literatas 59

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Conecte-nos no http://revistaliteratas.blogspot.com Do romance N´Tsai Tchassassa, a Virgem de Missangas, de Carlos Paradona Rufino Roque Por Fátima Mendonça Ler nas páginas 20 e 21 Director: Amosse Mucavele | E-mail: [email protected] | Maputo | Ano II | Edição: Nº.59| Junho de 2013 -defende a Professora Doutora Inocência Mata Ler nas páginas 10,11, 12, 13 e 16

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Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona, Propriedade do Movimento Literário Kuphaluxa,

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Page 1: Literatas 59

Conecte-nos no

http://revistaliteratas.blogspot.com

Do romance N´Tsai

Tchassassa, a Virgem de

Missangas, de Carlos

Paradona Rufino Roque Por Fátima Mendonça

Ler nas páginas 20 e 21

Director: Amosse Mucavele | E-mail: [email protected] | Maputo | Ano II | Edição: Nº.59| Junho de 2013

-defende a Professora Doutora Inocência Mata Ler nas páginas 10,11, 12, 13 e 16

Page 2: Literatas 59

Ficha técnica

Cartas | Comentários | Opiniões | Ideias

Literatas no face-

book - debatendo

ideias e aconteci-

mentos.

http://

www.facebook.com/

pages/

Litera-

tas/154478737895518

Receba às sextas-feiras Literatas em PDF e comenta sobre os assun-

tos retratados através do e-mail: [email protected]

“ (...) A literatura dos países africanos

de língua oficial portuguesa não

exceção. Transitar entre o vetor da

nacionalidade-que fundava a nação e a

consciência nacional-e o vetor da nova

subjectividade-que se impunha desde a

formação de um sujeito negro-africano ou

simplesmente africano, consciente de sua

herança tradicional e de seu lugar num mundo hostil-, com uma

permanente mediação da memória, foi o procedimento mais

comum encontrado por essas literaturas. (...)‖

Mário César Lugarinho in História, magia e desejo: a poesia de

João Melo-Poesia Sempre, Número 23, Ano 13/2006.

“ (...) No segundo número de

Claridade, José Osório de Oliveira afirma que os Cabo-verdeanos precisam de um exemplo que so a literatura do Brasil lhes poderia dar, justificando as afinidades entre Cabo Verde e os estados do Nordeste brasileiro. Até ao último número das revistas (1960), o Brasil permanece como padrão ou intertexto nos estudos

de folclore, da mesma língua, das estruturas sociais e da produção literária. Temas como o martírio da terra-mãe, a aridez, a seca e a fome são constantes do olhar cabo-verdiano para dentro, assim como os temas da insularidade como drama geográfico e da emigração ou evasão como saídas possíveis para essa problemática. Manuel Bandeira, por exemplo teve larga recepção no meio literário cabo-verdiano, sobre tudo pela perseguição da felicidade cujo protótipo se cristaliza na imagem de Pasárgada. (...) ‖ Simone Caputo Gomes in A poesia de Cabo Verde: um trajeto

identitário- Poesia Sempre, Número 23, Ano 13/2006.

“ Na multiplicidade de géneros que constituem a

tradição oral, o provérbio é, sem dúvida, o género

privilegiado para expressar os valores culturais, já que

estes se constituem na sua gramática de valores. Nen-

hum domínio da vida lhe escapa. A sua vocação é

comunicar a todos a experiência do grupo e exortar

cada um para a execução desta experiência no seu

comportamento quotidiano‖[1].

Vivemos o tempo do signo. Os discursos verbais vão cedendo, definitivamente,

lugar às formas, na dimensão visual, táctil e no terreno audiovisual. Aliás, não

podia ser de outro modo hoje, considerando que toda a nossa estrutura vivencial

se baseia nos indícios, nos sinais, nos símbolos, nos códigos; enfim, nos ideo-

gramas, baseia-se, pois a nossa estrutura vivencial no poder da imagem. Fala-

mos da imagem visual e sua textualidade na comunicação de informação para

diferenciá-la da textualidade da imagem sonora, táctil, olfactiva, ou seja: das im-

agens de todos os outros sentidos[2]. Embora não se ignore que as imagens no

contexto em análise podem funcionar como formas de comunicação total, elas

podem ser apreendidas simultânea e globalmente. Daí, o nosso interesse em

desenvolver um estudo circunscrito no exame da textualidade da imagem visual

(o não verbal) ou texto não escrito, contrapondo-a à textualidade audiovisual (o

verbal) ou, simplesmente falado.(..)‖

Abreu Paxe in Imagens, contextos e comunicação: o provérbio no testo de

panela e na esteira , Revista Cronópios

“ Só quando quis contar histórias é que

se me colocou este desafio de deixar

entrar a vida e a maneira como o

português era remoldado em Moçambique

para lhes dar maior força poética. A

oralidade não é aquela coisa que se

resolve mandando por aí umas brigadas a

recolher histórias tradicionais, é muito mais

que isso‖, (...).―Temos sempre a ideia de

que a língua é a grande dama, tem que se falar e escrever bem. A criação

poética nasce do erro, da desobediência.‖

Mia Couto in Jornal Público, 18 de Junho de 2012.

A/C Exmo Senhor Director da revista LITERATAS

http://macua.blogs.com/files/literatas-52-1.pdf

Exmos Senhores,

Tomo a liberdade de vos contactar para vos propor uma

colaboração eventual ou regular dentro do género crónica.

Gostaria de saber se na publicação que dirigem existe espaço

para tal rúbrica e interesse por parte dos vossos leitores.

Tive conhecimento da vossa revista através da última Feira do

Livro de Lisboa, no pavilhão da CPLP e fiquei agradavelmente

impressionada com os comentários dos autores presentes.

Tenho escrito sobre temas variados, nomeadamente um ciclo

de crónicas sobre episódios marcantes dos anos 70/80 em

Luanda, cidade onde vivi toda a adolescência e grande parte

da vida adulta. Estas crónicas foram publicadas no Jornal

Cultura (Jornal Angolano de Artes e Letras) entre Outubro de

em versão pdf, para que possam ter uma ideia dos temas e da

minha abordagem pessoal,fora do âmbito do jornalismo, uma vez

que reflectem a minha visão sobre temas de interesse geral ou

específico ou a descrição e interpretação de episódios nos quais se

podem rever contemporâneos e conterrâneos. Também coloco

desde já ao vosso dispor o meu curriculum vitae, que enviarei se

assim o entenderem.

Actualmente vivo em Lisboa mas creio que com o advento das

novas tecnologias (sobretudo o e-mail e o skype) tal afastamento

geográfico não deveria ser impedimento para uma saudável relação

de trabalho. Não vos tomo mais tempo nesta breve apresentação,

mas gostaria de receber a vossa primeira reacção para podermos

eventualmente dar seguimento a esta "conversa", como desejo.

Atentamente,

Luísa Fresta

01 | 24 de Junho de 2013

Page 3: Literatas 59

O sol de Junho a queimar-se com a própria chama | Mbate Pedro

pág. 7

Sumário

DIRECTOR Amosse Mucavele | [email protected] Cel: +258 82 57 03 750 | +225 84 07 46 603 EDITOR Japone Arijuane | [email protected] Cel: +258 82 35 63 201 | +258 84 67 29 929 CHEFE DA REDACÇÃO Nelson Lineu | [email protected] Cel: +258 82 27 61 184 CONSELHO EDITORIAL Amosse Mucavele |Japone Arijuane | Jaime Munguambe| Mauro Brito | Nelson Lineu| REPRESENTANTES PROVINCIAS Dany Wambire - Sofala Lino Sousa Mucuruza - Niassa Jessemuce Cacinda - Nampula FOTOGRAFIA: Henriques Nguetsa

REVISÃO LINGUÍSTICA Óscar Fumo COLABORADORES Moçambique: Brasil: Rosália Diogo Marcelo Soreano Pedro Du Bois Samuel Costa Portugal: Victor Eustaquio Angola: Lopito Feijóo João Tala Cabo Verde: Filinto Elísio

Ficha técnica

COLABORAM NESTA EDIÇÃO: Portugal: Luís Costa Maria João Cantinho Manuela Gonzaga Luísa Fresta Yvette Centeno Moçambique: Mbate Pedro Sangare Okapi Emmy Xyx Octávio César Bule Jaime Munguambe Jr. Mauro Brito Angola: Frederico Ningi Brasil: Casé Lontra Marques.

PAGINAÇÃO Japone Arijuane Octávio César Bule A revista Literatas é uma publicação electrónica idealizada pelo Movimento Literário Kuphaluxa para a divulgação da literatura moçambicana e lusófona. É permitida a reprodução parcial ou completa com a devida citação da fonte e do autor.

Centro Cultural Brasil-Moçambique | Av. 25 de Setembro, Nº 1728 | Maputo | Caixa Postal | 1167 | Email: [email protected] | Tel. (+258): 82 35 63 201 | 84 07 46 603 | 82 27 61 184

Movimento Literário Kuphaluxa | http://kuphaluxa.blogspot.com | www.facebook.com/movimento.kuphaluxa

Cartas | Comentários | Opiniões | Ideias

É verdade verdadeira que todo o estágio da civilização humana é fruto de uma revoluçao. A revoluçao é o esplendor que reforma, forma e

transforma qualquer que seja o paradigma. A revoluçao é, sobre maneiras, o apice da objectividade, cujo efeito é mudança. As revuluções que actualmente inundam o mundo, o repúdio popular, este gesto nobre que acontece um pouco por toda a parte é, na nossa maneira de ver, um acto digno de louvores. Assistimos isso com mais afectividade no brasil pelo português que nos une. O repúdio, seja individual ou colectiva, de qualquer manifestação, artistica, politica, seja qual for, torna-nos dignos de nós mesmos. A revolução deve ser vista como oportunidade de criatividade, momento de reflexão, de reencontro com as nossas próprias bases, portanto não há nada de prejurio numa revolução, pese embora os estragos, a violência, que a sua negatividade é óbvia, porém, nada mau. O sangue que as revoluções exigem servem de purificação, assim como acontece numa cermónia mágico-religiosa, o sacrificio faz parte do culto. Indo para aquilo que me é permitido falar com uma certa substância de autoridade, a arte, esta busca sempre retratar aspectos como esses, analizando em vários prismas, aliás é o artista produto de socializaçao, este por mais que tente, dificil é separar-se embora haja um certo distanciamento, como bem (re) diz a critica. Neste campo as mudanças sempre criam um certa estranheza, a arte de vanguarda é, e sempre será mal compreendida logo aprior, e tal entendimento leva seu tempo, como é óbvio, quando deixa de ser de vanguarda, aliás, como já bem disse José Ortega y Gasset “(...)O estilo que inova demora certo tempo para conquistar a popularidade; nao é popular, mas tampouco é impopular(...)”. E é com este olhar revolucionário que percebo a entrevista a Professora Inocência Mata, precisamente quando fala dos sistemas literários de países falantes da língua portuguesa, com mais enfoque aos de São Tomé e Princípe e Guiné-Bissau, como sendo sistemas já consagrados; é obvio!, na nossa opinião um só bom e bem-feito livro literário pode muito bem consagrar um sistema, não variedades de futilidades, ainda mais nesta entrevista a professora vai longe ao repudiar o actual cenário que se vive nas literaturas dos países africanos de línguas portuguesa, que somente são consagrados os autores publicados no Brasil e Portugal, ridiculo! Bom, antes que me saqueiem as palavras, quero chamar atenção para as próximas novas edições dessa revista que, irão sofrer uma restruturação na forma e no conteúdo. Bom Leitura.

Editorial |

http://revistaliteratas.blogspot.com

Japone Arijuane

A REVOLUÇÃO COMO OPORTUNIDADE

D o r o m a n c e N ´ Ts a i Tchassassa, a Virgem de Missangas, de Carlos Paradona Rufino Roque | Fátima Mendonça

pág. 20/21

Page 4: Literatas 59

Diálogos

04 | 24 de Junho de 2013

Às segundas-feiras saiba quem é a personagem da semana em: http://revistaliteratas.blogspot.com

Nomear os sons na dissolução

conserva um pouco das sílabas ofensivamente estendidas

ao espanto inicial?

quase esqueço o

que responder — enquanto somos arrastados —

até o fundo

das retinas:

sustentando (pânico após pânico) a

fabricação da apoteose

— minto —

da metamorfose

corporal;

com súbito prazer;

insisto:

assim que o bulbo — depois de algum silêncio —

mas antes do acaso:

assim que o bulbo (o bulbo)

esfria

no

asfalto

— eles sempre correm —

é claro

— todos agora correm —

por

que logo

eu tentaria coibir

uma qualquer

intrusão?

nascemos para a língua:

jogados no tempo — sem a exatidão da voz —

contra essa espessa mudez:

nascemos

para o que nos ressuscita

— arremessando um rosto —

nos cristais

da cica

Nomear os sons na dissolução

do vento

observar

a redonda face da pedra tempo

no espelho da música

a derreter no iceberg do espaço

é um desafio para olhos

construidos pelas madrugadas

de uma cegueira amedrontada

pelo voo das rãs residentes em águas

métalicas

quando penso

peco por me esquecer de traçar

o sonho na retina do rio

que me arrasta ao som

do coachar das borboletas

de asas de tempestade

logo interrompo

o meu banho de solidão

e peço adeus ao Deus

das coisas mortas

que ressuscitam na dissolução

deste verbo em

matéria

para construção

da neve.

tudo derrete nas vertebras da cor

azul do mar e do céu

e escapa-me

o fogo da solução

destes sons.......

o coachar e o silêncio.

Casé Lontra Marques—Brasil Amosse Mucavele—Moçambique

Nomear os sons na dissolução

Page 5: Literatas 59

Notícias

05 | 24 de Junho de 2013

As notícias todos os dias em: http://revistaliteratas.blogspot.com

Diálogos

Amosse Mucavele—Moçambique

F oi criado no dia 12 de Junho no Brasil

um Centro de Estudos Africanos. Este

núcleo de pesquisas científicas sobre o nosso

continente surge no momento em que se realiza

naquele país o encontro anual da Associação

das Universidades de Língua Portuguesa

(AULP), em Minas Gerais.

O Centro de Estudos Africanos, que pretende

reunir trabalhos de brasileiros e africanos, terá

sede na Universidade Federal do estado brasileiro

de Minas Gerais, em Belo Horizonte. A iniciativa

agradou os representantes dos vários países

africanos presentes neste encontro.

O moçambicano Jorge Ferrrão, presidente da

AULP, conta que está animado com a ideia, mas

confessa que nem sempre viu com bons olhos a

criação de centros desse tipo. ―Eram centros apenas com matérias feitas

por pessoas que vão passar algumas semanas em África e voltam

dizendo o que é o continente. Como funciona em França, que apenas

tem reflexões de pessoas que foram em África e voltaram. Eu tinha,

pessoalmente, um grande problema com relação a isso. Preconceito

mesmo‖, conta.

Para Jorge Ferrão, a proposta agora é diferente porque vai incluir

trabalhos dos africanos. ―Aquilo que era fundamental, que também os

investigadores africanos pudessem eles próprios apresentar para o Brasil

algumas reflexões sobre a África e que pudéssemos debater.

Criado no Brasil Centro de Estudos Africanos

Fonte: Jornal A Semana

Isso para não termos a ideia de que

porque o pesquisador é do Brasil é

superior e pode fazer um trabalho melhor

do que aquele que lá está‖.

O reitor Orlando Manuel Fernandes da

Mata da Universidade Agostinho Neto,

em Angola, também acredita que os dois

lados - Brasil e África - vão sair

ganhando como o centro nesses moldes.

―Temos professores angolanos que irão cooperar com

esse centro de estudos através da troca não só

experiências, mas de docentes. Os nossos

investigadores podem participar de projectos conjuntos

de investigação científica virada a essa área de estudos

africanos. Sairemos (Brasil e Angola) ganhando‖.

Felipe Zau, vice-reitor da Universidade Independente de

Angola, acredita que, além de responder a necessidade

de trazer o olharverdadeiro da África, por meio de

pesquisadores locais, o núcleo vai ajudar a enfrentar um velho problema

entre Brasil e África: a falta de conhecimento mútuo.

―Muitas vezes, nem nós temos conhecimento sobre o que é o Brasil de hoje

e nem este tem conhecimento da África de hoje. Ficou um pouco à volta

daquilo que, de forma cinematográfica, foi informado sobre a África,‖

afirma. ―Às vezes, creio que temos mais informações sobre o que ocorre no

Brasil do que o que os brasileiros têm sobre o que ocorre em África‖.

O evento da AULP em Belo Horizonte contou com representantes da área

da educação de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique,

Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.

“ A sua escrita apela o lado mais ―natural‖ das coisas, explorando a ligação humana à terra, à

natureza. As suas obras têm levado a língua portu-guesa além fronteiras, enaltecendo sempre a sua estreita ligação com as tradições e cultura africanas. Mia Couto rejeita a ideia que a lusofonia seja um sen-tido singular, considera que existem várias lusofonias. ‖ Liliane Lobo in do blog dos

alunos do curso de gêneros jor-nalísticos do curso de Ciências da Comunicação e da Cultura da Universidade Lusófona, em Lis-boa. Já nas histórias de Kindzu en-contramos inicialmente as pre-visões de seu pai sobre a inde-pendência do país fatos que poucos conheciam. ―Essa marginalização dos processos políticos do país revela que mesmo com os ditos revolucionários atos de descolonização, a vida do povo não mudou em nada,

para eles, ser explorado por um branco ou por um negro em pouco mudava sua vida. Saindo de uma guerra para uma seguida en-trada em outra o povo apesar de desconhe-cer as motivações, sabiam bem como defini-la, assim dizia Taímo: ―A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos

morder.‖

(…) Percebemos, então, através dessa análise, que Terra Sonâm-bula é um vivo retrato do povo moçambicano, uma descrição histórica de como a guerra acontece por trás da perspectiva da capital. Um povo que vive na duali-dade de um passado rico em mitos e crenças, com

um presente duro e cruel. Pedro Puro Sasse da Silva in

blog sociedade dos poetas amigos .

Camões volta a Moçambique Depois de José Craveirinha, em 1991, ter levado Camões a

pátria dos Poetas chegou a vez do Mia.

Literatura moçambicana está de parabéns

Page 6: Literatas 59

06 | 24 de Junho de 2013

E m A Arqueologia da palavra e Anatomia da Língua podemos ver o que de mais rico uma antologia pode trazer: a diversidade,

tanto no sentido de encontro como de tensão. Nesta produção não se estabelecem hierarquias. Compõem o exemplar nomes

consagrados e principiantes, várias gerações dialogam, vários géneros e diversas nações. Unindo esses diversos poetas um elemento: a

língua portuguesa. Com o ―abraço do idioma‖ podemos apreciar poemas belíssimos, de realidades distintas, mas com o conforto que só o

domínio do idioma pode proporcionar. O livro é, sem dúvida nenhuma, uma iniciativa necessária e bem realizada.

Maria Luzia Carvalho de Barros Paraense ( Luzia Barros). doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, Universidade de São Paulo

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E ste projeto experimenta jogos de espelhamento entre poemas

de poetas dos países que são considerados como espaços de

expressão em Língua Portuguesa. Na codificação escrita da realidade

extralinguística, materializada neste

trabalho, antigas formas são fissuradas

e as marcas singulares dos falares

locais são esculpidas, transformando-

se em novas materializações

ideológicas e penetrando os outros

discursos. Cumpre observar que,

conforme Bakhtin (2010, p.36), ―A

palavra é o fenômeno ideológico por

excelência‖. Neste lugar de encontro

de elementos díspares, revelador de

uma condição de entrecruzamentos de

imaginários sociais diversos, é que a

coexistência de visões provenientes de

racionalidades distintas, unidas por um

projeto de língua que desliza (em

deslocamentos de sentidos e de

objetos de representação), provoca o

redimensionamento do olhar sobre as

incessantes trocas culturais que

ocasionam o estabelecimento de

interfaces.

(...) As diferenças são pontuadas

pela linguagem e sempre a partir de

uma posição social. São processos

relacionais. A palavra, como fenômeno

ideológico, esculpe nos corpos sociais

as marcas humanas de valoração e neste espaço literário, onde as vozes

dissonantes coexistem e se expressam com igual abertura, as diferenças

não se configuram como pontos de exclusão, mas de valoração positiva

das mesmas e de dessacralização de verdades construídas e instituídas

pelos discursos oficializados.A heterogeneidade imprime na linguagem um

caráter de incompletude, mas por outro viés, possibilita a produção de

novas combinações e de uma não estagnação, uma não estatização da

linguagem.

Essa incompletude abre brechas para que outros sentidos sejam

ditos.

Da botânica ao entrecruzamento sígnico corpo/ corpo social/ terra, a

metáfora do rizoma é coadunável ao mosaico de epistemes que compõem

os construtos discursivos dos

espaços onde a Língua Portuguesa

é expressada. Analisando o conceito

de ―nacional‖ como uma produção

social e discursiva, onde estão

imbricadas as questões relativas ao

poder político que permeia as

representações escalares sobre os

territórios em questão, percebe-se

que a simbiose entre os elementos

configura-se como um instrumento

viabilizador do restabelecimento da

identidade fragmentada pelo

processo colonial,

hiperdimensionando o corpo por

tanto tempo interdito e incorporando

as experiências subjetivas vividas

pelo ser em um percurso rumo ao

amadurecimento e à individuação –

mas de um ―eu‖ identificado com a

dimensão coletiva.

A imagem de uma estrutura

rizomática para delinear as rotas de

fuga e de resistência viabiliza a

harmonia entre os níveis da África

cosmogônica representada

anteriormente por raízes ao léu,

impossibilitadas de mergulhar no solo que lhes é peculiar, raízes exiladas

de seu espaço de origem. Este projeto dinamiza os movimentos

subterrâneos que nutrem os novos mitos e a ficção. O eu e o outro não

correspondem mais a apenas uma relação binária, dicotômica, mas

transitam entre a recusa e a necessidade de negociação da possibilidade

de aprendizagem de convivência com as diferenças.

Ana Barbara Aprigio Rosa-doutoranda em Literaturas Africanas

Universidade Federal Fluminense

Page 7: Literatas 59

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07 | 24 de Junho de 2013

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As obras de arte, escassas, dão conteúdo intelectual ao

vazio.

Enrique Vila-Matas, Exploradores do Abismo.

E screvi um dia, não saber o que, com exactidão, procurar

nos livros (não que me tenha tornado descrente). Talvez, hoje e aqui, eu deva revelar aquilo, que com o passar dos anos, acabei por descobrir, com algum assombro: não procurar nos livros, com demasiada importância: uma História. Ou, se quisermos: A História. Até porque, a mesma história pode-se ler de mil e uma maneiras diferentes. Bem vistas as coisas, não há nada mais deprimente, penso, que vermos a imagem combalida e efémera do leitor criativo, a sofrer às estopinhas, para pegar o fio fugidio duma meada, que às vezes, nem sequer existe. Porque, não tenhamos ilusões: aquele que lê, às vezes tem, muito mais prazer da escrita, do que aquele que escreve o texto. E assim, resolve-se o dilema psiquiátrico do leitor. As Hienas Também Sorriem, livro quarto do escritor Aurélio Furdela, confirma, agradavelmente, as minhas mais recentes suspeitas: o de existir algo, algo muito vivo, talvez, por detrás de alguns textos que lemos. E por detrás também, destas oito histórias simples e vulgares, ajustadas, creio, ao território literário do conto, do meta-conto ou do conto-crónica. E aqui está, um dos aspectos que torna, em meu entender, o livro de Aurélio Furdela, uma obra contemporânea: O Por Detrás das simples histórias. O mesmo, Algo Muito Vivo, Talvez, que encontramos nas traseiras de O Velho e o Mar, de um Hemingway ou de Estrela Distante, do pós-modernista Roberto Bolaño. Porque, a verdadeira arte, está, sem nos darmos conta, muito além do que vemos (tenho a vaga impressão que já isto, escrevi, algures). Talvez seja por isso que, com alguma surpresa, continuam a encantar-me os quadros monocromáticos do pintor Estevão Mucavele. Isto dito, tomemos, como exemplo, o último texto desta obra de Furdela (o velho hábito de começar sempre pelo fim), Doutor Seringas e a Burra que Sabia. O que nos conta, este perturbador conto, para além da angustiante e hilariante situação de um Doutor Seringas, que, destacado para um povoado distante, acaba por ser, ridiculamente apanhado no meio de uma armadilha, que o empurra a copular com uma burra?

O sol de Junho a queimar-se com a própria chama

Mbate Pedro-Moçambique

Quantas histórias, parecidas com esta, já foram contadas e recontadas, vezes sem conta? Pois então, o que acho interessante neste e nos outros sete textos que compõe a obra, As Hienas Também Sorriem (que por uma questão meramente lírica, passarei também a nomeá-lo de, As Oito Canções da Angústia), é o que refulge, creio, por detrás deles (o que também refulge, nas magníficas figuras monocromáticas do pintor): os fiapos dos ossos no abismo, a tez emagrecida da miséria, a cólera enrubescida, a dor nos armários do passado e, nas noites mais gélidas, a pobreza como íntima. Acresce-se aqui, aquilo que há de mais asqueroso nesta última: os seus excessos. Porque, como diz um dos personagens, Nosso castigo é sempre a dobrar (referindo-se a Malária de duas cruzes, que ao outro acometia). Parece, ao ler-se este livro, como diria Paul Valery, que toda a estupidez e loucura andam a solta. Nos encontramos, assim, perante Oito Canções de Angústia cantadas,

sadicamente, pelos deputados Doutores, Os encolerizados carrascos dos 141 adolescentes, Os quase-indemnizados e um interminável naipe de artistas, em constante confronto com a mesquinhez humana e, perdidos nos palcos de um dia-a-dia, cada vez mais insuportável e fuinha. Artistas, esses, diga-se já agora, que impressionam pela capacidade ateísta que têm de sofrer, sem exigir comiseração. Talvez seja porque há na miséria, uma tal dignidade, que dificilmente se encontra na luxúria. E assim desfilam, os personagens vulgares, na lisura do papel, sem, entretanto, grandes estremecimentos e, sem, entretanto, o amarrotarem. A literatura, obviamente, tem também as suas diabruras, dir-se-ia. Não me cabe aqui, analisar isso. As Hienas Também Sorriem é a cómica imagem, a metáfora cruel, do mundo amorfo em que vivemos, em que, quando a justiça não consegue condenar os seus ladrões e corruptos, defende-os e eleva-os à categoria de Doutores deputados. Como diz Mário Benedetti, escritor Uruguaio: Há sempre um modo de ocultar a porcaria e enterrar a denúncia e o denunciante. Porque, os que fazem parte da confraria dos médicos seringam com Burras. Porque, uns têm na aguardente e na modorra dos dias, a luz única para encher o escuro, que surge, como uma chaga, pela pele das manhãs. Pílula do dia seguinte para alguns desenganados sem remédio? O essencial da escrita Fordeleana, encont r a -se , c re i o , no es t i l o

profundamente satírico e mordaz, já apurado em O Golo Que Meteu o Árbitro, acabando por dar aos seus textos, uma qualidade especial, como se o mar fosse salgar os pés à praia. Já, para não falar do sentido de brevidade que, tradicionalmente, o conto pede e a que Furdela, namoradeiro, pisca-lhe o olho. Irrompem, então, de algum modo, frases entrecortadas pelo compasso das inúmeras vírgulas, as tramas a surgirem rápidas e fugazes, como a felicidade, o deslocar do tempo como se recuássemos a fita de um VHS, os diálogos secos e leves (herança dramaturga?), como a pluma dos pássaros, e, o que de certo modo nos desconcerta, que é a ausência dos floreados, tão desnecessários ao conto e, mais úteis, a um projecto de romance. Furdela escreve sobre o absurdo e sobre a razão e a música que o habitam. Isto leva-nos, a uma última questão: queremos um contista que nos conte uma história ou que nos cante uma história? E mais não digo, porque não serei eu a atrasar o leitor.

http://revistaliteratas.blogspot.com

Page 8: Literatas 59

08 | 24 de Junho de 2013

Todos os dias os colunistas em: http://revistaliteratas.blogspot.com

Crónica & Conto

Nelson Lineu - Maputo

ainda diziam que a violência por ela sofrida vinha do facto dela não ter

atributos para chamar atenção aos homens (o motivo que fez ela criar a

associação); mas as frequentadoras não davam ouvidos aos pensares.

Hoje Marta acordou bem disposta com fé de que no encontro sairia com

o milagre que mudaria a sua vida de preferência não passando pelo

divórcio. Saiu de casa duas horas antes da hora marcada, pelo caminho

que percorreria a pé, faria quarenta e cinco minutos.

O que fez com que andasse como quem não tivesse pressa e prestasse

atenção nalgumas conversa pela caminhada; uma delas não era

preciso tanta atenção porque eram gritos, tratava-se de uma briga de

um casal em que o marido chamava a esposa de cadela.

Adiantou o passo para não ouvir mais aquelas palavras que, para ela,

eram profanas, portanto, afectariam o dia que queria belo.

Quando sentiu-se longe daquela violência aos seus ouvidos, viu um

moço chamar uma moça num tom galanteador e ela responder-lhe: ―eu

tenho dono‖.

Já na sala da associação mulheres pela mulher, foi recebida com

cânticos e algumas palavras de recepção da líder que ela já admirava:

―É comum nesse país as mulheres serem mais condecoradas que os

Homens. A menina dos oitocentos metros que beijou todo tipo de

medalha, as campeãs africanas do Basquetebol, nomeação e prémios

internacionais entre outras distinções. Tu também serás campeã!‖

Marta contou a sua história as outras. Conduzia o pilão, em cada batida

era como se pilasse o seu próprio coração. Já na hora de peneirar caía

quase tudo e só restava o motivo que lhe fazia ficar ainda no lar: os

filhos, por não ter como os sustentar.

Não era por carecer de confirmação, mas a notícia que viu hoje no

telejornal confirmavam as palavras da líder da organização. Marta não

via a hora de amanhecer e os dias passarem rápidos, ansiando pelo

próximo encontro, onde partilharia com as colegas, a supremacia das

mulheres em relação aos homens em Moçambique. Até o mundo rendia

-se às moçambicanas que, para ela, pelo seu talento já eram chamadas

para o estrangeiro. Nesse caso tratava-se de uma competição de doer

estômago, a meta era o Brasil, uma moçambicana foi contratada,

estava no aeroporto com prémio na mão, eram algemas. Foi encontrada

com droga no estômago, mais uma moçambicana a ser destacada a

nível mundial, em Moçambique era campeã da fome.

Campeãs

A Marta sentia que teria um sono leve, consequentemente uma noite

diferente da dos últimos dias. A vida chegava-lhe com outro peso,

era com se pudesse voar.

Durante o dia, teve a sua primeira sessão num grupo de mulheres, onde

discutiam problemas delas e juntas procuravam soluções. Sorriu não num tom

de provocação, mas de gozo por viver intensamente o momento, ao se

lembrar duma colega que como ela frequentava pela primeira vez no grupo

reclamar pelo direito de tomar iniciativa para fazer sexo; esse papel era

relegado ao marido, mas da boca dele ouvia-se falar mais da vida profissional

do que de outra coisa, mesmo nos momentos em que ela chamava de acção.

―Como eu seria vista se marcasse uma reunião com as duas famílias para

resolver o problema?‖, lamentava, a colega.

O parceiro da Marta estava indiferente perante ao estado dela. Ela também,

ao contrário das outras vezes, mostrava uma indiferença em relação ao que

esposo naquele momento pensava ou deixava de pensar.

Lembrou-se do dia anterior quando a vizinha falou-lhe da associação que se

chamava mulheres pela mulher, dando ênfase ao pensamento, segundo o

qual, os homens optavam pela submissão à mulher pelo reconhecimento da

sua inferioridade perante a elas (faziam da submissão a sua defesa). As

mulheres deviam fazer desse ponto exactamente o seu poder e reverter o

jogo. Culminou com o convite, para Marta não havia duvidas que os seus

problemas seriam resolvidos.

A vizinha falou-lhe da líder do grupo que era uma grande mulher e exemplo a

seguir. Por ser solteira e nunca se ter ouvido falar de um caso amoroso dela,

algumas pessoas questionavam a utilidade dos seus conselhos;

espelhando culturas e identidades

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Crónica & Conto

09 | 24 de Junho de 2013

Crónica & Conto http://revistaliteratas.blogspot.com

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V ivi em Moçambique dos doze aos vinte anos. Cheguei em 1963 e parti em 1971. Depois disso, voltei várias vezes à terra que

ainda hoje amo profundamente. Em sonhos. Resolvi então, em vez de um conto, ou outra narrativa mais tradicional, escolher um deles, entre tantos e tantos outros de um diário que mantenho com intermitências há bastante tempo. Porquê este? Porque a sua carga onírica ainda hoje me comove e perturba. Porque a força do que senti e vivi e que, ao acordar fixei por palavras, continua bastante misteriosa e sedutora. Podemos falar de arquétipos, podemos evocar união de opostos, equacionar a guerra como o conflito latente que visita todas as nossas almas e coração de viventes. Mas mesmo assim, acho que há mais do que isso, neste meu mágico encontro com o Negro Linga. Afinal, e no sonho, a que é sempre uma antecâmara de realidades, tivemos uma filha. Que fruto virá a ser esse? Entretanto, continuo e continuarei

sempre a sonhar com Moçambique.

Noite de 20 para 21 de Março de 1998

Regresso a África. Viajo entre duas secções do Tempo. No passado e no presente. Estou no mato, é noite, e estou a viver um episódio de guerra. Há sombras.Há homens negros em camuflado. Vai começar um t i r o t e i o . E s t a m o s n o N o r t e d e M o ç a m b i q u e . Estou com um negro. Ele conhece os caminhos. Ele sabe por onde devemos fugir. Ele leva-me consigo. Corremos, embrenhamo-nos na selva e passamos uma noite inteira, os dois. Escondidos. Agora, e em tempos de paz,estou a recordar aquela noite no mesmo lugar onde tudo aconteceu, e digo à pessoa que está comigo: ―Entendes porque fiquei com a filha que tive dele?‖

E de novo, encontro-me junto do negro, que está também a contar o que se passou há tantos anos, aos muitos que o rodeiam. E esta transposição de momentos parece-me perfeitamente natural, porque é como se o tempo fosse um cristal de muitas faces, as quais podemos, nesta circunstância tão particular, cruzar livremente, como quem desfolha o livro de todos os instantes. O negro diz: ―Vocês gastam muita energia a fugir. É preciso simplificar. Traçar as metas‖.

E demonstra, desenhando no pó do chão, o semicírculo perfeito que

efectua, no mato, para se esconder. E demonstra, também, a série de

curvas aleatórias que outros percorrem, sem lógica porque meramente

instigados pelo medo, e que não os leva a lado algum. Está deitado no

chão, estendido e apoiado de lado, sobre os cotovelos. Eu também estou

deitada na mesma posição, mas ao contrário. As minhas pernas estendem-

se ao longo das suas costas. Afago-o, numa carícia que é, também,um

gesto de cumplicidade. Ele retrai-se. Percebo que não posso expressar o

meu amor por ele. É como se ele fosse um princípio activo masculino em

estado puro: simplesmente, não posso agir assim com ele. E contudo

somos íntimos, embora eu não guarde qualquer memória da nossa

intimidade.

E então,regressamos ao mato, à noite em que fugimos juntos. Ele diz-me: ―Não percebes, mulher, que nunca me posso perder. Mesmo que morra. Mesmo que o meu corpo fique pulverizado em mil pedaços. Se isso acontecer, serei recolhido, inteiramente, e todos os meus bocados serão entregues ao meu Pai, porque eu sou um Linga.‖ E acrescenta: ―Aqui, todos sabem, sempre, onde estou. Aqui, todas as tribos conhecem o meu Pai, e conhecem-me a mim, porque sou um Linga.‖ Eu não sei o que é um Linga, mas não quero parecer ignorante. De modo que faço um comentário, a ver se provoco nele uma reacção que me dê um indicador sobre a sua origem. Vejo umas palavras escritas, em letras grandes. Consigo decifrar a raiz do vocábulo. É SOMALI. Volto a dizer à pessoa que está comigo: “Percebes agora porque tinha de ter a filha deste homem? Não podia fazer de outra maneira.” Do meu Diário de Sonhos

Foto: Paolo Favero

Manuela Gonzaga-Portugal

Em África com o Negro Linga

2anos espelhando culturas e identidades

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Entrevista o

Inocência Mata: a essência dos caminhos que se entrecruzam

Fonte: REVISTA CRIOULA

E studiosa incansável das literaturas africanas de lingual portuguesa, Inocência Mata revela-nos, na sua postura crítica, a diversidade

que permeia a sua própria origem e trajetória pessoal. Nascida em São Tomé e Príncipe, traz consigo o estigma da travessia que se consolidou com seus ancestrais angolanos, brasileiros, ciganos e são-tomenses. Dessa pluralidade de raízes resultou uma atitude crítica sempre inquieta que se preocupa e destaca a importância da diversidade e das identidades no campo dos estudos literários. Inocência Mata é docente na Faculdade de

Letras da Universidade de Lisboa, onde leciona Literaturas Africanas, Literaturas Pós-coloniais Comparadas e Multiculturalismo e Dinâmicas Interculturais. Para além das publicações em que participou como organizadora e coordenadora, destacamos alguns de seus trabalhos, tais como Emergência e Existência de uma literatura: o caso santomense (1993), Diálogo com as Ilhas: sobre cultura e literatura de São Tomé e Príncipe (1998), Literatura angolana: silêncios e falas de uma voz inquieta (2001), Laços de memória & outros ensaios sobre literature angolana (2006) e A literatura angolana e a Crítica Póscolonial: reconversões (2007). Entrevista realizada por Débora Leite David em Lisboa (12 de setembro de 2008).

Revista Crioula - Gostaríamos que nos falasse sobre sua trajetória pes-

soal: onde nasceu, como se deu a sua formação intellectual e quem a es-timulou a seguir os caminhos da Literatura.

Inocência Mata – Não gosto muito de falar de mim, sabe? Nasci em São Tomé e Príncipe, mais particularmente na ilha do Príncipe. Saí de lá muito pequenina, ainda bebê, por isso fui conhecê-la muito tempo depois, já adulta. Vivi em São Tomé e Príncipe, Angola e hoje vivo em Portugal, onde me formei. Esta é a minha trajetória, que é também a trajetória de certa forma da minha família. Veja: tenho um avô angolano de origem ci-gana, uma avó são-tomense, uma avó do Príncipe, um avô do Príncipe com raízes no Nordeste brasileiro e uma avó de São Tomé. De maneira que sou também, de certa forma, o resultado disso. O meu percurso alvez corresponda a essa essência migratória da minha família. A minha família, principalmente o meu pai, teve um grande papel na minha formação. As relações da minha casa já eram muito diversificadas e, de certa forma, muito programadas. Nós líamos muito. Meu pai foi um nacionalista, o que fez com que realmente desde pequena eu tivesse ol-hado o mundo de forma um pouco menos ingênua, do que, possivel-mente, meus colegas. Mas devo dizer que, intelectualmente, comecei a formar-me em Angola e esse percurso intelectual tomou rumo definitivo (em termos de opções ideológicas profundas) em Portugal, onde tive pro-fessores e relações muito importantes. Tive professores maravilhosos nesta casa [ela fala da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa]. Tive a sorte de ter tido muito bons professores aqui e particularmente um que foi, posso dizer, uma espécie demestre. Sobretudo, aprendi com ele a humildade no saber. Falo do professor Manuel Ferreira. Por isso, não suporto gente arrogante que pensa que sabe tudo, e que aquilo que sabe é a última verdade; de gente que não aceita uma discordância e que saca da cartola todos os livros e honrarias – reais e imaginárias. E tive outras relações com Mais-Velhos com quem aprendi muito. Sobre-tudo aprendi mais a forma do que o conteúdo. Aprendi o que é que um mestre deve passar aos seus discípulos. Os conteúdos estão sempre em mudança: basta arranjar, digamos, um sistema e uma epistemologia para se chegar a isto. É isto o que penso que um professor deve passar ao aluno. Quando ele consegue passar isto, penso que o professor se trans-forma em mestre. E tive, então, mestres como o Prof. Manuel Ferreira, Mário Pinto de Andrade, Prof. Fernando Cristóvão, Prof. Benjamim Pinto-Bull. Portanto, tive mestres. São pessoas com quem convivi. O Prof. Ben-jamim Pinto-Bull e o Mário Pinto de Andrade, por exemplo, nunca foram meus professores, mas com eles aprendi, sobretudo, algo que penso que falta muito na nossa área de Estudos sobre África: humildade!

Revista Crioula – Conte-nos sobre seu percurso acadêmico como profes-

sora e pesquisadora da área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.

Inocência Mata – Bem, logo depois do 25 de Abril, mesmo no Liceu, houve

aquele momento de uma visão entusiástica, aquilo era nosso. Mas, de fato, o estudo sistemático e sistematizado foi feito em Portugal, aqui na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com o Prof. Manuel Ferreira, que, como sabe, foi o introdutor desta cadeira de Literaturas Africa-nas de Expressão Portuguesa – era assim que se chamava na universidade portuguesa. Portanto, a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa foi pioneira do estudo das Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, des-ignação com a qual eu não concordo, mas que na altura realmente foi uma grande revolução. Muita gente pensava, e ainda pensa, ainda vê as literatu-ras africanas como literaturas ultramarinas, como um apêndice da literatura portuguesa. Até há pouco tempo, havia uma universidade em que essa era a designação…

Revista Crioula – Aqui em Portugal?

Inocência Mata – Sim. Portanto com a introdução desta cadeira no cur-rículo acadêmico, uma cadeira de Literaturas Africanas de Expressão Portu-guesa, foi que realmente a academia e as pessoas começaram a olhar para estas literaturas como produções dignas – aqui em Portugal obviamente, pois lá em África já olhávamos como literaturas diferentes, autônomas, não como literatura regional. Mas de forma ainda muito suspeita. Há, de certa forma, na área de Literaturas Africanas, determinadas atitudes que acabam por corroborar essa idéia de que as literaturas africanas são literaturas me-nores. Porque quando se pensa que basta ler cinco livros, basta conhecer os escritores, bastaser amiga deles para ser ―especialista‖, torna a área ―menor‖ porque a folcloriza. Há muito folclore nesta área – no pior sentido deste termo! No campo da literatura brasileira e da literatura portuguesa, por exemplo, as pessoas não admitem isso. Há todo um percurso de mestrado, doutoramento, pós-doutoramento, quase é preciso um percurso de investi-gação de uma vida para as pessoas serem reconhecidas como especialis-tas de Literatura Portuguesa ou de Literatura Brasileira. Mas na área das literaturas africanas, tal não acontece. Lêem-se cinco livros e já se é espe-cialista. Esse é um atestado de menoridade à área, mesmo que involuntário. Mas, enfim, esta é uma outra questão.

Revista Crioula – Até mesmo provocando uma generalização da literatura

através do estudo do mesmo autor.

Inocência Mata – Exatamente. Pois, quando as pessoas pensam, quando

falam, na África... As pessoas não dizem ―na Europa‖, elas dizem ―em Portu-gal‖, ―na Espanha‖, ―na Inglaterra‖.

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Entrevista |

11 | 24 de Junho de 2013

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Quando afirmam que conhecem um país africano, já acham que po-dem falar da África toda. Essa é a digressão: os pretos são todos iguais. Ao que eu costume dizer sempre: os pretos não são todos iguais. Assim como os broncos não são todos iguais. É verdade que há um desconhecimento, mas não é só desconhecimento. É pre-cisamente um preconceito sobre a falta de complexidade desses sis-temas culturais. A idéia de que esses sistemas culturais não são siste-mas tão complexos quanto outros sistemas culturais. É uma visão preconceituosa das civilizações africanas, sem sombra de dúvida. Isso acontece possivelmente também em África. Outro dia, eu estava precisamente a comentar como os ―nossos‖ jornalis-tas (por ―nossos‖ quero significar africanos), lidam com as notícias. Por ex-emplo, se cai um avião na Nigéria, a Reuters ou a France-Presse diz assim: há um holandês, dois britânicos, três franceses e vinte africanos. De vários lugares, portanto. A questão é que nossos jor-nalistas pegam essa notícia e retransmitem-na nestes termos. Inaceitável. Nós, de certaforma, repro-duzimos os estereótipos do colonizador, do domi-nador, do ―centro‖. Porque, aí já concordo de certa forma com Aijaz Ahmad, ou para citar um africano, como Joseph Ki-Zerbo: nós nunca nos lib-ertaremos cient íf ica, técnica e tecnologica-mente, se nós naturalizar-mos o nosso lugar de periferia. Mas também os e s t ud i so s l a t i no -americanos dizem o mesmo: a ―teoria da de-pendência‖…

Revista Crioula – Vol-

tando à questão da con-solidação da disciplina de Literatura Africana de Lín-gua Portuguesa, a profes-sor entende que em Por-tugal já é uma cadeira obrigatória, já está con-solidada?

Inocência Mata – Nos cursos da variante do Por-tuguês é uma cadeira obrigatória. É verdade que tem um espaço me-nor do que tem a Literatura Brasileira, o que acho que não deveria, mas realmente é o que tem acontecido. Porque são cinco literaturas. Aí está. As pessoas continuam a aplicar Literaturas Africanas de Lín-gua Portuguesa, mas elas são cinco – embora já haja consciência disso.

Revista Crioula – Sabemos que as literaturas angolana, moçambi-

cana e cabo-verdiana já possuem um sistema literário, de certa forma, consolidado. Como podemos situar as literaturas de São Tomé e Prín-cipe e da Guiné-Bissau? Falando dessa especificidade de cada país, podemos considerar estes dois sistemas literários consolidados?

Inocência Mata – Claro. A questão é que nós continuamos a pensar a África a partir do olhar da ex-metrópole. Estudar a África pelo prisma do ex-colonizador é um crime intelectual. O fato de um escritor não ser publicado em Portugal não quer dizer que ele não exista. As pes-soas não conhecem, e eu já não aceito essa história de que é difícil conseguir os livros. Um bom investigador não pode passar a vida a dar essa justificação. Já não é explicação, é justificação. Desculpe, a sua formulação, pondo em causa a existência desses sistemas é disso um exemplo.

Gosto daquela afirmação do vosso Antonio Candido acerca da literatura bra-sileira: ―Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não outra, que nos exprime‖. É isso. Existe pois, nestes países, um sistema consolidado com livros que estão publicados. Dir-me-ão: mas não se consegue ter acesso aos livros. Pois não, porque a circulação de bens culturais não é uma realidade entre os nossos países. Mas algum são-tomense lembra-se de pôr em causa a vitalidade literária do Brasil.? Claro que não. Levava logo o rótulo de ignorante. O que o Brasil conhece? Apenas o que é publicado em Portugal. É só o que o Brasil conhece. Não conhece os muitos escritores que são publicados em An-

gola, em Cabo Verde e em Moçambique, para falar des-sas três literaturas, que, parece são as únicas tidas como de ―sistemas consoli-dados‖, as únicas estu-dadas. O que nós vemos é que os escritores que não são publicados em Portugal não são estudados. Salvo raríssimas exceções. Por-tanto, continuam a ver as literaturas africanas, a ver a África pelos olhos da ex-metrópole. Na minha per-spectiva, isto é inaceitável. Há grandes poetas ango-lanos que não são conheci-dos no Brasil. Digo Brasil, pois estou a conversar con-sigo, que é brasileira. Eles não são conhecidos no Bra-sil porque não são publica-dos em Portugal. Eu per-gunto: por que tem que ser assim? Já ouvi algo per-verso (claro que respondi, como pode imaginar): que os bons é que são publica-dos em Portugal! O que é isso? É a Caminho que diz quem são os bons e os que não são? É a Dom Quixote que diz quem são os bons e os que não são? Não sou contra, não é isto que está em causa, o que está em causa é considerar que só esses existem. Claro que se ouve o estafado critério do mérito. Quanto a isso re-meto para as excelentes ob-servações que respondem a esse argumentário sobre as desigualdades aqui, no Bra-sil, quanto à visibilidade so-

ciocultural do segmento negro… Ademais, já alguém parou para conferir quais são os escritoires africanos privi-legiadamente publicados em Portugal? Pois convido a essa observação e talvez descubram que se trata sobretudo de escritores lusodescendentes. Será porque, devido à sua origem mestiça, podem erigir-se a representações metonímicas da dimensão transfronteiriça da cultura portuguesa e da vocação atlântica de Portugal? Não se trata de observação beligerante, é tão somente a amarga lucidez de uma situação de dominância etnocultural. Voltando à questão, é óbvio que quase não existem estudos de escritores de São Tomé e Príncipe ou da Guiné-Bissau. Mesmo em Cabo Verde podem-se contar os escritores que são estuda-dos. Pouquíssimos. Fala-se muito da literatura no feminino. E Cabo Verde tem uma produção de mulheres que não se conhece porque ela, essa produção, não é publicada em Portugal. Uma produção extraordinária de autoria feminina. Ro-mancistas, contistas, quem é que conhece? Elas são publicadas em Cabo Verde e ficam lá. Por isso, o investigador não pode encher a boca e dizer que não existe. Aquele que para o investigador não existe, continua a existir.

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Entrevista

12 | 24 de Junho de 2013

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Portanto, é verdade que Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe não têm a produção que tem uma Angola. É uma questão, enfim, de números. Em São Tomé são 160 mil e os angolanos são 14 milhões… É a mesma coisa: vocês são, no Brasil, quase 190 milhões e em Portugal são 10 milhões. Portanto, é umaquestão mesmo de números. Um amigo português dizia que os chineses ganharam muitas medalhas, por ocasião dos Jogos Olím-picos, e os americanos também. Lamentando-se, talvez. Disse-lhe (na ten-tativa, talvez, de apaziguar o seu sentimento patriótico): ouve, só uma província da China, uma provinciazinha, tem o dobro dos habitantes de Portugal. Como é que os portugueses querem ter tantas medalhas quanto os chineses? Não dá! O número conta também. É verdade que existe, comparativamente, pouca produção em relação a Angola. Mas é um sis-tema consolidado. Eis a razão pela qual eu, ultimamente, quase que como uma finalidade muito programática, tenho estudado muito a literatura são-tomense. Para dizer que existe, que existem romances, que existem livros de poesia, que não são divulgados em Portugal. Penso que é algo que falha aos países de língua portuguesa: circulação de bens culturais.Tenho um amigo que diz que falo tanto disso que as pessoas já não ligam. Volto a dizer: acho que se deve repetir o óbvio. Devia haver uma forma mais efi-caz, os poderes deviam preocuparse realmente em fazer circular a pro-dução cultural. É isso que nos aproxima e não os negócios e os acordos comerciais. O que é que circula? O que as pessoas conseguem através da Amazon.com. E vê-se que há um livro que foi publi-cado do Pepetela, entra-se na Amazon e pede-se o livro. Outro livro da Paulina Chiziane, entra-se na Ama-zon e consegue-se o livro. No entanto, acho o se-guinte: nós vivemos no mundo, d izem, das autoestradas da informa-ção, da internet e as pes-soas devem procurar sa-ber, mesmo que não ten-ham acesso, o que saiu. A imprensa desses países faz-se também com jornais digitais. Esta informação está lá. A informação de que foi publicado um livro de Malé Madeçu, Retal-hos do massacre de Batepá, a informação de que foi publicado um livro em Cabo Verde. Mesmo que não tenham como entrar no Amazon e conseguir, há que saber que existe. É o que eu faço. Quando quero estudar algum tema específico, por exemplo, quis estudar essa questão do cosmopolitan-ismo. Entrei na internet e vi quem escreveu sobre o tema, mesmo que não tenha acesso logo aos livros. Portanto, as pessoas têm que investigar. Não podem ficar só à espera que os livros lhes cheguem. É isto um investi-gador.Sei que estou a ser antipática, mas não me está a entrevistar para eu ser simpática, pois não? O que me incomoda muitas vezes é que nem sabem que existe. Por exem-plo: Aíto Bonfim, escritor são-tomense, que não é um escritor tão jovem as-sim, tem 55 ou 53 anos. Muitos não o conhecem, mas é um escritor mara-vilhoso. É dramaturgo, tem três peças de teatro, tem dois livros de poesia, um romance. Um escritor, na minha perspectiva, um dos melhores. Pois não o conhecem. Agora, é realmente a literatura são-tomense uma litera-ture consolidada, é pena que não tenha a condição de uma Angola, que é uma das maiores produtoras. Realmente lá existem muitos editores, existe uma política do livro em Angola. Claro que isso não quer dizer que tudo que as pessoas fazem é bom. Obviamente que não é. Assim como também aqui em Portugal, nem tudo que se publica é bom. Ou como no Brasil. Estou convencida de que um sistema literário não se alimenta apenas de Saramagos. Um sistema literário não se alimenta apenas de João Ubaldos Ribeiros. Alimenta-se também de todos esses outros. Porque ser bom ou não também é muito isso. Pois, muitos dizem que a pessoa tem que ser boa em qualquer parte do mundo. Não discordo, mas uma tal afirmação não pode ser o discurso do absolutismo. Como há a Elle Macpherson que é considerada lindíssima,ponham-na num país africano em que as pessoas estão acostumadas a outro tipo de beleza, como por exemplo mulheres com um pouco mais de carnes: continuará ela a ser a mais bela das mul-heres?! Portanto, o estético é universal na sua percepção, mas não na sua substância. É isso o que quero dizer. Há livros considerados maravilhosos que não consigo ler. Não é verdade? E há filmes maravilhosos de que não gostamos. Por isso estou farta desta história de unive sal. Não sei por que estas pes-soas consideram que tudo é universal, não sei por que se insurgiram contra Harold Bloom, quando ele escreveu o seu O Cânone Ocidental e escolheu vinte e seis escritores, dos quais uma mão não era de literatura ocidental…

Revista Crioula – Você teria alguma sugestão de livro para indicar aos

alunos sobre São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau, sobre o sistema literário ou que realmente se debruce sobre as literatures desses países?

Inocência Mata – Para começar, sobre a literatura da Guiné- Bissau in-dicaria o da Moema Augel, A nova literatura da Guiné-Bissau e O De-safio do Escombro. Sobre São Tomé e Príncipe, embora com pudor, in-dico livros meus sobre a literatura são-tomense, Emergência e Existên-cia de uma Literatura: o Caso Santomense e Diálogo com as Ilhas: sobre Cultura e Literatura de São Tomé e Príncipe, de 1998. É somente sobre a literatura são-tomense, que é, volto a repetir, uma literature consoli-dada e muito interessante.

Revista Crioula – Está em vigor desde janeiro de 2003 a Lei n. 10.639, que torna obrigatório o ensino de Literatura, História e Culturas Africanas e Afro-Brasileiras nas escolas do Brasil. Que comentários a Professora teceria a esse respeito?

Inocência Mata – Acho bom. Só lamento que tenha partido de uma por-

taria. Isso deveria ser algo que viesse como uma necessidade do próprio intelectual brasileiro, do próprio brasileiro sentir que precisa estudar um mundo que constitui uma parte de onde provém um segmento impor-tante da sua nação. Porque os afrodescendentes são uma parte impor-

tante da nação bra-sileira. Realmente o que era estudado, era numa perspectiva bastante cristalizada, numa visão muito mitificada até de África. O que não valorizava o diálogo. O que não permitia realmente um diálogo intercultural. Eu acho muito impor-tante que os bra-sileiros conheçam a história das culturas africanas. Acho im-

portante que todos os povos conheçam as culturas todas, mais particu-larmente aqueles que, de certa forma, são muito ligados a si próprios.

Revista Crioula – No texto ―Sob o signo de uma nostalgia projetiva: a poesia angolana e a poesia pós-colonial‖ a Professora afirma que, no período colonial fascista, a produção literária fez-se em diálogo com a ideologia libertária, mas que hoje as motivações dos atores da escrita são outras. Fale-nos um pouco sobre quais seriam essas motivações. Será que a tendência para o passado como ―traço característico da imaginação utópica‖ subsistirá ainda por muito tempo?

Inocência Mata – Acho que as motivações mudaram, mas não sei se os

objetivos mudaramEstou convencida de que as literatures africanas ainda são literaturas em que as questões essenciais, fundacionais, ainda estão presentes: a discussão sobre a nação, as identidades, as relações internas, o lugar de cada grupamento cultural dentro da nação. Penso que estas questões, que já vinham no discurso nacionalista e que real-mente eram do programa imediato da libertação política, ainda con-tinuam na construção do país novo. E era uma libertação política que se fazia também através da libertação cultural. Então, penso que se mantém. As estratégias mudaram porque, enquanto no discurso nacion-alista havia, digamos, uma visão necessariamente maniqueísta, ―nós‖ e os ―outros‖, oprimidos e opressores, colonizados e colonizadores, bipo-larização essa normal em qualquer discurso nacionalista, o que nós ve-mos hoje é uma reflexão a partir de dentro sobre os nossos problemas. Porque a escrita só aparece em momentos de insatisfação, de inquieta-ção, e a reflexão sobre a nação, sobre a sociedade é uma reflexão que se faz tendo em conta o xadrez interno, não o xadrez externo, mas sim os nossos problemas. Não quero com isso dizer que o agente externo não tenha influência ou não exerça ação sobre o xadrez interno. O que quero dizer é que, na obra de Aíto Bonfim, na obra de Pepetela, na obra de Mia Couto, se nós virmos bem, o que vemos é realmente um olhar interno sobre as relações internas de poder. Nessas relações internas de poder, portanto, já não existe a dicotomia colonizado/colonizador, mas existem os vários agentes internos. Assim, os ―mesmos‖ que, entretanto, têm para com os ―mesmos outros‖, relações coloniais. Um colonialismo sem colonos, para parafrasear Mia Couto naquele apontamento reflexivo sobre ―Lusofonia: história ou conveniência?‖. Portanto, a grande viragem que se dá na escrita é precisamente essa internalização do olhar.

― Quando afirmam que conhecem um país africano, já acham que podem falar da África toda. Essa é a digressão: os pretos são todos iguais. Ao que eu costumo dizer sempre:os pretos não são todos iguais. Assim como os brancos não são todos iguais. É verdade que há um desconhecimento, mas não é só desconhecimento. É precisamente um preconceito sobre a falta de complexidade desses sistemas culturais. A idéia de que esses sistemas culturais não são sistemas tão complexos quanto outros sistemas culturais. É uma visão preconceituosa das civilizações africanas, sem sombra de dúvida.‖

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Entrevista Entrevista (cont. pág. 16)

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Começa, por exemplo, com Mayombe. Os dissensos eram internos, as dis-sonâncias eram internas. Acho que Pepetela é, de fato, um escritor que escreve a nação e que vai perseguindo os vários momentos do país. Começa em Mayombe, passa por A geração da utopia e O desejo de Kianda e chega a Predadores, que é realmente um romance em que há uma encenação de uma complete distopia. Para já, que aquele indivíduo tenha sido catapultado, tendo sido quem foi, o Caposso, para um em-presário de sucesso, isso só se compreende numa sociedade em que a ética do ter impera sobre a ética do ser e toda a ética das relações huma-nas. Já não digo morais, pois não gosto de ser tomada como moralista, mas é sintomático o fato de o ro-mance ter começado com o as-sassinato de uma amante de Vladimiro Caposso, muito mais jovem que ele, enfim (mas tam-bém não quero entrar por aí) e que facilmente ela tenha podido encenar uma autoria de motiva-ção política. Mas o certo é que realmente toda essa promiscui-dade entre os vários poderes, que nós vimos desde A geração da utopia, faz com que uma per-sonagem com tão pouca ética (veja o oportunismo com que ele muda o nome, de José para Vladimiro) tenha sido cooptada pelos novos agentes, pelo neo-liberalismo selvagem, tenha sin-grado e essa mesma person-agem tenha sido trucidada de-pois por outro predador. Penso que, se acompanharmos esse percurso desde Muana Puó, po-demos encontrar vários momen-tos do país na obra de Pepetela, pelo menos desde os anos 1960 até a atualidade, sem contar que, em A gloriosa família, ele vai muito mais para trás. Veja outro exemplo: a obra de Conceição de Lima, que é po-etisa, dialoga de forma muito tensa com os fundadores do sistema, e particularmente com Francisco José Tenreiro e Alda do Espírito Santo. Um diálogo em que ela quase invectiva a forma tão vee-mente essa visão inefável do são-tomense, do crioulo que transita de forma muito harmo-niosa entre esses dois mundos. Um diálogo muito tenso, e estou à espera do terceiro livro dela, No país de Akendengue, sobre o qual não posso falar, pois ainda não foi

publicado, que é realmente um regresso. Se em A dolorosa raiz do Micondó ela regressa aos tempos imemoriais da África, nesse seu último livro, no prelo, ela regressa física e geograficamente. Então, de certa forma, estilhaça essa visão de Francisco José Tenreiro, que vimos em Ilha de nome santo e continuamos a ver em Coração em África, pois se trata de coração ―em África‖, mas ―na Europa‖.

Revista Crioula – Ainda falando a respeito de literatura e crítica guineense

e são-tomenses…

Inocência Mata – Já que falávamos da pouca visibilidade da literatura

guineense, que volto a dizer, não é uma literatura tão prolífera quanto a lit-eratura angolana ou sequer a caboverdiana, acho que valeria a pena citar Odete Semedo e seu último livro, No fundo d canto, que é poesia, mas que é, sobretudo, uma grande narrativa épica em que ela toma como matéria literária o momento histórico que ela fixa a guerra civil de 1998, há 10 anos, uma guerra insólita que começou em junho de 1998. Então, nós vemos todo esse processo de desintegração numa guerra que demorou pouco tempo, comparada com a guerra em Angola e Moçambique, que a autora expõe em as várias cidades (mais do que cidades são comunidades imaginadas), e o que estava a acontecer naquele momento. Um interessante diálogo entre história e ficção.

Revista Crioula – Na literatura angolana, principalmente, a relação

História-Literatura é muito relevante, e a fortuna crítica trata bastante dessa questão. Como a Professora avalia o resgate da memória histórica do indivíduo para o processo de reconstrução-transformação da Nação?

Inocência Mata – A memória individual é fundamental. Uma vez ouvi de

um escritor que só escreve sobre o que conhece. Porque o escritor que tenta escrever sobre o que não conhece… Normalmente dá errado. Quem me disse isso foi Pepetela. O que ele conhece está na sua

memória individual e ele pode, é verdade, verificar, pode compu-tar como memória coletiva, mas é a sua memória individual. E ela é tão legítima! Amadou Hampâté Bâ* faz uma afirmação que acho excelente: ―existem três verdades: a minha, a tua, e a verdade que está no meio e não pertence a ninguém‖. Realmente, a memória individual é importante. Por exemplo, As visitas do Dr. Valdez, de João Paulo Borges Coelho, é um ex-emplo disso. Tenho a certeza de que há muitos moçambicanos que não se revêem naquele mundo das duas irmãs, Sá Amé-lia e Sá Caetana, porque é um mundo específico de mestiças de uma classe e de uma men-talidade, e que vivem, ostensiva e orgulhosamente à parte da maioria dos moçambicanos. Mas aquela memória é tão válida quanto outra. E o que nós ve-mos em As visitas do Dr. Valdez é uma reconstituição de um processo de reagenciamento afetivo pós-independência. São duas irmãs que se isolam em sua casa, porque não conse-guem entender as transforma-ções de um Moçambique inde-pendente. É obvio que não é a vivência da maioria, pois a maio-ria estava feliz com o Moçam-bique independente. Essa é uma vivência tão válida quanto outra, mas não pode representar o todo. Onde é que pode estar, na minha perspectiva, a perversi-dade? É tomar essa parte como o todo. E isso, às vezes, os críti-cos fazem – tomam a parte pelo

todo e generalizam: a África é o que diz o escritor A ou B! Acho que talvez a responsabilidade esteja mais do lado do crítico do que do escri-tor que escreve sobre aquilo que ele conhece, se fosse o contrário não iria escrever. Essa frase de Pepetela é alguma coisa como o ―ovo de Co-lombo‖: o escritor escreve sobre aquilo que conhece. Pelo menos devia ser assim, nem sempre é, é verdade. Cabe ao crítico situar o que ele conhece, o que está a ler dentro de um sistema e não isolar; olhar o sis-tema a partir disto. A memória individual, a vivência é importantíssima, é legítima e é válida. Se não o fosse, o escritor não estaria a ser escritor, ele estaria a ser um ensaísta, um cientista social, e não é para sê-lo. Quando leio um escritor, não estou à espera de que ele me dê informa-ção. Estou, sim, à espera de que ele me desperte para questões a que chegarei procurando informação em outro lado. São duas modalidades de conhecimento: uma mais prazerosa, outra mais reflexiva. Por isso, quando estou a ler um ensaio, leio com um lápis, quando estou a ler um romance, leio deitada no meu sofá para me deleitar. Literatura tem que ter ―doce‖, se não é ―doce‖ não vale a pena. Já Horácio o dizia. ______________________________ * Intelectual maliano, autor da famosa afirmação: ―Em África quando um velho tradi-

cionalista morre é uma biblioteca inexplorada que se queima‖.

Page 14: Literatas 59

Poesia |

14 | 24 de Junho de 2013

A bala pedida encontrou volumes imensos a flutuar de madrugada à noite soou

nada há a lamentar.

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Bala pedida

Emmy Xyx – Moçambique

Partidos

Espera-se destes cefalópodes que façam esconjuros e salvem o país no fim da missa Preferiram pô-lo na Suiça a render juros

O silêncio do vento descreve a prosa habitual, as minhas duas pálpebras enormes disfarçam o sono

em greve que não pensa tão pouco em me levar nos seus braços leves, franjeis de mulher virgem

sem outro nome que lhe empreste além do ofertado. Enquanto o sono não vem pousar neste galho

seco que sou, pouso em mim mesmo, inventando diálogos com todas vozes que saem das casas

velhas construídas na vastidão do meu intrínseco, me perco cegamente nestas conversas quase

que fechadas com os tais residentes de mim. Cá dentro vejo a confissão dos remorsos angustiados

e a justa festa empolgada das euforias presas nas celas abafadas da memória trancada. Celas que

tem paredes capazes de testemunhar todos momentos. Cá dentro existem flores inocentes que

desconhecem a voz pontiaguda e cruel do veneno que vive pensando, em oprimir as células virgens

inculpadas… Cá a presunção pondera, sobre esse mesmo espaço criado pela ausência da nuvem

negra que não me quer tampar os cansaços comidos pelas horas carnívoras…Esse espaço existe

por mera justiça da demência precisa, que se alastra na pele das atitudes…Sempre que vem me

levar, nos seus braços leves, franjeis de mulher virgem, esconde a física no vento opaco da noite

perdida e me levam para outros arquipélagos onde não impero nem por gesto gratuito…

A insónia dum barco que sonha um mar que murmura nenhures

Jaime Rafael Munguambe Júnior-Moçambique

Já não o rio no poema

se rio

me não rio finjo

sou todo um rio desfeito em verso

RIOGRAFIAS

Sangare Okapi-Moçambique

Leite de Vasconcelos-Moçambique

Chove, irmã: as memórias do céu purificam as suas amarguras. O lilás, sozinho diante do perfume do tempo, procura, escorrendo água, o par que abraçado da janela aberta olhava para o jardim. Agora o meu apelo acende as luzes da chuva. A minha sombra cresce mais alto do que a grade e a minha alma é o fio de água. Lamentas, tu, Escuro, na tempestade, que eu te tenha outrora roubado o ignorado lilás ? Trad. Yvette Centeno-Portugal

Lilás de Chuva / Regenflieder

Paul Celan - Alemanha

Frederico Ningi-Angola

Page 15: Literatas 59

Poesia | Poesia |

15 | 27 de Julho de 2012

Caminho

sozinho

caminho

urino

não

despeço

peço

lume

charro

aceso

prossigo

para

norte

obviamente

para

morte

-minha pátria

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Maria Alexandere Dáskalos-Angola

Celso Manguana-Moçambique

José Craveirinha - Moçambique

Roma não passa de peregrinagem adiada ás catacumbas com tanta cristã na vã procura dos cristãos.

Roma as 9/10/1987

Samuel Pimenta-Portugal

Uma quinda de laranjas sobre a mesa. Pacaças passam a galope, o chão treme e ressoa como batuque. Os elefantes tão perto bebem água.

De repente rolam as laranjas ao chão. Silêncio-quedaram as árvores solitárias, na paisagem, entretanto, nua

In Lágrimas e Laranjas

A recta que

verga

ao galho firme,

forma trespassada

pela força

elástica do

impulso que caça e

domina a

morte.

Arco e flecha

I

TRAZEM a água e o fogo nas mãos acocorados gravam na pedra o imponderável acorde das raças nómadas II

O TRONO em chamas e os poetas andando em redor buscando as relíquias do relincho mudo

ÓSTRACOS

Luís Costa –Portugal

555 cães guardam 555 bois: não há pasto. os pastores recolhem o leite nas vacas desnutridas. a manada está silenciosa. matilha ouve 555 gemidos de silêncio. e os pássaros criam 555 ninhos nas estradas da metáfora do número.

in Simetrias

António Pompílio-Angola

555

Page 16: Literatas 59

16 | 24 de Junho de 2013

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Entrevista

Revista Crioula – Observamos que existe também uma parte do seu

trabalho acadêmico voltado para as questões do feminino. Como a Pro-fessora definiria o conceito de ―feminismo negro-africano‖?

Inocência Mata – Não acredito que já tenha falado em ―feminismo negro-africano‖. Nem bem o que seja, mas enfim. Quando falo da escrita no feminino, essa escrita não é necessariamente feminista. Entendo fem-inismo no sentido de que existe um programa de ação que vive a trans-formação do estado da condição feminina. Entendo que as consequên-cias possam ser feministas, mas não entendo, por exemplo, isso em to-dos os romances de Paulina Chiziane. Bem, não adianta ela dizer que não escreve romances, que escreve estórias. Ela é romancista e pronto. Ainda estou a acabar de ler o seu O alegre canto da perdiz, então não vou falar desse livro. Não gosto de falar de um livro que acabei de ler. Mas qual é o único livro da Paulina que acho que é feminista no sentido que propõe, tem uma proposta de ação? É Niketche. Todos os outros não são. São livros no feminino, sim, estórias contadas numa perspec-tiva feminina. No caso de Ventos do apocalipse, a guerra é vista pelos olhos de mul-her, particularmente de Emelina, Minosse, Massupai. Os outros livros, tanto O sétimo juramento, quanto Balada de amor ao vento, são ro-mances em que a situação da mulher é exposta. Não me parece haver neles uma proposta de como resolver, apenas a exposição dos meandros da condição subalterna da mulher. E no final? A mulher acaba como começou. Não me parece que exista também da parte do autor textual qualquer intenção para além disso. Onde existe, na minha perspectiva, essa postura, esse programa transformador é em Niketche. Porque aquela personagem, Rami, constrói uma estratégia, propõe essa estratégia às outras mulheres e no final elas libertam-se. O que considero libertação? É terem a opção queelas não tinham. No final, elas tinham uma opção e cada uma delas optou por uma vida. Para mim, falar da condição e da libertação feminina é a mulher poder optar. Ela opta por ser dondoca, e isso é uma opção dela, ninguém tem nada a ver com isso. É aí que discordo de algum feminismo. Vale a pena ler o que diz, a este propósito, Zora Neale Hurston. Não concordo que se pense que uma mulher emancipada seja aquela que faz isto ou aquilo, que tem este ou aquele percurso. Não. Para mim, liberdade consiste em poder optar, ter condições para fazê-lo. Pelo que optou, não tenho nada que ver com isso. Posso até achar que é uma opção burra, mas é uma opção. Por exemplo, a pessoa poder optar por um partido, votar num partido de direita, posso achar que votou mal, mas o voto é livre. Só Ni-ketche considero um livro feminista nesse sentido, de que existe todo um processo que leva à libertação, entendendo por libertação a criação de condições para poder optar. E foi os que as mulheres de Tony fizeram. Então, não acho que seja negro, porque acho que as condições de uma empresária africana nunca serão iguais as opções de uma empresária européia ou de uma americana. Onde inclusive essa mulheres são livres, livres no momento em que puderam optar. Acho que existe de fato uma escrita no feminino, e que essa escrita não é, na minha perspectiva, ap-enas uma escrita feminista nem uma simples escrita de autoria feminina. Por exemplo, se estivesse a falar de escrita no feminino não incluiria, por exemplo, Alda do Espírito Santo ou Noêmia de Sousa. .

Uma coisa é produção de mulheres e outra coisa é produção no femin-

ino. Aí, então, cabem Paula Tavare (emblemática), Vera Duarte, certa Paulina Chiziane e outras menos conhecidas como Ana de Santana, Maria Alexandre Dáskalos, Chô do Guri, Rosária da Silva, Isabel Ferreira – e estou apenas em Angola. A escrita no feminine (também evito falar em escrita feminina) é uma escrita que encena o mundo a partir da condição feminina. É por isso que eu digo: o que a mulher escreve é o que o homem escreve, mas o olhar e a dicção não são os mesmos. Posso olhar o mundo de uma perspectiva, digamos, da maio-ria. Sendo que a maioria é, neste caso, masculina (maioria no sentido sociológico do termo) e posso olhar o mundo a partir do ponto de vista da minoria. Faço parte de um grupo de trabalho que estuda, precisamente, rela-ções interculturais, ou melhor, sobre perspectivas pós-coloniais nos estudos literários, antropológicos e históricos. Detenho-me nas rela-ções culturais, com incidência na literatura, em Portugal. Ora, posso olhar Portugal a partir de dois prismas, como estávamos a ver hoje em nossa sessão. Se eu olhar Portugal a partir do prisma de uma minoria, imigrante, étnica, discriminada, portanto, esse conjunto que não tem lugar no sistema de decisões, Portugal não vai surgir com essa lumi-nosidade de um país de liberdades essenciaisO mesmo se passa com a mulher. Por exemplo, Paula Tavares. E o que faz ela? O livro da Paula Tavares Ritos de passagem, que, acho, continua a ser o seu melhor livro é de uma sensibilidade feminine extraordinária e ao mesmo tempo de uma racionalidade inventiva muito performativa. Ela utiliza a mesma substância para cantar o seu país e recorre aos ele-mentos da sociedade e da cultura angolanas. A mesma que utilizaram Agostinho Neto, António Jacinto, Viriato da Cruz, ou antes dela, João Melo e Botelho de Vasconcelos, apesar de serem mais ou menos da mesma idade. No entanto, através dos mes-mos elementos e até dos mesmos recursos, ela traz outras agências. E quando ela utiliza flores e frutas, elementos da fauna, da flora e da so-ciocultura, ela traz à cena outros cheiros, sentidos, sons, enfim, outras sensações que compõem uma sinfonia sinestésica para falar da mul-her, o que vai dar à mulher uma outra dimensão. A dimensão da não-opção, a dimensão do lugar da mulher quando o enunciador fala da abóbora e diz que depois é só esperar quer dizer que a mulher não tem outra saída. Ela só tem que esperar. Ela não tem opção nenhuma afazer. É obvio que é desse ponto de vista, na minha perspectiva, que se constrói esse feminino. O olhar e a encenação do mundo através da condição feminina. Por exemplo, o que não me parece que faça Con-ceição Lima. Não estou a dizer que Conceição Lima tenha uma escrita masculina, não é isso. Estou a dizer que a condição feminina não é uma incidência da sua escrita. E nem estou a dizer que tenha que ser. A preocupação dela são as questões da identidade, da nação, das re-lações de poder, internas e externas, a condição periférica de determi-nados segmentos. Apesar de, ao falarmos de gênero, estarmos diante também de relações de poder, mas em outra perspectiva. No caso de Conceição Lima, há o modus operandi sociopolítico quando ela fala da relação desigual entre o vários segmentos da sociedade são-tomense. Isto, isto é, a construção de identidade dentro da dinâmica raça/etnia/género/classe, como relações de poder, constituem as várias instân-cias do póscolonial.

―…é uma escrita que encena o mundo a partir da condição feminina…‖

Várias culturas

numa só palavra:

Literatas!

Page 17: Literatas 59

17 | 24 de Junho de 2013

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Crónica & Conto

E sta história eu tenho que contar. Acordei de noite, suando,

coração sobressaltado e arrítmica sensação de pavor,

desconcerto, desorientação. Olhei ao meu redor e não me situei. Depois

de um copo de água, tomado mecanicamente, arrastando os passos pela

penumbra fresca do corredor, liguei o televisor e deparei-me com uma

daquelas séries conhecidas, assisti extasiada, sem som algum, ao mexer

dos lábios e às expressões de espanto que acompanhavam os gritos

silenciados. Ri-me, interiormente, adivinhei os diálogos, antecipei as

respostas, justifiquei mentalmente os olhares esbugalhados de pasmo, de

dor, de surpresa e de sedução. Pouco a pouco voltei a sentir-me

sonolenta, não sem antes me esforçar por recordar o motivo do meu

súbito despertar, assíduo e pontual, desde aquela tarde em que regressei

de Luanda, sem que Luanda deixasse de viver nos meus profícuos

sonhos.

Sem forças nem vontade para resgatar um raciocínio que me custaria

provavelmente o resto da noite, peguei num bloco-notas no qual escrevi,

como um autómato, algumas palavras, sem ter propriamente consciência

desse processo no qual a minha mão parecia ser soberana. Esqueci o

assunto e deixei-me adormecer de novo como um anjo, ou, como dizem

os espanhóis, como um tronco, alternando a leveza do anjo com o peso

do tronco, deixando a gravidade enterrar-me no suave colchão de penas e

na inevitabilidade de outros sonhos.

Ao acordar deparei-me com o bloco-notas e li estremunhada as palavras

gatafunhadas durante a noite: onde pára a quitaba? Sorri e recompus-

me: senti-me aliviada ao perceber que não tinha ainda aderido ao novo

acordo ortográfico, vigente apenas nalguns países do espaço lusófono,

segundo o qual teria que escrever pára sem acento agudo, confundindo-

se com a preposição, na ausência de contexto. Voltei a sorrir: gostava de

sentir em mim essa capacidade de acordar em segundos para o novo dia,

qual militar sempre em prontidão combativa, e de prestar atenção à forma

para além do conteúdo da mensagem, fosse qual fosse a sua importância.

Dei-me tempo para reflectir sobre o acessório para além do essencial e ao

cabo de algum tempo indeterminado, voltei ao texto, escrito a vermelho

escuro nos tons de um velho batom esquecido na mesa-de-cabeceira.

Onde diabo teria eu ido buscar semelhante frase, o que quereria eu dizer

com tão disparatada pergunta? Pouco a pouco fui acordando em mim as

reminiscências dessa viagem e juntei todas as peças até visualizar o

espinho causador de tão frequente ansiedade. Na manhã do regresso

trazia comigo um frasco de quitaba na bagagem de mão. Trazia-o como

uma oferenda especial de uma pessoa muito querida para a minha filha,

nostálgica dos quitutes da terra, que simbolizavam para ela muito mais do

que um simples aperitivo saboroso com o gosto de Angola. Era um pedaço

do país que viajava naquele frasquinho de vidro, que trazia dentro de si o

canto do matrindinde, o calor sufocante do meio-dia e a frescura das

madrugadas, e até os teimosos mosquitos contra quem travávamos uma

guerra desigual sem tréguas usando todos os unguentos repelentes e

estratégias que conhecíamos.

Cometi então aquele erro imperdoável, fruto da candura de principiante,

que paguei com o frasco da quitaba, porventura o bem mais precioso que

transportava na minha mala de mão, em cujas dobras e bolsos não cabia

um centésimo das incríveis vivências que tinha acumulado durante

aquelas curtas semanas. Não foi por falta de aviso, mas por precipitação,

que o coloquei na bagagem de mão, esperando que passasse

despercebido, subestimando a incorruptibilidade da tecnologia e a

inflexibilidade dos zelosos funcionários do aeroporto que tornariam a

minha viagem mais cinzenta e menos prazerosa, não fosse a simpatia

contagiante da jovem agente que me saudou efusivamente pelas

efemérides alusivas à Mulher durante o mês de Março.

Não o fiz. Despedi-me, como o olhar, do frasco de quitaba, prova

irrefutável do meu crime, marca indelével do meu breve reencontro com a

minha terra. Pensei ter esquecido o assunto, até à noite em que

pontualmente, assiduamente, o frasco de quitaba me voltou a aparecer em

sonhos, como que insinuando que o meu lugar era perto dele, onde quer

que estivesse, e que devia ter tido a coragem de não me separar dele,

uma vez que ele não pôde seguir-me. Sei que um dia deixarei de sonhá-lo,

mas até lá não deixo de interrogar-me onde andará afinal esse frasco de

quitaba, quando as noites sem luar mo cobram desapiedadamente vezes

sem conta. Quando, ao passar pelo controlo de bagagens, o meu frasco

de quitaba apareceu ao raio X, vulnerável e tentador, não tive como

sustentar uma argumentação válida e consistente contra as rígidas regras

de segurança. Propuseram-me que o entregasse a um dos meus

acompanhantes, que entretanto já estavam entregues a outras ocupações

e me tinham colocado algures num lugar confortável do passado.

VIDA ONLINE- João Gonçalves “O livro dos nossos sabores” (Gastronomia Angolana a

Internacional)

http://www.opais.net/pt/revista/?id=1631&det=30694&mid= consultado a 10-06-2013

Onde pára a quitaba?

A propósito da obra de culinária do gastrónomo

angolano João Gonçalves (Gastronomia Angolana e

Internacional)

Luísa Fresta -Portugal

Várias culturas

numa só palavra:

Literatas!

Page 18: Literatas 59

18 | 24 de Junho de 2013

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Ideias| Debates e Reflexões

N o emergente coração desta pátria que se diz ser nossa, chovem

incoerências de uma precipitação carregada de arrogâncias.

Nuvens que por vezes, aliás, até então, embaciam o futuro do pacato

cidadão. Em jogo está o futuro de milhares de sorrisos inocentes; milhares

de horizontes fechados a fechadura do pão. Do mesmo pão que se quer

por tudo ou nada; nada que são a maioria, dessa ―nação‖ que ainda e não

existe, -como bem disse Craveirinha. Dessa nação acorrentada a gravatas

brilhantes e subdesenvolvidas em camisas-de-forças, cujo hospício é,

messianicamente, pertence individual, de indivíduos sorridentes sem razão

de felicidades. Individuos sem razão de ser o que a história quotidiana

impõe na mente obtusa dessa crença singular que se populariza e

ridiculariza, mais ainda, em autêntico insulto e escandaliza a inteligência

moçambicana.

Dessa inteligência turva e muda. Inteligência senso comunal, cujo

funcionamento acontece, nada pior que, em total conspiração. Uma

conspiração categoricamente abstracta, nunca levada à prática e

professada pelos novos ―doutores‖, que si dizem académicos por mais que

saibam que, por aqui, o ensino nunca e jamais foi superior, é terciário

como melhor chamou o professor Francisco Noa.

No emergente pulsar desse coração, há sorrisos cujos dentes precisam de

ser reeducados em novas aldeias descomunais e escovados a moda

militar.

Da descomunal vergonha a ignóbeis carraços que não se envergonha de

agir, e continua em tremenda aberração; aberração de sorrisos feitos de

lábios semi-serrados. E riem-se das pessoas, pessoas comuns, ou melhor,

pobres.

Riem-se poeticamente, com rimas cruzadas nas ruas esburacadas no

verso dessa convivencia marginal que se passa despercebida na dita

peróla do indico. E nós, os comuns só vemos sem nada fazer para tapar

estes burracos mentais dos, quando chamados agir, continuam falando.

Falar é facil dificil é tornar-se que se fala. Falas tanto em futilidades, biltres

e vis assuntos como justiça, paz, união, eleições, e tudo quanto a

transparência é um vocábulo abolido; em que o lustro de qualquer

mandanto que seja é feito na motivação amnésica e quando a razão fala,

fala tão alto a fome, a miséria, a corrupção, a falta de habitação, a má

governação e tudo aquilo que, na sua culpa pesa menos. De menos, tão

ínfimo, que se vive no interior do seu coração moçambicano,

absulutamente moçambicano, absoluto que o da pobreza que fazes parte.

Mais moçambicanos do que os Mercedes que vês nas rua e nas ínfimas

casas moçambicanas.

Mais moçambicanas que as metas do milénio que Moçambique tem que

atingir. Mais moçambicanos que os recursos naturais (vendidos a preço

de bananas ainda por cultivar).

Mais moçambicanos que os próprios ditos moçambicanos revestidos a

casacos e gravatas e botas escovadas e expostas na prateleira do

desemprego alheio que os estrangeiros assumirão o cargo. Mais

moçambicanos do que esse projecto inexequível (<<República de

Moçambique>>). Que todos os dias, todos nós fingimos crer; e por isso

voltamos as ilusões, as crenças ocas, as urnas; mesmo sabendo que,

assim orquestramos as nossas próprias urnas.

Quantos sorrisos, diariamente, minuto pois minuto, deixam de exercer

essa mística fragrância, que só a natureza, livremente, concede ao

homem? Desse homem que nunca será outro, enquanto continuar seiva

dessa ―nação‖. Seiva dessa poesia declamada a ferro e fogo nas

Medias. Seiva que, sugada do homem comum enche os dirigentes a

moda da pocilga. Enche o bolso deles e sua bolsa de fome, uma fome

que eles só vêem num Jornal (de) Notícias. Num jornal parcial; parcial

como todos os Medias, nos quais te expões: faminto, stressado e

obediente. É, ou não é?, responda sempre é. É! Só assim serás o verme

que faz surgir poemas como esses. Que, de certeza absoluta (absoluta

que o da pobreza sempre, ja o disse) não vais ler, mas, como tudo em ti,

vais ouvir dizer, e vais dizer também há quem queiras que é o povo

quem escreve, e esse mesmo povo a partir de hoje vai parar de sorrir

dos vossos sorrisos sujos e vazios. Vai parar de conspirar e passar a

praticar o certo que vossos erros desumanos impõem. Vai parar de

dançar a música que esse vosso aparelho desajeitado toca. Vai parar e

passar a dançar o ritmo que poemas como esses ditam. Que poemas

como esses inspiram. Inspiram não só no recital abstracto, mas sim na

concretude. Na concreta visão que vocês fingem crer que haja para que

o povo se manifesta e fingem ser por direito do mesmo povo que vocês

só os têm como estatística números, para de igual número adiquirirem

balaspara depois chamarem nas de perdidas ou em gases

lacrimogéneos. Do povo faminto que se ergue, nesse papel que chora os

vossos sorrisos de cifrão, desse sorriso que condena famílias e crucifica

as mesmas num ordenado miserável que nem sequer faz-se num prato a

mesa, a mesa cheia de silêncios e vazios, a mesa cheia de desertos, tão

desertos e vazios de tudo, tudo ou nada que valem as nossas vidas,

vidas que vocês burlam da nossa breve alegria que se deixa

congestionada nessas ruas nuas de justiça e de justos. De que se riem

vocês? Parem de rir!

Japone Arijuane-Moçambique

Quantos sorrisos sujos dentro d’um ―País‖?

Se esses filhos da puta ainda cantam

é porque nós continuamos dançando.

A torto e direito

Page 19: Literatas 59

Artes e Letras

“E faça-se a luz...” Que ela ilumine a essência do homem, para que seus olhos saibam distinguir o que é escuridão. E a sabedoria os guie a não se segregarem pela simples refração da luz sobre a pigmentação da pele.

Marcial Ávila

A pós ter acolhido a exposição MWANA-MWANA - do jornalista e fotógrafo moçambicano Albino Moisés - que retratou o cotidiano

da vida de crianças do seu país - o Centro Cultural Casa África recebe a Exposição Gênesis, do artista plástico mineiro, Marcial Ávila. As obras do artista têm se destacado em várias cidades do Brasil e países europeus devido a sua forma ousada de fazer uma releitura das artes plásticas, colocando a cultura africana como centro da estética.

Ao engendrar a sua criação dessa forma, Ávila colabora sobremaneira para a valorização e divulgação da arte negra, além de promover a autoestima da população afro-brasileira. O reconhecimento dessa imersão do artista por parte dos belo-horizontinos se manifesta de várias maneiras, inclusive, em 2010, o prefeito da cidade, no Salão Nobre da Prefeitura, congratulou a ele, e a outro valoroso artista mineiro, que também valoriza a cultura africana e diaspórica, Jorge dos Anjos. É com imensa satisfação que faço a curadoria e apresento esse trabalho que tem como fonte de inspiração os territórios sagrados dos terreiros de Candomblé e Umbanda e os festejos da irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, da cidade de Diamantina, em Minas Gerais. Mas o artista também se inspira em várias outras manifestações profanas, resultantes da diáspora africana no território mineiro. Por lidar especificamente com figuras humanas negras, as obras transformam-se num veículo de representação desta etnia, dando-lhes visibilidade, raramente vista em galerias de arte. A característica do trabalho e estilo do artista é valorizar a cultura negra e sua estética, sem caricaturar ou torná-la exótica. Deste modo, propõe uma nova leitura sobre a Gênesis, representando Adão e Eva negros, transferindo para o homem a culpabilidade e mostrando Eva sem sentimento de culpa ou intenção de pecado. Assim, como vem defendendo ao longo do seu trabalho, o status da mulher reaparece, ora divinizado, ora enaltecido, mas sempre permeado por traços que sugerem reflexões acerca de gênero e igualdade. Esta coleção surge de uma ideia quase abstrata, passando por croquis e esboços para, em seguida, se transformar em pesquisas que possam dar maior credibilidade e reforçar o conceito pretendido. Toda a temática está diretamente voltada para a identidade negra, ou seja, as figuras humanas são da ―raça‖ negra e representando personagens do universo sincrético do artista e/ou judaico-cristão, levantam discussões sobre origens, etnias, religiosidade, crenças e (pré)conceitos, metamorfoseando crianças em anjos, mulheres em santas católicas, numa fusão instigante e polêmica. Focado em teorias científicas que comprovam o surgimento do homem no Continente Africano, mais especificamente entre Etiópia e Quênia, onde se encontra o Lago Turkana, o artista escolhe esta região na qual foi encontrada a maior parte de fósseis de hominídeos, transformando-a em seu Gênesis particular, fazendo uma alusão direta à Capela Sistina, tentando ―deseuropeizar‖ as figuras dos santos católicos, representados com os fenótipos negroides, na tentativa do reconhecimento do Continente Africano como o berço da humanidade. Portanto, que se manifeste a nossa inquietude sobre os conceitos de desterritorialização e reterritorialização dos lugares e papeis do homem e da mulher, e também, das raças ou etnias, a partir do convite que o artista nos faz.

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Ideias| Debates e Reflexões

19 | 24 de Junho de 2013

Rosália Diogo-Brasil

É gratificante ler, na antologia A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua, poetas já consagrados, em vias de consagração e aqueles que agora estão despontando para o mundo da arte verbal, pelo menos, publicamente. Isso registra a exata dimensão de como a poesia em língua portuguesa é dinâmica, reinventado, a cada dia, seus temas, seus estilos, sua forma de abordar a realidade e de interagir com o leitor. Os textos que compõem esta antologia ora atingem posições cimeiras, ora, ainda, alçam voos pouco ousados, embora promissores. Mas, em qualquer um dos casos, percebe-se a elogiável tentativa de extrair da palavra o máximo de suas potencialidades expressivas. A maior parte dos poemas, quanto ao mais, é vazada numa dicção fluente, em composições quase sempre breves e contundentes, coalhadas de uma imagética vigorosa. É de comemorar.

João Adalberto Campato Jr, Pós-Doutor em Letras pela Universidade

Estadual de Campinas (UNICAMP) e pela Universidade do Estado do Rio

de Janeiro (UERJ). Pesquisador Associado na Universidade Federal de São

Carlos. Crítico Literário. Autor, entre outros, dos seguintes livros: ―Retórica e

Literatura‖ (2003) e ―A Poesia da Guiné-Bissau: História e Crítica‖ (2012).

Exposição GÊNESIS em Belo Horizonte Revisita a África

Page 20: Literatas 59

Ensaio

A o publicar, em 2007, Tchanaze a

donzela de Sena, Carlos Rufino

Roque deu início a um género de

literatura agora prosseguida com este

livro que hoje apresentamos. Trata-se de

narrativas que embora escritas e

propostas como um género com longa

tradição ocidental – o romance – têm,

como ponto de partida, narrativas de

tradição oral africana mais concretamente

da região do vale do Zambeze. De forma

bastante evidente, a estrutura desta

narrativa intitulada N´ tsai Tchassassa a

virgem das missangas baseia-se num

esquema bastante frequente em

narrativas africanas de tradição oral.

Esse esquema parte do pressuposto de

que toda a estrutura narrativa, sustenta

uma série de situações em que a

passagem de uma situação à seguinte

torna possível uma modificação,

Obedecendo a este esquema genérico N

tsai Tchassassa a virgem das missangas

parte de uma situação inicial de falha (o

rei Mabureza Nhati não consegue ter

sucessor devido à aparente infertilidade

da rainha) centrando-se a narrativa na

descrição dos episódios que produzem

melhoramentos sucessivos até que nasce

a princesa N`tsai Tchassassa.

Estariamos em presença de uma narrativa ascendente, visto que a falha

inicial é superada. A partir desta forma simples e mercê de nova falha a

narrativa prossegue com o desaparecimento no Zambeze da mãe biológica

da princesa acabada de nascer N`tsai Virate irmã da rainha, dando origem à

progressão da narrativa numa espiral em que vários episódios conduzem a

história para a busca do mistério do desaparecimento nas águas do

Zambeze de N`tsai Virate em

simultâneo com a disputa entre os

pretendentes da princesa N`tsai

Tchassassa.

Tal com acontece em outras

narrativas orais todas as acções das

personagens principais são

apoiadas ou contrariadas por

entidades com características supra

humanas, destacando-se nesta a

personagem de N´fiti, conselheiro do

rei.

Estando na origem deste

texto uma narrativa oral, não

estamos no entanto perante uma

transcrição literal da mesma mas

sim perante um texto escrito que,

embora tendo como ponto de

partida um texto oral e estando

estruturada segundo um modelo de

narrativa oral, tem a interferir na sua

composição o facto de se reger por

códigos de escrita literária,

assumindo-se deliberadamente

como um género com tradição na

literatura escrita , o romance.

Como é sabido, este fenómeno

ocorreu nas literaturas europeias no

Sec XIX no período romântico

coincidindo com a emergência de

sentimentos nacionalistas das

respectivas nações, com manifestações idênticas na literatura brasileira e

noutras literaturas da América latina.

Situações históricas similares só viriam a ocorrer em Moçambique após a

independência embora nos primeiros anos a prática política da Frelimo,

orientada pela ideia de estabilidade do novo país, sobrevalorizasse a atitude

Às Sextas-feiras o ensaio da semana em: http://revistaliteratas.blogspot.com

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Fátima Mendonça-Portugal

20 | 24 de Junho de 2013

Do romance N´Tsai Tchassassa, a Virgem de Missangas, de Carlos Paradona

Rufino Roque

― De forma bastante evidente, a estrutura desta narrativa intitulada N´ tsai Tchassassa a virgem das

missangas baseia-se num esquema bastante frequente em narrativas africanas de tradição oral.

Esse esquema parte do pressuposto de que toda a estrutura narrativa, sustenta uma série de situações em

que a passagem de uma situação à seguinte torna possível uma modificação, Obedecendo a este esquema

genérico N tsai Tchassassa a virgem das missangas parte de uma situação inicial de falha (o rei Mabureza

Nhati não consegue ter sucessor devido à aparente infertilidade da rainha) centrando-se a narrativa na

descrição dos episódios que produzem melhoramentos sucessivos até que nasce a princesa N`tsai

Tchassassa. ‖

Page 21: Literatas 59

Ensaio

Ensaio

de ´´matar a tribo´´ para construir a nação e assim produzisse uma certa

rasura da expressão de elementos culturais que, inegavelmente, distinguem

entre si os vários espaços etno-linguisticos de Moçambique.

A própria dinâmica histórica levou a que progressivamente ocoressem

fenómenos de afirmação regional ou étnica (lembramo-nos do surgimento

de associações como a Sotemaza ) o que, a nível literário, se reflectiu na

emergência de uma notável geração de escritores, após a criação da AEMO

em 1982, muitos dos quais se apropriaram desse valioso património cultural

integrando-o na sua prática de escrita de ficção.

Embora com um antecedente nas narrativa Malidza com origem

numa tradição do Quiteve, de Carneiro Gonçalves, integrada no livro Contos

e Lendas, publicado postumamente em 1980, foi Ungulani ba ka Khosa

quem, em 1987, com Ualalapi mostrou as possibilidades de o universo da

tradição oral ser incorporado numa nova tradição literária escrita, no que foi

continuado por Paulina Chiziane e, a um outro nível, desenvolvido por

Mia Couto, isto para citar os casos com maior repercussão nacional e

internacional.

A opção decididamente seguida por Carlos Rufino Roque, embora

enquadrada nessa atitude de recuperação do passado artistico da oralidade,

tem aspectos particulares muito curiosos, pois toda a estrutura de texto se

desenvolve coerentemente segundo um modelo de narrativa oral e as

personagens e acções desenvolvidas são orientadas por uma cosmogonia

específica que o texto se encarrega de definir desde o começo.

De facto, desde o inicio a localização da narrativa é bastante precisa.

Tudo se passa nas margens do baixo Zambeze entre Sena (onde se localiza

o reino ficionado de Mabureza Nhati) e o outro lado de Caia, (casa da familia

da rainha infértil N`tsai Nhassicate e de sua irmã N tsai Virate) Este

pormenor da localização da familia da rainha não é irrelevante pois trata-se

de sublinhar uma diferença cultural (margem sul e margem norte do

Zambeze) reflectido no facto de, na narrativa, a poligamia não aceite de um

lado ser aceite do outro, o que justifica a entrada na história, como segunda

esposa do rei, da irmã da rainha, a virgem N´tsai Virate personagem

rodeada de uma aura mágica não só pela ritualização sexualizada a que o

seu corpo é submetido, pelos espiritos dos mortos que jazem no rio, como

pelo facto de a sua gravidez ter uma origem não natural.(somos levados

inevitavelmente a comparar esta situação com a da mitologia cristã relativa à

virgindade da mãe de Jesus).

Será esta personagen que dará origem ao prosseguimento da narrativa ao

conceber sem intervenção masculina a nova princesa N` tsai Tchassassa, a

qual, mercê de novos desenvolvimentos de carácter mágico, virá a ser

concedida em casamento contra as expectativas do leitor ao pretendente

menos provavel: o cágado.

Esta é uma narrativa percorrida por uma trama de incidentes mágicos, ou

menos prováveis à luz de outras racionalidades, criando no leitor uma

permanente expectativa quanto ao desfecho final. Contudo, a escolha das

estranhas personagens e das diversas situações igualmente estranhas, não

pode ser entendida como produto do acaso, nem o seu efeito é meramente

lúdico.

O ambiente criado explica-se sim pelo facto de toda a narrativa se alimentar

de uma visão do mundo particular (que em muitos aspectos é comum a toda

a regição do vale do Zambeze). No entanto, o caracter altamente metafórico

das situações descritas e o papel simbólico dos vários intervenientes

(sublinhamos o facto de animais e humanos se encontrarem na mesma

hierarquia de tal modo que é um cágado quem casa com a princesa N`tsai

Tchassassa), longe de reproduzir uma imagem fiel da sociedade, impõe sim

a interpretasção da narrativa em função quer das vivências colectivas da

sociedade que a produziu, quer das vivência de quem hoje a lê.

O plasmar uma narrativa com estas caracteristicas, num outro universo, o da

escrita, constitui um desafio para o escritor e um estímulo para o leitor

mergulhado num universo distanciado no Tempo, como o texto não cessa de

recordar.

Outro desafio é o facto de, sendo a narrativa na sua origem veiculada

por uma língua (cisena), a sua transformação escrita ser operada por outra (a

portuguêsa) Estaremos perante o problema de discutir se será possivel

traduzir visões do mundo ou se uma língua se pode esvaziar dos elementos

culturais que transporta para nela introduzir outros. Esta questão, que tem

sido objecto de debates infindáveis, é por vezes relançada (como aconteceu

com o escritor queniano Ngugi wa Thiong`o que, nos anos 80 decidiu que

passaria a escrever em Gikuiu, para, segundo as suas palavras, não

enriquecer a litertura inglesa ou contestada como fez o escritor nigeriano,

recentemente falecido, Chinua Achebe que, inspirando-se em muitos

aspectos da tradição oral ibo os recriava em lingua inglesa, de acordo com os

seus próprios critérios estéticos.

Parecendo ser esta ultima opção que Carlos Rufino Roque pretende

desenvolver, só lhe posso desejar que continue a fazer vir à superfície esses

espíritos que jazem nas profundezas do rio Zambeze, em cujas margens

cobiçadas palpitam produtos fantasmagóricos de uma história milenar, que

as memórias acumuladas fazem remontar a uma genealogia que as radica

no espaço mitico de Ofir do biblico rei Salomão, passando pelas expedições

rio acima em busca das riquezas do reino do Monomotapa, do

desmembramento deste em reinos que entre si se degladiavam, da acção

dos missionários europeus com a inerente e circulação de outros valores

culturais, da criação dos prazos da Coroa no Sec XVII, cujo resultado,

contrário aos interesses da administração portuguesa, deu origem mais tarde

a poderosos estados militares, com os seu exercitos achicunda, da criação

das companhias magestáticas, como a poderosa Companhia de

Moçambique com as suas regras próprias, e das consequentes revoltas de

camponeses como a grande revolta do Barué em 1918 só sufocada em 1920

e de todo o cenário que, até hoje serve de palco, a uma das regiões historica

e culturalmente mais complexas de Moçambique, fonte inesgotável para a

imaginação artística, como o prova o livro que hoje se apresenta.

Fátima Mendonça

Lisboa, 8 de Junho de 2013

21 | 24 de Junho de 2013

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Do romance N´Tsai Tchassassa, a Virgem de Missangas, de Carlos Paradona

Rufino Roque

― O plasmar uma narrativa com estas caracteristicas, num outro universo, o da escrita, constitui um desafio para o escritor e um estímulo para o leitor mergulhado num universo distanciado no Tempo, como o texto não cessa de recordar. Outro desafio é o facto de, sendo a narrativa na sua origem veiculada por uma língua (cisena), a sua transformação

escrita ser operada por outra (a portuguêsa) Estaremos perante o problema de discutir se será possivel traduzir visões do mundo ou se uma língua se pode esvaziar dos elementos culturais que transporta para nela introduzir outros. ‖

Page 22: Literatas 59

Última Estação

22 | 24 de Junho de 2013

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Aos patetas (Amosse, Lineu, Japone e Eduardo Quive).

Se não te paga um copito ela, Não te zangues Não te gozes.

Se ela te apanha na babalaze da sexta/feira. Guarde-a mais vezes

Se o corpo de mulher chamado país Não te confessa as doçuras Ordene mão mais uma dança de mapikos

Se não dá para meter o pão a mesa, Dobre quatro vezes em formato A5 Ponha-o em repouso no baú velho. Quem te da mão?

Se não vende na bolsa de valores Não fique na avenida dos pedintes Como pedem os nossos sonhos que lhes acudamos.

Se isto e aquilo, se ele não vale nada, não cheira

Não pode ser memória asfaltada de muita brita de norte a sul ou zumbo ao Índico. Se for poema ou poema não merece só TV.

Se é para te descorar a camisa-de-forças de 0 a 10 graus A ver a luz verde de quatro pontas Não negue a nudez da noite.

Se é para vergar e fazer coices a ti, Que me demores no enjoo desse a gravidez absurda e lúdica.

Quantas vezes passou o comboio até manchar a estrada Com o milho a encher os olhos insurrectos, veleiros

Até que noite nos separe, na dimensão das falas..

Com que me olhas de sarcasmo

venero a urbe dessa paixão milenar

sofreando adentro o fado desse amor

quase que exorcismo

refineis o amor de que me olhas

de realce na estética desse infortúnio

de leve…

levemente me decalcas com tuas mãos

com tuas demãos

de que me deslizas na pez dessa utopia

que de Lídia se desvenda no escárnio

dessa ignorada magia

de cama cai a gota reduzida pelo chão inerte

revelando a triste aventura abdicada

nessa auri-verde palavra cuspida

na falsidade desta verdade adiada

só de perfídia se alimenta os rubores desse sentir

totalmente inadiável…

O QUE O POEMA PERFÍDIA

Octácio César Bule - Moçambique Mauro Brito - Moçambique

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