kettle, 2010 - landi

Upload: cacoishak

Post on 09-Jul-2015

741 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL DA AMAZNIA

WESLEY OLIVEIRA KETTLE

UM SDITO CAPAZ NO VALE AMAZNICO (OU LANDI, ESSE CONHECIDO): UM OUTRO SIGNIFICADO DA DESCRIO DAS PLANTAS E ANIMAIS DO GRO-PAR

Belm 2010

WESLEY OLIVEIRA KETTLE

UM SDITO CAPAZ NO VALE AMAZNICO (OU LANDI, ESSE CONHECIDO): UM OUTRO SIGNIFICADO DA DESCRIO DAS PLANTAS E ANIMAIS DO GRO-PAR

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Histria Social da Universidade Federal do Par como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Histria Social da Amaznia. Orientador: Prof. Dr. Mauro Cezar Coelho.

Belm 2010

Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP) Biblioteca Central/UFPA, Belm-PA

Kettle, Wesley Oliveira Um sdito capaz no Vale Amaznico (ou Landi, esse conhecido): um outro significado da descrio das plantas e animais do Gro-Par / Wesley Oliveira Ketlle ; orientador, Prof. Dr. Mauro Cezar Coelho. 2010.

Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal do Par, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, Programa de PsGraduao em Histria Social da Amaznia, Belm, 2010.

1. Landi, Antnio Jos, 1713-1791. Histria natural. Descrio das plantas e animais da Capitania do Gro-Par. 2. Amaznia - Poltica e governo Sec. XVIII. 3. Amaznia Histria Sc. XVIII. I. Ttulo. CDD - 22. ed. 508.811

WESLEY OLIVEIRA KETTLE

UM SDITO CAPAZ NO VALE AMAZNICO (OU LANDI, ESSE CONHECIDO): UM OUTRO SIGNIFICADO DA DESCRIO DAS PLANTAS E ANIMAIS DO GRO-PAR

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Histria Social da Universidade Federal do Par como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Histria Social da Amaznia. Orientador: Prof. Dr. Mauro Cezar Coelho.

Data da aprovao: BANCA EXAMINADORA: ________________________________________________________ Prof. Dr. Mauro Cezar Coelho (UFPA) Orientador __________________________________________________________ Profa. Dra. Lorelai Brilhante Kury (Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ) _________________________________________________________ Prof. Dr. Rafael Ivan Chambouleyron (UFPA) _________________________________________________________ Profa. Dra. Leila Mouro Belm 2010

A Deus, que me ajuda em tudo A memria de meu av, Orisvaldo, que amou a Histria, A meus pais, que me ensinam a viv-la.

AGRADECIMENTOS

Todos aqueles que passaram pela experincia de elaborao de uma dissertao, sabem o quanto importante o apoio de amigos dedicados e companheiros para a realizao exitosa do trabalho final. Agradeo a todos que contriburam, com boa vontade, para que chegssemos at aqui. Agradeo ao Professor Mauro Cezar Coelho, meu orientador, pelas crticas pontuais, o acompanhamento eficaz e rgido, fundamentais para o encaminhamento que essa dissertao tomou. Minha gratido, no s pelas conversas formais e informais que mantivemos, mas sobretudo pela confiana depositada neste trabalho, sendo isso fundamental para que, diante das adversidades, eu pudesse ter tranqilidade para conclu-lo. Meu muitssimo obrigado. Ao professor Aldrin Moura de Figueredo, agradeo pela generosidade intelectual e pela disponibilidade com que sempre se colocou quando por mim procurado, desde os primeiros contatos ainda na graduao. Seu incentivo e suas sugestes contriburam decisivamente para a realizao do curso e da dissertao que ora apresento. Meu sincero agradecimento ao professor Geraldo Mrtires Coelho, por sua contribuio direta e efetiva na orientao deste trabalho at o Exame de Qualificao. Agradeo por sua crtica pertinente e pelas indicaes de leitura, me ajudando no amadurecimento desta dissertao. Ao professor Rafael Ivan Chambouleyron e a professora Leila Mouro, que ministraram as disciplinas da linha de pesquisa Histria e Natureza, agradeo a imensa contribuio para o aprofundamento de questes tericas importantes e a anlise minuciosa que fizeram dos textos apresentados por mim para discusso. Suas observaes, sugestes, dicas, crticas, informao da localizao de documentos e emprstimo de bibliografia foram essenciais nesta caminhada. Alguns amigos e colegas de profisso foram fundamentais, tambm.

Minha

gratido

a

Moema

Alves,

pelos

debates,

confrontos

e

questionamentos, os quais contriburam para o amadurecimento da minha reflexo sobre o argumento deste trabalho. Pelo apoio com a bibliografia, por sua ateno e, acima de tudo, pela especial amizade. Carinhosamente a Marlia Frana, pela ateno indispensvel e pela compreenso nos momentos mais importantes. Domingos Oliveira e Alinnie Santos leram e discutiram o trabalho em diversos momentos, indicando pontos nebulosos e sugerindo alteraes que pudessem contribuir com um texto mais claro e dinmico, ajudando na reviso, lendo a dissertao em busca de incorrees. Sem estas leituras, os erros seriam em nmero maior do que os existentes os quais so de minha total responsabilidade. Meu muitssimo obrigado. Agradeo aos caros colegas historiadores Mirtes Lima e Luciano Lima pelos debates, e, acima de tudo, pela amizade e o companheirismo, construdos ao longo do curso. Dedico esta dissertao a meus pais: a Walkrio, meu pai, pelo apoio que me tem dado ao longo de toda minha vida; a Madeleine, minha me, uma mulher de propsito, inspirao de perseverana para alcanar meus objetivos. Pelo exemplo de vida e trabalho, pelo amor dispensado e pelo bom humor, obrigado. A memria de meu av, Orisvaldo Gonzaga, por ter me ensinado que a humildade a maior qualidade de um homem e que a vitria se alcana com f, coragem, trabalho e livros. Com ele aprendi como viver com esperana e bom humor. Com muita saudade, obrigado.

E tu, Daniel, encerra estas palavras e sela este livro, at ao fim do tempo; muitos correro de uma parte para outra, e o conhecimento se multiplicar.Livro do profeta Daniel 12:4

RESUMO

Elaborada em meio s intervenes da administrao portuguesa no Vale Amaznico, a Descrio de vrias Plantas, Frutas, Animais, Aves, Peixes, Cobras, razes, e outras coisas semelhantes que se acham nesta Capitania do Gro Par, de Antonio Landi, escrita entre os anos de 1772 e 1773, tem sido vista pela historiografia como resultante dos interesses da Coroa portuguesa. Este trabalho tem por objeto de estudo tal descrio, propondo uma compreenso distinta da comumente aceita, de que a Descrio das plantas e dos animais da capitania do Gro Par surgiu como um desdobramento lgico das polticas metropolitanas. Sendo assim, no se trata de uma formulao sugerida ou determinada pela burocracia colonial, mas de um trabalho motivado a partir das demandas coloniais. Por outro lado, esta dissertao buscou compreender as intenes prprias da condio de colono do arquiteto italiano, evitando conceber sua produo como naturalista apenas como um reflexo do pensamento cientfico europeu. Antes, buscando entender essa atividade como relacionada ao contexto da dinmica colonial local. Dessa forma, este estudo procura evidenciar que as prticas e contornos prprios da sociedade do Vale Amaznico foram determinantes para a elaborao do trabalho de Histria Natural de Antonio Landi.

Palavras-chave: Landi. Colnia. Vale Amaznico.

ABSTRACT

Drawn up amid the interventions of the Portuguese administration in the Amazon Valley, Antonio Landis Descrio de vrias Plantas, Frutas, Animais, Aves, Peixes, Cobras, razes, e outras coisas semelhantes que se acham nesta Capitania do Gro Par, written between the years of 1772 and 1773, has been seen by History as a result of the interests of the Portuguese Crown. This present work has as object of study such description, providing an understanding which is distinct from the commonly accepted one: Descrio das plantas e animais da capitania do Gro Par emerged as a logical extension of the metropolitan policies. Thus, it is not a formulation suggested or determined by the colonial bureaucracy, but a work motivated by colonial demands. Moreover, this thesis aimed to understand the intents which were proper of the Italian architects condition of settler, avoiding to conceive his production as a naturalist only as a reflection of the scientific thinking in Europe. Formerly, seeking to understand this activity as something related to the context of the local colonial dynamics. Thus, this study seeks to demonstrate that the practices and specific shapes of the Amazon Valley society were instrumental in the development of Antonio Landis Natural History work.

Key words: Landi. Colony. Amazon Valley.

SUMRIO

INTRODUO .......................................................................................................... 12

PRIMEIRO

CAPTULO:

LEITURAS

DE

UM

INVENTRIO:

IDENTIDADE,

GENIALIDADE E HISTORIOGRAFIA ...................................................................... 20

SEGUNDO CAPTULO: DESCRIES DA NATUREZA NA COLNIA: LANDI DESENHADOR, SENHOR DE ENGENHO E NATURALISTA ................................. 46APROXIMANDO-SE DA NATUREZA COLONIAL: O TRATADO DE MADRI E A DEMARCAO DE LIMITES ....................................................................................................................... 49 A TRAJETRIA DE ANTONIO LANDI NO VALE AMAZNICO ............................................... 58 SDITOS CAPAZES EM UM LABIRINTO DE DESORDENS:INTERESSES COLONIAIS .............. 77

TERCEIRO CAPTULO: O DISCURSO POLTICO NAS DESCRIES DE ANTONIO LANDI ...................................................................................................... 90HOMEM E A NATUREZA NO SETECENTOS ...................................................................... 93 SUGESTES POLTICAS NA DESCRIO DE ANTONIO JOS LANDI ................................ 110 OS DENTES DO CAVALO DADO: SEGUNDAS INTEES NA DEDICATRIA DE ANTONIO LANDI

................................................................................................................................ 132

CONCLUSO ......................................................................................................... 148 REFERNCIAS ....................................................................................................... 151FONTES .................................................................................................................... 152 BIBLIOGRAFIA............................................................................................................ 155

LISTA DE E SIGLAS

AHMB AHU ANPOCS

- Arquivo Histrico do Museu Bocage. - Arquivo Histrico Ultramarino. - Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Sociais.

APEP BNRJ BPMP CNCDP

- Arquivo Pblico do Estado do Par. - Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. - Biblioteca Pblica Municipal do Porto. - Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses.

EDIPUCRS - Editora Universitria da Pontifcia Universidade do Rio Grande do Sul. EDIUPF EDUFF EDUFPA EDUSP ICALP IHGB INPA - Universidade de Passo Fundo. - Editora da Universidade Federal Fluminense. - Editora da Universidade Federal do Par. - Editora da Universidade de So Paulo. - International Colloquium on Automata, Languages and Programming. - Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. - Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia.

MCM-IHGB - MENDONA, Marcos Carneiro de. A Amaznia na Era Pombalina: correspondncia indita do governador e capito-general do Estado do Gro Par e Maranho, Francisco Xavier de Mendona Furtado. Rio de Janeiro: IHGB, 1963. 3v. NAEA UAL UFPA - Ncleo de altos Estudos Amaznicos. - Universidade Autnoma de Lisboa. - Universidade Federal do Par.

UFPE UNESP UNIFAP UNISC USP

- Universidade de Pernambuco. - Universidade Estadual Paulista. - Universidade Federal do Amap. - Universidade de Santa Cruz do Sul. - Universidade de So Paulo.

12

INTRODUO

Da terra formou, pois, o Senhor Deus todos os animais do campo e todas as aves do cu, e os trouxe ao homem, para ver como lhes chamaria; e tudo o que o homem chamou a todo ser vivente, isso foi o seu nome. Assim o homem deu nomes a todos os animais domsticos, s aves do cu e a todos os animais do campo. Gnesis 2,19 e 20

Natureza. Um termo pouco determinado em si e carregado de significado. Em sua definio mais geral, indica o conjunto das coisas que existem, particularmente, os princpios constitutivos essenciais. Segundo Edmund Ronald Leach, a idia do que seja natureza est intimamente relacionada a uma determinada sociedade, portanto a cultura que cria e inventa essa ideia. A concepo da ideia de natureza um processo dinmico dos seres humanos transformando-se ao longo do tempo,Quando exprimimos os nossos pensamentos empreendendo aes que impem modificaes no ambiente, simplificamos drasticamente o fluxo da 1 nossa experincia direta [...] impondo assim uma ordem artificial .

Robin George Collingwood tambm considera a percepo sobre a natureza uma construo a partir de mltiplos fatores culturais, permitindo que possamos conhec-la como uma percepo fabricada, artificial, por no ser natural a todos os seres humanos compreenderem o conjunto dos seres vivos de uma nica forma. Segundo o referido autor, cada cultura reconhece a flora e a fauna a partir de seus valores, elegendo uns em detrimento de outros. Em fins do sculo XVIII, a viso moderna de natureza, que hoje conhecemos, comea ser formada, baseada na analogia entre os processos do mundo natural, estudados pelos cientistas da natureza, e as vicissitudes dos problemas humanos, estudadas por historiadores 2. As relaes que os homens estabelecem com o mundo natural so variadas e continuamente construdas, reconhecendo a cultura produzida a partir dessa interao como determinada pela ao e conscincia humanas. De acordo com Antonio Carlos Diegues, os animais, as plantas, os seres humanos, tudo que_______________1

LEACH, Edmund Ronald. Natureza/Cultura. In: Enciclopdia Einaudi. Portugal: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. v. 5. p. 14. 2 COLLINGWOOD, Robin George. A Idia da Natureza. Lisboa: Editorial Presena, 1986. p. 16.

13

tem vida transforma essa natureza, todavia esse processo diferente para os seres humanos devido conscincia3. Quando os homens relatam suas observaes sobre o mundo natural nos permitem observar como se reconhecem diante das demais espcies e revelam suas intenes em relao natureza. Raymond Williams aponta para a importncia de olhar a idia de natureza por meio da histria, chamando a ateno para a complexidade do tema, especialmente na segunda metade do sculo XVIII. Considera a percepo pragmtica, inclinada a racionalidade, encontrada nos catlogos e inventrios sobre o mundo natural setecentista, uma atitude no espontnea ou sem conexes, mas sim resultante do acmulo de interpretaes do homem sobre o tema natureza, uma fabricao humana possuidora de sua historicidade4. Analisando essa problemtica da percepo humana sobre o mundo natural, Robert Lenoble considera que apesar de a Natureza conservar seu aspecto fsico ao longo do tempo, o homem tem percebido essa mesma Natureza de maneiras completamente diferentes, cada observao fruto de seu tempo, expressando aspectos cientficos e morais indispensveis para o estudo histrico que pretende compreender a idia de Natureza dos sujeitos, julgando como inexistente a figura de observadores puros 5. Nessa perspectiva que considera os homens de cincia de carne e osso, e suas narrativas construdas a partir das idias que os cercam, seu cotidiano, suas necessidades e suas intenes polticas, Robert Lenoble considera que(...) entre as idias globais que se edificam em redor dele e da Natureza, ele escolhe por si, e quando descobre algo novo, este algo de novo inscreve-se num conjunto. As mais das vezes, considera uma honra dar um sentido histrico sua cincia; e, ainda que opte por se retirar do mundo para 6 estudar, ao lado do seu laboratrio tem sempre o seu oratrio.

As palavras de Robert Lenoble acima destacadas evidenciam a_______________3

DIEGUES, Antonio Carlos. The myth of untamed nature in the brazilian rainforest. So Paulo: EDUSP, 1998. p.136. 4 WILLIAMS. Raymond. Ideas of nature. In: Selected essays. London: Verso, 1989. p. 67 e 72. 5 LENOBLE, Robert. Histria da idia de natureza. Lisboa: Edies 70, 1990. p. 27-28. 6 Ibid., p. 29.

14

ocorrncia do discurso poltico no trabalho cientfico, ou seja, as idias cientficas ao longo do sculo XVIII so construdas a partir das necessidades morais e sociais. Sendo assim, devemos analisar os pressupostos intelectuais como parte de todo um sistema de pensamento do homem de cincia, tomando suas observaes como parte ativa no processo de descrio do mundo que o cerca sem desconsiderarmos suas necessidades imediatas, especialmente aquela exploratria7. Essa discusso sobre a natureza contribuiu em nosso trabalho para pensarmos como, na segunda metade do sculo XVIII, o mundo natural foi percebido no Vale Amaznico por sujeitos como Antonio Landi. Essa natureza foi utilizada como um lugar no qual os agentes histricos poderiam expressar suas qualidades, manifestando seus atributos e habilidades, projetando-os como sditos capazes de servir ao Imprio portugus, no intuito de serem beneficiados com uma melhor posio na sociedade colonial. Trataremos, portanto, de como Antonio Landi, ao descrever essa natureza, expressou suas intenes prprias como sujeito do sculo XVIII, morador do Vale Amaznico, utilizando-se do texto cientfico para se qualificar como um sdito til ao Imprio luso, como parte da estratgia que buscava uma melhor condio na sociedade colonial. Dessa forma, essa dissertao trata das relaes polticas e de poder na sociedade colonial do sculo XVIII no Vale Amaznico, e como a apreenso da natureza serviu para o estabelecimento, concretizao e ampliao dessas relaes. Ao longo do sculo XVIII as produes no campo da Histria Natural evidenciaram com mais intensidade essa atitude dos homens de cincia em expressar suas observaes por meio de uma linguagem racional e cientfica. Antonio Landi8, membro da Comisso Demarcadora de Limites enviada ao Vale amaznico com o objetivo de demarcar os limites dos domnios das monarquias ibricas, escreveu seu trabalho de Histria Natural: Descrio das plantas e animais da capitania do Gro Par9, entre os anos de 1772 e 1773. Embora a produo_______________Ibid., p. 31. Mencionado nos escritos italianos como Giuseppe Antonio ou somente Antonio; ficar conhecido em Portugal e no Brasil como Antnio Jos Landi. 9 O ttulo completo da obra, em italiano, Descrizione di varie Piante, Frutti, Animali,Passeri, Pesci, Biscie, rasine, e altre simili cose che si ritrovano in questa Cappitania delGran Par Antonio.8 7

15

desse tipo de trabalho fosse de interesse da administrao colonial, nesta dissertao a descrio realizada pelo arquiteto italiano entendida como uma iniciativa nascida a partir das demandas prprias da colnia. Apesar da divulgao dos sistemas naturais europeus, defendemos que as motivaes que levaram Antonio Landi a realiz-lo encontram-se sobretudo na sua experincia no Vale Amaznico. Esta dissertao, portanto, trata desse trabalho de Histria Natural, dos significados que ele tomou na historiografia, das intenes que motivaram sua elaborao e que orientaram seu contedo. Nesse sentido, ela considera seu autor como um sujeito participante da sociedade colonial portuguesa no Estado do GroPar e Maranho agindo sobretudo em benefcio de seus interesses. Assim o recorte cronolgico adotado inicia-se com a chegada de Antonio Landi no Vale Amaznico. Ele termina por volta do ano de 1778 quando o arquiteto italiano j figura como um sdito conhecido por seus servios administrao local. O perodo destacado tem a inteno de compreender a trajetria de Antonio Landi e seu projeto de ampliao das relaes sociais com sujeitos politicamente influentes, em que a elaborao da Descrio pretendeu contribuir. Por meio da anlise das intenes dos moradores da colnia portuguesa na Amrica, em especial de Antonio Landi no Vale Amaznico, no que se refere ao desejo de ampliar suas relaes sociais e a utilizao dos trabalhos de Histria Natural nesse sentido, pretendemos desenvolver uma reflexo que perceba a elaborao do texto cientfico como um discurso sobretudo poltico, orientado pelas questes prprias da colnia e no apenas como um desdobramento do projeto metropolitano de resgate da cincia no Ultramar ou como um reflexo de trabalhos semelhantes realizados na Europa. O estudo sobre o aspecto poltico das descries sobre a natureza elaboradas pelo arquiteto italiano exigiu uma anlise dedicada do manuscrito de Histria Natural de Antonio Landi publicado por Nelson Papavero10 e por Isabel

Optamos, no entanto, por nos referir a ela pela seguinte denominao: Descrio das plantas e animais da capitania do Gro Par. 10 Traduo para o portugus, contando com algumas descries incompletas. PAPAVERO, Nelson et al. Landi: fauna e flora da Amaznia brasileira. Belm: Museu Paraense Emlio Goeldi, 2002.

16

Mayer Godinho Mendona11. Dentre o universo de documentos referentes a esse tema destacam-se as Cartas Rgias endereadas ao Estado do Gro-Par e Maranho, as Correspondncias do Governo do Estado do Maranho com a Metrpole e as Correspondncias de diversos com esse Governo, disponveis em verso digitalizada pelo Projeto Resgate, elaborado entre os Arquivos Pblicos brasileiros e o Arquivo Histrico Ultramarino12. Neles, foi possvel perceber a trajetria de Antonio Landi e seus interesses polticos como morador do Vale Amaznico. Consideramos essa uma observao que torna nosso trabalho original, pois analisa o trabalho cientfico escrito pelo arquiteto italiano no como um reflexo dos anseios metropolitanos ou das teorias cientficas europias, mas como parte do projeto de ampliao das relaes na sociedade colonial, orientado sobretudo a partir das questes prprias da dinmica social local. Com efeito, procurando atingir os objetivos propostos, dividimos esta dissertao em trs captulos: no primeiro, intitulado Leituras de um Inventrio: identidade, genialidade e historiografia, discutimos qual relao a produo historiogrfica estabeleceu com o texto de Histria Natural realizado por Antonio Landi. Nele, defendemos que as representaes sobre esse Inventrio, presentes na literatura acadmica, buscam criar a figura de um Homem de Cincia Genial. Assim, argumentamos que essa considerao da genialidade de Antonio Landi faz parte da construo de uma memria histrica sobre o passado da Amaznia. Donato Melo Junior, Augusto Meira Filho e Leandro Tocantins foram trs dos principais intelectuais a contriburem com essa elaborao de uma identidade amaznica a partir de valores do passado colonial, demonstrando que, alm de arquiteto, o italiano tambm foi um homem com habilidades de naturalista, o que o tornaria genial por transitar em diversos campos do conhecimento. Essa criao da figura de um homem de cincia genial na Amaznia Setecentista seria fundamental para as intenes de valorizar o passado Amaznico._______________Transcrio do manuscrito italiano. MENDONA, Isabel Mayer Godinho. Antonio Jos Landi (17131791): um artista entre dois continentes. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2003. 12 As referncias documentao encontram-se nas notas de rodap. Por meio de abreviaturas indicamos o arquivo ou a publicao onde se encontra o documento. No caso dos documentos do Arquivo Histrico Ultramarino, o primeiro nmero, aps a abreviatura, refere-se a caixa, o segundo refere-se ao nmero do documento ou a folha de referncia. Em relao ao manuscrito de Histria Natural de Landi, encontrado na Biblioteca Pblica Municipal do Porto, por ns conhecido e consultado por meio das publicaes de Nelson Papavero e Isabel Mayer Godinho Mendona, o primeiro nmero aps a abreviatura refere-se ao cdice, enquanto o segundo refere-se folha.11

17

O captulo, portanto, trata das leituras e interpretaes realizadas pela literatura acadmica sobre o trabalho de Histria Natural elaborado por Antonio Landi. Nosso objetivo no criticar os autores citados no intuito de conden-los por suas interpretaes, mas sim reconhecermos quais intenes influenciaram suas observaes, direcionando seus posicionamentos. Esse primeiro texto inicia a dissertao situando o ponto de vista que baseia seu argumento, sem deixar de reconhecer a importncia das informaes apresentadas pelos autores que critica. Trataremos da elaborao da Descrio das plantas e animais do Gro Par levando em conta a condio do autor de morador da colnia. Assim, o ttulo que demos ao trabalho, Landi, esse conhecido, indica a percepo dessa condio do arquiteto italiano, diferente daquela encontrada na obra Landi, esse desconhecido13, de Augusto Meira Filho. O segundo captulo, Descries da natureza na colnia: Landi desenhador, senhor de engenho e naturalista, trata do contexto encontrado por Antonio Landi ao chegar ao Gro-Par, com a responsabilidade de exercer a funo de desenhador da Comisso Demarcadora de Limites, apresentando sua trajetria no Vale Amaznico, evidenciando sua busca por demonstrar suas habilidades aos administradores coloniais no intuito de chamar-lhes a ateno. O captulo, portanto, busca mostrar Antonio Landi como colono, que escolheu estabelecer relaes com sujeitos que pudessem contribuir politicamente e economicamente, ento, apontamos que inadequado pensar seu trabalho com a Histria Natural um resultado direto e automtico do projeto metropolitano, sem qualquer relao com sua condio de morador da colnia. Assim, o terceiro captulo, O discurso poltico nas descries de Landi, complementa o argumento da dissertao. O sculo XVIII, sobretudo sua segunda metade, conheceu, por parte das principais naes europias, um interesse e uma necessidade por explorar os recursos naturais existentes em suas possesses coloniais. Reconhecendo esse interesse, muitos sujeitos que pretendiam ampliar suas relaes sociais realizaram trabalhos que sugeriam formas de transformar as

_______________13

MEIRA Filho, Augusto. Landi, esse desconhecido. Rio de Janeiro: Conselho. Federal de cultura. 1976.

18

espcies em riqueza com o objetivo de projetarem-se como sditos fiis, contribuindo com seus projetos de ampliao do poder. Este ltimo captulo, portanto, trata de como a Descrio das plantas e animais elaborada por Antonio Landi apresenta sua viso de natureza a partir de sua condio como morador da colnia, sugerindo como melhor explorar a fauna e a flora do Vale amaznico e destacando que benefcios isso traria para a Coroa. O captulo busca evidenciar o carter colonial e poltico do Inventrio, destacando como o autor, por meio das descries, tentou persuadir seus leitores se apresentando como um funcionrio capaz de assumir cargos de confiana e se colocando disposio para colaborar com projeto de explorao da Colnia e conseqentemente se beneficiando dele. Devemos, antes de concluirmos, reafirmar o quanto esta dissertao deve produo bibliogrfica que lhe antecede, pois a partir das informaes adquiridas por meio de sua leitura que buscamos apresentar uma nova interpretao do manuscrito de Histria Natural de Antonio Landi. No recusamos a importncia das teorias classificatrias em voga no sculo XVIII na Europa, tampouco desconsideramos a influncia das polticas metropolitanas no Vale Amaznico. Este trabalho pretende, tambm, evidenciar que as aes dos sujeitos que compuseram a sociedade colonial no Vale amaznico no foram planejadas pelos interesses da Coroa portuguesa, ou seja, no devem ser resumidas a simples reflexos dos interesses metropolitanos. Aes como a elaborao do Inventrio sobre a Natureza de Antonio Landi demonstram que esses sujeitos procuravam estratgias de sobrevivncia e ampliao das relaes sociais que lhes garantissem benefcios polticos e econmicos a partir de questes nascidas sobretudo na dinmica da sociedade colonial. Gostaramos de esclarecer nossa opo por utilizar, ao longo deste estudo, a expresso Vale Amaznico. Ao longo da pesquisa citvamos o lugar onde Antonio Landi atuou como desenhador da Comisso Demarcatria de Limites como Amaznia. Mauro Cezar Coelho chamou-nos ateno para o fato de que a noo de Amaznia como regio apenas se constituiu no sculo XIX. Aceitamos, portanto, sua sugesto de nos referirmos ao lugar de atuao da Comisso que Antonio Landi fez

19

parte utilizando a expresso Vale Amaznico, cunhada por Arthur Cezar Ferreira Reis14.

_______________14

REIS, Arthur Cezar Ferreira. Limites e demarcaes na Amaznia Brasileira. Belm: Secretaria do Estado da Cultura, 1993. 2 v.

20

PRIMEIRO CAPTULO

LEITURAS DE UM INVENTRIO: IDENTIDADE, GENIALIDADE E HISTORIOGRAFIA

Avarentos eram quase todos os conquistadores: estimavam o solo pelos metais preciosos que colhiam; resgatavam os supostos prisioneiros de guerra para terem escravos a seu servio, nada mais miravam que no fosse o benefcio particular de cada um. custa do suor e sacrifcio dos selvagens. Esta a triste verdade, que os fatos iro pouco e pouco confirmando. Domingos Antonio Raiol H uma histria, fcil e cmoda, feita de generalizaes, de snteses, de smbolos, que dispensando-se de indagar miudamente os fatos e as intenes que os presidem ou inspiram, vai canonizando personagens e glorificando aes, que de mais perto e melhor luz vistas so realmente execrveis. Jos Verssimo

Domingos Antonio Raiol1 e Jos Verssimo2 apresentaram crticas em relao ao significado e s interpretaes histricas da dominao portuguesa no perodo colonial. Ambos, escritores liberais, construram uma compreenso pessimista da histria colonial, destacando o que chamavam de "poder desptico, qualificado como atrasado, denunciando o autoritarismo de uma poltica violenta e pautada por desmandos, considerando serem esses os motivos do estado de pobreza em que se encontraram o Gro-Par e o Maranho. Domingos Antonio Raiol e Jos Verssimo compartilhavam de uma leitura que reconhecia a colnia como smbolo de uma histria de opresso estrangeira, na qual se encontraria a origem dos problemas que assolavam a sociedade paraense.

_______________1

RAIOL, Domingos Antonio. A abertura do Amazonas. In: _____________. Obras de Domingos Antonio Raiol, Baro de Guajar. Belm: Conselho Estadual de Cultura, 1970. p. 19. 2 VERSSIMO, Jos. Estudos amaznicos. Belm: EDUFPA, 1970. p. 147.

21

Os agentes da Coroa eram considerados como smbolos de um poder autoritrio que teria impedido o desenvolvimento econmico dessa sociedade.3 Os diversos textos produzidos ao longo do perodo colonial, assim como seus autores, foram interpretados, em fins do sculo XIX e incio do sculo XX, como testemunhas de um perodo de dominao da metrpole portuguesa. Os sditos leais ao Rei de Portugal, como Antonio Landi, representavam

O velho, o ultrapassado, o antigo regime. A imagem era do aristocrata, do senhor de engenho, do proprietrio de escravos e do apadrinhado da coroa portuguesa. O fim do sculo XIX lia a colnia com desdm e, mais do que 4 isto, procurava riscar do mapa esses tempos da dominao portuguesa .

Era preciso ter cautela ao se referir ao passado amaznico, pois, parecia estar nele a explicao de muitas mazelas sofridas pela sociedade paraense do perodo5, o Antigo tinha como sinnimo o atraso. Para Jacques Le Goff 6, esse tipo de leitura do passado, que colocava em oposio o Antigo e o Moderno, foi motivado pelo advento do Iluminismo. As novas formas de cincia, literatura e arte, desencadearam a ideia de que o Antigo representava algo superado, enquanto que o moderno se apresentava como progressista. Ainda no sculo XIX, Antonio Ladislau Monteiro Baena realizou seu estudo corogrfico7, destacando o fim do perodo colonial e valorizando uma histria independente em relao a Portugal. No intuito de construir uma minuciosa descrio da Provncia do Par, ele contou com a figura de Antonio Landi, na funo

_______________Sobre a construo da histria colonial de Domingos Antonio Raiol ver: RICCI, Magda. O Imprio l a colnia: um baro e a histria da civilizao na Amaznia. In: BEZERRA NETO, Jos Maia; GUZMN, Dcio de Alencar (Org). Terra matura: historiografia e histria social na Amaznia. Belm: Paka-Tatu, 2002. p. 29-37. Sobre a interpretao de Jos Verssimo referente ao passado colonial ver: BEZERRA NETO, Jos Maia. Os males de nossa origem: O passado colonial atravs de Jos Verssimo. In: _______________; GUZMN, Dcio de Alencar (Org). Op. cit., 2002. p.39-66. 4 FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. As memrias do Tempo de Landi. In: Seminrio Landi e o sculo XVIII na Amaznia, 2003, Belm: Anais do Seminrio. Belm: 2003. Disponvel em: . Acesso em 16 mai. 2008. 5 Cf. BEZERRA NETO, Jos Maia. Op. cit., 2002. p. 39-66. 6 LE GOFF, Jacques. Histria e memria. Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1996. p. 14. 7 BAENA, Antonio Ladislau. Ensaio Corogrfico sobre a provncia do Par. Braslia: Senado Federal, 2004.3

22

de arquiteto da cidade, reconhecendo seu trabalho na construo de edificaes e sua participao na vida religiosa8. Antonio Baena buscou entender a configurao do espao urbano que se apresentava diante dele, apontando por meio desse estudo as possibilidades da provncia em retirar da natureza benesses rentveis. Antonio Landi foi referido por ele como um personagem que participou diretamente da construo da cidade, envolvido na dinmica da economia local a favor da metrpole, representante do perodo colonial9. Apesar de nos propormos enfocar o trabalho de Antonio Landi sobre a Histria Natural, no podemos deixar de reconhecer que foi sua atividade como arquiteto que lhe conferiu grande notoriedade. A partir do sculo XX, um grupo importante de historiadores e estudiosos da arquitetura passou a reivindicar uma leitura que reconhecesse o passado colonial como positivo, utilizando a figura do arquiteto bolonhs para valorizar a histria da Amaznia, especialmente a histria da cidade de Belm do Par. Este captulo trata de como o Inventrio da Natureza formulado por Antonio Landi, tem sido utilizado pela literatura acadmica como um elemento de valorizao do passado colonial, e de como esse passado, o Inventrio e seu prprio autor deixaram de representar o atraso, smbolos de um tempo de dominao, para se tornarem, no argumento desses letrados, pontos de partida de trajetria vitoriosa do Vale Amaznico guiada pela administrao metropolitana, discurso que procurava valorizar toda a histria desse lugar. Reconhecemos que se trata de uma inteno ousada e, j anunciamos, ser realizada nos limites desta primeira parte quando poderia ser ele prprio objeto de todo o trabalho. Apesar dessa limitao, essencial que a apresentemos. Esta dissertao trata do carter expresso no trabalho de Histria Natural de Antonio Landi, o qual visto, por grande parte dos analistas, como representao direta dos anseios da Coroa portuguesa, relacionado ao projeto civilizador e como reflexo dos trabalhos de Histria Natural europeus._______________8 9

Ibid., p. 189. Sobre o Ensaio Corogrfico de Antonio Ladislau Monteiro Baena ver BARROS, Michelle Rose Menezes de. Germes de Grandeza: Antonio Ladislau Monteiro Baena e a descrio de uma provncia do norte durante a formao do Imprio Brasileiro (1823-1850). 2006. Dissertao (Mestrado em Histria), Universidade Federal do Par, Belm, 2006.

23

O argumento em questo, no entanto, sem deixar de considerar a existncia de um projeto portugus de civilizao para o Vale Amaznico e o desenvolvimento da Histria Natural na Europa, abdica da ideia que reconhece o Inventrio da Natureza de Antonio Landi como um desdobramento do projeto metropolitano de desenvolvimento do pensamento cientfico no Imprio Ultramarino. O objetivo a ser exposto a seguir pretende demonstrar que o texto de Histria Natural de Antonio Landi foi elaborado, tambm, a partir dos interesses do autor na condio de morador da colnia envolvido na dinmica local. Nesse sentido, o argumento dialoga com a historiografia e por isso importante situ-la. Os intelectuais empenhados na criao de uma identidade da cidade de Belm, capital do Par, buscaram incessantemente narrar o passado com um objetivo definido: criar o imaginrio da cidade moderna, por meio de um discurso que misturaria histria e poesia. Segundo Jacques Le Goff, as incertezas quanto ao futuro levaram o homem a olhar para o passado e encontrar nele alguma esperana10. Alguns intelectuais na Amaznia se debruaram sobre o tema da identidade da cidade. Dentre eles, Donato Mello Jnior, Augusto Meira Filho e Leandro Tocantins utilizaram a figura de Antonio Landi como um representante do perodo colonial, o qual trouxe modernidade para a Amaznia11. Grifa-se, portanto, um empenho pela valorizao das construes do passado, com o propsito de demonstrar o progresso da cidade amaznica ao longo do tempo. Milton Santos12 discute essa valorizao do passado como fenmeno que teve por objetivo individualizar o lugar; ou seja, diferenciando-o dos demais, assegurando sua importncia, dando novo significado ao passado do lugar. A valorizao da Amaznia como lugar singular se fez utilizando uma das dimenses mais importantes desse processo o passado. As edificaes coloniais constituram uma importante parte da paisagem que marcou e diferenciou a cidade

_______________Le Goff, Jacques. Op. cit., p. 14. MELLO Jnior, Donato. Antonio Jos Landi. Arquiteto de Belm, percussor da arquitetura neoclssica no Brasil. Belm: Governo do Estado do Par, 1973; MEIRA, Filho. Augusto. O Bi-secular Palcio de Landi. Belm: Grafisa, 1976 [A primeira edio de 1972]; TOCANTINS, Leandro. Santa Maria de Belm do Gro Par. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. 12 SANTOS, Milton. Tcnica, espao, tempo. So Paulo: Hucitec. 1994. p. 178.11 10

24

de Belm. Para isso, o estudo dos estilos artsticos conferiu valor ao conjunto arquitetnico. Historiador da arte e pesquisador dos estilos artsticos, Donato Mello Jnior preocupou-se, em sua produo acadmica, no enquadramento das edificaes aos estilos, localizando o incio do processo de classicizao das artes em Portugal e especialmente no Brasil, no final do sculo XVIII e incio do sculo XIX. O pesquisador em questo realizou um levantamento documental sobre a vinda do grupo de artistas franceses para o Brasil em 1816: Misso Artstica Francesa. A pesquisa de Donato Mello Jnior, interrompida pelo seu falecimento, procurava explicar a contribuio esttica e, de alguma maneira, a institucionalizao do ensino artstico, efetivada com a criao da Academia Imperial de Belas Artes em 1826, influenciando os arquitetos, escultores, gravadores e pintores. Essa preocupao fez parte do contexto da busca por uma certido de nascimento do neoclassicismo no Brasil, suas caractersticas e, consequentemente, pela demonstrao das fundaes da nao e a legtima e virtuosa preocupao do Estado Nacional em guiar as atividades literrias e artsticas13. Entre os resultados de suas anlises, a questo da originalidade se destaca como a principal, relacionada com o advento do neoclassicismo no Brasil. No debate sobre onde apareceu, primeiramente, a arquitetura neoclssica no Brasil, Donato Mello Jnior concluiu que Antonio Landi foi o precursor do neoclassicismo, por meio da arquitetura, no Pas.

Em nossas histrias de arte e nos referentes aprendia-se que o neoclassicismo chegara com a Misso Artstica Francesa de 1816, sem aluso s tendncias classicizantes que a antecederam. Destas a mais importante e pioneira no Brasil foi a contribuio landiana em Belm em sua maior parte chegada a ns bem ou mal conservada, adulterada ou no, e 14 at em runas.

Sua publicao, intitulada Antonio Jos Landi, arquiteto de Belm, percussor da arquitetura neoclssica no Brasil15, patrocinada pelo Estado do Par, demonstra o esforo pela construo de uma identidade da cidade de Belm, que_______________13 14

MELLO Jnior. Donato. Op. cit.,, 1973. p. 4D. Ibid., p. 4D. 15 Id.

25

poderia se colocar disposio da Histria do Brasil. Referindo-se ao arquiteto Antonio Landi, Donato Mello Jnior afirmava:

Belm deve a ele uma herana arquitetnica singular no Brasil Colnia: conheceu ela, com prioridade, as formas eruditas de uma arquitetura classicizante, neopaladiana, precursora do estilo neoclssico que, aqui no Brasil, s chegaria na segunda metade do sculo XIX pelas mos de outro grande arquiteto Grandjean de Montigny, criador depois do estilo imperial 16 brasileiro, o nosso neoclssico tropical.

Donato Mello Jnior considerou em suas pesquisas, alm do trabalho com arquitetura, a atividade realizada por Antonio Landi como gravador. Tinha, tambm, conhecimento de sua produo de Histria Natural, a servio da Comisso Demarcadora de Limites, no pelo Inventrio da Natureza, mas por supostos desenhos guardados na Biblioteca Municipal do Porto e pela correspondncia com o Governador da Provncia.

Hoje sabemos que Landi, alm de arquiteto e de construtor tambm foi documentarista de Histria Natural e gravador. [...] os desenhos da Biblioteca Municipal do Porto revelam o documentarista de Botnica e Zoologia, [...] e as cartas de Francisco Xavier de Mendona Furtado mostram aspectos humanos de sua pessoa e alguns documentos apontam o funcionrio desenhador contratado para servir numa partida do Norte que 17 veio para a definio dos limites luso-espanhis na Amaznia .

Apesar de seu trabalho de Arquiteto ser o fundamento do argumento de Donato Mello Jnior, ele reconhecia em Antonio Landi um homem que serviu Coroa de outras maneiras, valorizando sua figura como funcionrio com habilidades em diversas reas da cincia. O trabalho de Donato Mello Jnior estava relacionado restaurao do Palcio do Governo, que compunha o projeto de valorizao do passado da cidade de Belm.Hoje graas a um movimento de revalorizao dos bens culturais, artsticos ou histricos, bem compreendido pelo governador Fernando Guilhon, o Palcio landiano voltou, em grande parte aps criteriosa restaurao e documentada reconstituio s suas intenes plsticas e arquitetnicas, onde possvel, graas inclusive ao reconhecimento do seu valor pelo Ministrio de Educao, atravs do apoio financeiro do seu Ministro Jarbas

_______________16 17

Ibid., p. 4C. Ibid., p. 4E.

26

Passarinho e assessoria do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico 18 Nacional.

O argumento de Donato Mello Jnior, que afirmava Antonio Landi como arquiteto da cidade de Belm, servia para fundamentar as aes do governo do Estado. Estava apoiado por outros setores da administrao estadual e federal, demonstrando uma preocupao mais ampla quanto valorizao do passado nacional, incluindo o destaque preservao do passado religioso da capital paraense: Um novo orgulho para Belm, mais um ponto turstico da cidade e um futuro plo cultural e religioso19. Referindo-se ao Palcio dos Governadores, Donato Mello Jnior ressaltava:

Felizmente Belm, tem, nestes ltimos anos, conservado este monumento bi-secular que testemunha o valor de uma enorme e importante obra de Arquitetura, sinal da fora da Igreja nos Anais de Belm Colonial, 20 monumento e bem cultural do Par e do Brasil tambm.

Foi nesse contexto, que Donato Mello Jnior contou com as edificaes de Antonio Landi para fundamentar sua sugesto de uma Amaznia pioneira na arquitetura, no Brasil. Ainda podemos destacar outra obra do mesmo autor apoiada pela Sociedade dos Amigos de Belm, Iconografia de Belm do Gro Par: plantas do sculo XVIII21, que compunha o projeto de valorizao da capital paraense a partir do seu passado. A abertura da obra foi escrita pelo ento vereador Augusto Meira Filho, considerando Donato Mello Jnior um dos mais fiis admiradores de Belm. Nela, informa que o autor da obra, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, afeioara-se pela capital paraense, aps lecionar na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Par. Segundo Augusto Meira Filho, o que trouxe o reconhecido estudioso Donato Mello Jnior ao Par foi sua paixo pelo trabalho artstico de Antonio Landi, no Brasil e na Europa. Em Belm, ele encontraria o maior manancial de investigao da vida e obra do consagrado arquiteto de Bolonha, produzindo_______________Ibid., p. 4E. Ibid., p. 4F. 20 Ibid., p. 4G. 21 Id.. Iconografia de Belm do Gro Par: plantas do sculo XVIII. Belm: Sociedade dos Amigos de Belm, 1970.19 18

27

conhecimento importante para a histria do Par, por meio de minuciosa investigao nos arquivos do mesmo Estado22. Com esta obra, Iconografia de Belm do Gro-Par, Donato Mello Jnior, que havia sido premiado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil, divulga a histria da cultura luso-brasileira na capital paraense, apresentando plantas desenhadas no sculo XVIII como elementos utilizados pela administrao metropolitana para configurar o espao brasileiro, registrando a estratgia do Estado portugus, enquanto atribua valor ao trabalho do arquiteto.

A cartografia vetusta da Amaznia constitui um acervo preciosismo resultante da expanso portuguesa e uma fonte documentria que muito ajudou o Brasil a defender seus limites setentrionais baseados nas 23 monumentais Memrias do Baro do Rio Branco e de Joaquim Nabuco.

As obras consultadas por Donato Mello Jnior, como de Francisco Marques Sousa Viterbo, Antonio Baena, Manuel Barata e Alexandre Rodrigues Ferreira, provavelmente, levaram-no a consolidar sua pretenso de atribuir grande importncia s atividades realizadas por Antonio Landi. Provavelmente, o mesmo objetivo o levou a buscar por fundamentao, que justificou a pesquisa em bibliotecas e arquivos em Belm, no Rio de Janeiro e em Portugal. Francisco Marques Souza Viterbo, historiador portugus, fez referncia ao cdice de Histria Natural de Antonio Landi ao escrever uma srie de biografias de arquitetos, cartgrafos, desenhadores, naturalistas, engenheiros e fortificadores, publicadas na Revista Militar (1893-1895)24. O referido historiador ressaltou a contribuio e o esforo que os portugueses empreenderam na construo de vrias edificaes que valorizaram a Amaznia e a cidade de Belm. Anos depois, repetiu sua leitura das obras de Antonio Landi, ao construir uma biografia do arquiteto italiano em seu Dicionrio Histrico e Documental dos Arquitetos25. Os documentos coloniais, assim como as edificaes, deixaram, particularmente, de representar um tempo em que o Brasil era colnia, subjugado e_______________Ibid., p. 5. Ibid., p. 7. 24 VITERBO, Francisco Marques Souza. Expedies cientfico-militares enviadas ao Brasil, v. 2. Lisboa: Panorama, 1962-1964. v. 2. 25 Id. Diccionario historico e documental dos architectos e engenheiros constructores portugueses ou a servio de Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, 1899-1922. 3 v.23 22

28

escravista, para, por meio de um discurso oficial, ganharem valor como marcos da erudio arquitetnica, testemunhos de um passado de homens que lutaram pela constituio de uma soberania nacional. A figura de Antonio Landi foi alada condio de personagem fundamental, atribuindo-lhe uma espcie de paternidade que firmaria essa certido do nascimento da cidade e poderia servir para a valorizao da histria do Brasil. Os traos paladianos materializariam aquele propsito, tornando-os visveis aos olhos dos moradores da cidade, mesmo precisando de um discurso pautado pelas balizas acadmicas da histria da arte. A preocupao com a construo da Memria era um objetivo fundamental no discurso de Donato Mello Jnior, no do qual Antonio Landi seria aquele que daria sentido a todo conjunto arquitetnico da cidade de Belm, pois seu trao europeu garantiria o mrito do reconhecimento26. O arquiteto italiano, portanto, fez parte fundamental na constituio dessa Memria.

A Grcia, o Egito, a Itlia, a Frana, a Espanha, a Alemanha, a Inglaterra, o Japo e muitos outros pases sabem da importncia da Memria de suas culturas e tm no Turismo uma de suas fontes de renda. Aqui mesmo j comeamos: o Aleijadinho, as cidades histricas de Minas e Salvador so 27 plos do nosso turismo cultural.

O argumento de Donato Mello Jnior se fez utilizando, tambm, a comparao entre Aleijadinho e Antonio Landi. Para ele, Aleijadinho foi esquecido por algum tempo, mas havia recuperado prestgio por meio de vrias biografias, inclusive estrangeiras. Operao semelhante estaria acontecendo com Antonio Landi: uma revalorizao da importncia de suas construes para arquitetura nacional. O estudioso da arte destacava ainda o ambiente desfavorvel vencido por Antonio Landi para realizar suas atividades, caracterizando o arquiteto bolonhs como autor de grandes obras mesmo em condies precrias, como ocorreu, por exemplo, em Barcelos e mesmo em Belm28. Alm de contribuir para a formao de uma Memria sobre a cidade de Belm e Antonio Landi, Donato Mello Jnior ganhou reconhecimento nacional por seus trabalhos. Foi laureado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil em 1968, com_______________Sobre esse aspecto ver: ALVES, Moema; KETTLE, Wesley. Em Busca da paternidade: Landi e a inveno da cidade histrica. Revista Estudos de Amaznicos. 2009 (no prelo). 27 MELLO Jnior, Donato. Op. cit., 1973. p. 52. 28 Ibid., p. 120.26

29

direito a citao na grande imprensa. O professor e arquiteto Paulo Santos, reconheceu o trabalho Iconografia de Belm como original e uma contribuio de grande valia para a cultura histrica luso-brasileira, subsidiando os estudos de arquitetura no Brasil e em defesa do Patrimnio histrico e Artstico da Nao29. Dessa forma, podemos reconhecer que a figura de Antonio Landi, por meio de trabalhos como de Donato Mello Jnior, era divulgada, inserida em uma verso da histria do Brasil, chamando ateno para a cidade de Belm. Esse estudioso, no entanto, no esteve s. Por meio de argumentos e objetivos semelhantes aos de Donato Mello Jnior, Augusto Meira Filho tambm se valeu da arquitetura da cidade para atribuir valor histrico Belm do Par. Especialmente as edificaes coloniais foram exemplos utilizados por Augusto Meira Filho em uma espcie de resgate de uma histria considerada por ele esquecida e indispensvel. Nascido em Belm no ano de 1915, Augusto Meira Filho foi escritor, poeta, historiador, engenheiro e poltico. Participou ativamente da vida pblica da cidade na condio de vereador, sugerindo, como presidente da Cmara Municipal, projetos que visavam preservao do conjunto arquitetnico belemense. Destacou-se na dcada de 1970 como um dos mais importantes intrpretes da formao histrica de sua cidade natal30. Augusto Meira Filho trabalhou na construo de uma histria da cidade de Belm sob a tica da conquista poltico-econmica lusitana, tendo como argumento principal a ideia de que a capital paraense possua como destino histrico exercer o papel de centro catalisador do progresso do Vale Amaznico. Tal certeza se confirmaria lendo os acontecimentos que constituram a histria de Belm, a partir de um olhar que buscava anotar o aprimoramento da cidade. Augusto Meira Filho desenvolveu seu argumento por meio de interpretaes de documentos histricos, recolhidos em arquivos brasileiros e, como no caso do cdice de Histria Natural de Antonio Landi, arquivos portugueses.

_______________29 30

SANTOS, Paulo F. Apud MELLO Jnior, Donato. Op. cit., 1970. p. 52. SARGES, Maria de Nazar. Do traado de Landi ao Plasmador da cidade: a obra historiogrfica de Augusto Meira Filho. In: BEZEERA, Neto, Jos Maia; FONTES, Edilza Joana de Oliveira. Dilogos entre Histria, literatura & memria. Belm: Paka-tatu, 2007. p. 329-330.

30

O argumento do arquiteto genial foi amplamente defendido e divulgado por Augusto Meira Filho por meio de obras como Landi esse desconhecido31 e O Bi-secular Palcio de Landi32. Tais obras evidenciam a tentativa de resgatar a biografia do arquiteto bolonhs Antonio Landi, valorizando seu trabalho com Histria Natural, alm de valorizar o conjunto de edificaes do sculo XVIII encontrado em Belm. A produo de Augusto Meira Filho se fez na reivindicao de um lugar de destaque para a cidade de Belm, para isso valeu-se da obra de Antonio Landi interpretando-o como arquiteto inovador. No Congresso de Histria do Segundo Reinado, promovido pelo Instituto Histrico e Geographico Brasileiro no ano de 1975, ele apresentou um trabalho que demonstrava a ocorrncia de atividades artsticas, especialmente a pintura, no Segundo Reinado, na Provncia do GroPar33, apontando acontecimentos que valorizariam a histria da cidade. Seu argumento tinha sempre como finalidade principal caracterizar o passado da cidade de Belm como composto por fatos relevantes, evidenciando uma trajetria de progresso da cidade. Em Contribuio histria de Belm34, Augusto Meira Filho informou aos leitores uma seleo de eventos que, segundo ele, valorizaram a cidade de Belm por meio de seu passado. Podemos perceber um esforo considervel nesse projeto de demonstrar os eventos que deveriam estar presentes na narrativa histrica da Amaznia. A ideia de progresso da cidade baseou o pensamento de Augusto Meira Filho, portanto, em Evoluo histrica de Belm do Gro Par: fundao e histria35, ele tentou comprovar a trajetria ascendente da cidade, apresentando aspectos que deveriam ser percebidos como componentes da histria do Gro-Par. Assim, por meio de seu discurso, demonstrava elementos positivos que caracterizariam a cidade como um lugar singular.

_______________MEIRA Filho, Augusto. Op. cit., 1976. Id. O Bi-secular Palcio de Landi. Op. cit., 1976. 33 Id. Contribuio histria da pintura na provncia do Gram-Par no segundo reinado: esboo biogrfico de um artista esquecido. Belm: Sagrada Famlia, 1975. 34 Id. Contribuio histria de Belm. Belm: Imprensa Oficial do Estado do Par, 1973-1974. p. 2v. 35 Id. Evoluo histrica de Belm do Gro Par: fundao e histria. Belm: [s.n.], 1976.32 31

31

As diversas fases de sua poltica evolutiva, vendo-se em termos de espao, vencera um longo perodo de formao no sculo anterior. E essa formao, no conceito infinito de tempo, no seria mais do que um mdulo, um ambiente de um estgio, de um preldio, de um intermezo da grande paisagem urbanstica, em cujo painel cores mais vibrantes e mais profundas marcariam substancialmente, seu desenvolvimento a partir da metade do 36 sculo, por assim dizer, depois de 1753.

De acordo com o pensamento de Augusto Meira Filho, a partir da chegada da Comisso Demarcadora de limites, a cidade conheceu um novo e evoludo estgio. Seria o apogeu da administrao metropolitana na Amaznia, consequncia da experincia trazida pelos tcnicos e artistas que compunham a comisso: Daquele instante de renovao e de valorizao dos homens de governo e da prpria terra, Belm do Gro Par ganharia os primeiros fluidos de seu grandioso porvir.37 O argumento de Augusto Meira Filho baseia-se tambm, nas

transformaes do espao urbano, assimiladas como smbolos do progresso que a cidade de Belm experimentou, no decorrer de sua trajetria, levando-o a eleger o sculo XVIII como o perodo em que teve incio o movimento de progresso. Para ele, a cidade deveria reconhecer o brao colonizador como agente dessa prosperidade, sempre no sentido do litoral para o serto38. A transformao urbanstica da cidade foi, para Augusto Meira Filho, o sinal de um futuro promissor. Os moradores seriam transformados pela nova organizao imposta pelos colonizadores39. O tom otimista do autor seguiu, narrando a trajetria ascendente da cidade, a partir dos marcos arquitetnicos. A figura de Antonio Landi foi evocada para valorizar ainda mais esse passado.

A imensido verde, os pssaros coloridos e curiosos, as plantas exticas, tudo, enfim revelando sensibilidade do artista peninsular, aquela sensao de beleza de um mundo encantado que viria descobrir nos confins da Amrica. Todas as coisas, no rio Negro, na Amaznia, contriburam para extasiar o nosso bolonhs perdido e encantado nas florestas imensurveis 40 do grande Vale.

_______________36 37

Ibid., p. 495. Id. 38 Ibid., p. 498. 39 Ibid., p. 502. 40 Ibid., p. 578.

32

A histria de evoluo, construda por Augusto Meira Filho, considera Antonio Landi um intelectual que se doou pelo progresso da Amaznia. Descrevendo sua trajetria, relatou que o italiano escolheu no retornar a sua terra natal, crescendo em sua alma uma enorme vontade de permanecer neste pas, nestas terras do Gro Par e da Amaznia brasileira 41. A relao de Augusto Meira Filho com a figura de Antonio Landi esteve circunscrita defesa do seu argumento, segundo o qual Belm teria sido protagonista de uma trajetria progressiva, de aprimoramento. Antonio Landi participava dessa trajetria emprestando sua genialidade, constituindo-se em um dos heris da Histria da Amaznia. Isso porque o arquiteto italiano teria se colocado disposio do projeto portugus de modernizar a cidade de Belm e seus moradores. O entendimento da figura de Antonio Landi como um grande homem, presente na narrativa de Augusto Meira Filho, revela um discurso que faz parte de uma tradio da historiografia brasileira que, desde os primeiros anos da Repblica, cultua a teoria das grandes personalidades, figuras da elite dominante, que ocuparam postos de destaque no Estado, na Igreja, na vida poltica, econmica ou intelectual. Histria essa que, para Geraldo Coelho, trazia em seu interior uma frao da ideologia da classe dominante42. Completando a caracterizao desse Landi heri e genial, Augusto Meira Filho demonstrou como o arquiteto bolonhs se comportou de maneira sensvel e atenciosa diante da natureza do Vale Amaznico. Por meio desse encaminhamento, ele buscou criar a figura de um homem sem pretenses de explorao, mas caracterizando o projeto portugus para a colnia como uma iniciativa puramente comercial. Para afirmar a grandeza da obra de Antonio Landi, Augusto Meira Filho utilizou comparaes com reconhecidos artistas: Aleijadinho em Minas, Grand-Jean de Montigni no Rio e Louis Lger Vauthier no Recife, o nosso Landi representaria a mesma grandeza artstica no Gro Par43.Outros intelectuais como Robert Smith e_______________Id. COELHO, Geraldo Mrtires. Histria e ideologia: o IHGB e a Republica (1889-1891). Belem: Ed. da UFPA, 1981. p. 8-11. 43 MEIRA FILHO, Augusto. Evoluo histrica de Belm do Gro Par, Op. cit., 1976. p. 585.42 41

33

Germain Bazin foram citados por Augusto Meira Filho como estudiosos que reconheceram a genialidade do trabalho de Antonio Landi. Em sua interpretao, Augusto Meira Filho reconheceu o arquiteto bolonhs como um homem frente de seu tempo, por sua influncia na transformao do espao urbano da cidade. Os resultados dessas transformaes tambm se caracterizariam como vanguardistas, inclusive frente do Rio de Janeiro44. Essa viso deveria tornar a cidade de Belm singular, consciente de um passado glorioso, sem dever nada a qualquer outra capital. Augusto Meira Filho demonstrava a importncia de Antonio Landi, apresentando sua formao em Bolonha e a importncia de sua experincia e habilidade no processo de transformao do espao urbano colonial. Da mesma forma, o arquiteto foi reconhecido como dono de uma sensibilidade mpar diante da natureza, sendo citado como admirador e pesquisador da regio amaznica45. Por meio da anlise de edificaes como a capela, existente no interior do Palcio Lauro Sodr, Augusto Meira Filho reconheceu marcas que caracterizariam o trabalho de Antonio Landi. A Capela do Senhor dos Passos tambm foi mencionada por ele que, mesmo sem qualquer comprovao documental46, afirmava fazer parte da produo de Antonio Landi, estabelecendo semelhanas arquitetnicas entre a Capela Pombo e a Capela do Palcio Lauro Sodr:

Nota-se nesta casa religiosa [...] a semelhana impressionante de seus detalhes arquiteturais com o projeto de Landi destinado Capella do Palcio. Creio no haver mais dvida sobre a presena do nosso Landi 47 capelinha tradicional da Famlia Pombo.

O discurso do poltico, engenheiro e historiador Augusto Meira Filho faz parte dessa construo identitria da cidade de Belm a que temos nos referido, e a utilizao da figura de Antonio Landi converge na afirmao dessa verdade. O_______________44 45

Ibid., p. 584. Ibid., p. 577. 46 Sobre a Capela Pombo e sua relao com a figura de Antonio Landi ver: KETTLE, Wesley Oliveira. Capela Viva do senhor morto: usos do oratrio pblico no Gro-Par do sculo XVIII. 2008. Trabalho de Concluso de Curso (Especializao) - Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal do Par, Belm, 2008; OLIVEIRA, Domingos Svio de Castro. Capela Pombo, Belm/Pa: Interpretao e Perspectivas, 2008, Trabalho de Concluso de Curso (Especializao) - Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal do Par, Belm, 2008. 47 MEIRA, Filho, Augusto. O Bi-secular Palcio de Landi. Op. cit., 1976. p. 57.

34

arquiteto italiano torna-se parte desse entendimento da formao histrica de Belm, refora a busca pela compreenso de uma histria que evoluiu tendo sua origem na colonizao portuguesa, mas que seguiu seu prprio caminho. A histria concebida por Augusto Meira Filho formada por homens ilustres que trouxeram civilidade e inovao cidade, transformando a paisagem. Ela busca conscientizar seu leitor sobre a importncia de atentar para essa tradio da histria de Belm em abrigar e produzir intelectuais capazes de fazer o espao urbano progredir. Em Landi, esse desconhecido (o naturalista)48, Augusto Meira Filho utilizou como fonte principal de sua discusso o Inventrio da Natureza produzido pelo arquiteto italiano. Para ele, a sociedade paraense e a comunidade cientfica deveriam reconhecer a importncia do trabalho de Histria Natural realizado pelo arquiteto bolonhs. Dessa forma, Augusto Meira Filho buscou reforar a ideia da existncia de uma tradio amaznica de intelectuais capazes de desenvolver atividades em diferentes campos da cincia. O Inventrio da Natureza de Antonio Landi assume, ento, a condio de certificado do trabalho como Naturalista, demonstrando que, na Amaznia, existiu, ainda no sculo XVIII, uma preocupao cientfica em catalogar as espcies naturais. Segundo Augusto Meira Filho, alm de arquiteto, Antonio Landi tambm se debruou sobre a investigao da natureza, o que o tornaria figura indispensvel no projeto de valorizao da Amaznia por meio de seu passado. O prefcio escrito por Arthur Cezar Ferreira Reis, que abre a obra Landi, esse desconhecido, contribuiu para a interpretao das aes portuguesas como empreendimentos civilizadores do Vale Amaznico. O Inventrio do arquiteto italiano foi reconhecido como fruto de um esforo de integrao, promovido por uma poltica de valorizao da Amaznia. Para o referido autor, o Inventrio da Natureza de Antonio Landi expressava a preocupao do arquiteto em desvendar os mistrios da floresta49. As observaes de Augusto Meira Filho, contidas na obra Landi, esse desconhecido, tinham por premissa divulgar o trabalho de Histria Natural do_______________48 49

MEIRA FILHO, Augusto. Landi, esse desconhecido Op. cit., 1976. Ibid., p. 11-12.

35

arquiteto italiano. Todavia, discorreu sobre sua atividade como arquiteto rgio e, de maneira secundria, pontuou a importncia do Inventrio das plantas e animais amaznicos. No parece, portanto, ter sido seu objetivo discutir com profundidade a Descrio das plantas e animais da capitania do Gro Par, mas registrar como as espcies foram catalogadas e principalmente divulgar o lbum com desenhos atribudos a Antonio Landi. Augusto Meira Filho reivindicou o reconhecimento do arquiteto italiano tambm como Naturalista, de modo a qualific-lo como pioneiro da cincia na Amaznia, reconstituindo assim um passado glorioso que acompanhou as tendncias europias de inovao quanto investigao da Natureza. A divulgao por parte de Augusto Meira Filho, do trabalho de Histria Natural do arquiteto bolonhs, objetivava registrar que a Amaznia conheceu esse tipo de anotao cientfica muito antes que outras localidades do Brasil. Dessa forma, a aquisio dos manuscritos microfilmados assume a condio de ao patritica, pois significaria atestar a existncia do pensamento cientfico em territrio amaznico ainda no sculo XVIII. Segundo ele, os desenhos de Antonio Jos Landi revelam ter sido ele o iniciador dessa pesquisa em termos amaznicos, antecipandose a tudo quanto hoje se conhece atribudo a outros mestres do sculo XIX.50 importante considerar o que prope a historiografia (aquela de carter profissional) sobre as investigaes sobre a Natureza, no sculo XVIII, aos moldes da nova cincia e sua relao com o Iluminismo em Portugal e tambm em suas possesses na Amrica. Segundo Fernando Novais, as cincias naturais desenvolvidas em Portugal, durante a segunda metade do sculo XVIII, foram sendo fortemente influenciadas pelo Iluminismo Francs, o que teria, por consequncia, gerado grande impacto na conduo da poltica colonial na Amrica portuguesa.51 Em Aspectos da Ilustrao no Brasil, Maria Odila da Silva Dias52 demonstra que as vertentes mais polticas do pensamento iluminista no tiveram tanto destaque quanto s correntes utilitaristas, na forma pela qual a metrpole portuguesa, inserida no ambiente religioso lusitano_______________MEIRA FILHO, Augusto. Landi, esse desconhecido. Op. cit.,1976. p. 12. NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). So Paulo: Hucitec, 1979. p. 224. 52 DIAS, Maria Odila Silva. Aspectos da Ilustrao no Brasil. In: Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, n. 278, p. 105-170, 1968. p. 138. 53 Pedro Calafate pontua que a Ilustrao e a religio no so campos de excludentes, pois em Portugal estabeleceu-se um Iluminismo relacionado ideia de providncia divina ou da natureza.51 50

53

, agia em relao s suas

36

possesses na Amrica. Segundo a historiadora, as questes de ordem terica assumiram um lugar secundrio, enquanto isso uma cincia prtica orientava as aes do Estado e daqueles que investigavam a natureza, aproximando definitivamente, por meio da circulao de informaes e mercadorias, Portugal do discurso cientfico utilizado pelos imprios coloniais, ingls e francs54. Essa corrente pragmtica, que tomou corpo a partir de meados do sculo XVIII e criticava a ausncia de um estudo mais sistemtico e til ao desenvolvimento da metrpole, sustenta, tambm, o argumento de Roger Chartier, o qual considera que o Iluminismo se caracterizou como um movimento que transps os limites do campo filosfico para se tornar um conjunto de transformaes sociais55. Geraldo Mrtires Coelho reconhece a influncia do Iluminismo no Vale Amaznico sob a forma de monarquia esclarecida, a qual presidia as aes dos agentes sociais na gesto poltica do Estado portugus, por meio dos exemplos do Marqus de Pombal, em Lisboa, e de Francisco Xavier Mendona Furtado, no GroPar. Dessa forma, os domnios portugueses no Vale Amaznico teriam conhecido o Iluminismo e todos os elementos fundadores do seu discurso. Os trabalhos de Antonio Landi seriam, portanto, smbolos do projeto civilizacional lusitano e expressariam o esforo pela inveno da Amaznia Pombalina56. De outra forma, Benedito Nunes e Aldrin Figueiredo57 argumentam que as atitudes da intelectualidade, durante a poca de Landi no Vale Amaznico, no nos permitem estabelecer um dilogo com o Iluminismo, mas somente a partir do sculo

Sobre esse aspecto Jacques Roger denominou de utilitarismo devoto, compreendido por Kury na anlise do abade Pluche. CALAFATE, Pedro. A idia de natureza no sculo XVIII em Portugal (17401800). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,1994; ROGER, Jacques. Les Sciences de la vie dans la pense franaise du XVIIIe. sicle. Paris: Albin Michel, 1993; KURY, Lorelai. Entre utopia e pragmatismo: a Histria Natural no Iluminismo tardio. In: SOARES, Lus Carlos (Org.). Da revoluo cientfica big (business) science. So Paulo/Niteri: Hucitec/Eduff. 2001. 54 Richard Grove considera que a circulao de informaes entre essas naes europias evidenciam uma rede de dados com dimenses globais, constatando que no sculo XVIII j haveria uma conscincia planetria nesse sentido. Ver GROVE, Richard. Green imperialism: Colonial expansion, tropical island Edens and the origins of environmentalism, 1600-1860. Cambridge: Cambridge Univ. Press. 1995. 55 CHARTIER, Roger. Les origines culturelles de la Rvolution Franaise. Paris: Seuil, 1990. p. 25. 56 COELHO, Geraldo Mrtires. Linguagem e utopia: figuras do discurso civilizacional pombalino na Amaznia. In: Seminrio Landi e o Sculo XVIII na Amaznia, 2003, Belm. Anais eletrnicos. Belm: 2003. Disponvel em: . Acesso em: 16/05/2008. 57 NUNES, Benedito; FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Luzes e Sombras do Iluminismo Paraense. In: BEZERRA NETO, Jos Maia; GUZMN, Dcio de Alencar (Org). Op. cit., p. 19-28.

37

XIX. De acordo com essa perspectiva, os trabalhos de Antonio Landi deveriam ser interpretados percebendo seu distanciamento geogrfico que o separava da Europa. Ainda sobre a influncia do Iluminismo nas aes implementadas no Estado do Gro-Par e Maranho, no contexto de um projeto civilizacional pombalino, podemos considerar o trabalho de Mauro Cezar Coelho e seu argumento de que o Iluminismo no foi determinante na elaborao dessas aes. Em seu estudo sobre a elaborao do Diretrio dos ndios, reconhece que a presso dos colonos, derivada da antiga demanda por mo-de-obra, originou essa legislao colonial. De acordo com essa perspectiva, questes prprias dinmica local, como o controle e distribuio de mo-de-obra, o Tratado de Madri e a delimitao das fronteiras tambm influenciaram diretamente o pensamento no Vale Amaznico, no apenas as necessidades da Metrpole58. As consideraes de Augusto Meira Filho se inserem, ento, em uma discusso do sculo XX ao que estava acontecendo no cenrio nacional, contamos com a historiografia sobre o carter do Iluminismo luso-brasileiro sem, contudo, dar conta de questes estruturais, para a compreenso da questo, como demonstra a digresso exposta anteriormente. Essa licena do autor paraense, pode ser entendida por meio da anlise de Maria de Nazar Sarges, segundo a qual as obras e publicaes de meados do sculo XX, alm de procurarem valorizar o passado de Belm, selecionaram os fatos que a memria do povo paraense deveria guardar, consolidando uma histria escrita e escolhida pelo governo, alm de buscar amenizar as aes autoritrias de o governo militar, que punia seus contestadores59. Outro importante autor que utiliza a figura de Antonio Landi para compor seu argumento foi Leandro Tocantins. Utilizando uma linguagem potica, ele descreveu as construes projetadas pelo arquiteto bolonhs na obra Santa Maria de Belm do Gro Par60. O historiador e socilogo, liricamente, lista, descreve e busca dar sentido histrico a uma srie de palcios, igrejas, solares e sobrados da cidade de Belm._______________COELHO, Mauro Cezar. Do serto para o Mar. Um estudo sobre a experincia portuguesa na Amrica, a partir da Colnia: O caso do Diretrio dos ndios (1751-1798). 2005. Tese (Doutorado em Histria). Universidade de So Paulo, So Paulo. 2005. 59 SARGES, Maria de Nazar. Op. cit., p. 333. 60 TOCANTINS, Leandro. Op. cit.58

38

As construes do arquiteto italiano ganham sentidos, smbolos e histria nas palavras de Leandro Tocantins. O objetivo claramente convencer o leitor do valor daquelas edificaes. Por meio da evocao da histria das ruas, para o que utiliza a tradio oral como fonte, o referido autor participa da construo dessa cidade patrimnio amaznico. Mas, no foi apenas com a cidade que ele se preocupou, sua pretenso foi mais ampla: a valorizao da Amaznia61. As reflexes de Leandro Tocantins contam com observaes sobre a arquitetura das construes coloniais, levando o leitor a admirar os detalhes, sempre em tom potico.Capela do Senhor dos Passos, com sua fachada branca, de linhas neoclssicas e sutis motivos barrocos de ornamentao [...] o templo ainda exibe o piso de lajotas vermelhas que datam da construo, [...] a Capela do 62 Senhor Bom Jesus dos Passos um encanto de se ver.

A figura de Antonio Landi foi utilizada por Leandro Tocantins para reforar a ideia de edifcios-monumento. A genialidade do arquiteto italiano parece estar consolidada, mesmo assim, a falta da assinatura de alguns projetos atribudos a Antonio Landi ainda o inquieta:

As linhas de sua arquitetura, tanto no interior como no exterior, so espontneas e graciosas, acrescendo sua beleza com qualquer coisa de vivo, de especial quase estou dizendo, com a maneira de Antonio Jos Landi. E quem nos diz que ela no obedece a desenho de Landi? Os papis histricos silenciam a este respeito. Mas, e a intimidade de formas, de 63 concepes na decorao, com o estilo do arquiteto italiano?

A assinatura de Antonio Landi reconhecida por Leandro Tocantins como elemento de valorizao para o conjunto arquitetnico presente na Amaznia. Ele relaciona uma beleza do estilo na criao do arquiteto bolonhs, e dessa maneira a Amaznia contaria com algo singular. Em contexto de um pensamento lusotropicalista, discurso regionalista, que a narrativa de Leandro Tocantins tambm contribuiu para a construo de uma memria histrica da cidade de Belm a partir

_______________61

Leandro Tocantins foi assessor de Arthur Cezar Ferreira Reis (1908-1994) na Comisso de Valorizao da Amaznia, diretor da Embrafilme e adido cultural em Lisboa. Tambm trabalhou como assessor do Conselho Federal de Cultura escrevendo inmeros livros dedicados s questes da regio norte. 62 TOCANTINS, Leandro. Op. cit., 1987. p. 267-8. 63 Ibid., p. 268.

39

da arquitetura, do passado colonial e de um esforo oficial do resgate dessa memria, destacando sempre o esprito luso presente na formao da Amaznia. A identidade de Belm, no contexto abordado aqui, foi construda a partir de feitos dos grandes heris, dos homens geniais. Nesse contexto, verifica-se o interesse pela interpretao dos espaos coloniais, de modo a representar o presente a partir do passado, destacando as diferenas regionais e as semelhanas com a cultura europia. A produo em referncia, ao se utilizar do trabalho de Histria Natural realizado por Antonio Landi, registra um passado no qual, atividades pioneiras, como o Inventrio da Natureza do arquiteto italiano, reclamam o reconhecimento da existncia de uma tradio cientfica, ressuscita um naturalista em meio a uma floresta primitiva e divulga uma memria oficial. As obras de Augusto Meira Filho, Donato Mello Jnior e Leandro Tocantins utilizam os trabalhos de Antonio Landi com o intuito de apresentar elementos que valorizem a histria da Amaznia. O esforo desses intelectuais no pode ser dimensionado sem considerar seus interesses e o contexto poltico no qual estavam envolvidos. Segundo Michael Baxandall, qualquer discurso movido por uma inteno, pois ele um produto da atividade humana: a hiptese de fundo que todo ator histrico e, mais ainda, todo objeto histrico tm um propsito ou um intento ou, por assim dizer, uma qualidade intencional64. Assim, apesar da utilizao do trabalho de Histria Natural realizado por Antonio Landi compor uma tentativa de compreenso do passado, ela est inserida em um discurso que buscou demonstrar que a cidade de Belm possua um passado de tradio, inovador e erudito, o que sugeria um futuro com as mesmas caractersticas. No foram, no entanto, somente os intelectuais diretamente envolvidos com a construo de uma certa memria amaznica, os que trabalharam no sentido de estabelecer uma perspectiva que ressaltava o gnio-arquiteto, erudito, naturalista. Isabel Mendona, ao apresentar uma anlise sobre a trajetria de Antonio Landi, apresenta informaes sobre os anos em que o arquiteto esteve em Portugal_______________BAXANDALL, Michael. O interesse visual intencional: o Retrato de Kahnweiler, de Picasso. In: Padres de inteno: a explicao histrica de quadros. So Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 81.64

40

e no Brasil. Segundo a referida autora, as razes que levaram o arquiteto italiano optar pela mudana foi o desejo por conhecer um novo continente e trabalhar a servio de um monarca com fama de incentivador da arte. Em sua anlise, abordou o processo no qual a administrao colonial abandonou uma viso reticente em relao ao italiano e passou a encar-lo como figura importante para os propsitos de ocupao territorial do Vale Amaznico, no somente por seu trabalho na Comisso Demarcadora, mas por sua viso empreendedora na utilizao dos produtos da natureza. Todavia, a referida autora refora a figura de um observador da natureza despretensioso, interessado no exotismo da fauna e da flora encontrada no Gro-Par65.

As suas observaes revelam o amante da Natureza, maravilhado com o tamanho desmesurado de plantas e animais, com os cheiros, os paladares, as cores to diferentes dos europeus. [...] Nas suas descries deparamos constantemente com o homem curioso pela Natureza que o rodeia, que 66 guarda em sua casa tbuas de rvores exticas.

O manuscrito contendo a descrio da natureza do Gro-Par escrito por Antonio Landi tambm citado por Isabel Mendona, ao referir-se atividade como desenhador de temas de Histria Natural. Reconhece nele pouco valor cientfico, porm percebe ali a expresso da sensibilidade do arquiteto bolonhs diante da natureza amaznica, manifesta em sua curiosidade pelas plantas e animais67 da regio. Isabel Mendona, a partir dessa mesma viso de um arquiteto italiano curioso sobre a Natureza amaznica, apresenta em sua tese doutoral, uma anlise sobre a relao de Antonio Landi com a Natureza, baseando-se em suas descries das plantas e animais do Gro-Par. O argumento que reconhece Antonio Landi como um observador atento da Natureza Amaznica, utilizado por Isabel Mendona na construo da imagem de um arquiteto multifacetado, autor de obras marcadas por influncias europias, pois seus trabalhos no Vale Amaznico so compreendidos a partir das orientaes da Academia Clementina e das determinaes da Coroa portuguesa. Isso se_______________MENDONA, Isabel Mayer Godinho, Dados biogrficos Portugal e Brasil (1750-1791), In: VRIOS. Amaznia Felsnea: Antnio Jos Landi, Itinerrio artstico e cientfico de um arquitecto bolonhs na Amaznia do sculo XVIII. Lisboa: Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, 1999. p. 19-53. 66 Id., Op. cit. 2003. p. 311-312. 67 Id., Op. cit. 1999. p. 55-56.65

41

aplicava tanto aos seus trabalhos como construtor, quanto aos seus escritos sobre o mundo natural. Essa ltima considerao fica clara quando se tem em conta a anlise que Isabel Mendona formula sobre as observaes do italiano sobre a natureza. Sua anlise debrua sobre o desenho e a tcnica do construtor bolonhs, chamando ateno para a conformao das obras, tanto na concepo do estilo adotado quanto no financiamento das construes. Da mesma forma, o trabalho de Histria Natural, se constituir-se-ia em reflexo do projeto lusitano, permitindo conhecer um heri patrocinado pela administrao metropolitana, que explica parte do que se reconhece como patrimnio histrico na Amaznia. Na obra intitulada Amaznia Felsnea/ Antonio Jos Landi Itinerrio artstico e cientfico de um arquitecto bolonhs na Amaznia do sculo XVIII, encontramos reunidos uma srie de artigos que se propem a apresentar a figura de Antonio Landi como aquela que expressa a unio entre o mundo portugus e o amaznico, resultante do projeto poltico ibrico de demarcao das fronteiras entre Espanha e Portugal. Tal publicao reconhece no arquitecto Clementino uma figura emblemtica, na qual confluem diferentes tradies culturais e artsticas e que se interessou precocemente pela questo amaznica68. Podemos compreender os artigos reunidos na obra acima referida no contexto das comemoraes dos 500 anos de Descobrimento do Brasil, quando, mais uma vez, se pretendeu dar figura de Antonio Landi as qualidades de um homem capaz de valorizar, por meio de seu trabalho cientfico e principalmente artstico, a Amaznia e consequentemente o Brasil, registrando inequivocamente a contribuio portuguesa para o desenvolvimento da nao brasileira. Como deixamos claro, essa obra comemorativa no inaugurou essa tentativa de redimensionar a figura de Antonio Landi, com o propsito de torn-lo um cone da Amaznia luso-brasileira. Ela se distingue, todavia, ao apresentar documentos com o objetivo de fundamentar essa viso de grande artista europeu responsvel por parte da transformao da Amaznia setecentista. Apesar de considerar a vida e a obra de Antonio Landi na Amaznia uma_______________VRIOS. Amaznia Felsnea: Antnio Jos Landi, Itinerrio artstico e cientfico de um arquitecto bolonhs na Amaznia do sculo XVIII. Lisboa: Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, 1999. p.13-17.68

42

conjugao de experincias e tradies de espaos culturais diferenciados, os artigos reunidos em Amaznia Felsnea reconhecem a tradio artstica bolonhesa e os projetos portugueses como elementos que iro dirigir as aes realizadas pelo arquiteto italiano. A dinmica prpria da sociedade residente no Vale Amaznico no considerada relevante para a orientao da trajetria do construtor bolonhs. Compondo a obra Amaznia Felsnea, o Inventrio sobre a Natureza fonte principal do artigo escrito por Luzia de Sousa, que desenvolve o argumento de que a descrio das plantas e animais do Vale Amaznico contribui para a considerao do arquiteto Antonio Landi como naturalista, destacando curiosidades em seu relato. O artigo em questo reitera o propsito de se registrar a existncia precoce da pesquisa cientfica, promovida pelo Estado portugus na Amaznia69. Por outro lado, Nelson Papavero questiona a atribuio de genialidade ou, simplesmente a caracterizao do trabalho de Antonio Landi como vanguardista, quando trata de sua insero pela Histria Natural. Para o referido autor, os sistemas de classificao e descrio utilizados na Europa, na segunda metade do sculo XVIII, no foram observados no Inventrio sobre a Natureza do Gro-Par, escrito pelo arquiteto bolonhs. Alm disso, o Inventrio do arquiteto italiano apresentaria aspectos do pensamento renascentista, demonstrando um descompasso entre suas descries e as propostas pela Nova Cincia. Nelson Papavero apresenta o contexto iluminista relacionando-o ao trabalho de Histria Natural realizado por Antonio Landi, e, diante do que viu classifica-o de superficial, por considerar sistemas de classificao coevos. apresentada uma transcrio do Inventrio escrito por Antonio Landi, contendo notas com o objetivo de esclarecer as intenes do trabalho realizado pelo italiano alm de determinar os nomes das espcies70. As anlises que utilizam o Inventrio de Antonio Landi, tanto a de Nelson Papavero quanto a de Isabel Mendona, tm lido a Descrio das plantas e animais_______________69

SOUZA, Luzia de. Contribuio para o conhecimento do arquitecto Landi como naturalista. In: Amaznia felsnea. Antnio Jos Landi. Itinerrio artstico e cientfico de um arquitecto bolonhs na Amaznia do sculo XVIII. Lisboa: Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses. 1999. p. 259-72. 70 Sobre os aspectos reconhecidos no inventrio de Antonio Landi, ver: PAPAVERO, Nelson et al. A Histria Natural no Tempo de Landi. In: Seminrio Landi e o Sculo XVIII na Amaznia. 2003, Belm: Anais eletrnicos, 2003. Disponvel em: . Acesso em: 28/01/2010. Sobre a transcrio do Inventrio, ver: PAPAVERO, Nelson et al. Op. cit,, 2002.

43

da capitania do Gro Par com a preocupao de relacion-las s determinaes metropolitanas ou s orientaes da Histria Natural vigente na Europa. Esse mesmo aspecto tem influenciado as pesquisas que se debruam, especificamente, sobre os trabalhos arquitetnicos de Antonio Landi, resultando em uma discusso urbanstica. Nesse sentido, elegem o trao de Antonio Landi como manifestao do projeto civilizatrio pombalino, de organizao da colnia portuguesa, responsvel pela alterao da paisagem da cidade amaznica. Seu trabalho como desenhador e observador da natureza aparece como mais uma habilidade do arquiteto genial. A valorizao do passado, especialmente a construo de uma histria positiva da cidade de Belm, se fez por meio de um discurso oficial que considera Antonio Landi como o grande responsvel por realizar as obras pensadas pela Coroa portuguesa. Suas atividades so colocadas a servio da valorizao do passado luso-amaznico. Essa fabricao do arquiteto-heri, responsvel por guiar a cidade em direo ao progresso, reconhece suas aes como reflexo dos projetos metropolitanos. Essa viso deixou de lado a grande experincia que o arquiteto teve na Amaznia, onde passou a maior parte de sua vida, ou seja, no reconhece Antonio Landi como colono, morador de Barcelos ou de Belm, onde se casou, teve filhos e principalmente realizou atividades comerciais. Suas aspiraes como sujeito poltico e seu envolvimento na dinmica local poderiam revelar o sentido de seu trabalho de Histria Natural e sua relao com a Natureza amaznica. A literatura acadmica que considera o Inventrio sobre a Natureza de Antonio Landi o interpreta como um desdobramento das aes metropolitanas, trabalho que evidencia a importncia da presena portuguesa no desenvolvimento da Amaznia. Tambm l a Descrio do italiano com a preocupao de estabelecer semelhanas e diferenas com os sistemas de classificao utilizados no mesmo perodo no Velho Mundo. Um grupo maior exalta sua figura com o propsito de reafirmar uma tradio de incentivo por parte do Estado Portugus ao trabalho com as Cincias Naturais; tambm procuram constatar um passado em que a arquitetura foi fundamental para a reorganizao do espao urbano possibilitando o progresso da cidade, alm de demonstrar como um desses tcnicos da construo expressou sua genialidade por meio do trabalho com outros campos da cincia, nesse caso a Histria Natural.

44

A Descrio das plantas e dos animais da capitania do Gro-Par no a evidncia de uma preocupao lusitana diante das questes amaznicas, nem somente um simples reflexo das aspiraes administrativas do governo portugus, como tambm no um desdobramento do projeto de ocupao do territrio amaznico, tampouco se resume na tentativa de se aproximar do pensamento cientfico europeu. O Inventrio expressa o discurso de Antonio Landi como morador da colnia envolvido na dinmica local. Dessa forma, suas experincias e seus interesses no Vale Amaznico Amaznia, foram fundamentais para a construo da viso de Natureza expressa no seu trabalho de Histria Natural, revelando suas pretenses e a dinmica da sociedade local. A genialidade a ele atribuda no se sustenta quando reconhecemos que realizar atividades em diversos campos do conhecimento foi atitude comum ao longo do sculo XVIII. Segundo Nelson Sanjad, os homens que participaram desse perodo de conformao das fronteiras do ultramar (1750-1820) possuam uma caracterstica comum: a qualidade de polgrafos. Transitavam por diferentes reas do conhecimento, foram ao mesmo tempo naturalistas, exploradores, artistas e muitas vezes comerciantes e proprietrios de terras.71. Antonio Landi, assim como outros seus contemporneos, procurou representar o territrio de muitas maneiras, por meio da cartografia, das medies, desenhando e escrevendo, como era comum aos participantes de expedio. Ele tambm pretendia que seus trabalhos circulassem no meio burocrtico colonial e ganhassem visibilidade, possibilitando sua ascenso social, por isso sua atuao profissional no se restringiu a arquitetura, seus interesses ultrapassavam os objetivos explcitos da misso que fazia parte. O argumento que nos propomos apresentar, procura ler a Descrio das plantas e dos animais da capitania do Gro Par reconhecendo ser um texto produzido no Vale Amaznico, portanto, expressando as questes referentes s demandas locais, especialmente de interesse de seu autor. Propomos perceber Antonio Landi por meio de sua insero na sociedade colonial do vale: um conhecido da administrao colonial e dos colonos. Ressaltamos, antes de_______________SANJAD, Nelson; PATACA, Ermelinda Moutinho. As fronteiras do ultramar: engenheiros, matemticos, naturalistas e artistas na Amaznia, 1750-1820. In: Artistas e artfices: e a sua mobilidade no mundo de expresso portuguesa. Actas do VII Colquio Luso-Brasileiro de Histria da Arte, Porto, 2005. Porto: Universidade do Porto. p.431-437. 2007. p.437.71

45

prosseguir, que de forma alguma pretendemos desconsiderar o conhecimento produzido ao longo do tempo sobre o manuscrito de Histria Natural do arquiteto bolonhs, ao contrrio, a partir dele poderemos construir nossas observaes.

46

SEGUNDO CAPTULO

DESCRIES DA NATUREZA NA COLNIA: LANDI DESENHADOR, SENHOR DE ENGENHO E NATURALISTA

Alm das grandes riquezas, e mui ricos minerais de ouro, prata, diamantes, e mais pedras preciosas, e variedade de metais, de que o grande Amazonas se abona pelo mais rico rio do mundo de que j demos alguma notcia, [...] abunda tanto em gneros e especiarias no s estimveis, mas em todo o mundo preciosos, que bastariam ao canonizar pelo mais rico rio, dos que aponta por grandes a geografia, e ricos as histrias; j houve quem, alm dos menos principais, lhe contou trinta e tantos gneros preciosos, e comerciveis a todo o mundo, como so mbar, acar, anil, blsamos, cacaus , caf e muitos outros; e como estas so as principais riquezas do seu grande tesouro, no s por estveis, mas comum a todos os seus habitantes, delas daremos agora notcia neste Tratado para que os leitores vejam que so realidades da verdade, e no hiprboles de historiador.

Padre Joo Daniel

O relato do Padre Joo Daniel expressa uma representao do Vale Amaznico como espao de grandes riquezas1, viso comum desde as primeiras incurses europias na Amrica. Essa viso descreve uma Natureza prodigiosa, cheia de possibilidades para a explorao econmica do domnio portugus2. Membro da Companhia de Jesus, o Padre Joo Daniel trabalhou como missionrio no Estado do Gro-Par e Maranho, durante os anos de 1741 e 1757. A partir dessa experincia, produziu uma descrio pormenorizada do Vale Amaznico. Por meio de sua obra, O Tesouro Descoberto do Rio Amazonas3, podemos perceber sua crtica poltica colonial implementada pelo Marques de Pombal, formulada, segundo Kelerson Semenere Costa, sob influncia da condio_______________DANIEL, Joo. Tesouro descoberto no mximo rio Amazonas 1722-1776 [Publicada, pela primeira vez, em 1976] - Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. v.1. p. 523. 2 Sobre esse aspecto ver: GONDIM, Neide. A inveno da Amaznia. So Paulo: Marco Zero, 1994. p.10. 3 DANIEL, Joo. Op. cit., 2 v.1

47

religiosa d