lampiÃo - herÓi ou bandido

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LAMPIÃO: HERÓI OU BANDIDO? Lampião: O dragão da maldade Um guerreiro visionário, destemido e inteligente. Ninguém nega as Lampião. Agora pesquisadores questionam o verdadeiro papel histór Ferreira por Lira Neto Eles faziam do assassinato um ritual macabro. O longo punhal, de comprimento, era enfiado com um golpe certeiro na base da clavícu a popular “saboneteira” – da vítima. A lâmina pontiaguda cortava a carne, seccion perfurava o pulmão, trespassava o coração e, ao ser retirada, pro espetaculoso de sangue. Era um policial ou um delator a menos na e um morto a mais na contabilidade do cangaço. Quando não matavam, faz ferir, de mutilar, de deixar cicatrizes visíveis, para que as mar de exemplo. Desenhavam a faca feridas profundas em forma de cruz homens, desfiguravam o rosto de mulheres com ferro quente de marc Exatos 70 anos após a morte do principal líder do cangaço, Virgul o Lampião, a aura de heroísmo que durante algum tempo tentou-se a cangaceiros cede terreno para uma interpretação menos idealizada série de livros, teses e dissertações acadêmicas lançados nos últ não faz sentido cultuar o mito de um Lampião idealista, um revolu insurgente contra a opressão do latifúndio e a injustiça do sertã não seria um justiceiro romântico, um Robin Hood da caatinga, mas e sanguinário, aliado de coronéis e grandes proprietários de terr antropólogos e cientistas sociais contemporâneos chegam à conclus para a memória do cangaço: no Brasil rural da primeira metade do bandos como o de Lampião desempenhou um papel equivalente ao dos drogas que hoje seqüestram, matam e corrompem nas grandes metrópo Cangaceiros e traficantes Foram os cangaceiros que introduziram o seqüestro em larga escala reféns em troca de dinheiro para financiar novos crimes. Caso não torturavam e matavam as vítimas, a tiro ou punhaladas. A extorsão renda. Mandavam cartas, nas quais exigiam quantias astronômicas p

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LAMPIO: HERI OU BANDIDO?Lampio: O drago da maldade

Um guerreiro visionrio, destemido e inteligente. Ningum nega as virtudes de Lampio. Agora pesquisadores questionam o verdadeiro papel histrico de Virgulino Ferreira por Lira Neto Eles faziam do assassinato um ritual macabro. O longo punhal, de at 80 centmetros de comprimento, era enfiado com um golpe certeiro na base da clavcula a popular saboneteira da vtima. A lmina pontiaguda cortava a carne, seccionava artrias, perfurava o pulmo, trespassava o corao e, ao ser retirada, produzia um esguicho espetaculoso de sangue. Era um policial ou um delator a menos na caatinga e um morto a mais na contabilidade do cangao. Quando no matavam, faziam questo de ferir, de mutilar, de deixar cicatrizes visveis, para que as marcas da violncia servissem de exemplo. Desenhavam a faca feridas profundas em forma de cruz na testa de homens, desfiguravam o rosto de mulheres com ferro quente de marcar o gado. Exatos 70 anos aps a morte do principal lder do cangao, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampio, a aura de herosmo que durante algum tempo tentou-se atribuir aos cangaceiros cede terreno para uma interpretao menos idealizada do fenmeno. Uma srie de livros, teses e dissertaes acadmicas lanados nos ltimos anos defende que no faz sentido cultuar o mito de um Lampio idealista, um revolucionrio primitivo, insurgente contra a opresso do latifndio e a injustia do serto nordestino. Virgulino no seria um justiceiro romntico, um Robin Hood da caatinga, mas um criminoso cruel e sanguinrio, aliado de coronis e grandes proprietrios de terra. Historiadores, antroplogos e cientistas sociais contemporneos chegam concluso nada confortvel para a memria do cangao: no Brasil rural da primeira metade do sculo 20, a ao de bandos como o de Lampio desempenhou um papel equivalente ao dos traficantes de drogas que hoje seqestram, matam e corrompem nas grandes metrpoles do pas. Cangaceiros e traficantes Foram os cangaceiros que introduziram o seqestro em larga escala no Brasil. Faziam refns em troca de dinheiro para financiar novos crimes. Caso no recebessem o resgate, torturavam e matavam as vtimas, a tiro ou punhaladas. A extorso era outra fonte de renda. Mandavam cartas, nas quais exigiam quantias astronmicas para no invadir

cidades, atear fogo em casas e derramar sangue inocente. Ofereciam salvo-condutos, com os quais garantiam proteo a quem lhes desse abrigo e cobertura, os chamados coiteiros. Sempre foram implacveis com quem atravessava seu caminho: estupravam, castravam, aterrorizavam. Corrompiam oficiais militares e autoridades civis, de quem recebiam armas e munio. Um arsenal blico sempre mais moderno e com maior poder de fogo que aquele utilizado pelas tropas que os combatiam. A violncia mais perversa e explcita onde est o maior contingente de populao pobre e excluda. Antes o banditismo se dava no campo; hoje o crime organizado mais evidente na periferia dos centros urbanos, afirma a antroploga Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autora do livro A Derradeira Gesta: Lampio e Nazarenos Guerreando no Serto. A professora aponta semelhanas entre os mtodos dos cangaceiros e dos traficantes: A maioria dos moradores das favelas de hoje no composta por marginais. No serto, os cangaceiros tambm eram minoria. Mas, nos dois casos, a populao honesta e trabalhadora se v submetida ao regime de terror imposto pelos bandidos, que ditam as regras e vivem custa do medo coletivo. Alm do medo, os cangaceiros exerciam fascnio entre os sertanejos. Entrar para o cangao representava, para um jovem da caatinga, ascenso social. Significava o ingresso em uma comunidade de homens que se gabavam de sua audcia e coragem, indivduos que trocavam a modorra da vida camponesa por um cotidiano repleto de aventuras e perigos. Era uma via de acesso ao dinheiro rpido e sujo de sangue, conquistado a ferro e a fogo. So evidentes as correlaes de procedimentos entre cangaceiros de ontem e traficantes de hoje. A rigor, so velhos professores e modernos discpulos, afirma o pesquisador do tema Melquades Pinto Paiva, autor de Ecologia do Cangao e membro do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. Homem e lenda Virgulino Ferreira da Silva reinou na caatinga entre 1920 e 1938. A origem do cangao, porm, perde-se no tempo. Muito antes dele, desde o sculo 18, j existiam bandos armados agindo no serto, particularmente na rea onde vingou o ciclo do gado no Nordeste, territrio onde campeava a violncia, a lei dos coronis, a misria e a seca. A palavra cangao, segundo a maioria dos autores, derivou de canga, pea de madeira colocada sobre o pescoo dos bois de carga. Assim como o gado, os bandoleiros carregavam os pertences nos ombros. Um dos precursores do cangao foi o lendrio Jos Gomes, o endiabrado Cabeleira, que aterrorizou as terras pernambucanas por volta de 1775. Outro que marcou poca foi o potiguar Jesuno Alves de Melo Calado, o Jesuno Brilhante (1844-1879), famoso por distribuir entre os pobres os alimentos que saqueava dos comboios do governo. Mas o primeiro a merecer o ttulo de Rei do Cangao, pela ousadia de suas aes, foi o pernambucano Antnio Silvino (1875-1944), o Rifle de Ouro. Entre suas faanhas, arrancou os trilhos, perseguiu engenheiros e seqestrou funcionrios da Great Western, empresa inglesa que construa ferrovias no interior da Paraba. Lampio sempre afirmou que entrou na vida de bandido para vingar o assassinato do pai. Jos Ferreira, condutor de animais de carga e pequeno fazendeiro em Serra Talhada (PE), foi morto em 1920 pelo sargento de polcia Jos Lucena, aps uma srie de hostilidades entre a famlia Ferreira e o vizinho Jos Saturnino. No serto daquele tempo, a vingana e a honra ofendida caminhavam lado a lado. Fazer justia com as prprias mos era considerado legtimo e a ausncia de vingana era entendida como sintoma de frouxido moral. Na minha terra,/ o cangaceiro leal e valente:/ jura que vai matar e mata, diz o poema Terra Brbara, do cearense Jder de Carvalho (19011985).

No mesmo ano de 1920, Virgulino Ferreira entrou para o grupo de outro cangaceiro clebre, Sebastio Pereira e Silva, o Sinh Pereira segundo alguns autores, quem o apelidou de Lampio. Como tudo na biografia do pernambucano, controverso o motivo do codinome. H quem diga que o batismo se deveu ao fato de ele manejar o rifle com tanta rapidez e destreza que os tiros sucessivos iluminavam a noite. O olho direito, cego por decorrncia de um glaucoma, agravado por um acidente com um espinho da caatinga, no lhe prejudicou a pontaria. Outros acreditam na verso atribuda a Sinh Pereira, segundo a qual Virgulino teria usado o claro de um disparo para encontrar um cigarro que um colega havia deixado cair no cho. O cangao no tinha um lder de destaque desde 1914, quando Antnio Silvino foi preso aps um combate com a polcia. S a partir de 1922, aps assumir o bando de Sinh Pereira, Virgulino se tornaria o lder mximo dos cangaceiros. Exmio estrategista, Lampio distinguiu-se pela valentia nas pelejas com a polcia, como em 1927, em Riacho de Sangue, durante um embate com os homens liderados pelo major cearense Moiss Figueiredo. Os 50 homens de Lampio foram cercados por 400 policiais. O tiroteio corria solto e a vitria da polcia era iminente. Lampio ordenou o cessar-fogo e o silncio sepulcral de seu bando. A polcia caiu na armadilha. Avanou e, ao chegar perto, foi recebida com fogo cerrado. Surpreendidos, os soldados bateram em retirada. A capacidade de despistar os perseguidores lhe valeu a fama de possuir poderes sobrenaturais e, aps escapar de inmeras emboscadas, de ter o corpo fechado. No mesmo ms da tocaia de Riacho de Sangue, Lampio e seu bando caram em nova emboscada. Um traidor ofereceu-lhes um jantar envenenado, numa casa cercada por policiais. Quando os primeiros cangaceiros comearam a passar mal, Virgulino se deu conta da tramia e tentou fugir, mas viu-se acuado por um incndio proposital na mata. O que era para ser uma arapuca terminou por salvar a pele dos cangaceiros: desapareceram na fumaa, como por encanto. Mas o maior trunfo de Lampio foi o de cultivar uma grande rede de coiteiros. Isso garantiu a longevidade de sua carreira e a extenso de seu domnio. A atuao de seu bando estendeu-se por Alagoas, Cear, Bahia, Paraba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe. Lampio chegou a comandar um exrcito nmade de mais de 100 homens, quase sempre distribudos em subgrupos, o que dava mobilidade e dificultava a ao da polcia. Em 1926, em tom de desafio e zombaria, chegou a enviar uma carta ao governador de Pernambuco, Jlio de Melo, propondo a diviso do estado em duas partes. Jlio de Melo que se contentasse com uma. Lampio, autoproclamado Governador do Serto, mandaria na outra. H divergncias e discusses apaixonadas em torno da figura histrica de Virgulino. Ele comandava sesses de estupro coletivo ou, ao contrrio, punia indivduos do bando que violentavam mulheres? Castrava inimigos, como faziam outros tantos envolvidos no cangao? H controvrsias. Lampio no era um demnio nem um heri. Era um cangaceiro. Muitas das crueldades imputadas a ele foram praticadas por indivduos de outros bandos. Entrevistei vrios ex-cangaceiros e nenhum me confirmou histrias a respeito de estupros e castraes executadas pessoalmente por Lampio, diz o pesquisador Amaury Corra de Arajo, autor de sete livros sobre o cangao. As narrativas de velhos cangaceiros contrapem-se verso publicada pelos jornais da poca, que geralmente tinham a polcia como principal fonte. Com tantas histrias e estrias a cercar a figura de Lampio, torna-se difcil separar o homem da lenda. Acho que est justamente a, nessa multiplicidade de olhares e verses, a grande fora do personagem que ele foi. isso que nos ajuda inclusive a entender sua dimenso como mito, explica a historiadora francesa lise Grunspan-Jasmin, autora de Lampio: Senhor do Serto (Edusp).

Lampio VP Um livro recentemente lanado na Frana promete aumentar a temperatura dessa discusso. Assinado pelo escritor Jack de Witte, Lampio VP, ainda sem editora no Brasil, compara a trajetria do Rei do Cangao com a do traficante carioca Marcio Amaro de Oliveira, o Marcinho VP, protagonista do livro-reportagem Abusado, bestseller do jornalista Caco Barcelos. O que produz a violncia das favelas? A misria, a injustia social, a polcia e os polticos corruptos. As mesmas causas produzem os mesmos efeitos, diz De Witte. O historiador e professor titular da Unicamp Jayme Pinsky adverte: um tanto simplista comparar cangaceiros e traficantes. Corre-se o risco de cometer o pecado historiogrfico do anacronismo. Leia-se: analisar um momento histrico com base em conceitos e idias de outro. J foi moeda corrente entre os especialistas interpretar o Rei do Cangao como um bandido social, expresso criada pelo historiador ingls Eric Hobsbawm para definir os fora-da-lei que surgiam nas sociedades agrrias em transio para o capitalismo. Em Bandidos (Forense Universitrio), de 1975, Hobsbawn cita Lampio, Robin Hood e Jesse James como exemplos de nobres salteadores, vingadores ousados, defensores dos oprimidos. A imagem revolucionria comeou a se desenhar em 1935, quando a Aliana Nacional Libertadora citou Virgulino como um de seus inspiradores polticos. A tese foi reforada em 1963 com o lanamento de um clssico sobre o tema, Cangaceiros e Fanticos, no qual o autor, Rui Fac, justifica a violncia fsica do cangao como uma resposta violncia social. Na mesma poca, o deputado federal Francisco Julio, representante das Ligas Camponesas e militante poltico pela reforma agrria, declarava que Lampio era o primeiro homem do Nordeste a batalhar contra o latifndio e a arbitrariedade. Lampio no era um revolucionrio. Sua vontade no era agir sobre o mundo para lhe impor mais justia, mas usar o mundo em seu proveito, afirma a tambm a historiadora Grunspan-Jasmin, fazendo coro a um dos maiores especialistas do cangao da atualidade, Frederico Pernambucano de Mello. Pesquisador da Fundao Joaquim Nabuco e autor de Guerreiros do Sol: Violncia e Banditismo no Nordeste Brasileiro, Mello diz que o cangaceiro e o coronel no eram rivais. Os coronis ofereciam armas e proteo aos cangaceiros, que, em troca, forneciam servio de milcia. Dois dos maiores coiteiros de Lampio foram homens poderosos: o coronel baiano Petronilo de Alcntara Reis e o capito do Exrcito Eronildes de Carvalho, que viria a ser governador de Alagoas. Aprecio de preferncia as classes conservadoras: agricultores, fazendeiros, comerciantes, disse Virgulino em uma entrevista de 1926. Marqueteiro da caatinga A idia de que Lampio fosse um vingador tambm contestada por Mello. Ele argumenta que, em quase 20 anos de cangao, Lampio nunca teria se esforado para se vingar de Lucena e Saturnino, o policial e o antigo vizinho responsveis pelo assassinato de seu pai. De acordo com um dos homens de Virgulino, Miguel Feitosa, o Medalha, Saturnino chegara a mandar um uniforme e um corte de tecido com o objetivo de selar a paz entre eles. Um portador teria agradecido por Lampio. O mesmo Medalha dizia que o ex-soldado Pedro Barbosa da Cruz props matar Lucena por dinheiro. Deixe disso, essas so questes velhas, teria respondido Lampio. Segundo o autor de Guerreiros do Sol, os cangaceiros usavam o discurso de vinganas pessoais e gestos de caridade como escudos ticos para os atos de banditismo. Apesar da vida rdua, quem entrava no cangao dificilmente conseguia (ou queria) sair dele. Havia um notrio orgulho de pertencer aos bandos, revelado tambm na indumentria dos cangaceiros. O excesso de adereos, os enfeites nos chapus, os

bordados coloridos foram tpicos dos momentos finais do cangao. Lampio era um homem bem preocupado com sua imagem pblica, o que colaborou para que permanecesse na memria nacional. O Rei do Cangao tambm era o rei do marketing pessoal. Assim como adorava aparecer em jornais e revistas, deixando-se inclusive fotografar e at filmar, fazia de seu traje de guerreiro uma ostensiva e vaidosa marca registrada. Nisso, talvez apenas o cavaleiro medieval europeu ou o samurai oriental possa rivalizar com o nosso capito do cangao, escreveu Pernambucano de Mello. A antroploga Luitgarde Barros enxerga a um outro ponto em comum com a bandidagem atual: Os traficantes tambm gostam de ostentar sua condio de bandidos e possuem um cdigo visual caracterstico, composto por capuzes e tatuagens de caveiras espalhadas pelo corpo. A violncia policial outro aspecto que aproxima o universo de Lampio do mundo do trfico. Como ocorre hoje nas favelas dominadas pelo crime organizado, a truculncia dos bandoleiros sertanejos s encontrava equivalncia na brutalidade das volantes as foras policiais cujos soldados eram apelidados pelos cangaceiros de macacos. Nos tempos ureos do cangao, no havia grandes diferenas entre a ao de bandidos e soldados. No raro, eles se trajavam do mesmo modo o que chegava a provocar confuses e uns se bandeavam para o lado dos outros. Cangaceiros como Clementino Jos Furtado, o Quel, abandonaram o grupo e foram cerrar fileiras em meio s volantes. O bandido Mormao fez o movimento contrrio. Havia sido corneteiro da polcia antes de aderir a Lampio. Como comum histria da maioria dos criminosos, uma morte trgica e violenta marcou o fim dos dias de Virgulino. Trado por um de seus coiteiros de confiana, Pedro de Cndida, que foi torturado pela polcia para denunciar o paradeiro do bando, Lampio acabou surpreendido em seu esconderijo na Grota do Angico, Sergipe, em 28 de julho de 1938. Depois de uma batalha de apenas 15 minutos contra as tropas do tenente Jos Bezerra, 11 cangaceiros tombaram no campo de batalha. Todos eles tiveram os corpos degolados pela polcia, inclusive Lampio e Maria Bonita. Durante mais de 30 anos, as cabeas dos dois permaneceram insepultas. Em 1969, elas ainda estavam no museu Nina Rodrigues, na Bahia, quando foram finalmente enterradas, a pedido de familiares do casal mais mitolgico e temido do cangao. A saga de Lampio na caatinga 1898 Virgulino Ferreira da Silva nasce em 4 de junho, na comarca de Vila Bela, atual Serra Talhada, Pernambuco. o terceiro dos nove filhos de Jos Ferreira e Maria Lopes. 1915 Comea a briga entre a famlia Ferreira e a do vizinho Jos Saturnino. 1920 Jos Ferreira morto. Virgulino e trs irmos (Ezequiel, Levino e Antnio) entram para o cangao. Durante um tiroteio em Pianc (PB), ele ferido no ombro e na virilha: so as primeiras cicatrizes de uma srie que colecionar na vida. 1922 Sinh Pereira abandona o cangao e Lampio assume o lugar do chefe. A primeira grande faanha um assalto casa da baronesa Joana Vieira de Siqueira Torres, em Alagoas. 1924 Toma um tiro no p direito, em Serra do Catol, municpio de Belmonte (PE). 1925 Fica cego do olho direito e passa a usar culos para disfarar o problema. 1926 Visita Padre Ccero no Cear e recebe a patente de capito do batalho patritico, encarregado de combater a Coluna Prestes. Em Itacuruba (PE) ferido bala na omoplata. 1927 Ataque do bando a Mossor (RN). A cidade resiste. uma das maiores derrotas de sua carreira. 1928 A ao da polcia de Pernambuco faz com que atravesse o rio So Francisco e

passe a agir preferencialmente na Bahia e em Sergipe. 1929 Primeiro encontro com Maria Bonita, na fazenda do pai dela, em Malhada do Caiara (BA). 1930 Maria Bonita torna-se sua mulher e ingressa no bando. O governo da Bahia oferece uma recompensa de 50 contos de ris para quem o entregar vivo ou morto. Em Sergipe, baleado no quadril. 1932 Nasce Expedita, sua filha com Maria Bonita. 1934 Eronildes Carvalho, capito do Exrcito e coiteiro de Lampio, nomeado governador de Sergipe. 1936 O libans Benjamin Abrao, ex-secretrio de Padre Ccero, convence Virgulino a se deixar filmar no documentrio Lampeo. O filme recolhido pelo Estado Novo. 1938 Em 28 de julho, o bando cercado em Angico (SE). Lampio, Maria Bonita e nove cangaceiros so assassinados. Artimanhas do cangao As estratgias e tcnicas para despistar os inimigos Embora seja inadequado referir-se aos cangaceiros como guerrilheiros eles no tinham nenhum propsito poltico , inegvel que lanaram mo de tticas tpicas da guerrilha. Habituados a viver na caatinga, no eram presa fcil para a polcia, especialmente para as unidades deslocadas das cidades com a misso de combat-los no serto. Uma das maiores dificuldades de enfrent-los era a de que preferiam ataques rpidos e ferozes, que surpreendiam o adversrio. Tambm no tinham qualquer cerimnia em fugir quando se viam acuados. Houve quem confundisse isso com covardia. Era estratgia cangaceira. Tropa de elite Os bandos eram sempre pequenos, de no mximo 10 a 15 homens. Isso garantia a mobilidade necessria para a realizao de ataques-surpresa e para bater em retirada em situaes de perigo. Calada da noite Em vez de se deslocar a cavalo por estradas e trilhas conhecidas da polcia, percorriam longas distncias a p em meio caatinga, de preferncia noite. Para evitar que novas vias de acesso ao serto fossem abertas, assassinavam trabalhadores nas obras de rodovias e ferrovias. Os apetrechos Todos os pertences do cangaceiro eram levados pendurados pelo corpo. Como no se podia carregar muita bagagem, dinheiro e comida eram colocados em potes enterrados no cho, para serem recuperados mais tarde. Raposas do deserto Cangaceiros eram mestres em esconder rastros. Alguns truques: usar as sandlias ao contrrio nos ps. Pelas pegadas, a polcia achava que eles iam na direo contrria (detalhe); andar em fila indiana, de costas, pisando sobre as mesmas pegadas, apagadas com folhagens; pular sobre um lajedo, dando a impresso de sumir no ar. Peso morto Com exceo de seqestrados, quase nunca faziam prisioneiros em combate, pois isso dificultaria a capacidade de se mover com rapidez. Tambm no mantinham colegas feridos ou com dificuldade de locomoo. Seu mestre mandou Para resolver discrdias internas no bando, Lampio sempre planejava um grande ataque. Todos os membros do grupo se uniam contra o inimigo e deixavam de lado as divergncias entre si.

Os infiltrados Quem dava abrigo e esconderijo aos cangaceiros era chamado de coiteiro e agia em troca de dinheiro, de proteo armada ou mesmo por medo. Coiteiros que traam a confiana eram mortos para servirem de exemplo. Rota de fuga As principais reas de ao do cangao eram prximas s fronteiras estaduais. Em caso de perseguio, eles podiam cruz-las para ficar a salvo do ataque da polcia local. Fogo amigo e inimigo Durante os combates, havia uma regra fundamental: em caso de retirada, nunca deixar armas para o inimigo; nas vitrias, apoderar-se do arsenal dele. Deus e diabo na terra do sol A noite em que Padre Ccero conversou com Lampio Ali estavam, frente a frente, pela primeira e nica vez, Lampio e Padre Ccero, os dois maiores mitos de toda a histria nordestina. Uma terceira figura mitolgica era indiretamente responsvel por aquele encontro inusitado: Lus Carlos Prestes, o comandante da Coluna Prestes, movimento militar guerrilheiro que desde o ano anterior serpenteava pelo interior do pas, enfrentando as tropas do presidente Artur Bernardes. Quando a marcha da coluna revolucionria rumou para o Nordeste, o governo federal no teve dvidas: convocou os chefes polticos locais para formarem exrcitos prprios e combater os rebeldes. No livro O General Ges Depe, da dcada de 1950, o prprio general Ges Monteiro, chefe do Estado-Maior das operaes contra a Coluna, assume que partiu dele a idia de convocar jagunos e cangaceiros para fazer frente ao avano de Prestes. No Cear, coube ao deputado Floro Bartolomeu, mdico e aliado poltico do Padre Ccero, fazer o convite oficial ao bando de Lampio para se engajar no Batalho Patritico. Em fevereiro de 1926, Padre Ccero ainda tentou uma soluo pacfica. Enviou aos revolucionrios uma carta em que os incitava a depor armas. Em troca, prometia-lhes abrigo em Juazeiro do Norte (CE), onde teriam garantias legais de que seriam submetidos a um tratamento justo. De acordo com o relato de Loureno Moreira Lima, secretrio da Coluna revolucionria, a mensagem foi recebida. Tivemos a oportunidade de ler essa carta, escrita com uma grande ingenuidade, mas da qual ressaltava o desejo ntimo e sincero do padre no sentido de conseguir fazer a paz, escreveu Moreira Lima em seu dirio de campanha, publicado em 1934. O pedido, como se sabe, foi ignorado. Quando Lampio chegou no dia 4 de maro cidade de Juazeiro do Norte, atendendo ao chamado de Floro, este no se encontrava mais por l. Doente, o deputado federal viajara para o Rio de Janeiro, onde acabaria morrendo. Padre Ccero se viu ento com um problema nas mos: recepcionar o famoso bandido e seus cabras na cidade e, mais ainda, cumprir o que havia sido combinado entre Lampio e o deputado, com a devida aprovao do governo federal: o cangaceiro deveria receber dinheiro, armas e a patente de capito do Batalho Patritico. Lampio e outros 49 cangaceiros ocuparam uma casa prxima fazenda de Floro, nas imediaes da cidade, e, em seguida, alojaram-se em Juazeiro do Norte, no sobrado onde residia Joo Mendes de Oliveira, conhecido poeta popular da regio. Foi l que, da janela, Virgulino atirou moedas ao povo e onde, durante a madrugada, Padre Ccero encontrou o bando. Os bandidos, ajoelhados em deferncia ao sacerdote, teriam ouvido o padre tentar convencer seu lder a largar o cangao logo aps voltasse da campanha contra Prestes. Mandou-se ento chamar o nico funcionrio federal disponvel na cidade, o agrnomo Pedro de Albuquerque Uchoa, para redigir um documento que, supostamente, garantiria salvo-conduto ao bando pelos sertes e, principalmente, concedia a prometida patente. O papel, como Lampio viria a descobrir to logo saiu da cidade, no tinha qualquer

valor legal, o que no o impediu de assinar, da por diante, Capito Virgulino. Ciente da desfeita, o cangaceiro no se preocupou mais em dar combate Coluna Prestes. J obtivera dinheiro e armas em nmero suficiente para seguir seu caminho de bandoleiro, agora ostentando orgulhoso a falsa patente militar. Mais tarde, o agrnomo Uchoa justificou seu papel no episdio: diante de Lampio, assinaria qualquer coisa. At a destituio do presidente da Repblica, disse. Bonnie e Clyde do serto O amor de Maria Bonita e Lampio provocou uma revoluo no cotidiano dos cangaceiros Uma sertaneja amoleceu o corao de pedra do Rei do Cangao. Foi Maria Gomes de Oliveira, a Maria Da, tambm conhecida como Maria Bonita. Separada do antigo marido, o sapateiro Jos Miguel da Silva, o Z de Nenm, foi a primeira mulher a entrar no cangao. Antes dela, outros bandoleiros chegaram a ter mulher e filhos, mas nenhuma esposa at ento havia ousado seguir o companheiro na vida errante no meio da caatinga. O primeiro encontro entre os dois foi em 1929, em Malhada de Caiara (BA), na casa dos pais de Maria, ento com 17 anos e sobrinha de um coiteiro de Virgulino. No ano seguinte, a moa largou a famlia e aderiu ao cangao, para viver ao lado do homem amado. Quando soube da notcia, o velho mestre de Lampio, Sinh Pereira, estranhou. Ele nunca permitira a presena de mulheres no bando. Imaginava que elas s trariam a discrdia e o cime entre seus cabras. Mas, depois da chegada de Maria Da, em 1930, muitos outros cangaceiros seguiram o exemplo do chefe. Mulher cangaceira no cozinhava, no lavava roupa e, como ningum no cangao possua casa, tambm no tinha outras obrigaes domsticas. No acampamento, cozinhar e lavar era tarefa reservada aos homens. Elas tambm s faziam amor, no faziam a guerra: exceo de Sila, mulher do cangaceiro Z Sereno, no participavam dos combates e com Maria Bonita no foi diferente. O papel que lhes cabia era o de fazer companhia a seus homens. Os filhos que iam nascendo eram entregues para ser criados por coiteiros. Lampio e Maria tiveram uma filha, Expedita, nascida em 1932. Dois anos antes, aquele que seria o primognito do casal nascera morto, em 1930. Entre os casais, a infidelidade era punida dentro da noo de honra da caatinga: o cangaceiro Z Baiano matou a mulher, Ldia, a golpes de cacete, quando descobriu que ela o trara com o colega BemTe-Vi. Outro companheiro de bando, Moita Brava, pegou a companheira Lili em amores com o cabra P Corante. Assassinou-a com seis tiros queima-roupa. A chegada das mulheres coincidiu com o perodo de decadncia do cangao. Desde que passou a ter Maria Bonita a seu lado, Lampio alterou a vida de eterno nmade por momentos cada vez mais alongados de repouso, especialmente em Sergipe. A influncia de Maria Da sobre o cangaceiro era visvel. Lampio mostrava-se bem mudado. Sua agressividade se dilua nos braos de Maria Da, afirma o pesquisador Pernambucano de Mello. Foi em um desses momentos de pausa e idlio no serto sergipano que o Rei do Cangao acabou sendo surpreendido e morto, na Grota do Angico, em 1938, depois da batalha contra as tropas do tenente Jos Bezerra. Conta-se que, quando lhe deceparam a cabea, a mais clebre de todas as cangaceiras estava ferida, mas ainda viva. Saiba mais LIVROS Guerreiros do Sol: Violncia e Banditismo no Nordeste Brasileiro, Frederico Pernambucano de Mello, Massangana/Girafa, 2004 Um dos melhores estudos sobre cangao, desmitifica a idia de Lampio como um bandido social. Lampio: Senhor do Serto, lise Grunspan-Jasmin, Edusp, 2006

Compara as vrias verses a respeito da vida de Virgulino Ferreira e analisa a permanncia do mito Lampio. A Derradeira Gesta: Lampio e Nazarenos Guerreando no Serto, Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, Mauad, 2007 Analisa a violncia que cercou o cangao e Lampio. Lampio: O Rei dos Cangaceiros, Billy Jaynes Chandler, Paz e Terra, 2003 Biografia de Virgulino Ferreira, baseada em jornais da poca. FONTE: AVENTURAS NA HISTRIA