legítimo (...),

eventualmente invocando-se  o princípio cooperativo genui-

namente alemão, impulsionar ainda mais essa evolução para

o

  pluralismo".

  E

  Schmitt responde negativamente

  a

  essa

questão

  d a

  forma mais decidida.

  Seu

 juízo

  de

 valor torna-se

d e

  todo evidente quando afirma

  que o

  sistema pluralista,

com

 seus contínuos acordos

  de

 partidos

 e de

  facções, trans-

forma

 o

 Estado numa justaposição

 de

 compromissos através

d os  quais  os partidos  que  participam  a  cada  vez do  acordo

de

 coalizão dividem entre

  si

 todos

  os

 cargos, rendimentos

  e

vantagens segundo a lei das quotas e ainda, porventura, c o n -

ademais  u m  caso especialmente perigoso  - s e  aliem". Todavia,  e l e f az  essa

possibilidade recuar totalmente

  e

 toma

  o

 federalismo,

  n ã o

  obstante,

  u m c o n -

trapeso ainda particularmente forte contra  a s atuais formações pluralistas  d e

poder  e o s  métodos  d e su a  política partidária". Noutro contexto  é  feita refe-

rência  a o  fato  de qu e a  Constituição  se  firma  n o  caráter estatal  d o s  estados"

q u e o

  federalismo pode

  se r u m

  reservatório

  d e

  forças estatais".

  N ã o

  causa

surpresa, portanto,

  q u e o

  federalismo seja justificado precisamente como

"antídoto contra

  o s

  métodos"de

  u m

 pluralismo político-partidário". Aqui,

  d e

novo, "pluralismo"

  é

 algo totalment e diferente;

 p o r

 outro lado, essa justifica-

ç ã o d o

  federalismo simplesmente ignora

  q u e a u m a

  multiplicação

  d o

  sistema

parlamentar, como  a q u e a Constituição federal traz consigo, está ligada  u m a

multiplicação daquele "pluralismo",

  a o

  qual, portanto, qualquer coisa pode

servir

  d e

 contrapeso, menos

  o

  federalismo

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

273

sideram como justiça

  a

  paridade observada nessa ativida-

de . Sim, no f im das

  contas,

 o

 pluralismo

 é até

 mesmo decla-

rado "inconstitucional". Assim,

  a

  categoria

  do

  pluralismo

pode servir para  pôr de  lado aquela solução  do problema  da

garantia

  da

 Constituição

  que

 consiste

  na

  introdução

  de uma

jurisdição constitucional;

  e o

 "Estado total" serve para

  fun-

damentar

  a

  solução

  que se

  assegura como

  a

  justa porque

garante

  a

 unidade

  do

 Estado, ameaçada

  ou

 mesmo eliminada

pelo antagonismo especificamente pluralista entre Estado

  e

sociedade.

IX . Schmitt  vê o caráter pluralista  da jurisdição consti-

tucional  em que ela  ocorre como  um  processo,  no  qual  se

fazem valer "direitos subjetivos" jun to  à Constituição  ou ao

poder estatal. Interpretar isso como "dissolução  do  concei-

to de  Estado"  é de  fato totalmente infundado.  Se a  Consti-

tuição  de um  Estado federativo habilita tanto a União como

os  estados  a impugnar, diante  de um  tribunal constitucional

central, leis estaduais  ou federais contrárias às normas sobre

competência,  se dá poderes  aos tribunais ou a outras autori-

dades

  de

  sublinhar

  a

  inconstitucionalidade

  de

  normas

  que

devem aplicar,

 ou

 mesmo

  se

  lhes

  d á

 direito

  a uma  actio  po-

pularis  a f im de

 eliminar radicalmente atos inconstitucionais,

não se

  criam

  c o m

  isso "direitos subjetivos", como direitos

com

  tendência hostil

 a o

 Estado, porque hostil

 ao

 direito obje-

tivo,

 mas s im no

 sentido jusnaturalista

 de

 direitos inatos,

  in-

dependentes

  do

 ordenamento objetivo

 do

 Estado

  e do

  direi-

to, a ser  respeitados  po r  esse ordenamento,  que não  sejam

atribuídos

  e

 portanto

  n ã o

  sejam

  por e le

  suprimíveis.

  O d i -

reito subjetivo",

  que não

 consiste

  e m

  outra coisa

  que na le-

gitimação processual,

  na

 possibilidade

  de

  introduzir junto

  a

u m a

  autoridade central

  u m

 processo cujo escopo

  é a

  elimi-

nação de um ato  inconstitucional, a remoção d e u m a  injusti-

ça, tal direito subjetivo não é outra coisa  que um  expediente

técnico para  a garantia  da ordem estatal, sendo assim justa-

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274

HANS KELSEN

mente  o  oposto  do que se poderia denominar  a "dissolução

pluralista  do Estado". D o mesmo modo, poder-se-ia falar d e

um  "estilhaçamento pluralista" da unidade  do Estado a pro-

pósito

 d a

 promotoria pública

 e d a

 magistratura, pois

 n o

 proces-

so penal  o Estado  se divide  em  acusador  e juiz.

A

 "mudança para

  o

 Estado total" influi sobre

  a

 jurisdi-

ção

 constitucional antes

 de

  tudo

 na

 medida

  em que sua bus-

ca é  interpretada como tentativa de conter aquela mudança e,

assim,

 o

 processo

 de

 fortalecimento

 e

 consolidação

 do

 Estado,

sua

 vitória sobre

 a

  sociedade.

  N ão é de

 admirar

 que a

 defe-

sa contra um a tal expansão d o Estado" -  leia-se a "mudança

para  o  Estado  de economia",  que  representa  a fase decisiva

na

 mudança para

  o

 Estado total

 —

 "surge antes

 de

 tudo como

defesa contra aquela atividade estatal  que num  momento

como este determina justamente  a natureza  do Estado,  por-

tanto como defesa contra  o  Estado legislativo.  P or  isso  são

reclamadas e m primeiro lugar garantias contra  o  legislador.

Assim

  se

  explicarão

  as

  primeiras

  e

  pouco claras tentativas

reparadoras

  [...] que se

 aferraram

 à

 jurisdição

 a f im de

 obter

um contrapeso para  o cada  vez mais poderoso  e abrangente

legislador. Tinham necessariamente

 q u e

  terminar

  em

 vazios

formalismos

 [...] Se u

 verdadeiro erro estava

  em que

 somen-

te poderiam contrapor ao poder do moderno legislador uma

jurisdição

  que ou

  estivesse vinculada

  p o r

  normas precisas

emitidas

 p o r

  esse mesmo legislador

  ou só

  pudesse opor-lhe

princípios indeterminados  e  controversos, cujo auxílio  não

serviria para criar  u m a  autoridade superior  ao  legislador".

M as

  quem neste mundo

 j á

  esperou

  de um

  tribunal consti-

tucional

  que ele se

 oponha

  ao

 alargamento

  da

 competência

legislativa? Então

  a

  expansão

  d o

  legislativo

  só se

  pode

realizar através  d e  quebras  da  Constituição? Dificilmente

seria possível

 u m a

  interpretação mais equivocada

  da

 juris-

dição constitucional. E quando Schmitt prossegue: "Numa

situação assim modificada e diante  de tal  alargamento  dos

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

275

deveres

 e

 problemas estatais, talvez

 o

 remédio possa

 ser

 dado

pelo governo, porém decerto  que nào  pelo judiciário",  pre-

parando assim  sua exigência  de que não um  tribunal,  mas o

governo, seja feito guardião

 da

 Constituição,

  é

 precisamente

nesse contexto

 que não se

 pode fechar

 o s

 olhos para

 o

 fato

 de

que a expansão legislativa também  se dá , em medida consi-

derável, através  do poder  de decreto  do governo, particular-

mente quando,

  com

  base numa interpretação

  do art. 48-2 -

apoiada

  co m

 entusiasmo justamente

  p o r

  Schmitt

 - , o

 poder

de decreto  do governo toma  o  lugar  d o poder legislativo  do

Parlamento. D e resto, u m tribunal constitucional é instrumen-

to

  totalmente inútil para impedir

  a

  mudança para

  o

  Estado

total.

 Nã o se

 pode,

  n o

  entanto, desacreditar

  u m a

  instituição

partindo-se  de um  objetivo  que lhe é completamente estra-

nho, e  afirmando depois  que e la não  está  em  condições  d e

alcançá-lo.

U m

  efeito

 da

 doutrina

  do

 "Estado total"

 que não é

  irre-

levante consiste  n a  diminuição  do  valor  de um  argumento

capital

  a

 favor

 de se

 confiar

 o

 controle

 a u m a

 corte indepen-

dente, e nã o ao governo.  Um a vez que a Constituição divide

o

  poder essencialmente entre dois pólos, Parlamento

  e go-

verno (onde

 p o r

  "governo" deve-se entender especialmente

o  órgão composto pelo chefe  de  Estado  e o s ministros  que

assinam seus atos),

 j á

  apenas

  p o r

  isso deve existir necessa-

riamente

  u m

  antagonismo contínuo entre Parlamento

  e go-

verno.  E o perigo  d e u m a violação constitucional deve nas -

cer

 sobretudo

  d a

 possibilidade

  de um dos

 dois pólos ultra-

passar  o s limites  que a Constituição  lhe designou.  Uma vez

que

 justamente

 nos

 casos mais importantes

 de

 violação cons-

titucional Parlamento  e  governo  são  partes litigantes,  é re-

comendável convocar para  a  decisão  da  controvérsia  uma

terceira instância

  q u e

  esteja fora desse antagonismo

  e que

não

 participe

 d o

 exercício

 do

 poder

 que a

 Constituição divi-

d e  essencialmente entre Parlamento  e  governo.  Q u e  essa

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276 HANS KELSEN

mesma instância tenha,  com  isso,  u m  certo poder,  é  inevitá-

vel.  Porém  há uma  diferença gigantesca entre,  de um  lado,

conceder

  a u m

  órgão apenas esse poder

  que

  deriva

  da fun-

ção de

 controle constitucional

  e, de

 outro, tornar ainda mais

fortes  os  dois principais detentores  do  poder, confiando-

Ihes ademais

  o

  controle

  da

  Constituição.

  A

  vantagem

  f u n -

damental

  de um

  tribunal constitucional permanece sendo

que , desde o princípio, este n ã o participa do exercício do po -

der, e não se  coloca antagonicamente  em  relação  ao  Parla-

mento

  ou ao

 governo. Segundo

  a

 doutrina

  do

 "Estado total",

porém,

  n ão

 existe antagonismo entre Parlamento

 e

 governo.

Donde deriva — sem que ta l precise  ser dito expressamente,

e

 Schmitt

  de

 fato

 não o faz - que

 quando

 o

 governo, isto

 é, o

chefe  de  Estado  em  conjunto  com os  ministros, atua como

guardião  d a Constituição para defendê-la  de leis inconstitu-

cionais,  o controle constitucional  não está sendo entregue  a

nenhuma instância

  que

 possa

 ser

 considerada parte litigante.

A

 eliminação

 d o

 antagonismo entre governo

 e

 Parlamen-

to, decisiva para  a solução do problema da  garantia  da Cons-

tituição, resulta  do fato de Schmitt interpretá-lo apenas como

um a

  conseqüência

  ou

  variante

  do

  dualismo

  de

 Estado

  e so-

ciedade,  que  desaparece  com a mudança para  o  "Estado  to-

tal .  "Todas  as  instituições  e  normatizações importantes  d o

direito público

 que se

 desenvolveram

 ao

 longo

 do

 século

 XIX

na

 Alemanha

  e

 constituem grande parte

 de

 nosso direito

 pú -

blico

 t êm por

 base aquela distinção (entre Estado

 e

 sociedade).

O

  fato

  de que o

  Estado

  d a

 monarquia constitucional alemã,

com

 suas contraposições

 de

 príncipe

 e

 povo, Coroa

 e

 Câma-

ra, governo e representação popular, tenha sido de modo ge-

ral  construído dualisticamente,  é  apenas expressão  do dua -

lismo geral

  e

  fundamental

 de

  Estado

  e

  sociedade.

  A

  repre-

sentação popular, o Parlamento, a corporação legislativa foram

concebidos como o palco em que a sociedade entrava em ce-

na e

 atuava como antagonista

  do

  Estado". "Esse Estado

  que

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

277

no

 sentido liberal, não-intervencionista,

 era

 fundamentalmen-

te

 neutro

  em

  relação

  à

 sociedade

  e à

 economia,

  (...)

 modifi-

cou-se radicalmente,  na mesma medida em que aquela cons-

trução dualística  de  Estado  e  sociedade, governo  e  povo,

perdeu  sua tensão,  e o Estado legislativo  se  consumou. Pois

agora  o Estado  vai se  tornando  de fato auto-organização  da

sociedade. C o m isso ca i , como mencionamos, a até aqui  sem-

pre pressuposta distinção entre Estado  e sociedade, governo

e povo,  de modo  que  todos  os conceitos e instituições cons-

truídos sobre  tal  pressuposto  (lei,  orçamento, autonomia

administrativa) tornam-se novos problemas". N o Estado total

que  abarca todo  o social, particularmente,  é  impossível  tam-

b é m haver qualquer antagonismo entre governo e Parlamento,

pois  ta l antagonismo deve desaparecer junto  com  aquele  que

existe entre Estado e sociedade. Porém Schmitt não apresenta

essa conclusão expressamente, afirmando apenas

  expressis

verbis  que com a

 mudança para

 o

 Estado total deixa

 de

 existir

a

 distinção entre Estado

 e

  sociedade

 e ,

 portanto, entre "gover-

no e povo". A o caracterizar o Estado total, ele não fala do dua-

lismo entre governo

 e

 Parlamento,

 o

 qual

 na

 análise

 da

 monar-

quia constitucional

  do

  século

  X I X é

  apresentado como mera

variante

  do

 antagonismo entre Estado

  e

  sociedade.

  E le

  deixa

ao leitor  a tarefa de prosseguir  com o pensamento nessa dire-

ção; diz no  entanto  c o m suficiente clareza: "Todas  as  contra-

posições  até  aqui usuais, ligadas  ao  pressuposto  do  Estado

neutro, que surgem a partir  da distinção entre Estado e  socie-

dade  e são apenas casos  de  aplicação  e  transcrição dessa  dis-

tinção, deixam  de  existir. Separações antitéticas tais como:

Estado  e economia, Estado e cultura  (...) política e direito  (...)

perdem  seu sentido e  tornam-se vazias".  A essas "separações

antitéticas", porém, segundo suas observações anteriores, per-

tence também  a oposição entre governo e Parlamento.

Não é preciso  te r  especial perspicácia para demonstrar

que o antagonismo entre governo  e Parlamento desapareceu

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278

HANS KELSEN

tão

  pouco

  no

  Estado contemporâneo quanto aquele entre

Estado  e  sociedade,  com o qual  não é , em absoluto, idênti-

co. Ele não

  perdeu

  seu

  sentido, apenas

  se

  modificou. Nele

se

 expressam

  n ã o

 mais

  o

 antagonismo entre

  as

 camadas

 p o -

pulares representadas

  n a

  maioria parlamentar

  e os

  grupos

d e

  interesse

  q u e

  impregnam

  o

 monarca

  e seu

  governo,

  m a s

sim o  antagonismo  que  existe entre  a  minoria  e a  maioria

parlamentar, tendo esta n o governo o seu fiduciário. Esse não

é  porém  o  único sentido  que um  antagonismo entre Parla-

mento

  e

 governo pode

  ter

 modernamente.

  E le

 pode assumir

outro sentido quando estiver

 no

 cargo

 u m

 governo minoritá-

r io ou u m chefe de Estado eleito apenas p o r u m a minoria d o

povo, e especialmente quando u m governo, n ão tendo p o r trás

de s i um a

 maioria parlamento, governar inconstitucionalmen-

te sem

 Parlamento. Numa época

  em que o

 governo

 do

 Reich

se vê  obrigado  a  ameaçar  c o m a  própria demissão caso  o

Parlamento  ou apenas u m a comissão deste  se reúna, corres-

pondendo

  a o

 desejo

  da

 maioria parlamentar, torna-se difícil

aceitar

  as

 últimas conseqüências

  da

 doutrina

  do

 "Estado

  to -

ta l e admitir  q u e  "Parlamento  e governo" seja  u m a  "sepa-

ração antitética" que  tenha perdido  seu sentido  e se tornado

vazia

  c o m a

 mudança para

  o

 Estado legislativo.

X. Os

  caminhos

  q u e

  levam

  do

  "Estado total"

  ao

  chefe

d e

 Estado como "guardião

  da

 Constituição"

  não são, de res-

to , fáceis de encontrar, mesmo para  u m leitor bastante aten-

to .

  Parece

  que a

  real unidade

  do

  "Estado total" funciona

como  u m a  espécie  de alicerce sociológico para outra unida-

de ,

 qual seja,

 a que o

 preâmbulo

 da

 Constituição

 de

 Weimar

pressupõe  e que — caso seja algo mais  que a unidade jurídi-

ca da população  d o Estado,  que  toda Constituição estabele-

ce - é apenas  u m a  outra expressão  da  mesma ideologia.  A

Constituição do

 Reich

  em vigor firma-se n o conceito demo-

crático

  da

  homogênea, indivisível unidade

  d e

  todo

  o

 povo

alemão,

  o

 qual

 p o r

  força

  de seu

 próprio poder constituinte

 e

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL 279

mediante  u m a  decisão política positiva, portanto mediante

ato  unilateral,  deu a si  mesmo essa Constituição. Desse

modo, todas  as  interpretações  e aplicações  da  Constituição

de  Weimar  q u e  procuram fazer dela  u m  tratado,  u m  acor-

do ou coisa similar, são solenemente repelidas como contrá-

rias  ao seu  espírito".  A  conexão intrínseca  -  em  nenhum

momento afirmada diretamente

  p o r

  Schmitt

  - que

  existe

entre

  a

 construção

  d o

  "Estado total"

  e a

  '^unidade homogê-

nea ,

  indivisível

  de

 todo

  o

 povo alemão", torna-se clara pelo

fato

  de que o

  "pluralismo" opõe-se

  a

  essa unidade exata-

mente  do  mesmo modo  que à  outra unidade representada

pelo "Estado total".

  O

  pluralismo

  é

  caracterizado expressa-

mente pela "oposição

 a uma

 plena

  e

 compacta unidade esta-

tal . E assim como  o pluralismo estorva  o "ímpeto" do Esta-

do total através da oposição que nele  se expressa entre Estado

e sociedade, "parcelando" a totalidade, o "elemento pluralis-

ta que aparece  na realidade de nossa situação constitucional

atual" ameaça essa "unidade homogênea, indivisível",  n a

qual  se firma" a Constituição de Weimar. É principalmente

sobre essa unidade

  q ue

  Schmitt fundamenta

 sua

  interpreta-

ção da

 referida Constituição. Essa unidade

  não é

 meramente

u m

  postulado ético-político,

  tal

  como costumam apregoar

os

 preâmbulos constitucionais,

  mas s im uma

  realidade

  so -

cial,

  se é

 verdadeiro

  que o

 antagonismo pluralista

  de

 Estado

e sociedade  que ameaça  tal unidade está,  co m efeito, elimi-

nado,  e que o  "Estado total" q u e  elimina  tal  antagonismo  é

um a  realidade.  D e  fato,  a  realidade  é  descrita como deca-

dente  em  meio  a u m a  desagregação "pluralista",  o que, no

entanto, n ão  impede  que os "interessados nesse pluralismo"

(ou os  teóricos  que o  favorecem?) sejam censurados  por

"encobrir  a  realidade  com  auxílio  de um  assim chamado

formalismo".

Essa "unidade homogênea, indivisível,  de  todo  o povo

alemão", invocada pelo preâmbulo constitucional,

  é o

 prin-

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280

HANS KELSEN

cipal suporte

  da

  tese

  do

  presidente

  do  Reich

  como guar-

dião  d a Constituição. Pois  do fato de que a Constituição  de

Weimar

  é uma

 decisão política

  do

 povo alemão unitário

  en-

quanto detentor d o poder constituinte" -  sendo que em verda-

de

  essa Constituição

  é a

  resolução

  de um

  Parlamento cuja

identidade

 com o

 "povo alemão unitário"

 só

 pode

  ser

 afirma-

da

 mediante

 a

 ficção

 d a

 representação Schmitt conclui

 que

o problema do guardião da Constituição requer u m a solução

diferente  da que  pode  ser  oferecida  por uma  fictícia forma

judiciária".  O u  seja:  a  solução  é que o  presidente  do  Reich

seja

  o

  guardião

  da

 Constituição, pois

  ele,

  eleito

  por

  todo

  o

povo, está destinado a "defender a unidade d o povo como  um

todo político", atuando como "contrapeso para

  o

 pluralismo

de

 grupos

  de

 poder sociais

  e

  econômicos", tendo também

  a

possibilidade, pela indução

 do

 referendo popular,

  de se

 ligar

diretamente

  a

  essa vontade geral

  d o

  povo alemão,

  de

  atuar

como guardião

 e

 defensor

 da

 unidade

 e

 integridade constitu-

cional

 do

 povo alemão. Mais tarde voltaremos

 a

 tratar

 d o

 fato

de qu e o presidente do Reich  é definido aqui como "guardião

da Constituição" num  sentido que nunca poderá  ser aplicado

a um tribunal constitucional,  e dentro  do qual este nunca  foi

afirmado  por ninguém,  de modo  que contrapor  o presidente

do

 Reich

  a u m

  tribunal constitucional

  faz tão

 pouco sentido

quanto afirmar

  que o

  exército,

  por ser a

  melhor defesa

  do

Estado, torna desnecessários

  os

  hospitais. Bastará aqui afir-

marmos

  que se a

 Constituição institui

  u m

  tribunal constitu-

cional, isto  não é uma "fictícia forma judiciária",  mas s im a

criação  de uma  instituição real;  e que, se  algo aqui pode  ser

qualificado  de  "fictício"  é  justamente  a tal  "unidade  do

povo",  a  qual Schmitt  -  pretensamente imitando  a  Consti-

tuição -pressupõe como real,

  e ao

 mesmo tempo declara

 eli-

minada pelo sistema pluralista concretamente existente

  com

o

 intuito

 d e

 apresentar

 o

 chefe

 d e

 Estado como remédio

  con-

tra

 essa situação

 e

 como restaurador

 da

 referida unidade.

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

281

Representar

  a

 unidade

  d o

  Estado

  de um

  modo visível

exteriormente

 é sem

 dúvida

 a

  função

 que o

 chefe

 de

 Estado,

segundo todas  as Constituições  que  instituem  u m  órgão  tal,

deve cumprir. Certamente, como  d iz  Schmitt,  a posição do

chefe de Estado está intimamente ligada  à representação  da

unidade política  na sua  inteireza. Isso porém  -  numa  c o m -

preensão realista, livre  de  qualquer ideologia  -  significa

apenas  q u e  pertence  à  função  do  chefe  de  Estado expres-

sar  simbolicamente  a  demanda irrenunciável  por uma un i -

dade material, mais  q u e  formal  do  Estado. Podemos  até

mesmo ver aí a função principal desse órgão que as diferen-

t e s

  Constituições chamam

  d e

  chefe

  de

  Estado. Essa

  f u n -

ç ã o

  consiste

  não

  tanto

  nas

  competências materiais

  que são

atribuídas

  a

  esse órgão,

  q u e

  deve exercê-las

  e m

  conjunto

com os

 ministros, como parte não-independente

  de um

  órgão

composto

  (que não é

  absolutamente

  o

  órgão supremo,

  mas

apenas

  um ao

  lado

  de

  outros órgãos supremos

  do

  Estado),

quanto

  na sua

  denominação como

  chefe  do

  Estado,

  impe-

rador,

  rei,

 presidente,

  e nos privilégios honoríficos  que lhe

são atribuídos. A  importância política dessa função não de -

ve de maneira nenhuma  ser  subestimada. Contudo, signifi-

ca  tomar ideologia  p o r  realidade quando  se vê -  como  faz

Schmitt  com  relação  à  doutrina  da  monarquia constitucio-

nal - na  instituição  do chefe de  Estado  n ã o  simplesmente  o

símbolo  de uma  unidade  d o  Estado postulada  n o  plano

ético-político,  mas s im o  produto  ou o  produtor  de uma

dada unidade real, n o sentido de uma efetiva solidariedade de

interesses. Pois esse

  é, de

  fato,

 o

  verdadeiro sentido

  da dou-

trina

  do pouvoir neutre  do

  monarca,

  qu e

  Schmitt transfere

para

 o

 chefe

 de

 Estado republicano: mascarar

 o

 efetivo, radi-

cal  contraste  de  interesses  que se  expressa  na  realidade  dos

partidos políticos,

  e

  mais importante ainda,

  na

  realidade

  do

conflito

 de

 classes

  q u e

 está

 po r

 trás destes.

 E m

 termos pseu-

dodemocráticos,

  a

 fórmula dessa ficção seria algo assim:

  o

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284

HANS KELSES

ros

  detentores

  do

  poder político podem facilmente obter

  a

influência necessária sobre  o  preenchimento  dos  postos  de

juízes  e a nomeação  dos peritos.  Se o conseguem, a  resolu-

ção em

  forma judiciária

  ou

  técnica

  das

  controvérsias

  tor-

na-se  um  cômodo instrumento político,  e  isso  é o oposto  do

que na

 verdade

  se

 objetivava

  c om a

 neutralização".

  Ora, os

juízes  são, via de  regra, nomeados pelo chefe  de  Estado;

não é

 este

  o

 "verdadeiro" detentor

  do

 poder político?

  E se

apenas  o s partidos políticos  o são, então  a ausência  de neu-

tralidade

  dos

 juízes

  n ão

  pressupõe

  a

 ausência

  de

  neutrali-

dade  da  instância  que o nomeia?  D o ponto  de vista práti-

c o ,

  opina Schmitt,

  é

  sempre

 u m

  inibidor notável

  dos mé-

todos político-partidários de preenchimento de cargos quan-

do não é o

 companheiro

 de

 partido transformado

 e m

 ministro

aquele  q u e  nomeia  os  funcionários,  mas s im um  chefe  de

Estado independente do Parlamento, ou seja, de um partido".

Onde, porém, está

 a

 garantia

 de que um

 "companheiro

 de par-

tido"  nã o  seja eleito chefe  de  Estado,  e  desde quando  o s

partidos políticos  não têm a possibilidade, também fora  do

Parlamento, de tornar dependentes os órgãos eleitos p o r eles

ou com sua

  ajuda?

  Se a

  neutralidade garantida através

  da

"independência" é a precondição essencial para  a  função d e

guardião

  d a

  Constituição, então

  o

 chefe

 de

 Estado

  não pos -

sui nenhuma vantagem — pelo menos — em relação  a um tri-

bunal independente,

  e

  isso deixando-se totalmente

  de

  lado

um fator que , embora n ão deva ser superestimado, pode muito

bem

  fundamentar

  u m a

  certa superioridade

  do

  tribunal:

  o

fato de qu e o juiz  é  impelido  à neutralidade já p or sua  ética

profissional.

Como Schmitt n ão pode provar que o chefe d e Estado é

e m

 maior medida independente

 e

 neutro

  do que o

 judiciário

e o  funcionalismo público, declara finalmente: "Tanto  o j u -

diciário como

 o

 funcionalismo

 de

 carreira

  são

 sobrecarrega-

dos de um   modo insustentável quando  se  acumulam sobre

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

285

eles todas

  as

  tarefas

  e

  decisões políticas para

  as

  quais

  se

deseja independência

  e

  neutralidade partidária". Essa

  m u-

dança

  da

 qualidade para

  a

 quantidade, porém,

  é

  totalmente

inadmissível  e não  prova absolutamente nada.  N ã o s e p o -

de comparar todo  o judiciário  a u m camelo q ue desabará  n o

chão  se lhe pusermos  em  cima  o  fardo adicional  da jurisdi-

ção constitucional.  Nã o é a jurisdição enquanto  tal que está

em questão,  mas s im um único tribunal; as tarefas deste não

sobrecarregam  a "jurisdição",  a qual  não existe como quan-

tidade,

  é uma

  abstração,

  e

  enquanto

  tal não

  pode

  ser so-

brecarregada,

  mas s im

  somente aquele tribunal concreto,

  o

qual Schmitt,

 n o

 entanto, provou anteriormente

 nã o ser um a

autoridade judiciária .

  E

  trata-se somente

  de

  saber quem

  é

mais independente

  e

 neutro: esse tribunal

  ou o

  chefe

  de Es-

tado. Através

  da

  imagem distorcida

  de uma

  sobrecarga

  da

jurisdição, Schmitt procura inutilmente esquivar-se

 de

 admi-

t ir que não

  conseguiu comprovar

  sua

  tese

  do

  "chefe

  de Es-

tado como guardião  da  Constituição"  com o  argumento  d e

que ele estaria mais apto  a protegê-la  po r possuir  e m maior

medida  que o tribunal  a qualidade  da  independência  e, por-

tanto,  da  neutralidade. Antes,  a  própria fórmula  com que

Schmitt define a essência  da "neutralidade",  que seria pres-

suposto para

  a

 tarefa

 de

 guardião

 da

 Constituição, adapta-se

justamente

  a u m

  tribunal constitucional, militando direta-

mente contra

  o

  chefe

  de

  Estado.

  Diz e le que nu m

  Estado

de

  direito

  c om

  poderes separados,

  não é

 lógico confiar

 ad i -

cionalmente essa função  (a de  guardião  da  Constituição)  a

um dos

 poderes existentes, pois

 em tal

 caso esse poder ganha-

ria

  preponderância sobre

  os

  outros

  e

  poderia,

  ele

  mesmo,

esquivar-se

 do

 controle, tomando-se assim

 o

 senhor

  da

 Cons-

tituição.

  É

  preciso, portanto, introduzir

  u m

  poder neutro

especial ao lado dos outros poderes, combinando-o e equili-

brando-o com estes através d e atribuições específicas". Ora ,

então  o chefe  de Estado  não é um dos  "poderes existentes",

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286

HANSKELSEN

sobretudo numa Constituição

 q ue

 combina

  o

 elemento parla-

mentar  c o m o  plebiscitário  e que  divide  o  poder político

entre Parlamento

  e

 presidente

  do

  Reich

  (em

  conjunto

  com

os

  ministros)?

  E

 justo

  do

 ponto

  d e

  vista

  d e u ma

  interpreta-

ção da

  Constituição

  que se

  dedica,

  com

  todos

  os

  meios,

  a

deslocar

 o

 centro

  de

 gravidade

  do

 poder

 na

 direção

 do

 chefe

de  Estado D e  quem podemos dizer  que se  coloca como

poder especial neutro  a o  lado  dos outros poderes":  um tr i-

bunal destinado  a nada mais  que exercer u m controle consti-

tucional

  o u o

 chefe

 de

 Estado?

  É

 desse tribunal

  ou do

 chefe

d e

 Estado

  que

 devemos dizer

  que - se

 chamado

  a

 exercer

 a

função

  d e

  guardião

  da

  Constituição

  -

  recebe essa função

"adicionalmente", adquirindo destarte  u m a  "preponderân-

c i a sobre  o s outros poderes instituídos pela Constituição,

na

  medida

  e m q u e

 assim "poderia,

  e le

 mesmo, esquivar-se

do controle"? N e m mesmo a ideologia d e Benjamin Constant

do

 pouvoir neutre

  d o  monarca poderia obscurecer tanto

essa interrogação  a ponto  d e  tornar  a  resposta seriamente

duvidosa.

XI . Que o

  chefe

  de

  Estado,

  n o

  âmbito

  d e u ma

  Cons-

tituição

  d o

  tipo

  da de

 Weimar,

  n ã o

  seja exatamente

  o

 órgão

mais indicado para  a  função d e controle constitucional;  que

particularmente quanto

  à

  independência

  e

 neutralidade,

  ele

n ã o

 possua qualquer vantagem diante

 de um

 tribunal consti-

tucional,

  é

 antes confirmado

  do que

 desmentido pelo escri-

to de

 Schmitt. Porém Schmitt

  n ã o

 apenas afirma

 que o che-

fe de Estado  é o órgão mais apto  a ser o guardião  da  Cons-

tituição,

  m a s

  também

  que,

  segundo

  a

 Constituição vigente,

o

 guardião

  é o

 presidente

  do

 Reich

  e

  apenas

  ele.

  Ninguém

negará  que ele  também  o é, que  funciona como garante  da

Constituição ao lado  do Tribunal Federal instituído pelo art.

19, ou da

  outra corte aqui mencionada

  e a o

  lado

  d os

  tribu-

nais civis, criminais

  e

 administrativos

  q u e

  exercem

  um di-

reito

  de

  controle material sobre

  as

  leis,

  na

  medida

  em que

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288

HANSKELSEN

parte  das instituições  de proteção  da  Constituição  e que seria

um a  sumária superficialidade esquecer,  em  função d o presi-

dente

 do

 Reich

 atuando como garante

 da

 Constituição,

 os es-

treitíssimos limites desse tipo

  de

  garantia

 e as

 muitas outras

espécies

 e

 métodos

  de

 garantia constitucional

A

  tese

  de que

  apenas

  o

  presidente

  do  Reich  é o

  guar-

dião  da Constituição somente pode alcançar aparente justi-

ficação

 na

 medida

 e m que

 seja dado

 a

 esse conceito

 de

 "guar-

dião

  da

 Constituição"

  -

  isto

  é, de

  órgão

  que

  deve assegurar

a

  constitucionalidade

  de

  certos atos

  de

  Estado,

  ao

  mesmo

tempo reagindo contra violações constitucionais

  — um s ig-

nificado

  q ue

  jamais tenha tido

  ou

  possa

  te r

  ligação

  com a

expressão,

  se é que o

  presidente

  do Reich

  deve

  ser

  contra-

posto como guardião

  da

 Constituição

  a um

  tribunal consti-

tucional

  e se é que

 Schmitt pode dizer: "Antes portanto

  que

se  possa instituir, para questões  e  conflitos eminentemente

políticos,  u m a  corte como guardiã  da  Constituição, sobre-

carregando e ameaçando a jurisdição  com tal politização, se

deveria primeiro recordar

 o

 conteúdo positivo

 da

 Constituição

de Weimar e seu sistema d e legislação constitucional. Segun-

do o seu conteúdo atual, existe já um guardião da Constitui-

ção ,  qual seja,  o presidente  d o  Reich .  Chama inevitavel-

mente  a atenção  o  fato  de que  Schmitt, entre  as  atribuições

do presidente  do Reich  em que  deve manifestar-se  sua fun -

ção  como guardião  da Constituição, enumera também aque-

las que n ão têm

 absolutamente nada

 a ver com um a

 garantia

da Constituição. Schmitt, de fato, enxerga a função d e guar-

dião  d a  Constituição  n o exercício  de quase todas  as  atribui-

ções

  que a

  Constituição concede

  ao

  presidente

  do Reich.  É

assim  com a competência prevista pelos arts. 45 ss. , isto é, a

representação n o exterior,  a declaração de guerra,  a conclu-

são da paz, a nomeação  de  funcionários, o comando supre-

m o d a s  Forças Armadas,  etc.; a  dissolução  do  Reichstag

prevista

  no art. 43; a

  convocação

  de

  plebiscito popular

  se-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

289

gundo

  o art. 73; e,

 especialmente, tudo

  que o

 chefe

 de

 Esta-

do (em

 conjunto

 c o m o s

 ministros)

  é

 autorizado

 a

 fazer pelo

art . 48 - e não apenas pela  su a  cláusula  1?. Se o presidente

do  Reich  "protege"  a  Constituição  ao  exercer todas essas

funções

 que ela lhe

 confia, então "guardião

 da

 Constituição"

não

  significa senão "executor

  da

  Constituição". Nesse

  ca-

so , porém,  o Reichsíag  e outros órgãos diretamente subor-

dinados  à Constituição  são tão "guardiães  da Constituição"

quanto

 o

 presidente

 d o Reich,  e n o

 mesmo sentido

 se

 poderia

denominar

  os

  tribunais

  e

  autoridades administrativas como

"guardiães"

  das

  leis. Afinal, Schmitt acredita reconhecer

aquela função também  n a  fórmula d e juramento  do art . 42,

eis que

  considera

  o

  presidente

  do  Reich

  como guardião

  da

Constituição também porque este jura

  que i rá

  "defender"

a  Constituição.  O a r t . 42 ,  contudo,  não d i z —  como cita

Schmitt  -  "defender  a  Constituição",  mas s im  "defender  a

Constituição

  e as

  leis

  d o  Reich ,  o que não

  significa outra

coisa

 que

 cumprir

 a

 Constituição

  e as

 leis, exercer

 as

 próprias

funções

 de

 modo constitucional

  e

 legal. Nesse sentido,

 o pre -

sidente  do Reich

  é

  "guardião" tanto  da  Constituição quanto

das  leis.  E, na  realidade,  a  argumentação  d e  Schmitt acaba

fundamentalmente distinguindo

  a

 função

 d e  apenas

  um

  dos

órgãos criados pela Constituição para  su a própria execução

imediata, a posição d e apenas u m desses órgãos mantenedo-

res da  Constituição,  ou  seja,  a  competência funcional  d o

presidente

  d o  Reich  — o u ,

  mais precisamente,

  d o

  governo

composto pelo presidente

 e os

 ministros

 d o

 Reich

  —, em

 detri-

mento das competências funcionais d e todos os outros órgãos

diretamente subordinados

  à

 Constituição, particularmente

  o

Reichsíag,  n a

  medida

  e m q u e

  qualifica como função

  do

"guardião da Constituição" apenas a primeira, porém não as

últimas. Desse modo,  ele não  apenas empresta  u m a  aura

mais sublime

  à

 referida função,

 m a s

 desperta também

  a im-

pressão

  de que um

  controle

  d a

  constitucionalidade

  d os

  atos

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HANS KELSEN

daquele órgão  - e tal  controle  é  plenamente possível  na

medida  em que sua  função  não é de  controle  -  seria  n o

mínimo supérfluo. "Guardião

  da

  Constituição",

  no

  sentido

originário

  da

  expressão, significa garante

  d a

  Constituição.

Guardar  o  "guardião" seria  o  primeiro passo  de um  absur-

do regressus  ad  infinitum  de política  d o direito. N o  entanto

Schmitt compreende,  em seu conceito de guardião d a Cons-

tituição, funções totalmente diversas

  do

  controle constitu-

cional, colocando mesmo

  a

  ênfase justamente sobre essas

outras funções.

O

  verdadeiro sentido

  q ue

  Schmitt liga

  ao

  conceito

  de

"guardião

 d a

 Constituição"

 por e le

 introduzido

 n a

 discussão

sobre

 a

 garantia constitucional

 -

  aquele

 do

 qual

  ele

 depende

mais

  que de

  qualquer

  u m —

 aparece

  de

  modo mais nítido

  e

preciso

 n a

 passagem

  de seu

 escrito

  em que ele crê

 haver

  da-

do o  golpe  de misericórdia  na  idéia  de  jurisdição constitu-

cional,  o u  seja, a li  onde liquida essa instituição como  an-

tidemocrática. Explica  ele qu e é um  abuso  dos  conceitos

de

  forma judiciária

  e

 jurisdição,

  b e m

  como

  da

 garantia

  ins-

titucional

  dos

  funcionários

 de

  carreira

  da

  Alemanha, quan-

do, em

  todos

  os

  casos

  nos

  quais,

  po r

  motivos práticos,

  a

independência

  e a

  neutralidade parecem

  ser

  convenientes

ou

 necessárias,

  se

  quer logo implantar

  u m

  tribunal

  com ju-

ristas de carreira  e um a  forma judiciária". E depois de apre-

sentar  a  opinião, j á  referida  nu m  contexto anterior,  de que

desse modo

  a

  jurisdição"

  é

  "sobrecarregada"

  n u m

  nível

inaceitável,  e le  arma  o  golpe mais forte  que, do  ponto  de

vista  do  princípio democrático, aceito  p o r  Schmitt,  se pode

vibrar no plano  da política  do direito contra  a criação de um

tribunal constitucional: "Além disso,  a  instituição  de  seme-

lhante guardião  da  Constituição" — repare-se: um  semelhan-

te  tribunal constitucional também seria  u m  "guardião  da

Constituição", ainda  que  muito pior  que o  presidente  do

Reich

; Schmitt

  de

  fato utiliza

  o

 conceito

  de

 maneira univer-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL 291

sal,

  também nesse sentido

-

  "seria diretamente contrária

  à

coerência política

  d o

  princípio democrático."

  Por que um

tribunal constitucional seria

  u m

  guardião antidemocrático

da

 Constituição, menos democrático

 que o

 chefe

 de

 Estado?

O

 caráter democrático

 de um

  tribunal constitucional,

 não di-

ferente daquele

  do

 chefe

 de

 Estado,

  só

  poderá depender

  do

modo  de sua  nomeação  e de sua posição jurídica. Caso  se

queira dar um a  configuração democrática a esse tribunal, na-

da impede que o façamos ser eleito pelo povo, como o chefe

de Estado,  e que se dê a seus membros  tão pouco quanto  ao

chefe de Estado a posição de funcionários d e carreira; ainda

q u e  certamente pudesse permanecer  a  questão sobre  se tal

modo  de criar e qualificar o órgão seria o mais conveniente,

considerando-se a sua  função. Tais ponderações, porém, va-

lem  também para  o  chefe  de  Estado. Seja como  for, não é

possível afirmar

  que um

  tribunal

  n ã o

  possa

  se r

 estruturado

de

 modo

 tão

 democrático quanto qualquer outro órgão. Quan-

do

  Schmitt opina

  que : D o

 ponto

  de

 vista democrático difi-

cilmente seria possível confiar tais funções a um a aristocra-

cia da

  toga",

  tal

 objeção

 é

 liquidada simplesmente pelo fato

de que um

  tribunal constitucional eleito pelo povo,

  ou ape-

nas

 pelo parlamento

  —

 como,

  p o r

  exemplo,

  a

  Corte Consti-

tucional austríaca  n o s  moldes  da  Constituição  de 1920 é

tudo menos  u m a  "aristocracia  d a  toga".  M a s  segundo  a ex-

posição  de  Schmitt,  u m  tribunal constitucional parece anti-

democrático  n ã o  apenas porque supostamente  tem que ser

organizado de modo burocrático-aristocrático,  m a s  também

por uma  outra razão,  a  qual embora Schmitt  n ã o  maneje

expressamente  a f im de  sustentar  o referido caráter antide-

mocrático, deixa  te r  este sentido  ao  menos  de  modo tácito,

eis que  liga  tal argumento diretamente à afirmação  de que a

instituição  de um  tribunal constitucional seria contrária  ao

princípio democrático;  no âmbito  da  democracia parlamen-

tar-plebiscitária  do  século  X X -  assim sustenta Schmitt  -

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HANS KELSEN

u m   tribunal constitucional  não  estaria, como  na  monarquia

constitucional

  do

  século

 X I X ,

 voltado "contra

  um

 monarca,

m as s im contra o Parlamento". Enquanto em relação a o m o-

narca

  a

  jurisdição pôde

  ter

  sucesso,

  n ão

  poderia

  ser

  seria-

mente considerada "como contrapeso

  ao

 Parlamento", pois

a necessidade  de  instituições estáveis  e de um  contrapeso

ao

 parlamento

 s e

 configura hoje,

 na

 Alemanha, como

 um pro-

blema totalmente diverso

 do

 controle

 d o

 monarca. Isso vale

tanto para  o direito  de controle judiciário geral  e difuso c o-

m o

 para

 o

 controle concentrado numa única instância". Este

certamente  é um dos  mais assombrosos raciocínios desse

livro,

 que nã o é

 pobre

 em

 surpresas lógicas.

 A

  afirmação

 de

que um

 tribunal constitucional teria

  que

 fazer frente apenas

ao Parlamento, e não também ao governo, está  e m contradi-

ç ão

  direta

  com a

  realidade.

  Se

  Schmitt tivesse

  se

  ocupado

u m  pouco mais atentamente  da solução austríaca,  que dele

merece apenas

 u m a

 irônica menção, saberia

  qu e

  esse tribu-

nal, por sua

  jurisprudência, entrou

  em

  conflito

 justamente

com o

 governo,

  conflito esse  qu e  ameaça  sua  própria exis-

tência.

  M a s

  todo

  o

  escrito

  de

  Schmitt está imbuído

  da ten-

dência de ignorar  a possibilidade de um a violação  da Cons-

tituição pelo chefe de Estado ou pelo governo, possibilidade

q u e

  existe justamente

  e m

  relação

  a um a

  Constituição

  que

te m  entre suas disposições mais importantes  u m  artigo  co-

mo o 48 . Na

  medida, porém,

  em que

  Schmitt sustenta

  sua

tese, não demonstrada e indemonstrável, de que um  tribunal

constitucional faria frente apenas  ao Parlamento,  ele  rein-

terpreta

 a

 função desse "guardião

  da

 Constituição", mudan-

do-a de um  controle  d a  constitucionalidade  de  atos  de Es -

tado, particularmente  de  leis (

note-se:

  promulgadas pelo

chefe

 de

 Estado), para

 u m

 "contrapeso

 ao

 Parlamento".

 E s-

se é realmente  o papel  que a Constituição  de Weimar desti-

na ao presidente d o Reich,  ou melhor dizendo, assim se po-

de avaliar politicamente a posição,  em  termos de direito p ú -

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

293

blico,

 que o

 presidente

  do Reich

  possui segundo

 a

 Constitui-

ção; nã o é , contudo,  a  função de u m  tribunal constitucional,

o u

 seja: nesse sentido

  não se

  poderá nunca afirmar

  que um

tribunal constitucional,

  d e

  acordo

  com a

 intenção

  da

  Cons-

tituição  que o institui, deve atuar como "contrapeso  ao Par-

lamento".

  O

  fato

  de que

  esse tribunal

  n ã o

  pode desempe-

nhar  u m a  função nunca imaginada  n em  imaginável para  si

n ão

  depõe naturalmente

  em

  nada contra essa instituição,

  a

qual p o r  essa mesma razão pode existir ao  lado de um chefe

de

 Estado

  q u e

  atue como "contrapeso

  ao

 Parlamento",

  sen-

do

  assim, justamente pela existência

  de um ta l

  "contrape-

so , duplamente necessária.

XII .

 Nesta altura, porém, fica mesmo claro

 o que

 Schmitt

efetivamente entende  p o r  "guardião  da Constituição". Nada,

simplesmente nada

  q u e

  pudesse justificar

  a

  contraposição

do presidente do Reich  enquanto "guardião da Constituição"

a um

 tribunal constitucional

  - que

 também controla

 t a l

 "guar-

dião" - ,  impossibilitando  que  esse tribunal seja "guardião"

ao

  declarar

  o

  presidente como

  tal,

  como

  se se

  tratasse

  d a

mesma função, para

  a

 qual procuraríamos

  e

 encontraríamos

n o chefe d e Estado apenas  um  titular mais idôneo, como  faz

Schmitt quando assim formula

 o

 resultado

  de sua

  investiga-

ção:  "Antes de propor  u m  tribunal como guardião  da Cons-

tituição, tarefa para

  a

  qual

  não é

  próprio, deve-se lembrar

que a Constituição j á  indica  o presidente  do Reich  para essa

função".

  Se o

 presidente

  do Reich  —  e

  isso certamente

  não

precisa

  ser

  negado

  - é

  concebido pela Constituição como

"contrapeso  ao  Parlamento",  não se  pode qualificar essa

função como

  de

  "guardião

  da

  Constituição",

  se

  também

  se

denomina  do  mesmo modo  a  garantia  da  Constituição  m e-

diante

  um

 tribunal constitucional.

  Não se

 trata

  d e u m a

 mera

questão

  d e

  precisão terminológica, pois

  é

  nesse equívoco

inadmissível  que  Schmitt  vai  buscar  u m d e  seus principais

argumentos contra

 a

 instituição

 da

 jurisdição constitucional.

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

295

do Reich,  com o

  complexo

  d e

  competências

  que lhe

 atribui

a

  Constituição,

  e

 particularmente

  p o r

  causa

  de seu

 poder

  de

atuar como substituto d o Reichsíag,

  é

 declarado guardião d a

Constituição

 - e

 apenas

 ele,

 excluído

 o

 segundo

  (ou

 melhor,

o

 primeiro) mantenedor

 da

 constituição,

  o Reichsíag

  -

  a fun-

ção

 desse

 Reichsíag  q u e

 "forma

 o

 cenário

 do

 sistema plura-

lista",  a qual,  d e modo exclusivo  e unilateral,  é contraposta

como "centrífuga" à  função centrípeta  do presidente, sendo

assim colocada como contrária

 à

 defesa

 d a

 Constituição, deve

aparecer pura

  e

  simplesmente como ilegal.

  A

 partir

  do sis-

tema pluralista",  u m a  categoria sociológica originalmente

não-valorativa,  se  deduzem inopinadamente  o s  "métodos

dissolutivos

  d o

 Estado próprios

  do

 Estado pluralista

  de par-

tidos",

 os

 "métodos destruidores

 da

 Constituição próprios

 do

sistema pluralista"  e , por f im, o  "pluralismo inconstitucio-

na l ,  sendo tarefa  d o  presidente "salvar"  o  Estado  de  tudo

isso.

 A

  "Constituição"

 n ão

 consiste

 nas

 normas

  que

 regulam

os

 órgãos

  e o

 procedimento legislativos, assim como

  a

 posi-

ção e

 competência

  d o s

 supremos órgãos executivos

 não con-

siste em normas  o u "leis". A  "Constituição"  é u m estado  de

coisas,

  o

 estado

  da

 "unidade"

  do

 povo alemão.

  Em que con-

siste essa "unidade",

  que tem um

 caráter material,

 não

 mera-

mente formal,  não é  dito  com  mais precisão,  mas só pode

ser um  estado d e coisas desejado po r apenas u m  determina-

d o

 ponto

  de

 vista político.

 N o

  lugar

  do

 conceito positivo

 de

Constituição introduz-se

  a

  "unidade" como

 u m

  ideal jusna-

turalista.

  C o m a

 ajuda desse ideal pode-se interpretar como

quebra  d a Constituição  o sistema pluralista cujo cenário  é o

Parlamento

  — e com

  isso

  a

  função desse mantenedor

  da

Constituição, pois

  ela ,

  entrando

  no

  lugar

  da

  Constituição,

destrói  o u ameaça  a "unidade" - e a função do  chefe  de Es-

tado como salvaguarda  da Constituição, pois  ela restaura  ou

defende

  a

 "unidade".

  Tal

 interpretação

  da

  Constituição

  não

pode culminar senão

 n a

 apoteose

  do art . 48. Seu

  resultado

 -

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296

HAN.S KELSEN

tanto mais paradoxal se não fo r intencional — é que o elemen-

to que no Reich

  alemão perturba

  ou

 ameaça notavelmente

  a

segurança

 e a

 ordem públicas"

 é o

 sistema pluralista,

 ou

 falan-

do  claramente,  o  Reichstag,  cuja verdadeira função parece

consistir,

  por ser

  essencialmente "pluralista",

  em

  satisfazer

permanentemente

  a

  condição

  que a

 Constituição

  de

 Weimar

vincula à aplicação do art. 48-2

13

.

D os

 dois titulares

 d o

 poder estatal instituídos pela Cons-

tituição,

 u m

 torna-se inimigo

 e o

 outro amigo

 do

 Estado;

 u m

quer destruí-lo, isto é, destruir  sua "unidade",  e o outro quer

1 3 . Qu e o  sistema parlamentarista  n ã o  fracassou  e m  toda parte  é c o m -

provado  c o m u m a  olhada sobre  a  Áustria,  a  França,  a  Inglaterra  e o s  Estados

nórdicos.  N ã o obstante, Schmitt acredita poder proferir,  s e m  restrições,  a s e n -

tença  d e morte  d o parlamentarismo  em s i . O  método  q u e utiliza para  tal fim é

o d e u m a  dialética francament e mística:  O  Parlamento,  a  corporação legisla-

tiva,

 o

 titular

  e

 ponto central

  d o

 Estado legislativo,

  n o

 mesmo instante

  e m q u e

su a

  vitória pareceu completa, tornou-se

  u m a

  criação contraditória

  em s i

mesma,  q u e  nega seus próprios pressupostos  e o s pressupostos  de sua própria

vitória.  A  posição  e  preponderância  q u e  mantinha  a té  então,  se u  ímpeto  d e

expansão sobre  o  governo,  s e u  apresentar-se  e m  nome  d o  povo, tudo isso

pressupunha  u m a  diferenciação entre Estado  e  sociedade  q u e  apôs  a  vitória

d o  Parlamento  n ã o  subsistiu,  e m  todo caso  n ã o  nessa forma.  S u a unidade,  até

m e s m o

  s u a

  identificação consigo mesmo, eram determinadas

  a té

  então

  p e -

lo seu

  antagonista político interno,

  o

  antigo Estado militar

  e

 burocrático

  d a

monarquia. Quando este deixou  d e  existir,  o  Parlamento,  p o r  assim dizer,

s e  despedaçou  p o r  dentro".  S e  identificamos  o  Parlamento  c o m a  "socie-

dade" voltada contra  o  Estado,  e se o  "Estado total" significa  a  eliminação

desse antagonismo, então n ã o h á , n o Estado total, segundo  a  lógica dessa filo-

sofia social, lugar para  o  Parlamento. Para  o  caso porém  d e  concebermos  a

idéia  d e q u e a  eliminação  d o antagonismo entre Estado  e  sociedade  e,  assim,

o

  Estado total, pudesse também

  s e r

  realizado

 p o r

 parte

  d e u m

  Parlamento

  q u e

expandisse

  s u a

  competência

  e

  mantivesse

  s u a

  unidade,

  a té

 mesmo

  Sua

  iden-

tificação consigo mes mo "  a o  colocar-se como órgão estatal máximo q u e c o n -

centrasse  e m s i  todos  o s poderes,  aí  observa-se  q u e O  Estado agora  é ,  como

se  costuma dizer, auto-organização  d a  sociedade, contudo devemos indagar

d e q u e  modo  a  sociedade  que se  auto-organíza atinge  a unidade,  e se a unida-

de é de  fato o resultado  d a  auto-organização. Pois auto-organização  é , em pr i -

meiro lugar, apenas

  u m

  postulado

  e u m

  procedimento caracterizado pela

  o p o -

sição

  a

 mé todo s precedentes, hoje

 n ã o

 mais existentes,

 d e

  formação

 d a

 vonta-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

297

defendê-lo

 de tal

 destruição:

 um é o

 violador,

 o

 outro

 é o

 guar-

dião

  da

  Constituição. Isso

  não tem

 nada mais

  a ver com uma

interpretação

  de

  Constituição

  em

  termos

  de

  direito positivo;

trata-se

  da

  mitologia

  de

 Ormazd

  e

 Ariman

  * com

  roupagens

de

 direito público.

Essa análise crítica, naturalmente,

  não

  deseja

 nem

  pode

colocar

  em

  questão

  o

  valor político

  que em

  determinadas

circunstâncias possuem

  a

 busca

  da

 máxima expansão possí-

vel do

 poder

  do

 presidente

  do Reich,

  isto

  é, do

 governo,

  e a

conseqüente rejeição

  d e u m a

  jurisdição constitucional.

  O

escrito

  d e

  Schmitt

  é

  objeto desta critica

  não

  porque sirva

  a

esse escopo,

 o

 qual

 n ã o

 deve

 e m

 absoluto

 ser

 rebaixado aqui

como "político-partidário",

  mas s im

  apenas porque

  se ser-

ve,

 para

  tal

 escopo político,

  de

  certos métodos

  que se

 apre-

sentam como conhecimento sociológico  e  interpretação

constitucional dentro da teoria do Estado, e m resumo, como

"discussão científica" da matéria. Esta crítica deve mostrar,

d e e unidade  d o Estado, portanto caracterizados apenas  d e  maneira negativa  e

polêmica.

  A

  identidade expressa

  n a

  palavra 'auto'

  e q u e é

  unida lingüistica-

mente  a  'organização',  n ã o t e m p o r q u e necessariamente  e e m  qualquer caso

concretizar-se,

  n e m

  como unidade

  d a

  sociedade

  e m s i , n e m

  como unidade

  d o

Estado. Existem também, como temos visto  c o m  bastante freqüência, organi-

zações infrutíferas  e  ineficazes".  — A  "unidade"  d o  Estado total  n ã o  pode

entSo

  s e r

  produzida pelo Parlamento,

  m a s

  apenas pelo chefe

  d e

  Estado Para

u m a  crítica  q u e  parta  d e u m  ponto  d e  vista politico oposto,  p o r  exemplo  u m a

crítica marxista,  n ã o é  difícil desmascarar  tal  argumentação como ideologia.

Esse Parlamento,

  q u e n o

  instante

  d e s u a

 vitória

  se

  despedaça misteriosamente

p o r dentro  e  torna-se  u m a criação  q u e  nega seus próprios pressupostos apenas

porque

  n ã o

 precisa mais dividir

  o

  poder

  c o m u m

  monarca,

  n ã o

  seria esse

  p a r -

lamento simplesmente  a expressão  d o  fato  d e q u e a burguesia, onde quer  q u e

o  Parlamento, pela configuração  d a  luta  d e  classes, deixa  d e s e r u m  útil  in s -

trumento político

  d e

  dominação

  d e

 classe, modifica

 s e u

 próprio ideal político

e  passa  d a  democracia  à ditadura?

*

  Ormazd

  e

 Ariman:

  n a

  concepção dualfstica

 d o

  zoroastrismo, respecti-

vamente,

  a

  divindade criadora suprema

  e o

 espírito

  d o m a l e m

  eterna luta

  c o m

s e u  equivalente benigno.  ( N . d o T . )

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298

HANS KELSEN

c o m u m

 exemplo particularmente instrutivo

  e

 altamente

 sin-

tomático

 da

 situação atual

 da

 nossa teoria

 d o

 Estado

 e do di-

reito público, o quanto se justifica a busca de uma separação

a mais rigorosa possível entre conhecimento científico e ju í -

zo de

 valor político.

 A

 mistura entre ciência

  e

 política como

princípio,

 tão em

 voga hoje

 em dia, é o

 método típico

 d a m o -

derna construção ideológica.  D o ponto  de vista  d o conheci-

mento científico,  ela  deve  ser  refutada também quando  -

como

  n o

  mais

  d a s

  vezes

  e

  certamente também

  n o

 presente

caso  — é  feita  de  modo totalmente inconsciente. Diante  da

consciência crítica aguçada d e nossa época, esse método po -

lítico  n ã o  pode,  a  longo prazo, servir  de  nada; pois  ele é

muito facilmente desmascarado pelo adversário político

  ou

então  é utilizado para  um a  legitimação igualmente discutí-

vel dos  objetivos opostos.  M a s p o r  isso mesmo  e le  pode

prejudicar tanto mais sensivelmente

  a

  ciência; pois todo

  o

valor

 da

 ciência

 - e m

 função

 do

 qual

 a

 política procura

 s e m -

pre  ligar-se  a ela, e justamente pelos melhores motivos  éti-

cos ,  porque  no  interesse  de  algo tido como  b o m -  esse  va-

lor, qu e é um  valor intrínseco, de todo distinto daquele outro

ético-político,

  n ão

  resiste

  se a

 ciência, dentro desse conflito

quase trágico para  ela, não  tiver  a  força de  subtrair-se  à se-

dutora união  com a política.

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O

  controle judici l

da  constitucion lid de

Um  estudo comparado  das

Constituições austríaca  e americana)*

*

  Esse texto

  f o i

 publ icado originalmente

  e m

  inglês,

  s o b o

  título

  A c o m -

parative study

  o f t h e

  Austr ian

  a n d t h e

  Amer ican Const i tu t ion",

  n o  Journal

  of

Politics,

  e m  ma i o  d e 1 9 4 2 , p p .  183-200.

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I .

A Constituição austríaca discutida aqui é a de 1 ? de outu-

bro de 1920, conforme vigorava  em 1? de janeiro  de 1930;

nesse

 dia o

 texto

 da

 Constituição

 fo i

 oficialmente publicado,

por ato do

 chanceler austríaco,

 n o

 jornal oficial.

 A s

 emendas

posteriores

  n ã o

 serão aqui consideradas, porque foram

 p ro -

mulgadas  sob um  regime semifascista e tendiam  a restringir

o

 controle democrático

  da

  constitucionalidade

 da

  legislação.

A

  Constituição austríaca

  de

  1920-30 estabeleceu

  ga-

rantias para assegurar

  a

 constitucionalidade

  n ão

  apenas

  de

leis, m a s também  de decretos. Estes eram normas legais ge-

rais promulgadas  p o r  órgãos administrativos,  e não por um

Parlamento, o u seja, u m órgão legislativo. N a  Áustria, assim

como  em  outros países  d a  Europa, esses decretos desempe-

nhavam  u m  papel muito mais amplo  que nos  Estados  Un i -

dos . Havia dois tipos  de  decretos:  o s baseados  e m  leis, cuja

função e ra  executá-los, e os que, tal como  as  leis, eram  p ro -

mulgados diretamente  c o m  base  n a  Constituição", isto  é,

editados n o lugar das leis. A  importância dos decretos deve-se

à posição particular que as autoridades administrativas ocupam

nos  sistemas legais  do  continente europeu, onde possuem,

na sua capacidade de órgãos aplicadores da lei, o mesmo grau

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302 HA NS

  KELSEN

hierárquico  das  cortes.  O ato administrativo  tem, em princí-

pio, o

 mesmo efeito legal

 de um a

 decisão judicial. Além

 dis-

so, as autoridades administrativas,  em  especial  as mais altas,

como

  o

 chefe

 de

  Estado

 e o s

 ministros,

  têm o

 poder

  de edi-

ta r  normas legais gerais, sendo  q u e  tais normas — o s decre-

to s

  administrativos

  - têm o

 mesmo efeito legal

  das

 leis.

  A s

autoridades administrativas, portanto,  são órgãos n ã o apenas

aplicadores,

 m a s

 também criadores

 das

 leis, tendo

 u m a c o m -

petência

 d a

 mesma natureza

 d o s

 órgãos legislativos.

Decretos editados "diretamente co m base na Constitui-

ç ã o podiam  ser  inconstitucionais  do  mesmo modo  que as

leis. Decretos editados  c o m base n a s leis" eram ilegais se não

correspondessem

 à lei.

 Como

 a

 Constituição estabelecia

 que

os decretos editados com base nas leis a elas deveriam corre-

ponder,

  a

 promulgação

  de um

  decreto ilegal

 e r a u m a

  viola-

ção da

 Constituição.

 A

  ilegalidade

 de

 decretos promulgados

co m  base  n a s leis  e ra um a  inconstitucionalidade indireta.

N u m  sistema legal como  o  descrito,  a revisão judicial

dos  decretos  é ainda mais importante  que a das  leis, pois  o

perigo

 de que os

 órgãos administrativos excedam

  os

  limites

de seu

 poder

 de

 criar normas legais gerais

 é

 muito maior

 que

o perigo de que se promulgue  um a lei  inconstitucional.

T ão

 logo

 os

 órgãos administrativos

 d os

 Estados Unidos,

no

 curso

  d a

 evolução político-econômica atual, atinjam

 um a

posição jurídica similar à de seus correspondentes europeus,

o  problema  da  inconstitucionalidade  d e  decretos assumirá

u m a

  importância muito maior

 que a

 observada hoje

 em dia.

II

A  constitucionalidade da legislação (entendida no senti-

do mais amplo, abrangendo portanto a promulgação de decre-

tos) pode  ser garantida por dois meios distintos:  a responsa-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL 303

bilidade pessoal  do órgão  que promulgou  a norma inconsti-

tucional  e a  inaplicação dessa norma.  A  Constituição  aus-

tríaca previa

  o s

  dois meios. Apenas

  o

  último interessa-nos

aqui. A  inaplicação d a norma inconstitucional podia ocorrer

ao se

  autorizar

  os

  órgãos aplicadores

  d a s

  leis

  a

  verificar

  a

sua

  constitucionalidade

  n u m

 caso concreto,

  e a

 deixarem

 de

aplicá-la nesse caso

  se

 concluíssem

  que era

  inconstitucional.

Essa

  é, em

 princípio,

  a

  situação legal

 n o s

 Estados Unidos.

O

  fato

  de um

  órgão aplicador

  da lei

  declarar

  u m a n o r -

m a  geral como inconstitucional  e não  aplicá-la  n u m  caso

específico significa

 que o

 órgão está autorizado

 a

 invalidar

  a

norma para aquele caso concreto; porém apenas para ele, pois

a norma geral enquanto tal - a lei, o decreto -  continua váli-

d a e pode, portanto,  ser aplicada  em outros casos concretos.

A

 desvantagem dessa solução consiste

 n o

  fato

 de que os

diferentes órgãos aplicadores

  da lei

 podem

  te r

 opiniões dife-

rentes

 co m

 respeito

  à

  constitucionalidade

  de uma le i

1

 e que ,

portanto,

 u m

 órgão pode aplicar

 a lei po r

 considerá-la cons-

titucional, enquanto outro

  lhe

 negará aplicação

 co m

 base

  na

sua alegada inconstitucionalidade.  A  ausência  d e u m a deci-

são uniforme sobre a questão d a  constitucionalidade de uma

lei, ou seja, sobre a Constituição estar sendo violada  ou não,

é uma grande ameaça  à autoridade da própria

 Constituição.

Antes d e entrar  em vigor a Constituição de 1920, as cor-

tes

 austríacas tinham

  o

 poder

  d e

 controlar

  a

 constitucionali-

dade

 das

 leis apenas

 n o

  concernente

 à sua

 adequada publica-

ção.

 Contudo,

  o

 poder

  que

 tinham

  de se

 pronunciar

 a

 respei-

to da

  legalidade

 e,

 logo,

 da

 constitucionalidade

 d os

 decretos,

não era  restringido. U m a  revisão judicial  da legislação, p o r -

tanto,  só era  possível dentro  d e  limites bastante estreitos,  e

1. O

  termo

  l e i

será usado

  a

  seguir

  n u m

  sentido

  q u e

  compreende

também  o s  decretos,  a não se r que se  faça u m a  distinção expressa entre  o s  dois

conceitos.

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304 HANSKELSEN

ampliar essa instituição

  foi um dos

  objetivos

  da

  reforma

constitucional

  de 1920. Não se

 considerou desejável garan-

tir a

  toda corte

  o

  poder ilimitado

  de se

  pronunciar sobre

  a

constitucionalidade

  d as

  leis.

  O

 perigo antes mencionado

  da

falta

 d e

 uniformidade

 em

 questões constitucionais

 era

 gran-

de

 demais, pois

  n a

  Áustria,

  bem

  como

  e m

  outros países

  do

continente europeu,

  as

  autoridades administrativas

  não ti-

nham poder

 de

 controlar

 a

 constitucionalidade

 das

 leis, sendo

obrigadas, portanto,

  a

  aplicar

  uma le i

  mesmo

  que um tri-

bunal,

 p o r

 exemplo

 a

 Suprema Corte,

  a

 tivesse declarado

  in-

constitucional. Deve-se acrescentar

  que na

  Áustria, assim

como

  em

 vários outros países europeus, havia outras cortes

além

  das

  ordinárias,

  em

  especial cortes administrativas

  que

ocasionalmente tinham

  q u e

  aplicar

  as

  mesmas leis

  que as

cortes ordinárias,

  de

 modo

  q u e u m a

  contradição entre estas

e

  aquelas

  não era de

  modo algum impossível.

  O

  fato mais

importante, porém,

  é que na

  Áustria

  as

  decisões

  da

  corte

ordinária mais alta

 -

  Oberster Gerichtshof—, concernentes

 à

constitucionalidade

  de uma lei ou

  decreto,

  não

 tinham força

obrigatória sobre

  as

  cortes inferiores. Estas

  não

  estavam

proibidas

  de

  aplicar

  uma lei que o

  Oberster Gerichtshof

tivesse previamente declarado inconstitucional,

  e,

 portanto,

deixado

 de

 aplicar

 n um

 caso especifico.

 O

 próprio Oberster

Gerichtshof  n ã o

  estava sujeito

  à

 norma

  do  stare decisis,  de

modo

  que uma lei

 declarada inconstitucional pela corte

 num

caso especifico podia

  ser

  declarada constitucional

  e

 aplica-

da

 noutro caso

 por

 essa mesma corte. Pelas razões expostas,

um a

  centralização

  da

 revisão judicial

  da

  legislação

  era

 alta-

mente desejável

 no

 interesse

  da

 autoridade

  da

 Constituição.

A

  Constituição austríaca

  de 1920, nos

 seus artigos

  137-

4 8 ,

 estabeleceu

  ta l

  centralização

  ao

 reservar

 a

 revisão judi-

cial

  d a

  legislação

  a u m a

  corte especial,

  a

  assim-chamada

Corte Constitucional

  \Verfassungsgerichtshof\.  Ao

  mesmo

tempo,

  a

 Constituição conferiu

 a

 essa corte

  o

 poder

  de anu-

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306

HANSKELSEN

um a to negativo  de legislação.  Uma vez que a  Constituição

conferia à Corte Constitucional um a função legislativa, isto é ,

u m a

  função

 em

  princípio reservada

  ao

  Parlamento,

  a

  carta

de 1920 estabelecia que os membros  da referida Corte deve-

riam  ser  eleitos pelo próprio Parlamento,  e não,  como  os

outros juízes, nomeados pelo executivo.

  O

  Parlamento

  aus-

tríaco, d e acordo com o caráter federativo da Constituição, era

composto  de uma  Câmara  de  Representantes [

Nationalrat]

e u m Senado

 [Bundesrat],

  E m  conseqüência, o presidente, o

vice-presidente  e  metade  d os  membros  d a  corte eram elei-

to s

  pela Câmara

  d e

  Representantes, sendo

  a

  outra metade

d os juízes eleita pelo Senado  (art . 147). Esse modo  de com-

por a

  Corte

  fo i

  aceito

  a f im de

  torná-la

  tão

  independente

quanto possível

  do

  executivo. Essa independência

  era ne-

cessária porque

  a

  Corte tinha controle sobre diferentes atos

administrativos,  em  especial  a revisão judicial  do s decretos

emitidos pelo chefe d e Estado, o primeiro-ministro e os outros

ministros,  e o poder  d e emitir tais decretos  era de suma  im -

portância política. Através

  de um uso

  impróprio desse

  po-

der, o executivo poderia facilmente suprimir  o Parlamento e

assim eliminar a base democrática  do Estado

2

.

A

  reforma

  da

  constituição austríaca

  em 1929 não foi ,

de  modo algum, dirigida contra  a  Corte Constitucional  em

virtude  de um  conflito entre esta  e o  executivo.  A  emenda

n ão  alterou  a  jurisdição  da  Corte: estabeleceu  que  seus

membros n ão seriam mais eleitos pelo Parlamento,  mas s im

indicados pelo executivo

 (art. 65 d a lei

 federal

 de 7 de

 dezem-

bro de 1929). A velha Corte foi, com efeito, dissolvida e subs-

2. O us o impróprio  do art. 48 da  Constituição  d e Weimar,  q u e autoriza-

va o

  governo

  a

  promulgar decretos

  de

 necessidade,

  foi o

  meio peio qual

  se

destruiu  o caráter democrático  d a  República a\emã  e se  preparou  o  advento

d o

  regime nacional-socialista. Cabe mencionar

  que a

  Constituição austríaca

semifascista  de 1934 foi promulgada  por um  decreto  do  governo  (de 24 de

abril

  de 1934,

  livro 1,239).

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

307

tituída

  p or

  outra, cujos membros eram quase todos correli-

gionários

 do

 executivo. Este

 f oi o

 início

 de um a

 evolução

 p o-

lítica

 que

 inevitavelmente levou

  ao

 fascismo, sendo respon-

sável pelo fato

 de nã o ter

 havido resistência contra

  a

 anexa-

ção da

 Áustria pelos nazistas.

III

Embora

  as

  cortes

  dos

  Estados Unidos tenham

  o

  poder

de

 rejeitar somente

  no

  caso concreto

  a

 aplicação

  de uma lei

que  declarem inconstitucional,  o perigo de uma prática con-

traditória pelos órgãos aplicadores

  da lei ali não é tão

  gran-

de

  como

  era na

  Áustria antes

  do

  estabelecimento

  da

  Corte

Constitucional.

 E m

 primeiro lugar, como neste país

 não há ór-

gãos administrativos independentes

 d as

 cortes,

  a

 força obri-

gatória

  de um ato

  administrativo

  (e m

  especial

  u m a

  ordem,

um

 decreto,

 etc.)

 depende

 e m

 última instância

 da

 decisão

 de

u m a

 corte

 à

 qual

 o

 indivíduo envolvido pelo

  a to

 administra-

tivo possa apelar. Além disso,

 não há

  cortes administrativas

distintas

  das

  cortes ordinárias.

  E m

  terceiro lugar,

  a s

  deci-

sões

 da

 Suprema Corte

  têm

 caráter obrigatório para todas

 as

outras cortes.

 N a

  medida

  em que as

  cortes americanas

  con-

sideram-se sujeitas

 às

 decisões

  d a

  Suprema Corte,

  uma de -

cisão desta rejeitando

 a

 aplicação

 de um a le i po r

 inconstitu-

cionalidade,

 n um

 caso concreto,

  tem na

 prática quase

 o mes -

m o

  efeito

  d e u m a

  anulação geral

  da lei.

 Porém

  a

 norma

  d e

stare decisis

  não é de

  modo algum absoluta.

  N ão

  está

  b e m

claro  até que  ponto  sua  validade  é  reconhecida. Acima  d e

tudo, admite-se

 que ela não é

 válida

 n o

 caso

 de

  interpretação

da

 Constituição. Questões constitucionais estão sempre aber-

tas a

 exame.

3

 Portanto

  é

 possível

  que a

  Suprema Corte

  de-

3.   O.V.  andS.K.R.R. versus Morgan County

,

  53, M o. 156

 (1873).

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308

HANSKELSEN

clare

  um a

  mesma

  lei

  constitucional

  num

  caso

  e

  inconstitu-

cional noutro, ou vice-versa. O mesmo é verdade no que con-

cerne

 às

 outras cortes. Tais casos

  têm, com

 efeito, ocorrido

4

.

N ã o

 está excluída também

  a

 possibilidade

 de que um a

 corte

inferior,

 em

 particular

  u m a

 corte estadual, decida

  a

 questão

da  constitucionalidade de um a le i sem q ue o caso seja trazido

perante

  a

 Suprema Corte,

 e que

 esta,

  ao

 examinar

  a lei den-

tro de

 outro caso, decida

  a

 questão

 de

 forma contrária. Nesse

caso

  o

  princípio

  da  res

 juàicata  impossibilita

  a

  outra corte

de

  adaptar

  sua

 decisão prévia àquela

  d a

 Suprema Corte.

Também

 é

 controverso

 se um a le i

 declarada inconstitu-

cional pela Suprema Corte deve  ser considerada como nula

ab initio.  U m a interpretação nesse sentido da decisão  da Su-

prema Corte significaria

  que tal

  decisão anula

  a le i de ma-

neira geral

  e com

  força retroativa, abolindo-se assim todos

o s

  seus efeitos anteriores. Dentro

  de um

  sistema

  de

  direito

positivo, porém,

 n ão

 existe nulidade absoluta.

 Não é

 possível

caracterizar como inválido  a priori  (nulo  ab  initio)  um a to

que se

 apresenta como legal. Somente

  a

 anulação

  de tal ato

é

 possível;

 ele não é

 nulo,

 m a s

 anulável,

  eis que não é

 possí-

vel

 afirmar

  que um a to é

 nulo

  sem que se

 responda

  a

 ques-

tão

  sobre quem

  tem

  competência para estabelecer

  ta l

  nuli-

dade.  Uma vez que a  ordem legal  - a f i m de evitar  a anar-

quia — dá a certas autoridades o poder de definir se um ato é

nulo,

 ta l

 definição

 t em

 sempre

 u m

 caráter constitutivo,

 e não

declaratório.

  O ato

  somente

  é

  nulo

se a

 autoridade

  c o m -

petente assim

  o

  declarar. Essa declaração

  é um a

  anulação,

u m a  invalidação. Antes dela  o a to não é nulo, pois  ser nu -

lo significa legalmente inexistente,  e o ato  precisa existir

legalmente para poder

 ser

 objeto

 de

 julgamento

 por uma au-

toridade.

  A

  anulação pode

  ser

  retroativa

  e o

  ordenamento

4. Por

  exemplo:  Denney versus State,

  144 Ind. 503, 42 N. E. 92 9

(1896);

 McCollum versus McConnoughy,

  Iowa

  172, 119 N. W . 53 9

 (1909).

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

309

pode autorizar todo indivíduo  a  estabelecer  a  nulidade  do

ato, isto  é, anulá-lo c o m  força retroativa. Normalmente, p o -

r é m ,

 apenas certos órgãos

 da

 comunidade jurídica

  são

 auto-

rizados  a estabelecer  a  nulidade de  atos  que se  apresen-

tam como legais.

E m  particular,  é  impossível considerar absolutamente

inválida  o u  nula  ab

  initió

uma le i promulgada pelo legis-

lador competente. Somente  as cortes  têm o poder d e decidir

a questão  da inconstitucionalidade  de uma lei . Se alguém  se

recusa  a  obedecer  uma le i por  entendê-la inconstitucional,

está atuando  sob o risco de que a corte competente considere

ilegal  sua conduta,  ao ter a lei por  constitucional.  D o ponto

d e vista legal apenas  a opinião  da  corte  é decisiva, portanto

a lei deve ser considerada válida enquanto não fo r declarada

inconstitucional pela corte competente. Esse pronunciamen-

to ,  assim,  tem  sempre  u m caráter constitutivo,  não  declara-

tório. Porém o ato pelo qual u m a corte declara um a lei incons-

titucional pode,  de acordo  c o m a Constituição, aboli-la  com

força retroativa. Nesse caso  a  decisão  da  corte  t em,  como

apontamos anteriormente,  o  caráter  de um a to  legislativo.

N o entanto, atos legislativos c o m força retroativa dificilmen-

te são compatíveis  c o m a proibição contida  n a  Constituição

americana, segundo  a  qual nenhuma  lei  ex

 post facto

  pode

ser aprovada. Essa interpretação, porém,  q u e  exclui  a teo-

ria da nulidade  ab

  initio

  ,  não é universalmente aceita.

Por outro lado é muito freqüente  que os particulares, ten-

d o  considerado  uma l e i  inconstitucional  e  iniciado  um pro-

cesso para obter sentença nesse sentido,  se  recusem  a obe-

decê-la antes  d e  pronunciada  a  decisão. Procedem assim

confiando  no efeito retroativo  da decisão esperada. Mesmo

o  governo reconhece essa atitude,  a  qual,  de um  ponto  de

vista legal,  é  mais  do que  questionável;  o  próprio governo

leva em conta o efeito retroativo d e u m a decisão judicial  que

declare  a lei  inconstitucional. Este  foi , po r  exemplo,  o  caso

no

  litígio

  envolvendo  a  constitucionalidade  da lei  sobre  as

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

311

a

 validade dessa

  lei

  caso

  ele a

 conteste judicialmente,

  m e s -

mo que no

  resultado

  de tal

  processo

  a lei

  seja declarada

constitucional. Dificilmente

 se

 poderá definir precisamente

o

 efeito jurídico

  d o

  fato

  de uma

  parte privada impugnar

  a

constitucionalidade

  de uma lei num

 processo, isto

 é, o

 efeito

jurídico sobre

  a

 validade

  da lei

 durante

  o

 período anterior

  à

decisão judicial.

 O

 processo

 por si só não

 pode invalidar

 a lei

n em

 confirmar

 sua

 validade.

 Só

 podemos dizer

 que

 qualquer

processo

  em que se

  impugna

  a

  constitucionalidade

  de uma

lei

  cria

  u m

  período

  de

  dúvida

  e

  incerteza

  a

 respeito

  de sua

validade

  e de

  seus efeitos legais; isso,

  do

 ponto

  de

  vista

  da

técnica legal,

  não é de

 modo algum satisfatório.

N a

 ausência

 de uma

 disposição clara

 da

 Constituição,

 to-

das as

 questões quanto

  ao

 efeito

 de um a lei

 inconstitucional

podem receber respostas contraditórias. Evitar

  ta l

  incerteza

foi uma das

  razões

  que

  levaram

  à

  centralização

  da

  revisão

judicial

 d a

 legislação

 n a

 Áustria,

  e a

 investir

 a

 Corte Consti-

tucional

  em

 jurisdição apta

  a

 abolir

  a lei

 inconstitucional

 de

modo geral,

 e não

 apenas

 n u m

 caso dado.

 A

 prática atual

 nos

Estados Unidos

 tem o

 mesmo objetivo, porém

 o

 persegue

 por

meios juridicamente imperfeitos.

A

  maior diferença entre

  as

  Constituições  americana

  e

austríaca

 diz

 respeito

 ao

 processo pelo qual

 um a lei é

 declara-

da inconstitucional pelo órgão competente. D e  acordo com a

Constituição

 dos

 Estados Unidos,

  a

 revisão judicial

  da

  legis-

lação

 só é

 possível dentro

 de um

 processo cujo objetivo prin-

cipal

 não

 seja estabelecer

  se uma lei é ou não

 constitucional.

Essa questão pode surgir apenas incidentalmente, quando

uma das

 partes sustentar

 que a

 aplicação

 de um a lei nu m

 caso

concreto viola  de  modo ilegal  os seus interesses porque  a lei

é

 inconstitucional. Assim,

 em

 princípio, apenas

 a

 violação

 de

u m

  interesse

  d e u m a

  parte pode colocar

  em

  movimento

  o

procedimento d e revisão judicial da legislação. O interesse n a

constitucionalidade

  da

 legislação, contudo,

 é um

  interesse

 pú-

blico

 que não

 necessariamente coincide

 com o

 interesse priva-

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312

HANS KELSEN

do das

 partes envolvidas; trata-se

 de um

 interesse público

 que

merece

  ser

  protegido

  por um

 processo correspondente

  à sua

condição especial.

  A s

  desvantagens resultantes

  d a

  ausên-

cia de tal  processo  são  amplamente reconhecidas  na  lite-

ratura jurídica americana

7

.

  A lei de 24 de

  agosto

  de 1937

dispondo quanto

  a

 intervenções

 p o r

 parte

  dos

  Estados

  Uni-

dos ,  apelos diretos  à  Suprema Corte  dos  Estados Unidos  e

regulação

  da

 prolação

  de

 medidas cautelares

 em

 certos casos

envolvendo

 a

 constitucionalidade

 de

 atos

 do

 Congresso, além

de

 outras matérias , reconhece também

 o

 interesse público

 n a

revisão judicial  da  legislação, porém  diz  respeito apenas  a

leis federais. Essa  le i confere ao governo federal o direito  de

intervir

  e m

  qualquer ação entre particulares,

  a f im de

  apre-

sentar provas

  e

  argumentos sempre

  que

 estiver

  em

  questão

  a

constitucionalidade

  de

  algum

  ato do

 Congresso

  que

 envolva

o

 interesse público.

 A

 mesma

  lei

 confere ainda

 ao

 governo

 o

direito de  apelar à Suprema Corte de um a decisão que decla-

re

 inconstitucional

  uma le i

 federal, objetivando também

  em

tais casos acelerar

 as

 decisões finais

 d a

 Suprema Corte.

 A lei

de 1937, por fim,

  busca impossibilitar

  a

 concessão,

  por um

juiz isoladc/,

 d e

 medidas cautelares

 q ue

 restrinjam

 a

 aplicação

de uma lei do Congresso com base na sua alegada inconstitu-

cionalidade

8

. Tudo isso, porém,

  é

  estabelecido apenas para

defender

  a

  validade

  de

  leis promulgadas pelo Congresso,

para tornar mais difícil

 u m a

  decisão judicial

  que

 declare

  in -

constitucional

 um a le i

 federal,

 e não

 para promover

 a

 anula-

ção de

 leis inconstitucionais.

Além

  da

  desvantagem

  de que a

  revisão judicial

  da le-

gislação possa acontecer apenas incidentalmente, isto  é, no

7. Cf .

  Oliver

  P .

  Field,

  The

  Effeci

  of an

  Unconstitutional Srarute,

(Minneapolis, 1935).

8.

  Alexander Holtzhoff,

  T h e

  Judiciary

  Act of

  1937 , trabalho lido

  n o

Encontro Anual

  da

 Associação Americana

  de

 Ciência Política,

  30 de

 dezem-

bro de 1941.

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL 313

curso  de um procedimento  que  serve prioritariamente  a ou-

tro

  propósito, acrescenta-se outra, ligada

  ao

  caráter federa-

tivo

  dos

 Estados Unidos.

  O

 governo federal pode promover

contra  um  estado  u m a  ação  em cujo transcorrer  a  constitu-

cionalidade

  de uma le i

 estadual pode

  ser

  contestada.

  Os es-

tados, porém, embora possam  ser processados pelo governo

federal,

 n ão

 podem

  por sua vez

 processá-lo.

  U m

 estado

  que

deseje

  ver uma le i

 federal declarada inconstitucional

  só po-

de consegui-lo através  de um atalho legal, qual seja, através

de um a

 ação contra

 o

 funcionário federal competente;

 e o in-

teresse

  do

 estado como parte litigante precisa

  ser

 maior

  que

u m mero interesse político ou constitucional - por exemplo,

o

 estado precisa

  ser

 proprietário

 ou ter um

  interesse

 e m

 bens

que  sejam res  communes,  etc.

A

 regularização dessa questão

 na

 Constituição austría-

ca foi

 particularmente influenciada pela experiência

  da prá-

tica constitucional americana. D e acordo com a Constituição

austríaca havia dois caminhos abertos para

  se

 chegar

 a um a

revisão judicial

  d a

  legislação,

  u m

  indireto

  e

  outro direto.

Primeiro,  u m particular poderia, durante  u m procedimento

administrativo, alegar

  que um dos

  seus direitos garantidos

pela Constituição tinha sido violado

 po r um a to

 administra-

tivo baseado numa  lei  inconstitucional.  A  queixa somente

poderia

  ser

  levada perante

 a

 Corte Constitucional depois

 que

a matéria tivesse passado p o r todas as instâncias administra-

tivas. Apenas incidentalmente

  a

  Corte decidia

  a

  questão

  d a

constitucionalidade

 da lei.

 Esse procedimento,

 n o

 entanto,

 era

instituído  p o r iniciativa  da própria Corte,  e somente  se esta

tivesse dúvida quanto

  à

  constitucionalidade

  da lei . Os par-

ticulares poderiam apenas sugerir

  a

 revisão judicial,

  não ti-

nham nenhum direito legal d e  exigi-la.

N o s

 procedimentos

 d as

 cortes

 a

 questão

 da

 constitucio-

nalidade era tratada d e modo distinto para leis e decretos. A in-

constitucionalidade

  d e

  decretos podia

  ser

  alegada

  por uma

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314

HANSKEISEN

parte  em  qualquer processo judicial,  mas a  revisão  só ocor-

ria se a própria corte tivesse dúvidas  a  respeito  d a aplicabi-

lidade

 d o

 decreto. Nesse caso

  a

 corte tinha

  que

  interromper

o

 processo

  e

 requerer

  à

 Corte Constitucional

  a

 anulação

  do

decreto. O processo d a Corte Constitucional era devotado ex-

clusivamente a essa última questão.

A  inconstitucionalidade das leis somente podia  ser ale-

gada perante  a Suprema Corte

  [Oberster Gerichtshof]

  ou a

Corte Administrativa

  [ Verwaltungsgerichtshof  ]

pois

  em tal

caso apenas essas cortes podiam interromper  seu  procedi-

mento

 e

 requerer

 à

 Corte Constitucional

 a

 anulação

 da lei, se

duvidassem  da sua constitucionalidade.  A  Suprema Corte  e

a

 Corte Administrativa procediam aqui

  ex qfficio,  n ão

 sendo

obrigadas  a conhecer os pedidos  das partes.

Uma vez que a Corte Constitucional tinha outras maté-

rias para decidir além d a constitucionalidade de leis e decre-

tos,

 podia também interromper seus processos nessas matérias

se  tivesse dúvidas quanto à constitucionalidade  da lei ou do

decreto  a ser aplicado  no  caso. A  interrupção ocorria  a f im

de permitir  à  Corte adotar  u m  processo especial para  con-

trolar a constitucionalidade  da lei ou do  decreto.

E m  todos esses casos,  n o s  quais  a  revisão judicial  era

alcançada  por via  indireta,  as  cortes procediam  ex  qfficio.

A s partes podiam apenas chamar a atenção das cortes para a

questão da constitucionalidade d as leis e decretos. N ão tinham

o

  direito

  de pôr em

  andamento

  o

  processo correspondente.

D o ponto  d e vista  do processo, somente  o interesse público

protegido pelas cortes

  era

 decisivo,

 e não o

 interesse privado

das

 partes.

Vindo  a Corte Constitucional  a  declarar inconstitucio-

nal a lei  submetida  à sua  revisão,  a  corte  que  havia feito  o

requerimento  de revisão - ou mesmo a própria Corte Cons-

titucional

  — não

  podia aplicar

  a lei no

  caso

  qu e

 motivara

  a

sua

 anulação. Nesse caso,

  a

 anulação possuía força retroa-

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

315

tiva, como j á  apontamos anteriormente.  Tal  força, concedi-

da excepcionalmente  à decisão anulatória,  era uma  necessi-

dade técnica, pois

 sem ela as

 autoridades encarregadas

 d a

 apli-

cação

 das

 leis (isto

  é, os

 juízes

  da

 Suprema Corte

 e da

 Corte

Administrativa)  n ã o  teriam tido  u m  interesse imediato  e

portanto suficientemente relevante para provocar a interven-

ção da Corte Constitucional. A s autoridades q ue solicitassem

à

 Corte Constitucional

  a

 revisão judicial

  de

 lima

 le i

 precisa-

v am saber  que seu pedido, caso tivesse sucesso  em anular a

lei,  teria  u m  efeito imediato sobre  a sua  própria decisão  no

caso concreto onde haviam interrompido

  o

  processo para

obter

  a

 decisão anulatória.

A via direta conducente  à revisão judicial  d a  legislação

era a seguinte

-

, a Constituição autorizava o governo federal a

requerer  à  Corte Constitucional  a  anulação  de uma le i ou

decreto emitido pela autoridade administrativa

  de um

  esta-

do; os governos estaduais,  por sua vez , estavam igualmente

autorizados a requerer a anulação de um a le i ou decreto edi-

tado pela autoridade administrativa

  d a

  União. Esta solução

do

 problema devia-se

  ao

 caráter federativo

 da

 república

 aus-

tríaca.  Por razões políticas  era necessário reconhecer  que a

administração federal e as estaduais tinham plena igualdade

quanto  à revisão judicial  da  legislação. Segundo  a  Consti-

tuição austríaca, a s leis federais n ão podiam entrar  e m vigor

sem a colaboração  da  administração federal, especialmente

sem a promulgação  da lei  pelo presidente, porém prescin-

diam

  de

  qualquer interferência

  p o r

  parte

  da

  administração

do s

  estados;

  d e

  modo similar,

  as

  leis estaduais

  não

  podiam

entrar  em vigor  s e m a colaboração  da administração d o res-

pectivo estado, porém  n ão  necessitavam  d a  interferência da

administração federal . Portanto, era supérfluo conceder à ad-

ministração federal

  o

  direito

  d e

  contestar

  a

 constitucionali-

dade d e leis federais e às administrações estaduais o de con-

testar leis estaduais. A administração federal devia rejeitar a

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316

HANSKELSEN

promulgação

  d e

  qualquer projeto

  de lei

  votado pelo Parla-

mento federal caso

  o

  considerasse inconstitucional.

  O

  fato

de uma lei

 federal entrar

 e m

 vigor significava

 que a

 adminis-

tração federal assumia plena responsabilidade pela constitu-

cionalidade dessa

  lei. O

  mesmo valia para

  as

  leis estaduais

em

  relação

  às

  respectivas administrações. Assim, bastava

conceder

  à

  administração federal

  a

  iniciativa para revisão

judicial apenas  da  legislação estadual  e à  administração  es-

tadual  a iniciativa para revisão judicial somente  d a  legisla-

ção federal.

IV

Quando

  se

  estava preparando

  a

 Constituição

  de 1920,

foram discutidos dois outros métodos para

  pôr em

  movi-

mento

 a

 revisão judicial

 da

 legislação.

 O

 primeiro seria

 con-

ceder

  a

  todo cidadão

  o

  direito

  de

  fazer

  u m

  requerimento

  à

Corte Constitucional, a qual estaria obrigada a pronunciar-se

sobre  a validade  da lei . Era uma  espécie  de  actio popularis

em  questões constitucionais.  A  segunda possibilidade seria

instituir  n a  Corte Constitucional  o cargo  de promotor geral

com a

 incumbência

  de

 proteger

  a

  Constituição.

  Sua

 função

seria  a de examinar todas  as  leis federais  e estaduais  e sub-

meter à consideração d a Corte Constitucional aquelas de cons-

titucionalidade duvidosa. Nenhum desses métodos

  fo i

 utili-

zado.  C o m  respeito à proteção de minorias pode  ser mencio-

nada ainda  u m a  terceira possibilidade, qual seja  a proposta

de

 conceder

  a uma

 minoria derrotada

  n as

 urnas

  o

 direito

  d e

contestar

  a

  constitucionalidade

  da lei

 adotada pela maioria,

mediante requerimento à Corte Constitucional.

Por fim,

 desejaria mencionar duas disposições

 d a

 Consti-

tuição austríaca q u e possivelmente serão de algum interesse

para

 os

 juristas americanos. Quando

 nos

 Estados Unidos

 um a

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

317

lei é anulada, surge a questão a respeito d a situação legal cria-

da  pela anulação  e m  relação  à matéria  que  regulava. Deve-

m os

 distinguir duas hipóteses:

 a

 primeira, quando,

 no

 momen-

to da entrada em vigor da lei, a matéria ainda  não possuía  re-

gulação jurídica. P o r exemplo, anulou-se um a le i que proibia

a produção  e venda  de  certos aparelhos  de  rádio. Anterior-

mente, a produção e venda de aparelhos d e rádio n ão estava re-

gulada  p o r  qualquer norma legal, havendo  a  esse respeito

completa liberdade.  A segunda possibilidade é qu e a lei anu-

lada tivesse substituído  uma l e i  prévia  o u u m a  norma  do

common

  law  que

  regulava

  a

  mesma matéria,

  p o r

  exemplo

uma le i

 proibindo

 a

 produção

  e

 venda

  de

 aparelhos

 de

 rádio,

porém prevendo penalidades muito mais leves.

 N o

 primeiro

caso  a  anulação  da lei tem o  efeito  de  restaurar  a  situação

legal existente antes da sua promulgação.  M a s o mesmo não

acontece  n o  segundo caso. Aqui  a  situação legal existente

antes  da promulgação  da lei anulada, isto  é, a lei  prévia  que

regulava  a  produção  e  venda  de  certos aparelhos  de  rádio,

não é

 automaticamente restaurada.

  A lei

  anterior

  ou a nor-

ma do

  common

  law  válida previamente  fo i  derrogada pela

le i posterior,  a qual  fo i  anulada. Essa  lei não é,  pois, como

apontamos, nula  ab

  initio,

  fo i somente invalidada pela deci-

são da

 Suprema Corte.

 C o m a

 anulação

 da

 última

 lei qu e

 proi-

bia a

 produção

  e

  venda

  d e

  certos aparelhos

  de

  rádio, essa

matéria torna-se livre  de qualquer regulação.

O efeito d a anulação pode  vir a ser bastante indesejável

e ir

 muito além

 do

 interesse

 na

 manutenção

  da

 Constituição.

E m casos onde  uma le i anulada  co m  base  na sua  inconstitu-

cionalidade tenha substituído  uma le i ou norma  do

 common

law  que regulava  a mesma matéria,  é melhor fazer  com qu e

essa  lei ou  norma válida anteriormente seja restaurada,  em

vez de termos um a situação que deixe a matéria livre de qual-

quer regulação. O restabelecimento d a primeira  lei ou norma

d o

 common

  law  não é possível  s e m u m a disposição expres-

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8/17/2019 KELSEN Hans. Jurisdicao Constitucional

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HANSKELSEN

sa da Constituição  q u e  atribua esse efeito a decisões anula-

tórias (ki Corte. A f i m d e evitar tais situações a Constituição

austríaca continha

  as

 seguintes disposições:

Se por

 decisão

 d a

 Corte Constitucional

 um a lei fo r anu -

lada

 n o

 todo

 ou em

 parte

 c o m

 base

  na sua

 inconstitucionali-

dade,  as normas legais anteriormente derrogadas p o r essa  lei

entrarão e m vigor simultaneamente c o m a decisão da referi-

da

  Corte,

  a

 menos

  que ela

 disponha

  de

 outra forma.

Assim,

  u m a

  decisão

  da

  Corte Constitucional pela qual

não

 apenas

 se

 anulava

 um a lei, m as

 também

  se

 restaurava

 uma

norma precedente,  não era  mero  a to negativo  de  legislação,

mas s im um ato positivo.

N o q u e concerne  à prática americana, desejaria chamar

a

 atenção

  do s

 juristas para

  a

 seguinte dificuldade:

  se não se

aceita

  a

  teoria

  da

  nulidade

  ab

  initio 

- e

 muitos juriscon-

sultos eminentes  não a aceitam

9

 -  torna-se impossível  m a n -

ter a

 opinião

  de que a

 decisão judicial declarando

  uma lei in-

constitucional tenha

  o

  efeito automático

  de

 restaurar

  a lei

precedente.

 S e u m a

 corte americana declara

 a lei

  inconstitu-

cional

  e

  rejeita

  sua

  aplicação

  n u m

  caso concreto,

  não tem

nenhuma possibilidade legal  d e  aplicar  a lei  anterior.  So-

mente  se a lei declarada inconstitucional fosse nula  ab  initio

(e isso significa que a lei foi anulada co m força retroativa)  a

lei

 anterior

  ou a

 norma

  do common  law

  válida anteriormen-

te

 seria aplicável.

 O

 motivo

  é que a lei

 declarada inconstitu-

9. Por  exemplo,  o  presidente  da  Suprema Corte Hughes,  e m  Chicot

County Drainage District

  v.

  Baxter State Bank,

  308 U.S. 371

  (1940).

  A

melhor formulaçlo

 d o

 problema encontra-se

  em

  Wellington

  et ai

  Petitioners,

16

 Pick.

  87

  (Mass., 1834),

  p. 96:

  'Talvez, contudo,

  se

  possa muito

  bem pôr

e m

  dúvida

  se um ato

 formal

 d e

  legislação pode alguma

  vez, com

  estrita

  pro-

priedade jurídica,  se r descrito como nulo; parece  ser  mais compatível  com a

natureza

  da

  matéria

  e os

  princípios aplicáveis

  a

  casos análogos, considerá-lo

como anulável.