laura ingalls wilder - 1- uma

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  • 7/29/2019 Laura Ingalls Wilder - 1- Uma

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    UMA CASA NA GRANDE FLORESTA

    LAURA INGALLS WILDER

    Era uma vez, h sessenta anos, uma menina pequenina que morava naGrande Floresta do Wisconsin, numa casinha cinzenta feita de troncos de rvores.

    A toda a volta da casa erguiam-se as grandes e escuras rvores da GrandeFloresta e, para l delas, havia outras rvores, e depois mais outras. Em toda adistncia que um homem podia percorrer para norte, num dia, ou numa semana, ounum ms inteiro, s havia florestas, mais nada. No havia casas. No haviaestradas. No havia pessoas. S havia rvores e os animais que viviam no meiodelas.

    Na Grande Floresta viviam lobos, ursos, e tinham tocas nos montes epastavam gamos por toda a parte.

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    CAPTULO I

    UMA CASA NA GRANDE FLORESTA

    A leste da casinha de troncos, e tambm a oeste, havia quilmetros equilmetros de rvores e s umas poucas casinhas de troncos, muito afastadasumas das outras, na beira da Grande Floresta.

    At onde a menina pequenina conseguia ver, s havia a casinha onde elamorava com o pai e a me, a sua irm Maria e Carrie, a bebe. Diante da casa haviaum caminho para carroas, que virava e curvava at se perder de vista nas florestasonde viviam os animais selvagens, mas a menina pequenina no sabia aonde ocaminho conduzia nem o que poderia haver no seu fim.

    A menina pequenina chamava-se Laura e tratava o pai por P e a me porM. Naquele tempo e naquele lugar, as crianas no diziam Pai e Me, nem Mame

    Pap, como agora. noite, quando estava acordada na cama - que se chamava cama baixa,

    porque de dia estava metida debaixo da alta, dos pais -, Laura punha-se escuta,mas s conseguia ouvir o som das rvores a sussurrar umas com as outras. svezes, um lobo uivava, muito longe, na escurido. Depois aproximava-se e uivavade novo.

    Era um som que assustava. Laura sabia que os lobos eram capazes decomer meninas pequenas. Mas ela estava em segurana, no interior das slidasparedes de troncos. A espingarda do pai estava pendurada por cima da porta, dianteda qual o velho Jack, o buldogue malhado, montava guarda. O pai dizia:

    - Dorme, Laura. O Jack no deixa entrar os lobos.- E Laura aninhava-se debaixo da roupa da cama, muito chegadinha a Maria,

    e adormecia.Uma noite, o pai foi busc-la cama e levou-a ao colo para a janela, para que

    visse os lobos. Estavam dois sentados defronte da porta. Pareciam ces de ploeriado. Apontavam o focinho para a Lua grande e luminosa e uivavam.

    Jack andava de um lado para o outro, diante da porta, a rosnar. Tinha o plodas costas eriado e arreganhava os dentes pontiagudos e ameaadores aos lobos.Estes uivavam, mas no podiam entrar.

    A casa era confortvel. Em cima havia um sto espaoso, onde eraagradvel brincar quando a chuva tamborilava no telhado. Em baixo havia o quarto

    pequeno e a sala grande. O quarto pequeno tinha uma janela com portas demadeira. A sala grande tinha duas janelas com vidros e duas portas, a principal e ade servio.

    A toda a volta da casa havia uma cerca irregular, para no deixar entrar osursos e os gamos.

    No ptio da frente havia dois grandes e bonitos carvalhos. Todas as manhs,assim que acordava, Laura ia a correr espreitar pela janela. Uma manh viu, emcada uma das rvores, um veado morto, suspenso de um ramo.

    O pai matara-os com a espingarda, no dia anterior, e Laura j estava a dormirquando ele os trouxera para casa e os pendurara nas rvores, bem alto, para que oslobos no chegassem carne.

    Nesse dia, a famlia comeu carne fresca de veado ao almoo. Era to boaque Laura teve pena de no a poderem comer toda. Mas a maior parte tinha de sersalgada, fumada e guardada, para a comerem no Inverno.

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    Sim, porque o Inverno estava porta. Os dias tinham-se tornado mais curtose, noite, a geada amarinhava pelos vidros das janelas acima. No tardaria a nevar.Ento a casa de troncos ficaria quase enterrada nos montes de neve que seacumulariam aos seus lados e os rios e o lago gelariam. No tempo muito frio, o pai

    no tinha a certeza de encontrar caa para comerem.Os ursos estariam escondidos nas suas cavernas, onde dormiriamprofundamente todo o Inverno. Os esquilos estariam enroscados nos seus ninhosnas rvores ocas, com a cauda felpuda bem aconchegadinha volta do focinho. Osgamos e os coelhos mostrar-se-iam assustadios e velozes. Mas mesmo que o paiconseguisse caar um veado, seria escanzelado e magro, e no gordo e anafadocomo no Outono.

    O pai podia andar caa todo o dia na Grande Floresta coberta de neve, comum frio de rachar, e voltar noite para casa sem nada para a me, Maria e Lauracomerem.

    Por isso, antes de o Inverno chegar, tinham de guardar na casinha de troncos

    a maior quantidade possvel de comida.O pai esfolou os veados cuidadosamente e salgou e esticou as peles, das

    quais faria cabedal macio. Depois cortou a carne e foi salpicando de sal os bocados,que colocava numa tbua.

    De p, no ptio, havia uma poro grande do tronco de uma enorme rvoreoca. O pai pregara-lhe pregos no interior, o mais longe que conseguira alcanar decada extremidade. Depois pusera o tronco de p, cobrira-o com um telhadinho eabrira uma portinha a um lado, prximo do fundo. Colocara gonzos de couro noretngulo que cortara, depois prendera-os tambm ao tronco e, pronto, estava feita aportinha, ainda com a cortia agarrada.

    Quando a carne do veado estava salgada havia diversos dias, o pai abriu umburaco junto da ponta de cada bocado e enfiou um cordel no buraco. Laura viu-ofazer isso e, depois, pendurar a carne nos pregos do interior do tronco oco.

    Enfiava a mo pela portinha e pendurava a carne nos pregos, o mais alto quechegava. Depois encostou uma escada ao tronco, subiu-a, afastou o telhado paraum lado e debruou-se para o interior, para continuar a pendurar a carne nospregos.

    Em seguida ps outra vez o telhado no seu lugar, desceu a escada e disse aLaura:

    - Vai a correr ao cepo da lenha e traz-me alguns daqueles cavacos denogueira verde que l esto; mas escolhe-os novos, limpos e brancos.

    Laura foi numa corrida ao cepo onde o pai partia a lenha e encheu o aventalde cavacos novos e perfumados.O pai acendeu uma fogueirinha logo entrada da portinha, com bocadinhos

    de cortia e musgo, e depois colocou-lhe em cima alguns dos cavacos, com muitocuidado.

    Em vez de arderem depressa, os cavacos verdes ficaram amodorrados eencheram o tronco oco de fumo espesso e sufocante. O pai fechou a porta e pelafresta volta dela saiu um fumozinho, assim como pelo telhado, mas a maior parteficou l dentro, com a carne.

    - No h nada melhor do que bom fumo de nogueira - afirmou o pai. - Vaifazer boa carne de veado, que se conservar em bom estado seja onde for e com

    qualquer tempo.Depois pegou na espingarda, ps o machado ao ombro e dirigiu-se para aclareira, a fim de derrubar mais algumas rvores.

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    Laura e a me tomaram conta do lume durante vrios dias. Quando deixavade sair fumo pelas frestas, Laura ia buscar mais cavacos de nogueira e a mepunha-os na fogueirinha, debaixo da carne. Havia sempre um cheirinho a fumo noptio e, quando a porta se abria, saa um odor forte a carne fumada.

    Por fim, o pai disse que a carne de veado j estivera a fumar temposuficiente. Deixaram ento apagar-se o lume e o pai tirou todos os bocados de carneda rvore oca. A me embrulhou cada bocado em seu papel, muito bemembrulhadinho, e pendurou-os no sto, onde se conservariam secos e emsegurana.

    Uma manh, o pai saiu, antes de clarear, com o carro e os cavalos e voltou noite carregado de peixe. A grande caixa do carro estava cheia e alguns dos peixeseram do tamanho de Laura. O pai tinha ido ao lago Pepin e pescara-os com umarede.

    A me cortou grandes postas de peixe branco, de lasca, sem uma nicaespinha, para Laura e Maria. Regalaram-se todos com o bom peixe fresco, e o que

    no comeram foi salgado em barricas, para o Inverno.O pai tinha um porco, que andava solta na Grande Floresta, a alimentar-se

    de bolotas, nozes e razes. Foi busc-lo e meteu-o numa pocilga feita de troncos,para engordar. Seria morto assim que estivesse frio suficiente para conservar acarne gelada.

    Uma vez, no meio da noite, Laura acordou e ouviu o porco a guinchar. O paisaltou da cama, tirou a espingarda da parede e correu para fora de casa. Lauraouviu a arma disparar uma, duas vezes.

    Quando voltou, o pai disse o que tinha acontecido: vira um grande urso negrode p junto da pocilga. O urso metia a pata na pocilga, para apanhar o porco, e oporco fugia, aos guinchos. O pai viu isso tudo luz das estrelas e disparou logo.Mas a luz era fraca e, com a pressa, ele falhara a pontaria e o urso fugira para afloresta, sem uma beliscadura.

    Laura ficou com pena de o pai no ter acertado no urso. Gostava tanto decarne de urso! O pai tambm teve pena, mas disse:

    - Pelo menos, salvei o porco.A horta atrs da casinha crescera todo o ano. Estava to perto da casa que

    os gamos no saltavam a cerca para comer as hortalias, durante o dia, e noiteJack mantinha-os distncia. s vezes, de manh, havia pequenas pegadas entreas cenouras e as couves. Mas as de Jack tambm l se viam e os gamos quetinham entrado tinham voltado logo a sair.

    Apanharam-se as batatas e as cenouras, as beterrabas, os nabos e ascouves, e arrumaram-se na cave, pois tinham chegado as noites frias, que gelavamtudo.

    Fizeram compridas rstias de cebolas, com a rama entranada, ependuraram-nas no sto, ao lado de enfiadas de pimentos vermelhos suspensosde cordas. Os diversos tipos de abboras foram amontoados, em rimas cor delaranja, amarelas e verdes, aos cantos do sto.

    As barricas de peixe salgado estavam na despensa, em cujas prateleiras seencontravam empilhados queijos amarelos.

    At que um dia o tio Henrique veio a cavalo da Grande Floresta para ajudar opai na matana do porco. A faca de carniceiro da me j estava muito bem afiadinha

    e o tio trouxera a da tia Polly.O pai e o tio Henrique acenderam uma fogueira perto da pocilga e aqueceramum grande caldeiro de gua. Quando a gua estava a ferver, foram matar o porco.

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    Ento Laura foi a correr esconder a cabea na cama e tapar os ouvidos com osdedos, para no ouvir os grunhidos do animal.

    - No lhe di, Laura - disse-lhe o pai -, Fazemo-lo muito depressa. - Mas,mesmo assim, Laura no o queria ouvir grunhir.

    Passado um minuto, tirou cautelosamente um dedo do ouvido e escutou. Oporco j deixara de grunhir. Depois disso, a matana era uma coisa muito divertida.Era um dia muito atarefado, com muito que ver e que fazer. O pai e o tio

    Henrique eram muito engraados e haveria entrecosto para o almoo. Alm disso, opai prometera a bexiga e o rabo do porco a Laura e a Maria.

    Depois de matarem o porco, o pai e o tio Henrique pegaram-lhe e foram-nometendo e tirando da gua a ferver, at ficar bem escaldado. Em seguida,estenderam-no numa tbua e rasparam-no com as facas, para sarem todas ascerdas. Depois disso, suspenderam-no de uma rvore, tiraram-lhe as entranhas edeixaram-no pendurado, a arrefecer.

    Quando estava frio, tiraram-no da rvore e cortaram-no. Havia presuntos e

    ps, lombo, entrecosto e barriga. Havia tambm o corao, o fgado e a lngua, acabea para fazer galantina e o alguidar cheio de bocadinhos diversos, para fazerenchidos.

    A carne foi colocada numa tbua, no telheiro das traseiras, e bem salpicadade sal. Os presuntos e as ps ficaram em salmoura, pois seriam fumadas, como acarne do veado, no tronco oco.

    - No h nada melhor do que presunto curado com fumo de nogueira -garantiu o pai.

    Estava a encher a bexiga do porco. Quando ficou transformada num pequenobalo, atou bem a abertura com um cordel e deu-a a Maria e a Laura, parabrincarem. Podiam atir-la ao ar e atir-la de uma para a outra com pequenaspancadas das mos. Ou faz-la ressaltar no cho e dar-lhe pontaps. Mas o rabo doporco divertia-as ainda mais do que o balo.

    O pai esfolou-o com todo o cuidado e enfiou no lado mais grosso um pauafiado. A me abriu a portinhola do fogo da cozinha e juntou brasas no forno deferro. Em seguida, Laura e Maria, por turnos, seguraram o rabo do porco por cimadas brasas.

    Rechinou, e pingos de gordura caram nas brasas e fizeram pequenaschamas. A me salpicou o petisco de sal. As mos e a cara das duas ficaram muitoquentes e Laura queimou um dedo, mas estava to entusiasmada que no seimportou. Assar o rabo do porco era to divertido que se tornava difcil fazer jogo

    limpo, por turnos.Por fim, ficou pronto. Tinha um bonito tom acastanhado, a toda a volta, echeirava que era um regalo! Levaram-no para o ptio, para arrefecer, mascomearam a provar antes de estar frio e escaldaram a lngua.

    Depois de comerem todos os bocadinhos de carne agarrados aos ossos,deram estes ao Jack. E era uma vez um rabo de porco! S para o ano seguintehaveria outro.

    O tio Henrique voltou para casa depois do almoo e o pai regressou ao seutrabalho na Grande Floresta. Mas o trabalho da matana mal comeara ainda paraLaura, Maria e a me. A me tinha muitas coisas que fazer e Laura e Mariaajudaram-na.

    Durante todo esse dia e o seguinte, a me derreteu o toucinho nos grandescaldeiros de ferro do fogo da cozinha. Laura e Maria foram buscar lenha e tomaramconta do lume, que no devia ser demasiado forte, para no queimar o toucinho. Os

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    grandes caldeiros fervilhavam, mas no podiam fumegar. De vez em quando, a metirava os torresmos castanhos com uma escumadeira, colocava-os num pano,espremia a gordura toda bem espremidinha e depois punha os torresmos de parte.Us-los-ia para dar gosto ao po de milho, mais tarde.

    Os torresmos eram muito bons para comer, muito saborosos, mas Laura eMaria s podiam provar, pois a me dizia que eram muito pesados para meninaspequenas.

    A me raspou e limpou a cabea do porco cuidadosamente e depois cozeu-aat a carne se despegar dos ossos. Picou a carne bem picadinha na tigela demadeira, com a faca prpria, e depois temperou-a com sal, pimenta e especiarias.Em seguida misturou tudo com o lquido que ficara da cozedura e ps numacaarola, para arrefecer. Quando estivesse frio, cortava-se em fatias, e era isso agalantina.

    A me picou e tornou a picar, at ficarem reduzidos a um picado muitofininho, os bocadinhos de carne gorda e magra aparados dos bocados grandes.

    Temperou com sal, pimenta e folhas de salva secas, da horta. Em seguida amassoue tornou a amassar com as mos, at ficar tudo bem misturado, e moldou a massaem bolas. Colocou-as num alguidar, no telheiro, onde gelariam e se conservariamboas para comer durante todo o Inverno. Eram os chourios.

    Quando o tempo da matana terminou, havia os chourios e a galantina,grandes boies de banha, uma barrica de carne branca salgada, no telheiro, e ospresuntos e as ps estavam fumados e pendurados no sto.

    A casinha estava quase a rebentar de boa comida guardada para o longoInverno. A despensa, o telheiro e a cave estavam cheios e o sto no lhes ficavaatrs.

    Agora Laura e Maria tinham de brincar dentro de casa, pois l fora estava frioe as folhas castanhas caam todas das rvores. O lume nunca se apagava no fogo. noite, o pai abafava as brasas com cinza, para as conservar acesas at de manh.

    O sto era um lugar muito bom para brincar. As abboras grandes, redondase coloridas davam bonitas mesas e cadeiras, com os pimentes vermelhos e ascebolas; pendurados por cima Os presuntos e a carne de veado pendiam tambm,embrulhados em papis, e os ramos de ervas secas e cheiros, para cozinhar, assimcomo das ervas amargas para remdios, davam ao sto um cheiro muitoagradvel.

    Era freqente o vento assobiar no exterior, com um som frio e triste. MasLaura e Maria brincavam s casinhas no sto, com as abboras, e sentiam-se

    muito quentinhas e aconchegadas.Maria era mais crescida do que Laura e tinha uma boneca de trapo chamadaNelinha. Laura tinha s uma maaroca embrulhada num leno, mas que tambmdava uma boa boneca. Chamava-se Susana e no tinha a culpa de ser s umamaaroca. s vezes, Maria deixava Laura pegar na Nelinha, mas s quando aSusana no via.

    Os melhores momentos de todos eram noite. Depois do jantar, o pai iabuscar as armadilhas ao telheiro, para as olear junto do fogo. Esfregava-as muitobem, at brilharem, e lubrificava as dobradias dos dentes e as molas das placascom uma pena mergulhada em gordura de urso.

    Havia armadilhas pequenas, armadilhas mdias e armadilhas grandes para

    ursos, com dentes que, segundo o pai dizia, partiriam a perna de um homem, se sefechassem sobre ela.Enquanto tratava das armadilhas, o pai contava pequenas histrias a Laura e

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    a Maria e depois tocava a sua rabeca.As portas e as janelas estavam muito bem fechadas e as frestas das janelas

    tapadas com panos, para no deixarem entrar o frio. Mas a gata, Susana Preta,entrava e saa conforme lhe apetecia, de noite e de dia, pela porta de vaivm da

    gateira, aberta na parte de baixo da porta da frente. Susana Preta saa ou entravasempre muito depressa, para que a porta lhe no apanhasse a cauda quando sefechava atrs dela.

    Uma noite, quando estava a olear as armadilhas, o pai viu a Susana Pretaentrar e disse:

    - Era uma vez um homem que tinha dois gatos, um grande e outro pequeno.Laura e Maria foram a correr encostar-se ao seus joelhos, para ouvir o resto.- Tinha dois gatos - repetiu o pai -, um gato grande e um gato pequeno. Por

    isso, fez uma gateira grande, para o gato grande; e depois fez uma gateira pequena,para o gato pequeno.

    O pai calou-se.

    - Mas porque no podia o gato pequeno... - comeou Maria.- Porque o grande o no deixava interrompeu Laura.- Isso muito feio, Laura. No devemos interromper as pessoas que esto a

    falar - disse o pai, e acrescentou: - Mas estou a ver que qualquer de vocs tem maistino do que o homem que abriu as duas gateiras na sua porta.

    Depois largou as armadilhas, tirou a rabeca da caixa e comeou a tocar. Esseera o melhor momento de todos.

    CAPTULO II

    DIAS DE INVERNO E NOITES DE INVERNO

    Chegou a primeira neve e com ela o frio de rachar. Todas as manhs o paipegava na espingarda e nas armadilhas, saa e passava o dia inteiro na GrandeFloresta, a colocar as armadilhas pequenas, para ratos almiscarados e martas, aolongo dos regatos, e as armadilhas mdias, para raposas e lobos, nas florestas.Tambm colocava as armadilhas grandes, na esperana de apanhar um urso gordo,antes de eles se meterem todos na suas cavernas, para passarem o Inverno.

    Uma manh voltou a casa, foi buscar os cavalos e o tren e saiu de novo,apressado. Tinha abatido um urso a tiro. Laura e Maria ficaram to contentes quedesataram aos saltos e a bater as palmas. Maria gritou:

    - Eu quero a perna! Eu quero a perna!Maria no fazia idia do tamanho da perna de um urso.Quando voltou, o pai trazia um urso e um porco no tren. Ia a andar pela

    floresta, com uma grande armadilha de urso na mo e a espingarda ao ombro, enisto, ao contornar um grande abeto coberto de neve, vira o urso atrs da rvore:

    O urso acabara de matar o porco e estava a segur-lo, para o comer. O paicontou que o urso se encontrava de p, apoiado nas patas traseiras, e agarrava oporco com as dianteiras como se fossem mos.

    O pai matara o urso com um tiro e ficara sem saber donde o porco viera ou aquem pertencia.

    - Por isso, trouxe-o para casa.

    Ficaram com carne fresca em quantidade, para muito tempo. Os dias e asnoites estavam to frios que o porco num caixote e a carne do urso pendurada nopequeno telheiro das traseiras gelaram solidamente sem o perigo de

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    descongelarem.Quando a me queria carne fresca para o almoo, o pai pegava no machado

    e cortava um naco de carne congelada, de urso ou de porco. Mas a me noprecisava de ajuda para ir ao telheiro ou ao sto buscar os chourios do feitio de

    bolas, ou a carne de porco salgada, ou os presuntos e a carne de veado fumados.A neve continuou a cair at se amontoar, inclinada, contra as paredes dacasa. De manh, os vidros das janelas estavam cobertos de geada, que formavabonitas rvores, flores e duendes.

    A me dizia que o Joozinho Geada vinha de noite e fazia os desenhos,enquanto todos dormiam. Laura julgava que o Joozinho Geada era um homempequenino, todo branco de neve, com um cintilante barrete pontiagudo branco ebotas brancas e macias at ao joelho, feitas de pele de gamo. Usava sobretudobranco e mitenes brancas e no trazia nenhuma espingarda s costas, mas as suasmos seguravam ferramentas afiadas e reluzentes, com as quais esculpia osbonecos.

    A me emprestava o dedal a Laura e a Maria, para fazerem bonitos desenhoscom bolinhas na geada dos vidros. Mas elas nunca estragavam os que Joo Geadafizera de noite.

    Quando aproximavam a boca do vidro e bafejavam, a geada branca derretia-se e escorria em gotas pela vidraa. Depois podiam ver a neve amontoada do ladode fora e as grandes rvores nuas e pretas, que projetavam sombras esguias eazuladas na brancura da neve.

    Laura e Maria ajudavam a me na lida da casa. Todas as manhs havia aloua para limpar. Maria limpava mais do que Laura, porque era mais crescida, masLaura limpava sempre muito bem a sua canequinha e o seu pratinho.

    Quando a loua estava toda limpa e arrumada, arejava-se a cama baixa. Emseguida, uma de cada lado, Laura e Maria esticavam as cobertas, entalavam-nasbem aos ps e aos lados, afofavam as almofadas e colocavam-nas no seu lugar.Ento a me empurrava a cama baixa para debaixo da cama alta.

    Feito isso, a me comeava o trabalho que competia a esse dia. Cada diatinha o seu trabalho apropriado e a me costumava dizer: "Lava segunda-feira,engoma tera-feira, remenda quarta feira, faz manteiga quinta-feira, limpa sexta-feira, ao sbado faz de padeira e ao domingo folga da canseira".

    Os dias da semana de que Laura mais gostava eram o de fazer manteiga e ode fazer po.

    No Inverno, a nata no era to amarela como no Vero e a manteiga que dela

    se fazia era branca e menos bonita. Como a me gostava que todas as coisas dasua mesa fossem bonitas, no Inverno coloria a manteiga.Depois de deitar as natas na batedeira alta, de loua, e de a colocar perto do

    fogo, para amornar, lavava e raspava uma cenoura comprida, cor de laranja. Emseguida, ralava-a no fundo de uma velha frigideira de folha, que o pai enchera deburaquinhos, com um prego. A me andava com a cenoura de um lado para o outro,na aspereza dos rebordos dos buraquinhos, e quando acabava levantava a frigideirae via-se um montinho mole e sumarento de cenoura ralada.

    A me deitava a cenoura num tachinho de leite que estava ao lume e, quandoo leite aquecia, despejava a mistura num saco de pano. Depois espremia o leiteamarelo-vivo para a batedeira a fim de colorir as natas todas. Assim a manteiga

    ficaria amarela.Laura e Maria podiam comer a cenoura, depois de espremido o leite. Mariaachava que devia comer o quinho maior, por ser a mais velha, e Laura dizia que a

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    maior parte devia ser para ela, por ser a mais nova. Mas a me mandava-as dividir acenoura ralada em partes iguais. Era deliciosa.

    Quando as natas estavam preparadas, a me escaldava o comprido batedorde madeira, metia-o na batedeira e colocava a tampa. Esta tinha um buraco redondo

    no meio e a me movimentava o batedor para cima e para baixo, para cima e parabaixo, atravs do buraco.Batia assim durante muito tempo. s vezes, Maria tambm batia, enquanto a

    me descansava, mas o batedor era demasiado pesado para Laura.Ao princpio, viam-se salpicos de natas, espessos e lisos, volta do buraco

    da tampa; mas passado muito tempo comeavam a parecer granulosos. Ento ame batia mais devagar E comeavam a aparecer no batedor grozinhos demanteiga amarela.

    Quando a me tirava a tampa da batedeira l estava a manteiga numa massadourada, afogada no leitelho. Ento a me tirava-a com uma esptula de madeirapara uma tigela de madeira e lavava-a muitas vezes com gua fria, a vir-la e a

    revir-la e a comprimi-la com a esptula, at a gua ficar limpa. Depois disso,salgava a manteiga.

    Chegava ento o mais bonito da operao: A me moldava a manteiga. Nofundo solto do molde de manteiga estava gravado o desenho de um morango comduas folhas.

    Com a esptula, a me colocava e comprimia a manteiga no molde, at oencher. Depois virava-o ao contrrio num prato e puxava o cabo do fundo solto domolde. O pequeno pedao de manteiga dourada e firme saa, com o morango e asfolhas gravadas no cimo.

    Laura e Maria observavam, quase sem respirar, uma de cada lado da me,enquanto os bocados de manteiga dourada, cada qual com o seu morango em cima,caam do molde para o prato. No fim, a me dava a cada uma um copo de bom efresco leitelho.

    Aos sbados, quando a me fazia o po, dava a cada uma um bocadinho demassa, para fazerem um pozinho. s vezes tambm lhe dava um bocadinho demassa de biscoitos, para fazerem biscoitinhos, e um dia Laura at fez um pastel, nasua forminha.

    s vezes, quando acabava o trabalho do dia a me recortava-lhes bonecasde papel. Recortava as bonecas num papel branco, grosso, depois desenhava ascaras com um lpis. Em seguida, com bocadinhos de papel colorido, talhavavestidos e chapus, fitas e rendas para Laura e Maria poderem vestir as bonecas

    muito bem vestidinhas. Mas o melhor de tudo era a noite, quando o pai regressava acasa. Voltava das suas caminhadas pela floresta, com pingentinhos de gelopendurados das pontas do bigode. Pendurava a espingarda na parede, por cima daporta, tirava o barrete de pele, o casaco e as luvas e perguntava:

    - Onde est a minha meia canequinha de sidra doce meio bebida? - Referia-se a Laura, por ela ser to pequena.

    Laura e Maria iam a correr sentar-se-lhe nos joelhos, e l ficavam enquantoele se aquecia junto do lume. Depois o pai voltava a vestir o casaco, a pr o barretee a calar as luvas e tornava a sair, para tratar dos animais e levar para casa lenhasuficiente para o lume.

    s vezes, quando o pai via todas as armadilhas depressa, por estarem

    vazias, ou quando encontrava caa mais cedo do que era habitual, voltava paracasa tambm mais cedo. Ento tinha tempo para brincar com Laura e Maria.Uma das brincadeiras de que elas gostavam chamava-se co raivoso. O pai

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    passava os dedos pelo vasto cabelo castanho e deixava-o todo espetado. Depoispunha-se de gatas e, a rosnar perseguia Laura e Maria atravs da sala, a tentarapanh-las num canto donde no pudessem fugir.

    Elas eram rpidas a correr e a esquivar-se, mas uma vez ele apanhou-as

    contra a caixa da lenha, atrs do fogo. No tinham outra sada, a no ser passandopelo pai.O pai rosnava to assustadoramente e tinha cabelo to desgrenhado e os

    olhos to ferozes que a brincadeira parecia mesmo a srio. Maria estava toassustada que no conseguia mexer-se. Mas quando o pai se aproximou mais,Laura gritou e, com um grande pulo, saltou por cima da caixa da lenha, a arrastarMaria atrs de si, E pronto, deixou de haver co raivoso. Quem ali estava era o pai,de p, a olhar para Laura com os olhos azuis muito brilhantes.

    - Sim, senhor! - exclamou. Podes ter apenas uma meia canequinha de sidrameio bebida, mas, com a breca, s forte como um cavalinho francs!

    - No devias assustar tanto as crianas, Carlos - disse a me. - Repara como

    tm os olhos arregalados de medo.O pai olhou para elas e depois pegou na rabeca e comeou a tocar e a

    cantar.

    Ianque Dudle foi cidade,Com as calas s risquinhas,Mas jurou que no viu a cidadeTantas, tantas eram as casinhas.

    Laura e Maria esqueceram-se por completo do co raivoso.

    Viu l umas espingardas to grandesComo um tronco de bordo ou dois,E para as virar, como eram to grandes,Precisavam de duas juntas de bois.Todas as vezes que queriam dispararIa-se um polvorinho ou mais que um,O pum! Era o de uma espingarda vulgar,Mas que muito, muito mais. Puuuum!

    O pai marcava o ritmo com o p e Laura acompanhava a msica, batendo as

    mos, quando ele cantou:E eu canto Ianque Dudle-di-du,E eu canto Ianque Dudle,E eu canto Ianque Dudle-di-du,E eu canto Ianque Dudle!

    Sozinha no meio da Grande Floresta agreste, da neve e do frio, a casinha detroncos era quente, confortvel e aconchegadinha. O pai e a me, e Maria, Laura e abebe Carrie sentiam-se l muito bem e muito felizes, sobretudo noite.

    noite, o lume crepitava na lareira, o frio e a escurido e os animais

    selvagens no podiam entrar, e Jack, o buldogue malhado, e Susana Preta, a gata,piscavam os olhos s chamas que brincavam na lareira.A me estava sentada na sua cadeira de balano, a costurar luz do

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    candeeiro colocado em cima da mesa. O candeeiro brilhava e reluzia, Havia sal nofundo do depsito de vidro do querosene, para evitar que explodisse, e bocadinhode flanela vermelha no meio do sal, para o tornar bonito. E era mesmo bonito.

    Laura gostava de admirar o candeeiro, com sua chamin de vidro to limpa e

    cintilante, sua chama amarela a brilhar to certinha e o seu depsito de queroseneclaro, a que os bocadinhos de flanela vermelha emprestavam colorido. Gostava deolhar para o lume da lareira, a crepitar e a modificar-se constantemente, umas vezesamarelo e vermelho e outras com um tom esverdeado por cima dos toros de lenha eazulado sobre as brasas douradas e cor de rubi.

    E nesses momentos o pai contava histrias.Quando Laura e Maria lhe pediam que contasse uma histria, ele sentava-as

    nos joelhos e fazia-lhes ccegas na cara com a barba comprida, at elas rirem alto.Tinha os olhos azuis e maliciosos.Uma noite, o pai olhou para a Susana Preta que se espreguiava diante do

    lume, a estender e encolher as garras, e disse:

    - Sabiam que uma pantera um gato? Um grande gato bravo?- No - respondeu Laura.- Pois . Imaginem a Susana Preta maior do que o Jack e mais feroz do que

    ele, quando rosna. Assim seria mesmo uma pantera.Instalou Laura e Maria mais confortavelmente, nos joelhos, e acrescentou:- Vou-lhes falar do av e da pantera.- Do seu av? - perguntou Laura.- No, Laura, do teu av. Do meu pai.- Ah! - exclamou a menina, e aninhou-se mais contra o brao do pai.Conhecia o av, que morava muito longe, na Grande Floresta, numa grande

    casa de troncos. O pai comeou:- Um dia, o av foi cidade e iniciou a viagem de regresso j tarde. Estava

    escuro quando meteu a cavalo pela Grande Floresta, to escuro que mal conseguiaver a estrada, e quando ouviu uma pantera gritar assustou-se, pois no tinhaespingarda.

    - Como grita uma pantera? - perguntou Laura.- Como uma mulher - respondeu-lhe o pai -, Assim.E gritou de tal maneira que Laura e Maria tiveram um arrepio de medo.A me deu um salto na cadeira e protestou.- Por favor, Carlos!Mas Laura e Maria gostavam de apanhar sustos daqueles.

    - O cavalo, com o av montado nele, corria velozmente, pois tambm estavaassustado. Mas no conseguia afastar-se da pantera, que os perseguia atravs daescura floresta. Era uma pantera esfomeada e corria tanto como o cavalo. Umasvezes gritava de um lado da estrada, outras do outro, mas sempre perto, atrs deles.

    "O av ia inclinado para a frente, na sela, e incitava o cavalo a andar maisdepressa. Mas ele corria o mais velozmente que podia e, mesmo assim, a panteracontinuava a gritar atrs deles j muito perto.

    "Nisto, o av viu-a, a saltar de copa de rvore para copa de rvore, quase porcima dele.

    "Era uma enorme pantera negra, que saltava pelo ar como a Susana Pretacostuma saltar para apanhar um rato. Mas era muitas, muitas vezes maior do que a

    Susana Preta. To grande que se saltasse para cima do av poderia mat-lo com assuas enormes garras cortantes e os seus enormes dentes afiados."Montado no cavalo, o av fugia dela exatamente como um rato foge de um

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    gato.A pantera j no gritava e o av tambm j no a via. Mas sabia que ela

    continuava a saltar em sua perseguio na floresta escura, atrs dele. O cavalocorria com todas as suas foras.

    "Por fim, o cavalo chegou casa do av. O av viu a pantera formar o salto e,sem perder um instante, saltou do cavalo, contra a porta. Entrou em casa de roldoe bateu logo com a porta. A pantera foi cair em cima do cavalo, exatamente onde oav estivera.

    O cavalo relinchou terrivelmente e fugiu. Embrenhou-se a galope na GrandeFloresta, com a pantera em cima, a rasgar-lhe as costas com as garras. Mas o avtirou a espingarda da parede e correu para a janela, mesmo a tempo de matar apantera com um tiro.

    "O av disse que nunca mais andaria na Grande Floresta sem a suaespingarda.

    Enquanto o pai contava esta histria, Laura e Maria tinham-se aninhado bem

    contra ele, a tremer de medo. Sentiam-se aconchegadas E em segurana no seucolo e envolvidas pelos seus braos fortes.

    Gostavam de estar ali, diante do lume quente, com a Susana Preta a ronronarjunto da lareira e o bom do Jack estendido a seu lado.

    Quando um lobo uivava, Jack levantava a cabea e os plos eriavam-se-lheao longo da espinha. Mas Laura e Maria ouviam o uivo solitrio na negra e friafloresta, e no tinham medo. Estavam aconchegadas e confortveis na sua casinhade troncos de rvore, com a neve empilhada volta e o vento a chorar, porque nopodia entrar e chegar-se ao lume.

    CAPTULO III

    A CARABINA COMPRIDA

    Todas as noites, antes de comear a contar histrias, o pai fazia as balaspara caar no dia seguinte.

    Laura e Maria ajudavam-no. Iam buscar a grande colher de cabo comprido, acaixa cheia de bocadinhos de chumbo e o molde das balas. Depois, enquanto ele seacocorava junto da lareira a fazer as balas, elas sentavam-se a observ-lo, uma decada lado.

    Primeiro, o pai derretia os bocados de chumbo na grande colher, que

    colocava nas brasas. Quando o chumbo estava derretido, deixava-o escorrercuidadosamente da colher para o buraquinho do molde. Esperava um minuto, depoisabria o molde, e caa para o cho uma reluzente bala nova.

    No se lhe podia tocar, por estar muito quente, mas brilhava totentadoramente que, s vezes, Laura ou Maria no resistiam e tocavam-lhe.Queimavam os dedos, mas no diziam nada, porque o pai lhes recomendara quenunca tocassem numa bala nova. Por isso, se queimavam os dedos, a culpa eradelas; deviam ter dado ouvidos ao pai. Limitavam-se a meter os dedos na boca, paraos arrefecer, e a ver o pai fazer mais balas.

    Quando acabava, havia um montinho reluzente, defronte da lareira. O paideixava-as arrefecer e depois, com a navalha, retirava as pequenas irregularidades

    deixadas pelo buraco do molde. Apanhava as minsculas aparas de chumbo eguardava-as cuidadosamente, para as derreter de novo quando voltasse a fazerbalas.

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    Metia as balas acabadas na bolsa, que era um bonito saquinho que a mefizera com a pele de um gamo que o pai caara. Feitas as balas, o pai tirava aespingarda da parede e limpava-a. Podia ter acumulado alguma umidade, todo o diana floresta coberta de neve, e o interior do cano estava com certeza sujo de fumo de

    plvora.Por isso, o pai tirava a vareta do seu lugar, debaixo do cano, e prendia-lhe ponta um bocadinho de pano limpo. Apoiava a coronha da espingarda numacaarola e deitava gua a ferver, da chaleira, pelo cano abaixo. Em seguida,rapidamente, enfiava a vareta no cano e movimentava-a para baixo e para cima,para baixo e para cima, at a gua quente, enegrecida pela plvora, borbotar peloburaquinho onde se colocava o fulminante, quando a arma estava carregada.

    O pai continuava a deitar mais gua e a lavar o cano com o trapo preso vareta at a gua sair clara. Isso significava que a espingarda estava limpa. A guadevia estar sempre a ferver, para que o ao aquecido secasse imediatamente.

    Em seguida, o pai prendia outro trapo, limpo e impregnado de gordura, na

    vareta e, enquanto o cano ainda estava quente, engordurava-o bem, no interior.Com outro trapo limpo e impregnado de gordura, esfregava-o depois todo por fora,at no haver nem um bocadinho que no brilhasse, bem untado. Depois disso,esfregava e polia a coronha, at a madeira brilhar, tambm.

    Estava tudo preparado para recarregar a espingarda, e Laura e Maria tinhamde ajud-lo. De p, alto e direito, o pai apoiava a base da coronha da espingarda nocho, com o cano para cima, enquanto Laura e Maria se colocavam uma de cadalado dele.

    - Agora observem-me e vejam se cometo algum erro - dizia o pai.Elas observavam-no com todo o cuidado, mas ele nunca cometia erro

    nenhum.Laura estendia-lhe o chifre de vaca liso e polido, cheio de plvora. A ponta do

    chifre era uma tampinha de metal. O pai enchia a tampinha de plvora e despejava-a pelo cano abaixo. Depois sacudia um bocadinho a arma e batia no cano, para ter acerteza de que a plvora assentava no fundo.

    - Onde est a minha caixa de trapos? perguntava ento o pai, e Maria dava-lhe a caixinha de folha cheia de bocadinhos de trapo impregnados em gordura.

    O pai colocava um desses trapinhos engordurados na boca do cano, punha-lhe uma reluzente bala nova em cima e, com a vareta, empurrava a bala e o trapopelo cano abaixo. Depois comprimia-os bem contra a plvora.

    Quando fazia isso, a vareta ressaltava pelo cano acima e o pai agarrava-a e

    empurrava-a de novo. Repetia esta operao muitas vezes.Em seguida, recolocava a vareta no seu lugar, contra o cano da espingarda.Tirava ento uma caixa de fulminantes da algibeira, levantava o co da arma eintroduzia um dos fulminantesinhos brilhantes sobre a agulha oca que ficava sob oco. Baixava o co devagar e com muito cuidado, pois se descesse depressa -pum!- a arma dispararia.

    Carregada a espingarda, o pai colocava-a nos suportes, por cima da porta.Quando o pai estava em casa, a espingarda estava sempre deitada nesses

    dois suportes de madeira, por cima da porta. O pai fizera-os de um galho verde, queafeioara com a faca, e enfiara as extremidades direitas, martelada, em doisburacos fundos abertos num tronco da parede. As pontas curvavam para cima e

    prendiam bem a espingarda.A espingarda estava sempre carregada e arrumada por cima da porta, paraque o pai lhe pudesse chegar rpida e facilmente em qualquer ocasio que dela

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    precisasse.Quando ia para a Grande Floresta, o pai certificava-se sempre de que a bolsa

    das balas estava cheia e de que tinha nas algibeiras a caixinha dos traposengordurados e a caixinha dos fulminantes. O chifre da plvora - que se chamava o

    polvorinho - e uma machadinha bem afiada pendiam-lhe do cinto e levava aespingarda carregada ao ombro.Recarregava sempre a espingarda assim que a disparava, porque, como

    dizia, no queria ter de enfrentar qualquer percalo com uma espingardadescarregada.

    Sempre que disparava contra um animal selvagem, tinha de parar e carregara arma - medir a plvora, deit-la no cano e faz-la assentar, colocar o trapinho e abala na boca do cano e empurr-los para baixo e pr um fulminante novo sob o co,antes de poder disparar outra vez. Quando alvejava um urso ou uma pantera, tinhade os matar com o primeiro tiro. Um urso ou uma pantera feridos eram capazes dematar um homem antes de ele ter tempo de recarregar a espingarda.

    Mas Laura e Maria nunca tinham medo quando o pai ia sozinho para aGrande Floresta. Sabiam que ele era capaz de matar ursos e panteras ao primeirotiro.

    Depois das balas feitas e da espingarda carregada, era a altura de contarhistrias.

    - Conte-nos a da voz na floresta - pedia-lhe Laura.O pai olhava-a, de plpebras franzidas, e exclamava:- Oh, no! No querem que eu fale do tempo em que era um rapazinho

    travesso!- Queremos, sim, queremos! - afirmavam Laura e Maria, e o pai comeava a

    contar a histria.

    A histria da voz na floresta

    - Quando eu era um rapazinho no muito maior do que a Maria, todas astardes tinha de ir procurar as vacas floresta e conduzi-las para casa. O meu paitinha-me recomendado que nunca me demorasse a brincar no caminho, queandasse depressa e levasse as vacas para casa antes de escurecer, porque havialobos, panteras e ursos na floresta.

    "Um dia, comecei mais cedo do que de costume e, por isso, pensei que noprecisava de me apressar. Havia tantas coisas que ver na floresta que me esqueci

    da escurido que no tardaria. Havia esquilos vermelhos nas rvores, esquiloslistrados s corridinhas entre as folhas e coelhinhos a brincar nas clareiras. Oscoelhinhos gostam muito de brincar sozinhos antes de irem para a cama, sabem?

    "Comecei a fazer de conta que era um grande caador a seguir o rastro deanimais selvagens e ndios. Fiz de conta que lutava com ndios, e a brincadeira foitanta ou to pouca que a floresta no tardou a parecer-me cheia de selvagens.Nisto, ouvi os passarinhos a darem as boas-noites, nos seus chilreios, e s entoreparei que anoitecia no carreiro e j estava escuro na floresta.

    "Eu sabia que tinha de levar as vacas depressa para casa, pois de contrrioseria completamente escuro antes de elas se encontrarem em segurana noestbulo. O pior que no conseguia encontr-las!

    "Bem apurava o ouvido, mas no lhes ouvia os chocalhos. Chamava,chamava, mas elas no vinham."Embora tivesse medo do escuro e dos animais selvagens, no me atrevia a

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    regressar a casa e apresentar-me ao meu pai sem as vacas. Por isso, desatei acorrer pelo meio das rvores, a procurar e a gritar. E, entretanto, as sombrastornavam-se cada vez mais densas e mais escuras, a floresta parecia maior e asrvores e os arbustos pareciam estranhos.

    "No conseguia encontrar as vacas em parte nenhuma. Subi encostas, aprocurar e a chamar, e desci barrancos fundos e escuros, a chamar e a procurar.Nada. Parei e escutei, a ver se ouvia os chocalhos, mas no se ouvia um som almdo murmrio das folhas.

    "Nisto, ouvi uma respirao alta e pensei que estava uma pantera atrs demim, no escuro. Mas tratava-se apenas da minha prpria respirao.

    "As silvas tinham-me arranhado as pernas e quando corria pelo meio dosarbustos os ramos batiam-me na cara. Mas eu continuava a correr, a procurar e achamar: Sukey! Sukey!

    Sukey! Sukey!", gritava com todas as ganas. Sukey!De repente, qualquer coisa falou mesmo por cima da minha cabea: Uh!

    Uh!"Ps-se-me o cabelo em p.Uh! Uh!, repetiu a voz. E nem queiram saber como eu corri!"Esqueci-me por completo das vacas. S queria sair da floresta e chegar a

    casa."Mas aquela coisa escondida no escuro foi atrs de mim, a repetir Uh! Uh!"Corri com todas as minhas foras e nem mesmo quando perdi o flego deixei

    de correr. Tropecei no sei em qu e ca, mas levantei-me logo e continuei a correr.Nem um lobo teria conseguido alcanar-me.

    "Por fim, desemboquei da floresta escura junto do estbulo. As vacasestavam l paradas, espera que lhes abrisse a cancela para entrarem. Recolhi-ase a seguir corri para casa.

    "O meu pai levantou a cabea e perguntou-me:Porque te atrasaste tanto, homenzinho? Estiveste a brincar no caminho?"Olhei para baixo, para os ps, e s ento reparei que tinha ficado sem a

    unha de um dedo grande. O medo tinha sido tanto que nem sentira a dor, at aquelemomento.

    O pai interrompia sempre a histria nesta passagem e ficava espera queLaura pedisse:

    - Continue, P, continue, por favor!- Bem, depois o teu av foi ao ptio e cortou uma vara verde, forte. Voltou

    para dentro e deu-me uma sova, de tal modo que, da em diante, passei a fazer oque me mandava."Um rapaz de nove anos j tem idade suficiente para no se esquecer do que

    lhe recomendam, disse-me. H uma boa razo para fazeres o que te digo, e se ofizeres no te acontecer mal nenhum.

    - Sim, P, sim, sim! - exclamou Laura, a saltar no joelho do pai. - E depois,que disse ele depois?

    - Disse: Se me tivesses obedecido como deverias, no terias andado naGrande Floresta depois de escurecer e no te terias assustado com o piar de ummocho.

    CAPTULO IV

    NATAL

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    Aproximava-se o Natal.A casinha de troncos estava quase enterrada em neve, que se acumulava

    contra as paredes e nas janelas. De manh, quando o pai abria a porta, havia uma

    parede de neve que chegava altura da cabea de Laura. O pai pegava na p eretirava-a e depois, do mesmo modo, abria um carreiro para o estbulo, onde oscavalos e as vacas estavam aconchegadinhos e quentes nas suas baias.

    Os dias estavam claros e luminosos. Laura e Maria punham-se em p emcadeiras, junto da janela, e olhavam atravs da neve cintilante para as rvores todasbrancas. A neve espessa cobria-lhes os ramos nus e escuros e reluzia ao sol.

    Pingentes de gelo pendiam do beiral da casa para os montes de neveempilhados contra as paredes. Eram grandes, to grossos na parte de cima como obrao de Laura, pareciam de vidro e chispavam, cheios de luzes.

    O hlito do pai pairava no ar como fumo, quando ele regressava do estbulo,pelo carreiro. Quando ele respirava, parecia que lhe saam da boca nuvenzinhas que

    se transformavam em geada branca na sua barba e no seu bigode.Quando entrava em casa, batia com os ps a sacudir a neve das botas e

    apertava Laura num abrao de urso, contra o grande casaco frio, o seu bigodeficava cheio de gotinhas de geada a derreter-se.

    Fazia sero todas as noites, a trabalhar numa tbua grande e em duas maispequenas. Afeioava-as com a faca e alisava-as com lixa e com a palma da mo, detal maneira que quando Laura lhes tocava as sentia macias e lisinhas como seda.

    Depois, com a navalha afiada, recortou as arestas da tbua grande empequenos picos e torres, com uma grande estrela recortada no ponto mais alto.Abriu buraquinhos na madeira e depois deu-lhes a forma de janelas, estrelinhas,crescentes de lua e crculos. A toda a volta deles esculpiu folhas, flores epassarinhos, tudo muito pequenino.

    A uma das tbuas pequenas deu uma bonita forma arredondada e esculpiu-lhe volta folhas, flores e estrelas e no meio crescentes e arabescos.

    roda da tbua mais pequena esculpiu uma minscula trepadeira em flor.Trabalhava muito devagarinho e com todos os cuidados, para fazer tudo

    quanto achava que fosse mais bonito.Por fim, as peas ficaram prontas e, uma noite, armou-as. Viu-se ento que a

    tbua maior era um suporte muito bonito e bem trabalhado para uma prateleirinha aomeio. A estrela grande ficava mesmo ao cimo. A pea curva amparava, por baixo, aprateleira e tambm estava muito bonita, e a trepadeirazinha foi colocada volta da

    prateleira.Era uma consola que o pai fizera para presente de Natal da me. Pendurou-acuidadosamente na parede de troncos, entre as janelas, e a me ps a bonequinhade porcelana na prateleira.

    A bonequinha de porcelana tinha uma touca de porcelana na cabea ecaracis de porcelana chegados ao pescoo de porcelana. O vestido de porcelanatinha fitas frente e a boneca usava um aventalinho de porcelana cor-de-rosa esapatinhos de porcelana dourada. Era linda, de p a prateleira, com flores, folhas,passarinhos e luas a toda a volta e a grande estrela no cimo de tudo.

    A me passava o dia inteiro atarefada, a cozinhar coisas boas para o Natal.Cozeu po levedado e po de centeio com especiarias, biscoitos suecos e uma

    grande panela de feijo, com carne de porco e melao. Fez tartes avinagradas etartes de ma seca, encheu um grande boio de bolinhos e deixou Laura e Marialamberem a colher de bater a massa.

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    Uma manh, ferveu melao juntamente com acar, at formar um xaropegrosso, e o pai trouxe duas caarolas de neve limpa e branquinha. Laura e Mariaficaram cada qual com a sua caarola e o pai e a me ensinaram-lhes a deitar oxarope escuro, em fio, para a neve. Fizeram crculos, rabiscos e outras coisas do

    gnero, que endureciam logo e ficavam transformadas em rebuado. Laura e Mariaforam autorizadas a comer um rebuado cada uma, mas os restantes foramguardados para o Natal.

    Tudo aquilo se fazia porque a tia Elisa, o tio Pedro e os primos Pedro, Alice eElla viriam passar o Natal com eles.

    Chegaram na vspera de Natal. Laura e Maria ouviram o rudo alegre dosguizos do tren aumentar de momento a momento, e depois o tren duplo saiu domeio das rvores e aproximou-se da cancela. Vinham nele a tia Elisa, o tio Pedro eos primos, todos embrulhados em cobertores, casacos e peles de bfalo.

    Eram tantos os casacos, os abafos, os vus e os xales que pareciamenormes trouxas disformes.

    Depois de todos entrarem, a casinha ficou cheia e a deitar por fora. A SusanaPreta fugiu e foi esconder-se no estbulo, mas Jack desatou aos pulos, em crculos,na neve, e a ladrar como se nunca mais se calasse. Agora tinham primos com quembrincar!

    Assim que a tia Elisa tirou os abafos aos filhos, Pedro, Alice e Ella e Laura eMaria comearam a correr e a gritar. Por fim, a tia Elisa mandou-os calar. EntoAlice sugeriu:

    - Sabem o que vamos fazer? Retratos!Alice acrescentou que tinham de ir l para fora, para os fazer, e a me de

    Laura achou que estava muito frio para ela brincar fora de casa.Mas quando viu a cara decepcionada de Laura disse que, afinal, podia ir um

    bocadinho. Mas antes, vestiu-lhe o casaco, calou-lhe as luvas, envolveu-a na capaquente com capuz e agasalhou-lhe o pescoo.

    Laura nunca se divertira tanto. Passou a manh toda a brincar fora de casa,na neve, com Alice, Ella, Pedro e Maria. A fazer retratos. A brincadeira era assim:

    Cada um subia para um coto de rvore cortada e, todos ao mesmo tempo ecom os braos bem abertos, atiravam-se para a neve fofa e funda. Caam de chapa,de cara, e tentavam levantar-se sem estragar a marca que o corpo deixara na neve,ao cair. Se faziam tudo bem, na neve ficavam cinco buracos, com o formato quaseperfeito de quatro meninas e um rapazinho, com braos e pernas e tudo. Chamavama isso os seus retratos.

    Brincaram tanto durante todo o dia que, quando a noite chegou, estavam toexcitados que no tinham sono. Mas teriam de dormir, pois de contrrio o Pai Natalno apareceria. Por isso, penduraram as meias junto da chamin, rezaram as suasoraes e deitaram-se: Alice, Ella, Maria e Laura todas quatro numa grande cama nocho.

    Pedro dormiu na cama baixa. A tia Elisa e o tio Pedro dormiriam na cama altae fez-se outra cama no cho do sto para os pais de Laura. Com todas as peles debfalo e todos os cobertores tirados do tren do tio Pedro, havia cobertas para todaa gente.

    O pai e a me e a tia Elisa e o tio Pedro sentaram-se lareira, a conversar.Precisamente quando Laura comeava a fechar os olhos e a adormecer, ouviu o tio

    Pedro dizer:- Outro dia, a Elisa escapou por pouco, quando eu estava em Lake City.Conhecem o Prncipe, aquele meu grande co?

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    Laura ficou logo completamente desperta. Gostava muito de ouvir falar deces. Ficou quietinha como um rato, a olhar para a luz da lareira a brilhar nasparedes de troncos e a ouvir o tio Pedro.

    - Bem - contou o tio Pedro -, de manhzinha cedo, Elisa ps-se a caminho da

    nascente, para encher um balde de gua, e o Prncipe seguiu-a. Quando ela chegou beira do barranco, onde o caminho desce para a nascente, o Prncipe fincou-lhede repente os dentes na parte de trs da saia e puxou.

    "Vocs sabem que ele um co enorme. A Elisa ralhou-lhe, mas ele no lhelargou a saia e ela no conseguiu soltar-se, to grande e forte o animal . Continuoua recuar e a puxar, at lhe arrancar um pedao da saia.

    - Era a azul estampada - disse a tia Elisa me de Laura.- Que pena! - exclamou a me.- Arrancou-lhe um grande bocado, mesmo da parte de trs - continuou a tia

    Elisa. - Fiquei to zangada que me apeteceu bater-lhe. Mas ele rosnou-me.- O Prncipe rosnou-te? - perguntou o pai de Laura.

    - Rosnou - respondeu a tia Elisa.- Bem, ela ps-se de novo a caminho da nascente - continuou o tio Pedro a

    contar -, Mas o Prncipe saltou-lhe para a frente, no carreiro, e arreganhou-lhe osdentes. No fez caso nenhum dos ralhos nem das ameaas dela. Continuou aarreganhar-lhe os dentes e a rosnar-lhe e quando ela procurou passar-lhe frenteele no deixou e tentou mord-la. Isso assustou-a.

    - Fao idia! - exclamou a me de Laura.- Parecia to feroz que pensei que me morderia - confessou a tia Elisa. - E

    acho que teria mesmo mordido.- Nunca ouvi uma coisa assim! - admirou-se a me de Laura. - Que fizeste?- Voltei para trs, corri para casa, onde deixara os pequenos, e fechei a porta

    - respondeu a tia Elisa.- Claro que o Prncipe costuma mostrar-se feroz com desconhecidos - disse o

    tio Pedro -, Mas foi sempre to manso com a Elisa e os pequenos que eu os deixavatranquilamente com ele. A Elisa no conseguia compreender o que se passava.

    "Depois de ela se meter em casa, o co comeou a andar volta da casa e arosnar. Todas as vezes que a Elisa comeava a abrir a porta, ele saltava e rosnava.

    - Estaria raivoso? - perguntou a me de Laura.- Foi o que eu pensei - respondeu a tia Elisa. - No sabia que fazer. Ali estava

    eu, fechada em casa com os pequenos e sem me atrever a sair! E no tnhamosgua nenhuma. Nem sequer podia apanhar um bocado de neve para derreter, pois

    bastava-me abrir uma nesgazinha da porta para o Prncipe dar a impresso de mequerer fazer em fanicos.- Quanto tempo durou isso? - perguntou o pai de Laura.- Todo o dia, at ao fim da tarde - respondeu-lhe a tia Elisa. - Se o Pedro no

    tivesse levado a espingarda, eu teria dado um tiro no co.- Para o fim da tarde - continuou o tio Pedro -, ele serenou e deitou-se diante

    da porta. Elisa pensou que estivesse a dormir e decidiu tentar passarsorrateiramente por ele e ir buscar gua nascente.

    "Abriu a porta muito devagarinho, mas, claro, ele acordou logo. Quando viuque ela tinha o balde da gua na mo, levantou-se e seguiu frente para anascente, como de costume. A toda a volta da nascente havia pegadas recentes de

    uma pantera.- As pegadas eram do tamanho da minha mo! disse a tia Elisa.- Sim, tratava-se de um grande bicho - confirmou o tio Pedro. - Nunca vi

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    rastros to grandes como aqueles. No h dvida de que teria apanhado a Elisa, seo Prncipe a tivesse deixado ir nascente, de manh. Eu vi as pegadas. A panteratinha estado de tocaia em cima daquele grande carvalho da nascente, espera queaparecesse algum animal para beber gua. Ter-se-ia, com certeza, atirado a Elisa.

    "Escurecia, quando ela viu as pegadas, e no perdeu tempo a voltar paracasa com o seu balde de gua. O Prncipe seguiu-a de perto e, de vez em quando,olhava para trs, para o barranco.

    - Levei-o para dentro de casa comigo - disse a tia Elisa. - Ficmos todos ldentro, at o Pedro voltar.

    - Apanhaste-a? - perguntou o pai de Laura ao tio Pedro.- No. Sa com a espingarda e procurei nas imediaes de casa, mas no a

    encontrei. Vi, no entanto, mais algumas pegadas suas: seguira para norte,embrenhara-se mais na Grande Floresta.

    Entretanto, Alice, Ella e Maria tambm tinham acordado. Laura meteu acabea debaixo da roupa e perguntou baixinho a Alice:

    - No tiveste medo?Alice respondeu-lhe, tambm baixinho, que sim, que tivera medo, mas que

    Ella ainda tivera mais. E Ella protestou que no senhora, que no tivera nada maismedo.

    - Bem, pelo menos barafustaste mais por teres sede - cochichou Alice.Continuaram aos segredinhos, at a me de Laura dizer:- Carlos, as garotas nunca mais adormecem se no tocares para elas.Por isso, o pai de Laura foi buscar a rabeca.A sala estava silenciosa, quente e iluminada pela luz do lume que ardia na

    lareira. As sombras da me, da tia Elisa e do tio Pedro tremiam, muito grandes, nasparedes, claridade trmula, e a rabeca do pai tocava, alegremente, para si mesma.

    Tocou Cheiro do Pinheiro, A Vitela Russa, O Sonho do Diabo e Viajante doArkansas. Laura adormeceu enquanto o pai e a rabeca cantavam, ambos,docemente:

    Minha querida Dora, foste-te embora,E eu nunca mais verei o meu amor.

    De manh, acordaram quase todos ao mesmo tempo. Olharam para as meiase viram que tinham qualquer coisa dentro. O Pai Natal passara por ali! Alice, Ella,Laura e Pedro, todos de camisa de dormir de flanela encarnada, levantaram-se aos

    gritos, para ver o que ele lhes trouxera.Cada meia tinha um par de luvas de um tom vermelho-vivo e um chupa-chupacomprido de hortel-pimenta s riscas encarnadas e brancas muito bem feitinhas, decada lado.

    Ficaram to contentes que, ao princpio, nem conseguiram falar. Olharam, deolhos brilhantes, para os encantadores presentes de Natal. Mas Laura era a maisfeliz de todos: tambm lhe calhara uma boneca de trapo.

    Era uma linda boneca, com a cara de pano branco e uns botezinhos pretos afazer de olhos. Um lpis preto desenhara-lhe as sobrancelhas e tinha as faces e aboca vermelhas, com tinta feita de erva-tintureira. O cabelo era feito de l preta, quefora entranada e depois desentranada, para ficar aos caracis.

    Por cima das meiazinhas de flanela encarnada tinha umas botinazinhas depano preto, e o seu vestido de bonito tecido estampado cor-de-rosa e azul.Era to bonita que Laura no foi capaz de dizer nada. Apertou muito a boneca

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    a si e esqueceu tudo o mais. S percebeu que estavam todos a olhar para elaquando a tia Elisa disse:

    - Nunca vi uns olhos to grandes!As outras meninas no se sentiam invejosas por Laura ter recebido uma

    boneca, alm das luvas e do chupa-chupa, porque Laura era a mais pequenina detodas - tirando, claro, a beb Carrie e a bebezinha da tia Elisa, Dolly Varden. Estaseram to pequeninas que no sabiam brincar com bonecas. Nem sequer aindasabiam que havia o Pai Natal! S sabiam meter os dedinhos na boca e palrar, porcausa de tanta agitao.

    Laura sentou-se na beira da cama, a segurar a boneca. Gostava muito dasluvas encarnadas e do chupa-chupa, mas do que mais gostava era da boneca.Chamou-lhe Carlota.

    Depois olharam todos para as luvas uns dos outros e experimentaram-nas,para ver se lhes serviam. O Pedro deu uma grande dentada no chupa-chupa, masAlice, Ella, Maria e Laura preferiram lamber os seus, para durarem mais.

    - Sim, senhor! Sim, senhor! - exclamou o tio Pedro. - No h ao menos umameia s com uma chibatinha? Portaram-se todos assim to bem?

    Mas eles no podiam acreditar que o Pai Natal fosse capaz de lhes deixar suma chibatinha. Claro que isso s vezes acontecia a alguns meninos, mas a elesno podia acontecer. Era to difcil portarem-se sempre bem, todos os dias, duranteum ano inteiro!

    - No arrelies os pequenos, Pedro - disse a tia Elisa.- Laura, no deixas as outras meninas pegar na tua boneca? - perguntou a

    me de Laura, mas o que ela queria dizer era que as meninas no deviam seregostas.

    Por isso, Laura deixou Maria pegar na sua bonita boneca, depois Alicetambm lhe pegou um bocadinho e, por fim, foi a vez de Ella. Alisaram o bonitovestido e admiraram as meias de flanela encarnada, as botinas pretas e o cabelo del, encaracolado. Mas Laura s ficou descansada quando voltou a ter Carlota denovo nos braos.

    O pai e o tio Pedro tiveram cada qual o seu par de quentes luvas de l,tricotadas aos quadradinhos brancos e azuis. A me e a tia Elisa que as tinhamfeito.

    A tia Elisa trouxera para a me de Laura uma grande ma vermelha, todacheia de dentes de alho espetados. Cheirava to bem! E no se estragaria, que osdentes de alho no deixariam.

    Continuaria s e doce.A me de Laura deu tia Elisa um agulheiro do feitio de um livrinho, quefizera com bocadinhos de seda, a servir de capas, e folhas de macia flanela branca,para espetar as agulhas. A flanela no deixaria as agulhas enferrujar.

    Admiraram todos a bonita consola da me de Laura. A tia Elisa disse que o tioPedro tambm lhe fizera uma - mas com desenhos diferentes, claro.

    O Pai Natal no lhes dera nada. O Pai Natal no dava prendas s pessoascrescidas, o que no queria dizer que elas no tivessem sido boas. O pai e a me deLaura tinham sido bons. No dava porque eram pessoas crescidas, e as pessoascrescidas deviam dar prendas umas s outras.

    Depois os presentes tiveram de ser abandonados por um bocadinho. O Pedro

    saiu com o pai de Laura e o tio Pedro para tratarem dos animais, Alice e Ellaajudaram a tia Elisa a fazer as camas e Laura e Maria puseram a mesa, enquanto ame preparava o pequeno-almoo.

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    Havia panquecas para o pequeno-almoo e a me de Laura fez um homemde massa para cada criana. Disse-lhes que se aproximassem um de cada vez, como prato, e eles pararam junto do fogo e puderam ver a me deitar uma colheradade massa e depois acrescentar os braos, as pernas e a cabea. Era engraado v-

    la virar o boneco todo de uma vez, rpida e cuidadosamente, na chapa quente.Quando ficava pronto, passava-o, a fumegar, para o prato.O Pedro comeu logo a cabea do seu boneco. Mas Alice, Ella, Maria e Laura

    comeram devagarinho e aos bocadinhos, primeiro os braos e as pernas e depois ocorpo, deixando a cabea para o fim.

    Estava tanto frio que no puderam ir brincar para fora de casa, masentretiveram-se a admirar as luvas novas e a lamber os chupa-chupas. Alm disso,sentaram-se todos no cho a ver os desenhos da Bblia e os desenhos de todas asespcies de animais e aves do grande livro verde do pai de Laura. Esta estevesempre com a boneca ao colo, no a largou nem um bocadinho.

    Depois seguiu-se o almoo de Natal. Alice, Ella, Pedro, Maria e Laura no

    disseram nem uma palavra mesa, pois sabiam que as crianas deviam ser vistas eno ouvidas. Mas no precisaram de pedir que as servissem de novo. A me deLaura e a tia Elisa encarregaram-se de lhes encher o prato e deixaram-nos comertodas as coisas boas que lhes apeteceram.

    - S Natal uma vez por ano - disse a tia Elisa.Almoaram cedo, porque a tia Elisa, o tio Pedro e os primos tinham um longo

    caminho a percorrer.- Mesmo que os cavalos vo o mais depressa que possam, ser difcil

    chegarmos a casa antes de escurecer - disse o tio Pedro.Por isso, assim que acabaram de almoar, o tio Pedro e o pai de Laura foram

    atrelar os cavalos ao tren, enquanto a me de Laura e a tia Elisa agasalhavam osprimos.

    Enfiaram grossas meias de l por cima das meias e dos sapatos que jtraziam, calaram as luvas, vestiram os casacos e puseram xales e carapuosquentes, abafos de l volta do pescoo e vus grossos a proteger a cara.

    A me de Laura meteu-lhes batatas assadas a escaldar nas algibeiras, paraconservarem os dedos quentes, e os ferros de engomar da tia Elisa estavam aaquecer no fogo, para lhes serem colocados aos ps, no tren. Os cobertores, asmantas e as peles de bfalo tambm foram aquecidos.

    Instalaram-se todos no grande tren, aconchegados e quentinhos, e o pai deLaura cobriu-os bem com a ltima pele de bfalo.

    - Adeus! Adeus! - gritaram, e l foram, com os cavalos a trotar alegremente eos guizos do tren a tocar.Pouco depois, deixou de se ouvir a alegre guizalhada e o Natal acabou-se.

    Oh, mas tinha sido um Natal muito feliz!

    CAPTULO V

    DOMINGOS

    O Inverno comeou a parecer muito comprido. Laura e Maria sentiam-secansadas de estarem sempre em casa. Principalmente aos domingos, o tempo

    passava muito devagarinho.Todos os domingos, Maria e Laura vestiam a sua melhor roupa, tanto de cimacomo de baixo, e punham fitas lavadas no cabelo. Ficavam muito limpinhas, porque

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    tinham tomado banho no sbado noite.No Vero, tomavam banho com gua da nascente. Mas no Inverno o pai

    enchia a tina de neve limpa, que se derretia e transformava em gua no fogo dacozinha. Depois, perto do fogo e com um cobertor aberto em duas cadeiras a servir

    de cortina, a me dava banho a Laura e em seguida a Maria.Laura tomava banho primeiro porque era mais pequena do que Maria. Aosbado tinha de ir para a cama cedo com a Carlota, porque depois de ela tomarbanho e vestir a camisa de dormir lavada o pai tinha de despejar a tina e de aencher novamente de neve para o banho de Maria. Depois de Maria se deitar, a metomava banho atrs do cobertor e, em seguida, tomava o pai. E pronto, ficavamtodos lavados para o domingo.

    Aos domingos, Maria e Laura no podiam correr nem gritar, nem fazerbarulho nas suas brincadeiras. Maria no podia costurar a sua manta de retalhos eLaura no podia tricotar as luvinhas que estava a fazer para a beb Carrie. Podiamolhar, sossegadinhas, para as suas bonecas de papel, mas no lhes podiam

    acrescentar nada de novo. No lhes era permitido fazer-lhes vestidos novos, nemmesmo s presos com alfinetes.

    Tinham de se sentar, caladas, a ouvir a me ler-lhes histrias da Bblia ouhistrias de lees, tigres e ursos brancos do grande livro verde do pai, que sechamava As Maravilhas do Mundo Animal. Podiam ver os desenhos, pegar nasbonecas de trapo e falar com elas. Mas no podiam fazer mais nada.

    Do que Laura mais gostava era de ver os desenhos da grande Bblia, forradade papel. O melhor de todos era o desenho de Ado a pr os nomes aos animais.

    Ado estava sentado numa pedra, com todos os animais e todas as aves,grandes e pequenos, reunidos sua volta, ansiosamente espera de que ele lhesdissesse que gnero de animais eram. Ado parecia muito confortvel. Noprecisava de ter cuidado para no sujar a roupa, pois no usava roupa. S tinhauma pele atada cintura.

    - O Ado tinha roupas boas para usar aos domingos? - perguntou Laura me.

    - No - respondeu-lhe a me. - Coitadinho do Ado, s tinha peles para secobrir.

    Mas Laura no tinha pena do Ado. Quem lhe dera tambm s ter peles parase cobrir!

    Um domingo, depois do jantar, no agentou mais. Comeou a brincar com oJack e no tardou a correr e a gritar. O pai mandou-a sentar-se na cadeira e estar

    quieta e calada, mas ela, quando se sentou, comeou a chorar e a bater com oscalcanhares na cadeira.- Odeio o domingo! - exclamou.O pai pousou o livro e chamou-a, muito srio:- Vem c, Laura.Ela foi a arrastar os ps, pois sabia que merecia uma sova. Mas o pai olhou-a

    um momento, pesaroso, e depois sentou-a no joelho e puxou-a para si. Estendeu ooutro brao a Maria e disse:

    - Vou-lhes contar uma histria de quando o av era pequeno.

    A histria do tren do av e do porco

    - Quando o teu av era pequeno, Laura, o domingo no comeava nodomingo de manh, como agora: comeava ao pr do Sol de sbado. A partir desse

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    momento, toda a gente parava de trabalhar ou de brincar fosse com o que fosse."O jantar era solene e, no fim, o pai do av lia um captulo da Bblia em voz

    alta, enquanto todos o escutavam, quietos e calados, nas suas cadeiras. Depoisajoelhavam-se e o pai dizia uma longa orao. Quando ele dizia Amn,

    levantavam-se, pegava cada qual na sua vela e iam para a cama. Tinham de ir logopara a cama, sem brincarem, rirem ou falarem, sequer."No domingo de manh comiam um pequeno-almoo frio, porque ao domingo

    no se podia cozinhar nada. Em seguida vestiam as melhores roupas e iam a p igreja. Iam a p porque atrelar os cavalos era trabalho, e ao domingo no se podiatrabalhar.

    "Tinham de caminhar devagar e muito srios, a olhar em frente. No podiamgracejar nem rir, nem mesmo sorrir. O av e os seus dois irmos iam frente e o paie a me caminhavam atrs.

    "Na igreja, o av e os irmos tinham de ficar sentados muito quietos, duranteduas longas horas, a ouvir o sermo. No se atreviam a mexer-se no banco duro ou

    a balanar os ps e ai deles se olhavam para as janelas, para as paredes ou para otecto da igreja! Tinham de estar perfeitamente imveis e sem desviar, um momentoque fosse, os olhos do pregador.

    "Acabado o sermo, regressavam a casa, devagar. Podiam falar no caminho,mas s em voz baixa e sem rir nem sorrir. Em casa esperava-os um almoo frio,preparado na vspera. Depois tinham de passar a tarde toda sentados num banco,ao lado uns dos outros, a estudar o catecismo, at o Sol se pr, finalmente, e acabaro domingo.

    "A casa do av ficava mais ou menos a meio da encosta de um montengreme. A estrada descia do cimo ao sop do monte, passando mesmo pela portada frente do av, e no Inverno era o melhor lugar para escorregar que possamimaginar.

    "Uma semana, o av e os seus dois irmos, que se chamavam Jaime eJorge, comearam a fazer um tren novo. Trabalhavam nele todos os momentos dotempo para brincar de que dispunham. Nunca tinham feito um tren melhor, tocomprido que nele cabiam os trs, sentados uns atrs dos outros.

    Tinham decidido acab-lo a tempo de escorregarem pela encosta abaixo nosbado de tarde, pois nesse dia dispunham de duas ou trs horas para brincar.

    "Mas nessa semana o pai deles andou a derrubar rvores na FlorestaGrande. Tinha muito que fazer e, por isso, levava os filhos consigo, para o ajudarem.Faziam os trabalhos da manh luz da lanterna e quando o Sol nascia j estavam a

    trabalhar duramente na floresta. Trabalhavam at escurecer, depois tinham de tratardos animais e a seguir ao jantar iam para a cama para se poderem levantar cedo nodia seguinte.

    "S tiveram tempo para trabalhar no tren no sbado de tarde. Bem seapressaram, bem trabalharam o mais depressa que puderam, mas s o acabarammesmo quando o Sol se ps, ao anoitecer de sbado.

    "Claro que depois do pr do Sol no puderam deslizar pela encosta abaixo,nem sequer uma vez. Isso seria desrespeitar o dia de descanso. Por esse motivo,puseram o tren no telheiro das traseiras da casa, espera que o domingoterminasse.

    "No dia seguinte, durante as duas compridas horas passadas na igreja,

    embora mantivessem os ps quietos e os olhos no pregador, s pensavam no tren.Em casa, enquanto almoavam, tambm no conseguiram pensar noutra coisa.Depois do almoo, o pai deles sentou-se a ler a Bblia e o av, Jaime e Jorge

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    sentaram-se no banco, quietinhos como ratos, com o catecismo. Mas continuavam apensar no tren.

    "O Sol brilhava vivamente e a neve estava lisinha e cintilante, na estrada.Viam-na atravs da janela. Estava um dia perfeito para deslizar pela encosta abaixo.

    Os trs rapazes olhavam para o catecismo, pensavam no tren novo e parecia-lhesque o domingo nunca mais acabava."Passado muito tempo, ouviram ressonar. Olharam para o pai e viram que

    tinha a cabea inclinada para trs e dormia a sono solto."Ento Jaime olhou para Jorge, levantou-se e saiu da sala p ante p, pela

    porta das traseiras. Jorge olhou para o vosso av e saiu tambm p ante p, atrsde Jaime. O vosso av olhou, receoso, para o pai, mas l foi tambm, p ante p,atrs de Jorge, e deixou o pai a ressonar.

    "Foram buscar o tren novo e levaram-no, sem fazer barulho, para o cimo domonte. A sua inteno era deslizarem pela encosta abaixo s uma vez. Em seguida,arrumariam o tren e esgueirar-se-iam para o banco e para o estudo do catecismo,

    antes que o pai acordasse."Jaime sentou-se no lugar da frente do tren, seguido por Jorge e finalmente

    pelo vosso av, que era o mais pequeno dos trs. O tren comeou a deslizar,primeiro devagar e em seguida com velocidade crescente. Corria, voava pelacomprida e ngreme encosta abaixo, mas os rapazes no ousavam gritar a suaalegria. Tinham de passar em silncio pela casa, sem acordar o pai.

    "O nico som que se ouvia era o leve chiado dos patins na neve e o silvo dadeslocao do ar.

    "Nisto, quando o tren descia vertiginosamente na direco da casa, surgiuda floresta um grande porco preto, que foi parar mesmo no meio da estrada.

    "O tren ia to depressa que no era possvel par-lo. Tambm no haviatempo para o virar. Por isso, passou mesmo por baixo do porco, que grunhiu e foiaterrar no colo de Jaime. E o demnio do bicho continuou a grunhir ruidosa, longa eesganiadamente: Squi-i-i-i-i! Squi-i-i-i-i!

    "Passaram pela casa como um raio, com o porco sentado frente, depoisJaime, depois Jorge e por fim o vosso av, e viram o pai porta, a olhar para eles.No puderam parar, no puderam esconder-se, no tiveram tempo para dizer nada.Continuaram lanados pela encosta abaixo, com o porco ao colo de Jaime e semparar de grunhir.

    "Quando chegaram ao fim da encosta, parou. O porco saltou de cima deJaime e correu para a floresta, sempre a grunhir.

    "Os rapazes subiram lenta e solenemente a estrada e foram arrumar o tren.Depois entraram sorrateiramente em casa e sentaram-se em silncio no banco. Opai estava a ler a Bblia. Disse uma palavra para eles, mas no levantou a cabea eolhou.

    "Depois continuou a ler e eles reataram o estudo do catecismo."Mas quando o Sol se ps e o dia de descanso terminou, o pai levou-os para

    o telheiro da lenha e chegou-lhes a roupa ao plo: primeiro a Jaime, depois a Jorgee por fim ao vosso av.

    "Por isso, Laura, e tu tambm, Maria, talvez achem difcil serem boasmeninas, mas deviam alegrar-se por no ser to difcil agora como quando o av erarapaz.

    - As meninas pequenas tambm tinham de ser assim to boas? - perguntouLaura.- Para as meninas ainda era mais difcil do que para os rapazes sim, -

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    respondeu-lhe a me - pois elas tinham de se comportar como senhorinhas todos osdias e no s aos domingos. As meninas pequenas no podiam deslizar pelaencosta, como os rapazes. As meninas pequenas tinham de ficar sentadinhas emcasa, a fazer amostras de bordados.

    - V, agora deixem a me met-las na cama disse o pai, e tirou a rabeca dacaixa.Laura e Maria deitaram-se na cama baixa a ouvir os hinos dominicais, pois

    nem mesmo a rabeca podia tocar canes dos dias da semana ao domingo."Jesus Cristo, recebe-me", cantou o pai com a rabeca. E depois continuou a

    cantar:Ser justo que eu suba ao CuEm floridos leitos de bem-estar,Enquanto outros lutaram por tal prmioE navegaram por sangrentos mares?

    Laura comeou a sentir-se flutuar com a msica e, de sbito, ouviu umbarulho forte... E viu a me ao fogo, a preparar o pequeno-almoo.

    Era segunda-feira de manh e s dali a uma semana inteirinha voltaria a serdomingo.

    Nessa manh, quando entrou em casa para tomar o pequeno-almoo, o paiagarrou Laura e disse que tinha de lhe dar uma sova.

    Primeiro explicou que era o dia dos anos dela e que Laura no cresceriaconvenientemente, no ano seguinte, se no levasse uma sova. Depois comeou adar-lhe aoites to devagar e com tanto cuidado que no lhe doeram nada.

    - Um.. Dois.. Trs... Quatro... Cinco.. Seis... - foi contando, enquanto lhe batia,levezinho: um aoite por cada ano e o ltimo com mais fora, para crescer.

    Em seguida, o pai deu-lhe um bonequinho de madeira, que fizera de um pau,com a navalha para servir de companhia a Carlota. A me deu-lhe cinco bolinhos,um por cada ano que vivera com os pais, e Maria deu-lhe um vestidinho novo paraCarlota. Fora ela mesma quem o fizera, quando Laura a julgara a trabalhar na mantade retalhos.

    Nessa noite, como presente especial de aniversrio, o pai tocou para ela: Zut,foge a doninha!

    Sentou-se com Laura e Maria encostadas aos seus joelhos, enquanto tocava.- Agora olhem... Olhem bem e talvez vejam a doninha fugir, desta vez.Depois cantou:

    Uma moeda para um novelo de linha,Mais outra para uma agulhaE assim se vai o dinheiro...

    Laura e Maria inclinaram-se muito, de olhos atentos, pois sabiam que chegarao momento.

    Zut! (disse o dedo do pai na corda), Foge a doninha! (cantou a rabeca, comose falasse).

    Mas Laura e Maria no tinham visto o dedo do pai fazer a corda cantar zut!- Oh, faa outra vez, faa, por favor! Pediram-Ihe.

    Os olhos azuis do pai riram e a rabeca continuou a tocar, enquanto elecantava:

  • 7/29/2019 Laura Ingalls Wilder - 1- Uma

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    roda do banco do sapateiroO macaco perseguia a doninha.O pregador beijou a sapateira... Zut! Foge a doninha!

    Desta vez tambm no viram o dedo do pai. Ele era to rpido que nuncaconseguiam v-lo.

    Por isso, foram a rir para a cama e ficaram deitadas a ouvir o pai e a rabecacantarem:

    Era uma vez um velho preto,Tio Ned de nome seu,Que h muito, muito, morreu.No cocuruto no tinha, no tinha,Nem um pelinho de carapinha!

    Seus dedos eram compridosComo juncos no canavial,Seus olhos viam mal, to mal,E dentes p'ra broa... j os tivera.Por isso, era como se broa no houvera.

    Assim, pendurou enxada e p,Deitou na caixa arco e rabeco.Trabalho para o Tio Ned j no h:Foi para onde os pretos bons vo.

    CAPTULO VI

    DOIS GRANDES URSOS

    Um dia, o pai disse que vinha a a Primavera. A neve comeava a derreter-sena Grande Floresta, caa aos bocados dos ramos das rvores e fazia pequenosburacos na neve amolecida do cho. Ao meio-dia, todos os grandes pingentes degelo do beiral da casinha tremeluziam e cintilavam ao sol e das suas pontaspendiam trmulas gotas de gua.

    O pai disse que tinha de ir cidade trocar as peles dos animais selvagensque apanhara nas armadilhas durante todo o Inverno. Por isso, uma noite, fez umgrande fardo com elas. Eram tantas peles que, depois de acamadas umas em cimadas outras e bem atadas, faziam um fardo quase do tamanho do pai.

    De manhzinha muito cedo, o pai prendeu o fardo de peles s costas, comcorreias, e ps-se a caminho da cidade, a p. Tinha de carregar tantas peles queno pde levar a espingarda.

    A me ficou preocupada, mas o pai disse que, partindo antes de nascer o Sole andando muito depressa todo o dia, poderia estar de novo em casa antes deescurecer.

    A cidade mais prxima ficava muito longe. Laura e Maria nunca tinham visto

    uma cidade. Nem nunca tinham visto um armazm. Nunca tinham visto, sequer,duas casas ao lado uma da outra. Mas sabiam que numa cidade havia muitas casase um armazm cheio de rebuados, tecidos e outras coisas maravilhosas: plvora,

  • 7/29/2019 Laura Ingalls Wilder - 1- Uma

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    chumbo, sal e acar de armazm.Sabiam que o pai iria ao armazm e trocaria as suas peles por coisas bonitas

    da cidade. Por isso, passaram o dia todo espera dos presentes que ele lhes traria.Quando o Sol desceu altura da copa das rvores e deixaram de cair pingos de

    gua dos pingentes de gelo, comearam a aguardar ansiosamente o pai.O Sol desapareceu, a floresta escureceu e o pai no chegou. A me comeoua fazer o jantar e ps a mesa, e ele sem chegar. Eram horas de tratar dos animais eele ainda no chegara.

    A me disse a Laura que podia ir com ela, mungir a vaca. Laura seguraria nalanterna.

    Laura vestiu o casaco e a me abotoou-lho. Depois Laura calou as luvasencarnadas, que lhe pendiam do pescoo, suspensas de um fio da mesma cor,enquanto a me acendia a vela da lanterna.

    Laura sentia-se orgulhosa por ir ajudar a me a ordenhar e levava a lanternacom muito cuidado. Os lados da lanterna eram de lata, mas tinham bocadinhos

    cortados, para deixar passar a luz da vela.Enquanto Laura caminhava atrs da me no carreiro que levava ao estbulo,

    os bocadinhos de luz da vela que se coavam pela lanterna saltavam sua volta, naneve. Ainda no escurecera por completo. A floresta estava escura, mas havia umaclaridade acinzentada no carreiro coberto de neve e no cu brilhavam algumasestrelas plidas, que no pareciam to quentes nem to luminosas como as luzinhasque saam da lanterna.

    Laura ficou surpreendida ao ver o vulto escuro de Sukey, a vaca castanha,junto da cancela do ptio do estbulo. A me tambm se admirou.

    Ainda era muito cedo para soltar a Sukey e deix-la ir comer erva na GrandeFloresta. Por isso, ela vivia no estbulo. Mas s vezes, quando os dias estavammenos frios, o pai deixava a porta do estbulo aberta, para ela poder ir at ao ptio.Naquela noite, a me e Laura viram-na atrs da vedao, espera delas.

    A me aproximou-se da cancela e empurrou-a, para a abrir. Mas a cancelano se abriu muito, porque Sukey estava encostada a ela.

    - Afasta-te, Sukey - disse a me, ao mesmo tempo que estendia a mo ebatia no lombo da vaca.

    Precisamente nesse instante, um dos saltitantes bocadinhos de luz dalanterna passou por entre os troncos da cancela e Laura viu um plo preto, compridoe emaranhado, e dois olhinhos cintilantes.

    A Sukey tinha plo castanho, curto e ralo e olhos grandes e meigos.

    - Laura, volta para casa - mandou a me.Laura virou-se e comeou a andar para casa. A me seguia-a. Quandotinham percorrido parte do caminho, a me pegou-lhe ao colo, com lanterna e tudo,e desatou a correr. Entrou em casa a correr e fechou logo a porta.

    Ento Laura perguntou-lhe:- Era um urso, M?- Era, sim, era um urso.Laura comeou a chorar. Agarrou-se me, a soluar.- Vai comer a Sukey?- No - respondeu a me, a abra-la. - A Sukey est em segurana, no

    estbulo. Lembra-te de todos aqueles troncos grandes e pesados das paredes do

    estbulo. E a porta tambm pesada e slida, feita para no deixar entrar ursos.No, Laura, nenhum urso pode entrar e comer a Sukey.Laura sentiu-se mais tranqila.

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    - Mas podia ter-nos feito mal, no podia?- No nos fez mal nenhum - respondeu a me. - Foste uma boa menina,

    Laura, fizeste exactamente o que te disse, depressa e sem fazeres perguntas.A me, que estava a tremer, riu-se um bocadinho.

    - Imaginem, dei uma palmada num urso! - exclamou.Depois ps o jantar na mesa, para Laura e Maria. O pai ainda no chegara.Nem chegou enquanto comeram. A me despiu Laura e Maria, que disseram assuas oraes e se aninharam na cama baixa.

    A me sentou-se junto do candeeiro, a remendar uma camisa do pai. A casaparecia fria, silenciosa e estranha sem ele.

    Laura ouvia o vento na Grande Floresta. O vento chorava a toda a volta dacasa, como se estivesse perdido na escurido e no frio. Parecia assustado.

    A me acabou de remendar a camisa. Laura viu-a dobr-la devagar ecuidadosamente e alis-la com a mo. Depois fez uma coisa que nunca a vira fazer:foi porta e puxou para dentro, atravs do buraco, a tira de couro do fecho. Assim,

    ningum poderia entrar se ela no levantasse o fecho. Em seguida foi camagrande e pegou em Carrie, que dormia, ao colo.

    Viu que Laura e Maria ainda estavam acordadas e disse-lhes:- Durmam, filhas. No h motivo para preocupaes. O pai j c estar de

    manh.Voltou para a cadeira de balano e sentou-se, a balanar-se devagarinho,

    com a beb Carrie ao colo.Ia ficar a p at tarde, espera do pai, e Laura e Maria tambm estavam

    decididas a no adormecer enquanto ele no chegasse. Mas o sono acabou porvenc-las.

    De manh o pai j estava em casa. Trouxera chupa-chupas para Laura eMaria e chita bonita para fazer um vestido a cada uma: o de Maria tinha um desenhoazul-porcelana sobre fundo branco e o de Laura era vermelho-escuro com pintinhascastanho-douradas. Tambm havia tecido para um vestido para a me: castanho,todo coberto de um padro plumoso, grande e branco.

    Estavam todos muito contentes, pois o pai obtivera to bons preos para aspeles que lhes pudera trazer prendas to bonitas.

    O grande urso deixara pegadas a toda a volta do estbulo, assim comomarcas das garras nas paredes. Mas Sukey e os cavalos estavam em segurana, ldentro.

    O Sol brilhou todo o dia, a neve derreteu-se e dos pingentes de gelo, que se

    tornavam cada vez mais delgados, correram fiozinhos de gua. Antes de escurecer,as pegadas do urso estavam reduzidas a marcas informes na neve mida e mole.Depois do jantar, o pai sentou Laura e Maria nos joelhos e disse que tinha

    uma histria nova para lhes contar.

    A histria do pai e do urso encontrado no caminho

    - Ontem, quando fui cidade com as peles, tive dificuldade em caminhar naneve mole. Levei muito tempo a chegar e, entretanto, tinham chegado outroshomens com as suas peles para trocar, primeiro do que eu. O dono do armazmestava atarefado e, por isso, tive de esperar que pudesse ver as minhas peles.

    "Depois tivemos de discutir o preo de cada uma e, em seguida, eu tive deescolher as coisas que queria em troca. Por isso, o Sol estava quase a desaparecerquando me pus a caminho de casa.

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    "Tentei vir depressa, mas era difcil caminhar e eu estava cansado. Assim,no tinha avanado muito quando a noite chegou e me encontrou sozinho e sem aminha espingarda na Grande Floresta.

    "Ainda tinha de calcorrear dez quilmetros e continuei a andar, o mais

    depressa que pude. A noite foi-se tornando cada vez mais escura e eu comecei apreocupar-me por no ter a espingarda, pois sabia que alguns ursos j tinham sadodas suas cavernas de Inverno. Vira-lhes os rastros de manh, ida para a cidade.

    "Os ursos esto famintos e zangados nesta poca do ano. Como sabem,passam o Inverno todo a dormir nas cavernas, sem nada que comer, e, por isso,quando acordam esto magros e mal dispostos. No desejava nada encontrar um.

    "Continuei a andar o mais depressa possvel, s escuras. De quando emquando, as estrelas davam uma claridadezinha. Ainda estava escuro como breuonde as rvores eram mais densas, mas nos espaos abertos conseguia vervagamente. Via um pequeno troo de estrada coberta de neve minha frente e asnegras florestas a toda a minha volta. Fiquei contente quando cheguei a uma

    clareira e as estrelas me deram a claridadezinha de que falei."Ia andando o mais atento que podia, no fosse aparecer algum urso. Estava

    de ouvido apurado, para escutar o barulho que eles fazem quando passamdescuidadamente pelo meio do matagal.

    "Depois cheguei a outra clareira e, mesmo no meio do meu caminho, vi umgrande urso preto.

    "Estava de p, apoiado nas patas traseiras, a olhar para mim. Vi-lhe os olhosbrilhar e o focinho de porco. Vi-lhe at uma das garras, luz das estrelas.

    "Puseram-se-me os cabelos em p. Parei logo e fiquei imvel. O urso no semexeu. Continuou parado, a olhar para mim.

    "Eu sabia que seria intil tentar contorn-lo pois ele seguir-me-ia no escuro dafloresta, onde veria melhor do que eu. No me apetecia nada lutar com um ursoesfomeado, s escuras. Oh , como desejei ter a minha espingarda!

    "Tinha de passar pelo demnio do urso para chegar a casa. Pensei que, seconseguisse assust-lo, talvez ele se afastasse do caminho e me deixasse passar.Por isso, respirei fundo e, de repente, desatei a gritar com toda a fora e corri paraele, a agitar os braos.

    "No se mexeu."Garanto-lhes que no me atrevi a aproximar-me muito dele! Parei a olh-lo, e

    ele continuou especado, tambm a olhar-me. Gritei outra vez... e nada. Continuei agritar e a agitar os braos, mas ele no tugia nem mugia.

    "Bem, no me serviria de nada fugir. Havia outros ursos na floresta. Podiaencontrar algum de um momento para o outro. Por isso, mais valia avir-me comaquele. Alm disso, vinha para casa, para junto da me e de vocs, e nunca mais cchegaria se fugisse de tudo quanto me assustasse na floresta.

    "Por fim, olhei em redor e encontrei um bom cacete, um ramo slido e pesadoque o peso da neve separara de uma rvore, no Inverno.

    "Agarrei-o com ambas as mos e corri para o urso. Brandi o cacete comquanta fora tinha e, zs!, dei-lhe com ele na cabea.

    "Mas o urso continuou imvel, pois no passava de um grande tronco preto,queimado!

    "Passara por ele a caminho da cidade, de manh. No era urso nenhum. S

    me pareceu que era porque viera sempre a pensar em ursos e com medo deencontrar algum.- No era mesmo um urso, realmente? perguntou Maria.

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    - No, Maria, no era realmente um urso. E ali estivera eu a gritar, a correr ea agitar os braos, sozinho na Grande Floresta, a tentar assustar um toco de rvore!

    - O nosso era um urso a srio - disse Laura. Mas ns no nos assustmosporque pensmos que era a Sukey.

    O pai apertou-a mais a si, sem dizer nada.- Oh, aquele urso podia ter-nos comido todas, M e a mim! - exclamouLaura, e aninhou-se melhor no colo do pai. - Mas a M foi direita a ele e deu-lhe umapalmada, e o urso no fez nada. Porque seria que no fez nada?

    - Creio que ficou to surpreendido que no foi capaz de fazer nada, Laura -respondeu-lhe o pai. - Acho tambm que se assustou, quando a luz da lanterna lhebateu nos olhos. E quando a me foi direita a ele e lhe deu uma palmada, o ursopercebeu que ela no tinha medo.

    - Bem, o P tambm foi valente - disse Laura. - Era apenas um tronco, mas oP pensava que era um urso. Ter-lhe-ia batido na cabea com o cacete, se fossemesmo um urso no teria?

    - Claro que teria. No tinha outro remdio, compreendes?Ento a me disse que eram horas de ir para a cama. Ajudou Laura e Maria a

    despirem-se e abotoou-lhes as camisas de dormir de flanela encarnada. As duasajoelharam-se ao lado da cama baixa e disseram as suas oraes:

    Agora que para dormir me vou deitar,Peo