lazzarato economia e dívida fabrica do homem endividado

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1 UFSC - CFH - Filosofia Subsídios FilosofiaXTeologiaXEconomia Selvino J. Assmann A fábrica do homem endividado Ensaio sobre a condição neoliberista 1 A guinada autoritária do neoliberismo (Prefácio à edição italiana, 2012) Maurizio LAZZARATO (Trad. Selvino J. Assmann) O endividamento do Estado era, do contrário, o interesse direto da fração da burguesia que governava e legiferava por meio das Câmaras. O déficit do Estado era de fato o verdadeiro objeto da sua especulação e a fonte principal do seu enriquecimento. Todo ano um novo déficit. Após quatro ou cinco anos, um novo empréstimo oferecia à aristocracia financeira uma nova ocasião para fraudar o Estado que, mantido artificiosamenteà beira da bancarrota, era obrigado a fazer um contrato com os banqueiros nas condições mais desfavoráveis. Todo novo empréstimo era uma nova ocasião para esvaziar o público, que investe os seus capitais em renda do Estado. MARX, K. As lutas de classe na França. A saída da crise acontece fora das linhas traçadas pelo FMI. Esta instituição continua propondo o mesmo tipo de modelo de ajuste fiscal, que consiste em diminuir os soldos que se dão às pessoas - os salários, as aposentadorias, os financiamentos públicos, mas também as grandes obras públicas que geram trabalho - para destinar o dinheiro poupado ao pagamento dos credores. É absurdo. Após quatro anos de crise pode-se ir em frente tirando o dinheiro sempre dos mesmos. É exatamente aquilo que se quer impor àGrécia! Cortar 1 LAZZARATO, Maurizio. La fabbrica dell'uomo indebitato. Saggio sulla condizione neoliberista. Trad ital. Roma: DeriveApprodi, 2012, pp.5-21

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1

UFSC - CFH - Filosofia

Subsdios FilosofiaXTeologiaXEconomia

Selvino J. AssmannA fbrica do homem endividado

Ensaio sobre a condio neoliberista

A guinada autoritria do neoliberismo (Prefcio edio italiana, 2012)

Maurizio LAZZARATO(Trad. Selvino J. Assmann)

O endividamento do Estado era, do contrrio, o interesse direto da frao da burguesia

que governava e legiferava por meio das Cmaras. O dficit do Estado era de fato o

verdadeiro objeto da sua especulao e a fonte principal do seu enriquecimento. Todo

ano um novo dficit. Aps quatro ou cinco anos, um novo emprstimo oferecia

aristocracia financeira uma nova ocasio para fraudar o Estado que, mantido

artificiosamente beira da bancarrota, era obrigado a fazer um contrato com os

banqueiros nas condies mais desfavorveis. Todo novo emprstimo era uma nova

ocasio para esvaziar o pblico, que investe os seus capitais em renda do Estado.

MARX, K. As lutas de classe na Frana.

A sada da crise acontece fora das linhas traadas pelo FMI. Esta instituio continua

propondo o mesmo tipo de modelo de ajuste fiscal, que consiste em diminuir os soldos

que se do s pessoas - os salrios, as aposentadorias, os financiamentos pblicos, mas

tambm as grandes obras pblicas que geram trabalho - para destinar o dinheiro

poupado ao pagamento dos credores. absurdo. Aps quatro anos de crise pode-se ir

em frente tirando o dinheiro sempre dos mesmos. exatamente aquilo que se quer

impor Grcia! Cortar tudo para dar tudo aos bancos. O FMI transformou-se numa

instituio com o objetivo de proteger unicamente os interesses financeiros. Quando

se est numa situao desesperada, como era a Argentina em 2001, preciso trocar as

cartas.LAVAGNA, Roberto. Ministro argentino da Economia de 2002 a 2005.

Menos de vinte anos depois da "definitiva vitria sobre o comunismo" e a quinze anos do "fim da histria", o capitalismo entrou num impasse histrico. Desde 2007 ele est vivo graas s transfuses de somas astronmicas de dinheiro pblico. Mesmo assim, continua girando no vazio. No mximo, consegue reproduzir-se, mas dando um golpe mortal, com raiva, naquiloque sobra das conquistas sociais dos ltimos dois sculos.

Desde que explodiu a "crise das dvidas soberanas", oferece um espetculo divertido do prprio funcionamento. As regras econmicas de "racionalidade" que os "mercados", as agncias de rating e os especialistas impem aos Estados para sair da crise da dvida pblica so as mesmas que produziram a crise da dvida privada (por sua vez, na origem da primeira). Os bancos, os fundos de penso e os investidores institucionais exigem dos Estados o reordenamentodas balanas pblicas, quando ainda detm bilhes de ttulos podres [titoli spazzatura], que so o resultado de uma poltica de substituio de salrios e renda por um sistema de crdito. As agncias de rating, depois de terem fornecido uma avaliao de trplice A a ttulos que hoje j no valem nada (com uma amostra de 2679 ttulos entre 17.000 relativos a emprstimos imobilirios, um banco fez uma anlise das avaliaes de Standard &Poor's: 99% mereceu um trplice A no momento da emisso, mas hoje 90% recebe avaliaes que desencorajam o investimento: non-investment grade), tm a pretenso, contra qualquer bom senso, de deter a justa avaliao e a boa medida econmica. Os especialistas (professores de economia, consultores, banqueiros, funcionrios de Estado, etc.) - cuja cegueira sobre os desastres que a pretensa auto-regulao dos mercados e da concorrncia produziu sobre a sociedade e sobre o planeta diretamente proporcional servido intelectual dos mesmos - foram catapultadospara dentro de governos "tcnicos", que recordam irresistivelmente os "comits de negcios da burguesia". Mais do de "governos tcnicos", se trata de "tcnicas de governo" autoritrias e repressivas, que marcam uma ruptura at mesmo com o "liberalismo" clssico.

Mas no cume do ridculo est provavelmente a mdia. A "informao" dos telejornais e os talk-show nos explicam que "a crise culpa de vocs, porque vocs se aposentam cedo demais, porque vocs gastam demais em cuidados mdicos, porque no trabalham mais tempo e como se deveria, porque vocs no so suficientemente flexveis, porque vocs consomem demais. Em suma, vocs so culpados por viverem bem alm dos prprios meios".

A publicidade, por sua vez, queregularmente pretende fechar a boca para os discursos culpabilizantes de economistas, especialistas, jornalistas e homens polticos, afirma exatamente o contrrio: " Vocs so totalmente inocentes, vocs no tm responsabilidade alguma! Nenhum erro e nenhuma culpa mancha a alma de vocs. Todos vocs, sem exceo, merecem os parasos da nossa mercadoria. dever de vocs consumirem de modo compulsivo".

As "ordens" e as injunes veiculadas pelos significantes semiticos do senso de culpa e pelas semiticas icnicas e simblicas da inocncia conflitam entre si. H uma contradio aberta entre a moral ascticado trabalho e da dvida e a moral hedonista do consumo; elas j no so capazes de recomposio.

Mais do que a uma sada da crise, toda essa agitao se assemelha a um crculo vicioso no qual o capitalismo aparece afogado. A viso das nossas classes dirigentes nunca vai alm do prprio bolso,e h que esperar o pior. A ferocidadecom que os governos tcnicos ou no perseguem o reembolso da dvida e a defesa da propriedade privada (os representantes dos bancos e dos fundos credores da dvida grega tentaram, de acordo com o New York Times, levar Corte europia para os Direitos humanos o Estado grego, que estaria violando os direitos fundamentais: "property rights are human rights"), no retrocede diante de nada. At mesmo a recesso e a depresso (Grcia) so males menores frente eventualidadede no manter a promessa de reembolsar a dvida. Numa recente entrevista, o presidente do Banco Central Europeu prope, com um cinismo bastante tatcheriano, remdios que no s esto na origem da crise, mas que nada mais faro do que agrav-la.: diminuio da imposio para enriquecer os ricos e reduo das despesas sociais para empobrecer os pobres. Os polticos so reduzidos a cumprirem o papel de contadores e de "procuradores" (Marx) do capital. Sarkosy props que as entradas para "pagar os juros da dvida grega sejam depositadas numa conta bloqueada que funcione como garantia para que as dvidas dos nossos amigos gregos sejam saldadas". Angela Merkel, "favorvel" idia, considera que isso consentiria que se ficasse "seguro de que este dinheiro esteja disponvel de maneira durvel".

Se h algo constante no capitalismo precisamente a de um estado de guerra a que o liberalismo parece levar de maneira quase "automtica". A guerra inter-capitalista aparece hoje menos intensa em relao quela que cada capital nacional leva contra o prprio inimigo interno. Os diversos capitalismos, em desacordo sobre o modo de dividir o bolo da explorao mundial, convergem sobre o modo como intensific-lono interior de cada estado.

Para sair da crie, os tempos so os das "reformas" estruturais: regulao das finanas? Reduo das desigualdades, da precariedade, do desemprego? Fim da escandalosa "assistncia" do Estado social e dos presentes fiscais aos ricos e s empresas? As nicas "reformas de estrutura" imaginadas e efetivadas so duas: reestruturao do mercado de trabalho acompanhada pela reduo dos salrios e drsticos cortes dos gastos sociais, comeando, como sempre, pela ajuda-desemprego. O modelo de referncia o alemo. Numa das suas aparies televisivas, Sarkosy citou a Alemanha nove vezes e o governo tcnico de Mario Monti (IT) seduz a nova "lady de ferro" de quem recebe "conselhos" diretamente.

O modelo alemo

H dez anos a Alemanha promove polticas de flexibilizao e de precarizao do mercado de trabalho e de rgidos cortes no Estado social. No parlamento europeu, Daniel Cohn-Bendit perguntou a Angela Merkel: "Como possvel que um pas rico como a Alemanha tenha 20% de pobres?". O ex-ativista de 68 um grande ingnuo ou sofre de amnsia? Melhor dizer, um cnico hipcrita, pois foi o governo "vermelho-verde" de Schrder que introduziu, entre 2000 e 2005, a maioria das leis que esto na origemda situao atual: as de um "pleno emprego precrio", que transformaram desempregados e "inativos" numa impressionante massa de working poors. Servem um mnimo de histria e alguns dados para escancarar as misrias do modelo alemo que a troika (Europa, FMI e Banco Central Europeu) est impondo a todos os pases europeus.

Entre 1999 e 2005, o governo "vermelho-verde" levou adiante, apoiando-se no slogan "Frdern und fordern" (promover e exigir), quatro reformas, da assistncia ao desemprego e do mercado de trabalho, uma mais catastrfica do que a outra (ver Harzt).

Em janeiro de 2003, a lei Harzt II introduziu os contratos "mini-job", uma espcie de contrato de trabalho negro legalizado (livram os que do o trabalho das contribuies sociais e no garantema quem foi empregado nem a cobertura para o desemprego nem aposentadoria), e os contratos "midi-job" (salrio entre 400 e 800 euros), empurrando todos a se tornarem empreendedores da prpria misria.

Em janeiro de 2004, a lei Harzt III reestrutura as agncias para o emprego nacionais e federais, com o objetivo de intensificar o controle dos comportamentos e da vida e o acompanhamentoindividual dos trabalhadores pobres. Uma vez prontos os dispositivos de governo dos trabalhadores pobres, o governo vermelho-verde aprova uma srie impressionante de leis para "produzi-los". A lei Harzt IV, que entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2005, prev:

- Reduo da durao das indenizaes de trs para um ano; enrijecimentodas condies de acesso e obrigao de aceitar qualquer trabalho proposto. Para ter direito ao subsdio de desempregado preciso ter sido assumido por pelo menos doze meses no curso dos dois anos precedentes perda de emprego. Aps um ano de subsdio, o desempregado receber a ajuda social (equivalente a uma renda de solidariedade) igual a 359 euros por pessoa, reavaliado em 374 euros. Um relatrio da agncia federal para o emprego indica que um trabalhador em cada quatro que perde o prprio emprego recebe diretamente a ajuda social (Arbeitslosengeld II: ALG II) e no a indenizaode desempregado (ALG I). O motivo est na tipologia do emprego que o trabalhadoracabou de perder: precrio ou mal pago.

- Reduo das indenizaes pagas as desempregados de longa durao que rejeitarem aceitar trabalhos subqualificados.

- Os desempregados devem aceitar empregos de um salrio de 01 euro por hora (adicional ajuda-desemprego que percebem).

- Possibilidade de reduzir as indenizaes dos desempregados que tm poupanas, e, portanto, possibilidade de acesso s contas bancrias dos "assistidos". Possibilidadede avaliar a qualidade do alojamento do "assistido" e de pedir, se necessrio, uma transferncia.

Os beneficirios da ajuda social Hartz IV so estimados em 6,6 milhes, de que 1,7 milhes de crianas. Os restantes 4,9 milhes de adultos so na realidade workingpoors empregados por menos de 15 horas semanais. Em maio de 2011, as estatsticas oficiais j declaravam cinco milhes de contratos mini-job, com um aumento de 47,7%, apenas precedidos pelo boom do que provisrio (134%). Trata-se de formas de contrato muito difundidas tambm entre os aposentados: 660.000 deles acumulam as aposentadorias a um mini-job. Uma parte importanteda populao, 21,7%, em 2010 foi assumida part-time.

O instituto de estatsticaalemo mediu o aumento da precariedade e das formas que ela assume: entre 1999 e 2009, todas as formas de trabalho atpico cresceram pelo menos 20%. As mais atingidas so as famlias monoparentais (as mulheres) e os idosos. No quadro do pleno emprego precrio, a taxa de desemprego oficial exibida como sinaldo "milagre econmico alemo" no significa nada de especial! O exrcitode working poors em contnua expanso no formado apenas pelos precrios, mas tambm por trabalhadores com um contrato de durao indeterminada. Assim, em agosto de 2010, um relatrio do instituto do trabalho da universidade de Duisburg-Essen estabeleceu que mais que 6,55 milhes de pessoas na Alemanharecebem menos do que 10 euros brutos por hora, com um aumento de 2,26 milhes de pessoas em dez anos. Na sua maioria se trata de antigos desempregados que o sistema Harzt conseguiu "ativar": aqueles com menos de 25 anos, os estrangeiros e as mulheres(69% do total). Por outro lado,dois milhes de desempregados ganham menos de 06 euros por hora no alm Reno, enquanto na ex-repblica democrtica alem so muitos os que tm que viver com menos de quatro euros por hora, ou seja, 720 euros por ms em tempo pleno. Resultado: os workingpoors representam 20% dos ocupados alemes.

Durante a crise financeira, o governo recorreu maciamente desocupao parcial, que consente empresa de pagar apenas 60% da retribuio normal e de pagar apenas a metade das contribuies sociais. Outro resultado da mudana iniciada com Schrder: com respeito ao Produto Interno Bruto, desde 2002 o valor dos salrios decresceu 5% no alm-Reno. As mudanas desejadas pelos "vermelho-verdes" so significativas: aps anos de proliferao catica e selvagem da precariedade, de sub-empregos e de sub-salrios, chegava o momento de introduzir uma regulamentao e uma racionalizao da pobreza e da precariedade, constituindo um "verdadeiro" e "coerente" mercado de trabalho de "maltrapilhos" que conduzir flexibilidade e adequao razo econmica tambm os que esto mais bem empregados. a populao no seu conjunto - precrios, working poors, trabalhadores qualificados - que se torna flutuante, disponvel para a flexibilidade permanente. Os diferentes componentes da "fora-trabalho" social j so uma simples varivel de ajuste da conjuntura econmica.

O programa "vermelho-verde"mereceu o nome que traz: "Agenda 2010", pois depois da primeira lei Hartz os resultados so, fora de qualquer metfora, mortais. Na Alemanha, a expectativa de vida dos mais pobres - daqueles que alcanam apenas 75% da renda mdia - diminui. Para as pessoas de renda baixa, de acordo com as cifras oficiais, a mortalidade desceu de uma mdia de 77,5 anos em 2001 para 75,5 em 2011. Nos Lnder do Leste do pais ainda pior: a expectativa mdia de vida desceu de 77,9 para 74,1 anos.

A Alemanha o primeiro pas europeu a seguir os Estados Unidos no caminho do progresso liberista. Bastam dois decnios de esforos ainda para "salvar o sistema previdencirio" e para que a morte coincida com a idade da aposentadoria. Tambm a guerra interna tem em vista os seus "bombardeamentos cirrgicos". Na ex-Alemanha do Leste a expectativa de vida chega a 66 anos, apenas um ano antes do direito aposentadoria. Mors tua, vita mea! Mas pouco importa: a economia est s, as " agncias" do juzos positivos, os credores se empanturram e a expectativa de vida da parte mais rica da populao continuar crescendo.

Convm fazermos uma breve digresso sobre Peter Hartz, promotor das leis sobre o regime de desocupao (desempreguizao - NT) e da reforma das ajudas sociais; porque a sua condenao a dois anos de priso com condicionale ao pagamento de multa de 576.000 euros um exemplo da "corrupo" consubstancial ao modelo neoliberista. Peter Hartz, ex-responsvel dos recursos humanos da Volkswagen e grande moralizador dos Anspruchsdenker, dos" aproveitadores do sistema", admitiu ter pago a Klaus Volkert, sindicalista da IG Metall e ex-presidente do conselho de fbrica da construtora de automveis alem, diversos maos de dinheiro a fim de pagar prostitutas e viagens exticas. Klaus Volkert, por sua vez, foi levado a julgamento por incitamento ao abuso de confiana, exatamente como o ex-diretor do pessoal, Klaus-Joachim Gebauer, acusado de cumplicidade.

Fazer da pobreza e da precarizao uma varivel estratgica da flexibilidade do mercado de trabalho o que, sob o resgate da dvida, est acontecendo na Itlia, Portugal, Grcia, Espanha, Inglaterra e Irlanda. A Frana ps-se nesta direo apos a chegada ao poder de Sarkozy, embora aqui os resultados no sejam to notveisquanto na Alemanha. Graas mais uma vez a um homem de centro-esquerda, Martin Hirsch, assumido pelo presidente de direita por ocasio de sua abertura a "esquerda", na Frana ser experimentada a transformao da ajuda social (Renda mnima de insero - RMI - no valor de 454 euros por pessoa) em arma de produo de workingpoors (Renda de solidariedade ativa - Rsa). com tecnologias de governo dos pobres que se faz o teste de dispositivos de poder e de controle que, num segundo tempo, sero estendidospara o conjunto da sociedade, o que no parece interessar nem esquerda e nem aos sindicatos. A Renda de solidariedade ativa comporta a superao dos dualismos fordistas (desemprego/emprego, salrio/renda, direito de trabalho/direito de assistncia social, lei/contrato) e organiza a suasobreposio e a sua concatenao graas figura do working poor. Fixa de maneira estvel o estatuto de um trabalhador/assistido que permite acumular salrio de atividade e renda de "solidariedade". Esta confuso entre "assalariado" e "assistido", entre trabalho, desemprego e assistncia social, entre direito de trabalho e direito ao Welfare, a condio da construo de um mercado de trabalho secundrio, que tem por norma o sub-emprego e um sub-salrio. A Renda de solidariedade ativa marca assim o abandono oficial do objetivo de pleno emprego e a instituio de polticas de "plena atividade", entendida como uma atividade para todos, independentemente da durao e da qualidade do emprego.

Tambm a reforma do mercado de trabalho que o "governo tcnico" italiano est prestes a aprovar inspira-sediretamente no modelo alemo. O ministro das Polticas sociais Fornero, em carta ao jornal "La Stampa" de 04 de maro (2011) o diz de forma bem clara. A traduo da realidade alem na Nova Lngua com a qual se expressa a "governance" uma obra-prima de hipocrisia e de falsidade:

O exemplo mais recente de uma reforma conjunta do mercado de trabalho e dos instrumentos de proteo social - prescindindo do percurso recentemente tomado pela Espanha - proporcionado pelas intervenes realizadas na Alemanha no incio do decnio passado quando o Pas era considerado o "enfermo da Europa", incapaz de crescer e de superar o choque da reunificao. As reformas alemstinham a ver com todos os aspectos do mercado de trabalho e do Welfare: melhoria dos instrumentos de instruo profissionalizante e facilitao da passagem entre escola e trabalho; sustento participao do mercado de trabalho e da ocupao, mesmo parcial, das faixas mais desvantajadas; reforo do vnculo entre o gozo de tratamentos particulares e a efetiva ao de requalificao e de busca de trabalho; potencializao da atividade dos centros para o emprego; introduo de maior flexibilidade, tanto com novas tipologias contratuais, quanto nos espaos da contratao entre empresa e trabalhador.

Sob o resgate da dvida, o Estado quer levar a termo aquela passagem, inaugurada nos anos oitenta, do Welfare (direitos e servios sociais) para o Workfare (subordinao das polticas sociais disponibilidade e flexibilidade do pleno emprego precrio). A mudana de rota autoritria do neoliberismo est para acabar com o "modelo social europeu", pois, como afirma Mario Draghi, no podemos mais permitir que se "paguem as pessoas que no trabalham".

Em toda mudana de fase econmico-polticasempre encontramos o Estado e a sua administrao no comando das operaes. Precisamente assimcomo favoreceu e estimulou as polticas neoliberistas do crdito nos anos oitenta e noventa, ao Estado com cabe a organizao da sua continuidade nas novas formas autoritrias e repressivas de reembolso da dvida e da figura do homem endividado. Cai, assim, outra iluso da esquerda, aquela que ope lgica da propriedade privada do mercado a lgica de um "pblico" estatal. No h autonomia do poltico, nem neutralidade do Estado. As suas administraes agem em profundidade sobre a economia, a "sociedade" e as subjetividades, como a construo do mercado de trabalho demonstra de maneira paradigmtica.

Crise da finana ou crise do capitalismo?

No se trata tanto de demonstrar a onipotncia do capitalismo quanto de assinalar a sua debilidade, a mdio e a longo prazo. Se as contra-reformas estruturais iro atingir dramaticamente grande parte da populao, no traam por isso alguma estrada de sada para a crise. Os especialistas, os mercados, as agncias de rating e os homens polticos, no sabendo nem para onde ir, nem como, sob o resgate dos dficits das balanas, apelam para as polticas neoliberistas de produo e de intensificaodas diferenas de classe que so a verdadeira origem da crise.

A mquina capitalista enguiou-se no porque no estivesse bem regulada, no porquehouvesse excessos ou porque os homens das finanas fossem vidos (outra iluso da "esquerda" reguladora!). Tudo isso verdade, mas no colhe a natureza da crise atual, que no comeou com o desastre financeiro.Antes de mais nada ela resultado da falncia do programa neoliberista (fazer da empresa o modelo de qualquer relao social) e da resistncia que a figura subjetiva promovida por ela (o capital humano e o empreendedor de si mesmos) encontrou. tal resistncia , mesmo se for passiva, que, ao criar obstculos para a realizao do programa neoliberista, transformou o crdito em dbito. Se o crditoe o dinheiro expressam a sua natureza comum de "dbito" isso se deve ao fato de que a acumulao est bloqueada, e incapaz de garantir novos lucros e de produzir novas formas de sujeitamento, e no o contrrio.

Entre 2001 e 2004, nos Estados Unidos, o crescimento de 10% do PIB foi possvel unicamente porque medidas de relanamento da atividade injetaram na economia 15,5 pontos de PIB: reduo da imposio de 2,5 pontos do PIB, crdito imobilirio que passou de 450 a 960 bilhes (1300 antes da crise de 2007), aumento dos gastos pblicos de 500 bilhes.

No incio do sculo, a Alemanha estava na mesma situao. O crescimento do PIB alemo entre 2000 e 2006 foi de 354 bilhes de euros. Mas se comparado com os nmeros da divida no mesmo perodo (342 bilhes) no e difcil constatar que o resultado real um "crescimento zero".

Foi o Japo que entrou por primeiro - aps a exploso da bolha imobiliria nos anos noventa (e a sucessiva exploso da dvida para por em ordem o sistema bancrio) - num "crescimento zero", que j chega recesso. Melhor do que outros pases, o Japo revela a natureza da crise contempornea. As razes do impasse do modelo neoliberista no devem ser buscadas unicamente nas contradies econmicas, embora sejam muito reais, mas tambm e sobretudo naquilo que Guattari chama "crise da produtividade da subjetividade".

O milagre japons, que foi capaz de forjaruma fora-trabalho coletiva e uma fora social "muito integrada ao maquinismo"(Guattari), parece girar no vazio, aprisionado tambm ele, assim como todos os pases desenvolvidos, nas malhas do dbito e dos seus modos de subjetivao. O modelo subjetivo "fordista" (emprego a vida, um tempo unicamente dedicado ao trabalho, o papel da famlia e a sua diviso patriarcal dos papeis, etc) acabou, e no se sabe com que substitu-lo. A crise do dbito no uma loucura da especulao, mas a tentativa de manterem vida um capitalismo j enfermo. O "milagre econmico" alemo uma resposta regressiva e autoritria aos impasses que j se haviam manifestado antes de 2007. por este motivo que a Alemanha e a Europa so to ferozes e inflexveis com a Grcia. No s em nome do "I want my money back" (o dos credores), mas tambm e sobretudo porque a crise financeira abre uma nova faze poltica, na qual o capital j no pode contar com a promessa de uma futura riqueza para todos como nos anos oitenta. J no pode dispor dos espelhinhos para as cotovias da "liberdade" e da "independncia" do capital humano, nem daqueles da sociedade da informao ou do capitalismo cognitivo. Para diz-lo com Marx, s pode contar com a extenso e o aprofundamento dos "plusvalor absoluto", ou seja, um prolongamento do tempo de trabalho, um incremento ao trabalho no retribudo e dos baixos salrios, dos cortes de servios, da precarizao das condies de vida e de emprego, e com a diminuio da esperana de vida. A austeridade, os sacrifcios, a produo da figura subjetiva do devedor no representam um momento ruim a superar tendo em vista um "novo crescimento", mas tecnologias de poder de que s mesmo o autoritarismo, que nada mais tem de "liberal", pode garantir a sua reproduo. O governo do pleno emprego precrio e a armadilha do saldo do dbito exigem a integrao no sistema poltico democrtico - que desde os anos oitenta funciona sobre outra coisa e no mais sobre a representao - de inteiros blocos do programa das extremas direitas. A resistncia passiva que no aderiu ao programa neoliberista representa a nica esperana de escapar das "tecnologias de governo" dos "governos tcnicos" do dbito. Diante da feira de horrores dos planos de austeridade impostos Grcia, h de quem se deveria dizer, de algum modo, de te fabula narratur!

de ti que se fala.

Berlim, 05 de maro de 2012.

O DBITO COMO FUNDAMENTO DO SOCIAL

Porque falar de economia do dbito e no de [economia de] finanas

[...] Mais do que de finanas, preferimos falar de "dbito" e de "juro". Aqui no analisaremos "as finanas", os seus mecanismos internos, a lgica que preside s escolhas dos traders, etc.; analisaremos sim a relao entre credor e devedor. Ou seja, contrariamente ao que se apregoa todos os dias, os economistas, os jornalistas e os "especialistas", as finanasno so um excesso de especulao que seria necessrio regulamentar, uma simples funcionalidade capitalista que garante o investimento; nem sequer representam uma expresso da avidez e da cobia da "natureza humana" que seria necessrio controlar racionalmente, mas uma relao de poder. O dbito as finanas do ponto de vista dos devedores que devem reembols-lo. Os juros so as finanas do ponto de vista dos credores, proprietrios de ttulos que lhe garantem gozar do dbito.

Economia do dbito parece ser uma expresso politicamente mais apropriada do que de finanas ou do que economia financeira ou at mesmo de capitalismo financeiro, porque compreenderemos imediatamente do que se trata: do dbito que gregos, irlandeses, portugueses, ingleses, islandeses no querem pagar e contra o qual vo s praash meses; do dbito que legitima o aumento dos custos das taxas universitrias inglesas e que em Londres desencadeia violentos conflitos; do dbito que justifica o corte de 800 euros por famlia, sempre na Inglaterra, para arrumar as contas pblicas desarrumadas pela crise financeira; do dbito que justifica a contra-reforma das aposentadorias na Frana; do dbito que determina cortes na educao na Itlia, e contra os quais se insurgem os estudantes romanos; do dbito que corta os servios sociais, os financiamentos cultura, os auxlios desemprego, os mnimos sociais na Frana e, com o novo pacto de estabilidade, na Europa.

Uma vez estabelecido que as crises atuais no so a consequncia de um distanciamento entre finanas e produo, entre a chamada economia "virtual" e a economia"real", mas que expressam uma relao de poder entre credores e devedores, devemos focalizar-nos na influncia crescente do dbito sobre as polticas neoliberistas.

A fbrica do dbito

O dbito no , portanto, o impedimento para o crescimento; pelo contrrio, constitui o motor econmico e subjetivo da economia contempornea. A fbrica das dvidas, ou seja, a construo e o desenvolvimento de uma relao de poder entre credores e devedores foi pensada e programada como o corao estratgico das polticas neoliberistas.. Se o dbito to central para entendermos, e portanto, combatermos, o neoliberismo , porque este est vinculado desde o nascimento a uma lgica do dbito. Uma das guinadas do neoliberismo constituda por aquilo que alguns economistas definiram com o "golpe de 1979", que, tornando possvel a constituio de enormes dficits pblicos, escancarou as portas para a economia do dbito, constituindo assim o ponto de partida de uma inverso das relaes de fora entre credores e devedores. Em 1979, por iniciativa de Volker (napoca presidente da Federal Reserve e conselheiro econmico do primeiro staff Obama), as taxas normais (os juros a pagar para reembolsar a dvida) mais do que dobraram, passando de 9% a 20%, enquanto no perodo precedente na mdia eram negativos. "Estas taxaselevadas cimentaram os endividamentos cumulativos dos Estados (dvida pblica) os dos pases (divida externa). As classes privilegiadas constroem assim um dispositivo de polarizao extrema de propores gigantescas entre credores e devedores", que se destina totalmente em vantagem dos credores.

A impossibilidadede mediar a dvida social (ou seja, a dvida do Estado social) atravs de dispositivos monetrios (recurso do Tesouro ao Banco central) obriga a desenvolver os mercados financeiros, desenvolvimento que mais uma vez organizado, solicitado e imposto, passo aps passo, pelo Estado - na Frana isso foi feito, sobretudo, sob os governos socialistas.

, pois, atravs da gesto das dividas dos Estados, criadas por aquilo que aconteceu em 1979, que os mercados financeirosforam estruturados e organizados. Os Estados no se limitaram a liberalizar os mercados financeiros, mas acompanharam a organizao e a estruturaodo seu funcionamento.

Abriram, portanto (diversificando a gama dos ttulos emitidos nos mercados primrios), e tornaram importantes (aumentando os volumes das transaes nos mercados secundrios) os mercadosdos ttulos pblicos atrativos para os poupadores. A curva das taxas de juro para estes ttulos tornou-se o parmetrode referncia para a formao do preo dos ativos, substituindo as taxas de base bancrias

As polticasmonetrias, as polticas de deflao salarial (bloqueio dos salrios), as polticas do Estado social (reduo dos gastos sociais) e as polticas fiscais (transferncias para as empresas e para os estratos mais ricos da populao de diversos pontos do BIP em todos os paises industrializados) convergem para a criao de enormes dvidas pblicas e privadas.

A reduo do dbito, hoje na ordem do dia em todos os pases, no est em contradio com a sua criao, pois se tratada continuao e da ampliao do programa poltico neoliberista. Por um lado, se trata de retomar, atravs de polticas de austeridade, o controle sobre o "social" e sobre os gastos sociais do Welfare, ou seja, sobre as rendas, sobre o tempo (da aposentadoria, das frias, etc.) e sobre os servios sociais que foram conquistadospelas lutas contra a acumulao capitalista. algo o que claramente est em jogo e foi enunciado pelo programa da confederao da indstria francesa, a "refundao social", cuja direo passou, no final do sculo passado, das mos dos industriais da metalurgia das companhias de seguro e ao setor financeiro. Denis Kessler, que o idelogo disso,na poca do seu lanamento em 1999, afirmava que necessrio reintroduzir "a exigncia econmica dentro de um social que, s vezes, tem tendncia demasiada para jogar com a prpria emancipao ou at mesmo para querer domin-la". Por outro lado, trata-se de perseguir e aprofundar o processo de privatizao dos servios do Estado social, ou seja, a sua transformao em terreno de acumulao e de lucro para as empresas privadas. Estas ltimas devem "re-internacionalizar" a proteo social que haviam externalizado durante o Fordismo, "delegando-a" ao Estado (alis, as companhias de seguro, cabeas da nova direo da confederao de indstrias francesa, consideram que foram "roubadas" em 1945). Os planos de austeridade impostospelo FMI e pela Europa Grcia e a Portugal tm como parmetro o das "novas privatizaes". Um sindicalista grego, a propsito das medidas impostas pelo FMI e pela Europa, observa que se trata de uma "liquidao" bela e boa mais do que de um plano de "salvao".

A economia do dbito , portanto, vetor de um capitalismo no qual a poupana dos trabalhadores assalariados e da populao - os fundos de penso, os seguros-doena, os servios sociais" geridos no interior de um universo de concorrncia - voltaria a ser uma funo da empresa. Em 1999, Denis Kessler estimava em 2600 bilhes de francos, ou seja, 150% da balana do Estado, a quantia representada pelas empresas por parte dos gastos sociais. A privatizao dos mecanismos de seguridade social, a individualizao da poltica social e a vontade de fazer da proteo social uma funo de empresa so os fundamentos da economia do dbito.

A ltima crise financeira foi acolhida, por parte do bloco de poder da economia do dbito, como a ocasio para se aprofundare se expandir a lgica das polticas neoliberistas.

O dbito, vetor de uma relao especifica de poder

O dbito age contemporaneamente como mquina de captura, de "depredao" ou de "cobrana" sobre a sociedade no seu conjunto, como instrumento normativo e de gesto macro-econmica, e como dispositivo de redistribuio de renda. Funciona tambm como dispositivode produo e de "governo" das subjetividades coletivas e individuais. Para dar conta das novas funes das finanas, a teoria econmica heterodoxa de Andr Orlan fala de "poder credor" e de "potncia credora", cuja fora "se mede com esta capacidade de transformar o dinheiro em dbito e o dbito em propriedade e, ao fazer isso, com a capacidade de influir diretamente sobre as relaes sociais que estruturam as nossas sociedades" O pensamento de Orlan define a relao credor-devedor como o pilar em volta do qual acontece a transformao da "governance" (termo da neo-lngua do poder que significa comando) capitalista: "Passamos da regulao fordista que privilegiava o polo industrial e devedor a uma regulao financeira que pe na dianteira o polo financeiro e credor"

Mas a relao credor-devedor no se limita a "influir diretamente sobre as relaes sociais", poistambm ela uma relao de poder, uma das mais importantes e universais do capitalismo contemporneo. O crdito ou dbito e a sua relao de poder credor-devedor constituem uma relao de poder especifico, que implica modalidades especficasde produo e de controle da subjetividade (uma forma particular de homo oeconomicus, "o homem endividado"). A relao credor-devedorsobrepe-se s relaes capital-trabalho, Estado social-usurio, empresa-consumidor, e as atravessa transformando os usurios, os trabalhadores e os consumidores em "devedores".

O dbitosegrega uma "moral" prpria, ao mesmo tempo diferente e complementar do "trabalho". O duo "esforo-recompensa" da ideologia do trabalho acaba revestidapela moral da promessa (de honrar a prpria dvida) e de erro (de t-la contrado). Conforme lembra Nietzsche, o conceito de "Schuld" (erro, culpa), conceito fundamental da moral, remete ao conceito material de "Schulden" (dvidas). A "moral" do dbito leva a uma moralizao tanto do desempregado, do "assistido", do usurio do Estado social, quanto de populaes inteiras. A campanha de imprensa alem contra os parasitas e os que no fazem nada gregos testemunha a violncia da culpabilizao inerente economia do dbito. A mdia, os polticos, os economistas, quando falam da dvida, s tm uma mensagem a transmitir: "vocs so culpados". Os gregos douram a plula ao sol enquanto os protestantes alemes se afanam para o bem da Europa e da humanidade sob um cu carregado.

O poder do dbito representado como se no fosse exercido nem atravs da represso, nem de ideologia: o devedor "livre", mas suas aes, seus comportamentos devem ocorrer nos limites definidos pelo dbito que foi contrado. Isso vale tanto para o indivduo quanto para uma populao ou um grupo social. Vocs so livres na medida em que assumem o estilo de vida (consumo, trabalho, gastos sociais, impostos, etc.) compatvel com o reembolso. O uso das tcnicas para educar os indivduos a fim de viverem com a dvida inicia muito cedo, antes mesmo do ingresso no mercado de trabalho. O poder do credor sobre o devedor se assemelha muito ltima definio que Foucault oferece do poder: uma ao sobre uma outra ao, ao que mantm "livre" aquele sobre o qual se exerce o poder. O poder do dbito nos deixa livres, e nos incita e impele a agir a fim de podermos honrar as nossas dvidas (mesmo que, como o FMI, tem uma tendncia a matar os "devedores" com a imposio de polticas econmicas que favorecem a "recesso").

O neoliberismo governa atravs de uma multiplicidade de relaes de poder: credor-devedor, capital-trabalho, Welfare-usurio, consumidor-empresa, etc. Mas o dbito uma relao de poder universal, pois todos nela esto includos; at mesmo aqueles que so pobres demais para terem acesso ao crdito devem pagar juros a credores atravs do reembolso da dvida pblica; at os pases que so pobres demais para se dotarem de um Estado social devem reembolsa as suas dividas.

A relao credor-devedor tem a ver com a populao atual no seu conjunto, mas tambmcom aquela futura. Os economistasnos dizem que todo recm-nascido francs nasce j com 22.000 euros de dvida. No mais o pecado original que nos transmitido no ato de nascer, mas a dvida das geraes precedentes. O "homem endividado" submetido a uma relao de poder credor-devedor que o acompanha no arco de toda a vida, desde o nascimento at a morte. Se antes estvamos endividadoscom a comunidade, com os deuses, com os antepassados, agora acontece com o "deus" Capital.

Faltam-nos os instrumentos tericos para analisarmos todo o alcance da relao de poder entre credor e devedor e as diferentes funes que o dbito atinge. O conceito de especulao corresponde apenas a uma parte do funcionamento do dbito e impede que possamos ver as suas funes produtivas, distributivas, de captura e de modelamento da subjetividade.

Por isso queremos voltar ao pensamento de Deleuze e Guattari que sempre foram fiis, tornando-a operativa dentro do capitalismo contemporneo argumentao da segunda dissertao da Genealogia da Moral: " No crdito - e no mais na troca - Nietzsche vislumbra o arqutipo da organizao social". Importa sublinhar , uma vez por todas, que desta afirmao no podemos deduzir o desaparecimento ou a inexistncia da troca, mas simplesmente que ela funciona a partir de uma lgica que no sempre aquela da igualdade, mas do desequilbrio, do diferencial de potncia.

Ver no dbito o arqutipo da relao social significa duas coisas. Por um lado, fazer com que a economia e a sociedade comecem por uma assimetria de potncia, e no por uma troca comercial que implica e pressupe a igualdade, introduzir diferenas de poder entre grupos sociais e dar uma nova definio de moeda, pois esta se manifesta imediatamente como comando, como um poder de destruio/criao sobre a economia e a sociedade. Por outro lado, fazer com que tudo comece com o dbito significa tornar a economia imediatamente subjetiva, pois o dbito uma relao econmica que, para se realizar, implica um modelamento e um controle da subjetividade, de tal forma que o "trabalho" fique indissocivel de um "trabalho sobre si". No curso deste ensaio verificaremos, graas ao dbito, uma verdade que tem a ver com toda a histria do capitalismo: o que definimos como "economia" seria simplesmente impossvel sem a produo e o controle da subjetividade e das suas formas de vida.

Os dois autores do anti-dipo, em que a teoria do dbito pela primeira vez amplamente desenvolvida e utilizada, continuaro da mesma maneira sempre fiis tambm a Marx, e sobretudo sua teoria da moeda.

Numa entrevista de 1988, no perodo do pleno desenvolvimento neoliberista, Deleuze sublinhou a importncia de se voltar concepo marxista da moeda: ' o dinheiro que reina alm, ele que comunica, e o que atualmente nos falta no uma crtica do marxismo, mas uma moderna teoria do dinheiro que esteja altura daquela de Marx e a leve em frente". Deleuze e Guattari interpretaro a teoria marxiana, por um lado, a partir da relao entre credor e devedor e, por outro, a partir da univocidade do conceito de produo: a produo da subjetividade, das formas de vida, das modalidades de existncia no remete superestrutura, mas faz parte da infra-estrutura "econmica". Alm disso, na economia contempornea , a produo de subjetividade revela-se como a primeira e a mais importante forma de produo, "mercadoria" que se inscreve na produo de todas as outras mercadorias.

No que diz respeito moeda, eles afirmam que ela no deriva da troca, da simples circulao da mercadoria; nem mesmo constitui o signo ou a representao do trabalho, mas expressa uma assimetria de foras, um poder de prescrever e impor modalidades de explorao, de domnio, de sujeitamento futuros. A moeda , antes de mais nada, moeda-dbito, criada ex nihilo, que no tem nenhum equivalente material a no ser numa potncia de destruio/criao das relaes sociais e, sobretudo, dos modos de subjetivao.

Este desvio terico nos parece essencial para podermos compreender mais adiante que a relao credor-devedor modela o conjunto das relaes sociais nas economias neoliberistas. No se trata nesse caso de lanar as bases sobre as quais poderemos, num segundo momento, apoiar-nos para reler as transformaes atuais sofridas pelas nossas sociedades atravs da economia do dbito.

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A genealogia do dbito e do devedorDbito e subjetividade: a contribuio de NietzscheA relao credor-devedor como base da relao social

A economia do dbito parece ter produzido uma mudana de grande importncia no interior das nossas sociedades., e procuraremos interpretar ao seu significado atravs da segunda dissertao da Genealogia da Moral.

A economia neoliberal uma economia subjetiva, ou seja, economia que requer e produz processos de subjetivao, em que o modelo j no , como na economia clssica, o homem da livre troca e o produtor. No decurso dos anos oitenta e noventa, tal modelo era representado pelo empreendedor (de si mesmo), segundo uma definio de Michel Foucault, que, com este conceito,sintetizava a mobilizao, o empenho e a ativao da subjetividade atravs de tcnicas de management de empresa e governo social. Desde que se sucedem crises financeiras, pelo contrrio, a figura subjetivado capitalismo contemporneo parece ser encarnada pelo "homem endividado". Esta figura, j existente - por ter representado o fulcro da estratgia neoliberal - j investiu o conjunto do espao pblico. Nas sociedades neoliberais o conjunto dos papeis atribudos pela diviso social do trabalho ("consumidor" , "usurio", "trabalhador", "empreendedor de si mesmo", "desempregado", "turista", etc.) atravessado pela figura subjetiva do "homem endividado", transformando tais papeis em consumidor endividado, em usurio endividado e, por fim, como acontece no caso da Grcia, em cidado endividado. Quando no o dbito individual, o dbito pblico que pesa, literalmente, sobre a vida de cada um, porque cada um que o deve assumir sobre si.

Durante um longo perodo, pensei que esta implicao subjetiva derivasse principalmente das mudanas ocorridas no interior da organizao do trabalho. Hoje gostaria de atenuar esta afirmao com a ajuda de uma hiptese complementar : o dbito e a relao credor-devedor que constitui o paradigma subjetivo do capitalismo contemporneo,no qual o "trabalho" ao mesmo tempo "trabalho sobre si", em que a atividade econmica e a atividade tico-poltica da produo do sujeito caminham juntos. o dbito que traa, domestica, fabrica, modula e modela a subjetividade. De que subjetividade se trata? Atravs de que maquinao o dbito fabrica o sujeito?

A este propsito, Nietzsche j havia dito o essencial. Na segunda dissertao da Genealogia da Moral, de um s golpe ele exclui do jogo o conjunto das cincias sociais: a constituio da sociedade e a educao do ser humano ("disciplinar com a educao o animal de caa homem a ponto de o tornar um animal manso e civilizado, um animal domstico") no resultam nem da troca econmica ( contrariamente tese defendida por toda a tradio da economia poltica, desde os fisiocratas at Marx, passando por Adam Smith), nem pela troca simblica (ao contrrio das tradies tericas antropolgicas e psicanalticas), mas da relao entre credor e devedor. Nietzsche faz do crdito o paradigma da relao social, descartando assim toda explicao " inglesa", ou seja, aquela baseada na troca ou no interesse.

O que o crdito/ o dbito no seu significado mais imediato? Uma promessa de pagamento. O que um ttulo financeiro ou uma obrigao? A promessa de um valor futuro. "Promessa", "valor" e "futuro" so tambm as palavras-chave da segunda dissertao de Nietzsche. Para ele, a "mais antiga e originria relao pessoal que h" a relao entre credor e devedor. nessa relao que "pela primeira vez se mediu pessoa a pessoa". Consequentemente, o erro da comunidade ou da sociedade consistiu antes de mais nada naquele de gerar um homem capaz de prometer, um homem capaz de responder por si no interior da relao credor-devedor, ou seja, capaz de honrar ao prprio dbito. Fabricar um homem capaz de manter uma promessa significa construir para ele uma memria, muni-lo de uma interioridade, de uma conscincia que possa opor-se ao esquecimento. no interior desta esfera de obrigaes que comeam a ser fabricadas a memria, a subjetividade e a conscincia.

Deleuze e Guattari, comentando estas passagens da Genealogia da Moral, observam que o homem se constitui mediante a remoo da memria biocsmica e mediante a constituio da memria das palavras, atravs das quais formulamos a promessa. Mas se a promessa implica a memria da palavra e da vontade, no basta fazer uma promessa para ficarmos desvinculados do dbito. A segunda dissertao uma extraordinria desmistificao do funcionamento daquilo que a filosofia analtica chama o "performativo". Se, por um lado, o performativo da promessa realiza o ato de prometer ao invs de limitar-se a descrev-lo, por outro, no constitui por si mesmo o reembolso do dbito. A promessa , sem dvida, um "ato de palavra", mas a humanidade produziu uma multiplicidade de mtodos, um mais "pavoroso e sinistro" do que o outro, para garantir que o performativo no se reduza a simples palavra, um flatus vocis. O performativo da promessa implica e pressupe uma "mnemotcnica" da crueldade e uma mnemotcnica da dor que, assim como a mquina da colnia penal de Kafka, escrevem a promessa de reembolso diretamente sobre o corpo. "Imprime-se algo a fogo para que permanea na memria: s aquilo que no cessa de fazer mal permanece na memria".

Da mesma maneira, a "confiana" - palavra mgica de todas as crises financeiras, repetida como um encantamento por todos os serviais da economia do dbito (jornalistas, economistas, homens polticos, especialistas) - no garantida pela simples enunciao; necessita de garantias corpreas e incorpreas.

Para infundir confiana na sua promessa de restituio, para dar uma garantia da seriedade e santidade da sua promessa, para impor, em si mesmo, prpria conscincia a restituio como dever e obrigao, o devedor oferece como penhor, por fora do contrato, ao credor, para o caso de no pagar, algo diferente que ainda "possui", e sobre o qual ainda no tem poder, por exemplo, o prprio corpo ou a prpria mulher ou a prpria liberdade ou at a prpria ida (ou ento, segundo determinados pressupostos religiosos, at mesmo a sua beatitude, a salvao da sua alma, e, por fim, talvez, tambm a paz no sepulcro)

Deste modo, a esfera do direito das obrigaes do dbito representa o fulcro do mundo dos"ttricos fatos", como so os conceitos morais - "culpa", "culpabilidade", "conscincia" e "m conscincia", "represso", "dever", "sacralidade do dever". Educar um animal para ser capaz de prometer pressupe a realizao preventiva de outra ao: tornar "primeiramente o homem, at certo grau, necessrio, uniforme, igual entre os iguais, coerente com a regra e consequentemente calculvel". "Graas eticidade dos costumes" - ao "peculiar trabalho do homem sobre si mesmo" - "e camisa de fora social se fez do homem um ser efetivamente calculvel".

Portanto, o dbito implica uma subjetivao que Nietzsche chama um "trabalho sobre si mesmo, auto-martrio". Tal trabalho o da produo do sujeito individual, responsvel e devedor perante o prprio credor. Por conseguinte, o dbito - como relao econmica - traz consigo a particularidade segundo a qual, para se poder desenvolver, requer um trabalho tico-poltico de constituio do sujeito. E o capitalismo contemporneo parece ter descoberto por si mesmo as tcnicas nietzschianas para a construo de um homem capaz de prometer: o trabalho , ao mesmo tempo, trabalho sobre si mesmo, um auto-martrio, uma ao sobre si mesmo. O dbito implica um processo de subjetivao que marca ao mesmo tempo o "corpo" e o "esprito". Observamos que, partindo da leitura de Nietzsche, Foucault, Deleuze e Guattari, todos estes autores formulam um conceito no-econmico da economia (a produo econmica implica a produo e o controle da subjetividade e das suas formas de vida, a economia pressupe uma "eticidade dos costumes", o desejo de fazer parte da "infraestrutura").

"O homem caracteriza-se como" o "animal que tem apreo por si". Mas a origem da medida, da avaliao, da comparao, do clculo e da contabilidade (todas elas funes relativas moeda) no deve ser procurada dentro da troca econmica ou do trabalho, mas no dbito. Assim, a equivalncia e a medida no se forjam na troca, mas no clculo das garantias de reembolso do dbito.

Sobretudo, o credor podia infligir ao corpo do devedor toda sorte de humilhaes e torturas, por exemplo cortar, tanto quanto parecesse proporcional ao tamanho da dvida, - e com base nisso, bem cedo e em toda parte houve avaliaes precisas, terrveis em suas mincias, avaliaes legais de membros e partesdo corpo

Tambm aqui, a economia parece tornar-se nietzschiana: a sua medida no mais apenas objetiva (o horrio do trabalho), mas tambm subjetiva, enquanto est fundada sobre dispositivos de avaliao; disso nasce o poder econmico da opinio pblica no interior das nossas sociedades.

O conceito de dbito traz, alm disso, consequncias sobre os paradigmas scio-politicos de compreenso e de genealogia das relaes sociais e das instituies. A assimetria de poder que o constitui nos liberta das "imaginaes" que atribua o nascimento do Estado e da sociedade a um contrato (ou, na verso contempornea, a uma conveno): "Aquele que pode mandar, por que iria apelar para contratos?!" Livra-nos tambm de uma interpretao do processo de constituio da sociedade como passagem do estado de natureza para o estado social e para a poltica. Os processos de constituio da sociedade no se realizam atravs de mudanas progressivas, atravs de consenso, convenes ou representao, mas atravs de "fratura", "salto" e "constrio". s depois de fraturas, saltos e constries que se estabelecem novos contratos e novas convenes.

Se tivssemos necessidade de uma confirmao posterior deste estado de coisas, bastaria olhar, mesmo com um olhar preguioso,para o modo como se imps o neoliberalismo. Seguramente no atravs de contratos ou convenes, mas atravs de ruptura, violncia e usurpao. A acumulao originria do capital sempre contemporneo ao seu desenvolvimento, no se constituindo como uma sua fase histrica, , mas como uma contemporaneidade sempre renovada.

O tempo do dbito como possvel, escolha, deciso

A sociedade dominada pela atividade bancria, ou seja, pelo crdito, condiciona o

tempo e a expectativa, condiciona o futuro, como se todas estas atividades fossem

maciamente computadas como antecipao com relao mesma, como antecipao

com relao a ela pela expectativa e pelo desconto.

Jean-Joseph GOUX

A pergunta mais importantefeita pela segunda dissertao da Genealogia da Moral aquela sobre o tempo e sobre a subjetivao "tico-poltica" que dela deriva, dado que a memria que se trata de fabricar no uma memria que conserva o passado, mas uma memria do futuro. Tanto para o credor quanto para o devedor importa fabricar uma "memria da vontade" que torna possvel "fazer promessas" voltadas para o futuro.

O que o crdito? Uma promessa de saldar um dbito, uma promessa de reembolso num futuro mais ou menos longnquo,mas sempre imprevisvel, por estar submetido extrema incerteza do tempo. Para Nietzsche, plasmar uma memria do homem significa poder "dispor antecipadamente do futuro", "ver e antecipar o que est longe como presente", ou ainda "responder por si como futuro". Conceder um crdito obriga a fazer uma estima daquilo que inestimvel - os comportamentos e os acontecimentos futuros - e obriga a arriscar-se na incerteza do tempo. Portanto, cabe s tecnologias do dbito neutralizarem o tempo, ou seja, o risco a ele vinculado. Por outras palavras, devem antecipar e afastar qualquer imprevisvel "divergncia" dos comportamentos do devedor que o futuro pode esconder.

luz da economia do dbito neoliberal, a segunda dissertao da Genealogia da Moral se reveste assim de nova atualidade. O dbito no s um dispositivo econmico, mas tambm uma tecnologia securitria de governo destinada a reduzir a incerteza dos comportamentos dos governados. Ao educar os governados para serem capazes de "prometer" (a honrar o prprio dbito), o capitalismo dispe antecipadamente " do futuro (deles)", dado que as obrigaes do dbito permitem prever, calcular, medir e estabelecer equivalncias entre os comportamentos autuais e aqueles futuros. So os efeitos de poder do dbito sobre a subjetividade (culpabilidade e responsabilidade) que consentem ao capitalismo de lanar uma ponte entre o presente e o futuro.

A economia do dbito uma economia do tempo e da subjetivao segundo uma acepo especfica. De fato, o neoliberalismo uma economia projetada para o futuro, dado que as finanas so uma promessa de riqueza futura e, consequentemente, no comensurvel com a riqueza atual. intil gritar pelo escndalo, porque no h correspondncia entre "presente" e "futuro" da economia! O que conta a pretenso das finanas de quererem reduzir o que ser ao que , ou seja, reduzir o futuro e os seus possveis s relaes de poder atuais. Sob tal ptica,toda a engenharia financeira s tem uma finalidade: a de dispor antecipadamente do futuro, objetivando-o. Tal objetivao de natureza totalmente diferente com relao do horrio de trabalho.: objetivar o tempo, dispor dele antecipadamente, significa subordinar reproduo das relaes de poder capitalistas qualquer possibilidade de escolha e de deciso includa pelo futuro. Deste modo, o dbito apropria-se no s do tempo de trabalho dos assalariados e da populao no seu conjunto, mas exerce um direito de preferncia inclusive sobre o tempo no cronolgico, sobre o futuro de cada um e sobre o porvir da sociedade no seu conjunto. A estranha sensao de vivermos numa sociedade sem tempo, sem possibilidades, sem uma ruptura imaginvel, encontra no dbito a explicao prpria principal.

A relao entre tempo e dbito, a saber, entre o emprstimo de dinheiro e a apropriao do tempo por parte de quem faz o emprstimo, e conhecida h sculos. Se, na Idade Mdia, a distino entre usura e lucro no era muito clara - pois a primeira era considerada simplesmente um excesso do segundo (ah! sabedoria dos antigos!) - havia, contra isso, uma ideia muito precisa sobre o lugar para onde levaria o "furto" daquele que emprestava dinheiro e em que consistiria a sua culpa: vendia tempo, algo que no lhe pertencia e cujo nico proprietrio era Deus. "O que vende o usurrio seno o tempo que passa entre o momento em que empresta e aquele em que reembolsado com juros? Ora,o tempo pertence somente a Deus. Ladro de tempo, o usurrio um ladro do patrimnio de Deus".

Para Marx, a importncia histrica do emprstimo usurrio(uma "denominao arcaica dos juros") reside no fato de que, contrariamente riqueza consumidora, ele representa um processo gerador assimilvel ao (e precursor de) do capital, ou seja, do dinheiro que produz dinheiro. Um manuscrito do sculo XIII, citado por Jacques Le Goff, sintetiza muito bem tanto este ltimo ponto quanto o tipo de tempo de que o emprestador do dinheiro se apropria: do tempo da vida e no s do tempo de trabalho:

Os usurrios pecam contra a natureza querendo fazer dinheiro gerar dinheiro,

assim como cavalo com cavalo ou mulo com mulo. Alm disso, os usurrios so

ladres (latrones), pois vendem o tempo, que no lhes pertence, e vender um bem

alheio, contra a vontade do possuidor um roubo. Ademais,como nada vendem a

no ser a espera do dinheiro, isto , o tempo, vendem os dias e as noites. Mas o dia

o tempo da claridade e a noite o tempo do repouso. Portanto, no justo que

tenham a luz e o repouso eternos.

Enquanto na Idade Mdia o tempo pertencia nica e exclusivamente a Deus, hoje, enquanto possvel, criao, escolha e deciso, o principal objeto de expropriao/apropriao capitalista. Se nos afastarmos do ponto de vista econmico - no qual todo o mundo j parece estar afundado - o que representam as enormes quantidades de moeda concentradas nos bancos, nas asseguradoras, nos fundos de penso, etc e manipuladas pelo setor de finanas a no ser potencialidades, imensas concentraes de possveis? O setor financeiro cuida para que as nicas escolhas e decises possveis sejam aquelas da tautologia do dinheiro que produz dinheiro, da produo pela produo. Enquanto nas sociedades industriais sobrava ainda um tempo "aberto" - sob forma de progresso ou de revoluo - hoje, o futuro e seus possveis, sufocados pelas somas de dinheiro exorbitantes postas em movimento pelo setor financeiro e destinadas a reproduzir as relaes de poder capitalistas, parecem ficar bloqueados, simplesmente porque o dbito neutraliza o tempo, o tempo como criao de novas possibilidades, ou seja, como matria-prima de todas as mudanas polticas, sociais ou estticas. tal matria-prima que exerce e organiza o poder de destruio/criao, o poder de escolha e o de deciso.

A economia como processo de subjetivao

Alm de por a relao credor/ devedor como paradigma social, a segunda dissertao de Nietzsche contm outro ensinamento fundamental que importa aprofundar. Conforme j dissemos, a relao credor- devedor inseparavelmente uma economia e uma "tica", pois pressupe - para que o devedor possa garantidor de "si" - um processo tico-poltico de construo de uma subjetividade dotada de uma memria, de uma conscincia e de uma moralidade que a remetem contemporaneamente responsabilidade e ao senso de culpa. Produo econmica e produo de subjetividade, trabalho e tica so, portanto, inseparveis.

Sendo assim, a economia do dbito leva acutizao de uma descoberta da economia poltica clssica, segundo a qual a essncia da riqueza subjetiva. Por outras palavras,aqui o termo subjetivo no significa apenas o fato de por disposio uma capacidade - fsica e mental - e tempo (o tempo de trabalho) em troca de um salrio, mas tambm produo de subjetividade individual. Neste sentido, a economia do dbito modifica ao mesmo tempo o conceito de "trabalho" e de "poltica". Acredito que meus amigos do capitalismo cognitivo erram quando consideram o "conhecimento" como a fonte da valorizao e da explorao. No novidade o fato de que a cincia, a habilidade, as inovaes tecnolgicas e organizativas representam as foras produtivas - Marx j havia afirmado isso na metade do sculo XIX; mas a pretensa economia do conhecimento no representa a totalidade das relaes de classe que a teoria do capitalismo cognitivo lhe atribui. Ela nada mais do que um dispositivo, um tipo de atividade, uma articulao das relaes de poder que acompanha uma multiplicidade de outras atividades e de outras relaes de poder, sobe as quais no exerce hegemonia alguma. Pelo contrrio, ela deve submeter-se aos imperativos da economia do dbito (cortes selvagens nos investimentos "cognitivos", na cultura, na formao, nos servios, etc.). De toda maneira no partindo do conhecimento que se joga o destino da luta de classe, nem no lado do capital, nem naquele dos "governados".

Sendo assim, o que se exige e o que atravessa tanto a economia quanto a sociedade contempornea no o conhecimento, mas o imperativo de nos tornarmos "sujeito" econmico ("capital humano", "empreendedor de si") - imperativo que interessa da mesma maneira o desempregado e o usurio dos servios pblicos, o consumidor, o mais "humilde" trabalhador, o mais pobre ou o "migrante". Na economia do debito, tornar-se capital humano ou empreendedor de si mesmo significa assumir para si os custos e os riscos de uma economia flexvel e financeirizada; trata-se de custos e riscos que esto bem longe de serem apenas os da inovao, porque tambm so e sobretudo os da precariedade, da pobreza, do desemprego, dos servios sanitrios definitivamente insuficientes, da carncia de moradia, etc. "Fazer de si mesmo uma empresa" (Foucault) significa responsabilizar-se pessoalmente pela pobreza,pelo desemprego, pela precariedade, pela renda mnima social, pelos salrios baixos, pelos cortes na aposentadoria, etc. como se fossem "recursos" e "investimentos" do indivduo, para ser gerido como um capital, como o "prprio" capital. J notrio que os conceitos de empreendedor de si mesmo e de capital humano devem ser interpretados partindo da relao credor-devedor, ou seja, da relao de poder mais geral e desterritorializado atravs do qual o bloco de poder neoliberal governa a luta de classe.

Dentro da crise, o "algo mais" que o capitalismo solicita e captura - em qualquer mbito - o assumir-se para si dos custos e dos riscos externalizados pelo Estado e pelas empresas, e no o conhecimento. Os diferenciais de produtividade no derivam principalmente do "saber" ou da informao, mas do fato de algum assumir o encargo subjetivo destes custos e destes riscos, tanto na produo do conhecimento,na atividade do usurio quanto em qualquer outro tipo de atividade. tal "subjetivao", somada ao trabalho no sentido clssico do termo, que faz crescer a produtividade - para falarmos como os economistas do capital. A figura subjetiva deste assumir-se o encargo a do devedor afetado pelo sentimento de culpa, pela m conscincia e responsabilidade, que perde, medida que afunda na crise, as prprias veleidades empreendedoras e os cantos picos que os albores do neoliberalismo haviam entoado glria da inovao e do conhecimento.

Enquanto se preocupam pouco em investir numa mais que improvvel"sociedade do conhecimento" - desde sempre anunciada e nunca realizada - os capitalistas so, em compensao, rigidamente inflexveis ao imporem aos governados para que estes assumam todos os riscos e todos os desastres econmicos criados por eles mesmos. No interior da crise do dbito soberano, de modo algum est em jogo o conhecimento, o capitalismo cognitivo, a criatividade ou o capitalismo cultural; no entanto, precisamente este o terreno que o capital escolheu para levar em frente a prpria luta de classes. Por isso,a economia do dbito caracteriza-se por uma dplice expanso da explorao da subjetividade: extensiva (por no dizer respeito apenas ocupao no setor industrial e no de servios, mas a qualquer atividade e condio), e intensiva (por ter a ver com a relao em si, na forma de uma empreendedoria de si - originariamente tanto do "prprio capital, quanto da prpria m gesto - cujo paradigma o "desocupado").

A economia do dbito invade tambm o terreno do poltico, utilizando e desfrutando dos processos de constituio "tico-poltica" a fim de transformar todo indivduo em sujeito econmico endividado. Tais transformaes do capitalismo, que atingem a vida e a subjetividade, no parecem ser consideradas minimamente pelas teorias polticas de Rancire e de Badiou. Por que ocupar-se de economia do dbito, de explorao do "trabalho sobre si" e de apropriao/expropriao do tempo (como ocasio, escolha, deciso), quando o processo de subjetivao poltica visto como algo que se desenvolve sempre da mesma maneira - seja no interior das cidades gregas ou no imprio romano (a revolta dos escravos), seja na Revoluo Francesa, na Comuna de Paris ou na Revoluo russa - ou seja, a partir da questo universal da igualdade? Seria uma perda de tempo ocupar-sede transformaes do capitalismo, visto que no podemos deduzir a revoluo a partir da "economia"! Para Rancire e Badiou, a poltica independente da "economia" simplesmente porque a imagem que tm desta ltima e do capitalismo em geral aquela, caricatural, veiculada pelos prprios economistas. Contrariamente quilo que enunciado por estas teorias revolucionrias, democrticas ou simplesmente econmicas, a fora do capitalismo reside na prpria capacidade de articular, sob diversos aspectos, a "economia" (e a comunicao, o consumo, o Welfare, etc.) com a produo de subjetividade. Dizer, como o fazem Badiou e Rancire, que a subjetividade poltica no dedutvel da economia completamente diferente do que por-se perguntas sobre a sua articulao paradoxal. O primeiro caso traduz a iluso de uma poltica "pura", dado que a subjetivao, articulada com o nada, no alcanar jamais uma consistncia necessria para existir; o segundo caso abre , pelo contrrio, canteiros de experimentao e de construo poltica, pois a subjetivao deve, para que resista e se reforce, realizar uma ruptura, re-atravessando e re-configurando o econmico, o social, o poltico, etc.Os dois Marx

Um Marx muito nietzschiano

Um texto de juventude de Marx, Extratos do livro de James Mill, lements dconomie politique, permite que completemos e aprofundemos a natureza da relao credor/devedor . Neste texto, extraordinrio sob muitos pontos de vista,Marx descreve uma relao de crdito muito diferente daquele analisado no terceiro livro de O Capital. Neste, que na realidade uma aproximao de anotaes mais ou menos redigidas, o crdito simplesmente uma das trs formas que pode assumir o capital (financeira, industrial e comercial) e a relao credor/devedor vista como questo entre capitalistas. Pelo contrrio, em Extratos do livro de James Mill, o pobre que o devedor, e sobre o pobre que o credor faz cair um juzo moral, para avaliar a sua solvncia. O que calculado como garantia de reembolso so as virtudes sociais as capacidades sociais, a carne e o sangue, a moralidade e a prpria existncia do pobre. Estas pginas de juventude enriquecem a construo do personagem conceitual do homem endividado, que comeamos a delinear graas ajuda preciosa de Nietzsche.

Para Marx, a relao credor/devedor ao mesmo tempo diversa e complementar da relao capital/trabalho. Se prescindirmos do contedo da relao entre credor e devedor (o dinheiro), constataremos que o crdito desfruta e exige no tanto o trabalho, mas a ao tica e o trabalho de constituio de si num plano ao mesmo tempo individual e coletivo. O que acaba sendo interpelado atravs da relao de crdito a moralidade do devedor, o seu modo de viver (o seu ethos) e no suas capacidades fsicas e intelectuais, como no trabalho (material ou imaterial, pouco importa). A importncia da economia do dbito reside no fato de que ela se apropria e usufrui no s do tempo cronolgico, do tempo enquanto escolha, deciso, aposta sobre o que acontecer e sobre as foras (confiana, desejo, coragem, etc.) que tornam possvel a escolha, a deciso, o agir. Deixemos a palavra para algumas pginas de Extratos do livro de James Mill, datadas de 1844:No crdito, cuja expresso mais completa o banco, parece que o poder da potncia material e estranha esteja rompido, que a relao da auto-alienao seja suprimido e o homem esteja de novo em relaes humanas com o homem {p. 232}.

O crdito parece funcionar de modo inverso ao do mercado e relao capital-trabalho. Tem-se a impresso de que as relaes sociais entre as pessoas no se apresentem mais invertidas em relao social entre coisas, como acontece no funcionamento da relao capital/trabalho. O fetichismo da mercadoria (o poder externo, material) no parece mais operar, pois o homem se confronta diretamente com outro homem, dando-lhe confiana.

Mas esta supresso do estranhamento, este retorno do homem a si mesmo e, portanto, ao outro homem nada mais do que aparncia; e ela tanto mais um auto-estranhamento, uma des-humanizao muito mais infame e extrema, enquanto o seu elemento j no a mercadoria, o metal, o papel, mas a existncia moral, a existncia social, a prpria interioridade do corao humano; enquanto, sob os despojos da confiana do homem para com o homem, ela a mxima desconfiana e o estranhamento perfeito (p. 232-233).

O crdito realiza e manifesta, mais do que o trabalho, a essncia objetiva da produo, porque aquilo que est em jogo segundo outra traduo da mesma passagem a existncia moral, a existncia comunitria, o instinto do corao humano. Para agir ou seja, para iniciar algo cuja realizao est submetida varivel do tempo e para arriscar-se no desconhecido, no imprevisvel e no incerto, so necessrias foras diferentes daquelas investidas no trabalho: a confiana nos outros, em si mesmos e no mundo. A relao credor/devedor no representa nada mais do que a ilusodo fim da subordinao do homem produo do valor econmico e a sua elevao produo de valores fundados sobre a comunidade e sobre os sentimentos mais nobres do corao humano (a confiana, o desejo, o reconhecimento do outro, etc.) e no mais sobre o trabalho assalariado, o mercado e a mercadoria. Com o crdito, diz-nos Marx, a alienao completa, porque aquilo que explorado o trabalho tico da constituio de si e da comunidade.

A confiana, condio do agir, transforma-se em desconfiana de todos com relao a todos e materializa-se depois em pedido de segurana. A circulao de dbitos privados uma circulao de interesses egostas e individuais. Pressupe, por detrs da aparncia de reconhecimento do outro, uma desconfiana preliminar, pois o outro o rival, um concorrente e/ ou um devedor.

O que constitui a essncia do crdito? Prescindamos aqui totalmente do contedo do crdito, que de novo o dinheiro. Prescindamos, portanto, do contedo desta confiana atravs da qual o homem reconhece o outro antecipando-lhe valores e no melhor dos casos, ou seja, quando no pede que lhe paguem o crdito , ou seja, quando no um usurrio - dispensa ao seu semelhante a confiana que consiste em no consider-lo um velhaco, mas um bom homem. Por um bom homem que inspira confiana entende aqui, como Shylock, um homem capaz de pagar [p. 233]

A confiana a que recorre o crdito nada tem a ver com a confiana em novas possibilidades de vida e, portanto, em fora generosa com relao a si mesmo, aos outros e ao mundo. Pelo contrrio, limita-se a ser uma confiana na solvncia,fazendo desta o contedo e a medida da relao tica. Os conceitos morais, de bom e mau, de confiana e desconfiana, so traduzido sem solvncia e insolvncia. As categorias morais, atravs dos quais medimos o homem e sua ao so medida da razo econmica (do dbito). Portanto, no capitalismo a solvncia a medida da moralidade do homem.

E tambm no caso em que um rico concede um crdito a um pobre o que na sua poca constitua uma exceo e no a regra Marx observava:

Tambm admitindo esta exceo, concedendo esta possibilidade romntica, a vida de pobre, o seu talento e as suas atividades,continuaro valendo para o rico como uma garantia da restituio do dinheiro emprestado; ou seja, portanto, todas as virtudes sociais do pobre, o contedo da sua atividade vital, a sua prpria existncia, representam para o rico o reembolso do seu capital com os juros habituais. A morte do pobre por conseguinte o pior dos casos para o credor. Ela a morte do seu capital com todos os juros [p. 233]

O crdito implica uma avaliao moral do devedor por parte do credor, ou seja, uma medida subjetivado valor. O importante que aquilo que avaliado no so apenas as competncias e as habilidades do trabalhador, mas tambm a ao do pobre na sociedade (as virtudes, as atividades, as reputaes sociais), a saber, seus valores, sua prpria existncia. atravs do dbito que o capital pode apropriar-se das foras sociais e existenciais do pobre, e no s das suas capacidades fsicas e intelectuais exercidas dentro do trabalho.Pense-se em toda a infmia que h no fato de estimar um homem em dinheiro, como acontece na relao de crdito. [...] O crdito o juzo econmico sobre a moralidade de um homem. No crdito, no lugar do metal ou do papel, o prprio homem tornou-se o intermedirio da troca, no, porm, enquanto homem,mas enquanto existncia de um capital e dos seus interesses. Portanto, o meio da troca certamente voltou e se transferiu, da sua figura material, para o homem, mas s porque o prprio homem, alienado de si, se tornou ele mesmo uma figura material [pp. 233-234].

Portanto, o crdito explora no apenas as relaes sociais em geral, mas tambm a singularidade da existncia. Explora o processo de subjetivao, atingindo a prpria individuao da existncia. Em sntese, o juzo moral recai sobre a vida. Mas a vida de que falamos no a biolgica (a sade, o nascimento e a morte) como acontece no conceito de biopoltica -e menos ainda a vida cognitiva, mas a vida existencial. Aqui, a existncia significa poder de auto-afirmao, fora de auto-posicionamento, escolhas que fundam e trazem consigo modelos e estilos de vida. Aqui, o contedo do dinheiro no o trabalho, mas a existncia, a individualidade e a moral humana; a matria do dinheiro no o tempo do trabalho, mas o tempo da existncia:J no o dinheiro que superado no homem, na relao de crdito, mas o prprio homem que mudado em dinheiro, ou seja, o dinheiro que se incorporou nele Aindividualidade humana, a moral humana tornou-se ela mesma tanto um artigo de comrcio, quanto um material em que existe o dinheiro. No mais moeda e papel, mas a minha prpria existncia pessoal, a minha carne e o meu sangue., a minha virtude e o meu valor sociais so a matria, o corpo do esprito do dinheiro. O crdito arranca o valor do dinheiro no mais do prprio dinheiro, mas da carne humana e do corao humano [pp. 233-234]

O texto de Marx retoma o de Nietzsche em mais aspectos. A relao de crdito mobiliza e explora a moralidade dos costumes, a constituio tico-poltica de si mesmos e da comunidade. A sua ao inscreve-se no corpo empenhado na produo da virtude social. Mas, diferentemente de Nietzsche, o discurso j no tem a ver com as sociedades arcaicas, mas com a economia capitalista a que o homem, domesticado, est acorrentado. O dbito objetivoem O Capital de Marx

Segunda leitura de Marx. til voltar rapidamente teoria que Marx exps no terceiro livro de O Capital. Se nos permitimos esta digresso, o fazemos com o objetivo de compreender as evolues do papel do crdito na obra de Marx. Se no primeiro texto analisado, Marx tratou daquilo que poderamos chamar de dbito subjetivo ou existencial, aqui se trata do dbito objetivo. Marx no retoma a rica anlise dos efeitos subjetivos do dbito desenvolvida no arco da sua juventude. Concentrando-se unicamente nas funes sistmicas, permite contudo que nos livremos de muitos lugares comuns incessantemente repetidos pelos comentadores da crise financeira.

Em primeiro lugar, o carter especulativo, parasitrio, usurrio do capital financeiro indissocivel do seu papel funcional: Um banco representa por um lado a concentrao do capital monetrio, ou seja, daqueles que emprestam, por outro lado, a concentrao daqueles que tomam o emprstimo. Em segundo lugar, no obstante ele assuma diversas formas (comercial, industrial, monetrio, financeiro), existe s um capital e s um processo de valorizao. J na poca de Marx era absurdo separar uma economia real de uma presumida economia financeira. a frmula do capital financeiro, ou seja, o dinheiro que se autovaloriza (A-A`) que representa plenamente a lgica do capital. Para os ocidentais, na maioria cristos,no deveria ser difcil seguir o raciocnio de Marx segundo o qual o valor se apresenta como uma substncia motora de si mesma, pela qual o capital industrial, comercial e financeiro so, tambm eles, formas a servio do seu automovimento. Assim como na teologia a Santa Trindade se distingue no Pai, no Filho e no Esprito Santo, assim o capital se distingue em trs formas diferentes (industrial, comercial e financeiro).

Mas Marx vai muito alm. Mesmo que defina os capitalistas financeiros com todo tipo de epteto (bandidos honorveis!, usurrios e no obstante no existam para ele capitalistas bons, os industriais, os capitalistas maus, os financeiros e os banqueiros), Marx tem a lucidez que falta a quase todos os comentadores, especialmente aos de esquerda. J na sua poca, Marx define a posio especfica ocupada pelo capital financeiro com respeito ao capital industrial: por um lado isso representa o comum da classe capitalista e, por outro, o dinheiro concentrado nos bancos dinheiro em potncia, diferentemente do capital industrial que sempre atualizado. No representa uma riqueza atual, mas uma riqueza futura, ou seja, a possibilidade de escolha e de deciso sobre a produo e sobre as relaes de poder que esto por vir. Na sua forma financeira, o capital acumulado nos bancos apresenta-se como capital em geral, simples abstrao, mas se trata de uma abstrao potente, pois se manifesta como valor autnomo, independente da sua atualizao em setores especficos; existe como potncia indiferenciada capaz de qualquer realizao. Manifesta-se, portanto, enquanto poder de prescrio e de antecipao do valor futuro, enquanto poder de destruio e de criao.

No mercado monetrio encontram-se confrontados apenas quem concede emprstimo e quem toma de emprstimo. A mercadoria s tem uma forma, o dinheiro. Todas as formas particulares que o capital assume, segundo o seu investimento em esferas particulares de produo ou de circulao, aqui acabam sendo cancelados. Ele existeaqui na forma homognea , igual a si mesma, do valor autnomo do dinheiro. A concorrncia entre as esferas particulares aqui cessa; elas so todas reunidas na figura de quem toma de emprstimo, e tambm o capital se encontra frente a todos na forma na qual ainda indiferente com respeito determinada natureza e maneira do seu emprego

Assim, s na esfera financeira, por causa da sua indiferenciao, que o capital se mostra como capital comum da classe dos capitalistas. O capital industrial que s comparece como capital substancialmente comum de toda a classe no movimento e na concorrncia entre as diferentes esferas, manifesta-se aqui realmente, com todo seu peso, como tal, na demanda e na oferta de capital. O dispositivo capitalista no se subjetiviza no capitalista industrial (este tem unicamente uma funo de gesto e de direo da produo), mas no capitalista financeiro (cuja possibilidade, de decidir e de escolher enquanto proprietrio, desterritorializada).

Diversamente do que acontece nas mltiplas formas do capital industrial, ao capital financeiro que cabe a representao dos interesses do capital social.

Acrescente-se a isso que , com o desenvolvimento da grande indstria, o capital monetrio, enquanto ele aparece no mercado, representado em grau cada vez maior, no pelo indivduo capitalista, pelo proprietrio desta ou daquela frao do capital que se encontra no mercado, mas se apresenta como uma massa concentrada, organizada, que, de modo totalmente diferente do que ocorre na produo real, posta sob o controle do banqueiro que representa o capital social.

O que consente ao capital a explorao do social a sua forma geral, a sua indiferena frente a qualquer especificidade industrial, como ela se manifesta no crdito.

O crdito permite a cada capitalista ou a quem tido por capitalista dispor completamente, dentro de certos limites, do capital e da propriedade alheia, e, consequentemente, do trabalho alheio. A possibilidade de dispor do capital social que no lhe pertence permite-lhe dispor do trabalho social.

Para Lenin, que, em poca sob muitos aspectos semelhante atual, retoma e desenvolve o ponto de vista de Marx, os bancos e os banqueiros cumprem um papel poltico de primria importncia pois conferem coerncia e estratgia aos capitalistas industriais, cujos interesses so demasiadamente heterogneos para poderem representar a classe dos capitalistas: estas cifras simples so suficientes [...] para mostrar como a importncia dos bancos foi modificada radicalmente a partir da concentrao do capital e do aumentado movimento de negcios. Em lugar dos capitalistas separados surge um nico capitalista coletivo.

A coerncia e a estratgia so as da lgica A-A` que, pretendendo produzir dinheiro atravs do dinheiro, revela ao mesmo tempo a prpria irracionalidade. Irracionalidade que se manifesta em todos os perodos liberais e conduz, de modo praticamente automtico, s crises mais violentas, que cada vez abrem as portas para polticas autoritrias (conforme aconteceu com a Primeira Guerra mundial e com o Fascismo).

Mesmo que o capital financeiro tenha sofrido profundas mudanas, estes escritos de Marx so ainda atuais.

A ao e a confiana na lgica do dbito

Na economia do dbito,no mais possvel distinguir o trabalho da ao, como ainda fazia Hannah Arendt. Com o crdito, a ao torna-se elemento da dinmica econmica, e at mesmo o seu motor! O capitalismo contemporneo, atravs da subjetivao implcita no dbito, integra a ao e as foras que tornam isso possvel. No por acaso que o dbito explora a ao tica da constituio tanto da comunidade quanto do indivduo, mobilizando as foras que esto na origem da existncia moral, a existncia comunitria. Entre todas estas foras, dedicaremos ateno especial confiana, palavra mgica da crise em curso, que representa um sintoma do deslocamento das fronteiras da explorao capitalista, para alm do uso inflacionado que dela fazem os economistas, os jornalistas e os especialistas.

Para reconstruir o conceito de ao e de confiana, necessrio fazer uma pequena digresso filosfica que o leitor tambm poder dispensar. O interesse desta digresso reside no fato de nos permitir compreender como e porque o capitalismo influi sobre a ao, ou seja, sobre o tempo no cronolgico e, portanto, sobre a capacidade de escolher e de decidir aquilo que bom e aquilo que mau. Segundo a teoria do agir do pragmatista norte-americano William James, toda vez que nos confrontamos com uma alternativa real, uma alternativa existencial qualquer, enquanto atualiza alguns possveis e anula outros, como no caso dos problemas morais, a escolha no depende apenas do intelecto, da cognio, do saber e do conhecimento, muito pelo contrrio. Ela chama em causa sobretudo nossas tendncias ativas, nossas foras mais ntimas, nossa natureza passional, nossos impulsos mais caros, ou seja, o ntimo do corao humano, de que nos fala Marx e que James define com conjunto de foras ativas (a fora de esprito, a esperana, o encanto, a admirao, o ardor) e que sintetiza no conceito de desejo.

A medida, a estima, a avaliao do que bem, ou das coisas que seria bom existirem no podem ser delegadas especulao filosfica, nem ao saber cientfico. A cincia nos pode dizer o que existe; mas para confrontar os valores, seja do que existe, seja do que no existe, no devemos recorrer cincia, mas quilo que Pascal chama o nosso corao. A potncia do nosso agir e o sucesso de uma ao dependem da energia empregada no ato e a energia por sua vez est subordinada ntima certeza de ser bem sucedido, ou seja, convico/confiana naquilo que se faz, convico/confiana no mundo e nos outros.

Portanto, o ato depende da intensidade da convico/confiana e esta, das tendncias ativas, das emoes e dos impulsos mais ntimos do corao humano. A convico /confiana definida por James como uma disposio para agir. O modo de entendera potncia do agir remete a um mtodo subjetivo, o mtodo da convico fundada no desejo.

Mas a convico /confiana ou disposio para agir pode ser definida de duas maneiras diferentes. Num caso, a convico- hbito e noutro, a convico confiana (ou f) que provoca a ao. No primeiro caso, o mundo determinado, completo, tudo j dado, de modo que a convico reside nas convices j estabelecidas. NO segundo caso, aquele que nos interessa, o mundo est em devir. incompleto, indeterminado, e tal incompletude e indeterminao remetem ao nosso poder de agir, e este ltimo, confiana. esta segunda concepo de confiana que mobilizada e orientada pelo crdito (a fora do capitalismo no apenas negativa; ela reside na capacidade de orientar em vantagem prpria as paixes, os desejos e a ao), pois se trata justamente de antecipar uma ao futura cujo resultado no pode ser garantido antecipadamente. O crdito um dispositivo de poder que se exerce sobre possveis, cuja atualizao/realizao submetida a uma incerteza radical e no probabilstica.

Nosso mundo incerto, instvel e em devir , para usarmos as palavras de Walter Benjamin,um mundo pobre de experincia, porque esta, conforme nos lembra James, est sempre em vias de mudana. Mas justamente a pobreza da experincia (no sabemos de que feito o devir) que mobiliza a confiana (convico), o desejo, o ntimo do corao humano, necessrios para arriscar-se neste mundo isento de certezas. Tais foras so exaltadas e aguadaspela indeterminao do futuro. Assim, a que nos obriga a pobreza de experincia? A recomear de novo, a recomear de novo, afirma Walter Benjamin. O brbaro , que define, seja em Benjamin seja em James,o homem contemporneo, no v nada de duradouro. Mas precisamente por isso v por todos os lados caminhos [...]. Por ver caminhos por todos os lados, ele est sempre numa encruzilhada. A confiana transforma a pobreza de experincia em poltica da experimentao.

Como agir neste mundo, como correr o risco numa ao cujo xito incerto, visto que no sabemos de que ser feito o futuro? Para agirmos em condies de incerteza preciso ter confiana (f) em si mesmo. precisoestreitar um tcito acordo consigo mesmo, com o mundo e com os outros para agir num mundo em que as mximas cotidianas no podem servir para dirigir a ao. O agir representa, portanto, um salto no vazio, que o saber e o conhecimento no podem de forma alguma ajudar-nos a ultrapassar. Nosso ceticismo e nossas dificuldades polticas no so cognitivas, mas ticas, pois se vive para frente e se pensa para trs, diz James, citando Kierkegaard. Viver parafrente significa crer no mundo e nas novas possibilidades de vida que isso encerra, acrescenta Deleuze. A convico/confiana , aqui, uma fora que, alegre e confiante, d um poder generoso.

A confiana , deste modo, a condio de todo ato de criao,quer se trate de criao artstica, quer de criao tica ou de criao poltica. Segundo James, o homem contemporneo deveria estar se sentindo em casaneste mundo brbaro, pois seu poder de ao no se exerce sobre os fatos brutos, mas sobre possveis, que so, de acordo com definio de Guattari, uma matria de escolha, matria de opo ( necessrio escolher porque se trata de possveis ambguos, de virtualidades que escondem diversas alternativas). O fato de estarmos no mundo com nossas percepes, nossas sensaes e nossos conhecimentos, ainda no bastapara agir. Para que possa ocorrer poder de ao, importa que o possvelsupere o atual (um pouco de possvel seno sufoco, diria Kierkegaard), importa que o mundo contenha o indeterminado, um tempo aberto em devir, ou seja, um presente que traga dentro de si bifurcaes possveis e, portanto, possibilidades de escolha, riscos existenciais. So tais possibilidades e tais bifurcaes imprevisveis que o dbito se esfora por neutralizar.

O brbaro exige do mundo qualidades com as quais possam medir-se nossas emoes e nossas tendncias ativas. O desejo e a confiana exercem-se sobre um presente vivo, ou seja, sobre a zona plstica que a zona das diferenas individuais e das modificaes sociais que elas provocam.Esta zona plstica correia de transmisso do incerto, o ponto de encontro do passado e do futuro .Para que o poder vivo, presente como possvel, ou seja, no mundo e nas novas possibilidades de vida que ele contm. A potncia de agir est subordinada a uma afirmao existencial, a um sim que expressa um auto-posicionamento. Pressupea esperana e a confiana que antecipam aquilo que ainda no est dado, que torna possvel o impossvel.

No mundo brbaro a confiana e a esperana (as paixes, as emoes, o desejo) no determinam tanto uma tomada de posio,um partido tomado com relao s convices , mas sim uma autovalidao de novas convices, de novos valores, de novas conexes, de novos significados e de novas formas de vida. Pelo contrrio, o medo e todas as emoese as paixes tristes constituem uma neutralizao da potncia de agir.

As finanas so um terrvel instrumento de controle do tempo da ao, de neutralizao do possvel, do presente vivo, da zona de transmisso do incerto, do ponto de encontro do passado e do futuro. Encerra os possveis dentro de uma moldura definida, mesmo projetando-os num futuro. O futuro para ela a simples antecipao do domnio e da exploraopresente. Mas se superamos o limiar crtico da incerteza sobre o futuro das relaes de explorao e de domnio, ento o que vai cair ser um presente isento de possveis. A crise, portanto, crise do tempo e emergncia de um tempo da criao poltica e social, que as finanas apenas podem tentar destruir. Estamos exatamente nesta situao! A lgica do dbito sufoca nossas possibilidades de ao!

Deleuze e Guattari: pequena histria do dbito

Para procurarmos entender mais precisamente a especificidade da lgica da dvida na economia contempornea, nos voltaremos agora para a leitura que Deleuze e Guattari fazem do desenvolvimento histrico da dvida. De fato, no trabalho de Deleuze e Guattari aparece entre os anos sessenta e setenta enquanto elemento de anlise do capitalismo contemporneo. Unindo a teoria nietzschianado crdito no interior das sociedades arcaicas teoria marxiana da moeda no interior do capitalismo, eles traam uma pequena histria do dbito que nos leva a uma leitura no-econmica da economia, no baseada na troca, mas numa relao de poder assimtrica entre credor e devedor. Uma leiturano-econmica da economia significa que, por um lado, a produo econmica inseparvel da produo e do controle da subjetividade, nas suas diversas formas; por outro lado, - antes de responder a funes econmicas de medida, meio de troca, pagamento e poupana express