lacan com klein

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Lacan leitor de Klein 208 Lacan leitor de Klein: da clínica kleiniana com Dick à teorização lacaniana Lacan, a reader of Klein: from the reading of the Kleinian clinical approach with “Dick” to the lacanian theorization Angela Maria Resende Vorcaro & Marcela Rêda Guimarães 1 Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil Resumo Neste artigo pretendemos resgatar o caso Dick para apontar as implicações da clínica kleiniana apoiados em recortes de seminários de Lacan sobre o caso em questão. Utilizamos o artigo A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do Ego (1930/1996) de Melanie Klein como base para a discussão além de algumas passagens dos Seminários 1 (1953-4/1986), 3 (1955-6/1988), 6 (1958-9/2013) e 11 (1964/2008) de Lacan, com o objetivo de apreender as aproximações e as divergências desses psicanalistas. Resgatamos a teoria que Klein utiliza para situar a condição psíquica da criança e os recortes clínicos do caso. Por fim, retomamos a leitura de Lacan relativa ao caso, para discutir sobre as diferentes concepções de linguagem presentes nos autores. Palavras-chave: Psicopatologia da criança, Klein, Lacan Abstract The present article intends to revisit the Dick case, in order to point out some implications of the Kleinian clinical approach based on excerpts from Lacan’s seminars that relate to same. We use Klein’s article, “ The importance of symbol-formation in the development of the ego” (1930/1996), as an outset for the discussion, as well as some passages from Lacan’s Seminars 1 (1953-4/1986), 3 (1955-6/1988), 6 (1958-9/2013) and 11, aiming to grasp both the approximations and divergences between these psychoanalysts. We recover the theory used by Klein to situate the child’s mental condition and also the clinical newspaper clippings of the case. Finally, we retake Lacan’s reading of the aforementioned case with the purpose of discussing the different conceptions of language present in both authors. Keywords: Child psychopathology, Klein, Lacan Introdução Pretendemos, neste artigo, discutir as implicações da clínica de Melanie Klein no atendimento do menino Dick, a partir de diferentes observações de Lacan. Tomaremos como base, o artigo A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do Ego, (1930/1996) de Melanie Klein, e os apontamentos lacanianos nos Seminários 1 (1953-4/1986), 3 (1955-6/1988), 6 (1958-9/2013) e 11 (1964/2008), ressaltando a aproximações e afastamentos entre as duas perspectivas. Resgataremos a teoria que lhe serve de base para situar a condição psíquica da criança e os recortes clínicos do caso. Em seguida, 1 Contato: [email protected] Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 7 (2), jul - dez, 2014, 208-219

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Quais as relações entre estes dois famosos analistas da contemporaneidade? Apontamentos para um diálogo interdisciplinar

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  • Lacan leitor de Klein 208

    Lacan leitor de Klein: da clnica kleiniana com Dick

    teorizao lacaniana

    Lacan, a reader of Klein: from the reading of the Kleinian clinical approach

    with Dick to the lacanian theorization

    Angela Maria Resende Vorcaro & Marcela Rda Guimares1 Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil

    ResumoNeste artigo pretendemos resgatar o caso Dick para apontar as implicaes da clnica kleiniana apoiados em recortes

    de seminrios de Lacan sobre o caso em questo. Utilizamos o artigo A importncia da formao de smbolos no

    desenvolvimento do Ego (1930/1996) de Melanie Klein como base para a discusso alm de algumas passagens dos

    Seminrios 1 (1953-4/1986), 3 (1955-6/1988), 6 (1958-9/2013) e 11 (1964/2008) de Lacan, com o objetivo de

    apreender as aproximaes e as divergncias desses psicanalistas. Resgatamos a teoria que Klein utiliza para situar a

    condio psquica da criana e os recortes clnicos do caso. Por fim, retomamos a leitura de Lacan relativa ao caso,

    para discutir sobre as diferentes concepes de linguagem presentes nos autores.

    Palavras-chave: Psicopatologia da criana, Klein, Lacan

    AbstractThe present article intends to revisit the Dick case, in order to point out some implications of the Kleinian clinical

    approach based on excerpts from Lacans seminars that relate to same. We use Kleins article, The importance of

    symbol-formation in the development of the ego (1930/1996), as an outset for the discussion, as well as some passages from

    Lacans Seminars 1 (1953-4/1986), 3 (1955-6/1988), 6 (1958-9/2013) and 11, aiming to grasp both the

    approximations and divergences between these psychoanalysts. We recover the theory used by Klein to situate the

    childs mental condition and also the clinical newspaper clippings of the case. Finally, we retake Lacans reading of

    the aforementioned case with the purpose of discussing the different conceptions of language present in both

    authors.

    Keywords: Child psychopathology, Klein, Lacan

    IntroduoPretendemos, neste artigo, discutir as

    implicaes da clnica de Melanie Klein noatendimento do menino Dick, a partir dediferentes observaes de Lacan. Tomaremoscomo base, o artigo A importncia da formao desmbolos no desenvolvimento do Ego, (1930/1996) de

    Melanie Klein, e os apontamentos lacanianos nosSeminrios 1 (1953-4/1986), 3 (1955-6/1988), 6(1958-9/2013) e 11 (1964/2008), ressaltando aaproximaes e afastamentos entre as duasperspectivas. Resgataremos a teoria que lhe servede base para situar a condio psquica da criana eos recortes clnicos do caso. Em seguida,

    1 Contato: [email protected]

    Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 7 (2), jul - dez, 2014, 208-219

  • A. M. R. Vorcaro & M. R. Guimares 209

    retomaremos a leitura de Lacan relativa ao caso,para sustentar a discusso sobre as diferentesconcepes de linguagem presentes nospsicanalistas.

    1. Os instrumentos conceituais usados porKlein na leitura de Dick

    A teoria de Klein (1930/1996) tributria daarticulao entre a concepo de identificao deFerenczi, segundo a qual esta precursora dosimbolismo e surge quando a criana tentarreencontrar em todos os objetos seus prpriosrgos e funes, e a noo de equao simblicade Ernest Jones, em que o princpio do prazertorna possvel a equao entre coisascompletamente diferentes por uma semelhana deprazer ou interesse. Reapresentaremos, nesse item,as bases em que ela sustenta o caso.

    Segundo Klein (1930/1996), a primeira etapado desenvolvimento mental efeito dopredomnio do sadismo, ativado em cada uma dasfontes de prazer libidinoso. o desejo sdico-oralde devorar o seio da me (ou a me) que d incioao ponto culminante do sadismo, quedesaparecer, posteriormente, com o advento doprimeiro estgio anal. O alvo predominante dosadismo o corpo da me: destru-la com todas asarmas de que pode dispor. A criana supe, nocorpo da me, substncias comestveis s quaisequipara o pnis do pai (j que, na fantasia infantil,durante o coito, o pai ou seu pnis incorporado me), excrementos e crianas. Seus ataques sdicosque mordem, rasgam, cortam e despedaam ospais, despertam ansiedade; por isso ela teme sercastigada. Acresce-se a tal temor a angstiainteriorizada pela introjeo sdico-oral dosobjetos. Ao sadismo oral e muscular somam-se osadismo uretral e anal. Assim, os excrementostornam-se armas perigosas: urinar equivale a cortar,apunhalar, queimar e afogar; a matria fecalrepresenta armas de fogo, projteis e,posteriormente, equiparada a venenos.

    O excesso de sadismo desperta angstia,movimentando mecanismos primitivos do ego.Emerge, assim, a primeira defesa, relativa s duasfontes de perigo: o prprio sadismo e o objetoatacado. Tal defesa, de carter violento, difere doposterior recalque: ela implica expulso. O sadismo perigoso porque, enquanto se defende destruindo

    o objeto para liberar ansiedade, aponta para oprprio ego, j que o objeto atacado pode retaliar.Assim, a tarefa do ego de dominar a angstia fogede seu alcance.

    O interesse libidinal da criana conjuga-se angstia, que pe em funcionamento o mecanismoda identificao. o que torna a primeira realidadeda criana to fantstica: a criana deseja destruiros rgos que ela equipara a objetos os quais,devido a essa equiparao, convertem-se emobjetos de ansiedade. Como todos os objetoscausam ansiedade, todos so equivalentes(excrementos, rgos, objetos, coisas animadas einanimadas). Assim, a criana se v impelida a fazernovas equaes que constituem a base do seuinteresse nos novos objetos e no simbolismo.Nessa perspectiva, sadismo e impulsoepistemoflico so simultneos. Afinal, o objeto deambos o corpo materno com seus contedosfantasiados. So as fantasias sdicas dirigidas aocorpo materno que constituem a relao bsica eprimeira com a realidade. Assim, o simbolismofundamenta a fantasia e a sublimao, uma vez quea equao simblica permite que coisas, atividadese interesses convertam-se em temas de fantasiaslibidinais. sobre o simbolismo que se constri arelao do sujeito com a realidade. Do xito comque o sujeito atravessa essa fase depende suapossibilidade de alcanar um mundo externo quecorresponda realidade.

    S a partir dessa realidade irreal, com aevoluo do ego, que se estabelece uma relaoverdadeira com a realidade. Assim sendo, Klein(1930/1996) conclui que uma quantidadesuficiente de ansiedade1 base necessria para aformao de smbolos e fantasias. Odesenvolvimento do ego e a relao com arealidade dependem, portanto, do grau decapacidade do ego para tolerar a presso inicial daansiedade.

    2. Sntese do caso clnico relatado por Klein2.1. Histria prvia ao tratamento

    Aos quatro anos, a criana tinha vocabulrio edesenvolvimento intelectual inferior a dois anos.Sem adaptao realidade nem interao

    1 Os termos ansiedade e angstia so utilizados no texto (ou na traduo) sem distino conceitual. Foram mantidos, aqui, nas posies em que aparecem no artigo.

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  • Lacan leitor de Klein 210

    emocional, era indiferente presena da baba ouda me, raramente manifestava ansiedade. Seminteresses, no brincava.

    Dick apenas articulava sons ininteligveis erepetia certos rudos. Usava incorretamente seuvocabulrio e era incapaz de se fazer entender.Demonstrando atitude negativa, fazia o contrriodo que se pedia. Alterava palavras que a meensinava, embora pudesse fal-las; se as repetiacorretamente, era de modo mecnico e incessante.Na oposio ou obedincia, no se percebia afetoou compreenso.

    Insensvel dor, ao se machucar, nodemonstrava interesse em ser consolado. A faltade jeito fsico impedia que segurasse facas outesouras, apesar de manejar normalmente a colherao comer.

    Quase morreu de inanio, porque no pegavao peito e foi alimentado artificialmente.Posteriormente recusava-se a mastigar, sendopreciso obrig-lo a comer. Sofreu transtornosdigestivos, prolapso anal e hemorroidas. Andou notempo normal.

    Era tratado com muitos cuidados, mas sem umverdadeiro amor. Sua me percebera que ele noera normal e isso deve ter afetado sua atitude comele. Aos dois anos, outra ama e a av foram muitocarinhosas. Aprendeu a controlar as funesexcretrias e demonstrava certo grau de brio. Aosquatro anos, manifestou receptividade a censuras(a ama o censurou por masturbar-se e isso deuorigem a temores e sentimentos de culpa).Interessou-se em aprender mecanicamente palavrasnovas. Mesmo assim, no estabelecia contatoemocional.

    2.2. As sesses do tratamento analtico de Dick:1 sesso: No manifesta emoo ao se afastar da

    ama; corre de um lado para o outro sem propsitoe em volta da analista; movimentos falhos decoordenao, expresso fixa, ausente e dedesinteresse. Apresenta grande angstia latente,pega e larga objetos sem brincar e refugia-se nocanto da sala.

    Klein mostra os brinquedos; Dick os olha seminteresse. Klein toma um trem grande, coloca-ojunto a um menor e denomina-os: trem do papai;trem de Dick. Dick pega o trem menor, roda-o ata janela e diz: estao. Klein explica: A estao a

    mame, Dick est entrando na mame. Dick larga o trem, corre at o espao formado

    pelas portas externas e internas do aposento,fecha-se e diz: escuro, e corre. Repete isso vriasvezes. Klein explica: escuro dentro da mame. ODick est dentro da mame escura.

    Dick pega novamente o trem, mas corre para oespao entre as portas, enquanto Klein diz que eleest entrando na mame escura. Dick interroga:bab? bab?, ao que ela responde: a bab j vem.

    2 sesso: Dick corre direto do consultrio para ohall de entrada escuro, coloca ali o trem Dick,insistindo em ficar ali com o trem. Perguntarepetidamente: a bab vem?.

    3 sesso: Dick alm de correr para o hall entre asportas, tambm se enfiou detrs da cmoda.Tomado de ansiedade, chama Klein pela primeiravez. Pergunta insistentemente pela bab. Comea ainteressar-se pelas palavras reconfortantes,repetindo-as: a bab j vem.

    Pela primeira vez, observa os brinquedos cominteresse, evidenciando uma tendncia agressiva.Mostra uma carroa de carvo e diz: cortar. Kleinlhe d uma tesoura. Dick procura arranhar ospedaos de madeira preta que representavam ocarvo, mas no consegue segurar a tesoura; olhapara Klein rapidamente. Klein responde a esseolhar, cortando os pedaos de madeira na carroa.Dick atira a carroa danificada e seu contedo, nagaveta e diz: foi embora. Klein diz: Isso significa queest tirando fezes do corpo de sua me. Dick corre parao hall de entrada e arranha um pouco as portascom as unhas, expressando que identificava oespao entre as portas com a carroa e ambos como corpo da me, que estava atacando. Regressoucorrendo e introduziu-se no armrio. Ao final,Dick acolhe a bab prazerosamente.

    4 sesso: Dick chora quando a bab se retira elogo se acalma. Evitou o espao entre as portas, oarmrio e o canto, mas se interessou pelosbrinquedos, examinando-os. Empurra para o ladoa carroa danificada que destroara e seu contedo,cobrindo-os com outros brinquedos. Klein explica:a carroa danificada representa sua me. A carroa eos pedaos de carvo soltos so levados por Dickao espao entre as portas.

    Progresso da anlise: Segundo Klein, ao atirarcoisas, Dick expressava a expulso do objeto

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    danificado e do seu prprio sadismo, que eraprojetado no mundo exterior.

    A bacia dgua simbolizava o corpo da sua mee Dick tinha muito medo de se molhar com gua.Em sua fantasia, as matrias fecais, a urina e opnis eram objetos com os quais podia atacar ocorpo da me, representando, portanto, um perigopara si mesmo. Tais fantasias aumentavam seutemor do contedo do corpo da me,especialmente do pnis do seu pai, que eleimaginava estar dentro do tero dela. Durante aanlise, esse pnis fantasiado foi identificado sobformas muito diversas, bem como um sentimentode agressividade cada vez maior contra ele,predominando desejos de com-lo e destru-lo. Porexemplo: Dick levou boca um homenzinho e,rangendo os dentes, disse: tea daddy, quesignificava eat Daddy (comer papai).

    A introjeo do pnis do pai estava associada adois temores: temor do pnis como superegoprimitivo e agressivo e temor de ser punido pelame assim roubada, isto , o medo do objetoexterno e do objeto introjetado. Esse pontoevidenciou a fase genital precoce, pois taisrepresentaes foram seguidas pela ansiedade eremorso, pena e compensao. Por esse motivo,Dick tornava a depositar sobre o colo de Klein ouem suas mos os homenzinhos, depois osguardava.

    A atuao de reaes provenientes do planogenital era o resultado do desenvolvimentoprematuro do ego, todavia, s conseguia inibir odesenvolvimento ulterior do ego. Essaidentificao inicial com o objeto no podia serrelacionada com a realidade. Por exemplo: Dickviu sobre o colo da psicanalista algumas aparas demadeira de lpis e disse: pobre Sra. Klein. Emocasio semelhante, disse, no mesmo tom de voz:pobre cortina.

    Lado a lado com sua incapacidade de tolerarangstia, essa prematura empatia tornou-se fatordecisivo no afastamento de todo impulsodestrutivo. Dick se isolou da realidade e imobilizousua vida de fantasia, refugiando-se nas fantasias docorpo escuro e vazio da me. Assim, desviava suaateno dos objetos do mundo externo querepresentavam o contedo do corpo de sua me.Por serem perigosos e agressivos, ele tinha que sedesfazer do prprio pnis e de seus excrementos

    (ou neg-los).

    2.3. O diagnstico de Dick: um caso de inibio incomumno desenvolvimento do ego

    Apesar de descartar a possibilidade de umapsiconeurose, contra o diagnstico de demnciaprecoce havia o fato de a principal caracterstica sera inibio do desenvolvimento da criana e no aregresso. Sem querer se comprometer com umdiagnstico, Klein faz algumas observaes sobre apsicose na infncia: ela mais prevalente do que seimagina, h muitas dificuldades em diagnostic-la,ela confundida com o comportamento infantil.Entretanto, a psicanalista considera que a presenade traos psicticos mais comum do que aprpria psicose que, sob circunstnciasdesfavorveis pode levar patologia em estgioposterior. No caso de Dick mesmo que se possasitu-lo como uma esquizofrenia, desde que seamplie esse conceito, tratava-se de uma inibio dodesenvolvimento e no uma regresso aps umdesenvolvimento inicial.

    A excepcional inibio em seu desenvolvimentodevia-se ao fracasso de suas etapas iniciais. O egoera totalmente incapaz de suportar ansiedade. Azona genital entrara em ao muito cedo,produzindo uma prematura e exageradaidentificao ao objeto atacado, contribuindo parauma defesa igualmente prematura contra osadismo. O ego parou de desenvolver a vida defantasia e de estabelecer relao com a realidade. Aformao de smbolos foi imobilizada.

    As primeiras tentativas de formao desmbolos deixaram uma marca: um interesseisolado que no servia de base a novassublimaes, na medida em que apenasinteressava-se pelos trens e estaes ferrovirias,maanetas de portas e portas, pelo movimento deabrir e fechar as portas. Tais interesses tinham umanica fonte: relacionavam-se penetrao do pnisno corpo materno. Portas e fechadurasrepresentavam orifcios de entrada e sada docorpo materno e as maanetas representavam opnis do pai e o seu.

    A imobilizao da formao de smbolosrelacionava-se ao temor do castigo quandopenetrasse o corpo da me e defesa contra osprprios impulsos destrutivos.

    Dick era incapaz de agresso e a base disso foi

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    indicada por sua recusa em mastigar alimentos.Aos quatro anos, era desajeitado, no manejavaobjetos (tesouras, facas e ferramentas). As defesascontra os impulsos sdicos dirigidos ao corpo dame (relativas s suas fantasias de coito) tiverampor consequncia a cessao das fantasias e aparada na formao de smbolos. Seudesenvolvimento foi perturbado porque no podiaviver, em fantasias, a relao sdica contra o corpoda me.

    2.4. O mtodo clnicoSegundo M. Klein (1930/1996), o obstculo

    fundamental para estabelecer contato com Dick foique nenhuma relao afetiva ou simblica com osobjetos estava colorida com fantasias, sendoimpossvel considerar esses atos comorepresentaes simblicas. Mas foi possvel chegarao inconsciente de Dick atravs dos rudimentos davida de fantasia e de formaes simblicas queapresentava. O resultado foi a diminuio daansiedade latente, de modo que certa quantidadede ansiedade pde manifestar-se.

    A elaborao da referida angstia comeavapelo estabelecimento de uma relao simblicacom as coisas e objetos, ao mesmo tempo em queseus impulsos epistemoflicos e agressivos semovimentavam. O progresso era seguido daliberao de novas quantidades de angstia e olevava a afastar-se das coisas com as quais j tinharelaes afetivas e que, por isso, haviam seconvertido em objetos de angstia. Ao afastar-sedeles, dirigia-se para novos objetos, e esses seconvertiam no alvo de seus impulsos agressivos eepistemoflicos.

    Na medida do aumento de seus interesses, seuvocabulrio se enriquecia, pois comeava ademonstrar curiosidade pelas coisas em si e porseus nomes. As palavras eram agora aplicadascorretamente. Apareceu, assim, a relao de objetoque fazia falta. Sua atitude com a me, a ama e opai tornou-se afetuosa e normal: deseja a presena,ressente-se quando eles no lhe do ateno ouquando o deixam sozinho. Existe uma relaomuito mais firme com os objetos. O desejo de sercompreendido est quase totalmente em atividade.Empenha-se em enriquecer seu vocabulrio.Depois de seis meses de tratamento, seuprognstico favorvel.

    Klein (1930/1996) afirma que, em geral, nointerpreta dados antes de eles se expressarematravs de vrias representaes. Nesse caso emque no havia capacidade de expresso por meiode representaes, foi necessrio fazerinterpretaes na base do prprio conhecimentogeral, j que as representaes de Dick eramrelativamente vagas. Por esse meio, o acesso a seuinconsciente foi atingido, podendo mobilizar aansiedade e outros afetos. As representaestornaram-se mais completas e assim Klein afirmater conseguido bases slidas para a anlise,passando paulatinamente tcnica usual.

    Klein (1930/1996) tambm considera terconseguido tornar manifesta a ansiedade,atenuando a que existia de modo latente. Depois,resolveu-a por meio da interpretao e aindaelaborou-a melhor, distribuindo-a sobre novascoisas e interesses, mitigando-a de tal modo que setornou tolervel para o ego. Enfim, Klein(1930/1996) conclui que foi possvel desenvolvertanto o ego quanto a libido, simplesmente pelaanlise dos conflitos inconscientes e sem que fossenecessrio impor ao ego nenhuma influnciaeducacional.

    3. Apontamentos lacanianos sobre o caso Vale notar outra possibilidade de leitura das

    manifestaes de Dick, a partir das colocaes deJacques Lacan a respeito das intervenes deMelanie Klein na clnica com Dick. A teorizao deMelanie Klein de grande importncia para Lacan,por estar fundada numa prtica clnica. Apesar deno ter se ocupado da clnica com crianas, Lacanrecorreu aos trabalhos daquela psicanalista em suasprprias elaboraes. Vale lembrar que elesustentava, sistematicamente, uma leitura crtica,apoiada na discusso da capacidade operatria deargumentos de seus contemporneos.

    Jacques Lacan (1953-54/1986) comenta asinterpretaes de Melanie Klein nos seguintestermos:

    Melanie Klein enfia o simbolismo, com a maiorbrutalidade, no pequeno Dick! Ela comeajogando imediatamente em cima dele asinterpretaes maiores. Ela o joga numaverbalizao brutal do mito edpico, quase torevoltante para ns quanto para qualquer leitor.(...) Mas certo que depois dessa interveno

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    alguma coisa se produz. Tudo est a (p.83-84).

    Esse comentrio fundamental para nosdeslocarmos do problema a respeito do que sefalou, e nos determos no fato de ela ter lhe falado.Ela ousa falar com ele, como diz Lacan (1953-54/1986): Dick est l como se ela no existisse,mas ela d nomes ao que, para esse sujeito, s era,at ento, realidade pura e simples (p. 84).

    Lacan (1953-54/1986) problematiza a funoda fala como capaz de constituir a realidade a partirda articulao do simblico ao imaginrio:

    Qual a funo da interpretao kleiniana, que seapresenta com um carter de intruso, de coisaposta sobre o sujeito? (...) ora, no ser na medidaem que, digamos, Melanie Klein fala, que algo sepassa? (...) Todo o problema a partir de ento oda juno do simblico e do imaginrio naconstituio do real (p. 86).

    Para Lacan (1953-54/1986), essa equaosimblica da qual fala Melanie Klein nada mais do que um jogo imaginrio, prprio da relao emespelho. O grande problema de Dick que o real eo imaginrio so equivalentes: essa criana , atcerto nvel, mestre da linguagem, mas ela no fala. umsujeito que est a e que literalmente no responde.(...) A fala no chegou a ele. A linguagem noenvolveu seu sistema imaginrio (p. 102 grifosnossos).

    A resposta de Dick nomeao de MelanieKlein estao o momento em que seesboa a juno da linguagem com o imaginrio dosujeito. Para Lacan (1953-54/1986), Melanie Kleinsimbolizou uma relao efetiva de um ser,nomeado, com um outro. Assim, Dick podeverbalizar um primeiro apelo, falado. Este oefeito da interveno de Melanie Klein elaproduziu a possibilidade do apelo. E, no campo dafala, o apelo localiza o semelhante, intima-o a umaresposta e produz a possibilidade de recusa. apartir dele que se estabelecem relaes dedependncia com o outro.

    Utilizando as categorias de real (nesse momentoda teorizao lacaniana, referido realidadeefetivamente experimentada), simblico e imaginrio,Lacan (1953-54/1986) demonstra com o caso deDick como possvel que um sujeito no esteja noreal, mesmo dispondo dos elementos da linguageme tendo a possibilidade de fazer deslocamentos

    imaginrios. Por que no est? Nas palavras dopsicanalista: unicamente porque as coisas novieram numa certa ordem. A figura no seuconjunto est perturbada. No h meio de dar aesse conjunto o menor desenvolvimento. O olhodo espelho esteve mau posicionado (p. 105).

    A partir da leitura de Lacan, destacamos,abaixo, em trs tempos, o que se passou na posiode Dick:

    O primeiro tempo refere-se primeira sesso:diante da suposio de Klein de que ali havia ummenino que poderia escut-la, ao dirigir-lhe apalavra (trem do papai; trem de Dick), inicialmenteDick responde com a palavra estao, ou seja,parece mostrar que notara algum que lhe falara ali.Mas, diante da insistncia dessa presena, Dick saide cena, se subtrai ao encontro com o Outro.Parece no haver anteparo entre ele e o outro e,por isso mesmo, ele equivale ao objeto que spode ausentar-se, diante dessa presena.

    No segundo tempo, referente segunda sesso(mas repetido ainda na terceira), pode-se notar umadiferena que no contingencial. No mesmolugar em que ele se escondeu na primeira sesso,ele coloca o trem que Klein nomeara com seunome (Dick) e apela para a presena do outro queest ausente (A bab j vem?). Essa dimenso doapelo implica algo que no est e que pode estar, opar presena/ausncia.

    No Seminrio 3, Lacan (1955-6/1988) afirmaque a realidade marcada de sada pelaaniquilao simblica (p.171), logo, todas asexperincias humanas estariam marcadas pelosignificante, no existiria uma condio de puraexperincia. J nos primeiros momentos de vida, oser humano se encontra em um ritmo de sono, detenso e apaziguamento, que permite com que, emalgum momento, ele se despregue do dia:

    O ser humano no est, como tudo nos leva apensar que o animal est, simplesmente imerso emum fenmeno de alternncia do dia e da noite. Oser humano pe o dia como tal, e com isso o diavem presena do dia contra um fundo que no um fundo de noite concreta, mas a ausnciapossvel de dia, onde a noite se aloja, einversamente alis (Lacan, 1956/1988, p.172).

    Dia e noite marcariam essa aniquilaosimblica, j seriam significantizados. Antesmesmo de a criana falar, ela j estaria imersa na

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    ordem simblica. Ao distinguir noite e dia, acriana percebe a presena do dia, no comosimples fenmeno, o dia enquanto dia implica aconotao simblica, a alternncia fundamental dovocal conotando presena e ausncia, sobre a qualFreud faz girar toda a sua noo do alm doprincpio do prazer (Lacan, 1956/1988, p.172-3).Na mesma perspectiva, no Seminrio 6 (1958-9/2013), ao desdobrar seu grafo do desejo, Lacanesclarece ainda que:

    [a me] tambm aquela que d a marca daarticulao significante, e no somente na medidaem que ela fala criana... Todos os tipos de jogosda me, os jogos por exemplo de ocultao queto rapidamente desencadeiam na criana osorriso, at mesmo o rir, so propriamentefalando, j uma ao simblica no decurso do qualo que lhe revelado, justamente a funo dosmbolo como revelador. Ela lhe revela nessesjogos de ocultao, de fazer desaparecer algumacoisa ou no fazer reaparecer, o fazer desaparecerseu prprio rosto e faz-lo reaparecer, ou aesconder a figura da criana ou a descobri-la: elalhe revela a funo reveladora. j de uma funode segundo grau que se trata. no interior dissoque se fazem as primeiras identificaes, ao que sechama, nesse caso, a me. (p.43, traduo nossa)

    Qualificando Dick como uma crianasingularmente inibida que est em impasse nocampo do no demandvel, Lacan (2013/1958-9,p.526) afirma que a partir do momento que Kleinfala com o garoto que ele consegue formular umademanda (a bab j vem?). Imediatamente apsessa cristalizao da demanda, a criana vaiestabelecer contato com seus objetos dos quaisestava separada, fato considerado por Klein comodecisivo.

    No terceiro tempo, no final da terceira sesso,chama a ateno esse movimento de Dick de fazerdesaparecerem da cena os pedacinhos de carvocortados, comentando em seguida: L se foi!.Nesse movimento, Dick inclui Melanie Klein, namedida em que pede que o carvo seja cortado.Novamente algo sai de cena, s que desta vez noele, mas, sim, os objetos. No entanto, em seguida,Melanie Klein faz uma nova interpretao (esttirando as fezes do corpo da me), que provocauma nova subtrao de Dick da cena (corre entreas portas, arranha-as e se esconde no armrio).

    Atribuindo a Dick a condio de caso notrio

    de Melanie Klein, Lacan (2013/1958-9) afirma quea criana era muito bem introduzida como tal aessa relao do desejo com o significante (p.510).Entretanto, no plano imaginrio (gestual ecomunicativo), o outro estava completamentesuspenso. Para Lacan, esse caso demonstra queseguramente esta criana que no falava era muitoacessvel e sensvel s intervenes faladas deMelanie Klein.

    As nicas estruturas do mundo que so para elaacessveis, sensveis, manifestas, manifestantesdesde os primeiros momentos com Melanie Klein,so estruturas que portam em si mesmas todos oscaracteres da relao com a cadeia significante.Melanie Klein os designa para ns, a pequenacadeia do trem, isto , de algo que constitudo deum certo nmero de elementos enganchados unsaos outros; uma porta que se abre ou se fecha por assim dizer ... que a forma mais simples daalternncia sim ou no que condiciona o significantecomo tal, uma porta deve estar aberta ou fechada(p.510-511, itlicos do autor, traduo nossa).

    A interveno de Klein obtm da criana umareao considerada, por Lacan (2013/1958-9),extraordinria, quase exemplar: ir situar-se (eest no texto) entre duas portas, entre a portainterior dos gabinetes e a porta exterior, numespao escuro (p.511). Recorrendo provavelmenteao espao transicional definido por Winnicott(1975) Lacan, sem cit-lo, se surpreende com ofato de Melanie Klein, que to bem viu oselementos da estrutura como os da introjeo e daexpulso, no ter considerado o alcance destazona que no nem o exterior, nem o interior,articulada e construda, to reduzida neste sujeito,mas o que se pode chamar..., a zona de terra deningum [no mans land],... onde ficou em pane odesejo do pequeno sujeito (p.511).

    O autor considera ser nesse ponto queintervm o eu (moi). J suficientemente forte paraorganizar as resistncias do sujeito (as construesneurticas), para subsistir como desejo, abrigadodo desejo do Outro. Essa organizao implica ainterposio de uma distncia do Outro em que osujeito se constitui seja como fbico, histrico ouobsessivo.

    Lacan localiza ainda a relao da criana com atesoura, cujo manejo do corte permitir destacarum pequeno pedao de carvo de alguma coisa que

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    tambm no mais sem significao, j que umelemento de cadeia do trem com o qual seconsegue fazer com que ele brinque.Nomeadamente, um tender. (p.527, traduonossa). Vale lembrar que o termo tender refere-se aovago auxiliar da locomotiva a vapor em que searmazena o combustvel e a gua necessrios aoabastecimento. O termo significa tambm terno,carinhoso e uma oferta para atender uma demandaevitando punio (Robert, 1991; Websters, 1953).

    4. Reler Melanie Klein com Jacques Lacan surpreendente o esforo de Melanie Klein

    para elaborar uma teoria sobre o funcionamentosimblico do sujeito, nos anos 30.

    Com Lacan, possvel sustentar outra hiptese,enriquecendo a abordagem kleiniana: a de que osistema que regula o funcionamento pulsional osistema da linguagem e, portanto, relativo ordemde uma economia, e no de uma energia natural.Esse percurso, que implica um comrcio sexualentre agente cuidador e neonato, no se faz sem orecurso ao estudo dos sistemas de troca no deenergias, mas de valores; no em homeostase, masem diferena. Autores como Saussure, Lvi-Strausse Marx se encontram nas bases desse novopensamento, permitindo a Lacan fazer avanar ateoria psicanaltica como uma rede de conceitosprprios, a partir da releitura confrontativa comoutros campos conceituais.

    Nessa medida, cabe esclarecer que no se tratade negar a existncia de um organismo vivoconcreto na constituio de um sujeito (mesmoque ele possa existir apenas imaginariamente paraum outro, como a gravidez histrica ou a funode um filho morto evidenciam), mas de discernir amaneira pela qual esse organismo sofre a ordem dalinguagem, passando a funcionar sob o imperativodo registro simblico (que a hipocondria, comosabemos a partir de Freud (2004/1914), demonstraperfeitamente).

    Numa analogia entre a libido do corpo e aenergia numa usina hidroeltrica, Lacan (1956-57/1995, p. 44-49) elucida essa questo do corpoatravessado pela linguagem. A despeito da quedade gua estar presente na natureza, s a construode uma usina permitir a produo de energia.Comparando o termo freudiano Es (id, isso) comuma cachoeira, o psicanalista situa que o Es

    aquilo que no sujeito susceptvel de tornar-se Eu,tal como a cachoeira susceptvel de produzirenergia. Ele ressalta, entretanto, que isso dependede haver a intermediao da mensagem do Outro,tal como a necessria construo da usina paraproduzir energia. Portanto, para advir um sujeito, necessrio que o sistema psquico seja imerso nosistema simblico.

    4.1. A extenso simblica em LacanPara que possamos nos aproximar da dimenso

    aberta por Lacan, vale relembrar rapidamentealguns princpios que esto nas bases daperspectiva kleiniana: a identificao, precursora dosimbolismo, que surge de a criana tentarreencontrar em todos os objetos seus prpriosrgos e funes; e a equao simblica, em que asemelhana de prazer ou interesse equipara coisascompletamente diferentes. Remontando a equaosimblica a Freud (1917/1991), lemos que: esteselementos amide so tratados no inconscientecomo se fossem equivalentes entre si e pudessemsubstituir sem reparo uns pelos outros (p. 118).

    Diferentemente de Klein, mas tambmorientado pela interrogao de como o simblicoimplanta-se no corpo, Lacan (1955-6/1988)encontrar em Saussure e Jakobson as balizasessenciais para efetivamente operar odiscernimento da funo do simblico no sujeito.Lacan (1955-6/1988) problematiza o que significao smbolo em seu papel de significante e a funooriginal e iniciadora, na vida humana, da existnciado smbolo. Ele tece seus argumentosconsiderando a ordem primordial de significante, asintaxe. Afinal, o discursivo no se reduz significao, mas alinhamento de significantes.

    A dimenso de similaridade no uso significativoda linguagem impressiona tanto que domina aapreenso do jogo do simbolismo, mascarando aexistncia da dimenso sinttica (no entanto,qualquer frase perderia todo sentido sebaralhssemos as palavras em sua ordem).Portanto, o que se exprime na metfora supe asimilaridade, mas esta manifestada unicamentepela posio de um termo na frase. Lacan (1955-6/1988) visa superar o equvoco da concepo desimbolismo em psicanlise, que negligencia aorganizao, ou seja, a contiguidade, oalinhamento, a coordenao sinttica dos

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    elementos da linguagem. Tal equvoco limitou auma nica dimenso a investigao psicanalticaque se restringiu ao significado.

    Os argumentos de Lacan (1955-6/1988)enunciam uma crtica a Melanie Klein (e a Jones),quando eles insistem em dizer que a investigaoanaltica concerniu ao estudo da identificao e dosimbolismo, mas situou apenas a similaridademetafrica das palavras isoladamente,negligenciando a articulao e a contiguidade, queesboam o inicial e o estruturante na noo decausalidade. Por isso, coube-lhe distinguir a formaretrica que se ope metfora: a metonmia. Estaconcerne substituio de alguma coisa que setrata de nomear: nomeia-se uma coisa por outraque o seu continente, ou a parte, ou o que estem conexo com ela. A oposio da metfora e dametonmia fundamental, pois o que Freud(1972/1900) chama de condensao o que sechama em retrica a metfora, o que ele chama dedeslocamento a metonmia. Por isso, a existncialexical estruturada do conjunto do aparelhosignificante determinante para os fenmenospresentes na neurose: a articulao de significantes o instrumento com o qual se exprime osignificado desaparecido. Mais ainda, na psicose,estes jogos de significantes ocupam o sujeitointeiramente. a partir da relao do sujeito com osignificante e com o outro (nos diferentes estgiosda alteridade imaginria e simblica), quepoderemos articular essa intruso, esta progressivaocupao psicolgica do significante que se chamapsicose (Lacan, 1955-6/1988).

    Lacan (1955-6/1988) esclarece que a oposiodo significante e do significado no um merosubstituto da oposio da ideia (ou dopensamento) e da palavra. A metfora tem vidaconstante nas transferncias de significado, semprenuma relao dialtica. No se trata da noo deexpresso, em que aquilo a que se refere expressopela palavra, considerada como etiqueta. Ametfora surpreendente e problemtica: alinguagem tem seu ponto mximo de eficciaquando ela consegue dizer alguma coisa dizendooutra. A noo ingnua gostaria que houvessesuperposio, decalque da ordem das coisas ordem das palavras. Um primeiro passo paraultrapassar esse limite foi dado pelos linguistas, aodizerem que o significado nunca atinge seu fim

    seno por intermdio de um outro significado,remetendo a uma outra significao. Mas, salientaLacan (1955-6/1988), preciso dar um segundopasso, perceber que, sem a estruturao dosignificante, nenhuma transferncia de sentidoseria possvel. Enfim, o princpio e a virtudemetafrica no a transposio da significao,uma nomeao indireta (que seria apenasmetonmica). A virtude metafrica que um termo posto em posio outra na proposio.

    Esse fenmeno de significantes, que aparece noplano gramatical como caracterstico do vnculoposicional, encontra-se em todos os nveis parainstaurar a coexistncia sincrnica dos termos. Alocuo verbal sua forma mais elevada. A palavraest num nvel mais baixo. Se a independncia dapalavra se manifesta sob certos ngulos, ela nopode ser considerada como unidade da linguagem,embora constitua forma elementar privilegiada.Em uum nvel ainda inferior, temos as oposiesou pares fonemticos, que caracterizam o ltimoelemento radical de distino entre uma lngua eoutra. Em cada lngua h oposies que outralngua no reconhece. Essa ligao de oposio essencial funo da linguagem. Ela deve serdistinguida do vnculo de similaridade, implicadono funcionamento da linguagem, ligado possibilidade indefinida da funo de substituio,a qual s concebvel no fundamento da relaoposicional.

    A metfora surge porque comporta um sentido,mas, antes de mais nada, a metfora sustentadapor uma articulao posicional. O importante no que a similaridade seja sustentada pelosignificado, mas que a transferncia do significado possvel devido prpria estrutura da linguagem.

    Para Lacan (1955-6/1988), a ordem da ditaaquisio da linguagem, pela criana, no a que sepermitiria definir por meio de um elemento inicialdo estoque verbal. A diversidade com que alinguagem incide num sujeito incomensurvel,no se a pega por uma extremidade qualquer, mas,para que ela nasa, na fala de um sujeito, ela spode ser tomada em seu conjunto. Para isso, preciso que ela comece a ser tomada pela ponta dosignificante.

    S tendo por base a articulao metonmica dacoordenao significante como dominante, astransferncias de significado podem se produzir.

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    No que diz respeito s psicoses, necessrio, paraLacan, a partir dessas distines entre metfora emetonmia, interrogar a questo da repercusso nafuno da linguagem de toda perturbao darelao com o outro. apenas com a promoo dafuno do significante, que permite a emergnciadessa subestrutura sempre escondida ametonmia , que se pode investigar os distrbiosfuncionais da linguagem na neurose e na psicose.

    Vale lembrar que a diferena mais contundenteentre Lacan e Klein relaciona-se considerao deum referente exterior linguagem, queestabeleceria correspondncia biunvoca entre seustermos e as coisas do mundo.

    Lacan (1953-54/1986,) diz que a criana, atcerto nvel mestre da linguagem, apesar de nofalar; enquanto Klein (1930/1996) relata que a mede Dick testemunha que ele no tinha vontade defalar, fazendo o oposto daquilo que se esperavadele:

    Por exemplo, quando ela conseguia fazer com queo menino repetisse depois dela algumas palavrasdiferentes, ele muitas vezes as alteravacompletamente, apesar de pronunci-lasperfeitamente em outras ocasies. Outras vezes,ele pronunciava as palavras corretamente, mascontinuava a repeti-las sem parar, mecanicamente,at todos a sua volta simplesmente noaguentarem mais (p.253-4).

    Se esse modo de desafiar difere daquele dacriana neurtica, como atesta Klein (1930/1996),vale considerar que havia nele certo trabalho com alinguagem, na medida em que se servia deelementos da linguagem para mobilizar osemelhante, mesmo que tal trabalho nodesembocasse numa argumentao tpica.

    4.2. Klein com LacanSe Melanie Klein pode apreender as equaes

    que fazem equivalncia entre os termos e asequaes de reciprocidade entre sujeito e objeto,apontando a precocidade com que o sujeitotransita no campo simblico, tal apreenso limita-se, no entanto, ao que Saussure nos ensinou achamar de signo. Escapa a Klein que a articulaoentre termos, entre significantes, entre unidades dodiscurso s acontece numa sintaxe que indica talcorrelao e que esta transmitida na linguagem. essa sintaxe que ela implanta em Dick,

    permitindo assim seu funcionamento no campo dalinguagem. Como diz Lacan, ela lhe fala.

    O problema terico da decorrente queMelanie Klein toma tal sintaxe como verdade, demodo que qualquer manifestao da criana podeser lida, por ela, como representao de seusprprios mitos, ou o que Freud (1905/2006) nosensinou a chamar de Teoria Sexual Infantil, quepersiste na sintaxe do discurso de qualquer sujeito.No que se refere a muitos casos de crianas emconstituio, sob efeito de graves psicopatologias,talvez isso no traga impedimentos clnicos, comoa prtica clnica de Melanie Klein demonstrou.Talvez porque, independentemente da consistnciade sentido de suas articulaes metafricas, aosupor como previamente dada uma lgicaarticuladora do discurso ldico/motor de umacriana, Klein supe ali um sujeito, antecipando umque ainda no h, o que condio fundamentalpara ali haver um.

    Um organismo s se torna ser falante ao serdito de outro lugar (Lacan, 1970). Klein nosoferece um exemplo da linguagem maternante, ou seja,aquela com a qual o agente materno transmite alngua, antes do recalque secundrio, porquerestrita ao que ata me e filho, deixando-o exposto onipotncia materna.

    Interessa, ainda, notar que, grosso modo, o queela chama corpo materno (incluindo-se a oprprio corpo da criana, j que a me que odomina) que a criana quer (e teme) penetrar edestruir sadicamente em suas fantasias de coito,bem poderia ser dito corpo simblico ou, maisprecisamente, campo da linguagem. Afinal, submetidonecessariamente linguagem, e tendo queaparelhar-se com ela sem que esta jamais se ofereaplena, no de se estranhar que o infans entre emangstia, no porque tema seu sadismo ou o objetode tal sadismo, mas porque, antes deste, falta a suame e a ele mesmo o significante que permitiria seuemparelhamento (Lacan, 1992/1969-70).

    Ao dizer que a angstia o primeiro afeto,Lacan se aproxima de Klein. S que, para ele, aangstia no uma consequncia, mas a causa doafeto, no corpo, dessa hincia que nos faz seresfalantes sem reciprocidades e nesse sentido queLacan (1962-3/2005) afirma que a angstia podeao mesmo tempo no ter objeto e mesmo assimno ser sem objeto.

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    Por isso, podemos pensar que a teoria de Kleinfaz da pulso um mito do movimento circular erecproco, sem o seu terceiro tempo verbalreflexivo, relativo ao fazer-se, como explicitouLacan em seu Seminrio 11, de 1964.

    Nessa perspectiva de Klein, a crianaencontraria, por fim, uma realidade plena, combase nessas equivalncias especularizadas entre osobjetos.

    Para Melanie Klein (1930/1996), aindividualizao uma condio de separao inataque precede o prprio ego e que causaria, atravsdo smbolo, ou melhor, dos signos, a alienao realidade.

    Por isso, no h incomensurabilidade entremundo externo e mundo interno, queencontrariam sua correspondncia ideal, desde queos signos filtrem a quantidade de angstia a serliberada. Nessa perspectiva, o smbolo seria umaespcie de dosmetro que permite ao infans regularsua energia, de modo que essa energia possaproduzir outros smbolos. Essa ideia no de todoestranha concepo de linguagem que se podedepreender da perspectiva lacaniana, na medida emque a discretizao da lngua na fala modaliza,dirige e organiza a relao do sujeito com o camposimblico, recrutando a interceptao do fluxo dear e o engaste da articulao muscular que permitetodo o funcionamento pulsional da fala.

    Klein (1930/1996) no apreendeu que aquiloque ela chamava de pauprrimo vocabulrio (p.253) articulou uma sintaxe, fizeram-se elementosde ligao pontes verbais, como diz Freud(1901/1991) , porque articulou um texto,constituiu um discurso. Ela considerou apenas oselementos pontuais em sua correspondnciatermo-a-termo numa relao de equiparao.

    Para nos restringir ao caso Dick, evitamos nosestender sobre muitos outros aspectos daperspectiva de Jacques Lacan, exteriores aoperodo em que ele comenta o caso Dick. Afinal,quase toda sua obra ser votada ao esforo dereelaborar o tema do funcionamento da linguagemno sujeito, explicitando como o sujeito se produzna relao de representao entre um significante eoutro significante, no empenho de balizar aquiloque escande a cadeia significante da fala em gestos,atos, ritmos diversos interrompidos, escrevendo oque escapa ao simblico e que insiste e s

    apreensvel por meio dele ou seja, o real, lalangue eo gozo. Para isso, o psicanalista retomar, vriasvezes, a noo de valor inscrito na cadeiasignificante da fala por via da metfora e dametonmia, ou seja, o valor produzido na fala e nalngua, sejam eles estabelecidos, desviantes,imprevistos ou antecipveis na cadeia significante.Mas, alm disso, ele retomar da antropologia deMauss e Lvi-Strauss o valor de Dom e, daeconomia poltica de Marx, o valor de troca e ovalor de uso, que permitem apontar assingularidades da elaborao da sintaxe no discursode um sujeito, por meio da constelao constritivade letras que lhe permitem uma direo e muitossentidos.

    5. Consideraes finaisAo reapresentar um caso clnico de M. Klein

    bem como os comentrios sobre ele elaboradospor J. Lacan, consideramos a incidncia doimpacto da prtica clnica na psicanlise. Assimtranspusemos o relato de uma prtica justificadapor seus alicerces tericos para, em seguida, exp-la a outra possibilidade de leitura.

    Assim, o esforo desse artigo o de recuperar aimportncia do caso clinico em psicanlise namedida em que este o lcus privilegiado para fazertrabalhar elementos tericos que partem daselaboraes de Freud e podem ser privilegiadossegundo pontos de vista distintos, conforme vimosem Klein e Lacan. Repetimos aqui o gestolacaniano de privilegiar a clnica para interrogar ateoria, o que, por sua vez, justifica o movimentofreudiano. Afinal, foi ao tomar a manifestao dopaciente como passvel de conter outrassignificaes alm daquela estabelecida por umamedicina de sua poca, que Freud a consideroucomo um enigma a ser investigado.

    Da mesma forma, consideramos que a leituraempreendida por Lacan, contando comargumentos de outras fontes tericas, deu maiorvisibilidade a uma tcnica originada por Klein ereconstruiu a concepo de simbolismo ampliandoseu alcance terico e clnico.

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    Recebido em: 07/05/14Aceito em: 10/06/14

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