lind coraçaoselvagem

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Lindsay McKenna CORAÇÃO SELVAGEM Publicado em 1993 pela Harlequin Books Titulo Original: Brave heart Clássicos Históricos no 74 Um encontro mágico... Um homem para não se esquecer! Dakota, 1825. Serena Rogan tinha saído da Irlanda em busca de um novo sonho na América. Mas como lavadeira num campo de mineração, ela só encontrou escravidão e sofrimento. Até que, arriscando a vida para salvar um grupo de mulheres sioux, ela entrou em um mundo cheio de amor, respeito e de... Lobo Negro. Curandeiro lakota, Lobo Negro sonhava com o dia em que Serena, a mulher de cabelos vermelhos, deixasse de temê-lo. Estava determinado a provar-lhe que um homem podia ser tanto amigo quanto amante!

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Lindsay McKennaCORAÇÃO SELVAGEMPublicado em 1993 pela Harlequin BooksTitulo Original: Brave heart

Clássicos Históricos no 74

Um encontro mágico... Um homem para não se esquecer!Dakota, 1825.Serena Rogan tinha saído da Irlanda em busca de um novo sonho na América.

Mas como lavadeira num campo de mineração, ela só encontrou escravidão e sofrimento. Até que, arriscando a vida para salvar um grupo de mulheres sioux, ela entrou em um mundo cheio de amor, respeito e de... Lobo Negro.

Curandeiro lakota, Lobo Negro sonhava com o dia em que Serena, a mulher de cabelos vermelhos, deixasse de temê-lo. Estava determinado a provar-lhe que um homem podia ser tanto amigo quanto amante!

UM

Território de Dakota, 1825

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Fui largada aqui para morrer... Serena refletiu e mal ergueu a cabeça da vegetação áspera que cobria a margem do rio. Doía respirar, mas mesmo assim, ela tentou encher os pulmões de ar. Com esforço, soergueu-se nos braços. Começava a amanhecer, a luz empurrando para longe a escuridão do céu de setembro. Um arrepio percorreu-lhe o corpo. Jamais esqueceria essa noite. O rosto fino, com bigode, de Blackjack a espionava através da nebulosidade da dor.

A fim de afastar a imagem do rico minerador de ouro, Serena sacudiu a cabeça e forçou-se a não pensar nos ferimentos dos seios. Semicerrando os olhos verdes, observou o rio calmo que corria entre as colinas Negras de South Dakota. Como dedos trêmulos, o vapor subia da superfície e formava neblina sobre as margens. Wexford, sua terra natal na Irlanda, ficava tão longe. Ela encontrava-se na outra metade do mundo, violentada por um homem depravado e, depois, largada para morrer.

- Não! - murmurou.Olhou para o vestido de algodãozinho azul claro e ralo. A blusa estava manchada

de sangue dos ferimentos feitos por Blackjack e o tecido grudava-se na carne.As últimas palavras dele ressoavam-lhe na mente: "Quero ter certeza de que

nenhum outro homem há de querer pôr as mãos em você, sua bruxa ruiva".Serena fechou os olhos. A dor emocional sobrepujava a física e ela revivia a cena

na qual Blackjack cruzava o aposento trazendo o espeto de ferro em brasa da lareira. Sem querer, soluçou. Não tinha como abafar o terror. Por não se submeter às exigências do minerador, ele a tinha violentado vezes seguidas, tirando-lhe a virgindade e a dignidade.

Curvou a cabeça e apalpou os seios doloridos. Vinha de uma pobre família católica da Irlanda. Talvez seus cabelos vermelhos e flamejantes, tão sujos e embaraçados agora, anunciassem o espírito indomável que Blackjack tentara dobrar. O espírito era tudo que lhe restava, refletiu, atordoada com as ocorrências da véspera à noite. Sem haver ingerido a comida com narcótico, ela havia tentado fugir. Quase conseguira ultrapassar a porta e ganhar a liberdade, mas ele a tinha apanhado em flagrante. Enrolando a mão em seus cabelos compridos, a levantara do chão.

Serena mergulhou a mão na água límpida, o oposto de como se sentia por dentro. Suja. Imunda. Ansiava tirar o gosto de sangue da boca. Com dificuldade, ajoelhou-se.

Com as mãos em concha, lavou o rosto. Blackjack sempre exaltava sua beleza, ressaltando os imensos olhos verdes, os lábios polpudos e a exuberância dos cabelos vermelhos. Em vez de usar o espeto para marcar-lhe o rosto, ele tinha queimado seus

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seios.Observou a faixa avermelhada no horizonte. A sua volta, o mundo acordava e os

pássaros anunciavam um novo dia. Estou viva. De alguma forma, hei de vencer. Serena apanhou mais água e bebeu-a, sentindo-se melhor. Depois, rasgou um pedaço da barra do vestido e esfregou o pescoço, os braços e as mãos na esperança de tirar o cheiro de Blackjack que a lembrava dos terríveis meses de cativeiro.

Durante os meses em que fora prisioneira dele, Serena jamais tinha mostrado medo ou chorado. Ele havia encarado sua coragem como um desafio para dobrar-lhe o espírito, para fazê-la gritar de dor ou, pelos menos, chorar. Fracassando, ele a tinha acusado de bruxa e de não ter sentimentos. Serena baixou a cabeça e observou os brotos de capim. Um dia, ela também tinha sido como eles, pura e vulnerável.

- Nunca mais... - murmurou em voz rouca.Os homens significavam apenas humilhação, sofrimento e degradação. Seu

espírito, a capacidade de lutar pelo que julgava seu por direito, tinha sido um sinal para os que discordavam dela. Eles haviam tentado alquebrar-lhe a energia, ou matá-la. O ódio que dominou Serena a surpreendeu. Embora em seus dezoito anos de vida nunca houvesse pensado em ferir alguém, ele era assassino.

Homens. Estremeceu. Eles a amedrontavam. Blackjack não precisava se preocupar com sua vontade de arranjar marido. Ela não queria homem algum! Contemplou a água límpida. Se Deus a ajudasse a sobreviver essa última provação, ela jurava jamais se casar. Muito melhor levar uma vida solitária do que curvar-se a um homem e tornar-se sua escrava.

O relinchar de mulas abafou as reflexões de Serena. Deitada no chão, escondeu-se entre as touceiras de junco. Em poucos minutos, seis mineradores, com mulas carregadas de ferramentas para mineração de ouro, passavam pelo barranco acima. Sem dúvida, procuravam novos veios auríferos. Com o coração disparado, Serena rezou: Deus misericordioso, faça com que eles não me vejam...

A proximidade dos homens atarracados e barbudos a deixava trêmula, mas eles seguiram em frente sem descobri-la. Blackjack a tinha largado nas cercanias de Kingston. A que distância estava do acampamento de mineradores, não fazia idéia. Durante dois meses, fora mantida trancada dentro de casa. Se esses homens a encontrassem, a estuprariam como Blackjack o fizera. Lucinda, escrava negra trazida do sul, tinha lhe contado que os mineradores, muitas vezes, violentavam as mulheres e matavam os índios sioux que habitavam essa região do Território de Dakota tão rica em ouro.

Serena também ficara sabendo que Blackjack odiava quem não fosse homem e

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branco. Com freqüência, ele espancava Lucinda. Fazia ainda parte dos hábitos dele conduzir mineradores a invadir acampamentos indígenas e matar homens, mulheres e crianças a fim de se apossar de veios auríferos da região.

O último dos mineradores sumiu além da curva do rio e Serena respirou fundo, erguendo a cabeça. Olhou para si mesma e notou a imundície do vestido molhado. Também enlameados estavam os cabelos que caíam sobre as queimaduras doloridas dos seios.

Após uns cinco minutos, convenceu-se de que os homens tinham se afastado e levantou-se experimentando as pernas. Estavam firmes o suficiente, percebeu. Blackjack a obrigava a usar sapatos, porém, acostumada a andar descalça desde a infância, ela se descartava deles quando podia. Sentiu o barro na sola grossa dos pés e reanimou-se. A vida continuava, deu-se conta apesar do atordoamento que a dominava.

Estou livre. Blackjack imagina que vou morrer, mas isso não acontecerá. Como já consegui antes, sobreviverei.

Serena observou o lugar. À frente, havia uma pequena elevação com vários carvalhos no topo. Os mineradores tinham seguido rumo norte, então, ela acompanharia o rio em direção sul. Na Irlanda, havia comido raízes e restos de comida para não morrer de fome. Olhando para o rio raso, viu moluscos e peixes com os quais poderia se alimentar.

Quando Serena já dava os primeiro passos para o sul, ouviu um grito de mulher. Virou-se e ouviu outro dado por uma voz diferente. Crianças também começavam a gritar e a chorar, assustadas.

O barulho despertou algo instintivo em Serena. Com passos incertos, subiu o barranco da margem e, meio sem fôlego, alcançou o grupo de carvalhos, recostando-se num dos troncos.

Os olhos arregalaram-se. Primeiro, foi tomada pelo medo, depois, pela repulsa. Os mineradores atacavam mulheres indígenas desarmadas e com bebês em tábuas-berços à volta. Cestas com raízes coletadas à beira do rio esparramavam-se, crianças corriam de um lado para o outro e mulas relinchavam, nervosas. Serena soltou uma exclamação angustiada. Viu uma menina, de uns quatro anos, caída morta. Uma índia, com o bebê no braços, fugia de um homem de barba negra. Crianças!

O ódio de Serena transformou-se em ação. Durante dois meses, fora torturada por um homem branco. Havia suportado dores terríveis das sovas contínuas e da violação do corpo. E agora, esses homens imundos iam estuprar mulheres inocentes e desarmadas. Sem pensar, pegou um galho caído de carvalho e segurou-o com firmeza

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entre as mãos.- Não! - gritou ao descer correndo o outro lado da elevação. - Vocês não vão

atacá-las! De jeito nenhum!Com o galho erguido acima da cabeça, Serena usou o impulso da descida para

surpreender os mineradores que tinham tirado os coldres a fim, de estuprar as mulheres.

Estrela Vespertina, com um bebê de dois meses agarrado ao peito, arregalou os olhos ao ver a mulher branca, de cabelos vermelhos, descer a ladeira gritando a pleno pulmão. O homem que corria em seu encalço, também parou, surpreso. Não teve tempo de avisar os companheiros. Estrela Vespertina viu a ferocidade nos olhos verdes da mulher branca quando ela desceu o taco improvisado na cabeça do minerador que caiu inconsciente.

Antes de poder dizer algo, Estrela Vespertina viu a estranha virar-se e atacar um segundo minerador que se deitava sobre sua irmã mais velha. Soluçando, percebeu que Asa Vermelha estava morta. Mas consolou-se ao ver a mulher de cabelos vermelhos descer o galho na nuca do homem. Um estalido seco cortou o ar. Com o pescoço quebrado, o minerador rolou de costas para o chão.

Depois de esconder o bebê sob a ramagem baixa de salgueiros, Estrela Vespertina apanhou um galho seco e correu para ajudar a mulher branca a defender suas companheiras. Notando que a estranha corria perigo, gritou um aviso.

Serena viu um mineiro, de barba castanha e com a calça abaixada, hesitar. Sob ele, estava uma índia morta. Assustadas, as mulas relinchavam e corriam de um lado para outro espalhando lama. Tarde demais, o homem tentou apanhar o coldre largado no chão. Serena já o golpeava com o galho de carvalho. Uma das mulas, escoiceando ao lado, também atingiu-o na cabeça provocando-lhe morte instantânea.

- Cadela, você vai morrer! - gritou, para Serena, um homem de barba loira enquanto puxava a calça para cima.

Serena viu o minerador apanhar a arma mais próxima, também um galho, mas o dobro do seu. Preparou-se para se defender, mas deparou-se com um bebezinho entre ambos. Este corria risco no confronto iminente.

No auge da fúria, ela atirou o galho com a maior força possível no homem e, quase ao mesmo tempo, correu para pegar a criança. Fugir! Temos de fugir! Ele desviou-se do golpe e veio-lhe ao encalço. Apertando a criança de encontro ao peito, Serena tentou escapar, mas tropeçou na barra do vestido e caiu de joelhos.

- Não! - gritou Estrela Vespertina ao correr para o minerador que logo alcançaria a mulher branca e a filhinha de Asa Vermelha.

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Ao chegar mais perto, viu o olhar de ódio da estranha que apertava, no peito, a tábua-berço com a sobrinha.

Serena encarou os olhos azuis do homem. Seu ódio não conhecia limites. Ao vê-lo ajeitar o galho para golpeá-la, percebeu que morreria. A própria vida já não tinha mais importância, mas a da criança, sim.

Algo atraiu o olhar de Serena para além do minerador que lhe ceifaria a vida. Dominada por uma calma estranha, viu surgir, no topo da colina, um guerreiro indígena montado numa égua preta. O sol, pouco acima da linha do horizonte, envolvia-o numa luminosidade fulgurante. Por se tratar de um homem, ela surpreendeu-se ao não sentir repulsa. Tranqüilidade e energia emanavam dele. Estava vestido com roupa de couro de gamo e tinha os cabelos negros presos em duas tranças e enfeitados com penas de águia.

Serena viu, ao mesmo tempo, o galho erguer-se para golpeá-la e o guerreiro esticar o arco com a flecha. Quem a mataria primeiro? Aceitou a morte iminente, mas não desviou os olhos das feições rígidas do guerreiro. Elas eram tão marcantes como os penhascos da costa irlandesa. Não havia piedade nos olhos negros, porém quando encontraram os seus numa fração de segundo, eles tornaram-se meigos. Serena não só viu como sentiu também a preocupação e a angústia dele com sua situação. Foi tomada por uma fagulha de esperança. Por que ele se importa? Sou uma estranha. Uma branca. Confusa, seus últimos pensamentos conscientes marcaram-se pela coragem e pela esperança.

Lobo Negro soltou a seta e, satisfeito, viu-a cravar-se na nuca do minerador. Contudo, isso não se deu antes de o sujeito golpear a mulher branca que protegia o bebê de Asa Vermelha. Furioso por não ter chegado antes, prensou as pernas na montaria e galopou colina abaixo enquanto preparava novas flechas. Caçador há tantos anos, orgulhava-se de nunca ter errado o alvo de cima da montaria predileta, a égua Wiyaka. Com precisão, dirigiu-a para entre as mulheres e crianças e os dois últimos mineradores.

A satisfação voltou a invadi-lo ao acertar os homens com precisão mortífera. Freou a montaria e olhou à volta. Estremeceu. A irmã mais velha, Asa Vermelha, estava morta com uma mancha de sangue espalhando-se pelo vestido de couro de gamo. Ao lado, havia um minerador morto também, com o pescoço quebrado.

Ao desmontar, Lobo Negro ouviu um grito e viu a irmã de dezessete anos, Estrela Vespertina, vir-lhe ao encontro correndo.

- Lobo! Eles nos atacaram vindo de não sei onde. Nem os ouvimos se aproximar - soluçou ela.

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Lobo a abraçou. A cena ao redor era desoladora. Seis mulheres e quatro crianças tinham ido desenterrar raízes na margem do rio, atividade em que se ocupavam uma vez por semana. Com olhar sombrio, ele observou os corpos dos mineradores.

- Por que fizeram isso? - indagou, perplexo.- E sempre a mesma coisa. Por que o wasicun, o homem branco, não pode nos

deixar em paz? Asa Vermelha! Eles a mataram - protestou Estrela Vespertina em prantos.

Lobo apertou os lábios. Asa Vermelha tinha o pescoço cortado e fora violentada.- Precisamos de ajuda, mana. Monte Wiyaka e vá até a vila. Providencie cinco

guerreiros e cavalos extras.Estrela Vespertina enxugou as lágrimas e apontou para a esquerda.- Ela nos salvou, Lobo. A mulher branca atacou os mineradores com a violência

de dez guerreiras. Brandia o galho de carvalho como se fosse uma arma. Graças a ela, o bebê de Asa Vermelha não morreu. Não sei se ela fazia parte do grupo, ou não.. Surgiu como um raio surpreendendo os homens.

Lobo olhou para a mulher branca que permanecia imóvel com a tábua-berço entre os braços.

- Vá buscar ajuda, Estrela Vespertina. Farei o que puder até eles chegarem - disse ele ao tirar uma sacola de couro cru amarrada à sela de casca de choupo para, em seguida, ajudar a irmã a montar.

Tão logo ela desapareceu atrás da colina, Lobo preparou-se para atender quem precisasse de seus cuidados. Como curandeiro da tribo, dedicava a vida ao bem-estar de seu povo. Andorinha, a irmã de vinte e seis anos, surgiu manquitolando e com o rosto desfigurado pela dor. Ela também tinha sido violentada.

- Lobo, cuide depressa de Asa Vermelha - pediu. - Ela está morta.Andorinha encolheu-se como se tivesse sido estapeada. - Então, cuide das outras primeiro. Eu estou bem. - E sua filha?Andorinha ajoelhou-se e examinou a menina.- A coitadinha só está assustada e com uns arranhões. Quando viu os

mineradores, escondeu-se entre a ramagem dos salgueiros perto do rio.Lobo dedicou atenção às outras duas índias. Uma tinha o braço quebrado e a

segunda, o maxilar. Para esta não havia o que ser feito a não ser dar-lhe uma erva para prender entre os dentes a fim de amenizar a dor. O braço da primeira foi imobilizado com casca de salgueiro amarrada com cordéis de couro.

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Enquanto cuidava das duas, Lobo não conseguia dominar a curiosidade sobre a mulher de cabelos vermelhos. Ao desafiar seu próprio povo, ela provava ser guerreira. Por quê? Os brancos não eram todos iguais aos mineradores?, indagou-se.

Vendo Andorinha sofrer calada a humilhação sofrida, ele aconselhou-a:- Vá tomar um banho no rio. Ele a purificará.- E quanto a de cabelos vermelhos? O ferimento na cabeça está sangrando

muito. Ela nos salvou da morte certa. Não merece nossa ajuda?Ele apenas resmungou algo e Andorinha insistiu:- Você é wapiya, curandeiro, e prometeu cuidar da vida de outras pessoas. Faça

isso pela pobre. Ela salvou a filha de Asa Vermelha, sua sobrinha.Instigado pelo tom veemente da irmã, Lobo concordou com um gesto de cabeça.

Sentia-se dividido. Como curandeiro, queria cuidar da mulher branca. Mas uma parte sua, que havia sofrido a perda de vários membros da família assassinados pelos wasicuns, queria deixá-la morrer. Além do mais, sentia medo dela. Medo?! Por que haveria de temer uma mera mulher branca? Ao aproximar-se, Lobo deu-se conta de que ela poderia ser qualquer coisa menos "mera". Os cabelos vermelhos rodeavam-lhe o rosto como uma auréola tão fulgurante como a luz do Sol Pai. Abaixando-se, afastou-lhe o braço para ver se o bebê estava bem. Aliviado, viu Céu da Alvorada abrir os olhinhos e fitá-lo.

- Pequenininha - murmurou ao pegá-la.Para surpresa sua, o bebê não sofrera nada e, como toda boa criança lakota, não

tinha chorado durante a confusão. Levou-a para junto da filha de Andorinha e, depois de ter certeza de que ambas estavam bem sob os salgueiros, voltou para junto da mulher branca.

Ao acomodá-la de costas, admitiu que ela havia se mostrado mais corajosa do que cinco guerreiros juntos. Incrível atacar seis mineradores grandalhões com apenas um galho de árvore. Fora um ato de bravura. Por isso, ele a chamaria de Cante Tinza, Coração Valoroso, embora isso fosse contra suas crenças.

Hesitou em examiná-la, pois nunca tinha visto cabelos vermelhos. Eram fartos e estavam emplastrados de lama. Afastou-os e viu sangue coagulado não só na testa como no peito também. Por onde começar? Abriu-lhe o vestido e deparou-se com a camisa grudada na carne. Com uma praga, pegou a faca na cintura e rasgou a peça.

Lobo não conseguiu abafar uma exclamação de surpresa. Os seios da mulher exibiam queimaduras recentes e profundas. Estranhou o ferimento pouco comum. Pequenos e firmes, os seios alvos eram coroados por mamilos cor-de-rosa. A vontade de tocá-los, para ver se eram tão macios como pareciam, inundou Lobo. Aborrecido

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com tal reação a Cante Tinza, ele concentrou-se nos curativos. Da sacola de couro, tirou pó de raiz de comfrey e espalhou-o sobre as queimaduras.

- Quem teria feito isso? - perguntou Andorinha curvada sobre o ombro do irmão. - Esta mulher foi ferida pelos wasicuns.

- Ou pelos Crow. Eles gostam de provocar queimaduras no corpo dos inimigos.- Pode ser - comentou Andorinha ao ajoelhar-se perto da cabeça da mulher e

colocar uma compressa molhada em sua testa. - Alguém a chicoteou também?Erguendo o olhar dos ferimentos, Lobo viu as marcas nos ombros apontadas por

Andorinha. Eram listras rosadas e indicativas de um bom espancamento.- Deixe eu terminar aqui primeiro. Depois, vejo o resto - resmungou ele.- Ela nos salvou, Lobo. Não se aborreça por tentar ajudá-la.Reprimindo a raiva, ele apertou os lábios. Andorinha fora violentada e dava

vazão às emoções. Suas mãos tremiam enquanto limpava o sangue da testa de Cante Tinza.

- Farei o que puder - prometeu baixinho.- Vi a raiva em seus olhos. Ela não escondia o ódio pelos mineradores. Talvez eles

a tenham torturado ou violentado como fizeram conosco - comentou Andorinha voltando a chorar.

- Nesse caso, seu coração é mais corajoso do que imaginei - admitiu Lobo ao transpassar a camisa e abotoar o vestido.

- Nunca vi ninguém lutar com tanta fúria e raiva - acrescentou Andorinha.Lobo tocou-a no ombro. - Tanksi, irmã, vá se sentar. Você está tremendo como uma folha na tempestade.- Tem razão, tiblo, irmão. - Andorinha acariciou a mulher e murmurou: - Esta aqui

é especial. Pouco importa se sua pele é branca, pois seu coração é lakota.- Você sempre distinguiu as pessoas boas - elogiou Lobo. - Agora, vá se sentar e

descansar. Os guerreiros logo chegarão para levar todos de volta à vila.Ele sentiu o coração apertado ao dar razão à irmã. Não colocaria mais ódio como

uma barreira contra Cante Tinza, pensou ao começar o curativo da cabeça. Se não fosse por ela, teria perdido o resto da família tão grande outrora. Devia-lhe isso.

A mente pôs-se a trabalhar. Teriam de tomar várias providências. Quando os corpos dos mineradores fossem encontrados, os wasicuns responsabilizariam os índios. O chefe Boca de Texugo teria de mudar a vila, pois os soldados do forte os atacariam com a ferocidade de gaviões. No momento, reinava uma paz precária entre o povo lakota e o wasicun.

Alguns lakotas não aprovariam sua atitude de levar a mulher de cabelos

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vermelhos para sua tenda, Lobo Negro refletiu. Boca de Texugo se oporia. Cada pessoa na vila de cem pessoas já tinha perdido alguém nas mãos do wasicun. Todos odiavam os mineradores que não cessavam de tomar-lhes as terras dos ancestrais.

Com um suspiro, Lobo acariciou a testa suja de Cante Tinza. Ela precisava tomar banho, lavar e pentear os cabelos. Apesar da tortura sofrida, ainda lhe restava beleza no rosto. Enquanto ouvia o tropel dos cavalos se aproximando, ele imaginou de que cor seriam seus olhos.

DOIS

- Você não vai levá-la!Ajoelhado ao lado de Cante Tinza e com a mão em seu ombro, Lobo levantou o

olhar para o chefe Boca de Texugo. Este, com mais de sessenta invernos, tinha expressão inflexível. As palavras expressavam ordem e não indagação. Ao redor deles, os guerreiros ajudavam as mulheres e crianças a montar e nenhum mostrou interesse na questão.

- Ela salvou a vida de nossas mulheres - argumentou Lobo no mesmo tom autoritário.

- Foi o que Estrela Vespertina repetiu o caminho inteiro. Fala o tempo todo como se fosse um gaio. Não se cansou de contar que a wasicun de cabelos vermelhos salvou nossas mulheres e crianças da morte certa.

- É verdade. Ela é uma guerreira.Lobo tinha se convencido disso ao observar-lhe os traços delicados. A testa era

larga e sem marcas, as sobrancelhas curvavam-se como as asas de um gavião alçando vôo e, no nariz pequeno, as narinas fremiam levemente. Embora inconsciente, a boca linda repuxava-se um pouco nos cantos indicando a dor sentida. Achando Cante Tinza tão vulnerável, ele teve vontade de tirá-la da escuridão onde se encontrava e trazê-la para a luz. O que estaria ela fazendo com os mineradores? Se fosse amiga deles, não teria defendido as mulheres lakotas. Intuía que ela havia sido ferida por eles. Por quê? Suas perguntas só teriam respostas quando Cante Tinza recuperasse a consciência.

- Você deveria deixá-la com os outros. Os abutres se encarregarão deles - resmungou Boca de Texugo.

- Até os crows, nossos inimigos, não deixam uma mulher morrer dessa maneira - disse Lobo.

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Aos olhos dos índios, não importava a tribo, a mulher era sagrada.- Para o povo da vila, seria melhor se ela fosse crow.Verdade, refletiu Lobo. Através dos anos, tinham capturado mulheres crows e,

depois de algum tempo, elas haviam decidido não voltar para seu povo. As mulheres lakotas as aceitavam como se fossem de sua tribo.

- Andorinha acha que ela foi torturada pelos mineradores.- Ela é wasicun, Lobo Negro.- Não, primeiro ela é mulher. Nós reconhecemos a fortaleza e a coragem de

nossas mulheres. São elas que nos dão à luz e nos alimentam com o leite de seus seios. Todas as luas, elas dão de volta seu sangue à Terra Mãe. Como homens, não podemos fazer essas coisas, portanto, somos menos importantes. Não temos nada que se compare à qualidade sagrada das mulheres.

Irritado por Lobo ter razão, Boca de Texugo resmungou:- Faça o que entender. Aliás, não preciso dizer isso. Mas lembre-se, ela é wasicun

e isso significa problemas. E quanto à Mulher Corça?- Ela aspira meu coração, mas eu já a avisei que tenta conquistar o guerreiro

errado. Eu não a amo.Lobo passou os braços sob os ombros e os joelhos de Cante Tinza e a ergueu do

chão. Ao estreitá-la de encontro ao peito, uma velha mágoa explodiu. Nos últimos quatro invernos, ele havia perdido metade da família nas mãos dos wasicuns ambiciosos à cata de minas de ouro nas colinas Black. O contato de seu rosto na pele fazia-o sentir, pela primeira vez, algum conforto.

- Você está arranjando um problema duplo, Lobo. Mulher Corça não vai gostar de ver essa wasicun morando em sua tenda - avisou Boca de Texugo.

Sem dar importância a essas palavras, Lobo dirigiu-se à égua preta. Aos dezoito anos, Mulher Corça demonstrava amá-lo com paixão e não se cansava de insinuar o quanto gostaria de se casar com ele. Todavia, era muito infantil além de não despertar o amor de Lobo. Ele queria uma mulher mais adulta. Alce Ligeiro, guerreiro que ainda precisava realizar façanhas, que se casasse com ela. Ambos regulavam de idade e ele não escondia a atração sentida por Mulher Corça. Ela, entretanto, mantinha-se alheia às atenções dele.

- Vou levar esta mulher para minha tenda a fim de cuidar dela. Faria isso por qualquer outra.

Grou Alto, um dos guerreiros, segurou Cante Tinza enquanto Lobo montava Wiyaka e não escondeu a reação. Percebendo, Lobo indagou-se se a wasicun, com seu corpo esguio e cabelos flamejantes, tinha a habilidade de destruir barreiras de ódio.

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Pegou Cante Tinza e acomodou-a na frente da sela.- Quem é ela? - Grou Alto quis saber.- Uma estranha - respondeu Lobo, acrescentando para si próprio: De muitas

maneiras. - Você pretende ficar com ela?- Como presa de guerra? - Sim.Lobo notou o interesse desinibido de Grou Alto por Cante Tinza. Menos de dois

invernos atrás, ele tinha perdido a mulher e o filho num ataque de mineradores. Desde então, o guerreiro levava uma vida solitária e precisava de uma nova família. Embora fosse benquisto na vila e um bom caçador, Lobo ressentiu-se.

- Ela é minha.Um sorriso estampou-se no rosto largo de Grou Alto.- Ah, o wapiya finalmente encontrou uma mulher. Muitas moças ficarão

desoladas ao vê-lo entrar na vila com essa de cabelos vermelhos como a companheira escolhida.

Inquieto com a perspectiva de problemas provocados pela presença de Cante Tinza, Lobo encarou o outro guerreiro.

- Se a cor dos cabelos indica qualquer coisa, ela fará o que entender.Bem humorado, Grou Alto riu e bateu nas costas de Lobo.- Muito bem dito, amigo. Uma mulher com cabelos cor de fogo! Você será

abençoado ou maldito?, eu me indago.- Não sei. Ela poderá não viver o suficiente para sabermos a resposta.- Estrela Vespertina disse que ela é uma guerreira. Eu a respeito por isso. Não me

importa se sua pele é branca. Se ajudou a salvar nossas mulheres e crianças; eu a considero uma das nossas.

- Metade da vila não gostará e nem confiará nela. A outra metade ficará fascinada, como você, por seus cabelos vermelhos - disse Lobo.

- Não nego minha reação. Mas Mulher Corça ficará muito triste com sua decisão.- Eu não a cortejei. Deixei isso claro ao chefe e à família dela - Lobo declarou.- As vezes, o coração escolhe por nós apesar do que nos diz a cabeça - comentou

Grou Alto.Lobo sentiu pena do amigo ao ver a tristeza em seus olhos escuros.- Há quatro moças, pelo menos, procurando marido lá na vila. Você não poderia

acalmar seu coração com uma delas?Grou Alto deu de ombros.

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- Nenhuma me atrai. Seria injusto escolher uma fingindo o contrário. - Os olhos iluminaram-se. - Mas essa aí desperta meu interesse.

Lobo sorriu.- Ela demonstrou ter espírito forte e coragem.- Respeito sua escolha, meu amigo. Mas cuidado. Muitos a odiarão se ela

sobreviver - aconselhou Grou Alto.- Está se referindo a Mulher Corça? Eu a acho incapaz de magoar alguém.- Ela é muito meiga, mas não se engane com seu comportamento. Até agora, ela

não teve uma rival.- Mulher Corça ficará desapontada, porém, não levantará a mão contra mim e a

de cabelos vermelhos.Lobo tinha outras preocupações. A vila devia mudar imediatamente e as

mulheres feridas precisavam de cuidados constantes.- Não invejo sua situação, Lobo. Suas responsabilidades são muitas além de ter

uma jovem desiludida com você e uma inimiga morando em sua tenda. Fique de sobreaviso.

Em silêncio, Lobo admitiu a sensatez das palavras do amigo. Olhou para Cante Tinza e rezou para a Mulher Búfala Branca que a trouxesse de volta ao reino dos vivos. Só então, uma outra idéia lhe ocorreu. Ao recobrar consciência, como reagiria ela ao se ver sendo levada por ele e seu povo?

Um canto suave e cheio de emoção penetrou a consciência de Serena. O latejar na cabeça diminuiu enquanto ela se concentrava na voz do homem. Ele cantava numa língua desconhecida, mas o tom envolvia-lhe a mente nublada e a confortava.

Ela lutou para acordar, para deixar a escuridão que a mantinha cativa. Havia luz no canto e, mais importante, seu coração sentia-se atraída pelo tom tranqüilizante. Serena teve consciência dos dedos e os flexionou um a um. Estava viva. Lampejos dos mineradores atacando as mulheres e as crianças vieram à tona. A cada um deles, o medo crescia e, finalmente, viu-se dependente do canto, encontrando calma na melodia.

Lobo sorriu para a sobrinha de três meses ao deitá-la na tábua-berço. Passou a entoar mais baixo ainda a canção de ninar até ver Céu da Alvorada fechar os olhinhos. A escuridão na tenda imensa só era amenizada com as chamas da pequena fogueira no centro. A fumaça subia devagar para a abertura no centro do teto. Algo fez Lobo olhar para o outro lado onde Cante Tinza estava deitada entre mantas de pele de

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búfalo.Levantou-se e cobriu a sobrinha com um cobertor de pele de veado e, depois,

aproximou-se da mulher de cabelos vermelhos. Estava inconsciente há quatro dias. Acordaria logo ou morreria? Tocou-lhe a face e notou a testa franzida. Alisou-a com a ponta dos dedos e acariciou seus cabelos cor de cobre dourado.

- Acorde, Cante Tinza - murmurou na língua dele.Em seguida, apanhou um chocalho de osso, de Céu da Alvorada, e sacudiu-o

sobre seu rosto. Embora fosse um brinquedo, ele também era usado para curar alguém com ferimentos emocionais. Lobo Negro espalmou a mão alguns centímetros de seu coração e sentiu calor. Este significava que ela levava o sofrimento físico para o espírito. Precisava se restabelecer para adquirir a vontade de viver e se negar a atravessar a Ponte do Arco-Íris.

As chamas bruxuleantes produziam luz e sombra em seu rosto. Lobo fez um círculo completo com o chocalho sobre ela enquanto cantava convidando-lhe o espírito a voltar para este reino.

Serena concentrou-se na voz do homem que lhe envolvia o coração e a alma. Emocionada, sentia-se rumando para uma luz dourada e distante. O canto era cheio de esperança e levava seu coração a expelir o sofrimento escondido. Sentiu os olhos encher com o calor e a vida das lágrimas que começaram a correr pelo rosto. Serena lutava para subir à superfície, para fugir da escuridão.

- Ah, você está me ouvindo, Cante Tinza - murmurou Lobo ao enxugar-lhe as lágrimas.

Elas eram um bom sinal e mostravam que Cante Tinza queria voltar para o mundo dos vivos. Gotas de suor brotavam em sua testa. Colocou sobre ela uma compressa molhada em água do rio e continuou:

- Não lute tanto, Coração Valoroso. Você voltará para mim. Eu lhe cantarei canções cheias de esperança e energia, um farol para iluminar sua escuridão.

Devagar, as feições foram relaxando. Ao permitir que Cante Tinza desse vazão ao sofrimento e ao medo, o chocalho executara sua magia.

Ouviu-se um arranhar na cortina de couro da entrada e Lobo foi ver quem era. Deparou-se com Mulher Corça que, enrubescendo, aceitou o convite para entrar.

- Lobo Negro, vim oferecer-lhe meus serviços.Ciente de que o confronto tinha demorado para ocorrer, Lobo acocorou-se. Na

manhã em que entrara na vila com Cante Tinza nos braços, Mulher Corça havia abafado um grito com a mão e corrido chorando para a floresta. Embora se sentisse mal, ele sabia que não poderia remediar a situação. Ela precisava compreender que

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não era amada e compartilhar seu caminho com outro homem.- Sente-se - disse ele apontando para uma pilha de peles.- Eu não queria incomodá-lo, por isso, demorei a vir.- Agradeço sua atenção, mas qual é a intenção real de sua visita?- Como vai a mulher de cabelos vermelhos? Tenho ouvido tantos comentários. É

verdade que ela está morrendo?Lobo sacudiu a cabeça.- Não. Há sinais de que vai acordar a qualquer momento.Na verdade, os boatos sobre Cante Tinza corriam de boca em boca. A reação da

vila havia se dividido. Um bom número de guerreiros e suas mulheres tinham vindo procurá-lo para dizer que a wasicun significava perigo e azar para todos. De maneira calma, ele tentava convencê-los do contrário.

- Bem, nesse caso, quero oferecer-lhe meus préstimos.Surpreso, Lobo a observou. - De que tipo?- Quando Asa Vermelha era viva, morava aqui com a filha. Ela cuidava da tenda

para você a troco de abrigo e alimento. Agora, você terá de criar a criança sem o auxílio de uma mulher. E a de cabelos vermelhos também exige atenção. Isso sem falar nas pessoas que o procuram todos os dias em busca de curas. Posso cuidar de sua sobrinha e da wasicun. - Inclinou-se para a frente e o fitou com ar de súplica. - Posso cozinhar e costurar para você, Lobo Negro, aliviá-lo de tantas responsabilidades. Já procurei suas irmãs, Estrela Vespertina e Andorinha. Nenhuma das duas pode ajudá-lo, pois têm suas famílias para cuidar.

A contragosto, Lobo deu-lhe razão.- Mulher Corça, se eu aceitar seus serviços, isso não significa que se tornará

minha mulher - declarou fitando-a com firmeza.Ela vivia num mundo de fantasias e se negava a ver que ele não a amava.Um sorriso esperançoso curvou os lábios de Mulher Corça.- Eu... Sim claro, entendo. Mas é costume de nosso povo ajudar quem precisa.

Minha mãe dispensa meu trabalho e eu me vejo sem ter o que fazer. Céu da Alvorada demanda muitos cuidados. Sei que Rola Voadora a amamenta junto com o filho, mas há muitas outras coisas que posso fazer.

Mulher Corça havia avaliado bem a situação e mostrado bom senso, reconheceu Lobo. Apontou para as mantas onde Asa Vermelha dormia e disse:

- Muito bem. Você ficará aqui até eu lhe dizer para ir embora. Terá de cuidar de Céu da Alvorada, cozinhar e costurar para nós, inclusive para ela - acrescentou com

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um gesto para Cante Tinza.- Mas ouvi dizer que tenciona mantê-la como escrava caso ela se recupere. Não

seria minha obrigação trabalhar para uma...- Cante Tinza merece nossa consideração e não ser colocada numa posição

humilhante. Seria certo recompensar coragem com escravidão?Mulher Corça não conteve as lágrimas.- Então, você pretende tomá-la como mulher quando ela ficar boa?- Pretendo permitir-lhe que tome as próprias decisões. Ela não é nossa prisioneira

- afirmou ele em tom severo.- Mas Grou Alto disse que você a declarou sua!- Isso foi para garantir-lhe a liberdade merecida por salvar nossas mulheres. Cabe

a ela resolver se fica ou se vai embora. Ao declará-la minha mulher, evito que outros guerreiros a cortejem.

- Ela é wasicun - argumentou Mulher Corça.Lobo estendeu a mão e a sacudiu pelo braço.- A meus olhos, ela é mulher, portanto, sagrada e merecedora de nossa boa

vontade e não de preconceitos.- Se ela quiser ir embora, você deixará? - Mulher Corça indagou, esperançosa.Caso cuidasse bem de Céu da Alvorada e mostrasse competência nos trabalhos

domésticos, talvez Lobo passasse a vê-la como esposa ideal.Irritado, ele respondeu:- Quando ela estiver forte o suficiente, não a forçarei a ficar.Quem sabe ela não teria família e até um marido esperando-a?, perguntou ele a

si mesmo.Baixando o olhar, Mulher Corça comentou:- Você a chamou de Coração Valoroso. Este é um nome especial que você, como

wapiya de nossa vila, escolheu.A irritação de Lobo aumentou.- Ela conquistou o direito de ser chamada assim. E pagou muito caro por isso.Percebendo a reprimenda, Mulher Corça corrigiu-se:- Você sempre mostrou sabedoria em tais assuntos. Quem sou eu para

questionar o nome escolhido? Os espíritos poderosos com quem você trabalha têm conhecimento ilimitado. Desculpe.

Devagar, Lobo levantou-se exibindo seu metro e noventa de altura. Mulher Corça tinha esqueleto pequeno como o de um passarinho e era tão frágil emocionalmente, observou ele.

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- Durma com Céu da Alvorada ao lado. Ela não acordará até o Sol Pai se levantar no horizonte. Então, a leve para Rola Voadora amamentá-la.

Mulher Corça foi tomada por uma grande alegria e sorriu.- Eu farei um bom trabalho, Lobo Negro, e você ficará satisfeito. Verá como posso

ser mãe devotada e cuidar bem da tenda.- Sou grato por sua colaboração, mas não dê mais importância ao fato do que ele

merece - recomendou Lobo ao dirigir-se a Cante Tinza a fim de observá-la mais uma vez antes de deitar-se.

Acomodada com Céu da Alvorada ao lado, Mulher Corça observou Lobo. Ao curvar-se sobre a wasicun, o rosto dele perdia a rigidez e tornava-se meigo. Sofreu ao vê-lo trocar a compressa com a maior delicadeza. Como gostaria que ele a tocasse assim. Fechou os olhos para não continuar presenciando a cena. No dia seguinte, começaria vida nova e provaria a Lobo Negro como sua pessoa lhe era indispensável.

O mesmo canto suave recomeçou na mente de Serena. O tempo não significava nada em sua luta para apegar-se a cada nota entoada pelo homem. Cada uma a envolvia como uma brisa suave despertando emoções. Numa luta atroz, Serena concentrou-se em abrir e fechar cada dedo, mas tinha a sensação de que o corpo pesava uns cem quilos.

O canto continuou intercalado pelo balbuciar de um bebê. A dor de cabeça passou e ela ouviu o riso manso de um homem. Estaria sonhando? Homens não cantavam e riam assim. Devia ser imaginação sua, calculou esforçando-se para abrir os olhos. Como fantasiar um homem cuja voz suave a lembrava de uma harpa irlandesa? A voz do bebê era mais compreensível. Ela adorava crianças.

Lobo riu outra vez observando os olhos arregalados de Céu da Alvorada. Sentado com as pernas cruzadas numa pele de búfalo, ele segurava a sobrinha acima dele e lhe sorria. Outro dia tinha se passado e Sol Pai já havia se escondido no poente. Horas atrás, Mulher Corça tinha saído dizendo que ia lavar roupa no rio e ainda não voltara. Isso lhe dava a oportunidade de brincar com a sobrinha.

Com um esforço imenso, Serena entreabriu os olhos. No início, só via uma neblina cinzenta, mas aos poucos, a visão foi se firmando. Percebeu estar num lugar escuro exceto pela luz bruxuleante de um fogo ao lado. Mal teve forças para apalpar a manta de búfalo e estranhou. Lembranças do rio e dos mineradores vieram-lhe à mente e a apreensão a dominou. Temia os homens pelo que eles seriam capazes de lhe fazer.

O som da voz do homem cantando acalmou seu terror. Erguendo o olhar, Serena viu pedaços imensos de couro sustentados por estacas altas que se juntavam no ápice

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muito acima de onde estava deitada. Onde estaria? Devagar, virou a cabeça para a esquerda e firmou o olhar.

Uma sucessão de emoções sacudiu Serena nos segundos em que seu olhar o detectou. Tratava-se de um homem, um índio calculou, sentado do lado oposto e carregando um bebê da mesma cor que ele. Arregalou os olhos ao ver as chamas refletir no corpo cor de cobre, O rosto, apesar das feições severas, demonstrava bondade. Um sorriso estampou-se nele quando o bebê começou a balbuciar.

Havia tanto vigor no homem, notou Serena amedrontada com o que ele poderia lhe fazer. O fato de ele estar seminu, com apenas uma tanga, aumentava sua apreensão. Isso sem falar na musculatura dos ombros, do peito, dos braços e das pernas. Mas não havia uma grama de gordura nele. A barriga era lisa e os quadris, estreitos. Ela nunca tinha visto uma beleza tão aterradora. Blackjack, em comparação, era flácido e fraco. Quem seria ele? Serena concluía tratar-se de um índio por causa da cor da pele e da roupa descritas por Lucinda.

A cabeça recomeçou a latejar e ela tentou levantar a mão, mas percebeu estar fraquíssima. Santa Mãe, como conseguiria escapar dessa situação? Os índios a teriam encontrado depois do ataque dos mineradores? Com toda a certeza. Sem querer, Serena suspirou.

Lobo a ouviu. Seria possível que Cante Tinza, finalmente, estivesse consciente? Virou a cabeça e sentiu como se alguém o tivesse esmurrado no peito e lhe tirado o ar. Olhos cor de esmeraldas e rodeados por densos cílios avermelhados o fitavam. Jamais tinha visto olhos tão lindos e grandes.

Todavia, algo estava errado. Perscrutando-os, ele viu dor, repulsa e medo, mas também um leve traço de meiguice. Deitou a sobrinha e a cobriu.

Serena não conteve uma exclamação ao ver o homem se mexer como um enorme animal selvagem. Desesperada, tentou se levantar.

- Não - disse Lobo estendendo a mão para ela. Seu inglês fraco limitava-se a umas poucas palavras aprendidas com vendedores ambulantes na juventude. A meio caminho, ele podia ver a repulsa de Cante Tinza.

- Não... mal. Entende?Ele vinha pegá-la. Lembranças de Blackjack surgiram-lhe na mente. Com o

coração disparado, Serena tentou se mexer. Impossível!- Não! - gemeu numa voz fraca.Lobo sentiu pânico. Via a mulher tentar, em vão, escapar. Estava muito

debilitada por passar quase uma semana sem alimentação e com apenas pouca água. Seu protesto balbuciado confrangia-lhe o coração e a barreira da língua o frustrava.

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Estendeu ambas as mãos em sinal de amizade.- Amigo. Não medo. Amigo.Aflita, ela gritou:- Afaste-se de mim! Eu te odeio!Perplexo com essa reação, Lobo virou-lhe as costas e voltou para o lado da

sobrinha. O que havia esperado? Ela era wasicun e, portanto, odiava todos os índios. Bravo, tornou a observá-la em sua luta desnecessária. Transpiração molhava-lhe o rosto e os olhos exprimiam raiva pura.

Por que se sentia tão ferido com a atitude de Cante Tinza? Por que ela lhe atingia o coração fazendo-o sentir-se mais vivo e angustiado do que nunca? Um gosto amargo invadiu-lhe a boca e ele desviou o olhar. Quem essa mulher pensava que era? Os cabelos vermelhos seriam sinais de irracionalidade? Ela não percebia que fora cuidada e abrigada? Sem dúvida, era uma criatura mimada e precisava ser tratada com energia.

Aborrecido, Lobo encarou Cante Tinza. Preparando-se para nova reação de repulsa, foi se aproximando sem desviar o olhar. Gostasse ou não, ele ia medicá-la até que se restabelecesse. Ao chegar mais perto, seus gritos foram aumentando de volume. Abaixado, Lobo inclinou-se para a frente e, só então, viu seus dedos curvados atingir-lhe o rosto como se fossem as garras de um puma acuado.

TRÊS

Lobo soltou uma exclamação ao sentir as unhas cravar na pele. Atirou-se para trás a fim de evitar um segundo ataque e, por pouco, não caiu sobre o fogo.

Com a respiração ofegante, Serena conseguiu sentar-se e viu o índio levar a mão ao rosto ensangüentado. Os olhos dele revelavam fúria e o silêncio tornou-se palpável. Seria uma questão de segundos até ele atacá-la como Blackjack o fizera. Quando seu sofrimento teria fim?, indagou-se.

A face ardia enquanto a raiva de Lobo subia como uma águia alçando vôo. Cante Tinza tremia tanto que era um milagre manter-se sentada. Os olhos verdes refletiam o pavor sentido.

Um leve ruído na cortina de entrada fez Lobo resmungar:- Entre.Com expressão preocupada, Andorinha surgiu. Arregalou os olhos ao ver o rosto

do irmão e virou-se para a mulher de cabelos vermelhos. Baixinho, murmurou:

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- Não se mexa, Lobo. Ela está amedrontada, não percebe?Disfarçando o orgulho ferido, ele pulou em pé.- Percebo que ela é tão selvagem quanto os animais da floresta.Serena olhou de um para o outro e deu-se conta de que a mulher, estendendo-

lhe a mão, tencionava protegê-la. Exausta, deitou-se.- Tiblo, não fique bravo. Eu já lhe disse que ela foi ferida por homens. Deixe eu

conversar com ela. Talvez se acalme.Andorinha ajoelhou-se e dedicou toda a atenção à wasicun. Ela já tinha soltado

as tranças para dormir quando ouvira os gritos na tenda do irmão.Lobo foi até a própria enxerga e sentou-se.- Não importa o que você faça - disse para, em seguida, abrir a sacola de couro

onde procurou um pó para passar nos arranhões do rosto.Andorinha lançou um olhar compreensivo ao irmão. - Ela está agindo com um animal maltratado, tiblo. Você precisa agir com cuidado

à volta dela para não assustá-la mais. Eu, melhor do que ninguém, a compreendo. Paciência. Vou tentar falar com ela.

Serena viu a índia aproximar-se numa atitude amistosa.- Me... ajude - murmurou. - Preciso fugir. Não posso... deixar o homem me tocar.- Psiu... amigas - Andorinha disse baixinho tendo dificuldade com o inglês. - Você,

eu, amigas. Sim? Amigas? Estaria a índia sendo sincera?- Por favor, me ajude. Não o deixe tocar em mim. - Ninguém ferir você. Nome, Andorinha. Você? - Serena.- Sena?Com a cabeça latejando, Serena fechou os olhos. - Não, Serena. Andorinha, onde estou?Com uma tigelinha de madeira, Andorinha apanhou água de uma vasilha maior.- Nós, lakota. Lembra rio? Você ajudou nós. Sede? A promessa de água levou Serena a abrir os olhos.Lembrou-se do rosto de Andorinha e do fato de que ela também fora violentada.

Condoeu-se da pobre índia.- Sim, eu me lembro do rio. - Estendeu a mão para a tigelinha. - Aceito água, por

favor.Sorrindo, Andorinha passou o braço sob seus ombros. - Amigas - repetiu dando-lhe a água na boca. - Amigas.

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Segurando um pano sobre a face, Lobo viu Andorinha cuidar de Cante Tinza como se fosse um de seus filhos. A luta e os ferimentos tinham deixado a de cabelos vermelhos fragilizada e ele foi tomado pela sensação de culpa ao perceber-se responsável por sua reação. Wapiya significava curandeiro e não, destruidor: A pobrezinha não tinha forças nem para segurar a pequena cuia de água. Andorinha teve de enchê-la mais duas vezes antes que ela saciasse a sede.

- Obrigada - Serena murmurou voltando a deitar-se. O esforço para soerguer-se e manter os olhos abertos a tinha exaurido.- Agora, dormir. Você com amigos. Precisa descansar - disse Andorinha ao cobri-

la bem e, depois, ir sentar-se ao lado do irmão.- Ela o machucou muito? - perguntou tirando o pano e examinando o ferimento.- Foi mais uma questão de amor próprio. Eu estava brincando com Céu da

Alvorada quando ela recobrou os sentidos.- Sem dúvida, ela ficou confusa.- Não, foi medo. Eu vi em seus olhos. Ela me fitava como se eu fosse uma

criatura horrorosa. Tentei falar em sua língua, explicar que era amigo, porém, ela ficou heyoka, louca.

- Não acho que sua reação seja contra você pessoalmente. Ela tem medo dos homens. De todos.

34- Isso me faz sentir melhor. Será por causa de torturas sofridas?- Exatamente.- Então, o que vou fazer? Como tratar seus ferimentos se ela tem medo de mim?- Deixe Mulher Corça ajudá-lo. A wasicun não tem medo de mulheres, você viu.Lobo fez uma careta. Por onde andaria Mulher Corça? Já deveria estar ali

dormindo. Desviou o pensamento para Cante Tinza e perguntou:- Ela se chama Sena?- Sim. Imagino se quer dizer algo.- Duvido. Os comerciantes afirmam que seus nomes não querem dizer nada

quase sempre. São ocos como os wasicuns.- Como a maioria, mas não como essa de cabelos vermelhos.- Eu me preocupo com Mulher Corça. Se ela sentir ciúmes, será capaz de

maltratar Cante Tinza.- Nesse caso, eu cuido dela.Com o braço sobre seus ombros, ele sacudiu a cabeça.- Não, você já tem muitos encargos, tanksi. - Observou-a e notou o sofrimento

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em seus olhos castanhos. Andorinha fora maltratada como Cante Tinza, porém, mostrava-se mais resistente. - E quanto a você? Conseguiu repousar depois do ataque, ou permitiu que o marido e os filhos abusassem de sua boa vontade?

Andorinha apoiou a cabeça no ombro de Lobo.- Para enfrentar a humilhação sofrida, tiblo, tenho de me manter ocupada. Dessa

forma, meus sentimentos não me sufocam. - Apontou para Serena. - Ela reflete o que se passa em meu íntimo, mas o demonstra. Agora há pouco, meu marido quis me abraçar e eu me esquivei. Nós dois ficamos chocados com minha atitude. Expliquei-lhe como me sentia por dentro, que não queria contato com homem algum desde que o minerador me forçara...

Lobo apertou o braço em seus ombros.- Sente medo agora? - indagou baixinho.- Não. Com você, só sinto paz e segurança. Mas foi sempre assim. Cante Tinza

tem sorte.- Por quê? - indagou Lobo, curioso.- Porque tem você. Quando ela se der conta do quanto você é meigo e cuidadoso,

não sentirá mais repulsa. Ela deixará de vê-lo como um homem que poderia feri-la novamente e terá uma reação mais importante, do fundo do coração. Sei que você é um guerreiro valente, realizador de façanhas famosas, mas é também um homem delicado, carinhoso. Cante Tinza intuirá isso. Com o tempo, vencerá o medo.

Lobo não tinha muita certeza, mas no momento, preocupava-se com Andorinha. Sua palidez estava muito acentuada. Como amava essa criatura altruísta e generosa, mesmo com prejuízo próprio. Ajudou-a a levantar-se e disse:

- Vamos, vou levá-la até sua tenda. Existe algo que eu possa fazer por você?Ficando na ponta dos pés, Andorinha beijou-lhe a face boa.- Você é um curandeiro tão bom que só ao me abraçar já me fez sentir melhor.

Não precisa me acompanhar. Fique com Cante Tinza.- Tenho de encontrar uma maneira de conquistar-lhe a confiança a fim de ajudá-

la.- Ora, tiblo, você é um grande wapiya, mas deve conhecer suas limitações. Dê a

oportunidade à Mulher Corça de ajudar Cante Tinza a se habituar com nossos costumes. Embora um tanto infantil, Mulher Corça não é dada à inveja e ao ciúme.

- Não, ela apenas tem sonhos impossíveis - Lobo resmungou.Já saindo, Andorinha contou:- Vi Mulher Corça conversando com Alce Ligeiro à tarde. Talvez ele a corteje com

mais persistência agora que ela está morando aqui. Se precisar de ajuda com Cante

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Tinza, me chame - acrescentou.- Caso ela recuse meus cuidados, eu a chamarei.- Lembre-se, Lobo, ela é como um animalzinho ferido. Seu grande dom como

wapiya é colocar-se nos mocassins de outra pessoa. Tente compreender seus temores e mágoas. Se alguém pode conquistar-lhe a confiança é você.

Depois da saída de Andorinha, Lobo apanhou a sacola de couro e aproximou-se de Serena. Ajoelhado a seu lado, afastou-lhe os cabelos da testa. O ferimento estava cicatrizando bem. Mulher Búfala Branca tinha respondido suas preces.

Observou-lhe o rosto de mulher orgulhosa. Os traços precisos diziam-lhe que era uma guerreira intrépida. Mas era a suavidade dos lábios entreabertos que lhe prendia a atenção. Apesar da palidez do rosto, eles continuavam vermelhos como framboesas. As pintinhas castanhas que lhe pontilhavam as faces e o nariz davam-lhe a aparência de criança.

Mesmo arriscando-se a acordá-la, Lobo puxou a coberta até a cintura. Os curativos nos seios precisavam ser trocados três vezes por dia. Graças ao pó de raiz de comfrey, as queimaduras estavam bem melhores.

Serena usava uma camisola de algodão branco que Lobo havia trocado anos atrás com um mercador. Dormia profundamente e não se dava conta dos cuidados dele. Quando o curativo estava quase terminado, Mulher Corça entrou na tenda.

- Onde você esteve? - perguntou Lobo em voz baixa para não acordar Cante Tinza.

- Fui dar uma volta - respondeu ela ao pegar Céu da Alvorada para verificar se estava molhada.

- Andorinha disse que a viu com Alce Ligeiro.- É verdade. Ele queria falar comigo. Voltei quando ouvi gritos aqui.Lobo manteve-se calado até terminar o curativo. Só então, voltou para sua

enxerga e ficou observando Mulher Corça trocar as roupas da sobrinha.- Os gritos foram de Cante Tinza. Andorinha veio me ajudar porque você não

estava aqui. Ela notou o tom de censura, mas ignorou-o.- Ela gritou porque está conosco?Lobo manteve o olhar no altar onde havia uma pena de águia dourada e um

talismã na forma de urso esculpido em pedra vermelha.- Não, ela tem medo de homens. De todos eles.Rindo, Mulher Corça comentou: - Que bobagem!

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Lobo dirigiu-lhe um olhar fulminante.- Menina tola! Como posso confiar em sua ajuda se você caçoa dos temores de

Cante Tinza? - Por que me repreende, Lobo Negro? Está bravo porque saí um pouco? Passei

horas aqui trabalhando sem parar. Cozinhei, costurei, dobrei as mantas e limpei a tenda. Ainda fui lavar roupa no rio. Não tenho direito a uns poucos minutos de descanso?

Com expressão sombria, Lobo sacudiu a cabeça. Seu instinto estava certo: Mulher Corça não podia cuidar de Cante Tinza. Mas não era por uma questão de ciúme ou inveja, mas pela incapacidade de lidar com uma pessoa em estado emocional precário.

- Muito bem, de agora em diante, você cuida apenas de Céu da Alvorada. Cante Tinza fica por minha conta - determinou ele.

Perplexa, Mulher Corça começou a destrançar os cabelos.- Está bem, se é assim que você quer, Lobo Negro.Percebeu que ele estava bravo com ela. Por quê? Ciúmes de Alce Ligeiro?

Dominada pela esperança, começou a cantar uma canção de ninar. Esse era o primeiro sinal de que Lobo se importava com ela. E quanto a Cante Tinza? Ora, se ele era wapiya muito natural que quisesse cuidar da wasicun.

Ao acordar pela segunda vez, Serena não teve problemas para enxergar logo e viu o sol filtrar-se pelas emendas do couro da tenda. Ouvindo o balbuciar e o riso da criança, virou cabeça em sua direção. Arregalou os olhos. Lá estava ele, o mesmo índio. Desta vez, calçava mocassins e perneiras e, no peito nu, exibia um colar de garras.

Serena observou-o brincar com a criança e notou-lhe a expressão meiga. Mas lembrou-se logo da feição raivosa ao ser arranhado por ela no rosto. Este tinha quatro marcas longas e estava inchado. Porém, ele não a tinha espancado como Blackjack ao sofrer a mesma reação dela. Por quê?

Como um homem que brincava amorosamente com uma criança poderia lhe fazer mal?, indagou-se embora a mente a mantivesse de sobreaviso. Imóvel, mal respirava para não mostrar que estava acordada. Onde estaria a mulher? Andorinha era seu nome? Ou ela seria uma fantasia fabricada pelo medo do homem?

Lobo intuiu que Cante Tinza estava acordada, mas não deu a perceber. Continuou brincando com Céu da Alvorada, pois temia sua reação de repulsa. Lembrando-se das recomendações de Andorinha, procurou maneiras de agir que a levassem a se acostumar com a presença dele na tenda. Com a sobrinha nos braços,

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começou a cantar baixinho. Talvez seu canto, tão apreciado pela tribo toda, fizesse Cante Tinza relaxar.

A voz grave e sonora envolveu Serena. Fechou os olhos lembrando-a como algo reconfortante nos momentos de turbulência emocional. Porém, ela vinha de um homem capaz de feri-la a qualquer momento. Passara a ser prisioneira dos sioux, refletiu ela. Mas cada nova onda de medo dissolvia-se com o canto melodioso. Aos poucos, foi relaxando.

Quando Lobo terminou, o riso de Céu da Alvorada ecoava pela tenda provocando o dele também.

Ao ouvi-lo, Serena ficou tensa novamente. Abriu os olhos e encarou-o deixando-o confuso quanto ao que fazer. Dedicando toda a atenção à sobrinha, Lobo tentou ignorar Cante Tinza.

Serena sentiu a garganta contrair-se. O homem a tinha olhado, mas não a atacara. Ela respirou fundo e tornou a fechar os olhos, ficando na expectativa. Como os minutos passassem e nada acontecesse, ela resolveu espiar.

- Agora, pequenina, vamos procurar Mulher Corça. Talvez ela a leve para passear na beira do rio.

Enquanto falava, Lobo não olhava para Cante Tinza e movia-se bem devagar para não assustá-la. Ninguém -se movimentava perto de um cavalo selvagem e, como tal, pretendia tratá-la. Saindo da tenda, ele dirigiu-se às fogueiras no centro da vila onde as mulheres cozinhavam. O dia estava quente e o sol brilhava no céu azul. Pássaros cantavam, sinal de que inimigo algum se aproximava do acampamento.

Ao passar pela tenda de Andorinha, viu-a do lado de fora tirando a pele de um coelho caçado pelo marido.

- Tiblo? - disse ela quando o viu.- Estou procurando Mulher Corça - respondeu ele ao notar a aparência melhor da

irmã.Mentalmente, ele agradeceu a Wankan Tinza, o Grande Espírito.- Ela está por aí.- Quero que ela cuide de Céu da Alvorada. Cante Tinza acordou e preciso tentar

que fale comigo.- Não ouvi grito nenhum - comentou Andorinha.- Por enquanto. Tenho certeza de que ela gritará. Caso isso aconteça, você irá me

ajudar? Mulher Corça não vai servir nesse caso.- Claro, eu irei. Deixe Céu da Alvorada aqui. Minha filha mais velha tomará conta

dela até Mulher Corça aparecer.

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Sabendo da vida trabalhosa da irmã, Lobo hesitou. Sentia-se dividido entre procurar Mulher Corça e cuidar de Cante Tinza.

- Deixe a criança, tiblo. Ela ficará bem conosco.- Está bem. Agora vejo por que um guerreiro mais velho não se interessa por

Mulher Corça. Ela é muito infantil e não assume responsabilidades de mulher adulta.- Pare de reclamar, Lobo, e volte logo para sua mulher de cabelos vermelhos.Com passos vagarosos e olhando à volta, Lobo iniciou o caminho de volta. Em

todos os lugares, via mulheres curtindo peles, costurando, cozinhando e crianças brincando. A maioria dos homens tinha ido caçar. Um pouco de seu nervosismo abateu-se graças à tranqüilidade reinante na vila.

Serena olhou para a entrada da tenda quando ouviu o ruído da cortina abrindo-se. Ao ver o mesmo índio entrar, arregalou os olhos e crispou as mãos. Havia uns cinco metros entre ambos, ou melhor, entre o ataque ou a paz.

Lobo estendeu as mãos.- Nome Lobo Negro. Eu não mal para você. Entende?Pela primeira vez, Lobo lamentou não ter se esforçado mais para aprender inglês

na juventude com os vendedores ambulantes. Apreensivo, ele viu medo e raiva refletidos nos olhos verdes. O silêncio era profundo e ele preparou-se para seus novos gritos.

Serena lutou para sentar-se. A manta escorregou para o colo revelando a camisola branca. Vendo-a, olhou para Lobo Negro. O rosto severo não combinava com a voz suave. Em que deveria acreditar? Na sinceridade do tom ou na atitude ameaçadora? E quem a teria despido para vestir a camisola?

Lobo viu-lhe a indecisão no olhar. Andorinha tinha razão. Ele precisava usar seu lado de wapiya, o que lhe permitia intuir. A sensibilidade nunca o deixara enganar-se, por isso, guiou-se pelo coração. Bem devagar, como se estivesse lidando com um cavalo a ser domado, ele acocorou-se mantendo as mãos estendidas.

- Sena?- Como sabe meu nome?- Minha irmã, Andorinha. Você falou ela ontem.Os braços de Serena já doíam por sustentar-lhe o peso sentada e ela sentia a

cabeça leve. Mesmo assim, tentou erguer mais os ombros.- Fique longe de mim!Ao ouvir a voz rouca num misto de raiva e súplica, Lobo estremeceu.- Você segura aqui. Eu... ninguém mal para você.Virgem Santa, como gostaria de acreditar nele! Via bondade nos olhos vivos e

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grandes, mas como confiar nessa única evidência?- Não acredito em você!Embora impaciente com sua teimosia, Lobo prosseguiu em tom calmo:- Eu sou Lobo Negro. Você mora aqui. Eu quero você boa.Ele censurou-se pela maneira cadenciada de falar e o tom não passou

despercebido a Serena.- Se você encostar um dedo em mim, vou lutar até morrer. Nenhum homem

jamais voltará a tocar em mim! Ouviu bem? - acrescentou ela.Lobo pulou em pé e recuou, o peito arfando de raiva e mágoa. Mulher estúpida!

Não percebia que ele a estava tratando com bondade e cuidado? Ouviu alguém entrar na tenda fazendo-o voltar a si. Era Mulher Corça com a sobrinha.

- O que aconteceu?- Tudo! - esbravejou Lobo ao dirigir-se à saída. - Fique aqui de uma vez por todas

e cumpra sua obrigação! Volto mais tarde.Perplexa com tal explosão, Mulher Corça acomodou o bebê na tábua-berço e

dirigiu-se à wasicun. Embora não soubesse inglês, queria falar com ela de alguma forma.

Sentada, Serena observou a moça com um vestido de couro de gamo, bordado com contas coloridas na pala. Seu rosto demonstrava animação ao aproximar-se.

Sorrindo, Mulher Corça encheu a cuia de água e ofereceu-a:- Mni? - Colocou-a entre as mãos da wasicun e repetiu: - Mni?Serena lançou-lhe um olhar agradecido e, avidamente, sorveu a água. Estava

morta de sede. Com olhar encorajador, Mulher Corça tomou a cuia e tornou a enchê-la.

- Mni?- Mni - repetiu Serena.Um sorriso de triunfo estampou-se no rosto da outra.- Han, mni. - Sim, água.Com a sede saciada, Serena olhou à volta. Sem dúvida, estava numa tenda de

couro. Era circular, grande e muito em ordem. Havia um fogo no centro cuja fumaça escapava pelo buraco no alto. Peles dos tipos mais variados cobriam o chão. O fato de haver três enxergas a fez se sentir melhor. Seria esta mulher esposa de Lobo Negro? Com certeza, pois cuidava do bebê na tábua-berço com toda a meiguice.

Ansiosa por ajudar Cante Tinza, Mulher Corça apanhou um espeto onde havia carne de coelho cozida. Ajoelhou-se a seu lado e ofereceu.

- Yuta - disse fazendo movimentos com a boca para ilustrar a palavra e dando-lhe

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um pedaço da carne.Yuta devia significar comer, concluiu Serena aceitando o petisco. Estava faminta

e o coelho parecia apetitoso. Além do mais, precisava recobrar as energias. A carne estava macia e suculenta, mas os maxilares e a cabeça doíam com a mastigação.

Nesse instante, Lobo voltou e observou a cena.- Veja, Lobo Negro, ela está comendo - anunciou Mulher Corça sem esconder o

orgulho e certa de conquistar-lhe as boas graças.Com um maço de raízes secas nas mãos, Lobo sentou-se.- Finalmente, você resolveu assumir seus deveres - resmungou ao colocar as

raízes numa pedra achatada e começar a moê-las com outra.- Fui apanhar galhos de salgueiro para tecer cestas - respondeu ela em tom

ressentido.- Sei, é deixou minha sobrinha para trás. Não quero Andorinha tomando conta de

Céu da Alvorada só porque você não cumpre suas obrigações. Da próxima vez, leve-a com você.

- Mas é difícil cuidar dela e pegar os galhos ao mesmo tempo. Quando saí, todos dormiam e eu não quis acordar a criança.

Cada movimento com a pedra dava vazão à frustração de Lobo. Relanceou o olhar por Cante Tinza. Ela estava com expressão sombria e de desconfiança. Maldito o dia em que a tinha encontrado! Todavia, ele ansiava em fazer contato com ela como mulher e não como um cavalo selvagem. Isso o consumia. Ela perseguia cada pensamento seu quando estava acordado e, dormindo, sonhava com ela em seus braços. Se alguém soubesse das fantasias tórridas, riria dele. Apenas jovens guerreiros apaixonavam-se assim. Não homens de sua idade e importância na tribo.

Serena viu lágrimas nos olhos da moça depois de Lobo lhe atirar palavras ásperas. Não as entendeu, apenas percebeu o tom irritado. Seria fácil erguer uma barreira de ódio contra o índio por causa de sua maneira de tratar a esposa. Porém, ela surpreendeu-se com a reação do coração. Lembrava-se de como seu canto havia lhe amenizado a dor e o medo. Também não podia ignorar a bondade de seu tom e do olhar ao tentar estabelecer amizade entre ambos.

- Não quero mais, obrigada - disse à moça acompanhando as palavras com gestos.

Mulher Corça tirou o resto da carne do espeto e a colocou num caldeirão de couro para, mais tarde, preparar um ensopado. Pelas olheiras profundas de Cante Tinza, ela estava exausta.

- Asnikiya - disse endireitando a manta.

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- Sinto muito, não entendi - murmurou Serena.- Ela fala "descansa" - Lobo resmungou em inglês.Embora amedrontada com o tom de voz, Serena o encarou. O temperamento

irlandês a instigava a responder, contudo, o índio poderia se aproximar e lhe dar uns tapas. Mordeu as palavras de raiva, deitou-se e agradeceu mais uma vez à jovem solícita.

O ciúme dominou Lobo. Não se conformava com a habilidade de Mulher Corça em angariar a confiança de Cante Tinza. Sua voz rouca o perseguia. Como seria dominar o fogo de seu espírito e levá-la a se entregar a ele? Queria tomá-la como esposa e ter filhos com ela. Apesar das torturas sofridas nas mãos dos wasicuns, seu espírito continuava firme e o comovia poderosamente.

Relanceou o olhar por Cante Tinza. Seus cabelos vermelhos rodeavam-lhe o rosto fino formando uma auréola brilhante. Como gostaria de penteá-los com suas costas viradas para ele. Havia muitas maneiras de um homem demonstrar amor a sua mulher. Desejava mostrar-lhe que nem todos os homens eram maus e brutos. Nem todos eles tomavam algo sem retribuir.

Não, pensou Lobo. Eu lhe provarei que um homem pode ser tanto amante como amigo. Ela não há de querer ir embora. Eu a farei ficar. De alguma forma, a convencerei a ficar e se tornar minha esposa...

QUATRO

Serena acordou com o próprio grito e, assustada, sentou-se. Havia tido um pesadelo horrível com Blackjack e estava banhada em transpiração. Não havia ninguém na tenda exceto o bebê que, na tábua-berço, choramingava. Ela não fazia idéia da hora, mas via o reflexo do sol nas emendas dos couros.

Embora agitada, Serena percebeu estar menos fraca, talvez graças à bondade da moça ao dar-lhe carne na véspera à noite. Focalizou a atenção no bebê que passara a chorar alto e forte. Isso a fez mexer-se. Por que a mulher do índio tinha deixado a criança sozinha? A tábua-berço não estava muito longe do fogo e uma fagulha poderia incendiar a manta de pele, percebeu.

Devagar, Serena pôs-se de joelhos e afastou os cabelos do rosto. O choro da criança aumentou e ela engatinhou até a tábua-berço.

- Oh - murmurou baixinho ao curvar-se sobre ela.O bebê estava bem enrolado na manta e apenas seu rosto redondo aparecia.

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Afastou a pele e apalpou-a percebendo que a criança estava molhada.- Ah, já sei por que está chorando. Precisamos dar um jeito nisso.Ao ver a fralda de couro macio de corça nova, forrada com chumaços de tabua,

Serena surpreendeu-se de como os índios utilizavam recursos da natureza com resultados tão bons quanto os de uma fralda de pano. A do bebê prendia-se com nós nas laterais. Num instante, tirou-a.

Sentou-se no chão e pôs o bebê no colo que, parando de chorar, a fitava com fascinação.

- Sou diferente, não é? - perguntou ao aninhá-la entre os braços.Os seios ainda doíam bastante, mas ignorou a dor, pois sabia que bebês sentiam-

se seguros e amados quando aconchegados ao peito da mãe. A tenda estava quente por causa do fogo, mas mesmo assim, Serena temia que a criança passasse frio. Apanhou a manta da tábua-berço e cobriu-a bem.

O bebê balbuciava satisfeito e, levantando as mãozinhas, agarrou os cabelos longos de Serena. Esta sorriu.

- Você é uma belezinha - murmurou ao beijá-la na testa e respirar fundo.O coração de Serena expandiu-se com a preocupação maternal pela criança

indefesa. Entretida, já nem se lembrava mais do pesadelo. Encantava-se com os dedinhos ágeis que exploravam seus cabelos.

A cortina de entrada abriu-se e Serena, tensa, arregalou os olhos. Era o mesmo índio. Estava vestido com uma camisa e perneiras de couro de gamo. A tanga, de lã vermelha, chegava ao meio das coxas. A pala da camisa era bordada com espinhos de ouriço tingidos de vermelho, amarelo e azul. Ele usava uma gargantilha de osso branco com uma concha cor-de-rosa no centro e um outro colar com um único dente grande.

Lobo parou à entrada da tenda. Viu Cante Tinza, tensa, sentada com Céu da Alvorada nos braços. Os imensos olhos verdes estavam alertas. Percebendo que mantinha a cortina aberta e deixava o calor escapar, ele entrou e a fechou. Onde estaria Mulher Corça?

Ela havia prometido levar a criança com ela. Teria largado-a outra vez?Com cuidado, abafou a raiva, pois sabia que Cante Tinza a intuía e amedrontava-

se. Devagar, sentou-se na própria enxerga não muito longe dela. A necessidade de fazerem contato o afligia. Pôs de lado o coelho acabado de caçar e dedicou toda a atenção a ela.

Apontando para si mesmo, disse:- Lobo - e, para ela em seguida, indagou: - Sena?

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Com a boca seca, Serena apertou o bebê de encontro ao peito. O olhar sério do índio a inquietava. Mas ele repetiu o nome de ambos e, criando coragem, Serena murmurou:

- Lobo?A satisfação estampou-se no rosto dele.- Han, sim. Lobo. Você, Sena?- Sena não. Serena.A voz trêmula e rouca crepitou-lhe nos ouvidos. Inglês não era uma língua fácil.

Não se usava o som do r em lakota e ele achava difícil pronunciá-lo.Levantando o olhar, fitou-a.- Senam?Serena relaxou em parte ao ver as feições de Lobo perder a rigidez. Mas a

curiosidade do olhar a mantinha de sobreaviso.- Serena.Sacudindo a cabeça, ele fez um gesto de impaciência com a mão. Depois,

apontou para ela e disse:- Coração. Eu não diz outro nome. Cante Tinza, Coração Valoroso.O bebê balbuciava, satisfeito com a atenção e os dedos perdidos no emaranhado

dos cabelos de Serena. Percebendo o esforço de Lobo para se comunicar com ela, Serena repetiu:

- Coração?- Sim, Cante, Coração. Valoroso. Cante Tinza- Tinza? Valoroso?Feliz, Lobo sacudiu a cabeça.- Sim, Você Coração Valoroso. Cante Tinza, não Sena.- Sou Cante Tinza?- Sim!O prazer sentido irradiava-se das feições de Lobo e, por um instante, Serena

sentiu-lhe a alegria de comunicar-se com ela. Coração Valoroso. Era um nome lindo, intrépido. Andorinha também tivera dificuldade em pronunciar Serena. Não faria mal deixá-los chamá-la como quisessem, afinal, era prisioneira deles.

Olhou para o bebê e explicou:- Ela estava molhada, por isso, a tirei do berço.Falara depressa e palavras demais para Lobo entender. Frustrado, ele sacudiu a

cabeça num gesto negativo.Serena apontou para o bebê e Lobo disse:

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- Céu da Alvorada.- Céu da Alvorada.- Sim.Serena apontou para o bumbum do bebê e para a fralda ao lado.- Molhada.- Ah - murmurou ele e, para mostrar ter entendido, levantou-se e apanhou a

sacola de fraldas. - Veja - convidou ele ao expor o conteúdo.Serena olhou e, ao ver fraldas e chumaços de tabua, deu-se conta de que Lobo

tentava ajudá-la a cuidar da criança. Sacudiu a cabeça dizendo:- Compreendo.Novamente movendo-se devagar, ele tirou a fralda molhada da tábua-berço e

esticou uma limpa e seca forrada com chumaços da tabua. Olhando para Cante Tinza, estendeu as mãos num pedido silencioso para que ela lhe passasse Céu da Alvorada.

Serena atendeu-o, mas com os dedinhos presos em seus cabelos, a criança a forçou a se inclinar para a frente. O coração disparou ao permanecer perto de Lobo enquanto soltava os dedos de Céu da Alvorada.

- Cabelo como fogo - elogiou Lobo em tom de galanteio.Cante Tinza estava muito perto e ele percebeu a importância do momento.

Admirava-lhe a delicadeza para soltar os dedos do bebê.- Pilayama - obrigado.Serena viu Lobo oferecer-lhe um sorriso nervoso e mais um fiapo de sua

apreensão dissipou-se. Mas voltava a sentir-se fraca. Para alívio seu, o índio vestiu a fralda limpa na criança e acomodou-a na tábua-berço. Devagar, ela voltou para sua enxerga onde sentou-se cobrindo-se com a manta de pele.

Então, ele se chamava Lobo. Admirava-se de que um homem tão grande lidasse com um bebê tão delicadamente. Quando ele se virou de frente, fitaram-se, mas Serena baixou os olhos depressa. Os dele exibiam um brilho inquietante. Seria atacada agora?

- Comida?Serena ergueu a cabeça. Viu Lobo pegar outra sacola de onde tirou um pedaço

de carne seca que lhe ofereceu.- Tatanka, búfalo. Coma.Com a boca cheia de água, ela aceitou, mas tomou cuidado para não tocar-lhe os

dedos.- Obrigada.Com esforço, Lobo afastou-se. Cante Tinza estava muito pálida o que o

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preocupava. Ela precisava se alimentar bem a fim de recobrar as energias. Primeiro, ele encheu a tigelinha de água e, depois, apanhou um bolo de wasna, feito com carne seca socada com gordura animal, uma preciosidade na dieta de seu povo. Mas Lobo sabia o quanto Cante Tinza precisava recuperar as forças.

Onde estaria Mulher Corça? Aborrecido com a ausência da jovem preguiçosa, ele dirigiu-se à saída. Mas antes de abrir a cortina, virou-se.

- Dormir, Cante Tinza.Como Lobo sabia que ela estava com sono? Engolindo o último bocado de carne,

Serena concordou com um gesto de cabeça.- Sim, vou dormir.- Washtay, bom. Volto mais tarde. Você segura.A voz, revelando preocupação, a envolveu. Desejava ardentemente confiar em

Lobo, mas tratava-se de um homem e, ainda por cima, de um índio. Serena não sabia nada sobre os sioux além das histórias contadas por Lucinda e Blackjack. Embora a escrava se referisse a eles com piedade, o minerador tinha lhe enchido a cabeça com descrições de torturas. Segundo ele, os sioux tiravam o escalpo dos brancos e violentavam suas mulheres. Lobo saiu tão silenciosamente quanto entrara e ela viu-se sozinha outra vez.

Lobo foi à procura de Andorinha que se ocupava curtindo uma pele de veado para fazer mocassins.

- Viu Mulher Corça? - indagou ele, irritado, ao se aproximar.A irmã olhou-o por sobre o ombro.- Vi, sim. Ela estava na garupa da montaria de Alce Ligeiro. Ele ia caçar coelhos,

eu acho. Por quê?- Não se pode confiar em Mulher Corça - respondeu ele para, em seguida, contar

o ocorrido na tenda com Cante Tinza e Céu da Alvorada.- Então ela falou com você?! - Andorinha perguntou, animada.- Sim, a sua maneira.Lobo sentiu o frio da manhã e viu o Pai Céu pontilhado de espíritos de nuvens

brancas. Não importava o tempo, a vila tinha de mudar o acampamento logo, antes de acharem os corpos dos mineradores na beira do rio e da cavalaria dos homens brancos vir atacá-los. Ouviu a irmã rir.

- Do que está achando graça?- De você, tiblo. Cada vez que menciona Cante Tinza, você lembra um velho lobo

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solitário e ranzinza. Ela vai confiar em você aos poucos. Agradeça ao Grande Espírito por ela gostar de crianças, caso contrário, Céu da Alvorada ainda estaria molhada.

- Tem razão. Sabe, ela não chorou no colo de Cante Tinza.Andorinha fitou o irmão carinhosamente.- Lobo, não fique com esse ar infeliz. A situação já está melhorando..E se Mulher

Corça continuar a ignorar seus deveres, por que não deixar Cante Tinza cuidar de Céu da Alvorada?

Talvez. A idéia era boa.- Mas Cante Tinza ainda está fraca e também requer atenção. Ela precisa ir à

tenda do suadouro e lavar os cabelos. Isso a fará se sentir melhor.- Por que não deixa Mulher Corça ajudá-la a fazer isso? - Andorinha sugeriu.Percorrendo o olhar pelo acampamento, Lobo resmungou:- Caso ela volte a tempo!- Se Cante Tinza acordar e Mulher Corça ainda não tiver aparecido, eu a ajudarei.Lobo já ia protestar, mas deu de ombros.- Cante Tinza não confia em mim o suficiente para eu ajudá-la.Com um sorriso, Andorinha acrescentou:- Nesse caso, tiblo, eu cuidarei dela.

Dessa vez, Serena acordou calmamente. O sol forte batia nos couros da tenda e criava uma claridade dourada no interior. Sentindo-se melhor, ela espreguiçou-se e olhou à volta. Estava sozinha exceto por Céu da Alvorada cuja tábua-berço alguém tinha posto ao lado de sua enxerga. Teria sido Lobo? Firmada no cotovelo, Serena sorriu e tocou a criança na face.

- Você acordada.Surpreendida, Serena puxou a mão depressa. Como sempre, Lobo tinha entrado

silenciosamente e estava parado à entrada. Devagar ela sentou-se e o observou. 0 rosto tinha perdido a máscara de indiferença e parecia menos amedrontador. Talvez fosse a expressão meiga do olhar. Lobo parecia satisfeito que ela estivesse prestando atenção ao bebê.

Ela o viu aproximar-se sorrindo e acocorar-se perto da tábua-berço.- Eu pôr Céu da Alvorada perto você - explicou com dificuldade em inglês.- Tudo bem - murmurou Serena incapaz de continuar fitando-o.A expressão dominadora dele a deixava em pânico.Observou-lhe as mãos grandes, de dedos longos. Pela virilidade que exalava, ele

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era extremamente delicado.- Cante Tinza, você precisa limpar.- O quê?Lobo fez gestos como se estivesse se lavando.- Lavar?- Andorinha leva você para suar e lavar cabelo - explicou ele tocando nas

próprias tranças.Serena concordou com um gesto de cabeça. Desejava muitíssimo tomar um

banho e lavar os cabelos. Satisfeito, Lobo levantou-se. Estava contente porque Cante Tinza não o fitava como se ele fosse atacá-la. Cantarolando baixinho, dirigiu-se à saída para ir buscar Andorinha. Cante Tinza imaginava o quanto ele a achava linda?, indagou-se. Ansiava pela oportunidade de lhe dizer isso. A barreira da língua era muito frustrante. Precisava ensiná-la a falar lakota depressa para poderem se comunicar melhor.

Serena tinha trocado a fralda de Céu da Alvorada quando Lobo voltou com Andorinha. Sorridente, a jovem índia aproximou-se.

- Você parece muito melhor. E cuidou do bebê - disse ela em inglês.Serena sorriu, pois a espontaneidade de Andorinha a fazia sentir-se segura.- Eu só troquei a fralda molhada.- Vou ajudar limpar você. Vamos.Enquanto saíam, uma outra índia entrou na tenda. Sem largar o braço de

Andorinha que a amparava, Serena perguntou:- Quem é?- Rola Voadora. Ela dá leite para Céu da Alvorada.- Ah, entendo.Embora com o braço de Andorinha em sua cintura, Serena dava passos pequenos

sentindo insegurança nas pernas fracas. Admirava-se ao ver, pelo menos, cinqüenta tendas ao longo do rio raso. Andorinha a conduziu por uma pequena ladeira que desceram do outro lado chegando a uma área protegida por álamos.

Serena viu uma palhoça de ramagens de salgueiro coberta com dois couros de búfalo. O rio corria perto dali, mas atrás das touceiras de junco. Ao lado, uma mulher idosa, de cabelos brancos, cuidava de uma fogueira com várias pedras entre as chamas.

- Esta é a tenda do suadouro - Andorinha explicou deixando Serena sem seu amparo junto à entrada.

Em seguida, tirou o vestido de couro de gamo, que pendurou num galho ao lado,

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e ficou nua.- Vamos - disse a Serena gesticulando para que se despisse também.Serena não fazia idéia do que ia acontecer. Ficar nua num lugar aberto era

inconcebível! Além do mais, tinha vergonha das queimaduras nos seios. O que as mulheres lakotas pensariam? Andorinha sorriu e ajudou-a por saber que estava muito fraca. Sem escolha, Serena respirou fundo e confiou na jovem índia. Preparou-se para a reação das duas ao ficar nua, com seios bem expostos.

A velha mulher começou a falar depressa e a apontar-lhe para as queimaduras. Mas como era em lakota, ela não entendeu. As feições da senhora indicavam comiseração ao aproximar-se e pôr a mão em seu ombro. Serena ficou com os olhos cheios de lágrimas enquanto as duas comentavam as queimaduras que ainda estavam vermelhas, inchadas e vertendo líquido.

- Ursa Sonhadora diz que tem icahpe hu, raiz de rudbeckia roxa que ajuda a curar queimaduras e quase não deixa cicatrizes. Ela diz que vai buscar o pejuta, remédio, depois de cuidar das pedras na fogueira.

Reprimindo as lágrimas, Serena comoveu-se com o ar de sinceridade e preocupação das duas. A vergonha por estar nua começou a dissolver-se ao perceber que as mulheres encaravam o fato com naturalidade. Tocou-as nos ombros num sinal de agradecimento e murmurou:

- Eu gostaria muito de experimentar o remédio.- Washtay, bom - disse Andorinha.Com gestos para Serena acompanhá-la ao interior da palhoça baixa e côncava,

entraram engatinhando. Movendo-se da esquerda para a direita, Serena acompanhou Andorinha à volta do buraco do fogo. Depois de os olhos acostumar à penumbra, ela viu uma grande concha de madeira numa cesta de casca de bétula cheia de água, um tubo e artemísia cuidadosamente enrolada. Mais ramos de outro tipo dessa erva espalhavam-se pelo chão a fim de perfumar o ambiente. Serena observou Andorinha pendurar pequenas trouxas num galho de salgueiro acima delas, entrelaçando-as e separando-as.

- Elas contém tabaco e eu as fiz para você. Cada uma é uma oração a Wankan Tanka, o Grande Espírito, para que você se restabeleça e fique forte. Quando os espíritos entrarem na tenda, nós rezaremos para que minhas preces por você sejam respondidas - explicou Andorinha ao sentar-se e entregar raminhos de artemísia para Serena. - Coloque isto atrás da orelha esquerda. É para dizer aos espíritos que sua intenção de estar aqui, na tenda de Ina Maka, Terra Mãe, é séria. Se ficar muito quente para você, faça uma bola de artemísia e a coloque diante da boca e do nariz e

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só respire através dela. Dessa forma, você inalará a santidade desta erva poderosa, o que também é restaurador.

Serena concordou com um gesto de cabeça. Em seguida, viu Andorinha pegar mais artemísia e começar a esfregar o corpo com ela. Seguiu-lhe o exemplo. Ao terminar, sentia-se envolvida pelo aroma da planta. Sentada sobre as pernas cruzadas e nua, foi dominada pela sensação de bem-estar.

Ursa Sonhadora começou a trazer, uma a uma, as pedras incandescentes. As sete primeiras, foram abençoadas por Andorinha, empunhando o canudo, antes de serem colocadas no buraco do fogo. Ela disse a Serena para pôr um pedacinho de artemísia em cada uma e para recebê-las como parentes. Tratados com tal respeito, os espíritos das pedras exerceriam seu poder mágico de cura. Em pouco tempo, havia vinte pedras no buraco.

Então, a cortina de entrada foi fechada deixando a tenda em total escuridão. Em questão de instantes, Serena começou a transpirar. Ela ouviu Andorinha apanhar água com a concha e esborrifá-la nas pedras. Ao mesmo tempo, chiado e vapor encheram o ar. Com a transpiração escorrendo, Serena fechou os olhos.

Os minutos transcorriam enquanto Andorinha entoava uma canção lakota atrás da outra. Sob os efeitos do ambiente e da voz, Serena foi tomada por sensações estranhas e maravilhosas. Elas lhe provocavam tranqüilidade. Era como se houvesse uma presença viva na escuridão.

As duas permaneceram na tenda da transpiração durante quatro ciclos. No fim de cada um, a cortina de entrada era aberta a fim de deixar escapar o vapor. Então, novas pedras eram colocadas no fogo, mais água Andorinha esborrifava nelas, já com a cortina fechada outra vez. No final do quarto ciclo, Serena sentia um novo tipo de energia, algo indefinível. Depois de engatinhar para fora e ficar em pé com o auxílio das duas mulheres, sentia-se renascida.

Elas a levaram ao rio e jogaram-lhe água para livrá-la da transpiração provocada pela cerimônia na tenda. Em seguida, a fizeram se ajoelhar na margem e esfregaram seus cabelos com hupestola, erva-saboeira. Ursa Sonhadora usou bergamota silvestre, de aroma delicado, quando enxaguou-lhe os cabelos, deixando-os limpos e perfumados. A essa altura, Serena sentia-se muito fraca, por isso, as mulheres a enxugaram, enrolaram num cobertor e a fizeram se sentar numa pedra.

Ursa Sonhadora afastou-se um pouco e voltou com raiz de rudbeckia roxa amassada com gordura de urso.

Com a maior delicadeza possível, ela espalhou a pomada nas queimaduras dos seios de Serena, ao mesmo tempo em que murmurava sons acalentadores.

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Finalmente, cobriu os ferimentos com uma pelica finíssima para garantir o efeito da poção sobre eles.

Serena gostaria muito de saber lakota a fim de agradecer a Ursa Sonhadora. A velha senhora a tratava como se ela fosse uma criança assustada. A seguir, elas lhe puseram um vestido de couro de gamo, de um bege dourado e com bordados de contas nos ombros e ao longo das mangas. A movimentação toda fez Serena sentir-se, de repente, atordoada.

Andorinha a fez sentar-se outra vez e lhe calçou perneiras altas e mocassins. Virou-se para Ursa Sonhadora e avisou:

- Vou buscar Lobo. Ela está muito fraca para andar e nós não podemos carregá-la.

Serena viu Andorinha se afastar e tocou nos cabelos emaranhados, mas limpos e perfumados, que lhe caíam pelos ombros. Com lágrimas nos olhos, fitou a velha mulher ao lado.

- Obrigada, Ursa Sonhadora.Embora não entendesse as palavras, a índia compreendeu-lhes o sentido e

sorriu. Num gesto carinhoso, tocou Serena no ombro.Andorinha voltou acompanhada de Lobo. Ele tentou reprimir a surpresa ao ver

como Cante Tinza estava linda. O dourado do vestido e os cabelos vermelhos ressaltavam-lhe a alvura da pele. Como já soubesse como se aproximar dela, estendeu as mãos e a convidou:

- Vamos embora?Serena fitou Andorinha com ar inquieto e tentou erguer-se.- Não! Eu posso ir andando!O protesto não surtiu efeito. Lobo ergue-a nos braços e não prestou atenção ao

seu gritinho de alarme.- Você segura, Cante Tinza - garantiu Andorinha ao segurar-lhe a mão e

acompanhá-los.Lobo alarmou-se ao perceber como estava leve. Virou-se para a irmã e

perguntou:- Você tem ensopado em casa?- Tenho. Para Cante Tinza?- Como sempre, você lê meus pensamentos.- Vou mandá-lo por uma de minhas filhas. Deixe-a comer à vontade -

recomendou Andorinha.Mortificada por não ter forças para andar, Serena sentiu-se aliviada quando Lobo

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a pôs no chão à entrada da tenda. Tentou ignorar-lhe a mão que ainda a amparava pelo braço e não sentir medo. Tão logo se sentou na enxerga, Lobo a largou e, depois, tirou um pente de osso de alce de uma das sacolas.

- Olhe - disse fazendo gestos para ela pentear os cabelos.Atônita com a sensibilidade dele quanto a suas necessidades, Serena aceitou o

pente. Tomou um punhado de cabelos e começou a desembaraçá-los.Alguns minutos mais tarde, uma menina de uns dez anos entrou com uma panela

de ensopado e a colocou no fogo. Em silêncio, saiu em seguida. Lobo ocupou-se em mexer a comida e, de vez em quando, observava Cante Tinza. A certa altura, percebeu que ela contraía o rosto ao tentar pentear o topo da cabeça. Obviamente, sentia dor nos seios ao levantar o braço.

- Aqui - disse Lobo estendendo a mão e pedindo o pente.Embora hesitante, Serena o entregou. Devagar, Lobo fez menção de penteá-la.- Segura - murmurou ele quando os dedos mal tocaram sua cabeça.Sentiu-a estremecer e encolher-se. Ela agia como um cachorro espancado.

Condoeu-se dela e tornou a murmurar:- Segura.Começou a correr o pente pelos cabelos úmidos, tentando desembaraçá-los. Aos

poucos, Cante Tinza relaxava e, então, ele lembrou-se de como seu canto a acalmava quando ela vagava pela escuridão da inconsciência.

Serena ouviu o som suave e baixo da voz de Lobo começar a cantar enquanto a penteava. Fechou os olhos e enterneceu-se. Cada vez que os dedos dele lhe tocavam o couro cabeludo, a pele arrepiava-se numa reação estranha. Ela não se encolhia mais e nem crispava as mãos, ao contrário, erguia mais os ombros cada vez que o pente deslizava por seus cabelos.

Serena nunca havia sido tocada por um homem até Blackjack a violentar. Jamais esqueceria seus gestos agressivos e cruéis. Agora, admirava-se das mãos enormes de Lobo a penteá-la com imensa delicadeza. Emoções confusas começaram a borbulhar em seu íntimo e ela não sabia como reagir. Só podia absorver o contato ocasional com os dedos de Lobo e ouvir-lhe o canto maravilhoso que alimentava sua alma faminta.

Lobo percebia a magia do canto operada em Cante Tinza. Ela não estava mais pálida, mas tinha as faces rosadas. E os lábios, antes comprimidos, entreabriam-se. Ele, por sua vez, vibrava ao sentir os cabelos fortes entre os dedos. .

Finalmente, eles estavam penteados e caíam sobre seus ombros como uma capa flamejante. Lobo baixou as mãos e quase perdeu o fôlego ao fitar Cante Tinza. Os olhos verdes estavam brilhantes e sem a sombra do medo. Do fundo do coração, ele

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agradeceu à Mulher Búfala Branca. Gostaria de tocar-lhe os lábios com as pontas dos dedos e sentir sua textura.

Lobo dominou a tentação, pois não queria destruir a frágil confiança surgida entre eles enquanto cantava e lhe penteava os cabelos. Devagar, apontou para as própria tranças e, depois, para seus cabelos. Ela não teria forças para trançá-los, mas ele o faria.

Ainda sob o efeito do canto, Serena hesitou. Mas consciente da fraqueza dos braços e da dor nos seios, concordou:

- Sim... por favor?Uma parte sua gostaria de sentir novamente o toque delicado dos dedos de

Lobo. Ela viu a alegria estampar-se nos olhos negros e um sorriso curvar-lhe os lábios. Era como se o próprio sol brilhasse sobre ela. Dessa vez, Serena não se encolheu. Permaneceu imóvel deliciando-se com o contato que, incrivelmente, a fortalecia. Não estaria fantasiando?, perguntou-se.

Quando Lobo já terminava a segunda trança, ouviu-se barulho na cortina de entrada e Mulher Corça surgiu. Seu rosto, até vê-los, indicava satisfação.

- Onde você andou? Metade do dia já se foi - reclamou Lobo.Num gesto de desafio, Mulher Corça levantou o queixo.- Eu estava com Alce Ligeiro. Por que você implica comigo? Fui providenciar

carne para nosso jantar.Ela tentava disfarçar o ciúme. Só um marido tinha o direito de pentear e trançar

os cabelos da mulher e era isso que Lobo fazia com a wasicun. Tinha sonhado tanto em ser alvo dessa atenção. Sentiu uma grande tristeza e não podia aceitar o fato de Lobo preferir uma estranha.

- Você deixou Céu da Alvorada sozinha outra vez. Cante Tinza teve de pegá-la no colo porque ela estava molhada e chorando. Você acha que está me ajudando? Foi andar por aí com Alce Ligeiro porque é preguiçosa. Não vou mais tolerar sua negligência com minha sobrinha.

Os lábios de Mulher Corça começaram a tremer. Olhou com raiva para Serena e disse:

- Saí por causa dela. Mas valeu a pena, eu trouxe comida. Alce Ligeiro me deu um dos coelhos que apanhou - acrescentou mostrando o animal.

Lobo fez um gesto de impaciência.- Se foi passear com ele para me provocar ciúmes, perdeu tempo. Apenas me

deixou bravo. Eu não a perdôo por não cuidar de minha sobrinha. Além do mais, temos carne o suficiente. Se você tivesse verificado, veria que temos muita carne de

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búfalo seca. E eu também trouxe um coelho.Mulher Corça baixou a cabeça.- Não foi minha intenção aborrecê-lo. Eu só quis ajudar.Lobo não sabia o que fazer. Não podia deixar Céu da Alvorada sob os cuidados da

irmã. A única saída seria uma nova tentativa com Mulher Corça.- Você quer ficar aqui?.- Ah, Lobo Negro, não existe outra coisa que eu mais queira. Deixe eu ficar.

Prometo não me afastar mais da tenda sem Céu da Alvorada.- Está bem, mas esta é sua última oportunidade. Se me aborrecer outra vez, eu a

mando de volta para sua mãe.- Obrigada, Lobo Negro. Prometo ser mais útil daqui em diante - disse Mulher

Corça ao pegar a criança no colo.Lobo não gostou do olhar ciumento que ela lançou a Cante Tinza. Como Grou Alto

o tinha prevenido, isso poderia ser perigoso. Inquieto, ele saiu. Tinha uma cerimônia de cura para realizar mais tarde à noite e não podia estar com a mente perturbada. O Grande Espírito pedia que os curandeiros estivessem com a mente em paz e o coração cheio de bondade nessas ocasiões.

Todavia, sentia-se preocupado. Talvez Mulher Corça não prejudicasse Cante Tinza. Ela era frívola e infantil, mas não tinha maldade no coração.

CINCO

Na manhã seguinte, Serena deu-se conta de que a vila lakota estava de mudança. Mulher Corça já havia acondicionado todos os suprimentos em sacolas de couro e enrolado as mantas de búfalo. Da entrada da tenda, Serena percorreu os olhos pelo acampamento. Ele fervia de atividade, apesar da neblina cerrada que subia do rio.

Ela tentou ficar fora do caminho enquanto Mulher Corça transportava os objetos da tenda para fora. Cavalos estavam atrelados a um tipo rudimentar de trenó onde tudo era colocado.

Onde estaria Lobo? Sentia falta de sua presença. Ele não tinha voltado na noite anterior antes de ela adormecer.

Mulher Corça colocou a tábua-berço com Céu da Alvorada em seus braços e, por gestos, pediu-lhe para tomar conta do bebê. Nesse fim de outubro já fazia frio e, por isso, Serena desejava ficar ao sol. Em vez de voltar para o interior da tenda, foi até

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uma das fogueiras no centro da vila.Sentou-se num tronco caído e respirou fundo o aroma de pinho. Para onde

olhasse, os lakotas estavam ocupados.Reinava tanta tranqüilidade ali, Serena deu-se conta. Como era diferente de sua

vida de fome constante na Irlanda e do pesadelo dos meses na América. O odor de madeira queimando e os ruídos à volta conspiravam para fazê-la se sentir como se pertencesse a uma enorme família indefinida.

Serena viu Lobo montado numa égua preta. Ao perceber que ele a avistava e vinha em sua direção, apertou os braços à volta da tábua-berço.

Ele usava várias penas marrons e brancas de águia nos cabelos. A camisa e as perneiras de couro de gamo delineavam-lhe a silhueta musculosa. Aos olhos de Serena, ele era um guerreiro magnífico. Até a égua preta movia-se reconhecendo que seu dono era especial. Serena quase perdeu o fôlego quando os olhos pretos cruzaram com os seus. O coração disparou, mas dessa vez, não de medo e sim de admiração.

Ela observou-lhe as feições atraentes: ossos malares altos e largos, boca grande e bem delineada e nariz aquilino e fino.

Quando ele parou a sua frente, viu-lhe a meiguice do olhar ao cumprimentá-la: - Hau kola.Serena deu de ombros e espalmou a mão no ar para mostrar que não entendia.

Lobo disse:- Olá, amiga, hau kola.- Hau kola - ela murmurou gostando de falar lakota.- Washtay, bom - elogiou ela.Lobo desmontou pensando em quanto gostaria de dizer a Cante Tinza corno a

achava linda. Os cabelos vermelhos estavam meio eriçados no alto da cabeça e precisavam ser trançados novamente. Porém, ele saíra cedo, pois como ocupasse o segundo lugar na hierarquia da tribo, tinha de tomar providências sobre a mudança.

Como sempre, ele monitorou a linguagem do corpo para não assustá-la. Aproximou-se a um metro de distância e indagou:

- Céu da Alvorada?- Sim. Mulher Corça me pediu para carregá-la enquanto ela cuidava da mudança.Lobo dirigiu o olhar para a tenda e viu Mulher Corça trabalhando com afinco.

Esperançoso, imaginou se ela não havia se tornado mais responsável.- Sua égua é linda - elogiou Serena falando bem devagar.- Wiyaka, Pluma, nome dela. Corre búfalo.- Corre búfalo?! O que é isso?

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Lobo acocorou-se e com as mãos imitou um cavalo correndo atrás de um búfalo.- Ah, ela é uma caçadora! - Serena disse, satisfeita por, finalmente, começarem a

se entender, embora parte da comunicação fosse feita por gestos.- Han! - exclamou Lobo sorrindo ao ver Cante Tinza corar, ela, entretanto, evitou-

lhe o olhar.- Vamos - convidou ele estendendo-lhe a mão.O que ele pretendia fazer?, imaginou.Lobo leu sua expressão.- Vamos. Você monta Wiyaka. Você e Céu da Alvorada.- Ah... mas... Lobo - disse-lhe o nome e entrou em pânico. - Nunca andei a cavalo

- murmurou.- Entendo - disse ele ao tirar a tábua-berço de seus braços e colocá-la no chão.Em seguida, segurou-a pela a cintura e a colocou na sela. Viu a surpresa:

estampar-se em seu olhar e sentiu-lhe as mãos crispadas nos próprios pulsos.Felizmente, ela estava com perneiras e o vestido de couro de gamo tinha

abertura dos lados. Sendo assim, não expunha nem um centímetro de pele ao montar. De qualquer forma, Serena sentiu as faces queimar e agarrou-se com força à frente da sela.

Mas rindo, Lobo apanhou a tábua-berço e lhe entregou forçando-a a largar a sela. Com um movimentou ágil, ele montou também. Ouviu-a exclamar baixinho quando ele se ajeitou a suas costas e passou o braço à volta dela e da tábua-berço.

Serena ficou tensa. A sensação de estar presa numa armadilha era tão real que ela fechou os olhos e tentou não gritar. Lobo não estava lhe fazendo mal algum, disse a si mesma.

Mulher Corça arregalou os olhos quando os viu se aproximar da tenda. Quando a égua parou à entrada, reclamou:

- Você não tem o que fazer além de levar a wasicun para passear a cavalo?Lobo franziu a testa.- Você não é minha mulher, portanto, não me critique, menina.Fazendo beicinho, Mulher Corça atirou uma manta de búfalo no chão.- Você age como se ela fosse sua mulher! Até já penteou e trançou seus cabelos! - Não é de sua conta o que faço, Mulher Corça.- Você a trata como se ela fosse se desmanchar! - esbravejou ela batendo o pé. -

E eu trabalhando como uma escrava sem receber nada a não ser suas palavras ásperas e olhares raivosos!

Lobo tentou controlar-se. Não restava dúvida que Mulher Corça estava com

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ciúmes.- Se você estivesse ferida como Cante Tinza, eu a trataria da mesma maneira.

Mas não está. Não passou fome, nem foi violentada. Você viu seus ferimentos. Ela ainda não consegue pentear os cabelos. Caso você estivesse na tenda ontem como eu queria, poderia ter levado Cante Tinza para transpirar e tomar banho. Minha irmã teve de assumir seus deveres. Portanto, Mulher Corça, não chame minha atenção. Cante Tinza tem de ser tratada com respeito por ter salvado nossas mulheres e crianças da morte. Eu lhe devo a vida de minhas irmãs e enquanto ela não puder se pentear, eu o farei se você não estiver por perto cumprindo suas obrigações.

Furiosa, Mulher Corça lançou-lhe um olhar fulminante.- Em sua opinião, não faço nada certo. Ontem trouxe um coelho...- Ninguém lhe pediu para ir caçar com Alce Ligeiro - disse Lobo interrompendo-a.Sentiu a tensão de Cante Tinza provocada pela troca de palavras ásperas.

Indagava-se por que ela se assustava com vozes exaltadas. Havia muita coisa para descobrir a respeito de sua mulher de cabelos vermelhos.

- Alce Ligeiro, pelo menos, me dá atenção! Ele fica satisfeito quando estou por perto.

- Eu também, quando você está por perto. Bem, vou levar Cante Tinza e o bebê para minha irmã. Depois, volto para ajudá-la.

- Ainda bem. E o mínimo que pode fazer - resmungou Mulher Corça.Lobo ignorou-lhe as últimas palavras. A moça estava aborrecida e ele não

gostaria de suportar-lhe o mau humor durante a mudança. Teriam de viajar três dias rumo ao sul e por causa do incidente com os mineradores, iriam além do lugar onde costumavam acampar no inverno.

Ao dirigir a égua para longe da tenda, Lobo sentiu Cante Tinza relaxar e apoiar o corpo no dele. Reprimindo um sorriso, sentiu a alegria invadir-lhe o coração. Andorinha estava certa: Cante Tinza começava a confiar nele. Lobo ansiava pela oportunidade de poder conversar com ela sobre seu passado. Tantas perguntas o atormentavam.

Lobo fez Mulher Corça levar Céu da Alvorada à margem do rio perto do qual a tribo estava acampada agora. Ela ia se juntar às mulheres encarregadas de tirar a pele e limpar vários veados apanhados por alguns caçadores. Elas trabalhavam depressa, pois o Céu Pai estava coberto por nuvens cinzentas que prenunciavam neve antes do meio-dia.

A viagem de três dias tinha sido cansativa para Cante Tinza, mas Lobo atribuía sua exaustão ao esforço de fazer muita coisa a fim de ajudar Andorinha. A irmã estava

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sobrecarregada de trabalho e Cante Tinza esforçava-se por ajudá-la. Ela absorvia as instruções muito bem e, logo, estava cozinhando, alimentando os idosos e, praticamente, tomando conta de Céu da Alvorada sozinha.

Lobo mexia-se na tenda, erguida na véspera, sem fazer barulho. Ainda precisava tirar das sacolas peças do altar e utensílios para cozinhar. Mulher Corça mostrara-se satisfeita em escapar dos deveres de preparar comida e Lobo decidiu ficar com Cante Tinza e aproveitar sua companhia. Ela ainda dormia enrolada na manta de búfalo. Sua presença o deixava feliz.

Lobo cortou pedaços de carne de veado e os colocou num caldeirão suspenso sobre o fogo. Acrescentou água e cebola silvestre seca. Logo, o odor enchia a tenda.

Cante Tinza acordou e soergueu-se nos cotovelos. Os cabelos emaranhados eram o resultado de três dias sem pentear e trançá-los. Os olhos verdes, ainda sonolentos, fixaram-se nele.

- Bom dia - murmurou.- É muito bom ver seu rosto - respondeu Lobo.A voz a envolveu com tal calor que ela sorriu timidamente. Primeiro, tinha de

atender às necessidades da toalete, por isso, calçou os mocassins e deixou a tenda. O ar estava muito frio e os primeiros flocos de neve já começavam a cair quando ela voltou ao interior aquecido da tenda.

Ela não mais achava que Lobo ia atacá-la como Blackjack o fizera. Os últimos três dias tinham lhe proporcionado uma série de lições animadoras. Andorinha havia lhe explicado que o irmão era o curandeiro da tribo.

- Beba isto - disse Lobo vendo-a entrar.- Obrigada. O que é? - perguntou ela ao aceitar a cuia de madeira.- Ceyaka, hortelã. Nós bebemos sempre. Bom para você.Sentada na enxerga, sobre as pernas cruzadas, Serena tomou um gole.-- Gostoso e doce.- Mel - explicou Lobo e, então numa mistura de inglês e lakota, contou: - No verão

passado, vi uma árvore caída em que um urso mexia. Ele procurava mel de abelha. Depois que foi embora, catei o que pude na minha cuia de bétula. Mel é gostoso, mas difícil de ser encontrado.

Sentada a poucos passos de Lobo, Serena tomava o chá. Já tendo aprendido um pouco de lakota, conseguia entendê-lo. Nesse dia, ele usava camisa e perneiras de couro de gamo, tanga e, exceto pela gargantilha, não exibia outros enfeites. Os cabelos negros e brilhantes estavam trançados como sempre.

Ao vê-lo mexer o ensopado, Serena criou coragem para, pela primeira vez, fazer-

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lhe uma pergunta.- Lobo? - chamou-o.No mesmo instante, ele ergueu a cabeça e fitou-a.- Sim?- Eu sou... uma prisioneira? Uma escrava? Ouvi tantas histórias sobre os

guerreiros sioux que roubam mulheres brancas e...- O quê? Prisioneira?!Embora tensa, Serena não desviou o olhar. - Sim. Sou sua prisioneira?Divertido, ele riu.- Não. Cante Tinza livre.- Livre?!Ele fez um gesto à volta da tenda. - Sim, como nós. Você, livre.- Quer dizer que posso ir embora quando quiser?Lobo tornou-se sério. O coração protestava. Desde o início, temia esse momento.

Cante Tinza preferia ir embora? Ciente de não poder fugir da verdade, sentou-se no chão a sua frente.

- Cante Tinza é livre para ir aonde quiser. Você tem marido?Foi a vez de Serena rir.- Eu? Casada? Não!- Mas tem idade para estar.Com ar triste, ela desviou o olhar.- Não sou casada e acho que homem algum há de querer se casar comigo.Perplexo, Lobo refletiu sobre essas palavras. Percebeu-lhe a melancolia.- Você vem de longe?- Sim, da Irlanda. Fica do outro lado do mar. - Não entendo.- Minha terra fica do outro lado de um grande lago no leste e muito longe da

América.- Sei. Sua tribo é de cabelos vermelhos?Respondendo com um gesto afirmativo de cabeça, Serena deu-se conta do

quanto Lobo desejava saber a seu respeito. Mas o que deveria revelar? Ele merecia a verdade, pois lhe salvara a vida. Não a tinha largado para morrer como Blackjack. Baixou os olhos para as mãos no colo.

- Lobo, minha família era muito pobre e meus pais morreram. Eu passava fome

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em minha terra. Um homem, chamado Calvin McIntire pagou minha passagem para a América e, segundo ele, eu ganharia um bom salário como lavadeira aqui.

Reprimiu as lágrimas e ergueu a cabeça. Viu Lobo concentrado em sua pessoa. Mais nervosa, prosseguiu:

- McIntire mentiu para mim. Quando desembarquei, ele disse que meu emprego era no Território de Dakota. Um rico minerador de ouro, chamado Blackjack, precisava de uma lavadeira. Viemos de trem e quando chegamos a Kingstone, McIntire me levou para a casa de Blackjack.

Doía muito falar sobre o assunto e Serena tornou a baixar a cabeça. As lágrimas toldavam-lhe a visão e ela tentava reprimi-las.

- McIntire fez um acordo com Blackjack. Este não precisava de lavadeira e queria uma marafona. Eu não era uma, mas isso pouco importou aos dois homens. Tornei-me uma escrava. Blackjack me violentou e durante quatro meses me manteve prisioneira em sua casa. Ele tinha mulher e filho mas os dois não se importavam comigo. Aliás, ninguém. Eu lutava contra ele para impedi-lo de se apossar de mim, mas ele era muito forte. Todas as vezes que eu reagia, apanhava até ficar largada.

Levantando a cabeça, Serena apontou para si mesma.- Eu tinha de fugir. Não suportava mais aquela vida. Até a morte seria preferível.

Na noite em que tentei escapar, Blackjack me apanhou e me chicoteou. Acho que estava cansado de mim. Para me castigar, tomou um espeto de ferro em brasa e queimou meus seios. Às gargalhadas, disse que me largaria nas colinas Black e, caso eu sobrevivesse, nenhum homem me tocaria outra vez.

Serena soluçou, mas com grande esforço, prosseguiu. Lobo tinha o direito de saber que tipo de mulher ela era.

- Acordei ao amanhecer do dia seguinte na beira do rio. Sentia dores terríveis nas queimaduras, mas estava viva. Ouvindo um grupo de mineradores se aproximar, me escondi nas touceiras de junco. Eles não me viram e desapareceram atrás da curva. Logo, ouvi as mulheres lakotas gritando e corri para ajudá-las. Ao perceber que estavam sendo violentadas como eu fora, fiquei fora de mim. Apanhando um galho seco de carvalho, desci a encosta correndo e gritando.

Já não era mais possível erguer a cabeça e fitar Lobo. Serena sabia estar marcada com a vergonha do estupro. Era uma mulher perdida, deixara de ser virgem. Nenhum homem a aceitaria como esposa. E as cicatrizes nos seios a lembrariam até o dia de sua morte que um homem a tinha odiado a ponto de marcá-la como se ela fosse um animal.

Cobriu o rosto com as mãos e ficou à espera de que Lobo a expulsasse dali por

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ser uma mulher decaída. Conhecedor de sua história, não permitiria mais sua presença na tribo.

Petrificado, Lobo continuou sentado. Não tinha entendido grande parte das palavras de Cante Tinza, mas depressa, juntou os pedaços de sua história. Blackjack era seu inimigo mortal, porém, ela o ignorava. A vergonha estampada em seu rosto tinha lhe dilacerado o coração e, ao saber que fora violentada e espancada, teve de lutar para conter o ódio. Não suportava vê-la sofrer dessa forma.

Lobo ajoelhou-se aos pés de Cante Tinza e pôs as mãos sobre as dela. Sentiu-a trêmula e percebeu que ela chorava em silêncio. Descobrindo-lhe o rosto, começou a enxugar-lhe as faces.

- As lágrimas são boas. Elas mostram que estamos vivos. Faz muito bem chorar por algo que nos foi tirado.

Como ele desejava beijar-lhe os lábios de leve, ou tomá-la entre os braços de encontro ao peito. Queria embalá-la como a criança ferida que era.

As mãos de Lobo eram grandes e quentes em sua pele. A meiguice inesperada soltava a angústia e o terror provocados pelos longos meses de prisão nas mãos de Blackjack. Quando começou a soluçar, Serena tentou soltar-se de Lobo.

- Não fuja de mim, Cante Tinza. Venha para meus braços - murmurou ele abrindo-os.

Ela aceitou sem lutar e Lobo teve de reprimir um gemido no peito. Levantou a cabeça permitindo que ela acomodasse a sua no ombro dele. Ao aconchegá-la entre os braços, fechou os olhos. Sentia sua mágoa profunda como se fosse dele, mas como curandeiro sempre sofria com a dor dos pacientes.

Desta vez era diferente, lobo seu guia espiritual murmurou-lhe. De fato, pois seu coração estava aberto para Cante Tinza. Lobo compreendia a compaixão e o poder restaurador do toque, por isso, acariciava-a como a uma criança enferma. Bem de leve e passando a mão por seus cabelos, ombros, braços e ao longo da espinha, começou a aliviá-la da sobrecarga carregada sozinha por tanto tempo.

Uma canção formou-se em seu peito e ele pôs-se a entoá-la baixinho, dando vida às palavras. No mesmo instante, ouviu o choro de Cante Tinza aumentar e ecoar pela tenda inteira. Ele continuou cantando sobre o que ela havia perdido, arrancado por um homem egoísta. Rezou à Mulher Búfala Branca, a Wankan Tanka e a Tunkasila para que viessem ajudar Cante Tinza a consertar sua alma e seu coração despedaçados.

Ao tê-la entre os braços e sentir-lhe as mãos crispadas na camisa, Lobo, finalmente, compreendeu por que ela o temia. Era homem e ela fora ferida por um outro. Também a tinha mantido confinada na tenda o que lhe dera a idéia de ser

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escrava. Pior, Lobo deu-se conta, Cante Tinza temia que ele a violentasse como o wasicun tinha feito.

Mesmo assim, no último quarto de lua, Cante Tinza havia desprezado seus temores e, generosamente, cuidado de Céu da Alvorada e ajudado Mulher Corça, Andorinha e Estrela Vespertina, suas irmãs.

Lobo terminou a canção e encostou a testa em sua cabeça. Gostaria de já vê-la restabelecida, mas sabia que o processo de cura seria longo e doloroso. O que ela. desejaria? Gostaria de ficar com a tribo, ou preferiria voltar para a cidade do wasicun?

Com delicadeza, afastou-se, fitou-a e tomou seu rosto entre as mãos.- Eu lhe dei o nome de Coração Valoroso, pois você é isso e muito mais, minha

mulher. Não creio que você reconheça a própria coragem e o espírito de luta. - Enxugou-lhe as últimas lágrimas e notou-lhe o acanhamento. - Você não tem do que se envergonhar. Lutou como uma guerreira e o povo lakota a honrará. Ninguém irá julgá-la.

Serena ainda soluçava e não desejava nada mais do que permanecer junto a Lobo.

- Mas sou uma mulher marcada! Não sirvo para ninguém!- Acalme-se. Os lakotas pensam de maneira diferente. Você não se entregou a

um homem. Foi possuída contra a vontade. As vezes, isso acontece a nossas mulheres apanhadas por guerreiros crows. São obrigadas a se casar com eles, mas lutam. Se uma consegue escapar e volta, nós fazemos uma grande cerimônia para recebê-la. Além das honrarias, ela ganha muitos presentes. Se era solteira, volta a ser considerada virgem, mesmo que tenha sido violentada.

Surpresa, Serena puxou o rosto das mãos de Lobo. Se não o fizesse, acabaria se aninhando entre os braços dele outra vez. Nunca se sentira tão protegida. Apesar da mente conturbada, tinha impressão de tê-lo ouvido chamá-la de sua mulher. O que isso significaria? Confusa, tornou a cobrir o rosto com as mãos.

- Se voltar para a cidade, não sei o que vai acontecer. Não tenho dinheiro e ninguém me daria casa e comida. Não sei para onde ir. Estou perdida e...

- Ah, Cante Tinza, você jamais se perderá. Enquanto souber onde seus pés pisam na Terra Mãe, não estará perdida. - Tocou-a no peito. - Seu coração é seu lugar. Nós a receberemos em nossa tribo, pois você provou seu valor de várias maneiras.

- É verdade? - perguntou esperançosa.Como podia ter sentido medo de Lobo se ele só lhe mostrava respeito e

compreensão?- Será uma honra se ficar aqui - respondeu ele com um sorriso.

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- Mas você é casado com Mulher Corça com quem tem uma filha. Eu serei uma intrusa.

Lobo começou a destrançar-lhe os cabelos.- Não sou casado com Mulher Corça. Ela se ofereceu para me ajudar porque

minha irmã foi morta. Como tio de Céu da Alvorada, preciso criá-la e lhe dar amor.- Vocês não são casados?! - balbuciou estarrecida.Lobo percebeu o tremor na voz. Seria medo?- Já completei trinta invernos. Há muito tempo, me apaixonei por uma jovem.

Sombra Agradável estava apanhando cerejas silvestres sozinha quando foi atacada por um grupo de crows. Eles a violentaram, mataram e tiraram-lhe o escalpo.

- Ai não! - protestou Serena notando o olhar tristonho de Lobo.- Isso pertence ao passado e a vida continua, como Wankan Tanka nos ensina.

Durante muito tempo, chorei sua morte, mas então o aprendizado de meu trabalho de curandeiro foi tomando importância. Agora, meu coração pertence ao povo de nossa tribo.

Serena reconheceu a sensatez das palavras. Ele já lhe tinha penteado os cabelos e começava a trançá-los.

- Pensei que eram casados e tinham uma filha.- Todas as crianças pertencem à tribo - explicou Lobo ao amarrar a ponta da

primeira trança. - Os lakotas formam uma enorme família. Não é raro adotar-se uma criança quando os pais morrem. Também não deixamos os velhos passar fome. Depois de uma caçada de búfalos, nós lhes damos o coração, a língua e o fígado em honra a sua sabedoria.

- Em Wexford, as pessoas morrem de fome na rua não importa a idade.- Os wasicuns não respeitam nada. Eles se vêem como dominadores e não se dão

conta de que somos todos relacionados através de nossa ligação à Terra Mãe. Somos servos dela e não seus conquistadores.

Ele terminou a segunda trança em silêncio e, então, perguntou:- Você vai ficar com a tribo?- Sim, eu gostaria muito - murmurou Serena.Uma alegria imensa dominou Lobo, porém, ele tentou refreá-la, pois não queria

influenciar a decisão de Cante Tinza. Numa voz calma, explicou:- Você pode ficar com quem escolher.Munindo-se de coragem, Serena o fitou.- Céu da Alvorada precisa de mais atenção do que Mulher Corça lhe dá, eu acho.

Gostaria de ficar aqui, se você permitir.

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O coração de Lobo disparou.- Será uma honra se você morar em nossa tenda. E também penso como você.

Mulher Corça tem muitos afazeres e não cuida bem de minha sobrinha. Isso me preocupa. Você é uma mulher livre, Cante Tinza. O povo lakota honra generosidade, coragem, responsabilidade e dedicação ao trabalho. Você tem tudo isso. Ninguém é seu dono. Se quiser ir embora, ou ficar, a decisão é sua.

As palavras pronunciadas em voz baixa e com emoção provocaram lágrimas em Serena. Estava livre pela primeira vez em quatro meses de cativeiro brutal.

SEIS

Serena mal tinha enxugado as lágrimas e se recomposto quando Lobo lhe perguntou:

- Morando aqui, você aceita mesmo cuidar de minha sobrinha?- Não tenho experiência, mas posso tentar.- Rola Voadora amamenta Céu da Alvorada sempre que ela tem fome. Você

poderia levá-la à tenda dela para esse fim?- Claro. Gosto muito de crianças, Lobo. Sei que você vive ocupado e quero ajudá-

lo.Como haveria de se negar? Lobo tinha lhe salvado a vida.Ele deu um suspiro de alívio. Cante Tinza tinha falado como uma verdadeira

lakota. Sentado na enxerga, avaliou a situação. No momento, Cante Tinza precisava engordar um pouco. O inverno e a primavera a fortaleceriam. E depois? Sabia que a queria como esposa. O que ela faria se soubesse disso? Fugiria?

O melhor seria deixar-se guiar por seus espíritos protetores. Logo, a tribo inteira saberia que Cante Tinza ficaria ali.

- Vou pedir à Mulher Corça para ensiná-la a costurar, cozinhar, enfim, a fazer todas as coisas que as mulheres lakotas sabem..

Lobo ia. dizer algo mais, porém, Mulher Corça entrou na tenda com Céu da Alvorada. Sorriu-lhe ao pôr a tábua-berço na enxerga, mas ficou séria quando olhou para Cante Tinza. Aborrecido, Lobo percebeu-lhe o ciúme.

- Mulher Corça, venha cá. Precisamos conversar - convidou ele.- Espero por suas palavras, Lobo Negro. O que posso fazer para agradá-lo? -

perguntou ela ao ajoelhar-se junto à enxerga.Lobo sentiu um arrepio, mas fitou-a.

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- Cante Tinza decidiu ficar vivendo aqui e não voltar para a cidade do wasicun.- Ah...- Ela também concordou em cuidar de minha sobrinha e morar em minha tenda.Mulher Corça dirigiu um olhar raivoso a Cante Tinza. Depois, voltou a fitar Lobo

Negro.- Mas você tem a mim. Não prometi morar aqui e cuidar de Céu da Alvorada? -

protestou.Por vê-la perturbada, Lobo tentou falar em voz calma.- Você ainda é muito infantil e prefere andar por aí a fazer o trabalho de uma

mulher.- Mas...Lobo ergueu a mão e continuou num tom mais firme:- Já me decidi e não vamos discutir sobre isso. Não precisa se envergonhar por

ser substituída. Dessa forma, dará mais oportunidade para Alce Ligeiro cortejá-la.Mulher Corça pulou em pé e crispou as mãos.- Como pode escolher Cante Tinza e não a mim? - Bateu no peito. - Sou lakota, e

ela, wasicun! Imagina que vá cuidar bem de sua sobrinha? Ela não conhece nossos costumes e crenças. E eu ficarei envergonhada se tiver de voltar para a tenda de meus pais. - Começou a chorar. - Não amo Alce Ligeiro e sim a você. Sei que me considera jovem demais, mas no meu coração os invernos não têm importância. Só quero a oportunidade de provar a você que posso ser uma boa esposa lakota.

Lobo sentiu-se constrangido. Tinha visto a expressão de Cante Tinza mudar quando Mulher Corça pulou em pé e começou a chorar. Preferia não presenciar tal cena. Num tom baixo, disse:

- A meus olhos, você não passa de uma criança. Não posso lhe dar meu coração porque ele pertence à tribo.

- Quê?! - gritou ela virando-se e apontando para Cante Tinza. - Você se esconde de si mesmo. Vejo sua expressão quando ela se mexe. Seus olhos se suavizam e mostram anseio. Talvez você não minta para mim sobre isto, mas apenas a si mesmo. Você a deseja e, de alguma forma, convenceu Cante Tinza a ficar e morar em sua tenda! Como curandeiro, a enfeitiçou e...

Devagar, Lobo pôs-se em pé e a enfrentou.- Menina, não me acuse de tal coisa! Eu jamais exerceria magia em alguém, pelo

contrário, tento livrar as pessoas dela.Mulher Corça recuou um passo.- Mas você não nega que deseja a wasicun!

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- Cante Tinza é uma mulher livre que viverá entre nós - Lobo disse entre os dentes.

Dirigiu um olhar fuzilante a Mulher Corça. Ela possuía o dom irritante de perceber a verdade. O bebê começou a chorar e ele viu Cante Tinza levantar-se para cuidar dele. Dirigiu-se novamente à Mulher Corça.

- Eu tinha esperança de poder pedir-lhe para ficar nesta tenda mais tempo a fim de ensinar Cante Tinza os trabalhos de nossas mulheres. Mas vejo que isso é impossível.

Atônita, Mulher Corça o segurou pelo braço. - Não, eu ficarei e farei o que você quiser.Irritado, ele soltou-se.- Não. Você se apegará a esta oportunidade para passar o inverno comigo e não

para ensinar Cante Tinza.Mulher Corça manteve-se imóvel e chorando. Não tinha se dado conta de que

Lobo havia pretendido deixá-la passar seis luas ali na tenda ensinando Cante Tinza. Numa voz chorosa, implorou:

- Por favor, deixe eu ficar. Posso muito bem ensinar tudo a wasicun. Quero continuar aqui.

Lobo previu o perigo na permanência de Mulher Corça. Ela era emotivamente instável. Não desejava desavenças na tenda. Seu trabalho como curandeiro exigia sossego e tranqüilidade. Isso seria impossível com os ciúmes de Mulher Corça e sua esperança de que ele a amasse.

- Não. Acho melhor você juntar seus pertences e ir embora agora. Eu lhe sou grato pelo que fez aqui. Levarei três de meus melhores cavalos para seu pai em agradecimento por seus serviços.

- Nesse caso, quero Wiyaka! Você tem quinze cavalos. É um homem rico, Lobo Negro.

Lobo sentiu raiva ao ver aflorar a esperteza de Mulher Corça em seu olhar. Wiyaka era seu animal favorito.

- Você pode escolher qualquer três de meus cavalos, menos Wiyaka.- Pretende dar a égua preta para a wasicun?Embora furioso, Lobo controlou-se. Mais uma vez, Mulher Corça lia seus

pensamentos. Já havia pensado em dar Wiyaka a Cante Tinza depois de ensiná-la a cavalgar.

- O que eu fizer não é de sua conta - respondeu, furioso.Mulher Corça lançou um olhar raivoso a Cante Tinza. Em silêncio, embrulhou seus

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pertences num cobertor cinzento e foi embora.Lobo suspirou e relanceou o olhar por Cante Tinza.Apesar de haver entendido pouco do diálogo exaltado, ela mostrava-se

perturbada. Como falar-lhe sobre Mulher Corça? Percebendo ter feito uma inimiga, sentou-se, pensativo.

Mas o balbuciar e o riso alegre de Céu da Alvorada logo desanuviaram-lhe o espírito. Levantou o olhar e viu Cante Tinza brincando com a criança. Os olhos verdes expressavam prazer e isso acabou por deixá-lo de bom humor.

- Por que Mulher Corça estava chorando? - Serena indagou.- Ela queria ficar para tomar conta da criança.Serena observou-o.- Ela estava aborrecida.- Eu sei - respondeu ele sem querer revelar o teor da conversa. - Vou conversar

com minha irmã Andorinha para lhe ensinar os costumes lakotas.Entretida com a criança, Serena sorriu;- Quero aprender, Lobo. É só me dizer o que tenho a fazer.- Você já está agindo bem. Nunca ouvi minha sobrinha rir assim desde que a mãe

morreu. Céu da Alvorada a aceita como sua mãe verdadeira e isso é muito bom.Ficaram em silêncio e Serena correu os olhos pela tenda. Essa era sua nova vida.

Teria feito a escolha acertada? Qualquer outra significaria passar fome. Não podia confiar no homem branco e, muito menos, voltar para o acampamento de mineradores de Blackjack.

Olhando para Céu da Alvorada, que batia pernas e braços, afastou-lhe os cabelos negros da testa. A discussão entre Mulher Corça e Lobo a tinha perturbado. Ao sair, a moça lançara-lhe um olhar de ódio. Por quê? Tanta coisa havia mudado em sua vida para deixá-la insegura quanto à decisão tomada. Em Wexford, vivia, dia por dia sem vislumbrar o futuro. Ali, teria de ser da mesma forma. Não podia se dar ao luxo de ter esperanças. E esperar pelo quê? Os lakotas a tinham aceitado e se pudesse provar-lhes que não era um peso e sim uma vantagem, talvez ela conseguisse construir uma nova vida.

- Logo, chegará o quarto de lua quando os gansos retornam e Mãe Terra volta a se esquentar. Aí, mudaremos o acampamento para a região Chifre de Búfalo Cinzento - explicou Lobo ao apontar para as colinas onde passariam o verão. - Uma rocha imensa e arranhada à volta toda por garras de urso levanta-se da terra. É muito alta e

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sagrada. Teremos nossa Dança do Sol em sua sombra.Ocupada em pregar contas num par de mocassins, tarefa aprendida com

Andorinha, Serena olhou para Lobo sentado na enxerga à frente.- Mal posso esperar para ver. Será muito bom quando o inverno acabar.O acampamento lakota mostrava mais atividade nos últimos dias e Serena

ocupava-se em fazer o terceiro par de mocassins para Lobo. O primeiro tinha saído um desastre, mas sob a orientação de Andorinha, o segundo não ficara muito ruim. Lobo o estava usando, observou ela com orgulho. Agora, trabalhava no terceiro. A seu lado, Céu da Alvorada brincava com um osso de veado. Ria e balbuciava alegremente.

-Esta é uma terra sagrada, mas sente-se seu poder mais fortemente onde acampamos no verão. Nós mudaremos várias vezes até alcançar Chifre de Búfalo Cinzento. Chegaremos no quarto de lua quando as cerejas já estiverem maduras.

- Eu não fazia idéia de que vocês se mudassem tanto.- É nosso dever. Permanecer muito tempo numa área acaba esgotando as

plantas e os animais da Terra Mãe. O Grande Espírito nos ensinou a pegar só o necessário e deixar o resto. E uma maneira sábia de se viver.

Serena sorriu da lógica perfeita. Como os lakotas viviam de maneira diferente dos brancos. Ela preferia a dos índios. Ninguém passava fome ou dormia ao relento. A tribo era uma grande família.

- Está contente conosco, Cante Tinza? - perguntou Lobo para quem as luas tinham voado enquanto a via trabalhando com determinação a fim de aprender os costumes lakotas.

Para a alegria dele, Cante Tinza ficara muito amiga de Andorinha. Mas havia aqueles que se mostravam descontentes com sua presença. O chefe Boca de Texugo o advertira que, se os wasicuns a descobrissem ali, mandariam a cavalaria atacar o acampamento para levá-la embora. Também havia a questão dos comentários maldosos de Mulher Corça. Como já entendesse bem o lakota, Cante Tinza ficara magoada com eles. Ele se aborrecia com isso.

- Muito contente, Lobo. Por quê?Ele deu de ombros.- Você trabalha muito. Até mais do que Andorinha, exemplo de mulher lakota.

Suas mãos estão sempre arranhadas e vermelhas.Serena riu.- Isso porque não aprendi bem a bordar com espinhos de porco. - Ficou séria ao

vê-lo preocupado. - Você fez me sentir bem-vinda. Como não estar contente?- A maledicência de Mulher Corça a deixou aborrecida.

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- Ora, não sei se o falatório a meu respeito partiu dela. Outras pessoas da tribo não gostam de minha presença aqui.

Lobo suspirou. Os comentários giravam em torno das cicatrizes nos seios. Por causa das queimaduras, diziam, ela não poderia amamentar um filho. Este morreria de fome.

- Mas eu sei que os comentários a deixaram magoada - disse ele.- Felizmente as cicatrizes, graças ao remédio de Ursa Sonhadora, não ficaram

muito feias.- E quanto a não ter leite para amamentar um filho? Isso é a maior bobagem! Só

a pele ficou danificada, não os seios.A conversa era embaraçosa para Serena, mas no decorrer dos meses, havia

aprendido que os lakotas encaravam o corpo e suas funções com naturalidade e não como algo a ser ignorado e escondido. Ela lutava contra os tabus aprendidos no mundo dos brancos. Não se discutiam os seios de uma mulher abertamente. Corou e baixou os olhos.

Lobo percebeu e ficou inquieto.- Eu a envergonhei tocando no assunto - disse.- Não, eu... Bem, entre meu povo, não conversamos sobre as partes íntimas do

corpo - ela explicou rindo um pouco e relanceando o olhar por ele.Enterneceu-se com a expressão de Lobo. Havia um brilho de vida no fundo dos

olhos negros e ela havia passado a valorizar os momentos passados a sós com ele. Talvez o fato de terem se tornado tão chegados um ao outro fosse obra de Céu da Alvorada. Ambos amavam e cuidavam muito dela.

- Você é uma mulher linda, Cante Tinza. Qualquer guerreiro se orgulharia de tê-la como esposa. Só um louco a rejeitaria por causa das cicatrizes nos seios. Um guerreiro honesto as veria como marcas de batalha, portanto, uma honra. Você não tem de se envergonhar delas. Deve andar de cabeça erguida e não se ressentir dos comentários.

Serena emocionou-se com essas palavras. Nunca Lobo a tinha chamado de linda, pois era o exemplo do decoro. Desde que os ferimentos haviam cicatrizado o suficiente, ele deixara de lhe pentear e trançar os cabelos. Quanta falta sentia dessa intimidade com ele. Lobo dormia numa enxerga ao lado da sua, mas respeitava-lhe a privacidade e jamais a tocava. Sentiu uma sensação estranha no âmago ao encarar-lhe o olhar perscrutador. Jamais esqueceria os momentos passados no aconchego dos braços dele. O contato fora, curiosamente, meigo e restaurador.

- Bem, eu nunca me vi a não ser no reflexo da água e ninguém jamais me disse que era bonita. Além do mais, tenho sardas que são consideradas feias e meu rosto é

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longo e fino como o de um cavalo.Lobo não suportou ouvi-la falar dessa forma. Levantou-se, rodeou o altar e o fogo

e ajoelhou-se a sua frente.- Você é linda à maneira de uma mulher. As sardas me lembram as muitas

estrelas no Céu Pai. Eu as vejo como um reflexo da Wanaglta Canju, a Via Láctea. Para mim, elas são o símbolo do quanto você é especial, Cante Tinza. - Sorriu e delineou-lhe as faces com a ponta dos dedos. - Sim, seu rosto é longo, mas você tem os ossos malares altos com uma lakota. Vejo seu olhos como as pequenas lagoas formadas ao longo dos rios. E sua boca é da cor dos morangos silvestres que as mulheres colhem no verão. - Forçou-se a acocorar-se e baixar as mãos. - Rosto de cavalo? Jamais! Seu nariz é muito bem feito para isso.

A proximidade e o contato inesperados eram excitantes. Serena observou-o. A voz baixa e emocionada de Lobo refletia sinceridade.

- Adoro a maneira com que você me vê, Lobo. Ele tentou não estender as mãos. Vinha lutando contra si mesmo através das luas, refreando a carência provocada por Cante Tinza. Ela continuava vigilante e desconfiada dos homens. Sabia disso por vê-la esquivar-se dos guerreiros que a procuravam. Agia de maneira diferente com ele, mas não era possível esquecer que fora violentada, fato que levaria tempo para ser esquecido. Apesar desse raciocínio, Lobo apanhou-se fazendo o impensável. Aconchegou-lhe o queixo na palma da mão.

- Você é beleza pura, minha mulher. Seu coração pertence à Terra Mãe e sua alma, ao Grande Espírito. Pensa que não vejo como as crianças a adoram? Como gostam de brincar com você? E os idosos lhe falam respeitosamente, agradecidos por sua atenção a eles. Observe os sorrisos que lhe dirigem, Cante Tinza, os olhares de adoração daqueles a quem você ajudou. Não dê ouvidos às palavras maldosas ditas por umas poucas pessoas enciumadas. Elas são preguiçosas e gostariam de ser alvo dos mesmos sinais de respeito recebidos por você.

Embora Lobo desejasse continuar a sentir-lhe a pele macia, retirou a mão de seu rosto. Se não o fizesse, acabaria cometendo o erro imperdoável de beijar-lhe os lábios tentadores. Uma jovem não permitiria tal carícia a não ser se estivesse pensando em casamento. Levantou-se e voltou a se sentar na enxerga.

Serena tocou o queixo. Uma sensação deliciosa a envolvia desde o contato inesperado da mão de Lobo e das palavras pronunciadas como se viessem do coração dele. Sabia que ele começava a moer raízes secas entre as pedras a fim de ocupar-se e não fitá-la. A claridade bruxuleante do fogo envolvia-o em luz e sombra.

Parecia linda aos olhos de Lobo. A descoberta era ao mesmo tempo, maravilhosa

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e assustadora. Mas Serena não sentia medo de Lobo e sim de si mesma. O que significariam esses sentimentos revolvendo-se em seu íntimo? Por que essa sensação curiosa em seu âmago? Até os seios fremiam de maneira desconhecida. Baixou a cabeça e forçou-se a prestar atenção no bordado de contas nos mocassins. Uma parte sua tinha ansiado pelo toque de Lobo e agora, tendo ele acariciado-lhe o rosto, sentia-se trêmula com a experiência. Essa reação se manifestaria todas as vezes? O contato com Blackjack fora penoso e humilhante. O de Lobo mostrava ser o oposto e ela não tinha ninguém para compartilhar a descoberta.

- Vamos - Lobo disse a Cante Tinza fazendo-lhe um gesto para acompanhá-lo.O sol de abril estava forte e derretia a neve depressa. Eles caminhavam por fora

do círculo de tendas e em direção à cavalhada. Ele levava cabrestos de couro cru e selas de choupo.

- Aonde vamos? - perguntou ela.Usava um vestido pesado de pele de alce, feito por Andorinha, e perneiras e

mocassins do mesmo material. Este era bem mais quente do que couro de gamo. - Você vai aprender a cavalgar - respondeu Lobo. - É mesmo?! - exclamou ela batendo palmas. Ele sorriu admirando-lhe a vivacidade dos olhos verdes. Escolheu um dos animais mais velhos, uma égua cinzenta. A seguir, demonstrou

como colocar a sela e o cabresto. Tirou-os e disse:- Agora é sua vez.Um grupo de crianças, em busca de distração, os tinha acompanhado e começou

a dar conselhos a Serena. Ela olhou para a- sela e comentou:- A pobre égua vai me odiar quando eu acabar.- Ela é muito velha para se importar.Timidamente, Serena aproximou-se do animal e, antes de mais nada, deu-lhe uns

tapinhas no pescoço. Depois, tentou colocar a sela. Com a ajuda e sugestões das crianças, não levou muito tempo para terminar. Virou-se com um sorriso triunfante.

- Pronto!- Acho que seus ajudantes fizeram a maior parte do serviço - disse Lobo rindo. -

Agora, você precisa aprender a montar.Serena observou Lobo pôr o pé no estribo e, facilmente, acomodar-se na sela. Ela

suspirou.- Você é tão jeitoso, Lobo. Eu queria ser a metade, apenas.

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Sorrindo, ele desmontou e estendeu-lhe as rédeas.- Uma mulher que percorre o caminho da beleza é sempre graciosa.

Experimente. Você vai ver.Abafando as dúvidas, Serena tentou montar, mas foram precisas várias

tentativas e orientação de Lobo para, finalmente, ver-se acomodada na sela. As crianças soltaram gritos de aclamação, mas foi o olhar satisfeito de Lobo que a recompensou do esforço.

Depressa, ele encilhou e montou Wiyaka, a égua preta. Aproximou-se de Serena e avisou:

- Agora, vamos passear.Depois de ensiná-la como prensar as pernas na montaria a fim de seguir em

frente, partiram cavalgando a passo ao longo dos juncos na margem do rio.No início, Serena agarrou-se na frente da sela, mas devagar, foi-se se

acostumando à cadência e relaxando.Para onde olhasse, encantava-se com a beleza do panorama. De vez em quando,

a perna de Lobo roçava a sua e ambos trocavam um sorriso. Ele cavalgava com tanta naturalidade que era um prazer observá-lo. As vezes, ele curvava-se para a frente e percorria os dedos pelo pescoço da égua. Com a cabeça levantada, Wiyaka dava uns passos para o lado como resposta.

Serena imaginou como se sentiria se Lobo a tocasse da mesma maneira.Lobo a achava linda cavalgando. Com o tempo, ela relaxaria e, confiando no

animal, passaria a apreciar mais o exercício. Apontou para o norte e disse:- Amanhã, começaremos a preparar nossa mudança para o acampamento de

verão.- Mal posso esperar!- Está cansada daqui, Cante Tinza?- Não, mas ouvi tantos comentários sobre a beleza de Chifre de Búfalo Cinzento

que fiquei ansiosa para conhecer a região.Depois de alguns minutos, ele perguntou:- Você sente falta de seu povo?- Às vezes, mas da Irlanda e não de Kingstone. Meus pais já morreram e eu não

tenho razão alguma para voltar para lá. - Olhou à volta e sorriu. - As árvores aqui são tão verdes, Lobo. Elas me lembram de minha terra. A Irlanda é muito verde, mas não neva como aqui. Chove muito e faz frio.

- Então, está contente entre nós?- Como não poderia estar?

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- Washtay, bom. Vamos voltar para a vila. Suas pernas estarão doloridas amanhã quando acordar. De agora em diante, você usará essa égua cinzenta como montaria.

- Obrigada, Lobo. Ela é tão velha, coitadinha, que tenho medo de machucá-la.- Ela será boa para você até que cavalgue bem. Com o tempo, você terá um

animal como Wiyaka. Serena riu.- Ela é muito fogosa e eu nunca serei uma boa cavaleira.Lobo dirigiu-lhe um olhar penetrante.- Não, Cante Tinza, você é como esta égua preta. Há fogo em sua alma. Eu o vejo

brilhando em seus olhos. Como esta égua, você tem um coração sensível. Um dia, você cavalgará um animal a seu exemplo. Você verá.

SETE

Serena acabava de trocar a fralda de Céu da Alvorada e de acomodá-la da tábua-berço para dormir. A lua já tinha subido ao céu e a tribo encontrava-se acampada entre as colinas e os pinheiros gigantescos.

Lobo percorreu os olhos pela tenda na penumbra. O fogo estava mais baixo por causa da noite quente. Logo, passariam a cozinhar ao ar livre e, quando escurecesse, a tenda ficaria no escuro.

- O que você está fazendo, Lobo?- Moendo sementes de rosa silvestre.Embora interessada pelo conhecimento de Lobo sobre plantas, Serena tentou

dominar a curiosidade. Mas como sempre, ele a intuiu.- Venha ver - Lobo convidou, satisfeito pela oportunidade de mostrar-lhe algo.Havendo perdido a desconfiança, ela ajoelhou-se junto a Lobo.- Para que usa isso? - perguntou apontando ao pó amarelo.- Não se trata de um remédio. Vou moer muitas sementes para Andorinha poder

ensiná-la a fazer geléia.- Ora, você está brincando outra vez - disse ela rindo.Seu riso provocou um anseio tão agudo e profundo em Lobo que ele teve de

desviar os olhos por uns instantes. Ela estava linda com o novo vestido de couro de gamo tão mais leve que o de alce. Fora feito por Rola Voadora para Cante Tinza que a ajudava a tomar conta dos filhos.

- Você mostra interesse pelo que faço.

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- Bem, eu...- Sua curiosidade é muito natural.Serena deu de ombros e riu.- Sempre adorei plantas e flores. Quase toda noite, você mói um tipo de erva e

eu sempre imagino para que serve.- Talvez você, como eu, tenha o dom para este trabalho.- Ah, duvido muito.- Bobagem. Não quer sair comigo amanhã cedo? Vou colher hehaka tapejuta,

bergamota silvestre. Preciso dela para preparar remédio de alce. Serena sentiu-se animada.

- O que é remédio de alce? Uma vez, ouvi Mulher Corça falar nele na tenda da lua. Ela ria e escondia o rosto com as mãos.

- Ela devia querer um pouco para pôr na comida de Alce Ligeiro a fim de forçá-lo a se casar com ela.

- Como assim?- Alguns curandeiros, homens e mulheres, têm o remédio de alce. É a poção do

amor, Cante Tinza. Prepara-se com o coração e um pedaço da pata de alce misturados à folha de bergamota. Se um pouco do remédio for colocado na comida, ou bebida, de uma pessoa, esta se apaixona por quem a pôs. E um remédio muito poderoso. Uma vez um jovem guerreiro, loucamente apaixonado por uma jovem, me trouxe vários cavalos para trocar por uma pitada do remédio.

- E deu certo? - perguntou Serena arregalando os olhos.Lobo riu de sua surpresa.- Pergunte a Grou Alto.- Ele o usou?!Lobo tornou a rir.- Muitos anos atrás, meu amigo Grou Alto veio me procurar. Estava perdidamente

apaixonado por uma jovem e me pediu que o ajudasse. A moça tinha outro pretendente e não conseguia se decidir. Bastou uma pitadinha do remédio para, no fim de uma semana, seu coração pender para o lado de Grou Alto. Um mês depois, estavam casados e felizes.

- Mas agora, Grou Alto vive sozinho na tenda. Por quê?- Um homem chamado Blackjack reuniu muitos de seus mineradores e atacou

nosso acampamento dois verões atrás. Avisado por alguém que nunca descobrimos, eles apareceram quando parte dos homens tinha ido caçar e parte praticar proezas contra os crows que queriam nos expulsar das colinas. Eu estava com o segundo

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grupo, pois o curandeiro sempre acompanha os guerreiros a fim de cuidar dos feridos.Serena sentiu a agonia irradiando de Lobo. Os olhos refletiam a raiva e a tristeza

sentidas.- Você conhece Blackjack? - indagou amedrontada.- Conheço. Ele atacou nosso acampamento à tarde e com a intenção de matar o

maior número possível de pessoas. Um covarde, pois estavam na vila apenas mulheres, crianças e velhos. Eram cinqüenta mineradores ao todo. Nossas mulheres lutaram corajosamente e mataram dez deles. Entre nossa gente, a mulher de Grou Alto e o filho foram assassinados.

- Que horror! - murmurou Serena.- Os caçadores retornaram ao anoitecer e ouviram as lamentações das mulheres.

Havia quinze pessoas mortas e outras tantas feridas. Um dos caçadores foi procurar os guerreiros e nos alcançou dois dias depois. Voltamos correndo. Quando chegamos, mais cinco pessoas tinham morrido. - Lobo fechou os olhos. - Muitas tendas haviam sido queimadas e os mineradores roubaram o que puderam, inclusive algumas jovens. - Crispou as mãos e terminou com voz rancorosa: - Naquele dia, jurei matar Blackjack se o Grande Espírito o puser em meu caminho. Anseio pela oportunidade.

- O que aconteceu com as moças roubadas? - perguntou Serena com os olhos cheios de lágrimas.

- Nós fomos atrás dos mineradores. Eu e Grou Alto liderávamos o grupo. Rezei por uma tempestade que retardasse o progresso dos wasicuns. Os espíritos me ouviram. Naquela noite caiu muita água e granizo enquanto os coriscos riscavam o céu. Localizamos Blackjack e seus homens. As carroças estavam atoladas na lama e, ao amanhecer, atacamos. Embora acorrentadas, conseguimos soltar nossas moças. Blackjack escapou, mas ficou sabendo que Grou Alto e eu estávamos em seu encalço. Matamos mais dez mineradores e não sofremos baixas nem ferimentos. As moças tinham sido violentadas e sua volta à vila foi alegre e triste ao mesmo tempo. Mas foram homenageadas numa cerimônia especial por terem lutado contra seus captores.

Serena ficou em silêncio por alguns instantes. Depois, comentou:- Eu não sabia disso. Pobre Grou Alto. É um homem tão simpático. Muitas vezes

imaginei por que ele vive com aquele ar triste.- O remédio de alce faz efeito dos dois lados. Quem o dá fica mais apaixonado

ainda.- Ele vai sempre lamentar a morte da mulher e do filho?Lobo deu de ombros.- Os lakotas se apegam aos laços do casamento com o coração. O amor de Grou

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Alto era muito profundo. Sei de várias moças interessadas nele como marido, mas ele se mantém indiferente.

- História tristíssima - murmurou Serena observando-lhe a expressão de ódio ao continuar moendo as sementes de rosa. - Por que não me contou que conhecia Blackjack?

Lobo apenas relanceou o olhar por ela.- Eu queria que você ficasse completamente boa primeiro. Eu me condoí

muitíssimo de você ao entender que ele a violentou. Isso fez renascer meu ódio. De certa forma, ele matou uma parte sua que nunca lhe será devolvida. O wasicun não tem coração. Só se importa consigo mesmo.

Serena sentiu um arrepio e apertou os braços de encontro ao peito. As lembranças terríveis dos meses como prisioneira a inundaram.

- Eu quase o tinha esquecido porque me sinto tão feliz aqui - admitiu baixinho.Lobo viu-lhe o medo retornar aos olhos e censurou-se por ter mencionado o

nome do wasicun. Num gesto delicado, soltou-lhe os braços.- Você está segura aqui conosco. Comigo.Serena tentou sorrir, mas não conseguiu.- Às vezes, tenho pesadelos terríveis com ele vindo me buscar - contou.- Ele terá de me matar primeiro. Jamais permitirei que a leve, Cante Tinza. Se ele

tentar, irei atrás. Dou-lhe minha palavra.Serena perdeu-se no olhar aveludado de Lobo e no tom envolvente de sua voz.- Acredito.- Nunca estamos completamente seguros aqui, Cante Tinza. Os crows ameaçam

nos atacar e os mineradores invadem nossas terras, garantidas por um tratado, para roubar ouro dos rios. Os lakotas têm muitos inimigos e é por isso que nos mudamos tanto. Quando quiser colher raízes e frutas, você só deve sair com um grupo de mulheres. Assim é mais seguro, minha mulher, e eu quero que sempre fique de sobreaviso.

Dando-se conta de tê-la chamado de "sua mulher" outra vez, Lobo desviou o olhar. Como as palavras tinham escapado? Apenas um guerreiro com intenções de casamento usava tal expressão com uma jovem. Imaginava se Cante Tinza o tinha entendido. Ela já aprendera muita coisa, mas ainda ignorava grande parte dos costumes lakotas.

Serena relanceou o olhar por Lobo que recomeçava a moer as sementes. Sua mulher. Essa era a terceira vez que ele a chamava assim. O que significaria? Perturbada pela conversa, mas ao mesmo tempo desejosa que ele a tocasse outra

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vez, ergueu-se e se afastou. Sentada na enxerga, destrançou os cabelos para penteá-los, o que fazia agora todas as noites. Não podia explicar a sensação estranha na parte baixa do corpo e a ansiedade no coração sentidas todas as vezes que Lobo estava por perto.

- Amanhã cedo, leve Céu da Alvorada para Rola Voadora e peça-lhe para tomar conta da menina. Estaremos de volta no começo da tarde.

Serena assentiu com um gesto de cabeça e abriu sua sacola de couro que havia feito e pintado recentemente. Lobo já a tinha presenteado com vários itens, inclusive um pente de osso de alce. Ao pegá-lo, imaginou se ele também tinha poderes mágicos. Isso explicaria por que em seus momentos de tranqüilidade pensava tanto em Lobo? Por que sonhava com ele tocando-a de maneira amorosa? Teria ele colocado o tal remédio em sua comida?

Serena suspirou. Teria Lobo feito tal coisa às escondidas? De certa forma, desejava que sim, mas sentia-se amedrontada. O estupro ainda estava muito presente em sua lembrança. Além do mais, Lobo era um homem honrado demais para usar de subterfúgios. O povo lakota confiava nele cegamente. Lobo jamais mentia ou embelezava a verdade. Embora fosse a segunda pessoa mais poderosa e importante da tribo, ele era um homem de grande humildade. Ao refletir sobre essas coisas, ela foi dominada por uma grande emoção.

Todos os meses, Serena passava cerca de cinco dias na tenda da lua para mulheres que devolviam seu sangue à Terra Mãe. Apreciava esses dias passados em companhia de outras mulheres com o mesmo ciclo menstrual seu. Eles a faziam descansar do trabalho de sol a sol. Nesses períodos, havia aprendido a bordar, pintar e a fazer peças de couro. As mulheres também a tinham ensinado canções e outros costumes femininos. Mas Serena sentia muita falta de Lobo nesses dias.

Todavia, uma mulher em sua lua era considerada poderosa demais para conviver com homens. Ela, porque morava na tenda do curandeiro, poderia arrancar a magia de seus remédios e torná-los fracos e sem efeito.

Nesses dias, Lobo cuidava de Céu da Alvorada e de seus deveres sem reclamar. Sempre preparava seu prato preferido, ensopado de veado, para recebê-la de volta. Também a aguardava com um presentinho, geralmente flores perfumadas sobre sua manta limpa e dobrada. Serena percebia que a vida seguia um curso inesperado e reconhecia nunca ter sido tão feliz.

Depois de pentear os cabelos, ela os deixou soltos à volta dos ombros. Essa felicidade duraria? Não tinha certeza. Guardou o pente na sacola, deitou-se de costas para Lobo e fechou os olhos.

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Seu último pensamento antes de adormecer foi sobre a excursão da manhã seguinte. Há muito desejava ir procurar ervas com Lobo, mas não tivera coragem de pedir. Sorriu e sentiu a alegria invadir-lhe a alma.

- Veja lá - disse Lobo apontando e parando Wiyaka. Estavam na beira de uma grande campina oval, rodeada por pinheiros. Serena cavalgava a égua cinza.

- A bergamota?- Sim - respondeu ele ao desmontar.Era cedo de manhã e o Sol Pai ainda não estava muito alto. Embora se

esforçasse, Serena continuava tendo problemas para cavalgar, especialmente para desmontar quando se atrapalhava com o vestido. Por isso, Lobo aproximou-se sorrindo e estendendo as mãos.

- Precisa de ajuda?Serena riu.- Vejo que a história de eu cair da sela e rasgar o vestido já chegou a seus

ouvidos.Ele a segurou pela cintura e a pôs no chão. O contato a excitou.- Obrigada - murmurou ao fitá-lo.- Pois é, Mulher Corça foi correndo me contar.Serena sorriu, meio desconfiada.- Todo mundo riu, Lobo. Eu tinha ido colher dente-de-leão com as mulheres.

Felizmente antes, dei a tábua-berço com Céu da Alvorada para Andorinha segurar. - Apontou para a barra do vestido já consertado. - A franja era muito comprida e prendeu-se na sela. Já tinha passado a outra perna por cima da montaria quando percebi. Perdi o equilíbrio, gritei e caí. Comecei a rir para disfarçar o embaraço e todas as mulheres riram comigo e não de mim. Rola Voadora me ajudou a levantar.

Lobo sorriu e forçou-se a largar-lhe a cintura.- Como uma lakota, você tem senso de humor. É preciso humildade para rir de si

mesma. Fiquei aliviado por você e a criança não terem se machucado.- Não, só meu orgulho ficou ferido. Mas passou logo.Lobo fez-lhe um gesto para acompanhá-lo. Ela usava o vestido novo

transformado em roupa de trabalho, pois tinha cortado fora a franja com uma faca afiada. As mulheres raramente punham seus melhores vestidos para trabalhar porque as franjas prendiam-se com facilidade em arbustos. Ela usava o cinto feito por Lobo onde carregava uma faca, um furador e uma sacolinha com pedra-de-fogo e aço.

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Como o dia ia ser quente, Lobo estava apenas com a tanga vermelha e mocassins. Carregava uma aljava com flechas nas costas e a faca na cintura. O arco ficaria sobre Wiyaka. Essas precauções eram para no caso de se encontrarem com guerreiros crows ou mineradores.

Da parte de trás da sela, ele pegou uma das bexigas secas de búfalo usadas para acondicionar remédios preciosos e, só então, seguiram para as bergamotas. Ele fazia questão de não andar muito depressa para Cante Tinza não precisar correr. Notou-lhe as faces coradas e o brilho dos olhos. Ela estava apreciando a excursão tanto quanto ele.

Em pé ao lado das flores, Lobo deu a bexiga para Cante Tinza segurar.- Agora, você vai aprender o que um curandeiro faz. Nós nunca tiramos nada sem

pedir primeiro. Lembre-se da crença lakota - Mitakuye oyasin, somos todos relacionados.

Do outro lado de Lobo e das flores, ela sacudiu a cabeça.- Sim, somos ligados uns aos outros.- Invisivelmente, mas nada nos separa do todo, do arco do Grande Espírito. -

Lobo tirou uma sacolinha de couro do cinto que continha tabaco sagrado, conhecido como kinnikinnick, e acocorando-se diante das plantas, disse: - Primeiro, fecho os olhos e saúdo os espíritos das plantas. Então, digo quem sou e quais são minhas necessidades. Peço-lhes permissão para colher algumas com o intuito de salvar vidas. Abro os olhos, ofereço uma pitada de kinnikinnick e espero pela resposta. A maioria dos espíritos das plantas está disposta a dar sua vida por nós, alguns, não.

- Você os ouve? - perguntou Serena, admirada.- Sim. Você também poderá. Venha aqui perto de mim.Serena ajoelhou-se ao lado de Lobo e ele lhe deu uma pitada do tabaco sagrado.- Agora, feche os olhos. Diga seu nome às plantas e peça-lhes para dar suas

vidas por você. Diga que serão usadas de maneira boa e sagrada.Lobo observou-a seguir o ritual. Estava linda com os olhos fechados, os lábios

entreabertos e ar de concentração. Após um minuto, seus cílios ergueram-se.- E então, sentiu-lhes a resposta?Serena sorriu e tocou as plantas peludas.- Lobo, talvez pareça tolice, mas senti uma alegria esfuziante me envolver. Era

tão forte! Será que não a imaginei?Lobo sorriu ao vê-la acariciar as folhas da bergamota. Como gostaria que ela,

algum dia, o acariciasse com tanto amor e reverência.- Não foi imaginação sua. Os espíritos estão contentes por dar a vida por suas

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necessidades. Entenda, é uma grande honra dar a vida por alguma coisa. Como recompensa por tal ato, o espírito renasce, talvez como um passarinho ou uma borboleta.

- Mas não os ouvi falar.- Ah, eles não usam nossa língua, só a do coração. Você fez tudo certo, Cante

Tinza. Eu sinto que você dará uma boa curandeira, caso queira começar o aprendizado. No meu coração, sabia que você era chegada às plantas. Agora, tive a prova.

- Como pode ter certeza?- O coração me diz. Uma pessoa habilidosa com as plantas sente suas respostas

como aconteceu com você. Não é qualquer uma que é capaz disso.Serena sentiu-se entusiasmada.- Posso mesmo aprender tudo sobre ervas?A alegria estampada em seu rosto o apanhou de surpresa. O brilho em seus olhos

verdes o lembrava dos raios de Sol Pai através das ramagens dos pinheiros. Como todos os dias, Cante Tinza usava, nos cabelos vermelhos, a pluma de águia e o enfeite em forma de roda mágica. Isso o fazia se sentir bem, pois eram presentes seus. Sem perceber, acariciou-lhe as faces com a ponta dos dedos. Viu-lhe os olhos alargar-se de surpresa, mas depois, tornar-se cintilantes. Ao puxar a mão, deu-se conta de que ela havia apreciado o afago. Foi uma descoberta excitante para Lobo. Poderia ter a esperança de que Cante Tinza gostasse dele um pouquinho?

Lobo estremeceu por dentro ao afogar-se nos olhos verdes. Havia tanta vida neles, tanto amor. Amor? Deveria estar ficando heyoka, louco. Haveria mesmo amor nas profundezas daqueles olhos, ou ele iludia-se? Sério, forçou-se a prestar atenção às instruções sobre ervas.

- Sim, eu a ensinarei se você quiser aprender - disse numa voz tensa.- Ai, Lobo! - exclamou Serena para, num gesto intempestivo, abraçá-lo pelo

pescoço.Sentiu-o ficar tenso e, temendo ter cometido um erro, largou-o. O ar chocado de

Lobo era óbvio.- Desculpe, por favor. Eu não devia tê-lo abraçado.Aturdido, ele a fitou. Pela primeira vez, Cante Tinza agira com espontaneidade.

Ela parecia uma criança feliz, mas ainda era a mulher que se escondia sob o sofrimento. Dirigiu uma prece de agradecimento à Mulher Búfala Branca a quem rezava todas as noites pelo restabelecimento completo de Cante Tinza.

- Não, foi bom. Gostei muito.

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- Nunca vejo as pessoas se abraçando, mas fiquei tão entusiasmada que não me contive - explicou ela.

- Elas se abraçam, sim, porém, você não vê.- Como assim?Lobo sorriu e prendeu-lhe o olhar.- Abraçar é algo compartilhado pelo marido e pela mulher. É muito bom, mas não

se faz em público.- Ora, sinto muito, Lobo - disse ela enrubescendo até a raiz dos cabelos. - Entre

meu povo, é comum as pessoas abraçar-se o tempo todo. E uma maneira de mostrar afeto - acrescentou sem jeito.

- Bem, o gesto tem o mesmo significado para os lakotas.- Pode ser. Não sei.- Não se desculpe por seu modo de agir comigo. O que compartilhamos pertence

somente a nós.- Então não se ofendeu com o abraço?- Se uma calhandra pousar no topo da tenda e entoar seu canto maravilhoso eu

ficarei bravo com ela? Como posso ficar aborrecido com você por repartir sua alegria comigo a sua maneira?

- Eu queria muito lhe perguntar sobre as ervas, mas não tinha coragem. Ao ver que estava disposto a me ensinar seus segredos, fiquei animadíssima.

Lobo capturou-lhe as mãos e as prendeu entre as dele.- Nunca mais tenha medo de me pedir algo, Cante Tinza. Nosso povo costuma ser

honesto e sincero. Você foi uma flor esmagada sob a bota de Blackjack. Nós a resgatamos e tornamos a plantá-la na esperança de vê-la crescer forte e saudável outra vez. Você conseguiu. Eu a vejo como um girassol de muitas pétalas, Cante Tinza. Cada vez que exerce seu poder, uma nova pétala se abre. Você tem fortaleza, inteligência e um coração generoso presos por seu espírito ferido. Quero que você floresça. Não tenha medo de me falar dos anseios de seu coração.

Nesse momento precioso, Serena sentiu-se como um botão frágil prestes a abrir à luz do sol. E Lobo era seu sol. Gostaria de ter coragem para contar-lhe os sonhos com ele, a ansiedade em seu íntimo.

- Vou tentar me abrir mais com você - murmurou.- Washtay, bom - Lobo elogiou.Forçou-se a largar-lhe as mãos, pois caso contrário, acabaria beijando-a na boca

vermelha. Não poderia fazer isso sem sua permissão.- Quando chegar a lua das folhas amarelas, você já conhecerá muitas ervas e

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saberá como usá-las. Entre nosso povo, será conhecida como curandeira. Sempre precisei de auxílio e será muito bom tê-la trabalhando a meu lado.

Serena foi tomada por sensações maravilhosas. Queria abraçar Lobo outra vez, mas se ele retribuísse o gesto. Isso era um sonho. Seria? Não tinha visto o olhar intenso de Lobo quando a tocava? Gostaria de ter experiência em relação a homens. Mas não tinha, exceto sobre Blackjack, o homem malvado e cruel.

OITO

O sol estava escaldante e Serena sentia-lhe os raios nas costas enquanto, curvada, colhia cereja-silvestre com outras cinco mulheres. Satisfeita, Céu da Alvorada balbuciava na tábua-berço encostada no tronco de um carvalho.

Serena estava gostando muito da região Chifre de Búfalo Cinzento. A Dança do Sol, que durara quatro dias, tinha sido uma festa animada. Na ocasião, ela havia conhecido a rocha altíssima, preta e marrom, que se erguia a mais de trezentos metros de altura. As faces, de fato, davam idéia de ter sido arranhadas por um urso gigantesco.

Logo, Lobo lhe dissera, deixariam a área linda e iriam para outra também sagrada, a do Nariz de Búfalo. Seria nas encostas de lá que Lobo orientaria rapazes a ter visões reveladoras. Seria uma época de muito trabalho, avisara Lobo. Ele teria de se ausentar com freqüência e até por dias seguidos. Nessas ocasiões, ela ficaria responsável pelos doentes e feridos.

Serena sorriu. No transcorrer das últimas luas, havia absorvido com facilidade os ensinamentos de Lobo. Ela já tinha permissão de fazer curativos usando ervas. As sacolas amarradas à sela da égua cinzenta já estavam cheias. Agora, só lhe restava voltar à vila e desencaroçar as cerejas para secá-las.

De repente, todos os cavalos ergueram as cabeças com as orelhas empinadas e olharam para o lado do riacho. Serena ficou alerta. Estavam perto do território crow e um ataque poderia ocorrer.

O alarme transformou-se em surpresa. Ela viu Lobo, cavalgando Wiyaka, aproximar-se a passo. Sentiu o coração disparar. Por causa do calor, ele usava apenas tanga e mocassins e segurava algo entre os braços. O corpo bronzeado reluzia ao sol.

Geralmente, ela nunca via Lobo durante o dia, a não ser quando o acompanhava para colher ervas. Sorriu ao vê-lo parar e desmontar.

- O que traz aí?

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Lobo sorriu ao chegar mais perto de Cante Tinza. Os cabelos vermelhos estavam presos em duas tranças grossas e o vestido de couro de gamo acentuava-lhe o porte esbelto.

- Um presente para você. Abra as mãos.Ela obedeceu e arregalou os olhos de surpresa.- Ai, um cachorrinho! - exclamou aconchegando o animal entre os braços.Viu o sorriso de Lobo alargar-se. Como o achava atraente.- Não, não é um filhote de cachorro, mas de lobo.Serena soltou outra exclamação e observou o animalzinho, cujos olhos

amarelados a observavam.- Mas parece um cachorro!- Ela é filhote de lobo. Grou Alto saiu com os caçadores hoje de manhã cedinho e

eles viram uma ursa lutando com uma loba. A primeira via os dois filhotes ameaçados. A Loba perdeu a batalha. Morreram ela e todos os filhotes exceto essa aí que se escondeu embaixo de um tronco caído. Grou Alto a trouxe para mim porque teve um sonho em que achava um lobo negro e o dava para você. Foi um sonho poderoso, de premonição. Quando ele me contou, vi que tinha de vir trazer-lhe a lobinha.

- Ah, é tão bonitinha! Veja seus olhos amarelados. - Todos os lobos têm olhos amarelos. E assim que podemos distingui-los quando

são pequenos.Serena examinou o animal de três meses e perguntou: - Ela está bem? Não sofreu ferimento algum? - Não, está apenas um pouco assustada. Se lhe der carne e água, ela ficará

ligada a você pelo resto da vida.- Então, posso ficar com ela? Pensei que lobos fossem animais selvagens.- Eu sou lobo e não sou domesticado? - provocou ele rindo.Serena perdeu-se no olhar aveludado dele.- Tem razão, eu acho.- Precisa arranjar um nome para ela. Talvez sonhe com um esta noite. Você,

agora, se torna uma curandeira loba como eu. É uma grande honra.- O que é curandeira loba?Serena sabia que cada lakota tinha um espírito guia invisível na forma de um

animal. Pensava neles como anjos da guarda. Lobo era guiado e ensinado por um espírito lobo. Grou Alto tinha lhe mostrado o grou azul, que freqüentava as águas, como seu guia.

Lobo observou Cante Tinza afagar o animalzinho trêmulo.

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- Aprendemos muito com os lobos. Eles cuidam uns dos outros. Se um fica doente, ou está velho, os outros lhe trazem comida. Entre os lakotas, uma pessoa que seja curandeiro lobo é considerado instrutor.

- Você, sem dúvida, é.- E você, se for curandeira loba, também. Serena abraçou o animalzinho.- Ela ficará conosco se a alimentarmos e cuidarmos dela?- Durante a próxima lua, você a manterá presa e a levará aonde for. À noite,

deixará que durma com você. Ela a verá como a própria mãe e, então, se formará um laço que só se quebrará com a morte de uma das duas.

Serena observou o animal. Era bem preto e com um pouco de branco à volta dos olhos.

- Quanto tempo eles vivem, Lobo?- Uns quinze verões, talvez mais. Agora, preciso voltar para a vila. À noite,

conversaremos mais sobre lobos.Serena estendeu a mão e pegou a dele. Apertou-a enquanto dizia:- Obrigada. Você é maravilhoso para mim. Nem seu como agradecer e...Lobo abafou um gemido. A cada dia, tornava-se mais difícil não tocar em Cante

Tinza. Ela florescia diante de seus olhos e tornava-se mais autoconfiante e espontânea.

- Você me agradece com sua presença, Cante Tinza. Ela é um presente para mim. Não se esqueça disso. Eu a vejo ao anoitecer.

Contra a vontade, Serena largou-lhe a mão.- Sim, à noite...

- Vejam só! Ela agora tem um filhote de lobo - resmungou Mulher Corça que estava com Alce Ligeiro do lado de fora da tenda dos pais.

- Foi Grou Alto quem deu - contou Alce Ligeiro.Mulher Corça não se conformava por não ficar mais na tenda de Lobo Negro e

detestava a wasicun de cabelos vermelhos. A qualquer custo, evitava ficar perto dela.- Ela enfeitiçou Lobo Negro. Aposto como pôs remédio de alce na comida dele

uma porção de vezes. É por isso que ele a segue como esse filhote de lobo. Ambos vão atrás de seus calcanhares e com a língua de fora - queixou-se ela.

- Vamos falar de coisas mais interessantes - sugeriu Alce Ligeiro. - Não quer dar uma volta comigo agora?

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Mulher Corça fez beicinho. Alce Ligeiro era um caçador por natureza, não um guerreiro. Ela queria um como Lobo Negro, um homem de posição e não um jovem que ainda precisava provar a coragem na batalha. Alce Ligeiro não usava penas de águia nos cabelos o que era uma honra concedida a quem cometera proezas contra o inimigo.

- Não, quero ficar aqui olhando a wasicun com sua lobinha.- Tome cuidado. Esse animal é seu defensor. Um dia, cheguei perto da tenda e a

loba saiu com dentes arreganhados.- Igualzinha à dona, só que esta é mais sutil. Porém, ela não me engana.- Os mais velhos não elogiam Cante Tinza? Ela não salvou a vida de Raposa

Forte, a mulher de Boca de Texugo? - perguntou Alce Ligeiro.- Ora, Raposa Forte comeu demais e teve indigestão. Até você considera a

wasicun como uma pessoa sagrada. Pois não é! Trata-se de uma mulher como eu.Alce Ligeiro baixou a cabeça.- Não foi minha intenção deixá-la brava, Mulher Corça.Com olhar fulminante, ela respondeu:- Todos só falam de seu poder. Tolice! Lobo Negro a ensinou tudo que sabe e ela

o imita. Só isso.- Não sei. Nunca ninguém domesticou um lobo a ponto de segui-lo por toda parte

como essa segue Cante Tinza. Esse é um dom poderoso, você tem de admitir, Mulher Corça. A loba podia ter fugido para a floresta há muito tempo, mas ficou aqui. Duas semanas atrás, quando os crows estavam à espreita, foi a loba quem nos alertou e não nossos cachorros.

Com uma exclamação exasperada, Mulher Corça afastou-se. O coração batia com tanta força que ela precisava deixar a vila por algum tempo. Escurecia e o Sol Pai acabava de se pôr. Estavam na décima lua do ano e as árvores já tinham perdido as folhas anunciando o inverno. Os lakotas haviam acabado de chegar ao local onde acampavam no inverno e a vila ficava, como sempre,. perto de um rio.

Mulher Corça aproximou-se da margem. Podia sentir o cheiro de neve e deu-se conta de que o céu estava nublado. Preocupava-se com Lobo Negro que, há uma semana, liderava os guerreiros para afugentar os crows. Estes continuavam a fazer incursões no território lakota. Havia o boato que os mineradores tinham pago os crows para fazer isso. Ela morreria se algo acontecesse a Lobo Negro. Sentou-se numa pedra e fechou os olhos. Como a wasicun tinha conquistado o coração de seu povo? Todos, com poucas exceções, adoravam a mulher.

Por que não se referiam a ela, Mulher Corça, com palavras tão elogiosas?

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Também ressentia-se do fato de, todas as manhãs, Lobo Negro passar uma mistura de ervas e gordura de urso na pele alva da wasicun a fim de evitar queimaduras de sol.

Na vila, comentava-se o tempo todo se Cante Tinza e Lobo Negro acabariam se casando. Segundo as mulheres mais idosos, tratava-se de uma questão de tempo. Entre os guerreiros, Grou Alto e dois outros, que também tinham perdido as mulheres no ataque dos mineradores, gostariam de cortejá-la. Tinham conversado entre si, mas não faziam idéia das intenções de Lobo Negro. Ninguém sabia se os dois dormiam na mesma enxerga e não se atreviam a perguntar. Seria indelicadeza.

Mulher Corça enraivecia-se ao pensar no assunto. Conhecendo a honradez de Lobo Negro, sabia que ele não dormiria com Cante Tinza a não ser se anunciasse a intenção de tomá-la como esposa. Agora que Raposa Forte fora curada por Cante Tinza, ela queria que o filho, Touro Baixo, o próximo chefe, começasse a cortejá-la.

Sentada, Mulher Corça tentou formular um plano para afastar a wasicun de Lobo Negro. Ela procuraria Touro Baixo, guerreiro jovem, cheio de si e impetuoso, e lhe diria que Cante Tinza estava interessada nele. O guerreiro não desconfiaria da mentira. Depois, contaria a mesma coisa para os outros dois viúvos. Apenas não procuraria Grou Alto por ser amigo de Lobo Negro. Ela sorriu. Já podia imaginar a expressão de Lobo Negro quando os três procurassem por Cante Tinza. A excursão guerreira estava prestes a terminar e, quando todos retornassem, ela poria o plano em ação.

Deitada perto do fogo na tenda, Kagi levantou a cabeça com a atenção voltada para algo lá fora. Serena relanceou o olhar pela loba e perguntou:

- O que foi?Mostrando que queria ir para fora, Kagi dirigiu-se à saída da tenda. Vozes de

crianças ecoavam pelo acampamento e Serena soltou uma exclamação. Estaria a expedição guerreira de volta? Abriu a cortina de entrada e, no mesmo instante, Kagi desapareceu correndo.

- Eles estão chegando! - anunciava o velho pregoeiro da tribo; Cachorro Manco.Lobo voltava! Ou não? Durante um quarto de lua, havia se preocupado com a

segurança de Lobo. Segundo Andorinha, expedições guerreiras eram perigosas e, muitas vezes, os homens morriam. Todas as esposas esperaram em silêncio até a expedição ser avistada pelo pregoeiro.

A primeira neve do ano tinha caído na noite anterior e Serena havia mantido o fogo mais alto na tenda a fim de espantar o frio.

Apesar dos gritos alegres, ela se sentia inquieta. Havia tido pesadelos horríveis

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nas últimas três noites. Algo teria acontecido a Lobo? Saiu para o ar frio e viu que todos faziam o mesmo. Mulheres e crianças, em grupos, olhavam para o oeste. Serena viu quinze guerreiros descer a colina para o vale onde acampavam.

Quando já estavam mais perto, ficou gelada. Alguns cavalgavam com a cabeça deitada no pescoço da montaria. Sinal de que estavam feridos. Desesperada, procurou localizar Wiyaka, a égua preta de Lobo. Depois de minutos de agonia, viu-a no fim do grupo, com Kagi pulando à volta. Algo estava errado. Lobo não se sentava de maneira certa na sela. Estaria ferido?

Tudo que Serena podia fazer era continuar esperando como as outras mulheres. Levou quase meia hora de expectativa angustiante até o grupo entrar na vila. Os cavalos estavam cansados e mal arrastavam os pés na neve.

Impaciente, Serena manteve-se junto à entrada da tenda. Não fazia sentido juntar-se ao grupo cada vez maior de mulheres, crianças e velhos. Havia feridos a quem ela, logo, deveria prestar socorro. Finalmente, teve uma visão mais nítida de Lobo quando ele, separando-se do grupo, tomou o caminho da tenda.

- Não! - Serena gritou e apertou a mão na boca.Lobo estava com uma manta de búfalo nos ombros, mas isso não a impedia de

ver a mancha de sangue na camisa, na altura do ombro. Os músculos tensos do rosto revelavam a dor sentida.

- Lobo!Ele freou Wiyaka e sorriu, trêmulo.- Você é como o sol fulgurante em meu dia escuro, Cante Tinza.Sem esconder o pânico, ela correu com os braços estendidos. Ao tocá-lo na perna

e no braço, ele tentou sorrir novamente, mas não conseguiu.- Você está ferido - murmurou ela sem poder desviar os olhos da mancha de

sangue.Ele segurou-lhe a mão e tentou acalmá-la.- Viverei. Venha me ajudar. Perdi muito sangue e não sei se agüento ficar em pé.Serena abafou a preocupação. Tão logo Lobo escorregou da égua para o chão,

amparou-o pela cintura e sentiu-lhe o braço sobre os ombros. Lobo estava fraco e apoiava parte do peso nela.

- Vamos entrar. Posso cuidar de você.- Não - recusou Lobo lutando com a fraqueza que o ameaçava a cair de joelhos. -

Outros precisam mais de você do que eu, Cante Tinza. Pegue a sacola de remédios e vá tratá-los. Só preciso me deitar. Ficarei bem até sua volta. Dormir um pouco me ajudará.

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No interior da tenda, Serena acomodou Lobo da melhor maneira possível. Ao tirar-lhe a camisa, abafou um grito. Ele tinha sido atingido por uma seta perto do ombro direito. Embora ele a tivesse tirado fora, o ferimento exigia cuidados.

- Ai, Lobo, o que aconteceu?- Cante Tinza, vá cuidar dos outros feridos. São três. Como curandeira, deve

atender primeiro o que estiver pior. Vá logo. Não morrerei enquanto a espero.Trêmula, Serena levantou-se e cobriu Lobo com uma manta.- Voltarei assim que puder.Com os olhos fechados, ele murmurou:- Estou em casa e com você. Isso é tudo de que preciso para ficar bom.Essas palavras a acompanharam, mas de certa forma, teve de deixar de pensar

em Lobo para se concentrar no trabalho. Indo de tenda em tenda, fez os curativos necessários nos outros três feridos em batalha com os crows.

Já era quase meio-dia quando Serena voltou para o lado de Lobo. Estava quente lá dentro e Céu da Alvorada dormia tranqüilamente na tábua-berço. Aflita, observou o rosto de Lobo. Ele também dormia. Sabia o que deveria fazer para o ferimento cicatrizar sem infeccionar. Como era uma perfuração, precisava ser mantido aberto para drenar. Mexendo-se sem fazer barulho, pegou várias bexigas de búfalo que continham remédios usados em ferimentos de flechas. Depois, esquentou água numa vasilha de ferro.

Lobo acordou quando sentiu a manta ser afastada do peito. Através dos cílios negros, viu a ansiedade no rosto de Cante Tinza ajoelhada ao lado da enxerga. Ela tocava a pele em volta do ferimento para verificar a temperatura. Se estivesse alta, seria sinal de infecção. Devagar, ele levantou a mão e tocou-lhe uma das tranças.

- Sonhei com seus cabelos, com você. Fui atingido por uma flecha crow, caí de Wiyaka e rolei pela neve, perdendo a consciência. E então, você apareceu. Curvou-se sobre mim e me ordenou para levantar e montar Wiyaka. - Apesar da dor, sorriu. - Você sacudia o dedo e dizia o que eu deveria fazer. Desde então, ficou a meu lado, minha mulher, e me deu forças para voltar para casa.

Serena sentiu os olhos cheios de lágrimas.- Você poderia ter morrido.- E deixá-la para trás? Não, Cante Tinza. Eu prometi jamais deixá-la sozinha,

lembra-se?- Prometeu, sim. - Ela suspirou e enxugou as lágrimas com as costas das mãos. -

Sabe, Lobo, o ferimento está com aspecto bom.- Só preciso de seu amor e cuidado. Isto me deixará bom.

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Seu amor. Atônita, Serena o observou. Sabia que ele estava sofrendo dores.- Amor e cuidado podem ajudar, mas você precisa de repouso, alimentação e um

curativo novo todos os dias.- Tudo de que preciso tenho em você. Cometemos muitas façanhas contra os

crows. Espalhamos sua cavalhada e trouxemos muitos animais conosco. Cinco crows morreram e nós não perdemos um homem sequer. Foi uma boa batalha. Cometi a façanha de encostar minha lança no chefe Cavalo Cinzento - contou Lobo numa voz fraca.

Estaria sonhando outra vez, ou encontrava-se, de fato, na tenda sob os cuidados de Cante Tinza?

Amedrontada, ela o ouvia. Com um pano molhado, limpou à volta do ferimento feio e, depois aplicou pó de rudbeckia para evitar uma infecção. Não podia pensar em outra coisa a não ser no fato de quase tê-lo perdido. Pouco depois, ele desmaiou. Melhor assim, pois ela teria de aplicar outras ervas dentro da perfuração e, então, cobrir o ombro todo com pele de gamo bem limpa.

Kagi apareceu uivando baixinho e deitou-se perto da enxerga.- Ele vai viver - Serena garantiu à loba, mas como se tentasse convencer a si

mesma.Manteve-se ocupada. Preparou um forte ensopado de carne de veado e, quando

já terminava, ouviu barulho na cortina de entrada. Ao abri-la, deparou-se com Mulher Corça.

- Ouvi contar que Lobo Negro foi ferido. Ele está bem? Posso vê-lo? - indagou sem esconder as lágrimas.

Mantendo voz calma, Serena respondeu:- Lobo está dormindo agora, Mulher Corça. Por que você não volta amanhã? Ele

precisa repousar, pois está muito fraco.Enxugando as lágrimas, a outra disse:- Só queria saber se ele ia viver. Volto amanhã.Serena baixou a cortina para impedir o calor de escapar. Na penumbra, olhou

para Lobo que dormia profundamente. O coração pulsava com ansiedade e ela descobriu, sem sombra de dúvida, que amava Lobo.

Lobo acordou muito mais tarde. Sentiu que alguém lhe penteava os cabelos e, com esforço, abriu os olhos. Ajoelhada a seu lado, estava Cante Tinza com o pente na mão.

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- Pensei que estivesse sonhando. Lembro a primeira vez que você me deixou tocá-la. Foi para pentear-lhe os cabelos. Você parecia um animalzinho selvagem e desconfiado e eu queria provar que nem todos os homens tinham a intenção de feri-la.

Ela sorriu enquanto começava a trançar os cabelos negros.- Eu me lembro. Nunca homem algum havia me penteado e eu achava a situação

muito curiosa. Você tem sido muito bom comigo e eu me sinto mimada. Agora é a minha vez de cuidar de você. Como está se sentindo.

- Menos cansado. Você está agindo como esposa. Uma mulher não gosta de ver o marido sujo e desarrumado, por isso, o penteia todas as manhãs.

Ele observou-lhe as feições e viu sua tranqüilidade ao trançar-lhe os cabelos. Desejava muitíssimo tomar Cante Tinza como esposa. No estado em que se encontrava, estava dizendo coisas que jamais sonhara externar. Viu-lhe a pele alva das faces enrubescer.

- Estou adorando cuidar de seus cabelos e, agora, entendo por que você gostava de me fazer o mesmo - confessou ela.

Não se atrevia a fitá-lo. Ouvira a palavra "esposa" e, quantas vezes havia imaginado como seria tornar-se a dele? Com freqüência demais. Limpou a garganta e disse:

- Já escureceu. Você gostaria de comer um pouco de ensopado de veado?- Claro. Preciso recuperar minha energia.- Preparei também uma cuia de caldo de mocotó para você - contou ela ao

terminar as tranças.Como Lobo precisasse ir à tenda do suadouro, mas o ferimento o impedisse, ela o

tinha lavado com um pano umedecido em água morna enquanto ele dormia.- O mocotó vai ser bom para fortalecer meu sangue. - Tomou-lhe a mão e a

apertou. - Obrigado, Cante Tinza.Ela enterneceu-se com o olhar carinhoso dele.- Você também não cuidou de mim quando eu estava ferida?Serena puxou a mão e ajoelhou-se ao lado da enxerga. Sentia-se confusa com as

emoções sentidas. - Lobo, estou com medo.- Do quê?- De mim mesma.- Lembre-se, não há segredos entre nós. Podemos compartilhar nossos

sentimentos.Constrangida, Serena riu um pouco.

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- Tenho essas sensações estranhas dentro de mim e não sei o que significam.O estado de sonolência abandonou Lobo por completo e ele concentrou-se nas

feições enrubescidas de Cante Tinza.- Converse comigo, minha mulher - convidou refreando a vontade de tomá-la

entre os braços.Minha mulher. Uma onda de calor espalhou-se pelo corpo de Serena.- Lobo, eu... Parece tolice, mas todas as vezes que você olha para mim, meu

coração dispara. Se você me toca, sinto uma fraqueza incrível. Sua voz me dá esperança. Quando estou com você, me sinto feliz. Dormindo, sonho...

Calou-se e fez-se silêncio entre ambos. Após uns segundos, ele perguntou:- Sonha comigo? Por que não me conta?Serena tocou as faces quentes e baixou o olhar.- Sonho com você a meu lado e ambos estamos felizes. Às vezes, cavalgo na

garupa de Wiyaka, outras, você toca flauta enquanto eu me sento na beira do rio com Céu da Alvorada nos braços. Ai, Lobo, são sonhos lindos, mas tolos. Eles não têm significado algum.

Por um longo tempo, Lobo permaneceu em silêncio. Então, perguntou:- Você já sentiu a mesma coisa em relação a outro homem?Surpresa, ela indagou:- Que outro homem? Eu vivia nas ruelas de Wexford cantando comida. Morei com

minha mãe até ela morrer. Nem conheci meu pai e não tive irmãos. O único homem com quem tive contato foi Blackjack e ele só me magoou.

- Você se sente feliz quando está comigo?- Sempre.- Sei.- Lobo, o que significam todas essas emoções? Estou tão confusa. As vezes,

tenho vergonha delas e, outras, me sinto como se estivesse dançando nas nuvens de Céu Pai. Você pode me ajudar? Pode responder minhas indagações?

NOVE

Serena percebeu como a conversa estava cansando Lobo.- Ora, descuido meu forçá-lo a falar quando deveria estar se alimentando e

descansando. Vou ver a comida.Ajudou-o a sentar-se apoiado em travesseiros feitos de pele e tabua e

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encostados na estrutura da tenda.Bem agasalhado com a manta de búfalo, Lobo teve a sensação de que a dor

estava menos forte. Talvez fosse a presença de Cante Tinza que o fizesse se sentir melhor.

- Tive medo de não vê-la mais - murmurou ele.- Eu sabia que algo estava errado. Durante três noites, tive sonhos horríveis -

contou Serena ao servir o ensopado numa cuia de madeira.Percebendo-lhe a fraqueza, ofereceu-se:- Não se preocupe, eu dou na boca.- Estou tão incapaz quanto Céu da Alvorada. Você agora tem de cuidar de duas

crianças.Ela sorriu e, devagar, começou a dar-lhe colheradas de ensopado. Apenas isso a

deixava trêmula. Como o homem a afetava! Quando terminou de comer, Lobo inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos.

- Você está cansado.- Mas quero conversar com você.- Amanhã. Deite-se para eu cobri-lo. Uma boa noite de sono o fará se sentir

melhor ao amanhecer.Em silêncio, Lobo concordou, reconhecendo-lhe a sensatez. A última coisa que

percebeu, antes de cair num sono profundo, foi Cante Tinza cobrindo-o.

Serena acordou sobressaltada. Estava completamente escuro na tenda. O que a teria despertado? Ao ouvir Lobo gemer, levantou-se depressa. Pôs uns galhos de lenha no fogo e foi para o lado dele. Sentiu-se aliviada ao verificar que a pele não estava quente, mas ele mostrava-se agitado, resmungava e virava a cabeça de um lado para o outro devagar. Deveria estar sofrendo um pesadelo. Ela, melhor do que ninguém, compreendia o terror dessa situação.

Pensou logo em deitar-se ao lado dele e abraçá-lo. Por uns segundos, debateu a idéia. Lobo não a tinha aconselhado a sempre seguir a intuição? Segundo ele, o wasicun tinha cortado o cordão que ligava o coração à cabeça. Por isso, apenas pensava e não sentia. Isso o mantinha isolado das belezas da vida.

Que mal faria?, indagou-se. Mexendo-se daquele jeito, Lobo poderia aumentar o ferimento. Deitou-se bem junto a ele, mas sobre a coberta. O coração disparou, pois lembrou-se de Blackjack fazendo o mesmo.

A sensação, entretanto, não era a sentida um ano atrás

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com o contato do minerador. Ao acomodar-se junto a Lobo sentiu uma onda de calor e de ansiedade em seu íntimo. Ele logo parou de resmungar e de se debater. Estava frio na tenda, porém o fogo começava a se reanimar.

Finalmente, Serena adormeceu num arco-íris de sentimentos provocados por dormir com Lobo. Teve sonhos coloridos e excitantes. Neles, confessava seu amor a Lobo. Ele sorria e a aconchegava entre os braços.

Imerso numa sensação de bem-estar e tranqüilidade, Lobo acordou devagar. Estava bem aquecido, o ferimento não doía muito e... A atenção concentrou-se na pessoa dormindo ao lado. Virou a cabeça, e sob a luz ainda fraca do amanhecer, viu Cante Tinza deitada ao lado.

Sentia-lhe a cabeça junto à dele, os seios arredondados no braço e a respiração no ombro. A emoção o dominou ao perceber sua inocência. Ele devia estar agitado e Cante Tinza, transcendendo seu medo de homens, tinha se deitado junto a ele para acalmá-lo. O amor de Lobo não conheceu limites ao dar-se conta da grandeza de seu gesto.

Com o olhar na junção das vigas no centro da tenda, Lobo lembrou-se das palavras de Cante Tinza na véspera. Ela já morava com a tribo há mais de um ano. A certa altura, havia começado a confiar nele. Mais tarde, passou a vê-lo como ser humano e não apenas como homem. Muito depois, se apaixonara por ele. A descoberta o deixava maravilhado. Cante Tinza o amava, mas não sabia. Com um suspiro, fechou os olhos e deliciou-se com sua proximidade.

Um plano começou a tomar forma na mente de Lobo. Na primavera, quando voltassem para a área de Chifre de Búfalo Cinzento, ele começaria a cortejar Cante Tinza como acontecia a todas as moças com quem guerreiros desejavam se casar. Só porque moravam na mesma tenda não queria dizer que ela não merecesse a mesma consideração. Ao elaborar detalhes do plano, Lobo foi tomado por, um grande alívio. Na lua das folhas verdes, ele a cortejaria com toda a devoção.

Serena observava Céu da Alvorada brincar a seus pés. Estavam sentadas sob a ramagem de um pinheiro. Todas as tardes, ela levava a criança, que já andava, para gastar as energias ao ar livre. Enquanto Céu da Alvorada distraia-se pegando pedregulhos, galinhos secos e florzinhas, ela a observava e costurava.

O sol estava quente e a campina fervilhava com os lakotas desempenhando suas

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atividades individuais. O couro no colo de Serena era um colete que estava fazendo para Lobo. Sorriu ao lembrar-se da primeira vez em que Céu da Alvorada a chamara de ina, mãe. Lobo era ahtay ou pai. Serena tinha certeza de que as palavras tinham sido ensinadas por Rola Voadora. Lobo já tinha sugerido a realização de uma hunka, ou cerimônia para a adoção oficial de Céu da Alvorada.

Da colina onde se encontrava, Serena podia ver a vila inteira acomodada numa larga campina circular, rodeada por pinheiros altos. Sem vontade de costurar, fechou os olhos. Lobo a tinha ensinado a sentir o som, o cheiro e o gosto da Terra Mãe. Já fazia ano meio que estava com os lakotas e ela jamais sonhara em viver tão satisfeita.

De repente, ouviu um som diferente e lindo. Uma flauta! Virou-se para ver de onde vinha.

Arregalou os olhos ao deparar-se com Lobo sentado numa pedra um pouco abaixo do topo da colina. Ele sorriu-lhe e continuou tocando.

Atônita, Serena levantou-se. O instrumento era decorado com contas e penas azuis de grou. Céu da Alvorada parou de brincar e também ficou prestando atenção.

Com um sorriso tímido e carregando a criança, Serena aproximou-se e se sentou perto de Lobo. A música era suave, pungente e estimulante. Ela fechou os olhos e deixou-se embalar por sua magia.

Lobo tocou por quase meia hora. Algumas das canções eram tristes, outras, alegres. Quando terminou, Serena abriu os olhos e suspirou.

- Foi lindíssimo! Obrigada, Lobo.- Uma jovem deve ser cortejada sempre com música. Esta saiu de meu coração

para o seu, Cante Tinza.Faria ela idéia do quanto estava linda com Céu da Alvorada nos braços?Serena levou uns instante para entender as palavras.- Cortejada?! - murmurou.Sério, Lobo assentiu com a cabeça.- Eu vim cortejá-la, Cante Tinza.O receio o dominou. Ficaria ela atemorizada? O que diria? Rezou ao Grande

Espírito para que ela o visse como futuro marido. Viu surgir surpresa, desejo e medo em seus olhos verdes que não lhe escondiam nada.

- Ah, eu...- Não ficou contente?- Eu... não. Sim...Lobo ergueu-se e, ajoelhado a sua frente, acariciou-lhe as faces rubras.- Então o quê? Vejo muitos sentimentos em seus olhos, Cante Tinza. Não quer me

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falar sobre eles?Ao perder-se na meiguice do olhar de Lobo, Serena mal conteve as lágrimas. A

carícia leve tinha provocado uma tempestade de pequenas explosões em seu corpo. O calor e a mesma carência dominadora se fizeram sentir outra vez. Com esforço, sussurrou:

- Você quer que eu me case com você, não é?- Casar?- Sim. Compartilhar sua manta, ser sua mulher. Ele sorriu orgulhosamente.- Sim, quero cortejá-la até que se decida compartilhar minha manta todas as

noites. - Afagou os cabelos negros de Céu da Alvorada. - E quero criar filhos em seu ventre.

Serena abafou uma exclamação e sentiu o calor aumentar. Lobo continuou a acariciá-la no rosto.

- Pensei que tudo não passasse de sonhos - admitiu ela rindo um pouco.- Sonhos?!- Sonhei tantas vezes com este momento, Lobo. Sonhei com você me envolvendo

com seu cobertor de cortejar. Mas então, eu ficava com medo e fugia. Com a testa franzida, Lobo pegou Céu da Alvorada nos braços e sentou-se diante

de Cante Tinza. - Por quê?Serena ficou em pé e apertou o colete no peito.- Por causa do que Blackjack me fez. Sei que você não me trataria assim. É muito

delicado e sensível. Tento me convencer disso. Meu coração não acredita que você seja como Blackjack, mas minha cabeça não confia nem em você. Eu me sinto muito envergonhada, pois nunca tive motivos para não acreditar em sua sinceridade.

Lobo acariciou a silhueta de Céu da Alvorada. Seu vestidinho e os minúsculos mocassins tinham sido feitos por Cante Tinza.

- Apenas permita que eu a corteje. Com o tempo, sua cabeça descobrirá o que o coração já sabe. Eu te amo. Meu espírito, que percorre a Terra Mãe, lhe pertence.

Trêmula, ela assentiu com um gesto de cabeça. As lágrimas ainda a ameaçavam.- Sinto muito ser assim. Eu não queria, mas...- Tudo bem, Cante Tinza. Você não pode evitar o que sente. Não é culpa sua.

Blackjack lhe fez mal. Ele apossou-se de você. Jamais farei isso, minha mulher. Serei sempre honesto com você e lhe direi o que se passa em meu coração em relação a você. O amor não pode ser capturado e amansado. Ele tem de ser livre como a águia.

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Se você se entregar a mim há de ser porque me deseja tanto quanto eu a você. Mas a decisão será sempre sua e não minha.

O junco já estava bem alto, Serena notou ao caminhar pela orla do rio. Na véspera, tinham acampado na área Chifre de Búfalo Cinzento e, bem a sua frente, erguia-se a rocha formidável com as marcas de garras de urso. Ela havia pedido a Andorinha para tomar conta de Céu da Alvorada por uma hora, pois precisava pôr os pensamentos em ordem.

Nas últimas duas semanas, Lobo havia lhe tocado flauta todos os dias. Ao lado dele, ficava um cobertor vermelho para cortejar que ele enrolava à volta de ambos quando terminava de tocar. Ele punha as mãos em seus ombros, mas não a puxava até se encostarem. Em vez disso, contava-lhe histórias sobre os mitos dos lakotas que ela adorava ouvir.

Serena estendeu a mão e tocou o junco. Logo, ele poderia ser cortado e tecido em esteiras que secariam ao sol. Seu espírito encontrava-se em verdadeiro torvelinho e há dias não dormia bem. Estaria ficando louca? Como o corpo todo, exceto a cabeça, podia desejar Lobo? A mente vociferava que ele a magoaria tanto quanto Blackjack. Parou e, distraída, tornou a tocar o junco.

- Você está dividida.Serena soltou uma exclamação e virou-se. Com a flauta numa das mãos e o

cobertor na outra, Lobo postava-se na margem do rio- Você me assustou - murmurou ela.Lobo desceu da margem e largou a flauta e o cobertor no chão. Fitou-a com

meiguice e disse ao tomar-lhe as mãos:- Não suportava mais vê-la com esse ar sofredor, Cante Tinza.O contato e o olhar de compreensão a acalmaram.- De fato, estou dividida. É uma grande tolice de minha parte, Lobo. Não sei o

que fazer.- Ouça seu coração. Ele jamais a levará pelo caminho errado. Cada um de nós,

alguma vez na vida, deve ter a coragem de acreditar no coração, não importa o que a cabeça diga. A grande coragem é viver, Cante Tinza.

- Não tenho vivido à altura do nome que você me deu - admitiu numa voz rouca. - Você me chamou de Coração Valoroso porque ataquei os mineradores. Mas percebo que o nome significa muito mais. E um desafio diário viver de acordo com o coração e não com a cabeça.

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- Então, você entende a santidade de seu nome. Isso é muito bom. Um nome é mais do que palavras. Significa um modo de vida, de se comportar.

- Não tenho sido muito valorosa ultimamente, não é?Lobo estendeu a mão e acariciou-a nos cabelos.- Todos nós temos nossas lutas íntimas, portanto, não seja muito severa consigo

mesma. Seu nome pede apenas para que viva de acordo com tal possibilidade. Você foi corajosa uma vez e pode voltar a sê-lo.

Serena sentia a mão de Lobo puxá-la para a frente. Fechando os olhos, aninhou-se entre os braços dele de espontânea vontade. Eles não a apertavam e a levaram a pôr a cabeça no peito dele. Sentia claramente a onda de calor espalhar-se pelo corpo.

Lobo afastou-se um pouco e levantou-lhe a cabeça. Olhando-o bem dentro dos olhos, Serena pediu:

- Me beije.As palavras murmuradas tão baixo o apanharam de surpresa. Os olhos verdes

reluziam e ele, também seguindo o coração, segurou-lhe o rosto entre as mãos. Ao curvar-se para tocar-lhe os lábios pela primeira vez, rezou para se controlar e não ceder ao impulso de torná-la sua mulher. Esse era um teste para provar a Cante Tinza que ele não era um homem violento a ponto de apossar-se dela como Blackjack o fizera.

- Minha mulher - sussurrou com os lábios rentes aos seus. - Você é o arco-íris de minha vida.

Lobo sentiu-a estremecer, mas continuou apenas a roçar-lhe os lábios. Não ia forçá-la a nada, portanto, aguardava em verdadeira agonia. Estava disposto a passar pela maior tortura antes de tomar algo de Cante Tinza. Ela precisava entender que, entre um homem e uma mulher, tudo deveria ser compartilhado com respeito.

Serena sentiu a boca de Lobo rodear-lhe os lábios. Era carinhosa e delicada na sua. A boca que lhe cantava, tocava flauta e sorria, pensou. Os movimentos suaves a excitavam e a levavam a desejar mais. Inclinou-se para a frente e prensou a boca na dele. Ouviu-o suspirar baixinho. A vibração percorreu-lhe o corpo inteiro como se ele estivesse acariciado-a com as mãos. Mas estas continuavam a segurar seu rosto.

Serena desejava mais e sabia, instintivamente, que deveria pedir. Tentou e Lobo não a desapontou. No momento em que ele acariciou-lhe os lábios com a língua, um calor incendiou-lhe a parte baixa do corpo. Ela começava a tremer e a sentir as pernas fraquejar. Mal dando-se conta de que as mãos dele tinham baixado do rosto para os ombros, a fim de ampará-la, Serena começou a respirar de maneira ofegante. Aflita, afastou-se um pouco.

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Fitando-lhe os olhos escuros e tempestuosos, ela entregou-se à carência que ameaçava fazê-la desmaiar. As mãos de Lobo tornaram-se mais firmes em seus ombros e ela, com a cabeça no peito nu dele, fechou os olhos.

- Isto é amor - murmurou ele em seu ouvido. - Nós nos amamos, Cante Tinza. Eu a quero como minha mulher. Quero que seja a mãe de meus filhos. Volte para a vila comigo e sob meu cobertor. Assim, você anunciará que me escolheu como marido. Juro sempre amar, cuidar de você e respeitá-la. Os filhos que você abrigar em seu ventre serão feitos por nosso amor. Vai voltar para a vila a meu lado, minha mulher?

Serena aquiesceu com um gesto de cabeça. Nesse momento, seu coração abria-se como uma flor ao sol. Viu os olhos de Lobo encherem-se de lágrimas. Enxugou-as e respondeu:

- Sim, serei sua mulher, meu amado.Estreitando Serena de encontro ao peito, Lobo teve vontade de gritar de alegria.- Você jamais se arrependerá da decisão tomada. Seus olhos revelam felicidade e

eu quero sempre ver esse brilho neles. Quero fazê-la sorrir, Cante Tinza, e feliz como merece.

- Tudo de que preciso e quero é você, Lobo - respondeu Serena com sinceridade e lágrimas nos olhos.

- Hoje à noite, serei delicado, minha mulher. Só lhe proporcionarei prazer, eu juro.

Serena acreditava.- Sinto medo, Lobo, mas não posso permitir que isso me impeça de viver.Lobo apanhou o cobertor e o enrolou à volta de ambos.- Vamos atravessar a vila assim para anunciar a todos que, desta noite em

diante, você será minha mulher.

Mulher Corça estava sentada à entrada da tenda dos pais. Embora Alce Ligeiro falasse com animação, ela mantinha o ar amuado. O sol acabava de se esconder no poente colorindo-o de rosa e dourado. Quase todos os habitantes da vila estavam fora das tendas comendo à volta das fogueiras comunitárias, ou apenas conversando. As crianças brincavam.

- Veja! - exclamou Alce Ligeiro apontando para o fim da vila.Mulher Corça olhou e ficou estarrecida. - Não! - gritou ao pôr-se em pé. Rindo, Alce Ligeiro disse:

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- Até que enfim Lobo Negro capturou Cante Tinza. Ora, isso é muito bom!Num misto de tristeza e fúria, Mulher Corça viu Lobo conduzir Cante Tinza

orgulhosamente pela vila. Como podia ele fazer isso? Não amava a wasicun! Iludira-se por causa de sua pele alva e dos cabelos vermelhos. Com outro grito, ela correu para trás da tenda e em direção à floresta de pinheiros. Lá, sentou-se soluçando convulsivamente e balançado o corpo para frente e para trás.

Como Lobo lhe pudera fazer isso? Era uma lakota bonita e tinha pai rico em cavalos. Amava Lobo! A maldita wasicun o havia enfeitiçado!

Quando começou a escurecer, Mulher Corça parou de chorar. A mágoa tinha sido substituída pelo ódio. O que poderia fazer para tirar a wasicun dos braços de Lobo? Jurava que haveria de conseguir afastar Cante Tinza da vila para sempre.

A escuridão já era completa e Mulher Corça sabia que deveria voltar para a vila. Pior era saber ainda que, nessa noite, Lobo tomaria Cante Tinza como esposa. Amargurada, levantou-se e iniciou a longa caminhada rumo à campina e a tenda dos pais.

Nervosa, Serena executava suas tarefas rotineiras antes de se deitar. Mas dessa vez, compartilharia a enxerga de Lobo. Como presente para ambos, Andorinha tinha levado Céu da Alvorada para sua tenda. O fogo estava bem baixo, reduzido quase só a brasas, mas era o suficiente para iluminar o ambiente. Lobo tinha sacudido as mantas e estendido-as sobre as esteiras de junco, Depois, ele fora à tenda do suadouro e ao rio para limpar o corpo e o espírito. Seus cabelos estavam lavados e caíam como uma cortina negra sobre os ombros. Um grupo de mulheres casadas tinha preparado uma cerimônia semelhante de suadouro para Serena.

Com as mãos trêmulas, ela relanceou o olhar por Lobo. Usando apenas tanga, ele sentava-se sobre as pernas cruzadas e a observava. Os braços apoiavam-se relaxados nas coxas. Serena, entretanto, sentia-se tensa. Na escuridão da tenda do suadouro, as mulheres tinham lhe dado conselhos sobre o comportamento de uma esposa. Depois, a tinham acompanhado ao rio, enxaguado-a com a água gelada e lavado-lhe os cabelos. Na margem, a enxugaram, pentearam e esfregaram a perfumada bergamota silvestre em sua pele.

Elas haviam lhe dito como tinha sorte de se tornar mulher de Lobo Negro, homem respeitado e amado pela tribo toda. Conversaram e riram bastante e Serena, finalmente, as acompanhou sentindo-se menos nervosa.

Não tinha mais nada para fazer. Sabia que deveria despir o vestido e ir nua para

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a enxerga de Lobo, mas não conseguia.- Venha cá - Lobo a convidou estendendo-lhe a mão. Sentiu seus dedos frios e a

fez ajoelhar-se. - As mulheres a deixaram mais linda ainda.Tocou-a nos cabelos e o contato com a textura sedosa excitou-o. Devagar,

começou a massagear-lhe a cabeça. - Sabe quantas vezes sonhei estar fazendo isto? Um marido demonstra amor de

várias maneiras, Cante Tinza. Massageia-lhe a cabeça, penteia e trança os cabelos e, se o sol está quente, protege-lhe a pele com gordura de urso. - Desceu as mãos para os ombros. - Todas as noites vou querer aliviá-la da tensão que sinto em seus ombros. Você trabalha muito e nunca pára a fim de descansar.

Sorriu-lhe e não viu medo nos olhos verdes.- Seus cabelos são chamas crepitantes como as de seu coração. Quando seus

lábios tocaram os meus na beira do rio, senti suas chamas pela primeira vez.Com um suspiro, Serena rendeu-se à voz, à beleza das palavras, ao toque

delicado de Lobo. Percebeu que ele enrolava a bainha do vestido e deixou-o despi-la. Nua, não ousava fitá-lo e soltou uma exclamação quando ele a tocou nos ombros.

- Olhe para mim - disse ele. - Você não tem do que se envergonhar. A meus olhos, você é linda e, com sua inocência e confiança, me faz sentir bem e poderoso.

Foi preciso toda a coragem do mundo para Serena erguer os olhos para Lobo. Bem de leve, ele pôs-se a percorrer os dedos pelos ombros e ao longo dós braços até as mãos e de volta para cima. Serena jamais sonhara com sensação mais deliciosa.

- Deixe eu mostrar o amor que um homem pode dar a sua mulher. Desta vez, permita que eu lhe provoque prazer. Das outras e se você quiser, eu a ensinarei como me agradar.

Com o coração disparado, Serena aquiesceu e fechou os olhos. Acomodando-se a suas costas e com as coxas uma de cada lado seu, Lobo começou a massageá-la ao longo da espinha. Ele estava tão perto que Serena podia sentir-lhe o calor e a energia que sempre irradiava. As emoções estranhas se faziam sentir e uma carência dominadora crescia em seu âmago. Quando Lobo beijou-a ao longo do pescoço, ela estremeceu, mas não de medo e sim de desejo. Com a língua, ele fazia desenhos intrincados em sua pele e Serena gemeu ao apoiar o corpo no dele. Ao se tocarem, ela teve a sensação de que ambos se derretiam, pois estavam quentes e tinindo.

Entregue às reações dos sentido, ela não pensava mais. A experiência nova revelava-lhe uma parte desconhecida de si mesma. Mas quando as mãos de Lobo passaram sob seus braços e aconchegaram-lhe os seios, ela esquivou-se.

- Não fuja, mas relaxe de encontro a mim, minha mulher. Não vou machucá-la, só

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quero provocar-lhe mais prazer.A vergonha das cicatrizes a deixaram tensa novamente. Lobo a largou e veio

para sua frente.- Sinto muito, porém, elas são feias. Lobo. Feias.- Não, meu amor. As cicatrizes resultaram de uma batalha travada por você e,

por isso, não podem ser feias.Sorriu-lhe e tornou a capturar-lhe os seios. Fitando-a, viu o desejo dominar o

medo. Com os polegares, afagou os mamilos que, no mesmo instante, enrijeceram.- Seus seios são lindos para mim, Cante Tinza. Eles me lembram da Lua Mãe

quando ela está cheia no Céu Pai.Inclinou-se e tomou um dos mamilos entre os lábios. No mesmo instante, Serena

soltou um gritinho e agarrou-o pelos ombros. Sorrindo, ele percebeu tê-la agradado.- O leite que sair de seus seios alimentará nossos filhos, minha mulher. Eu não os

acho feios e nem nossos bebês os acharão. Quando os beijo, sinto seu anseio por mim.

Serena soltou outro gritinho quando a boca de Lobo fechou-se à volta do mamilo e o chupou suavemente. Aflita, ela enterrava os dedos nos ombros dele, mas perdeu completamente o poder de raciocinar quando sentiu a mão de Lobo descer por seu corpo e afagar-lhe a barriga. Viu-se, então sendo carregada para a enxerga dele. A pele macia de búfalo fez-lhe cócegas nas costas e ela viu a radiosidade dos olhos negros quando Lobo se ajoelhou sobre ela.

Com as mãos estendidas, ela enterrou os dedos nos cabelos negros. Lobo inclinou-se e, mais uma vez beijou-lhe os seios. Serena perdeu toda a coerência ao render-se ao assalto dele a seu espírito teimoso. Quando a mão desceu para suas coxas, ela foi inundada por uma onda de sensações maravilhosas. O calor intensificava-se sob as carícias e uma carência estranha formou-se abaixo dos dedos dele. Sem perceber, ela abriu as pernas.

Ao mesmo tempo em que massageava sua parte mais íntima, Lobo tomou-lhe a boca abafando um gemido. As carícias continuaram até Serena se ver alvo de uma série de pequenas explosões. Arqueando o corpo de encontro ao dele sentia-se atravessada por raios, cada um fazendo-a estremecer com um prazer jamais imaginado. Lobo a incentivava para se entregar completamente ao êxtase.

Atordoada, Serena sentiu Lobo mexer-se sobre ela. De repente, lembranças do passado invadiram-lhe a mente. Num gesto de desespero, tentou empurrá-lo para longe.

- Calma, minha mulher - sussurrou ele conhecendo as razões para sua reação.

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Deitou-se de costas e, segurando-a pela cintura, a sentou sobre ele.- Aceite de mim o que e quanto quiser, meu amor. Se sentir dor, ou pressão, não

insista. Deixe seu coração guiá-la. Não precisa fazer o que não queira. Não existe pressa.

Trêmula de carência e, ao mesmo tempo, desolada com as lembranças do passado, Serena sacudiu a cabeça. Sentindo a rigidez do membro, o coração não resistiu. Ela queria amar Lobo plenamente. Entregando-se às carícias estimulantes, deixou-se penetrar.

O prazer estonteante recomeçou e Serena fechou os olhos. Mal podia acreditar que a presença de Lobo em seu corpo pudesse ser tão deliciosa. Bem devagar, ele começou os impulsos e novas sensações a dominaram. O ritmo aumentou deixando-a desesperada. Finalmente, uma explosão magnífica a sacudiu.

Lobo gemeu ao sentir-lhe os espasmos. Prolongou-lhe o prazer e, então em três arremetidas súbitas, derramou a semente em seu corpo acolhedor e adorável. Fechou os olhos e rezou ao Grande Espírito para lhes dar um filho concebido nessa noite. Um filho à imagem do amor oferecido pelo coração injuriado de uma mulher valorosa.

DEZ

- Lobo, venha sentir sua filha mexer.Com as mãos no ventre dilatado, Serena estava sentada com as costas apoiadas

em travesseiros encostados na estrutura da tenda. Como era inverno, já escurecera e apenas a luz do fogo clareava o ambiente.

Largando o trabalho de moer ervas secas, Lobo aproximou-se de Cante Tinza. Notou a expressão de cansaço da mulher. Preocupado, ajoelhou-se a seu lado e espalmou as mãos em sua barriga.

- Você trabalha demais. Seu olhar está cansado - protestou.Sentiu o movimento da criança e sorriu.- Sua filha está acordada e com três vezes mais energia do que eu neste

momento - brincou Serena.- Dentro de uma lua, você dará à luz ajudada pelas velhas mulheres.Cante Tinza tinha ficado mais bonita ainda com a gravidez. Ela irradiava uma

alegria que atingia a todos com quem convivia, pensou ele.Serena tinha perdido a noção dos meses há muito tempo. Fora mais fácil

adaptar-se ao ciclo das estações e viver de acordo com ele.

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Ela descobrira que estava grávida na terceira lua após compartilhar a enxerga de Lobo. Ninguém tinha ficado mais feliz do que ele e ninguém mais descontente do que Mulher Corça. Serena desejava que a moça parasse de sentir ciúmes. Certa ocasião, Mulher Corça desapareceu por uma lua inteira e ninguém soube por onde andou. Quando voltou, tinha um sorriso misterioso, mas não contou nada. Cansado de suas despeitas, Alce Ligeiro desistiu de conquistá-la.

- Eu me preocupo porque será na lua mais fria do inverno - ela confessou cobrindo-lhe as mãos com as suas.

- Este ano, tem caído menos neve e não está tão frio como em outras épocas. Além do mais, os bebês lakotas sempre nascem fortes e saudáveis.

- Eu gostaria que você estivesse a meu lado na hora de nossa filha nascer, Lobo.- Um parto é responsabilidade de mulheres. Elas têm conhecimento natural da

situação. Os homens não dão à luz, portanto, não devem assistir a um parto.- Você sempre ajuda o nascimento de potros e cachorrinhos - argumentou

Serena.- Isso é diferente.- Não acho.Ele sorriu e beijou-a na testa franzida.- Você estará rodeada pelos cuidados amorosos das parteiras. Ficarei do lado de

fora da tenda rezando por você e por nosso filho.Ela aconchegou-se a Lobo e também sorriu.- Simplesmente sei que é menina. Soube tão logo descobri que estava grávida.Lobo concordou com a cabeça, pois também sabia.- Ela vai ser linda, Cante Tinza. Mas você precisa começar a descansar mais. Se

não fizer isso, eu a mandarei para a tenda de Ursa Sonhadora. Ela a forçará a passar a última lua em tranqüilidade.

Serena sorriu da seriedade dele. Sabia muito bem que Lobo jamais permitiria a separação de ambos.

- Ursa Sonhadora quer se tornar avó de nosso bebê - ela lembrou-o.Lobo observou a recente cicatriz branca no pulso.- Você e eu misturamos nosso sangue. Toda minha família, com exceção de

Andorinha e Estrela Vespertina, morreu. Precisamos de uma avó para mimar nossas duas filhas.

Serena riu baixinho e olhou para Céu da Alvorada que dormia. Ela já completara dois verões e não usava mais a tábua-berço, pois tinha sua própria enxerga. Serena também observou a própria cicatriz no pulso. Ele tinha sido cortado na cerimônia

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realizada três dias após ter concordado em se casar com Lobo. O sangue de ambos se misturara numa promessa de se manterem unidos até a morte.

Lobo tomou-lhe a mão e beijou a cicatriz no pulso.- Logo providenciaremos para Ursa Sonhadora se tornar unci, avó de nossa

família - ele prometeu.- Ótimo. Não sei o que teria feito sem ela nessas últimas luas, Lobo. Ursa

Sonhadora cuida de Céu da Alvorada quase o tempo todo para me dar tempo de atender doentes e ajudá-lo em cerimônias.

- Ursa Sonhadora dará uma excelente avó. Ela está ansiosa pelo nascimento de nossa filha.

Rindo baixinho, Serena inclinou-se e beijou Lobo. Nunca se desapontava ao fazê-lo, pois ele sempre demonstrava amor na carícia. Desde o início da gravidez, o marido tornara-se mais prestativo ainda e esforçava-se para poupá-la dos trabalhos mais pesados. Também nesse período, ele havia cessado de fazer-lhe amor e, embora continuasse demonstrando afeto de outras maneiras, Serena sentia saudades do contato íntimo.

Afastando a cabeça, Lobo sorriu-lhe.- Espero que nossa filha tenha seus olhos verdes. - E seus cabelos negros - acrescentou Serena. - Não! Quero que tenha vermelhos flamejantes como os seus.- E se não tiver?- Eu a amarei da mesma forma como amo a mãe.Com um suspiro, Serena reclinou-se nele.- Você tem mesmo de ir caçar amanhã? Não pode ficar aqui?Lobo aninhou-a nos braços.- Precisamos de todos os caçadores para garantir nossa carne antes de nevar

muito. Eu a levarei em meu coração, Cante Tinza. Os dias passarão depressa e logo estarei de volta. Não fique com esse olhar triste.

- Não sei por que, mas estou com medo.- Não vou correr perigo algum. Os crows não nos atacarão, se é isso que está

pensando.- Não sei, não. Alguma coisa ruim vai acontecer.- Você sonhou? - perguntou ele, preocupado.- Não. Não se trata de algo que eu possa identificar. Apenas a sensação de

perigo.Lobo ajoelhou-se e, como fazia todas as noites, começou a destrançar-lhe os

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cabelos.- Muitas mulheres sentem medo injustificável no final da gravidez.- Eu preferia que você não fosse, Lobo.- Nós estaremos em segurança.- Nesse caso, você não poderia deixar uns guerreiros na vila para nos defender

de algum ataque?- Não vejo necessidade. Estamos bem dentro de nosso território e os crows não

se atreverão a nos atacar aqui. Na semana passada, os caçadores viram mineradores cavalgando rumo norte, na direção oposta daqui. Como vê, eles também não oferecem perigo. Todos nós estamos seguros, minha mulher.

- Mas leve Kagi com você. Ela o alertará contra um ataque de crows ou de mineradores.

- Está bem, ela irá conosco.Serena sentiu-se um pouco melhor e olhou para a loba que dormia ao lado da

enxerga de Céu da Alvorada. Lobo gostava de levá-la em suas expedições. Além de suas qualidades como caçadora, ela era capaz de alertá-lo da presença de inimigos na vizinhança muito antes de um ataque ser iniciado.

- Lá está ela - avisou Blackjack.Ele e vinte mineradores escondiam-se na floresta da colina por onde se chegava

à vila indígena perto do rio.Uma neve leve havia caído e Blackjack ajeitou melhor o casaco de pele de búfalo.

A montaria, um enorme cavalo baio, mantinha-se imóvel sob sua mão de aço. Ele semicerrou os olhos ao ver Serena seguir em direção ao rio que ficava a uns quatrocentos metros do fim da vila. Ela vestia roupas lakotas e usava tranças. Estavam no início da tarde e o céu nublado indicava que logo recomeçaria a nevar.

- O que vamos fazer, chefe? Invadir a vila atirando para matar os malditos índios?Blackjack lançou um olhar fulminante para Jake Gunther, o minerador a sua

direita.- Não, seu idiota, nada de tiros! Quero apenas a bruxa de cabelos vermelhos! Ela

é nosso alvo. - Dirigiu-se a todos que formavam um semicírculo a seu redor. - Vocês vão entrar na vila a galope e armar confusão. Gritem bastante e atirem para o ar. E para distrair a atenção de todos enquanto eu a pego.

- E quanto aos guerreiros? - protestou Jake.- Mulher Corça me garantiu que estariam todos caçando nesta semana. Não vejo

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os cavalos, só mulheres, velhos e pirralhos.- Posso ganhar vinte e cinco dólares por escalpo - Gunther acrescentou,

esperançoso.- Desta vez, não, seu ambicioso. Quero aquela mulher de volta e não uma nação

inteira em armas vindo atrás de nós. Não queremos que os sioux ataquem nosso acampamento. Entendeu? Muito bem, vamos logo. Quando pegarmos a mulher, partiremos. Nada de matar ninguém.

Os cachorros da vila começaram a latir e Serena, ajoelhada entre o junco seco para apanhar água, ergueu a cabeça. Ouviu o tropel de muitos cavalos e pensou logo num ataque dos crows. Por causa do estado adiantado de gravidez, não pode se virar depressa, mas ao se levantar, ouviu o pregoeiro gritando:

- Mineradores! Mineradores!Soltando uma exclamação, ela levantou a cabeça e viu uns vinte cavaleiros

galopando colina abaixo em direção à vila. Com o coração disparado e num gesto instintivo, levou a mão à cintura à procura da faca. Não estava lá. Há muito tinha deixado de usar o cinto por causa do corpo avolumado.

Ela viu crianças e mulheres saindo das tendas com tacapes e lanças a fim de se defenderem. Apanhou a vasilha de água e, cuidadosamente, subiu a margem escorregadia do rio.

Ao chegar lá em cima, viu três cavaleiros se separar do grupo e vir em sua direção. Ao mesmo tempo, ouvia estampido de tiros e uma gritaria infernal. Tentou correr, mas o chão estava liso e ela teve medo de cair e machucar o bebê.

Os três cavaleiros a rodearam apanhando-a num espaço aberto, desarmada e longe da vila. Abafou um grito ao reconhecer Blackjack. Virou-se numa tentativa vã de escapar. Como ele a tinha encontrado?

- Suba aqui - ordenou ele ao desmontar. - Você é minha e vai voltar comigo, sua bruxa.

- Não! - gritou Serena atirando-lhe a vasilha de água.Gunther curvou-se e a agarrou por uma das tranças. - Pronto, peguei-a, chefe - disse ele rindo.Gemendo, Serena sentiu-se sendo puxada de encontro a montaria do minerador.

A cabeça toda doía enquanto continuava presa pela trança. Não, isto não poderia estar acontecendo, pensou alucinada. Tentou lutar, mas a cada pontapé em direção a Blackjack, novo puxão da trança a desequilibrava.

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- Sua bruxa irlandesa! Você é minha! - esbravejou Blackjack ao segurar-lhe os braços.

Serena deu-se conta de que tinha de parar de lutar se quisesse salvar a criança. Blackjack enterrou os dedos enluvados em seus braços e, com um sorriso triunfante, a puxou de encontro a ele.

- Não me machuque - implorou ela. - Meu bebê... Meu bebê...- Cale a boca e monte já! - ordenou ele.Trêmula, Serena obedeceu e, imediatamente, passou o braço pela barriga a fim

de protegê-la. Blackjack montou atrás e, esporeou a montaria. No instante seguinte, partiam a galope colina acima e para longe da vila.

Lágrimas congelaram-se nos cílios de Serena quando ela viu os outros cavaleiros se juntar aos três. "Ai, Grande Espírito", rezou ela, "me socorra".

Mulher Corça, fingindo estar tão assustada quanto o resto da vila, observou os mineradores cavalgar colina acima e desaparecer. Escondendo um sorriso, desejou boa sorte a Cante Tinza. Blackjack tinha lhe dado cobertores, contas e carne seca de búfalo por ela ter lhe contado onde estava a wasicun de cabelos vermelhos. De volta do acampamento dos mineradores, ela havia escondido os presentes numa caverna conhecida dos lakotas. Com o passar do tempo, ela os pegaria de pouco em pouco. Se aparecesse na vila com eles já, todos a questionariam para saber onde os conseguira.

Da entrada da tenda dos pais, Mulher Corça observou a expressão desolada dos velhos e ouviu o choro das crianças pequenas. Como havia prometido, Blackjack não tinha ferido ninguém. Satisfeita, ela dirigiu-se à tenda de Lobo Negro. Planejava estar lá quando ele retornasse da caçada e, além do mais, Céu da Alvorada precisava de uma nova mãe. Mal contendo a alegria, Mulher Corça correu entre as tendas para assumir o papel que era seu por direito, o de mulher de Lobo Negro.

Kagi soltou um uivo longo e triste. Deitado entre os trinta companheiros, Lobo acordou de um sono leve. Apreensivo, viu a loba no alto da colina próxima continuar uivando. Muito estranho. Sentiu um arrepio ao longo da espinha e sentou-se para refletir.

No mesmo instante, pensou em Cante Tinza. Sabia, sem sombra de dúvida que Kagi estava ligada a seu espírito e sentia-lhe a disposição de ânimo não importava a distância que as separava. Afastando a manta, Lobo levantou-se.

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Grou Alto, que dormia ao lado, acordou.- O que foi, Lobo? - perguntou, sonolento.- Vou voltar para a vila - respondeu Lobo ao apanhar a sela, cobertor e manta.- O quê?!- Kagi está uivando. Sinto como se algo ruim tenha acontecido. Talvez para Cante

Tinza. Não sei, mas preciso descobrir.- Bem, faça como entender.- Preciso ir agora. Nós nos veremos quando todos voltarem - despediu-se Lobo.A neve não estava muito alta e ele sabia que cobriria um bom pedaço do trajeto

durante a noite. Ao aproximar-se de Wiyaka, Kagi chegou correndo. Uivava baixinho e sacudia a cauda enquanto rodeava a égua. O comportamento da loba aumentou a ansiedade de Lobo. Montou depressa e partiu rumo à vila, no sul, que ficava a um dia de distância. Alguma coisa estava muito errada, refletiu ao cavalgar através da campina branca de neve e iluminada pela lua cheia. Jamais ele havia sentido medo tão estranho.

Mulher Corça ficou perplexa ao ouvir os gritos anunciando a chegada inesperada de Lobo Negro. Em pé e tensa, aguardou a entrada dele na tenda. Podia ouvir os idosos contando-lhe, lá fora, o seqüestro de Cante Tinza. Como reagiria ele? Olhou para Céu da Alvorada que sentava-se quietinha num canto. A criança tinha chorado quase sem parar, não importava o que ela fizesse para consolá-la.

A cortina foi aberta e Mulher Corça exclamou:- Lobo Negro, eu o saúdo.- O que está fazendo aqui? - perguntou ele.Dirigiu-se a Céu da Alvorada que deu um grito e abriu os bracinhos. Abaixando-

se, ele a pegou no colo.- Vim para ajudar, naturalmente. Sua filha precisava de mim - respondeu Mulher

Corça ao passar a mão nas costas de Céu da Alvorada que, agarrada ao pescoço de Lobo, soluçava.

Lobo resmungou:- Agradeço. Pretendo partir tão logo acondicione comida necessária para a

viagem. Você tomará conta de minha filha enquanto eu estiver fora?Mulher Corça o fitou com os olhos arregalados.- Viagem? Para onde?- Vou buscar Cante Tinza.

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- Mas...- Ela é minha mulher - interrompeu ele.- Eles o matarão se o virem. Não vá, Lobo Negro! Ela não vale o sacrifício! Você

não entende? Blackjack a possuiu primeiro.Lançando-lhe um olhar furioso, Lobo vociferou:- Possuiu-a?! Ele a violentou, isso sim, Mulher Corça! Essa é a verdade. Tratando-

se de minha mulher, é meu dever salvá-la.- E se ele já a matou? Você cairá numa armadilha e será morto também!Lobo colocou as sacolas já cheias nos ombros e apanhou uma manta pesada de

búfalo. Ele mal podia imaginar a mulher amada, morta. Numa voz rouca, murmurou.- Se Blackjack a matou, pagará com a vida, juro.Em prantos, Mulher Corça agarrou-o pelo braço.- Você não pode ir! Tem Céu da Alvorada para se consolar. E nosso povo? Você é

nosso curandeiro. O que acontecerá se precisarmos de você? Onde estará? Pode nos esquecer assim tão facilmente por causa da wasicun de cabelos vermelhos?

Furioso, Lobo tirou-lhe a mão do braço.- Ficou heyoka, louca, Mulher Corça? Ela é minha mulher e carrega nosso filho no

ventre! Que tipo de marido eu seria se não tomasse providências quanto a seu seqüestro? Você só fala tolices. Fique aqui e mantenha minha filha em segurança.

Em seguida, Lobo foi embora.Mulher Corça soluçou. Cobriu o rosto com as mãos e chorou copiosamente. Ouviu

Lobo afastar-se a galope sabendo que ele caminhava para a morte certa. Blackjack a tinha avisado que mataria quem fosse procurar a wasicun de cabelos vermelhos.

Tensa e na expectativa, Serena sentava-se na beirada da cama. A casa de madeira de Blackjack era a maior e a melhor do acampamento dos mineradores.

Entretanto, o quarto estava gelado e ela tremia de frio. Havia uma cama, com colchão de pena, e uma cômoda no aposento pequeno. O corpo ainda estava dolorido depois da cavalgada brutal da noite anterior. Massageou a barriga e rezou ao Grande Espírito para manter a filha a salvo lá dentro. Um grilhão de ferro fora colocado em um de seus pulsos e a corrente presa na guarda da cama. Era longa o suficiente para ela dar alguns passos pelo quarto.

Lucinda, a escrava negra de Blackjack, entrou no quarto frio. Trazia uma bandeja com comida fumegante. Fechou a porta depressa e aproximou-se de Serena.

- Eu lhe trouxe isto - disse pondo a bandeja na cama a seu lado. - Você precisa

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comer. Meu senhor disse para lhe dar bastante comida e para tirar-lhe essas roupas de índio. Vou buscar o vestido que ele quer que você use. Agora, coma.

Lutando contra as lágrimas de medo, Serena segurou-lhe a mão.- Por favor, Lucy, me ajude a fugir!- Ora, Serena, não posso fazer isso, você sabe. Mestre Blackjack mandará me

açoitar. Por mais que eu queira, não posso. Se as ordens dele não forem seguidas, você sabe o que acontecerá.

A pobre escrava tremia da cabeça aos pés. Serena sacudiu a cabeça.- Está bem, vou comer. Não quero que ele a espanque.Revirando os olhos, Lucy murmurou:- Graças a Deus. Vou buscar seu vestido novo e já volto.Serena não sentia fome, mas com mãos trêmulas, forçou-se a comer. Tinha de

recuperar a energia, pois se oporia a Blackjack como antes.Finalmente, começava a anoitecer. A luz filtrada pela janela de mica já esmaecia.

Serena continuava aguardando sentada. As horas tinham se arrastado penosamente. Ela havia se negado a trocar o vestido de couro de alce pelo de chita que estava estendido nos pés da cama. As lembranças horríveis de Blackjack a atormentavam. Ele sempre vinha à noite e com uma vela na mão. Faria o mesmo dessa vez.

Quando a escuridão se tornou completa, ela ficou de sobreaviso. Ao ouvir a porta ser destrancada, sentiu o coração disparar. Blackjack entrou com a vela na mão e afugentou parte da escuridão.

Desanimada e morta de medo, Serena o observou. Blackjack tinha mais de um metro e oitenta e cinco de altura, pele trigueira e cabelos negros mantidos para trás com gordura de urso. Devia ter trinta e poucos anos e governava o acampamento de mineração como se fosse um rei cuja autoridade era indiscutível. Seus capangas andavam por todo canto atirando em quem o desobedecesse.

Blackjack pôs a vela sobre a cômoda e virou-se.- Ainda me desafiando, sua bruxa. Lucinda trouxe o vestido para você usar. Não

quero mais vê-la nessa roupa horrível de índia.A voz dele era áspera e cada nervo no corpo de Serena arrepiava-se de terror ao

ouvi-la. Com expressão sombria nos olhos azuis, ele se aproximou. Embora com a boca seca, Serena esforçou-se para reunir as palavras que queria dizer-lhe desde que a seqüestrara.

- Por que fez isso, Blackjack?Ele sorriu com expressão cruel.- Por quê?!

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- Você quase me matou e me largou semimorta na floresta há dois anos. Por que depois desse tempo todo foi me buscar?

Ele arregaçou os lábios e mostrou os dentes amarelados numa careta horrorosa. Queria amedrontar a bruxa.

- Como se você não soubesse!- Soubesse o quê? O que eu lhe fiz? - perguntou Serena.- Representar foi sempre sua melhor carta. Finge não saber de nada? Pensa que

sou estúpido? Não adianta fingir inocência - disse ele como o rosto a centímetros do seu. - Cadela! - urrou forçando-a a deitar-se de costas na cama e imobilizando-a com as mãos em seus ombros. - Ainda não sabe? - indagou aos berros.

- Não! - Serena gritou sem poder se mexer.Ambos respiravam de maneira ofegante. Ela podia ver a fúria nos olhos azuis e

sentir o cheiro de bebida no hálito dele.- O que fiz para merecer isto?Com um palavrão, ele a soltou e endireitou-se.- Representando até o fim, não é, Serena? Deus me ajude! Apesar do que fez

para minha família, eu ainda a desejo. - Olhou para sua barriga. - Está grávida de um índio. Eu tinha esperança que abortasse com a cavalgada, mas isso não aconteceu. Não tem importância. Você vai ficar presa nessa cama até o bastardo nascer. Então, providenciarei uma de minhas escravas para amamentá-lo. Tão logo ele esteja maiorzinho, eu o venderei.

Gritando, Serena sentou-se com esforço.- Não! Não venda meu bebê! Você não pode! Satisfeito com sua reação,

Blackjack sorriu.- Lágrimas, minha querida Serena? Serão verdadeiras ou falsas? - Apontou o

dedo para ela. - Três dia depois de ser largada na beira do rio, você voltou até aqui para se vingar. Pôs fogo em minha casa, sua vagabunda. Matou minha mulher e meu filho.

Curvou-se sobre ela e, satisfeito, viu-a levantar a mão livre para proteger o rosto.- Não incendiei sua casa! Seria impossível!- Você voltou às escondidas para desforrar-se de mim por largá-la na beira do rio

- Blackjack declarou em voz exaltada.Atônita, Serena o encarou.- Não fiz isso. Juro que não fiz.Ele apanhou a vela e dirigiu-se à porta.- Acreditarei em você quando um burro voar. Você lutou contra mim desde o dia

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em que a comprei daquele maldito mercador de escravos irlandês. Não importava quanto eu a espancasse, você continuava a me desafiar. Desta vez, vai pagar mais do que nunca. Por sua causa, meu filho está morto. Só Deus sabe como eu gostava do menino. Ele era minha vida! Sonhei tanta coisa para Lionel. Mas você, de maneira vingativa, o assassinou.

- Não é verdade! Você tem de acreditar em mim!- Um minerador jurou que a viu com uma tocha nas mãos e jogá-la pela janela do

quarto de meu filho. O pobrezinho estava dormindo. Minha mulher, que Deus a tenha, tentou salvar Lionel, mas morreu junto.

- Com toda a sinceridade, lamento a morte deles - Serena murmurou em voz rouca. - Mas não fui eu. Os lakotas me acharam na manhã seguinte e me levaram com eles. Eu não estava aqui. O minerador mentiu para você.

Blackjack sacudiu a cabeça.- Não. Prefiro acreditar nele. Acho bom se acostumar a ser minha escrava outra

vez. Vou esperar seu pirralho nascer e, então, você vai esquentar minha cama todas as noites até eu me cansar. Aí, eu a matarei num pagamento justo pela morte de minha mulher e de meu filho.

Ele saiu batendo a porta e Serena soluçou baixinho. A acusação de Blackjack não tinha fundamento. Ele costumava tapear os mineradores e um deles, provavelmente, tinha se vingado incendiado a casa. Refletiu sobre a situação e achou que precisava, acima de tudo, encontrar uma maneira de proteger a criança. E quanto a Lobo? Ele não voltaria à vila a não ser dentro de uma semana.

Tremendo muito, Serena deitou-se e fechou os olhos. Lobo. Quanto o amava! O que ele faria? O que poderia fazer? O acampamento de mineração fervia com homens armados que odiavam os lakotas. Angustiada com a sensação de perda, não resistiu às lágrimas. Sua filha ia lhe ser tirada. Isso não poderia acontecer. Jamais.

ONZE

Serena afligia-se com a proximidade do anoitecer e a perspectiva da visita de Blackjack. Era seu segundo dia de cativeiro e haviam acendido fogo na lareira do quarto. Lucy a tinha levado a um outro cômodo para tomar banho numa tina de cobre. Depois de lavar e secar-lhe os cabelos, à escrava os tinha escovado até deixá-los brilhando. Ela também a forçara a vestir a túnica larga de chita que não a agasalhava tanto como o vestido de couro de alce. Este, as perneiras e os mocassins estavam

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guardados na cômoda.Embora sem fome, Serena forçou-se a comer. Do lado de fora da casa recém-

construída, chegavam o vozerio dos mineradores, o relinchar de cavalos e o ranger de carroças. A casa de Blackjack, de dois andares, ficava à entrada do acampamento dominando-o como um castelo a seu reino.

Graças ao fogo na lareira, estava menos frio e escuro no quarto. Na esperança de soltar o prego que prendia a corrente à madeira da cama, Serena puxava constantemente o braço. Como resultado, o pulso estava esfolado e sangrava.

Já era bem tarde quando ela ouviu ruído de botas no corredor. Pouco depois, Blackjack entrava empunhando uma garrafa de uísque meio vazia. Numa voz pastosa, ele disse:

- Pensei que pudesse dormir, mas não consegui. Ontem, foi a mesma coisa e por culpa sua.

Parou e tomou um gole da bebida, mas sem tirar os olhos de Serena. Depois, aproximou-se.

- Com essa sua beleza, você não passa de uma maldita - afirmou ao pegar um punhado de seus cabelos entre os dedos. - Você é uma bruxa irlandesa. E selvagem e difícil de ser domada. Pensei que pudesse manter as mãos longe de você até seu bastardo nascer, mas não consigo.

Esquivando-se, Serena murmurou:- Por favor, não faça mal a meu bebê.- Se você matou meu filho por que não posso fazer mal ao seu?- Eu juro, nunca voltei para incendiar sua casa! Não matei seu filho. Adoro

crianças e jamais poderia fazer mal a uma delas.Ele segurou-lhe o queixo entre o polegar e o indicador.- Não acredito. Vou possuí-la agora, sua bruxa. Não posso parar de pensar em

você e no que tivemos. Pouco me importa esse pirralho em sua barriga. Fique em pé e tire a túnica.

Serena puxou o rosto e tentou empurrá-lo, mas ele agarrou o decote da túnica e puxou rasgando-a. Serena juntou as pontas a fim de esconder os seios. Pelo canto dos olhos, viu-o levantar a mão e estapeá-la. O lado da cabeça explodiu com luz e dor e ela caiu de costas na cama. Sentiu gosto de sangue enquanto as mãos dele a apalpavam sem piedade.

Com um grito, Serena levantou a perna e deu um pontapé. Blackjack gemeu de dor, cambaleou e caiu para trás. Ignorando a dor no lado esquerdo do rosto, Serena sentou-se.

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Quando Blackjack tentava se erguer, a porta abriu-se e Serena abafou um grito. Em silêncio, Lobo entrou empunhando a faca. Com o pé, fez o outro voltar a se estender no chão. No instante seguinte, encostava a faca em seu pescoço.

- Um único grito e eu lhe corto a garganta - avisou Lobo.Olhou para cama e quase explodiu de ódio ao ver sangue correndo do nariz e da

boca de Cante Tinza. Percebeu que Blackjack a tinha esbofeteado.- Você se atreveu a tocá-la?Os olhos de Blackjack estavam dilatados de pavor ao sentir a faca no pescoço. A

lâmina afiada já cortava a pele e sangue escorria.- Eu... eu...- Você vai morrer - declarou Lobo.- Não! Chega de mortes, Lobo - protestou Serena. - Ele tem a chave da algema

no bolso da calça. Faça que ele a entregue.Lobo hesitou.- Você bateu em minha mulher. Nenhum homem faz isso e vive para contar a

história. Dê logo a chave.Lobo afastou um pouco a faca, mas apenas o suficiente para Blackjack enfiar a

mão no bolso e tirar a chave. Pegou-a e atirou-a para Serena.- Você pode se soltar, Cante Tinza?Ofegante, ela fez um gesto afirmativo com a cabeça e apanhou a chave no ar.

Com dedos trêmulos, soltou a algema.- Deixe eu trocar de roupa, Lobo.- Depressa, pois não temos muito tempo.Despindo a túnica, Serena passou o vestido de couro de alce pela cabeça.

Quando acabava de calçar as perneiras e mocassins, Lobo já tinha prendido o pulso de Blackjack na algema e amordaçado-lhe a boca.

Aliviado por Blackjack não oferecer mais perigo, Lobo pôs a faca de volta na cintura. Aproximando-se de Serena, segurou-a pelos braços e viu a marca terrível do tapa em seu rosto.

- Ele fez isso?- Sim. Ai, Lobo, você veio. Nem posso acreditar - disse ela em prantos.- Eu jamais a abandonaria, Cante Tinza. Ele a tocou de outra maneira?- Não, mas estava prestes a me violentar. Se você não houvesse chegado, ele o

teria feito. Lobo comprimiu os lábios.- Cante Tinza, os cavalos estão entre as árvores atrás da casa. Kagi espera com

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eles. Vá até lá. Vou encontrá-la logo.Serena viu-lhe o olhar determinado. - Lobo, o que vai fazer?- Aplicar o castigo merecido. Não quero que você veja, por isso, vá logo.Segurando-lhe o braço, ela implorou:- Não o mate, Lobo. Os mineradores irão atrás de nosso povo.- Eu sei. Não vou matá-lo - garantiu ele ao levá-la até a porta.- Promete?- Juro. Agora, siga depressa pelo corredor até a porta de trás. Dei uma pancada

na cabeça do guarda lá e ele está desacordado. Monte Wiyaka e espere por mim. Mantenha Kagi com você. Não a deixe aparecer.

- Está bem.Serena seguiu pelo corredor. Ao chegar à porta de trás, abriu-a e viu que estava

nevando. Com cuidado, desceu os degraus e apressou-se tão logo alcançou chão plano.

Localizou os cavalos e Kagi amarrados a galhos de árvores a poucos metros da casa. A loba pulou e sacudiu a cauda ao vê-la. Soltou-a, mas continuou com a corda entre os dedos enquanto fazia o mesmo com as montarias. Wiyaka relinchou baixinho quando ela a montou. Lobo tinha trazido uma pesada manta de búfalo que dava para cobri-la da cabeça aos pés, protegendo-a contra o ar frio e a neve.

Acabava de se ajeitar na sela quando Lobo desceu os degraus e correu até ela. Pulou na sela da outra montaria e cobriu-se com uma manta.

- Vamos embora. Se você se sentir mal, me avise - disse ele ao estender a mão e apertar a sua.

- Está bem Lobo. Não vejo a hora de desaparecer daqui.- Estamos indo para casa, minha mulher.A medida que cavalgavam, Lobo foi ficando mais e mais preocupado. A neve

aumentara e transformara-se numa nevasca com ventos gelados. As montarias escorregavam, tropeçavam, mas mantinham o passo firme, embora vagaroso. Cante Tinza estava ficando cada vez mais para trás e isso era estranho, pois Wiyaka não era preguiçosa. Finalmente, ele parou e a esperou.

- O que foi? A criança?Ela mordeu o lábio para abafar um grito.- Ai, Lobo, acho que estou em trabalho de parto. Mas é cedo demais.Consternado, Lobo desmontou e aproximou-se de Wiyaka.- Vou cavalgar com você. Está tendo muitas dores?

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- São horríveis. Estou com medo de perder nossa filha - confessou ela com os olhos cheios de lágrimas.

- Não pense nisso - disse ele ao montar. - Conversei com as parteiras e elas disseram que a cavalgada anterior poderia provocar o nascimento prematuro da criança. Elas me aconselharam, caso você entrasse em trabalho de parto, para encontrar um lugar abrigado e ajudá-la a dar à luz.

Exausta e atordoada, Serena apoiou o corpo completamente em Lobo.- Estou muito cansada e com tanta dor. Só consigo chorar.- Isso é natural, Cante Tinza. Você passou por muita coisa sozinha. Vim buscá-la o

mais depressa possível. Intuí que você corria perigo quando Kagi começou a uivar na primeira noite de nossa excursão de caça.

Ela fechou os olhos e tentou não pensar nas dores de contração e do queixo.- Pensei que nunca mais o veria e, por causa do bebê, estava muito

amedrontada. Blackjack ia dá-la a uma ama e, depois, vendê-la a um mercador de escravos. Agora, estou com medo de que ele venha atrás de nós. Não posso cavalgar depressa, o que vai nos retardar.

- Acalme-se, minha mulher e não fale muito. Isso só a faz gastar energia preciosa. Blackjack não virá em nosso encalço.

Continuavam cavalgando pela floresta, mas o dia já clareava. Então, poderiam procurar abrigo. Serena virou um pouco a cabeça e perguntou:

- Por que ele não virá?- Porque ele não poderá andar, muito menos cavalgar, por um bom número de

luas. - Não estou entendendo.- Ele matou uma parte de você quando a violentou. E ia estuprá-la de novo

apesar de você estar grávida. Entre meu povo, não perdoamos o homem que faz isso a uma mulher.

- O que você fez para ele, Lobo?- Eu o castrei como castraria qualquer cavalo. Ele jamais poderá fazer-lhe mal ou

a qualquer outra mulher - explicou ele em tom satisfeito.- Ai, não - gemeu Serena apertando a mão na boca.Enquanto cavalgavam, Serena chegava a cochilar um pouco, mas acordava cada

vez que Wiyaka escorregava provocando-lhe dor no queixo. Tentava não gemer, mas era impossível. O medo de que os mineradores, por ordem de Blackjack, os seguissem a atormentava. Sem dúvida, estava vivendo um pesadelo. Apenas os braços de Lobo a sua volta a impediam de perder o controle.

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- Pronto, chegamos - disse ele a seu ouvido.Serena levantou a cabeça e viu a neve caindo como uma cortina branca. Os

pinheiros cobertos por ela pareciam sombras.- Chegamos onde? - perguntou ela, confusa.Lobo desmontou e a carregou nos braços.-À caverna. Há muitas delas pelas colinas. Quando precisamos caçar durante o

inverno, ficamos aqui - explicou ele ao caminhar cuidadosamente pela neve alta rumo à entrada parcialmente coberta da caverna.

Mais tarde, Serena sentava-se de encontro à parede da caverna com a manta de búfalo cobrindo-a. Em ondas que vinham e iam, as dores percorriam-lhe o corpo. Havia perdido a noção do tempo desde o início das contrações e mal se dava conta do fogo crepitante no centro da caverna.

Esta, na verdade, era uma série de pequenas grutas. Um estoque de capim tinha sido colhido no verão e armazenado para-alimentar os cavalos que estavam na primeira. Na segunda, a mais protegida, havia bexigas secas de búfalo, contendo alimentos, e utensílios de cozinha. Serena viu Lobo preparar comida como se estivessem na tenda.

- O ensopado está com cheiro apetitoso, mas não estou com fome - admitiu ela.Lobo relanceou o olhar por Cante Tinza e notou-lhe a palidez. Preocupado, ficava

enfurecido com o inchaço da face esquerda.- Quero que tente comer, minha mulher, para criar energia. Logo, nossa filha

nascerá e você precisará de força.Lobo mexeu o ensopado pendurado sobre o fogo. A correnteza de ar pelas

cavernas puxava a fumaça para o interior. Ninguém a veria e, portanto, estavam seguros ali, Lobo sabia. Depois de tirar a panela do fogo, ele estendeu vários cobertores de lã, um em cima do outro, para formar uma cama. Ali, nasceria a filha.

Serena voltou a cochilar intermitentemente até sentir Lobo aconchegá-la nos braços. Em seguida, ele alimentou-a às colheradas. Deu-lhe apenas caldo de carne temperado com cebola silvestre.

- Chega - murmurou ela sentindo-se exausta e fechando os olhos.Lobo pôs a cuia e a colher de lado e acariciou-lhe os cabelos embaraçados.- Você tomou o suficiente - disse ele.- Estou tão cansada, Lobo. Só desejo dormir.- Pois durma, minha mulher - disse ele aninhando-a de encontro ao peito.As batidas do coração de Lobo a fizeram adormecer apesar da dor das

contrações, mas aos poucos, ela foi relaxando.

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Lobo continuava fervendo de ódio contra Blackjack. Devia ter matado o wasicun, mas atendera o pedido de Cante Tinza para poupar-lhe a vida. Sabia que ele, tão logo se recuperasse, lhes viria ao encalço, provavelmente na primavera. Ou talvez mandasse um bando de mineradores atacá-los. Blackjack já sabia com que tribo lakota Cante Tinza morava e podia tentar seqüestrá-la outra vez por vingança. Tão logo o bebê nascesse, eles deveriam partir. Talvez ele devesse ir na frente e avisar o chefe para mudar logo o acampamento e não permanecer lá como alvo do ódio de Blackjack.

Lobo beijou a cabeça de Cante Tinza e fechou os olhos. Seu amor pela mulher era tão grande como Céu Pai.

De tempos a tempos, o corpo de Cante Tinza ficava tenso como um arco e, depois, relaxava gradualmente. Ele sabia que as contrações estavam mais perto uma das outras. Rezou a Mulher Búfala Branca para facilitar o parto. Depois, rezou por um sinal de que seu pedido seria atendido, pois sabia de mulheres que morriam de parto. Ele simplesmente não suportaria perder sua mulher de cabelos vermelhos.

Serena acordou com uma dor lancinante movendo-se pelo centro do corpo. Ofegante, abriu os olhos. Mais sentiu do que viu Lobo. Ele afagava-lhe os cabelos.

- Calma, minha mulher. Logo, nossa filha virá ao mundo e para minhas mãos.Serena piscou e percebeu já ser dia. Com a ajuda de Lobo, sentou-se. A dor era

muito intensa para continuar deitada.- Já amanheceu? - perguntou num fiapo de voz. - Já faz tempo. - Lobo sorriu e apontou para a entrada da caverna. - Veja, Mulher

Búfala Branca respondeu minha prece. Uma pomba entrou voando na gruta quando amanhecia e ficou arrulhando e andando de um lado para o outro. E um sinal muito bom. O parto vai ser rápido e fácil.

Serena virou a cabeça e viu a ave cinzenta e marrom andando em círculos no espaço entre a primeira e a segunda gruta.

A cena a distraiu da dor.- Rezei também por um nome - contou Lobo acariciando-lhe a mão. - Vamos

chamar nossa filha de Wakinyela, Pomba.- É um nome lindo, Lobo.- Você aprova?- Como não? Afinal, você é curandeiro e entende de nomes.Ele riu satisfeito.

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- Você dormiu quase a metade da noite. Está mais descansada? Sente fome?O simples fato de estar na companhia de Lobo animava Serena. Seu amor por ele

era eterno. Sorriu e fitou-o.- Sim, eu me sinto melhor, mas não quero comer.- Está bem. A bolsa rompeu quando clareava o dia - disse ele apontando para um

cobertor molhado. - Nossa filha nascerá logo.- Ainda bem. Nunca senti dores tão fortes - disse ela com os braços à volta da

barriga.- Vocês mulheres são mais fortes do que qualquer homem. Têm força de espírito

para tolerar uma agonia como esta. É por isso que as mulheres têm os filhos.- Neste momento, não me sinto com muita coragem.Lobo colocou uma manta enrolada sob suas costas a fim de mantê-la meio

erguida.- Você é a mulher mais corajosa que já conheci. - Apanhou-lhe o .pulso

machucado pela algema e o mostrou como exemplo. - Você fez de tudo para escapar de Blackjack, não fez?

- Fiz. Eu tinha de tentar, Lobo.- Agora, você vai ter de se esforçar ao máximo, minha mulher. Isso apressará o

nascimento de nossa filha.A dor aguda dava, a Serena, a sensação de estar sendo partida ao meio. Seguia

as instruções de Lobo e não tirava os olhos da pomba que continuava a arrulhar e andar em círculos. Cada vez que se via tomada pelo desânimo, a ave voava acima deles e, depois, voltava ao chão.

Serena transpirava com o esforço e Lobo ajudou-a a ficar de joelhos. Soltou um grito ao sentir o bebê começar a nascer e ouviu a voz tranqüilizadora de Lobo. Atirou a cabeça para trás, arqueou o corpo e viu a escuridão diante dos olhos.

Lobo sorriu quando a filha escorregou para suas mãos. Era um bebê saudável e rosado. Com cuidado, removeu-lhe o muco do nariz e da boca com o dedo.

Ainda ofegante, Serena olhou para a criancinha nas mãos de Lobo. Com um gritinho, estendeu os braços para receber a filha que já estava enrolada em couro de corça nova.

- Ela é linda - sussurrou ao olhar para Lobo.- Tão linda quanto a mãe - disse ele enquanto secava os cabelos negros da

recém-nascida.- Tão pequena e perfeita, Lobo. E ela é nossa!Lobo chorava de alegria enquanto secava os braços e os dedinhos minúsculos da

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filha. Por um instante, ela entreabriu os olhos e ele não conteve um sorriso.- Ela herdou meus cabelos, mas tem olhos verde-azulados. As palavras tornaram-se inúteis. Nesse instante, a pomba levantou vôo, circulou

sobre eles e desapareceu pela entrada da caverna.- Ela foi embora - murmurou Serena.- Já havia cumprido sua missão, transmitir o sinal de Mulher Búfala Branca - disse

Lobo com voz emocionada ao afagar os cabelos da filha. - Bem-vinda a nossos corações, Wakinyela.

Em seguida, acomodou-a junto ao peito da mãe e ajudou-a a encontrar o mamilo.- Não acho que ela vá ter fome de passarinho - comentou rindo.Serena concordou ao ver a filha sugar o leite com vigor. Fechou os olhos e

encostou a cabeça em Lobo que se ajoelhara ao lado. Além de exausta, estava preocupada. Blackjack imaginava que ela havia lhe matado o filho e não sossegaria até se vingar.

Por mais que quisesse conversar com Lobo a esse respeito, não tinha forças. Lamentava a morte do filho de Blackjack, pois criança alguma merecia ser colocada entre o ódio das pessoas. Porém, mais do que qualquer coisa, Serena desejava que Wakinyela fosse criada em paz e amparada por seu amor e o de Lobo.

DOZE

- Cante Tinza é a culpada por termos de mudar! Minhas mãos estão azuis de frio - Mulher Corça queixou-se aos pais.

Para onde olhasse, via os lakotas desmontando as tendas a fim de seguir para um outro local mais afastado. Temiam um ataque dos mineradores à procura de Cante Tinza ou de Lobo.

- Não reclame. Nós estaríamos nos mudando de qualquer forma se alguém houvesse sido seqüestrado pelos wasicuns. A culpa não é de Cante Tinza - argumentou Alce Ligeiro que a ajudava.

Mal controlando a inveja, ela lançou-lhe um olhar de raiva. Um grupo de mulheres tinha ido mais cedo à tenda de Lobo Negro e providenciado a mudança que deveria ser executada por Cante Tinza. Dois dias atrás, eles haviam chegado à vila com a filha recém-nascida.

- Gostaria de saber como a wasicun conseguiu se soltar.- Ajudada por Lobo Negro. Ouvi contar que ele castrou o homem que a

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seqüestrou.- O quê?! Ninguém me contou nada – exclamou Mulher Corça.- Era o mesmo wasicun que a manteve prisioneira antes. Talvez tudo não passe

de falatório. Se quer saber a verdade, Mulher Corça, por que não vai perguntar a Lobo Negro? - sugeriu Alce Ligeiro.

- Ela só vai provocar morte e desgraça a nosso povo. Quem garante que o wasicun não virá atrás dela quando a neve derreter? Correremos perigo para onde quer que nos mudemos.

Alce Ligeiro sacudiu a cabeça.- Não, o chefe nos mudará para muito longe. Os wasicuns não nos acharão.- Você também ficou cego por causa da wasicun de cabelos vermelhos? Já

esqueceu dos soldados da cavalaria? Eles sempre aparecem em acampamentos indígenas que abrigam qualquer wasicun, seja homem, mulher ou criança.

- Para de piar como uma coruja machucada, Mulher Corça. Temos um tratado com os wasicuns e os soldados têm mais o que fazer do que procurar alguém de sua raça pelos acampamentos indígenas. Além do mais, Cante Tinza está conosco por vontade própria. Não é nossa prisioneira.

Consumida pelo ciúme, ela respondeu:- Tratado! O wasicun quebra qualquer tratado quando bem entende. Ele quer o

ouro que existe em nossos rios. Você está tão cego quanto um velho, Alce Ligeiro!Como um plano tão cuidadoso podia ter falhado?, indagou-se Mulher Corça. Ela

tivera sorte ao ouvir uns mineradores bêbados comentar sobre a morte do filho e da mulher de Blackjack num incêndio dois anos atrás. Enrolada num cobertor e fingindo ser uma índia viciada em aguardente, ela entrara no acampamento dos mineradores. Ao ouvir a história, formou o plano de ir procurar Blackjack. Contou-lhe que Cante Tinza se vangloriava de haver incendiado sua casa em vingança por ele tê-la violentado. Embora fosse mentira, ela queria se ver livre da wasicun de uma vez por todas.

Sem muita esperança, Mulher Corça não sabia o que mais poderia ser feito. Quase todos da vila tinham ido receber Lobo Negro e Cante Tinza e falavam sem parar na beleza da criança, Wakinyela, que tinha cabelos pretos e olhos verde-azulados.

Se ao menos Blackjack voltasse outra vez para capturar Cante Tinza...

Sonolento, Lobo mexeu-se. Tinha o braço sobre Cante Tinza que, nua, dormia de encontro a ele. A temperatura estava agradável graças à lua das folhas verdes quando

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as plantas vicejavam com a volta do calor. Lá fora da tenda, começavam os primeiros rumores do amanhecer.

Lobo aspirou o aroma dos cabelos de Cante Tinza. Na véspera, eles tinham sido lavados e perfumados com bergamota silvestre. Firmado num dos cotovelos, ele verificou as crianças. Céu da Alvorada, que logo completaria três verões, dormia na enxerga e Wakinyela, na tábua-berço feita por Cante Tinza antes do seqüestro. Entre elas, estava Kagi que, automaticamente, se tornara a guardiã das duas.

Ele volveu o olhar para a mulher e admirou-lhe as feições lindas. Nesses cinco meses, após seu resgate das mãos de Blackjack, ela se mostrava, às vezes, tensa e nervosa. Seu sono era agitado por pesadelos, mas nesse momento, estava tranqüila. Como ele gostava de seus lábios vermelhos e das estrelas douradas em suas faces e nariz.

Lobo sentiu o latejar do desejo e sorriu ao acariciar-lhe os seios avolumados pelo leite. Wakinyela tinha o apetite de seis filhotes de lobo reunidos. Lobo admirava-se da beleza e da perfeição dos seios. As cicatrizes tinham se tornado leves e ele esperava que, com o tempo, desaparecessem para deixar de ser motivo de embaraço para a mulher.

Serena começou a despertar sob o efeito de ondas de calor pelo corpo. Sorriu ao sentir as mãos de Lobo descer de seus seios para as coxas. Ansiosa pela exploração deliciosa, abriu-as. Ao sentir-se acariciada, gemeu baixinho e abriu os olhos.

Lobo curvou-se e a beijou na boca enquanto os dedos continuavam a massagear sua parte mais sensível, mostrando-lhe o quanto a desejava. Sentiu-a cravar os dedos em seus ombros numa prova de sua reciprocidade. Ela arqueou-se e recebeu-o em seu corpo.

Deliciado com o calor aveludado que o envolvia, Lobo suspirou e enterrou as mãos em seus cabelos adorados. Cante Tinza enlaçou as pernas nas dele e mexeu os quadris estimulando-o a iniciar os impulsos. Ele havia acordado com a intenção de satisfazer a mulher primeiro, mas via-se capturado por sua generosidade e beleza. Juntos, alcançaram o êxtase.

Ofegante, Lobo relaxou com a cabeça ao lado da sua. A transpiração pontilhava o rosto de Cante Tinza. Fitaram-se e ela murmurou:

- Eu te amo.Beijaram-se longamente e, feliz, Serena refletiu sobre a mudança sutil operada

em Lobo. Desde seu retorno ao acampamento, ele havia se tornado mais atencioso e preocupado com sua segurança. Ele também exibia os sentimentos em relação a sua pessoa abertamente e sem constrangimento algum.

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Serena sorriu quando Lobo, deitando-se de costas, a puxou sobre ele e apertou o corpo de encontro ao seu.

- Você parece tão insaciável quanto sua filha. Cuidado, Céu da Alvorada já está se mexendo.

- A culpa é sua por me tentar - brincou ele.- Minha?! Foi você quem começou - respondeu ela ao levantar-se e pôr o vestido

de couro de corça.A frente deste tinha sido feita para poder ser aberta e facilitar a amamentação

de Wakinyela.Rindo, Lobo também levantou-se e vestiu a tanga. Depois, apanhou o pente e fez

Cante Tinza ajoelhar-se à frente dele.Trançar-lhe os cabelos era uma das coisas que ele mais apreciava. Os momentos

passados em companhia da mulher eram raros e ele os valorizava. A tribo já começava a armazenar alimentos para o ano seguinte e, todos os dias, grupos de cinco a dez mulheres percorriam as colinas colhendo cebola silvestre, bulbos e outras ervas usadas no preparo da alimentação. Por isso, ele só via Cante Tinza depois de Sol Pai se esconder no horizonte.

Serena relaxou e apoiou as mãos nas coxas dele. - Adoro ser mimada assim - murmurou.- Uma esposa merece respeito - disse ele ao beijá-la no pescoço.- Nunca vi um homem branco mostrar tal respeito à mulher.- Os wasicuns mantêm as mulheres como escravas. Agora, vire-se de lado para

eu fazer a trança. Mas antes, vou cortar um pouco de seus cabelos - avisou ele apanhando a faca.

- Para quê? Lobo sorriu.- Tive um sonho esta noite. Nele, vi duas mãos trançar um círculo de nossos

cabelos. Quero fazer dois desses colares para nós usarmos. Eles vão ser muito poderosos pois foram revelados em sonho. Os cabelos trançados vão simbolizar nosso amor eterno. Nada poderá quebrar o círculo que nos une.

- Foi um sonho lindo - concordou ela ao ver Lobo cortar-lhe um pouco dos cabelos.

- Quando pentear os meus, você cortará um punhado igual - recomendou ele. Terminando as tranças, Lobo as enfeitou com plumas macias de sob o rabo da águia. Elas proclamariam sua coragem, refletiu ele, satisfeito.

- Você vai colher bulbos hoje?- Vou, mas à tarde. De manhã, pretendo ajudar as mulheres a curtir as novas

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peles de búfalo.- Então, tomo conta das crianças à tarde - avisou Lobo.Ele não queria as meninas com Cante Tinza pelas colinas. Se Blackjack tentasse

novo seqüestro, poderia matá-las num gesto de vingança.Serena virou-se entre as coxas dele e sorriu. Viu Céu da Alvorada sentada,

esfregando os olhinhos.- Nossa filha mais velha já vai levantar - avisou.Lobo observou a menina dirigir-se à entrada da tenda e sair. Ela faria pipi,

voltaria a seguir e ficaria nos braços dele enquanto Cante Tinza o penteasse. Uns minutos depois, Céu da Alvorada entrou, prendeu bem a cortina e atirou-se nos braços de Lobo.

Serena desviou-se e riu ao ouvir Lobo resfolegar como urso no peito da menina, fazendo-lhe cócega. O barulho dos três, ecoando pela tenda, acordou Wakinyela, o que forçou Serena a terminar depressa as tranças de Lobo. Em seguida, entregou-lhe o pente:

- Sinto muito, mas você vai ter de pentear Céu da Alvorada. Wakinyela já está resmungando.

Lobo acomodou a menina no colo e, enquanto desembaraçava seus cabelos e os trançava, observou Cante Tinza trocar a fralda e começar a amamentar a mais novinha. Sorriu ao ver a sofreguidão do bebê.

- Wakinyela me lembra um filhote de lobo morto de fome.- Você tem razão. Parece que não mama há dias - comentou Serena.- Talvez, quando for mais velha, conquiste um nome de loba.Rindo, Serena levantou a cabeça.- Não duvido nada.Ao crescer, dependendo da personalidade ou das experiências, a criança mudava

de nome. Serena tinha descoberto que Grou Alto se chamava Menino Águia na infância. Mas um dia, ao tomar banho no rio, um grande grou azul chegou voando e pousou a poucos passos dele. Muitos homens, inclusive Lobo, presenciaram a cena. Com os pés dentro da água, o grou arrancou três penas da asa que vieram flutuando na correnteza até Grou Alto. Todos concordaram que a ave tinha vindo anunciar ser o espírito guia do jovem guerreiro. Desse dia em diante, Grou Alto passou a usar as três penas nos cabelos.

Os ruídos vindos de fora anunciavam que o acampamento já iniciava suas atividades. Serena via Lobo terminar de pentear os cabelos de Céu da Alvorada e enfeitar as tranças com contas vermelhas, a cor preferida da menina. Depois, ele a

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vestiu também.- Com quem você vai colher bulbos, Cante Tinza?- Com Andorinha, Ursa Sonhadora e, se não me engano, Mulher Corça.Lobo não escondeu o aborrecimento.- Não gosto disso. Mulher Corça tem ciúmes de você. Vejo bem os olhares que ela

lhe dirige. Serena deu de ombros.- Espero que ela acabe compreendendo que nós nos amamos e pare de sonhar

em ter você como marido.Lobo endireitou a tanga e calçou mocassins. Como faria calor, ele não usaria

perneiras, a não ser se tivesse de cavalgar. Em seguida, pôs lenha sobre as brasas.Céu da Alvorada apanhou a boneca feita por Ursa Sonhadora e a colocou de

encontro ao peito imitando Cante Tinza com Wakinyela. Lobo percebeu e sorriu. A menina tinha sua própria sacola com utensílios femininos, uma tenda pequena, com sua armação, e cavalinhos de pau. Todas estas coisas tinham o propósito de fazê-la imitar a mãe em seus afazeres e, assim, ir aprendendo seus deveres como membro da tribo e futura mulher. Grou Alto, que também se tornara tio de Céu da Alvorada através de uma hunka, cerimônia, tinha feito os cavalinhos de choupo sagrado. Muitas vezes, ele a levava para passear à cavalo.

A tranqüilidade reinante na tenda deixava Lobo feliz. Kagi aproximou-se e esfregou o focinho em seu ombro. Concentrado em preparar a refeição matinal, ele a afagou. Antes de Wakinyela nascer, esse trabalho era executado por Cante Tinza, porém, ele queria que a mulher amamentasse a filha em sossego e sem se preocupar com a refeição.

- Você vai procurar bulbos perto do pântano, Cante Tinza?- Sim. É um lugar novo para mim.- Tome cuidado. Existe um bulbo, conhecido como psin hubloka, que é muito

venenoso e se parece com cebola. Já vi famílias morrer porque jovens esposas, não sabendo, as confundiram com cebola. Peça a Ursa Sonhadora para lhe mostrar a diferença entre psin hubloka e cebola.

O sol estava agradável, sem ser quente demais, enquanto Serena, com uma vareta pontuda, desenterrava cebolas da rica terra das colinas. Não a muitos metros de distância, Ursa Sonhadora, cuja cabeleira branca contrastava com o verde da vegetação, fazia o mesmo. Andorinha coletava potamogeto, um tipo de rizoma, que poderia ser comido cru, ou cozido. Num gesto distraído, Serena tocou o colar de

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cabelos trançados à volta do pescoço. Antes de sair para colher as cebolas, Lobo a tinha surpreendido com o presente. No pescoço dele havia um idêntico.

Mulher Corça trabalhava sozinha recusando-se a ficar perto das três. Já fazia horas que estavam ali e ela ainda não tinha pronunciado uma palavra sequer. Aborrecida, Serena suspirou. Cada vez que a moça levantava a cabeça, dirigia-lhe um olhar rancoroso como se a culpasse por estar viva.

A campina era oval e cheia de ondulações. Serena endireitou-se e observou-lhe a beleza. O céu azul estava pontilhado de nuvenzinhas brancas e milhares de pinheiros rodeavam a campina perfumando-lhe o ar com seu odor delicado. Os cavalos pastavam satisfeitos e flores coloriam o capinzal de vermelho, azul, amarelo e rosa, lembrando Serena de um arco-íris disperso.

De repente, Andorinha virou-se e disse:- Escutem! Estão ouvindo?- O quê? - perguntou Serena assustando-se.- Cavalos. Estão vindo muitos nesta direção.Mulher Corça foi a primeira a correr rumo às montarias. Serena apressou-se em

ajudar Ursa Sonhadora que mancava e tinha dificuldade em andar depressa. Já a amparava quando Andorinha veio correndo com o mesmo propósito.

Serena já ouvia o barulho, uma trepidação que a lembrava de uma caçada de búfalos no ano anterior. Os animais disparavam provocando vibração na terra e no ar. Enquanto se apressavam com Ursa Sonhadora esforçando-se para andar depressa, Serena perguntou:

- Serão búfalos?-Não, cavalos. Muitos deles. Talvez sejam os crows! - respondeu Andorinha.Serena apavorou-se. Estavam perto do acampamento de Chifre de Búfalo

Cinzento onde havia sempre o risco de um ataque crow. Ursa Sonhadora era gorda e cansava-se com facilidade e já diminuía o passo. À frente, Serena viu Mulher Corça partindo a galope.

- Por que ela não soltou nossos cavalos?- Essa criatura é muito egoísta. Só pensa em si mesma - respondeu Andorinha.

Espere até chegarmos ao acampamento. Vou contar ao chefe Boca de Texugo como Mulher Corça foi covarde. Ela deveria ter ficado para nos ajudar.

O ar tremia agora e Serena abafou um grito ao ver os cavaleiros surgir da floresta de pinheiros perto do pântano. Andorinha olhou por sobre os ombros e exclamou:

- Soldados da cavalaria!

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Ursa Sonhadora gritou:- Salvem-se as duas e me larguem aqui!- Não! - protestou Serena ao começarem a correr, praticamente arrastando a

velha índia. - O que eles podem fazer? Será que vão nos matar?- Não sei. Estamos em paz com eles. Mas veja como vêm a galope - respondeu

Andorinha ao soltar a montaria de Ursa Sonhadora.Enquanto Serena a empurrava para cima da sela, gritou:- Depressa! Depressa!- Solte Wiyaka! - Andorinha ordenou, mas a corda era nova e dura.Ao lutar para desmanchar o nó, Serena viu como os soldados já estavam perto.- Vá embora! - gritou para Andorinha.- Não! Largue Wiyaka e monte na minha garupa, Cante Tinza - respondeu a outra

estendendo-lhe a mão.Serena deu-se conta de que, se as duas fugissem no mesmo cavalo, não

conseguiriam escapar dos soldados.- Não, vá você - disse dando um tapa na anca do animal que partiu a galope.Serena continuou tentando desatar o nó da corda, mas percebeu que não

conseguiria mais fugir.. Impotente, permaneceu esperando que tiros lhe varassem o corpo. Não conteve as lágrimas. Como amava Lobo e as filhas. Ai, Grande Espírito, guarde-os sob sua proteção.

Agora, ela já podia ver o líder do grupo, um jovem loiro de bigode. Logo atrás dele, vinha um outro empunhando uma bandeira vermelha e branca. A seguir havia, pelo menos, trinta homens cavalgando em colunas de dois.

Serena fechou os olhos e aguardou seu destino. Felizmente, as outras três mulheres tinham escapado e Andorinha contaria a Lobo o que havia acontecido. Eles encontrariam seu corpo ali na campina, pois tinha ouvido histórias de soldados que matavam pessoas em lugares ermos e largavam seus corpos para ser comido pelos abutres.

- Companhia, sentido!Serena abriu os olhos. O soldado loiro e de faces coradas erguia a mão enluvada.

Percebendo que não iam matá-la e sim levá-la prisioneira, ela o encarou.- É a srta. Serena Rogan? - perguntou ele.Há quanto tempo ela não ouvia esse nome.- Sim.O oficial sorriu um pouco e bateu continência.- Sou o capitão Jason Anderson. Fomos informados de que uma mulher branca,

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de cabelos vermelhos, tinha sido capturada pelos índios. Finalmente a encontramos. Viemos para resgatá-la. Nós a levaremos ao forte e a livraremos da vida escrava nas mãos desses índios. Seja bem-vinda aos seus. Logo estará livre dessas roupas horríveis e receberá os cuidados que merece.

TREZE

- Não quero ir para o forte! - gritou Serena. - Quero voltar para casa, para meu marido e meu bebê.

O capitão muniu-se de paciência.- Srta. Rogan, eu já vi antes mulheres brancas capturadas pelos índios. Todas

elas dizem a mesma coisa. A senhora tem de entender que precisa voltar para seu povo. Por ser uma mulher branca deve viver na sociedade dos brancos.

Serena virou-se e apontou para a direção da vila, a uma hora de distância a leste da campina.

- Sou casada, capitão, e tenho uma filha de cinco meses. Eu me recuso a acompanhá-los. Meu povo é o lakota e não os senhores.

Anderson não escondeu o aborrecimento.- Srta. Rogan, não tenho tempo para ficar aqui discutindo. Monte seu cavalo e

vamos embora. Ficou muito tempo prisioneira dos sioux e não reconhece mais o certo do errado.

Serena recuou uns passos.- Não quero ir com os senhores! - gritou.- Sargento Blake, ponha a srta. Rogan em seu cavalo imediatamente - ordenou

Anderson. Desesperada, Serena tentou esquivar-se do sargento, mas ele agarrou-a pelo braço.

- Seja delicado - o capitão recomendou.- Sim, senhor.Serena sentiu a mão afrouxar um pouco no braço enquanto o sargento a puxava

para junto de Wiyaka.- Monte já - disse ele.Enquanto obedecia, ela olhou à volta avaliando a possibilidade de fuga. Mas

nesse instante, sentiu as rédeas arrancadas das mãos pelo sargento.- Vai seguir amarrada a meu cavalo.Dessa forma, seria impossível escapar, percebeu Serena. Mas talvez fosse

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melhor. Seria seguida ao acampamento se tentasse fugir ali. Haveria luta e os soldados acabariam matando pessoas inocentes e até crianças como suas filhas.

Com os olhos cheios de lágrimas, ela tentou refletir com clareza. Lobo tinha decidido ir procurar ervas com as crianças nessa tarde. Alguém saberia disso? Viria ele tentar resgatá-la?

O capitão Anderson deu sinal de partida. Seguia na frente, com o sargento ao lado e ela logo atrás. A meio galope, começaram a atravessar a campina ondulada, rumo ao sul. Serena não tinha escolha. Era prisioneira de seu próprio povo. Teria de observar tudo e escolher o momento oportuno de fuga. Para onde a estariam levando? De volta a Blackjack? Mordeu o lábio para abafar um gemido de medo.

Perto do escurecer, Anderson ordenou uma parada. Tinham encontrado um comboio de carroções militares num vasto capinzal e acampariam ali. Serena percebeu os olhares de cobiça dos homens quando Anderson a levou a uma tenda recém-erguida. Os seios doíam pelo excesso de leite e ela pensou em Wakinyela. Felizmente, sabia que a filha não morreria de fome, pois Ursa Sonhadora a levaria para ser amamentada por uma das mães com bebezinho.

Ao parar à entrada da tenda, Anderson disse:- Quero ser o primeiro a dar-lhe as boas vindas a sua antiga vida, srta. Rogan.

Pedi a meus homens para providenciar-lhe o maior conforto possível. Eles conseguiram uma banheira, cama, cobertores e até um pente e espelho. Infelizmente, ficaram faltando roupas decentes e a senhorita terá de se conformar em usar esse traje horrível por mais algum tempo.

Serena encarou-o.- Por favor, capitão, precisamos conversar. Agradeço seu esforço, mas essas

coisas não significam nada para mim.Anderson suspirou.- Srta. Rogan, sei que quer voltar, mas reflita, por favor. Passou mais de dois

anos como prisioneira daqueles selvagens que a capturaram de...- Eu não era prisioneira! Tende entender, capitão. Eu não queria lhe contar todos

os detalhes sórdidos, mas não vejo saída.A seguir, fez um resumo de sua vinda para a América, de como Blackjack a tinha

mantido prisioneira e largado-a semimorta à margem do rio. Notou o olhar desconfiado de Anderson ao terminar a narrativa.

- Olhe, foi o sr. Blackjack quem notificou o exército sobre a existência de uma mulher branca capturada pelos índios. Segundo ele, a senhorita era sua empregada e tinha ido ao rio lavar roupa quando foi atacada por um grupo de guerreiros sioux. No

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último inverno, ele tentou resgatá-la, mas um curandeiro chamado Lobo a recapturou outra vez.

.- Meu marido me salvou daquele homem cruel! - protestou Serena. - Se não fosse por Lobo, eu teria morrido. Blackjack está mentindo, o senhor não percebe?

- Srta. Rogan, devo lhe dizer que o sr. Blackjack goza da estima e do respeito do comandante de nosso forte. Eu estava presente ao jantar quando ele fez um apelo emocionado e sincero pelo seu resgate.

- Blackjack estava mentindo!- Não acredito, senhorita.- Então acha que a mentirosa sou eu?Ele deu de ombros e baixou o olhar para as botas empoeiradas.- Senhorita, estou nesta região da fronteira há sete anos. Vi mulheres capturadas

pelos índios comportarem-se da mesma forma. Estou tentando dizer que se alguém vive muito tempo entre aqueles ladrões imundos, acaba acreditando fazer parte da vida deles. Mas é só imaginação. A senhorita é branca e merece sua liberdade. E isso que vamos lhe dar.

- Se sou livre como diz, capitão, vou sair já daqui, montar minha égua e voltar para meu marido e minha filha!

Num tom triste, Anderson disse:- Não, senhorita. O comandante ordenou para mandá-la com o comboio militar

que está seguindo para Ohio. Caso tenha parentes, nós teremos prazer em avisá-los de que se encontra bem e em providenciar sua ida para junto deles.

Com expressão amargurada, Serena o fitou.- Não tenho ninguém na América ou em lugar algum. Minha família morreu na

Irlanda. Sou a única sobrevivente.- Nesse caso, o comandante já providenciou para que seja mandada a uma

família holandesa, temente a Deus, que tem uma fazenda perto do rio Ohio.- Não quero ir para lá.- A senhorita não tem escolha. A experiência nos ensinou que leva dois anos para

um prisioneiro dos índios voltar a se ajustar à vida antiga. Frederiek e Camille Gent concordaram em recebê-la e dar-lhe emprego até que se acostume novamente à vida dos brancos.

- Serei uma prisioneira - soluçou Serena.- Não se ficar voluntariamente. Mas se tentar fugir, a história será diferente.Serena tentou reprimir as lágrimas que corriam pelas faces e tornou a fitar

Anderson.

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- O senhor não se importa com o fato de eu ter sido separada de minha filhinha? Ela tem só cinco meses e precisa de mim. Como pode arrancar a mãe de uma criança?

- Eu tenho minhas ordens.- E minha filha?- É uma mestiça. Chocada, Serena gritou:- Aquela criança é um ser humano!Ao mesmo tempo, lançou-se sobre ele esmurrando-lhe o rosto e o peito.

Tenso e calado, Lobo ouviu Grou Alto e Andorinha fazer um relato da captura de Cante Tinza pelos soldados da cavalaria. Ele havia voltado ao escurecer e logo se vira rodeado pelas pessoas. Carregando Wakinyela, ele finalmente sentou-se na tenda da irmã. Ao lado, Ursa Sonhadora segurava a mão de Céu da Alvorada. Ambas tinham olhar triste.

Andorinha serviu o jantar para todos os presentes, inclusive chefe Boca de Texugo.

- Que pretende fazer? - perguntou este quando terminaram a refeição.Lobo entregou. Wakinyela para Ursa Sonhadora que a levaria, junto com Céu da

Alvorada, para dormir. Quando já tinham saído, ele respondeu: - Vou procurá-la e a trazer de volta.- Andorinha diz não saber de onde vieram os soldados. Há muitos fortes na

região.Lobo notou o tom de aviso na voz do chefe. Distraído, tocou o colar de cabelos à

volta do pescoço. Ódio e tristeza mesclavam-se ao pensar na nova captura de Cante Tinza. Sabia, sem sombra de dúvida, que ela tentaria fugir.

- Não sei para onde a estão levando - admitiu numa voz trêmula. - Mas eu a encontrarei.

- Você deixaria nosso povo sem curandeiro?Lobo estremeceu. A consciência também o questionava. Sabia que sua primeira

obrigação era para com seu povo. Com ar sombrio, disse:- Você tem razão, eu não deveria ir. Mas minhas filhas precisam da mãe eu, de

minha mulher. Se a sua fosse capturada pela cavalaria, você não tentaria resgatá-la? Não poria seus deveres de chefe em segundo lugar?

- Não é a mesma coisa e você sabe disso. Em minha ausência, muitos guerreiros poderiam assumir a liderança. Não existe outro curandeiro além de você.

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- Muitas mulheres conhecem o poder das ervas - argumentou Lobo.- Eu não quero você correndo atrás da wasicun - declarou o chefe.Cego de raiva, Lobo levantou-se.- Wasicun? É assim que chama minha mulher? Esquece-se de que ela salvou a

vida de mulheres e crianças?Boca de Texugo manteve-se firme.- Deixe-a ir. Ela é branca e não pertence a nós. Nem a você.Embora furioso, Lobo controlou-se.- Sei que você nunca aprovou a presença de Cante Tinza na tribo. Você e alguns

outros. Mas isso não tem importância. Ela é minha mulher e vou procurá-la até a encontrar.

- E por quanto tempo vai fazer isso? E se eles a levaram para muito longe?- Pois farei o possível e o impossível para achá-la onde quer que for.Numa voz trovejante, o chefe declarou:- Ela está perdida para você. Deixe-a em paz.- Jamais! - gritou Lobo ao virar-se e deixar a tenda.Acima, o céu estava crivado de estrelas e elas o lembravam das pintinhas

douradas no rosto de Cante Tinza. A dor no peito era tão grande como se estivessem lhe arrancando o coração. Fechou os olhos e abafou um soluço.

Quem lhes teria feito isso?, indagou-se ao caminhar por entre as tendas em direção a sua. Pensou numa vingança de Blackjack. Os soldados a devolveriam a ele? O acampamento de mineradores seria o primeiro lugar onde procuraria Cante Tinza. Se Blackjack estivesse por trás da captura, ele a espancaria e talvez até a matasse em vingança pelo castigo recebido.

- Lobo Negro! Espere!Ele parou e virou-se. Mulher Corça vinha correndo em sua direção.- Aonde vai com tanta pressa? - perguntou ela ao parar a sua frente.- Procurar minha mulher. Onde mais poderia ser? - indagou ele recomeçando a

andar.- Pare! - gritou ela segurando-o pelo braço. - Por que não a deixa ir embora?

Afinal, ela está voltando para seu próprio povo. Você não se deu conta de que Cante Tinza faria isso mais cedo ou mais tarde?

Com raiva, ele puxou o braço.- Ficou heyoka, menina? Cante Tinza foi levada contra a vontade. E segundo

Andorinha, se você não tivesse fugido como uma covarde, ela ainda estaria aqui conosco.

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- Você me chamou de covarde?! - perguntou Mulher Corça, incrédula.- Chamei. Andorinha disse que você deveria ter soltado os cavalos antes de fugir

a galope, mas abandonou as outras três. Minha mulher e minha irmã ficaram para trás a fim de ajudar Ursa Sonhadora. A pobre não podia correr.

Furiosa, Mulher Corça gritou.- Você é quem está heyoka, Lobo Negro. Ilude-se pensando que a wasicun o ama!

Ela é branca e nós, vermelhos! Você ficou cego com a cor de sua pele e de seus cabelos!

Fora de si, Lobo a segurou pelos ombros e a sacudiu.- Você mente com a maior facilidade. Fique com a boca fechada, pois não sabe o

que diz. Amo minha mulher de todo o coração e, para encontrá-la, sou capaz de dar a própria vida!

Lobo a soltou e ela deu um grito ao recuar uns passos.- Você vai mesmo procurá-la? - perguntou, desesperada.Lobo fitou-a com desdém.- Você não entendeu ainda. Está cega, menina, e vai continuar assim -

acrescentou e retomou os passos, porém, ela voltou a segurá-lo.- Você nunca a encontrará! - afirmou numa voz histérica.- Encontrarei ou morrerei procurando-a.- De jeito nenhum. No verão passado, fui eu quem contou a Blackjack onde a

wasicun estava. Ele a queria.Chocado, Lobo indagou:- Você o quê?- Isso mesmo, fui procurá-lo. Onde você pensa que passei uma lua inteira, Lobo

Negro? Fui a Kingston e contei tudo a Blackjack. Eu te amo e sempre te amei, mas você só tem olhos para a wasicun! Por que você não me ama? Sou lakota. Não me acha bonita?

Lobo tentou se controlar. Viu o olhar desvairado de Mulher Corça e notou-lhe a voz incerta.

- Você procurou Blackjack desta vez? - perguntou em tom ameaçador.- Não. Apenas rezei ao Grande Espírito para afastar Cante Tinza daqui. Fui

ouvida. Você não entende, Lobo Negro? Assim é que deve ser. Você precisa se casar com alguém de sua raça e...

- Você está vendo isto? - interrompeu ele mostrando-lhe o pulso. - É a cicatriz de um corte feito a faca durante a cerimônia na qual Cante Tinza e eu misturamos nosso sangue. Só a morte poderá nos separar, menina!

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Mulher Corça gemeu, mas ainda acrescentou:- Ela não vale nada!Lobo largou-a a poucos passos da tenda e entrou. Sentia vontade de matá-la.

Agora, tudo fazia sentido. Blackjack tinha agido com sua ajuda.As crianças dormiam e Ursa Sonhadora se penteava.- Você ouviu? - perguntou ele ao apanhar as sacolas.- Ouvi. A tribo toda vai se envergonhar dessa moça.Lobo acondicionou-carne seca de búfalo e outros alimentos nas sacolas e, depois,

disse:- Vou procurar Cante Tinza. Você cuidará das crianças? Grou Alto já prometeu vir

ficar aqui também para ajudar no que for preciso.- Você é como um verdadeiro neto para mim, Lobo Negro. Vou rezar todos os

dias por sua volta com Cante Tinza.- Não sei para onde a levaram a talvez gaste tempo para procurá-la.- As meninas ficarão seguras comigo e Grou Alto. Nós cuidaremos delas e lhes

daremos carinho.Aliviado, Lobo ajoelhou-se entre as duas filhas e beijou-as na testa.- Se não voltarmos, Ursa Sonhadora, fale de nosso amor por elas. Não as deixe

esquecer a mãe que quase perdeu a vida para salvar a de Céu da Alvorada.- Farei isso, meu neto. Agora, vá. Que o Grande Espírito guie seus passos até

Cante Tinza.- Vou levar Kagi comigo. Ela poderá farejar seu cheiro.Ursa Sonhadora sacudiu a cabeça e disse:- Kagi vê os mundos invisíveis. Ela o ajudará e avisará da aproximação de

inimigos.Lobo olhou mais uma vez para as crianças e sentiu um aperto no coração. Como

Cante Tinza estaria se sentindo nessa noite? Sem dúvida, chorava de solidão, medo e incerteza. Sem nem mais uma palavra, deixou a tenda. Com os olhos nublados de lágrimas e acompanhado da loba, foi escolher uma boa montaria.

- Ora, não vai escapar para lugar algum - advertiu o sargento Blake ao passar a corda pelos pulsos de Serena e levá-la rumo a um carroção. - Hoje, a senhorita vai viajar aqui na parte de trás. Vamos, suba.

Serena obedeceu e acomodou-se entre pilhas de cobertores para cavalo e selas de couro. O sargento amarrou a corda do lado de fora do veículo.

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- Há água para beber aí perto. Vamos parar por volta do meio-dia e eu lhe trarei um prato de comida.

Serena viu o sargento descer e se afastar. Esse era o terceiro dia de cativeiro e eles continuavam a seguir rumo ao sul, deixando as colinas Negras para trás. Cada sacudidela do carroção a lembrava de que a filha precisava de seu leite. Exausta, Serena apoiou a cabeça nos joelhos dobrados.

De acordo com o capitão Anderson, chegariam ao forte à tarde. Ela havia tentado fugir nas duas noites anteriores, mas fora apanhada e trazida de volta. O que fariam com ela no forte? Também segundo o capitão, as esposas dos oficiais se encarregariam dela. Na manhã seguinte, ela partiria em outro comboio rumo a Ohio.

As lágrimas não tinham fim. Elas inundavam-lhe os olhos cada vez que pensava na filhinha e em Lobo. Amava a família com loucura e a raiva por estar voltando para o meio dos brancos lhe dava mais vontade de fugir. Os brancos não tinham coração? Não sentiam nada pelos outros seres humanos? Serena estava convencida de que eram todos uns monstros e os odiava pelo que estavam lhe fazendo.

- Seja bem-vinda, srta. Rogan. Sou Adelaide Comstock, esposa do comandante.Serena olhou para fora do carroção e viu uma mulher de uns trinta anos,

exibindo um elegante vestido de algodão. A trança dos cabelos formava um coque no alto da cabeça e a sombrinha combinava com o azul do vestido. Ao lado dela, havia uma mulher que, boquiaberta, fitava Serena.

- Desça, desça. Quero que tome um banho. Algumas senhoras do posto deram roupas para a senhorita. Algo há de lhe servir.

Devagar e com os pulsos ainda presos, Serena obedeceu. O sargento Blake mantinha-se ao lado do carroção.

- Cuidado, sra. Comstock. Ela tentou fugir várias vezes.Adelaide observou Serena da cabeça aos pés. Achou-a imunda naquele vestido

de couro. Quando viu as marcas escuras no peito dele, ficou pensativa. Do que seriam? Não querendo tocá-la, recuou uns passos.

- Sargento, leve a srta. Rogan ao alojamento de banhos e mande duas escravas ajudá-la a se lavar e vestir. Depois a leve a nosso alojamento para tomar chá.

- Sim, senhora - respondeu o sargento ao pegar o braço de Serena e conduzi-la pelo pátio do forte.

Adelaide virou-se para Rebecca Standing, esposa de um dos tenentes e comentou:

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- Imunda, não acha? Você notou as marcas no peito do vestido.- Notei, sim. Talvez o capitão possa nos dar algumas informações. A moça parece

selvagem e furiosa - acrescentou Rebecca.Adelaide concordou e procurou o oficial com os olhos. Ao avistá-lo, chamou-o.- Capitão, a srta. Rogan não parece muito satisfeita.- Bem, ela não queria vir e já tentou escapar.- Ora essa! Ela não se dá conta da sorte de estar entre nós?- Acho que não, senhora.- Capitão, o que são aquelas manchas no vestido dela?Anderson corou e baixou o olhar.- A srta. Rogan teve uma criança cinco meses atrás.- O pai é um selvagem.- Misericórdia! - exclamou Adelaide.- Ficou uma mulher marcada. Imagine ser forçada a ter um filho com um pele

vermelha imundo! - comentou Rebecca.- Ela pode não se dar conta, mas foi muita sorte se livrar do mesticinho -

acrescentou Adelaide.- A srta. Rogan pensa de maneira diferente. Afirma morar com os índios por

vontade própria. O sr. Blackjack contou uma história diferente - aparteou Anderson.- Ora, todo mundo desta região sabe que o sr. Blackjack é um homem honrado. A

palavra dele é suficiente para mim - declarou Adelaide. Rebeca sacudiu a cabeça.- Ela é uma mulher marcada pelo pecado!- Se for esperta, manterá o fato em segredo - disse Adelaide.- Ainda bem que não vai ficar aqui. Sendo uma mulher perdida, seria uma

tentação para os soldados. Rindo, Adelaide concordou.- A srta. Rogan só vai passar esta noite aqui e nós vamos tratá-la com

amabilidade. Tenho certeza de que ela apreciará tomar chá conosco. Vamos. Quero ver se Millie arrumou tudo direitinho.

CATORZE

O major John Hale tinha encontrado o comboio militar na divisa de Ohio três semanas atrás. Em pé ao lado de Serena, segurava-lhe o braço enquanto um casal se

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aproximava.- Srta. Rogan, quero que conheça Frederick e Camille Gent que se ofereceram

para abrigá-la durante um ano. Eles são conhecidos pela generosidade e o temor a Deus.

Apreensiva, Serena crispou as mãos entre as dobras do vestido de chita amarela. Os sapatos a machucavam. Durante a viagem, tinha se negado a usá-los.

Ela observou o homem baixo e atarracado com uma barba grisalha e olhos azuis bem juntos. Devia ter uns quarenta anos, calculou. Ele usava chapéu preto de aba, camisa azul escuro e calça preta segura por suspensórios. Atrás dele e num vestido de algodão verde, estava Camille com a cabeça baixa. Era magra e tinha expressão nervosa. Bem mais nova do que o marido, ela não devia passar dos vinte e poucos anos.

Guiada pela intuição, Serena assustou-se e chegou mais perto de Hale. O rosto redondo de Gent tinha faces vermelhas e o resto da pele bronzeada de sol. A expressão provocava-lhe pânico.

Gent apertou a mão do major e virou-se para Serena.- Seja bem-vinda a nossa fazenda, srta. Rogan. Esta é minha mulher, a sra. Gent -

acrescentou sem mudar a expressão.Serena os cumprimentou apenas com um gesto de cabeça. Camille sorriu um

pouco e fez uma leve curvatura.Cansado de suas tentativas de fuga, o exército tinha posto grilhões nos

tornozelos de Serena e ela imaginava quando seriam tirados.- Devo adverti-los que a srta. Rogan não quer permanecer no mundo civilizado.

Ela preferiria morar com os selvagens.- Porque minha filhinha está lá! - Serena defendeu-se.Camille não conseguiu abafar uma exclamação de choque. Serena fitou-a e viu-

lhe o ar de censura. - Que Deus a perdoe - murmurou Gent.- Também não acredito em seu Deus! Lá entre os lakotas, aprendi o que é

altruísmo e generosidade. Desde que fui recapturada só recebo maus tratos como esta corrente e olhares de desprezo. Todos me consideram um monstro porque tive uma filha gerada pelo homem a quem amo e que ainda é meu marido!

O major Hale empurrou Serena para a frente.- Ela é toda sua, sr. Gent. Mas eu o aconselho a manter o grilhões até ter certeza

de que ela não vai querer voltar para os selvagens. Ela é como muitas mulheres que viveram com os índios. Tomam o santo nome de Deus em vão e desdenham nossa

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sociedade.Gent olhou Serena da cabeça aos pés e não escondeu a expressão de repulsa.- Posso lhe assegurar, major Hale, que a srta. Rogan voltará a aprender que

Nosso Senhor é seu salvador. A leitura diária da Bíblia a ensinará.Serena encarou-o.- Não sei ler e, se soubesse, me recusaria a ler a Bíblia!- Deus tenha piedade de nós - murmurou Camille, amedrontada.Hale limpou a garganta.- Nos meses que passou conosco, ela andou muito agitada e brava, sr. Gent. A

srta. Rogan é capaz de dizer qualquer coisa para nos convencer a deixá-la voltar.- Compreendo, major. Na Holanda, não se poupava a vara para educar as

crianças. O que a srta. Rogan precisa é de mão firme para guiá-la de volta aos bons costumes.

Hale olhou para Camille e tocou o chapéu.- Bem, precisamos continuar nossa viagem para o leste. - Entregou um envelope

a Frederick. - Aqui está o dinheiro prometido para manter a srta. Rogan até que ela se convença de ser branca e não pele vermelha.

Atônita, Serena viu o envelope mudar de mão.- Quem mandou esse dinheiro?- Seu benfeitor, o sr. Blackjack. - O quê?!- Não lhe contaram nada? Ele foi ao forte mais próximo e entregou mil dólares

para recompensar seu resgate. Ele é um homem muito generoso. Diz sentir-se culpado por tê-la trazido da Irlanda para ser sua lavadeira. Naturalmente, depois que foi capturada...

- Não fui capturada e o senhor sabe disso! – gritou Serena batendo o pé. Hale deu de ombros.- A srta. Rogan afirma que o sr. Blackjack a violentou e espancou. Depois, largou-

a na floresta para morrer. Naturalmente, esse o dinheiro veio do sr. Blackjack como recompensa pelo resgate da srta. Rogan. Por isso, não creio que ela esteja falando a verdade. O sr. Blackjack é um cidadão exemplar do Território de Dakota.

Gent acariciou o envelope.- Não se preocupe, major. Ela se afastou do caminho do Senhor, mas dentro de

um ano, já estará de volta. - Olhou para Serena e disse: - Comporte-se, moça, e nada de respostas arrevesadas. Eu não as tolero nem de minha mulher.

Serena encarou o fazendeiro atarracado e musculoso.

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- Tire os grilhões de meus tornozelos.Gent sorriu ao ver o oficial aproximar-se do carroção, montar o cavalo ao lado

dele e partir.- Só quando provar que não quer mais fugir. - Sacudiu o envelope no ar. - Um

homem bom e respeitável pagou pelo seu retorno ao mundo dos brancos. Pela vontade de Deus, cumprirei a vontade do sr. Blackjack. Camille?

A mulher aproximou-se depressa.- Sim, querido?- Vá ao estábulo e arrume a primeira baia. Ponha capim limpo nela.Ela o olhou com ar espantado, mas não perguntou nada. Há muito havia

aprendido a não fazer indagações supérfluas, pois o marido era homem temperamental.

- Pois não, querido - respondeu ela ao afastar-se em direção à casa, perto da qual ficava o estábulo.

Gent fez um gesto para Serena caminhar à frente dele.- Então, você gosta de ser selvagem, não é? Nesse caso, não vai se importar de

ficar no estábulo com os animais. Os índios que conheço são um bando de bêbados seguidores do diabo. Só gostam de aguardente.

Serena seguia na frente e, por causa dos sapatos e dos grilhões, andava com dificuldade. Odiava os sapatos e tão logo pudesse, se livraria deles.

O sol começava a se pôr e ela olhou à volta de sua nova prisão. A fazenda não era grande, mas tinha algumas vacas leiteiras, seis cavalos de carga e um galinheiro. Havia ainda um outro cercado com carneiros, cuja lã era usada para tecer. A casa ficava no centro de um terreiro limpo e ao lado do estábulo. Tudo estava em perfeita ordem e bem cuidado. No ar pairava o cheiro da mudança de estações e Serena respirou fundo. Como sempre pensou na tribo e em Lobo. Eles já estariam preparando a mudança para o acampamento de inverno.

Enquanto caminhavam, Gent continuou a falar.- Nós a trataremos de acordo com seu comportamento. Se agir como selvagem,

será tratada como tal. Se mostrar modos de uma dama, do que duvido, terá sua recompensa. Não me importa que seja mulher, se não me obedecer, será castigada.

O tom de ameaça provocou um arrepio em Serena, porém ela manteve a boca fechada. Ao entrarem no estábulo, ela viu Camille com expressão de expectativa e sentiu o odor de feno recém colhido.

- Está pronto, querido.- Muito bem. Vá buscar um vestido seu. Vocês regulam de tamanho e esse dela

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está malcheiroso: Ela precisa de um bom banho - disse Gent e pegou uma das tranças de Serena.

Ela esquivou-se e quase caiu.- De agora em diante, você vai se pentear de maneira apropriada a uma dama e

não à indígena.- Penteio meus cabelos como quiser e o senhor não pode me forçar a mudar meu

penteado - Serena murmurou em voz comedida, mas firme.Gent sorriu e deu de ombros.- Faça como quiser. Amanhã cedo quando vier determinar seu trabalho quero

encontrá-la penteada como minha mulher. Caso contrário, você experimentará o couro de meu cinto pela primeira vez. A escolha é sua.

- O senhor não é diferente de qualquer outro branco - disse Serena recuando até bater na baia. - Só mostra violência e ameaças! Meu marido é um curandeiro e a pessoa mais delicada que conheço. Ele jamais encostou a mão em mim ou me ameaçou. Não é uma boa razão para eu querer voltar para casa?

Sua voz ecoou pelo estábulo e ela viu Gent tornar-se apoplético.- Não tolero que me enfrentem! - vociferou ele sacudindo-a até fazê-la cair na

palha.Ela abafou um grito ao vê-lo se aproximar desafivelando o cinto. Tentou

proteger-se do ataque encolhendo-se e pondo os braços sobre a cabeça.Quando a tira de couro começou a atingi-la nas costas, nos braços e nas pernas,

Serena mordeu o lábio até cortá-lo e sentir gosto de sangue. A dor era terrível, pois ele a golpeava com a maior força possível. Ódio misturou-se à dor e as lágrimas escapavam pelos olhos fechados com força. Ela suportou a sova como havia suportado as de Blackjack. Finalmente e ofegante, Gent se afastou.

- Quando minha mulher voltar, tire esse vestido imundo, lave-se e destrance os cabelos. Você terá de ter a aparência de uma mulher branca ou se arrependerá.

- Você precisa obedecer meu marido! - Camille implorou baixinho ao lado da baia. - Já faz um mês, Serena, e você não pode continuar apanhando desse jeito. Desista.

Serena olhou para a mulher tímida que morria de medo do marido. Sentiu pena.- Deixe eu ir embora, Camille. Você sabe que meu lugar é com meu povo, meu

marido. Você não tem filhos, mas é mulher e deve imaginar como sinto falta de minha filhinha. Você tem a chave e poderia soltar os grilhões para eu ir embora.

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- Ai, Serena, não me peça isso. Você sabe que Frederick me espancaria se eu a ajudasse a fugir. Desista. Pare de trançar os cabelos e tente aprender a ler a Bíblia. Quando nos casamos, Frederick era um homem bom, mas mudou depois que viemos para a América. Só pensava em ter sucesso aqui e, com isso, foi ficando temperamental. No início, eu brigava como você, mas isso só piorou a situação.

Envergonhada, Camille retorcia as mãos e olhava para o chão.- Frederick queria oito filhos e quando eu já me convencia de ser estéril, fiquei

grávida. Um dia, apareceu um índio bêbado. Eu estava lá fora e ele começou a correr atrás de mim. Eu gritava por socorro, mas não havia ninguém mais na fazenda. Frederick tinha ido à cidade fazer compras. Como não conseguisse me pegar, o índio foi embora. Logo depois, comecei a perder sangue. Quando Frederick chegou à noite, me encontrou desmaiada no chão da cozinha. O médico veio dois dias depois e disse que eu tinha perdido o bebê. Desde então, Frederick odeia índios. Ele nunca mais me bateu, mas tem essa raiva terrível dentro dele.

Serena sentiu-se penalizada e observou a mulher nervosa a sua frente. Era tão magra e não conseguia manter as mãos paradas.

- Que tristeza, Camille, sinto muito por você.- Contei isso para você entender por que deve obedecer Frederick. Ele vê suas

tranças e lembra-se de como perdi a criança. Você não pode desafiá-lo. Ele vai acabar matando-a. Os homens são mais fortes e mais inteligentes do que nós mulheres. É nossa obrigação servi-los. É uma ordem divina.

Serena não conseguiu ficar brava com Camille que vivia em medo constante do marido.

- Por favor, não trance mais os cabelos. Ele a espanca todas as manhãs e não a deixa dormir lá em casa. Estamos em outubro e já faz frio para você continuar aqui no estábulo.

Serena curvou a cabeça. Trançar os cabelos era a única liberdade que lhe restava.

- E comece a aprender a ler a Bíblia. Se fizer essas duas coisas, Frederick a deixará passar a noite lá em casa onde é mais quente.

Desanimada, Serena murmurou:- Você não compreende. O povo de meu marido é humilde, mas todos entendem

a importância de uma pessoa ajudar a outra, de usar o amor e não a violência para convencer uns aos outros.

- Você não pode continuar vivendo num mundo de sonhos, pois não vai voltar. Quer usar isso pelo resto da vida? - Camille perguntou apontando para os grilhões.

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- Blackjack pagou seu marido para me sustentar por um ano. Depois disso, ele me deixará ir embora. Por que haveria de continuar me sustentando?

- Frederick a manterá aqui até que você ceda. Não importa quantos anos isso leve. Ele é um homem teimoso e prende-se à palavra dada. Se o sr. Blackjack o pagou para reeducá-la, ele fará isso até o último suspiro. Só Frederick decidirá se e quando você poderá ir embora.

- Então, não passo de uma escrava - murmurou Serena dando-se conta da realidade cruel.

- Pelo menos, você tem teto e comida. E mais do que aqueles negros no sul têm.- Você e eu somos escravas de Frederick. O homem branco considera a mulher

como besta de carga. Ele a usa para o próprio prazer quando bem entende e, depois, a descarta se quiser.

- Por Deus, não fale assim! Se Frederick a ouvir a matará de pancada.Com ar de desafio, Serena respondeu:- Pois prefiro morrer a continuar aqui sob o domínio dele.Com um suspiro de desânimo, Camille deixou o estábulo.Serena continuou sentada com a cabeça curvada. Num gesto distraído, tocou o

colar de cabelos vermelhos e pretos à volta do pescoço. Quando no primeiro dia Camille o segurara para cortar fora, Serena a tinha impedido. Ninguém haveria de tomar-lhe a preciosidade feita e dada por Lobo.

Serena não conseguiu conter as lágrimas. O último mês tinha sido um inferno diferente. Morria de saudades da família e sabia que Lobo nunca conseguiria encontrá-la. Ele enfrentaria perigos terríveis se deixasse o território de sua tribo. Seria morto ou pelos brancos, sempre temerosos dos índios, ou por guerreiros de outras tribos. Seria mais sensato da parte dele ficar com seu povo e criar as duas filhas.

Desconsolada, Serena enrolou-se no cobertor fino. As noites de outubro eram muito frias e ela sempre acordava de madrugada batendo queixo.

Frederick tinha um sexto sentido para intuir seu propósito de fuga. Durante o dia, se ela estivesse no terraço batendo manteiga, no estábulo ordenhando as vacas ou na cozinha ajudando Camille, ele sempre prendia a corrente na parede.

Sem dúvida, ele a considerava o diabo em pessoa e obrigava a mulher a ler-lhe a Bíblia todas as noites. Serena sabia que Gent odiava sua atitude de desafio, mas aos poucos, ele minava sua resistência. Todas as manhãs, ele aparecia no estábulo para ver se os cabelos estavam destrançados. Como não estivessem, dava-lhe uma sova de cinto.

Serena sentia pena de Camille que havia se casado aos quinze anos. Seus olhos

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castanhos tinham sempre a expressão de um animal assustado. Mas o que as unia era apenas o sofrimento provocado pela tirania de um homem branco.

Serena acordou com a voz trovejante de Gent.- Então, você acha que pode convencer minha mulher a deixá-la fugir?Ela abriu os olhos e viu o homem, com o rosto apoplético, curvado sobre ela.

Assustou-se quando ele a segurou pelo o pescoço com uma das mãos enquanto com a outra empunhava a faca. Lutou para se desvencilhar, mas recebeu uma bofetada.

- Mulher vil! Você assustou e ameaçou minha mulher. Agora, vou forçá-la a se curvar a minha vontade.

Agarrou-lhe uma das tranças e começou a cortá-la junto ao couro cabeludo.- Não! - gemeu Serena.- Já está na hora de parar com esses hábitos selvagens - disse ele ao cortar a

segunda trança. - E isto também vai para o lixo - acrescentou arrancando fora o colar de cabelos trançados. - Você acha que é escrava? Pois vou lhe mostrar o que é escravidão. Levante-se! - urrou enquanto punha a faca de volta na bainha.

Atordoada, Serena tentou obedecer. A dor na cabeça era lancinante e o sangue escorria do nariz. Gent agarrou-a pelo braço e a forçou a ficar em pé. Em seguida, soltou a corrente da parede.

- Vá andando! - ordenou ele empurrando-a para fora da baia.Ela tropeçou e caiu. No instante seguinte, recebia um pontapé nas costelas que a

deixou sem ar.- Levante-se ou eu a levarei aos pontapés até lá em casa.Devagar e com esforço, Serena pôs-se em pé. Através das lágrimas, viu Camille à

entrada do estábulo. Ela estava lívida e com os olhos arregalados de medo. O rosto inchado e arroxeado mostrava as pancadas recebidas do marido. Sem dúvida, ela havia repetido para Frederick a conversa das duas na véspera. Seu intuito de ajudar só tinha piorado a situação.

Na casa, Gent fez Serena entrar num cubículo sem janelas.- Daqui em diante, você vai ficar trancada na escuridão. Todas as noites, minha

mulher virá ensiná-la a ler a Bíblia. Sou o chefe desta casa e estou cansado de sua teimosia.

Ele bateu a porta e Serena viu-se na mais completa escuridão. Em prantos, pensou nos cabelos cortados e no colar arrancado fora. Embora estivesse sofrendo dor física, a moral era muito maior. Trancada ali, perdia o resto da esperança de escapar.

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Desde sua captura pela cavalaria, havia suportado cinco meses de maus tratos, mas continuara com as tranças e o colar, seus únicos elos com os lakotas. Agora, não lhe restava nada.

A escuridão que a envolvia invadiu-lhe o coração e a mente. Por causa da distância e da impossibilidade de encontrá-la, Lobo jamais apareceria.

Encolhida, deitou-se no chão enquanto as lágrimas corriam livremente. Wakinyela era muito novinha para se lembrar dela no futuro, mas Céu da Alvorada, não. Ela choraria sentindo falta sua? E Lobo?, indagou-se soluçando. Ele se lembraria dela da mesma forma que ela jamais o esqueceria. Gent poderia dobrar-lhe o espírito, mas não conseguiria entrar-lhe no coração e matar seu amor por Lobo.

QUINZE

- Termine logo essa ordenha - Frederick gritou.Serena estremeceu ao vê-lo passar ao lado carregando dois baldes de leite. A

brisa trazia o ar quente e perfumado de junho ao interior do estábulo. Camille aproximou-se e avisou:

- Trabalhe depressa. Frederick quer a manteiga batida hoje. Amanhã, ele vai à cidade e pretende vendê-la.

Em seguida, afastou-se levando outro balde cheio.O odor de capim mexia com os sentidos de Serena enquanto ela continuava a

ordenhar a vaca. Por que esse cheiro era tão gostoso?, indagou-se. A mente meio adormecida começou a analisar os seis meses passados com os Gent. Em outubro, Frederick a tinha posto no cubículo escuro onde ficara cinco meses. Sua única distração era a vinda de Camille, à noite, para ensiná-la a ler a Bíblia.

As sovas tinham parado porque era impossível trançar os cabelos cortados. Só agora eles atingiam o meio do pescoço. Ultimamente, seus sonhos coloridos e animados tinham voltado. Nos meses passados no cubículo, sem luz e exercício, tinha parado de sonhar. Era como se o seu mundo inteiro houvesse se despedaçado e dissolvido. A vida ficara reduzida à sensação de vazio e ela não conseguia fazer mais do que a toalete e tomar banhos de esponja.

O medo de que Frederick aparecesse no cubículo estava sempre presente. Quando o inverno chegou, ela quase morreu congelada no aposento sem aquecimento. Enrolava-se em cobertores, mas isso não era suficiente.

Terminada a ordenha, Serena levantou-se. Os pés doíam nos sapatos apertados,

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mas quando se convencera de ter lhe dobrado o espírito, Frederick havia ordenado que se vestisse como uma mulher decente. Ela não usava mais os grilhões.

Serena desamarrou a corda da vaca e levou-a ao pasto. Depois de fechar a porteira, levantou o rosto para o sol e deliciou-se com seu calor. A sua volta, tudo demonstrava a força da vida em cores vivas e odores penetrantes. Serena fechou os olhos e deixou-se envolver pela paz reinante.

A tristeza invadiu-lhe o coração ao lembrar-se de Lobo e da filhinha. Desde que saíra do quarto escuro, essa era uma das poucas vezes em que pensava neles. Apertou as mãos na cerca de madeira. Se Frederick a apanhasse sonhando acordada, a poria de volta no cubículo.

Por que esse dia parecia diferente? Abriu os olhos e percorreu-os pela floresta que, no horizonte, rodeava a fazenda. A oeste, viu nuvens pesadas subindo ao céu e anunciando tempestade. O vento quente soprou-lhe nas faces.

Serena permaneceu como hipnotizada. De algum canto escuro da memória, veio a lembrança de uma tempestade assistida ao lado de Lobo. A cena tornou-se mais vívida do que a realidade.à volta.

Num final de tarde, eles tinham ido colher ervas. A dado momento, Lobo a havia tocado no ombro e dito para olhar Céu Pai. Ele sorria e os olhos brilhavam de alegria com a aproximação da tempestade.

- Os trovões são seres poderosos e invisíveis, ajudantes de Céu Pai, gigantes que vagueiam a vastidão acima de Terra Mãe. Os trovões ajuntam os espíritos das nuvens e os combinam para formar a tempestade que atravessa Céu Pai e manda raios à Terra Mãe.

Num sussurro a seu ouvido, ele acrescentara:- Céu Pai ama Terra Mãe e lhe faz amor através da chuva e dos raios.Quando a tempestade tinha desabado, ele a levara a uma pequena gruta de

onde a assistiram. Sentada entre suas pernas e de costas para ele, ela recostara-se no corpo quente. Sentia as mãos acariciando-lhe os braços e os lábios beijando seus cabelos.

As emoções provocadas pela lembrança a fizeram se sentar no chão. Com as mãos apertadas no rosto, não só via a cena distante como a sentia também. Nos últimos cinco meses não sentira nada.

O trovão ecoou pelo céu e ela abriu os olhos. Lágrimas corriam-lhe pelas faces ao ver a tempestade aproximar-se da fazenda com velocidade espantosa. Emocionada, não pensou em procurar abrigo, mas continuou no chão observando, perplexa, o temporal. Um turbilhão de lembranças dominava-lhe a mente. Serena viu vários

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coriscos riscar o céu e atingir a mata. Sentiu a vibração dos trovões no corpo, como se isso fosse uma homenagem ao que ocorria em seu íntimo.

Dominada pelas lembranças dos anos passados com Lobo e os lakotas, Serena não podia fazer nada a não ser sentir, soluçar e continuar sentada no chão e no caminho da tempestade. O vento aumentou agitando-lhe os cabelos curtos.

Quando tinha ela esquecido a vida com Lobo? Quando? A palavra ricocheteou-lhe na mente como os trovões no céu. O sol já estava encoberto pelas nuvens e Serena deu-se conta de que, nas horas passadas na escuridão, ela havia quase deixado de existir. A respiração tornou-se ofegante com os primeiros indícios de raiva pelo que Frederick lhe tinha feito.

Com os olhos nas nuvens negras que rolavam pelo Céu Pai, Serena teve consciência de que Frederick a tinha mantido prisioneira de várias formas. Ele havia lhe feito uma lavagem cerebral. O vento esfriava e a atingia em lufadas. Tantas recordações de seu amor por Lobo retornavam, um fiozinho a princípio, mas que acabou se transformando num rio caudaloso. Como podia tê-lo esquecido? E Wakinyela, a filha nascida do amor de ambos? Baixando a cabeça, Serena soluçou.

Os sentidos voltavam a ter vida. Ela sentia a fragrância da chuva que se aproximava para acariciar Terra Mãe. As primeiras gotas eram grandes e esparsas. Depois, menores e em maior volume encharcando-lhe os cabelos e as roupas. Levantou o rosto e sentiu a água fria lembrando-a de que a vida continuava num círculo sem fim. Envolta pela tempestade, Serena permitiu que a chuva pura a ajudasse a se recuperar completamente.

Por meia hora, Serena permaneceu lá enquanto os raios riscavam o céu e a chuva caía na terra ressequida. A tempestade era sua amiga, reconheceu com humildade. Era o símbolo de seu renascimento, da esperança e do ânimo. Tinha sido cruelmente subjugada para viver e pensar à maneira de Frederick Gent. Sentindo a água escorrer pelo rosto, sorriu. Estava viva!

Ao virar-se em direção da casa percebeu que estava não só viva como livre também. Poderia fazer da vida o que bem entendesse. Eufórica, deu-se conta de que Gent não poderia mantê-la por mais tempo na fazenda. Ela iria para casa, para Lobo, para o povo lakota. Não queria permanecer no mundo dos brancos onde as mulheres eram tratadas como animais. O marido e as filhas estavam no Território de Dakota e para lá ela voltaria com o Grande Espírito guiando-lhe os passos.

Sem se importar com as roupas molhadas e grudadas no corpo, Serena voltou ao estábulo e, de lá, correu para o terraço da casa. Sentia como se a mente tivesse escapado de uma armadilha escura na qual passara nove meses de sua vida. Não

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pensava apenas em fugir, mas também em ter coragem para percorrer o longo caminho de volta para Lobo e as filhas.

Abriu a porta e correu para seu quarto. Seus pertences eram poucos e ela não contava com dinheiro algum, mas isso não tinha importância.

- Onde você esteve? - perguntou Frederick da porta, barrando-lhe a passagem.- Tomando chuva com os seres trovões - Serena respondeu enquanto enrolava

um vestido num xale que tinha feito.- Seres trovões?! Do que está falando? Você foi proibida de repetir essas coisas.Serena virou-se e anunciou em voz calma:- Estou indo embora, Frederick.- O quê?- Estou indo embora e você não poderá me impedir a não ser que atire em mim

pelas costas. Agora, me deixe passar.Camille olhou pelo lado do marido e exclamou:- Serena! Isso é loucura!- Mulher idiota! - gritou Gent. - Você não vai a lugar algum. Você nos deve um

ano de trabalho e...- Blackjack o pagou para você me manter por um ano. Considere os meses que

faltam como recompensa. Agora, saia de meu caminho! - Serena gritou.Abaixando-se, passou por sob o braço dele e escapou para a sala.- Pare aí! O diabo a dominou outra vez. Uma boa sova o expulsará. Camille, vá

buscar meu cinto - gritou Gent tentando pegar Serena pelo braço.Ela esquivou-se e correu rumo à porta. Se não escapasse depressa, ele a pegaria

e voltaria a trancá-la no quarto sem janela. Porém, ela tropeçou no vestido e caiu. No instante seguinte, Gent curvava-se para pegá-la pelo ombro. Serena rolou para o lado e, levantando-se, correu para a porta.

Antes de alcançá-la, ela abriu-se. Lá estava Lobo com a camisa de couro de gamo e perneiras, as tranças negras caindo-lhe no peito. Parou estática. Ouviu Gent e.Camille gritar de surpresa.

Atordoada, Serena olhou para Lobo que ocupava a passagem da porta com o porte imponente. Estaria ela tendo visões? O rosto dele estava mais fino e com expressão severa. A boca era uma linha fina. Na mão direita, ele empunhava um rifle de cujo cano pingava água. Ela o viu erguê-lo e apontar para Gent.

- Largue o cinto - ordenou. Assustado, Frederick obedeceu.- Lobo?! - chamou Serena numa voz trêmula.

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Sem fitá-la, ele estendeu-lhe a mão esquerda. - Venha cá, Cante Tinza.- Você é real? - balbuciou ela em lakota sem perceber. - Sou, Cante Tinza. Você não está vendo um fantasma. Esse wasicun ia espancá-

la? - Sim. Eu estava tentando fugir. - Fugir?!- Isso mesmo. Eu ia tentar encontrar o caminho de volta para você, Wakinyela e

Céu da Alvorada. - Pois vamos embora. Tenho dois cavalos na frente do terraço. O wasicun tem um

rifle? - Tem.- Vá buscá-lo. Apanhe comida também.Serena correu primeiro ao quarto de Gent onde apanhou a arma e uma caixa de

balas. Depois na cozinha, pôs três pães frescos, toicinho e presunto defumados dentro de um saco vazio de farinha. O coração estava disparado e a mente repetia sem parar: Lobo está aqui. Mas como?

- Pronto - avisou ao voltar à sala.- Meus dois melhores corredores de búfalo estão lá fora. Monte um deles e

espere por mim. Vou em seguida.- Não lhes faça mal algum, Lobo.- Eles a trataram mal?- Apenas ele por querer me converter à religião do wasicun.- Diga-lhe para não nos seguir, pois eu o matarei.Ainda atordoada com a aparição inesperada de Lobo, Serena passou a falar em

inglês:- Frederick, Lobo disse para você não nos seguir porque ele o matará.Com um grito, Camille caiu desmaiada. Furioso, Gent afirmou:- Vocês não conseguirão escapar. Mandarei a milícia local em seu encalço. Eles

matarão o índio e a trarão de volta.Serena sabia que Lobo a protegeria contra quem quer que fosse. Corriam grande

perigo, mas se ele fora capaz de encontrá-la ali, também o seria para levá-la de volta às colinas Negras.

- Não nos siga - implorou. - Meu mundo não é este, você não compreende?- Você é uma mulher branca e não uma índia!Numa última tentativa, Serena mostrou-lhe a cicatriz no pulso.

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- Está vendo isto, Frederick? Lobo cortou meu pulso e o dele a fim de misturarmos nosso sangue. O que você não entende é o fato de que eu amo este homem e, por ele, sou capaz de dar a própria vida. Vou voltar para casa e viver com minhas filhas e meu marido.

- Você está possuída pelo demônio!Serena sorriu.- Sabe, Frederick, os lakotas não acreditam no demônio e nem no inferno. O

Grande Espírito é um ser amoroso e não para ser temido como seu Deus. Acredito na bondade, no respeito e no amor para com as outras pessoas. Não preciso de seu demônio. Quanto a inferno, você me colocou num ao me manter durante meses naquele cubículo escuro. - Com uma ponta de raiva, acrescentou: - Espero que você não se queime no próprio inferno, Frederick. Você é um homem cruel e sem coração.

Virou-se e saiu.O pior da tempestade já havia passado e a chuva amainava. Serena soltou um

grito de alegria ao ver Kagi amarrada à sela de um dos cavalos. A loba ganiu e pulou de prazer com o reencontro. Antes de soltá-la, Serena a abraçou amorosamente.

Lobo deixou a casa de costas e com a arma apontada para Gent. Por sobre o ombro, viu que Cante Tinza, montada, lhe estendia as rédeas do outro animal. Ao pular na sela, notou a esperança nos olhos verdes.

- Vamos cavalgar pela floresta, rumo ao oeste - ele avisou.Morria de vontade de tomar Cante Tinza nos braços e beijá-la, mas não se

atrevia. Ambos corriam risco imenso e tinham de se afastar o máximo possível de Gent e da milícia. Notou também os cabelos vermelhos tosquiados. Quem teria feito isso?, indagou-se, furioso.

Durante três horas, cavalgaram sem parar pela floresta de Ohio. O sol tinha voltado a sair e Lobo apontou para Céu Pai.

- Veja! - disse mostrando o arco-íris.- Um bom sinal?- Sim. Vamos parar aqui por uns minutos.Os cavalos estavam cansados do galope ininterrupto e Serena sentiu as pernas

trêmulas ao desmontar. Há quase um ano, não andava a cavalo. Já no chão, Lobo abriu-lhe os braços.

- Venha cá, minha mulher.- Ai, Lobo, quantas saudades! - soluçou Serena ao apoiar a cabeça no peito dele.Ele beijou-lhe os cabelos molhados, as faces coradas e, finalmente, os lábios.

Sôfrego, saboreou a doçura de sua boca. Sentindo-a tremer entre os braços, afastou a

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cabeça e a fitou. Havia uma alegria imensa nos olhos verdes.- Você é minha vida., meu coração. Não podia permitir que ninguém a tirasse de

mim.- Eu sinto como se estivesse sonhando. Todos aqueles meses no quarto escuro e

frio. A certa altura, pensei que fosse enlouquecer. No início, sonhava e falava com você. Isso mesmo, nos dois primeiros meses, eu falava alto.

Ele rodeou-lhe o rosto com as mãos.- Que quarto escuro, minha mulher?Com um soluço, Serena fechou os olhos e deixou-se envolver pela fortaleza

emanada de Lobo.- Frederick cortou minhas tranças e o colar feito com nossos cabelos. Depois, me

manteve trancada num quarto escuro durante meses. Eu me sentia tão solitária. Enrolada em cobertores e sentada no chão, eu o via aparecer. Falava com você e chorava.

Com os olhos fechados e a cabeça apoiada na sua, Lobo condoeu-se de seu sofrimento.

- O wasicun a torturou.Arrependia-se por não ter matado o homem. Não podia imaginar Cante Tinza

trancada num lugar escuro. Ela era uma mulher que florescia ao ar livre por ser muito ligada à Terra Mãe. Acariciou-lhe os cabelos dando-se conta do tratamento horrível recebido.

- Acabei desistindo, Lobo. Eu me sentia vazia e não me lembrava mais de você e de nossas filhas. Foi então que Frederick tirou os grilhões de meus tornozelos e me deixou andar livremente pela fazenda.

- Grilhões?!- Sim. Eles foram colocados pelo exército porque tentei fugir várias vezes. Eu os

usei até a primavera deste ano quando saí do quarto escuro.-Tudo por culpa de Blackjack. Sabe, ele está morto.- Verdade?Com uma ponta de sorriso e tom de satisfação, Lobo contou:- No dia seguinte ao de sua captura pela cavalaria, entrei no acampamento de

Blackjack e o encontrei dormindo na cama. Com a faca em seu pescoço, o obriguei a me contar tudo. Ele tinha dado a informação de seu paradeiro para o exército e mentido que eu a capturara. Depois, ele mandou dinheiro para a família que a manteria por um ano. Isso era para ter certeza de que você se acostumaria com a vida do wasicun.

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- Mas como você descobriu onde eu estava?- A escrava de Blackjack me falou de uma carta que ele tinha escrito para o

wasicun da fazenda. Ela é de Kentucky e conhece Ohio. Por isso, pôde me explicar onde ficava esta região perto do rio.

- Mesmo assim, não sei como conseguiu chegar até aqui.- Kagi serviu de olhos e ouvidos para mim. Muitas vezes, ela me alertou contra

patrulhas de wasicuns e grupos de guerreiros de outras tribos. Ela fará o mesmo em nosso caminho de volta.

- Vai ser tão perigoso, Lobo. O exército virá atrás de mim.- Eu sei. Mas se tomarmos cuidado, conseguiremos escapar.Serena não se convenceu plenamente.- Frederick poderá avisar o forte perto das colinas Negras. A cavalaria irá em meu

encalço o que exporá a tribo ao perigo.Lobo sacudiu a cabeça.- Vamos viver um dia de cada vez, Cante Tinza. Quando acamparmos esta noite,

quero aconchegar minha mulher ao peito e ouvir novamente seu coração valoroso bater com o meu. Mais do que qualquer coisa, quero lhe mostrar o quanto a amo e como senti saudades suas.

DEZESSEIS

Ao anoitecer, eles pararam para acampar.Seguiam em direção noroeste e, para evitar ser vistos, não abandonavam a

floresta de Ohio. Os cavalos estavam molhados e exaustos. Serena desencilhou-os e prendeu-lhes as pernas dianteiras para que pudessem pastar sem afastar.

Lobo cavou um buraco fundo, forrou-o com capim seco e gravetos. Depois, com faíscas de pederneira, acendeu o fogo. A pouca fumaça dispersava-se depressa por entre a ramagem das árvores. Em silêncio, os dois trabalhavam em harmonia. Uma hora antes, Lobo tinha matado um coelho que, agora, Serena limpava.

Ela assumia as tarefas como se estivesse de volta ao acampamento lakota. Uma alegria intensa a dominou ao levantar os olhos e ver Lobo catando lenha seca. Ele já havia apanhado água num riacho a poucos metros de distância. Kagi não saía de seu lado e os olhos amarelos brilhavam de satisfação por rever a dona.

Cortado em quatro, o coelho foi assado sobre o fogo. Eles saborearam a refeição farta sentados sobre as pernas cruzadas. Lobo tinha decidido que o lugar era seguro

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para acamparem, pois a loba não tinha dado alarme. Se houvesse pessoas num raio de uns quatro quilômetros, ela se poria alerta.

- Você gostaria de usar um vestido de couro de gamo? - perguntou Lobo.- Ah, muitíssimo.Sorrindo, Lobo levantou-se, apanhou uma das sacolas que havia trazido e tirou

um de seus vestidos. Ao entregá-lo, notou-lhe o olhar de alegria e seu amor por ela inflamou-se.

- Andorinha mandou trazer um dos vestidos de trabalho. Eu também não me esqueci dos mocassins.

Lobo observou Cante Tinza passar os dedos pelo couro macio. Quantas noites não tinha sonhado com as carícias de suas mãos?

Serena sentiu as lágrimas ao olhar para Lobo. A luz da lua nova era suficiente para ver-lhe a expressão amorosa.

- Senti tantas saudades de todos e de tudo, Lobo.Ele ouviu o tremor de sua voz e ajoelhou-se a sua frente. Acariciou-lhe os cabelos

e percebeu que quem os cortara o fizera com descaso, pois o comprimento era muito irregular. Vendo-lhe a expressão de tristeza, curvou-se e roçou os lábios nos seus.

- Os cabelos vão crescer e ficar tão lindos como eram antes - consolou-a estreitando-a entre os braços.

Serena começou a chorar com a cabeça apoiada no peito dele. Tudo que Lobo podia fazer era percorrer as mãos por sua cabeça, seus ombros e costas. Sentia-se furioso com as humilhações sofridas por Cante Tinza. Tratar uma mulher com tão pouca consideração era-lhe inconcebível.

Depois de algum tempo, ela parou de chorar. O fogo tinha apagado e um luar pálido os iluminava. Lobo ergueu-lhe o queixo e a fitou sorrindo.

- Céu da Alvorada e Wakinyela estão em segurança com Ursa Sonhadora.- Ainda bem. Tenho tantas saudades delas.- Eu também, pois as vi pela última vez nove luas atrás. Mas eu tinha de ir buscá-

la, Cante Tinza.- Por minha causa, a tribo está sem um curandeiro todo este tempo.- O chefe falou de minha responsabilidade, porém eu lhe disse que também a

tinha para com minha mulher. Ursa Sonhadora e outras mulheres entendem de ervas. Elas estão cuidando das pessoas doentes em minha ausência.

- Wakinyela já deve estar andando. Sabe, durante muitas luas não pensei em minha família, em você.

- Se alguém me trancasse num quarto escuro, eu ficaria heyoka, louco. Durante

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esse tempo, você permaneceu hibernando como um urso. Como esse animal faz nas luas frias, você recolheu-se dentro de si mesma e andou por outros reinos.

- A tempestade, Lobo. Algo aconteceu enquanto ela caía. Todas as lembranças de você e das crianças voltaram de repente.

- Como o urso hibernando, você acordou. Por isso as lembranças voltaram. - Ele apanhou o pente na sacola e disse: - Deixe eu cuidar de seus cabelos, minha mulher.

- Ai não, Lobo, eles estão horríveis. Havia um espelho lá na casa e eu me olhei nele. Estou tão feia! - disse ela esquivando-se.

Paciente, ele segurou-lhe as mãos.- Nada de protestos. Você não pode me negar esse prazer do qual senti tanta

falta. Não me importa o comprimento de seus cabelos. O que vale é a dona deles, a mulher a quem amo.

Serena fechou os olhos.- Eu tinha esquecido como isto era bom.- Porque você se achava abandonada e não via como escapar do wasicun.Serena levantou o olhar e viu-lhe a expressão severa e zangada.- Jamais pensei que você viesse, Lobo. Achava impossível que me encontrasse.

Quantos perigos não deve ter enfrentado.- É verdade e vamos enfrentar outros tantos na volta para casa. Mas com os

olhos, as orelhas e o faro de Kagi estaremos seguros.- Você disse que Blackjack morreu?- Morreu, sim. Um minerador enraivecido o matou.- Você acha que Frederick tentará avisar o forte nas colinas Negras que eu fugi?Satisfeito com a nova aparência dos cabelos de Cante Tinza, Lobo sentou-se, mas

notou-lhe a expressão de ansiedade.- O chefe Boca de Texugo tomou uma decisão antes de eu partir. Ele disse a

alguém que a tribo deveria deixar as colinas Negras.- Como assim? Para onde iríamos? - perguntou Serena, assustada.- Para o Canadá. A cavalaria não poderá cruzar a fronteira e nos matar se

estivermos morando lá. Tão logo nós cheguemos, o chefe nos levará para o norte.- Mas os canadenses nos deixarão em paz?- Sim. Outras tribos lakotas já foram para o Canadá. O wasicun de lá respeita os

índios e não os persegue. Finalmente, Cante Tinza, você ficará em segurança. Nenhum wasicun aparecerá para seqüestrá-la.

Era bom demais e Serena apertou a mão de Lobo.- Parece que estou sonhando. Tenho medo de acordar e me ver na fazenda outra

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vez - disse estremecendo.Lobo compreendia. O ar da noite estava quente e perfumado. Estavam na lua em

que as cerejas amadureciam. Ele estendeu a mão e começou a desabotoar-lhe o vestido.

- Rezei sem parar ao Grande Espírito pedindo por sua segurança, para eu encontrá-la viva. Você é minha mulher e tem meu coração em suas mãos, Cante Tinza. - Lobo viu o desejo surgir em seus olhos e continuou abrindo os botões. - Esta é a primeira noite em que voltaremos a dormir sob a mesma manta. Quero segurá-la em meus braços e provar meu amor por você. Sei que se sente insegura, pois é como um cavalo selvagem que, depois de ficar amarrado, foi solto. - Acariciou-lhe o rosto. - Quero que você me guie, que me diga o quanto quer de mim. Se não lhe parecer certo, me faça parar.

Serena fechou os olhos. O contato com Lobo trazia não só o coração como o corpo também de volta à vida. Os dedos dele a acariciavam ao longo de pescoço e nos ombros depois de afastar o vestido que caiu a seus pés. Abriu os olhos e sorriu.

- Eu te amo com toda a força de meu coração e de minha alma. Como eu poderia fazê-lo parar depois de sonhar tanto em estar com você, meu amado?

Acariciou-o no rosto e viu os olhos negros espelhar o desejo sentido. Suspirou quando ele espalmou as mãos em seus seios com grande delicadeza. Ao aconchegar-se a ele, sentiu-se frágil.

Antes, Lobo já tinha estendido mantas no chão e, nesse momento, levou-a até elas onde despiu-lhe a camisa e a anágua. O luar banhou seu corpo alvo ao ajoelhar-se entre as pernas dele.

O sorriso de Lobo alargou-se quando Cante Tinza o ajudou a livrar-se da camisa de couro de gamo. O prazer e a carência revelavam-se nos olhos verdes ao acariciá-lo no peito.

- Você é de uma beleza sem par - murmurou ela sentindo-lhe o calor na palma das mãos.

Ela viu o desejo aumentar nos olhos negros enquanto Lobo tirava as perneiras e a tanga. Nus, ajoelharam-se um diante do outro. Curvando-se, Serena desamarrou e desfez-lhe as tranças. Os cabelos negros caíram pelos ombros rodeando as faces dele. Com dedos trêmulos, ela massageou-lhe a cabeça tornando a se familiarizar com a sensação deliciosa.

Quanta solidão havia suportado, teve consciência enquanto Lobo acariciava seus seios. Quando ele a abraçou, suspirou de expectativa. Ele beijou os mamilos provocando-lhe coriscos pelo corpo. Como precisava dessas carícias, reconheceu

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absorvendo o amor de Lobo com cada fibra de seu ser.Serena sentiu-se sendo deitada na manta. Enquanto Lobo corria as mãos ao

longo de seu corpo e das pernas, ela suspirou de prazer. Mas foi então, que ele viu as cicatrizes nos tornozelos. Foi tomado pela raiva. Mais um prova do sofrimento de Cante Tinza nas mãos do wasicun. Sua mulher tinha sido de uma coragem ilimitada. Curvou-se e beijou as cicatrizes com o intuito de fazê-la esquecer os meses de prisão.

Depois, Lobo deitou-se a seu lado e a tomou entre os braços.- Rezo ao Grande Espírito para que você já esteja grávida de nosso próximo filho

quando chegarmos em casa. Essa criança nascerá em liberdade e nunca terá de suportar as agruras pelas quais você passou.

Emocionada, Serena enlaçou-o pelo pescoço. Lobo jamais a tinha julgado ou a feito sofrer. Apesar das várias cicatrizes, ele só via sua beleza. Entregando-se às delícias de um beijo profundo, ela sentiu a mão de Lobo alcançar-lhe as coxas. Receptiva, abriu-as num convite à exploração dos dedos. Serena jamais havia se sentido tão feliz e poderosa como mulher. Quando Lobo a cobriu, aceitou-o em seu corpo.

Mantendo-se imóvel por uns instantes, ele rodeou o rosto de Cante Tinza com as mãos. Não queria iniciar os impulsos já, mas deliciar-se com o aconchego úmido ao redor do membro.

- Olhe para mim, Cante Tinza. Somos e sempre seremos um só. O tempo e a distância jamais poderão nos separar.

Ela sorriu e sentiu-o aprofundar-se em seu corpo.A cada impulso, o prazer crescia centena de vezes. Nesse ato de amor, ele

devolvia tudo que lhe fora tirado.Nos segundos antes de a explosão maravilhosa a dominar, Serena compreendeu

o que significava o amor verdadeiro entre um homem e uma mulher. Não se tratava de domínio, mas de o homem juntar-se à mulher a fim de formar um só ser. Lobo compreendia tal harmonia.

Mais tarde, continuaram aconchegados um nos braços do outro sob a manta. Serena estava exausta e logo adormeceu. A sensação de segurança era imensa. Pela primeira vez, sonhou com as crianças e com o povo lakota. Este a tinha ajudado a moldar sua vida com amor e respeito e não com preconceito e crueldade.

As folhas nas colinas Negras já se tornavam amarelas, alaranjadas e vermelhas quando Serena e Lobo chegaram cavalgando lado a lado. O verde escuro dos

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pinheiros contrastava com o colorido das árvores. Trocaram um olhar feliz ao encetar o último galope pelas campinas que os levaria ao acampamento. A viagem havia durado três meses e Serena mal podia esperar para ver as crianças.

Kagi disparou na frente e sumiu atrás da última elevação. Ao chegar lá, eles pararam as montarias. Serena soltou uma exclamação de alegria. Lá à beira do rio, estava o acampamento. Lobo apontou para a tenda na qual havia um lobo negro pintado acima da cortina de entrada. Com o coração disparado, Serena viu Ursa Sonhadora sair trazendo Wakinyela pela mão.

- Ela está andando! - exclamou com os olhos marejados de lágrimas.- E muito bem - disse Lobo sorrindo. - Vamos encontrar nossa família -

acrescentou.O resto do percurso colina abaixo foi emocionante. Serena ouviu o pregoeiro

anunciar sua chegada fazendo com que as pessoas interrompessem o trabalho.Ursa Sonhadora soltou um grito de alegria e curvou-se para dizer algo a

Wakinyela. A menininha usava um vestido de couro de gamo, mocassins e tranças enfeitadas com plumas de águia.

Serena apressou a montaria que, percebendo-lhe a ânsia de chegar, alongou os passos. Andorinha surgiu correndo com Céu da Alvorada. Como a menina havia crescido nesse ano passado longe, percebeu Serena com uma pontada de tristeza. Ela estava linda e muito parecida com Lobo.

- Ina! Ina! - Gritou Wakinyela com os bracinhos levantados.Com um grito, Serena freou a montaria, pulou da sela e correu para a filha. Ao

tomá-la entre os braços, soluçou. Ursa Sonhadora tinha ensinado a criança a dizer ina, mãe e, sem dúvida, lhe falava com freqüência sobre ela.

Serena ouviu as vozes excitadas das pessoas, entre elas a de Estrela Vespertina, e sentiu tapinhas de boas-vindas nas costas e nos ombros. Sorriu através das lágrimas. Céu da Alvorada aproximou-se e a abraçou pelas pernas. Serena abaixou e tomou-a no colo também, ficando as três abraçadas em silêncio.

Serena ouviu a voz grave de Lobo a seu lado. Fitou-o e entregou-lhe Wakinyela. A menininha abraçou-o pelo pescoço chamando-o de ahtay, pai.

- Como você ficou linda - disse Serena a Céu da Alvorada.- Ursa Sonhadora sempre dizia que você voltaria, ina. Era tão triste sem você e

ahtay. Andorinha tocou no ombro de Serena.- Seja bem-vinda, minha irmã.- Ah, é tão bom estar de volta - Serena respondeu sorrindo para a irmã de Lobo.

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- Suas filhas se comportaram muito bem durante sua ausência. Mas estamos todos muito contentes que os dois estejam de volta. Tínhamos muito medo que Lobo morresse na tentativa de encontrá-la.

- Quase morri, mas Kagi me salvou em várias ocasiões - brincou Lobo ainda com Wakinyela nos braços.

A tribo inteira os rodeava. Os rapazes mais jovens, que ainda precisavam cometer façanhas para se tornar guerreiros, cavalgavam à volta do acampamento gritando palavras de boas-vindas. Os guerreiros, acompanhados das esposas, estavam presentes para expressar o contentamento com a chegada de ambos.

Com os olhos, Serena procurou Mulher Corça no meio da multidão, mas não a viu. Lobo tinha lhe contado que fora ela quem avisara Blackjack de onde se encontrava. Depois, havia mentido afirmando que Serena incendiara a casa matando sua mulher e filho. Contudo, só quando as pessoas se dispersaram e Andorinha os acompanhou para dentro da tenda, ela perguntou:

- Onde está Mulher Corça?- Foi banida da tribo. Ela andava pelo acampamento provocando desordens e

instigando as pessoas contra você. Punha-lhe a culpa pela ausência de Lobo. O chefe Boca de Texugo ficou aborrecido quando Lobo foi embora para procurá-la. Tinha medo que pessoas adoecessem e nós não tivéssemos um curandeiro. Grou Alto, entretanto, contou a verdade sobre Mulher Corça, a única responsável pela situação. Se ela não tivesse procurado Blackjack, nada disso teria acontecido. Foi então que o chefe a baniu da tribo - terminou Andorinha.

- Quando foi isso?- Uma lua depois da partida de Lobo. - Para onde ela foi?Andorinha deu de ombros.- Ninguém sabe. Essa moça só provocava problemas e não queria fazer parte da

tribo. Perplexa, Serena levou a mão ao pescoço.- Nunca ouvi falar de alguém ser banido.- As vezes, isso precisa ser feito para o bem de todos. Não se sinta aborrecida por

causa de Mulher Corça. Ela não tinha sentimentos bons. Agiu daquela forma porque quis. Ela não precisava provocar tantos problemas.

- Mas para onde ela iria?- Provavelmente para um dos fortes ou um dos acampamentos de mineração.- Ai, não! Só lakotas que gostam de aguardente vão para esses lugares. As

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mulheres, eu vi, são marafonas que ganham a vida indo para a cama com os mineradores.

- Essa seria uma escolha dela - disse Andorinha pondo-lhe a mão no ombro. - Agora que vocês estão de volta, podemos desmanchar o acampamento e iniciar nossa viagem para o Canadá. Precisamos chegar lá antes que as luas de frio mais forte comecem.

Serena aquiesceu com a cabeça. Os fatos estavam acontecendo depressa demais. Sorriu para Wakinyela que, sentada, brincava com a franja curta de seu vestido.

- Obrigada por ajudar a tomar conta de nossas filhas - disse ao abraçar Andorinha.

- Ah, elas são boas meninas e Grou Alto ajudou bastante. A bem da verdade, a maior parte do trabalho ficou por conta de Ursa Sonhadora, que se saiu uma avó muito boa.

Lobo, que tinha ido dar uma volta, entrou na tenda e olhou para a irmã.- Nada mudou muito, mas você emagreceu. - Um pouco.Serena sorriu quando Lobo pôs o braço à volta de sua cintura.- Temos uma boa notícia para você, Andorinha - disse ele.- Não diga! Uma surpresa?- Uma excelente - murmurou Serena sorrindo para o marido. - Lobo, por que não

conta logo? - Cante Tinza está grávida.- Ah, mas isso é ótimo! Posso espalhar a notícia? - Claro - Serena respondeu rindo. Tocando-a de leve na barriga, Andorinha perguntou: - Você sente se é menino ou menina? - Menino.- Tem certeza?Lobo sorriu.- Já temos duas filhas para ensinar o irmão que as mulheres são fortes e

corajosas como a mãe deles.Fitou a mulher com expressão amorosa. Jamais teriam uma vida fácil, mas com a

mudança para o Canadá estariam livres da cavalaria e dos mineradores que lhes saqueavam as terras sagradas em busca de ouro. Mas acima de tudo, Cante Tinza não correria mais riscos.

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Certo de que sua vida seria mais feliz dali em diante, acariciou-a nos cabelos. Ela possuía um coração valoroso e alma forte e ele sabia que o Grande Espírito recompensava aqueles que prosseguiam em frente apesar de seus temores. Em silêncio, Lobo prometeu que a faria recuperar-se da solidão e do sofrimento. Como curandeiro, conhecia o poder do amor, a emoção mais forte concedida ao ser humano. Com o amor mútuo, eles se fortaleceriam.

FIM

A origem americana incentivou o interesse de LINDSAY MCKENNA por história que ela considera como reflexo dos acontecimentos atuais e como indicação para os do futuro. O que mais a interessa na história são as mulheres. Ela acha que sua fortaleza de espírito pode servir de inspiração para as mulheres de hoje. Seus períodos históricos preferidos são: o velho oeste, os tempos medievais e a era romana. Lindsay, ávida colecionadora de pedras e andarilha, vive com o marido com quem está casada há quinze anos.