letramento e alfabetizaÇÃo

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1 LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO: AS MUITAS FACETAS MAGDA SOARES LEIA O TEXTO COMPLETO NO SITE: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n25/n25a01.pdf RESUMO DO TEXTO EM TÓPICOS: Magda Soares propõe, neste texto, retomar a invenção da palavra e do conceito de letramento, e concomitante a desinvenção da alfabetização, resultando no que ela denomina como sendo a reinvenção da alfabetização. Tem como objetivo defender a especificidade de cada fenômeno e, ao mesmo tempo, a indissociabilidade desses dois processos alfabetização e letramento É em meados dos anos 80 que se dá, simultaneamente, a invenção do termo letramento no Brasil, do illettrisme, na França, da literacia, em Portugal, para nomear fenômenos distintos daquele denominado alfabetização, alphabétisation. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, embora a palavra literacy já estivesse dicionarizada desde o final do século XIX, foi também nos anos de 1980 que o fenômeno que ela nomeia, distinto daquele que em língua inglesa se conhece como reading instruction, beginning literacy tornou-se foco de atenção e de discussão nas áreas da educação e da linguagem. No final dos anos 70, a UNESCO ampliou o conceito de literate para functionally literate, e, portanto, sugeriu que as avaliações internacionais sobre domínio de competências de leitura e de escrita fossem além do medir apenas a capacidade de saber ler e escrever. A diferença fundamental está no grau de ênfase posta nas relações entre as práticas sociais de leitura e de escrita (letramento) e a aprendizagem do sistema de escrita (alfabetização) , ou seja, entre o conceito de letramento (illettrisme, literacy) e o conceito de alfabetização (alphabétisation, reading instruction, beginning literacy).

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Page 1: LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO

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LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO:

AS MUITAS FACETAS

MAGDA SOARES

LEIA O TEXTO COMPLETO NO SITE: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n25/n25a01.pdf

RESUMO DO TEXTO EM TÓPICOS:

Magda Soares propõe, neste texto, retomar a invenção da

palavra e do conceito de letramento, e concomitante a desinvenção da

alfabetização, resultando no que ela denomina como sendo a

reinvenção da alfabetização.

Tem como objetivo defender a especificidade de cada

fenômeno e, ao mesmo tempo, a indissociabilidade desses dois

processos – alfabetização e letramento

É em meados dos anos 80 que se dá, simultaneamente, a

invenção do termo letramento no Brasil, do illettrisme, na França, da

literacia, em Portugal, para nomear fenômenos distintos daquele

denominado alfabetização, alphabétisation.

Nos Estados Unidos e na Inglaterra, embora a palavra

literacy já estivesse dicionarizada desde o final do século XIX, foi

também nos anos de 1980 que o fenômeno que ela nomeia, distinto

daquele que em língua inglesa se conhece como reading instruction,

beginning literacy tornou-se foco de atenção e de discussão nas áreas

da educação e da linguagem.

No final dos anos 70, a UNESCO ampliou o conceito de

literate para functionally literate, e, portanto, sugeriu que as avaliações

internacionais sobre domínio de competências de leitura e de escrita

fossem além do medir apenas a capacidade de saber ler e escrever.

A diferença fundamental está no grau de ênfase posta nas

relações entre as práticas sociais de leitura e de escrita (letramento) e a

aprendizagem do sistema de escrita (alfabetização), ou seja, entre o

conceito de letramento (illettrisme, literacy) e o conceito de alfabetização

(alphabétisation, reading instruction, beginning literacy).

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Nos países desenvolvidos, ou do Primeiro Mundo, as

práticas sociais de leitura e de escrita assumem a natureza de problema

relevante no contexto da constatação de que a população, embora

alfabetizada, não dominava as habilidades de leitura e de escrita

necessárias para uma participação efetiva e competente nas práticas

sociais e profissionais que envolvem a língua escrita.

Nestes países, constatou-se que jovens e adultos mais

desfavorecidos revelam precário domínio das competências de leitura e

de escrita, mesmo dominando o sistema de escrita, porque passaram

pela escolarização básica. Isso dificulta a inserção desses no mundo

social e no mundo do trabalho.

Alfabetização é saber ler e escrever. Letramento é saber

dominar com competência e habilidade a leitura e a escrita, isto é, fazer

uso da leitura e da escrita.

Durante toda a última década e até hoje a mídia vem

usando, em matérias sobre competências de leitura e escrita da

população brasileira, termos como semi-analfabetos, iletrados,

analfabetos funcionais, ao mesmo tempo que vem sistematicamente

criticando as informações sobre índices de alfabetização e

analfabetismo que tomam como base apenas o critério do Censo de

saber ou não saber “ler e escrever um bilhete simples”. A mídia vem,

pois, assumindo e divulgando um conceito de alfabetização que o

aproxima do conceito de letramento.

Dois problemas da aprendizagem inicial da escrita nos

países de primeiro mundo nos anos 70: o domínio precário de

competências de leitura e de escrita necessárias para a participação em

práticas sociais letradas e as dificuldades no processo de aprendizagem

do sistema de escrita, ou da tecnologia da escrita – são tratados de

forma independente.

No Brasil, os conceitos de alfabetização e letramento se

mesclam, se superpõem e, frequentemente, se confundem.

No Brasil, a discussão do letramento surge sempre

enraizada no conceito de alfabetização, o que tem levado, apesar da

diferenciação sempre proposta na produção acadêmica, a uma

inadequada e inconveniente fusão dos dois processos, com prevalência

do conceito de letramento. Interessante é observar que também na

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produção acadêmica brasileira alfabetização e letramento estão quase

sempre associados. Embora a relação entre alfabetização e letramento

seja inegável, além de necessária e até mesmo imperiosa, ela, ainda

que focalize diferenças, acaba por diluir a especificidade de cada um

dos dois fenômenos.

No que se refere à alfabetização e ao letramento, mesmo

que apresentem relação, é necessário observar a especificidade de

cada um dos fenômenos.

Livros que diferenciam e/ou aproximam os dois processos:

Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso, de Leda Verdiani (1988);

Letramento e alfabetização, de Leda Verdiani (1995); Alfabetização e

letramento, de Roxane Rojo (1998); Os significados do letramento, de

Leda Verdiani Tfouni e Ângela Kleiman, (1995); Letramento: um tema

em três gêneros, de Magda Soares (1998).

A “desinvenção” da alfabetização significa a progressiva

perda de especificidade do processo de alfabetização que parece vir

ocorrendo na escola brasileira ao longo das duas últimas décadas. O

que, em parte, justifica o fracasso na aprendizagem e no ensino da

língua escrita no Brasil. Antes este se revelava dentro das escolas (em

testes, provas), agora se mostra a toda a sociedade e ao mundo,

através de avaliações que revelam o nível precário ou nulo de

aprendizagem, leitura e compreensão oral e escrita dos brasileiros

(ENEM, PISA...), denunciando alunos “não alfabetizados ou semi-

alfabetizados” depois de anos na escola.

A “excessiva especificidade” na alfabetização significa a

autonomização das relações entre o sistema fonológico e o sistema

gráfico em relação às demais aprendizagens e comportamentos na área

da leitura e da escrita, ou seja, a exclusividade atribuída a apenas uma

das facetas da aprendizagem da língua escrita. O que parece ter

acontecido, ao longo das duas últimas décadas, é que, em lugar de se

fugir a essa “excessiva especificidade”, apagou-se a necessária

especificidade do processo de alfabetização.

Causas para a perda da especificidade do processo de

alfabetização:

1) O sistema de ciclos que traz uma diluição ou uma preterição de

metas e objetivos a serem atingidos gradativamente ao longo do processo

de escolarização;

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2) O princípio da progressão continuada;

3) A mudança e o não entendimento conceitual a respeito da

aprendizagem da língua escrita que se difundiu no Brasil a partir de

meados dos anos de 1980.

Mudanças de paradigmas que influenciaram a maneira

de alfabetizar: De 1960 a 1970, paradigma behaviorista. Nos anos 80, é

substituído pelo cognitivismo e, nos anos 90, pelo paradigma

sociocultural. A transição da teoria cognitivista para a perspectiva

sociocultural pode ser interpretada antes como um aprimoramento do

paradigma cognitivista que propriamente como uma mudança

paradigmática. No Brasil, os anos de 1980 e 1990 assistiram ao domínio

hegemônico, na área da alfabetização, do paradigma cognitivista, que

aqui se difundiu sob a discutível denominação de construtivismo

(posteriormente, socioconstrutivismo), divulgado por Emília Ferreiro

(perspectiva psicogenética).

A criança, na perspectiva psicogenética (visão

interacionista), é capaz de progressivamente (re)construir esse sistema

de representação, interagindo com a língua escrita em seus usos e

práticas sociais, isto é, interagindo com material “para ler”, não com

material artificialmente produzido para “aprender a ler”. A aprendizagem

se dá por uma progressiva construção do conhecimento, na relação da

criança com o objeto “língua escrita”; as dificuldades da criança passam

a ser vistas como “erros construtivos”, resultado de constantes

reestruturações. É preciso, entretanto, reconhecer que esta concepção

conduziu a alguns equívocos e a falsas inferências, que podem explicar

a desinvenção da alfabetização.

O construtivista, na alfabetização, passou a subestimar a

natureza do objeto de conhecimento em construção, que é,

fundamentalmente, um objeto linguístico constituído, quer se considere o

sistema alfabético quer o sistema ortográfico, de relações convencionais

e frequentemente arbitrárias entre fonemas e grafemas.

Ao apresentar a especificidade do processo de

alfabetização não significa dissociá-lo do processo de letramento. Ao

podemos entender a alfabetização como processo autônomo,

independente do letramento e anterior a ele.

Não há necessidade de voltarmos à concepção holística da

aprendizagem da língua escrita, de que decorre o princípio de que

aprender a ler e a escrever é aprender a construir sentido para e por

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meio de textos escritos, usando experiências e conhecimentos prévios.

No caso, voltarmos ao construtivismo.

Na concepção grafofônica, o conhecimento do código

grafofônico e o domínio dos processos de codificação e decodificação

constituem etapa fundamental e indispensável para o acesso à língua

escrita. Etapa que não pode ser vencida.

No Brasil, no período de 1990, o debate se fazia em torno

da oposição entre métodos sintéticos (fônico, silabação) e métodos

analíticos (palavração, sentenciação, global) pelo método construtivista,

de Emília Ferreiro.

O que constitui a reinvenção da alfabetização? A

concepção de aprendizagem da língua escrita é mais ampla e

multifacetada que apenas a aprendizagem do código, das relações

grafofônicas; o que é necessário é que essa faceta recupere a

importância fundamental que tem na aprendizagem da língua escrita;

sobretudo, que ela seja objeto de ensino direto, explícito, sistemático.

Dissociar alfabetização e letramento é um equívoco

porque, no quadro das atuais concepções psicológicas, linguísticas e

psicolinguísticas de leitura e escrita, a entrada da criança (e também do

adulto analfabeto) no mundo da escrita ocorre simultaneamente por

esses dois processos: pela aquisição do sistema convencional de escrita

– a alfabetização – e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse

sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que

envolvem a língua escrita – o letramento.

Alfabetização é a aquisição do sistema convencional de

escrita.

Letramento é o desenvolvimento de habilidades de uso

desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais

que envolvem a língua escrita.

Alfabetização e letramento são processos de natureza

fundamentalmente diferente, envolvendo conhecimentos, habilidades e

competências específicos, que implicam formas de aprendizagem

diferenciadas e, consequentemente, procedimentos diferenciados de

ensino. Não são processos independentes, mas interdependentes e

indissociáveis: a alfabetização desenvolve-se no contexto de e por meio

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de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de

letramento, e este, por sua vez, só se pode desenvolver no contexto da

e por meio da aprendizagem das relações fonema–grafema, isto é, em

dependência da alfabetização. Os dois processos são simultâneos.

As muitas facetas do letramento: imersão das crianças

na cultura escrita, participação em experiências variadas com a leitura e

a escrita, conhecimento e interação com diferentes tipos e gêneros de

material escrito, entre outras.

As muitas facetas da alfabetização: consciência

fonológica e fonêmica, identificação das relações fonema–grafema,

habilidades de codificação e decodificação da língua escrita,

conhecimento e reconhecimento dos processos de tradução da forma

sonora da fala para a forma gráfica da escrita, entre outras.

Não há um método para a aprendizagem inicial da língua

escrita, há múltiplos métodos, pois a natureza de cada faceta determina

certos procedimentos de ensino, além de as características de cada

grupo de crianças, e até de cada criança, exigir formas diferenciadas de

ação pedagógica.

Sintetizando:

1) A alfabetização deve ser entendida como processo de aquisição e

apropriação do sistema da escrita, alfabético e ortográfico;

2) A alfabetização deve se desenvolver num contexto de letramento

– entendido este, no que se refere à etapa inicial da aprendizagem da

escrita, como a participação em eventos variados de leitura e de escrita, e o

consequente desenvolvimento de habilidades de uso da leitura e da escrita

nas práticas sociais que envolvem a língua escrita, e de atitudes positivas

em relação a essas práticas;

3) Reconhecer tanto a alfabetização quanto o letramento como

processos de diferentes dimensões, ou facetas, cuja natureza de cada um

deles demanda uma metodologia diferente, de modo que a aprendizagem

inicial da língua escrita exige múltiplas metodologias, algumas

caracterizadas por ensino direto, explícito e sistemático – particularmente a

alfabetização, em suas diferentes facetas – outras caracterizadas por

ensino incidental, indireto e subordinado a possibilidades e motivações da

criança;

4) Rever e reformular a formação dos professores das séries iniciais

do ensino fundamental, de modo a torná-los capazes de enfrentar o grave e

reiterado fracasso escolar na aprendizagem inicial da língua escrita nas

escolas brasileiras.

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NOVAS PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA:

LETRAMENTO NA CIBERCULTURA

MAGDA SOARES

Leia o texto completo no site http://www.scielo.br/pdf/es/v23n81/13935.pdf

RESUMO DO TEXTO ORIGINAL, DESTACANDO TRECHOS E

SUBLINHANDO INFORMAÇÕES RELEVANTES:

Objetivos do artigo de Magda Soares:

Diferenciar a cultura do papel da cultura da tela, ou cibercultura; identificar as principais diferenças entre as tecnologias tipográficas e as tecnologias digitais de leitura e escrita, para delas tentar inferir as mudanças que provavelmente estão ocorrendo, ou virão a ocorrer, na natureza do letramento – do estado ou condição de “letrado”, e assim compreender melhor o próprio conceito de letramento.

Compreender o conceito de letramento, confrontando tecnologias tipográficas e tecnologias digitais de leitura e de escrita, a partir de diferenças relativas ao espaço da escrita e aos mecanismos de produção, reprodução e difusão da escrita;

Apresentar argumentos para cada uma dessas tecnologias no que diz respeito a determinados efeitos sociais, cognitivos e discursivos, resultando em modalidades diferentes de letramento, o que sugere que a palavra seja pluralizada: há letramentos, não letramento.

Conceitos de Letramento

Não há, propriamente, uma diversidade de conceitos, mas uma

diversidade de ênfases na caracterização do conceito de letramento. Segundo

Magda Soares, letramento são as práticas de leitura e escrita. Kleiman (1995,

p. 19) diz que “Podemos definir hoje o letramento como um conjunto de

práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto

tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. Soares

entende letramento “como as práticas e eventos relacionados com uso, função

e impacto social da escrita” (idem, 1998, p. 181); portanto, letramento são as

práticas sociais de leitura e escrita e os eventos em que essas práticas

são postas em ação, bem como as consequências delas sobre a

sociedade.

Tfouni (1988, p. 16) define: “Enquanto a alfabetização ocupa-se da

aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento

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focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema escrito por

uma sociedade” (idem, 1995, p. 20). A alfabetização pertence, assim, ao

âmbito do individual. O letramento, por sua vez, focaliza os aspectos sócio-

históricos da aquisição da escrita.

Para Tfouni, letramento são as consequências sociais e históricas da

introdução da escrita em uma sociedade; são “as mudanças sociais e

discursivas que ocorrem em uma sociedade quando ela se torna letrada”

(1995, p. 20). Esta mesma autora toma, para conceituar letramento, o impacto

social da escrita, que, para Kleiman, é apenas um dos componentes desse

fenômeno; Kleiman acrescenta a esses outros componentes também as

próprias práticas sociais de leitura e escrita e os eventos em que elas ocorrem

compõem o conceito de letramento. Em ambas as autoras, porém, o núcleo do

conceito de letramento são as práticas sociais de leitura e de escrita, para além

da aquisição do sistema de escrita, ou seja, para além da alfabetização.

Quanto à concepção de letramento, como sendo não as próprias

práticas de leitura e escrita, e/ou os eventos relacionados com o uso e função

dessas práticas, ou ainda o impacto ou as consequências da escrita sobre a

sociedade, mas, para além de tudo isso, o estado ou condição de quem exerce

as práticas sociais de leitura e de escrita, de quem participa de eventos em que

a escrita é parte integrante da interação entre pessoas e do processo de

interpretação dessa interação – os eventos de letramento, tal como definidos

por Heath (1982, p. 93): Um evento de letramento é qualquer situação em que

um portador qualquer de escrita é parte integrante da natureza das interações

entre os participantes e de seus processos de interpretação.

Letramento é, na argumentação desenvolvida neste texto, o estado ou

condição de indivíduos ou de grupos sociais de sociedades letradas que

exercem efetivamente as práticas sociais de leitura e de escrita, participam

competentemente de eventos de letramento. O que esta concepção acrescenta

às anteriormente citadas é o pressuposto de que indivíduos ou grupos

sociais que dominam o uso da leitura e da escrita e, portanto, têm as

habilidades e atitudes necessárias para uma participação ativa e

competente em situações em que práticas de leitura e/ou de escrita têm

uma função essencial, mantêm com os outros e com o mundo que os

cerca formas de interação, atitudes, competências discursivas e

cognitivas que lhes conferem um determinado e diferenciado estado ou

condição de inserção em uma sociedade letrada.

É que estamos vivendo, hoje, a introdução, na sociedade, de novas e

incipientes modalidades de práticas sociais de leitura e de escrita, propiciadas

pelas recentes tecnologias de comunicação eletrônica – o computador, a rede

(a web), a Internet. É, assim, um momento privilegiado para, na ocasião

mesma em que essas novas práticas de leitura e de escrita estão sendo

introduzidas, captar o estado ou condição que estão instituindo: um momento

privilegiado para identificar se as práticas de leitura e de escrita digitais, o

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letramento na cibercultura, conduzem a um estado ou condição diferente

daquele a que conduzem as práticas de leitura e de escrita quirográficas e

tipográficas,4 o letramento na cultura do papel.

Da oralidade à escrita

Ong (1986) enfatiza a dificuldade que as mentes letradas têm de

entender a oralidade primária, porque a tecnologia da escrita está tão

profundamente internalizada que estas se tornam incapazes de separá-la de si

mesmas, e assim não percebem sua presença e influência – não tendo

consciência da natureza do fenômeno do letramento, tem-se dificuldade de

captar as características do estado ou condição de ser “letrado”, porque vivem

imersos nele.

Ong procura compreender o letramento na cultura do papel pela

identificação das diferenças entre sociedades ágrafas e sociedades letradas,

confrontando o mundo da oralidade primária com o mundo letrado.

Para Ong, Parry, Lord, Havelock e Goody, o confronto e contraposição

entre culturas letradas e culturas de oralidade primária permitiram uma

compreensão mais ampla não só destas, mas também daquelas; da mesma

forma, podemos buscar uma compreensão mais ampla da natureza do

letramento na cultura do papel pela análise do processo em andamento, na

cibercultura, de desenvolvimento de novas práticas digitais de leitura e de

escrita, em confronto e contraposição com as já tradicionais práticas sociais

quirográficas e tipográficas de leitura e de escrita. Ou seja: recuperar o

significado de um letramento já ocorrido e já internalizado, flagrando um

novo letramento que está ocorrendo e apenas começa a ser internalizado.

Tecnologias de escrita e letramento

Considerando que letramento designa o estado ou condição em que

vivem e interagem indivíduos ou grupos sociais letrados, pode-se supor que as

tecnologias de escrita, instrumentos das práticas sociais de leitura e de escrita,

desempenham um papel de organização e reorganização desse estado ou

condição.

Lévy (1993) inclui as tecnologias de escrita entre as tecnologias

intelectuais, responsáveis por gerar estilos de pensamento diferentes, porém,

que as tecnologias intelectuais não determinam, mas condicionam processos

cognitivos e discursivos.

Tecnologias tipográficas e digitais de leitura e de escrita

As diferenças entre tecnologias tipográficas e digitais de leitura e de

escrita serão consideradas, neste texto, restringindo-se a análise ao uso de

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ambas essas tecnologias para a escrita de textos informativos ou literários. O

texto na tela – o hipertexto – será confrontado com o texto no papel. Para a

análise das tecnologias tipográficas e digitais de leitura e escrita de textos e

hipertextos, são aqui considerados os dois elementos mais relevantes de

diferenciação entre elas: o espaço de escrita e os mecanismos de produção,

reprodução e difusão da escrita.

Os espaços de escrita

Espaço de escrita, na definição de Bolter (1991), é “o campo físico e

visual definido por uma determinada tecnologia de escrita”. Todas as formas de

escrita são espaciais, todas exigem um “lugar” em que a escrita se

inscreva/escreva, mas a cada tecnologia corresponde um espaço de escrita

diferente. Exemplos: a superfície de uma tabuinha de argila ou madeira ou a

superfície polida de uma pedra; a superfície interna contínua de um rolo de

papiro ou de pergaminho, que o escriba dividia em colunas; a descoberta do

códice foi e é a superfície bem delimitada da página – inicialmente de papiro,

de pergaminho – mais tarde, a superfície branca da página de papel; a tela do

computador.

Há estreita relação entre o espaço físico e visual da escrita e as

práticas de escrita e de leitura. O espaço da escrita relaciona-se até mesmo

com o sistema de escrita: a escrita em argila úmida, que recebia bem a marca

da extremidade em cunha do cálamo, levou ao sistema cuneiforme de escrita;

a pedra como superfície a ser escavada serviu bem, num primeiro momento,

aos hieróglifos dos egípcios, mas, quando estes passaram a usar o papiro, sua

escrita, condicionada por esse novo espaço, foi-se tornando progressivamente

mais cursiva e perdendo as tradicionais e estilizadas imagens hieroglíficas,

exigidas pela superfície da pedra.

O espaço de escrita relaciona-se também com os gêneros e usos

de escrita, condicionando as práticas de leitura e de escrita: na argila e na

pedra não era possível escrever longos textos, narrativas; não podendo ser

facilmente transportada, a pedra só permitia a escrita pública em monumentos;

a página, propiciando o códice, tornou possível a escrita de variados gêneros,

de longos textos.

O espaço de escrita condiciona, sobretudo, as relações entre

escritor e leitor, entre escritor e texto, entre leitor e texto:

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1. No rolo de papiro ou pergaminho: a extensa e contínua superfície

do espaço de escrita impunha uma escrita e uma leitura sem

retornos ou retomadas.

2. Nas páginas do códice: os limites claramente definidos, tanto a

escrita quanto a leitura podem ser controladas por autor e leitor,

permitindo releituras, retomadas, avanços, fácil localização de

trechos ou partes; além disso, o códice torna evidente,

materializando-a, a delimitação do texto, seu começo, sua

progressão, seu fim, e cria a possibilidade de protocolos de

leitura como a divisão do texto em partes, em capítulos, a

apresentação de índice, sumário.

3. No computador: o espaço de escrita é a tela, ou a “janela”; ao

contrário do que ocorre quando o espaço da escrita são as

páginas do códice, quem escreve ou quem lê a escrita eletrônica

tem acesso, em cada momento, apenas ao que é exposto no

espaço da tela: o que está escrito antes ou depois fica oculto

(embora haja a possibilidade de ver mais de uma tela ao mesmo

tempo, exibindo uma janela ao lado de outra, mas sempre em

número limitado).

Diferenças entre o hipertexto e o texto produzido no papel no que se

refere ao espaço da escrita:

1) Características do hipertexto (texto na tela do computador): trata-se

de “um texto móvel, caleidoscópico, que apresenta suas facetas, gira,

dobra-se e desdobra-se à vontade frente ao leitor”. O texto na tela é

escrito e é lido de forma multilinear, multi-sequencial, acionando-se links

ou nós que vão trazendo telas numa multiplicidade de possibilidades,

sem que haja uma ordem. O hipertexto tem a dimensão que o leitor lhe

der: seu começo é ali onde o leitor escolhe, com um clique, a primeira

tela, termina quando o leitor fecha, com um clique, uma tela, ao dar-se

por satisfeito ou considerar-se suficientemente informado – enquanto a

página é uma unidade estrutural, a tela é uma unidade temporal. Um

hipertexto é dinâmico, está perpetuamente em movimento e, segundo

Lévy, é algo “virtualmente sem fim, de fundo falso em fundo falso. [...] Ao

ritmo regular da página se sucede o movimento perpétuo de dobramento

e desdobramento de um texto caleidoscópico.” O hipertexto que veio

legitimar o registro desse pensamento por associações, em rede,

tornando-o possível ao escritor e ao leitor. Estamos chegando à forma

de leitura e de escrita mais próxima do nosso próprio esquema mental.

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Chartier (1994, p. 100-101) considera o texto na tela (hipertexto) uma

revolução do espaço da escrita que altera fundamentalmente a relação

do leitor com o texto, as maneiras de ler, os processos cognitivos,

abrindo novas técnicas intelectuais e imensas possibilidades de ler, de

se relacionar com a escrita e a leitura. A tela do computador como

espaço de escrita e de leitura traz não apenas novas formas de acesso

à informação, mas também novos processos cognitivos, novas formas

de conhecimento, novas maneiras de ler e de escrever, enfim, um novo

letramento, isto é, um novo estado ou condição para aqueles que

exercem práticas de escrita e de leitura na tela. Em síntese, a tela, como

novo espaço de escrita, traz significativas mudanças nas formas de

interação entre escritor e leitor, entre escritor e texto, entre leitor e texto

e até mesmo, mais amplamente, entre o ser humano e o conhecimento.

2) Características do texto no papel: é escrito e é lido linearmente,

sequencialmente – da esquerda para a direita, de cima para baixo, uma

página após a outra; predefinida. A dimensão do texto no papel é

materialmente definida: identifica-se claramente seu começo e seu fim,

as páginas são numeradas, o que lhes atribui uma determinada posição

numa ordem consecutiva – a página é uma unidade estrutural. A escrita

no papel, com sua exigência de uma organização hierárquica e

disciplinada das ideias, contraria o fluxo natural do pensamento.

Conceito de Letramento digital: estado ou condição que adquirem os que se

apropriam da nova tecnologia digital e exercem práticas de leitura e de escrita

na tela, diferente do estado ou condição – do letramento – dos que exercem

práticas de leitura e de escrita no papel.

Diferenças entre textos manuscritos e textos eletrônicos no que se refere

aos mecanismos de produção, reprodução e difusão da escrita:

Nos textos manuscritos: Os copistas frequentemente alteravam o

texto, ou por erro ou por intervenção consciente, de modo que cópias do

mesmo texto raramente eram idênticas; ao possuidor ou ao leitor do

manuscrito era garantida a possibilidade de intervir no texto,

acrescentando títulos, notas, observações pessoais, porque espaços em

branco eram deixados para essa finalidade. O autor dos manuscritos era

difuso e não identificado. No texto impresso, é grande a distância entre

autor e leitor. No texto impresso, cuja linearidade, por si só, já impõe

uma estrutura e uma sequência, o autor procura controlar o leitor,

definindo os limites da interpretação e impedindo a superinterpretação.

Há a intertextualidade, presente, no texto impresso, quase

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exclusivamente por alusão. Na cultura impressa, editores, conselhos

editoriais decidem o que vai ser impresso, determinam os critérios de

qualidade, portanto, instituem autorias e definem o que é oferecido a

leitores. A invenção da imprensa, de acordo com Chartier (1998, p. 7-9),

não representou uma transformação tão radical nos textos manuscritos.

Os livros manuscritos e pós-Gutemberg baseiam-se nas mesmas

estruturas fundamentais, as do códex. A “revolução” de Gutemberg

alterou profundamente as formas de produção, de reprodução e de

difusão da escrita, e, por consequência, modificou de forma significativa

as práticas sociais e individuais de leitura e de escrita – modificou o

letramento, isto é, o estado ou condição de quem participa de eventos

em que tem papel fundamental a escrita. A tecnologia da impressão

enformou (colocou em fôrmas) a escrita, muito mais do que o tinham

feito o rolo e o códice, em algo estável, monumental e controlado.

O texto eletrônico: Não é estável, não é monumental e é pouco

controlado; os leitores de hipertextos podem interferir neles, acrescentar,

alterar, definir seus próprios caminhos de leitura; o texto digital é fugaz,

impermanente e mutável; há grande liberdade de produção de textos na

tela e é quase totalmente ausente o controle da qualidade e

conveniência do que é produzido e difundido. No texto eletrônico, a

distância entre autor e leitor se reduz, porque o leitor se torna, ele

também, autor, tendo liberdade para construir, ativa e

independentemente, a estrutura e o sentido do texto. No texto eletrônico,

o autor será tanto mais competente quanto mais alternativas de

estruturação e sequenciação o texto possibilite, quanto mais opções de

interpretação ofereça ao leitor. A intertextualidade se constrói pela

articulação de textos diversos, de diferentes autorias – no hipertexto,

não há uma autoria, mas uma multi-autoria, portanto exige uma

reconceituação radical de autoria, de propriedade sobre a obra, de

direitos autorais. O computador possibilita a publicação e distribuição na

tela de textos que escapam à avaliação e ao controle de qualidade:

qualquer um pode colocar na rede, e para o mundo inteiro, o que quiser.

Em que as mudanças nas tecnologias de impressão de difusão da escrita

contribuíram para a modificação do estado ou condição dos que

escrevem e dos que leem, diferenciando substancialmente o letramento

na cultura do texto impresso do letramento na cultura do texto

manuscrito:

Page 14: LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO

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1) Instauram a propriedade sobre a obra, propriedade que se expressa

concretamente no surgimento da figura do autor. Agora, há os direitos

autorais, a criminalização da cópia e do plágio.

2) Criam muitas e várias instâncias de controle do texto. O texto é produto

não só do autor, mas também do editor, do diagramador, do

programador visual, do ilustrador, de todos aqueles que intervêm na

produção, reprodução e difusão de textos impressos em diferentes

portadores (jornais, revistas, livros...).

Conclusão: Não é só este novo espaço de escrita que é a tela que gera um

novo letramento, para isso também contribuem os mecanismos de produção,

reprodução e difusão da escrita e da leitura.

Letramentos, o plural

Por que letramentos (no plural): Porque se trata de um fenômeno que serve

para designar diferentes efeitos cognitivos, culturais e sociais em função ora

dos contextos de interação com a palavra escrita, ora em função de variadas e

múltiplas formas de interação com o mundo – não só a palavra escrita, mas

também a comunicação visual, auditiva, espacial.

Neste artigo, enfatiza-se a ideia de que diferentes tecnologias de escrita geram

diferentes estados ou condições naqueles que fazem uso dessas tecnologias,

em suas práticas de leitura e de escrita: diferentes espaços de escrita e

diferentes mecanismos de produção, reprodução e difusão da escrita resultam

em diferentes letramentos.

Letramento é fenômeno plural, histórica e contemporaneamente: há

diferentes letramentos ao longo do tempo, há diferentes letramentos no

nosso tempo.