livre improvisação tese costa rogério

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Rog rio Luiz Moraes Costa OM SICO ENQUANTO MEIO E OS TERRIT RIOS DA LIVRE IMPROVISA O PUC / SP 20032 Rog rio Luiz Moraes Costa OM SICO ENQUANTO MEIO E OS TERRIT RIOS DA LIVRE IMPROVISA O Tese apresentada banca examinadora da Pontif cia Universidade Cat lica de S o Paulo como exig ncia parcial p o D o S t o P D S a r a o b t e n d o t t u l o d e o u t o r e m C o m u n i c a e e m i i c a s o b o r i e n t a d r r i o o f . . l v i o F e r r a zPUC / SP 20033 Costa, Rogrio Luiz Moraes Ttulo. Omsico enquanto meio e os territrios da livre improvisao. Rogrio Luiz Moraes Costa. So Paulo, 2003. Tese -Doutorado -Programa de Comunicao e Semitica Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. 1. Msica 2. Improvisao 3. Processos de criao 4. Interao 5. Territrios.B _ _ _ _ _a _ _ _ _ _n _ _ _ _ _c _ _ _ _ _a _ _ _ _ _E _ _ _ _ _x _ _ _ _ _a _ _ _ _ _m _ _ _ _ _i _ _ _ _ _n _ _ _ _ _a _ _ _ _ _d _ _ _ _ _o _ _ _ _ _r _ _ _ _ _a _ _ _ _ __ _ _ _ __ _ _ _ __ _ _ _ _5 Autorizo , exclusivamente para fins acad micos e cient ficos , a reprodu o total ou parcial desta tese por processos de fotocopiadoras ou eletr nicos . Rog rio Luiz Moraes Costa6 Resumo A improvisao livre ou no idiomtica uma possibilidade que se configura a partir de uma srie de fatores dentre os quais a crescente dissoluo ou permeabilidade das fronteiras entre os idiomas e sistemas musicais e o conseqente cruzamento que se d entre as diversas linguagens em determinados contextos da prtica musical contempornea. Nossa proposta delinear os elementos e foras presentes num ambiente de livre improvisao musical, examinando mais detalhadamente um ambiente que incorpora a interao eletroacstica. Ela se concretiza a partir de trs eixos: um laboratrio prtico de livre improvisao (o grupo Akronon, tratado no captulo 4) de onde surge o material "vivo" para reflexo, o desenho de um aplicativo digital para interao em tempo real e a reflexo terica propriamente dita. A reflexo terica, alm de se apoiar na prtica laboratorial, tem como principal referncia a obra do filsofo francs Gilles Deleuze de quem emprestamos conceitos tais como territrio, plano de consistncia e ritornelo para a nossa tarefa de investigao dos ambientes interativos. Surge da a idia de composio enquanto delineamento de um plano ou de um ambiente. Para a construo deste plano constatamos que a biografia de cada msico implica em uma tcnica e a improvisao livre supe a idia de uma constante descontextualizao desta tcnica a partir de uma escuta especfica. Num ambiente como este possvel uma ao musical que se abra ao csmico e se desidiomatize. Surge ento, no contexto desta investigao, a idia da action music (inspirada na obra do pintor americano da action painting, Jackson Pollock). O grupo Akronon concretiza esta idia: a interao em tempo real entre dois instrumentistas (que produzem o material sonoro) e um terceiro msico que, a partir de um processamentoeletrnico "vampiriza", transforma e devolve este material para a performance.7 Abstract Non idiomatic or free improvisation practice in music is an outcome of a series of contemporary events such as the growing dissolution and permeability between frontiers of idioms and musical systems. Therefore, various languages in different musical contexts become intertwined. The elements and forces involved in free improvisation environments were examined in a context of live electronic music interaction. A laboratory of practical free improvisation (the Akronon group) provided the life data for our reflection, along with the use of a software designed for real time interaction music. The analysis of the data was based on the French philosopher Gilles Deleuzes concepts such as territory, consistency plan and ritornelo. Composition was conceived as a process of unfolding a plan or an environment. For the construction of that plan, each musicians biography brought to the scenery a certain technique. Free improvisation was understood as a constant process of deterritorialization of that type of technique, based on a specific listening. In such an environment it was possible to create a kind of music action that reached the non-idiomatic. The idea of action-music (inspired in the work of the American painter Jackson Pollock) emerged from our experimental practice. The group Akronon expressed that idea: the interaction in real time between two instrument musicians (who produced the material sound) and a third musician who through the electronic process swallowed, transformed, and returned the material to the performance.8 Agradecimentos Ao meu amigo, quase irmo e orientador Professor Silvio Ferraz com quem tenho compartilhado ao longo de mais de 25 anos, inmeros pensamentos, descobertas, aventuras e criaes: por sua dedicao e participaocmplice neste empreendimento que compreendeu tanto a orientao na elaborao desta tese quanto o seu empenho musical criativo enquanto membro do grupo Akronon. Agradeo ainda ao fato de ter-me introduzido de maneira apaixonada obra fascinante de Gilles Deleuze que fundamentou a maior parte de minhas consideraes tericas. Ao meu grande amigo Edson Ezequiel, por sua participao apaixonada enquanto msico do grupo Akronon, pela profundidade de suas observaes, contribuies e opinies, compartilhando das minhas inquietaes a respeito dos temas ligados minha tese e me auxiliando na elaborao de um projeto consistente de ao musical. Helena, minha estrelinha com quem compartilho o caminho que feito ao caminhar em nossas npcias entre dois reinos, a quem devo muitas das idias aqui expostas -elaboradas em conversas, convvio artstico, intelectual, vital e amoroso -e a quem devoto minha desmedida paixo. Aos meus queridos filhos Toms e Davi que com suas maquinaes e aventuras me ensinam todos os dias sobre a arte da improvisao. Aos meus amigos e professores cujas presenas e ensinamentos se manifestam nos meus pensamentos e atitudes: Ana Anglica Albano, Gilberto Mendes, Marco Antonio da Silva Ramos, Olivier Toni, Roberto Sion e Willy Correa de Oliveira.E finalmente FAPESP, que com seu apoio possibilitou, entre outras coisas, a aquisio do aparato tcnico necessrio ao incio das minhas investigaes.9 ndice Introdu o___ ___ ___ ___ __ ___ ____ ____ ___ ___ ___ ___ ___ ___ __ _____ 11 Cap tulo 1 O ambien te da improvisa o: refer ncias para um campo de consist ncia __ ___ ___ ___ ___ ___ ___ ____ ___ ___ ___ ___ ___ ___ __ ____ 34 Cap tulo 2Elementos e conex es do plano de consist ncia da improvisa o____ ___ ___ ___ ___ ___ ____ ___ ___ ___ ___ ___ ___ __ ____ 78 Cap tulo 3 O ambiente da improvisa oe tempo ______ ___ ___ ___ ___ ___ _ 125 Cap tulo 4 Relatos de expe ri ncias de improvisa o: grupo Akronon __ __ 145 Conclus o _____ ___ ___ ___ ___ ___ ___ ___ ___ __ ____ ___ ___ ___ ___ 210 Bibliografia _____ ___ ___ ___ ___ ___ ___ ___ ___ __ ____ ___ ___ ___ ___ 22410 Advert ncia Devido ao fato de a obra de Gilles Deleuze ser a principal referncia terica deste trabalho, decidimos inserir uma legenda que visa facilitar a referncia aos vrios ttulos a que nos remetemos no corpo do texto. Assim: LS -Lgica do Sentido. D -Dilogos com Claire Parnet. PV -Pricles e Verdi, a filosofia de Franois Chatlet. MP (1,2,3,4) -Mil Plats, vols. 1,2,3 e 4. OQF? -O que a filosofia?11 INTRODU O N o anseie por uma entidade completa e delimitada . A id ia deve ser sempre mantida num estado de flu ncia . O acabamento n o , de maneira alguma , um fator importante; esforce -se em manter uma poderosa energia em dire o ao futuro . conselhos para o improvisad or de T . Carl Whitmer , publicados em 1934 ( Bailey , 1993, p . 33).12 INTRODU O Neste trabalho esto resumidas as reflexes acumuladas em muitos anos de vivncia com as questes que envolvem o relacionamento entre a figura do intrprete e a do compositor, entre aquele que executa ou realiza e aquele que supostamente concebe o "texto" musical. Sempre nos intrigou esta ciso que nos parecia violenta. Enquanto intrprete, sentamos a necessidade de ser o formulador de nosso prprio discurso (eno estar sempre a servio das formulaes de algum) e enquanto compositor queramos ter a possibilidade de realizar aquilo que havamos concebido. Estas questes pareciam ligadas ao prprio sentido da gnese do pensamento musical. Partimos ento procura de uma prtica musical em que as duas atividades estivessem integradas. Encontramos na improvisao (inicialmente em contexto idiomtico: no jazz e na msica instrumental brasileira atravs do grupo Aquilo del Nisso1) um espao para experimentao que forneceu subsdios mais consistentes para as nossas investigaes. Somaram-se ento neste quadro as nossas reflexes sobre os caminhos da msica contempornea: a sua vocao experimental e a busca de uma prtica vital, significativa e voltada ao momento presente. No contexto de nosso trabalho de mestrado aprofundamos uma srie de aspectos ligados a estas preocupaes. Esta tese apresenta os desdobramentos destas questes, agora, examinadas sob outros pontos de vista. Pretendemos neste trabalho abordar a questo da livre improvisao em msica, suas formas e possibilidades de configurao. Para isto, importa situar este tipo de prtica no contexto da improvisao pensada do modo mais amplo e abrangente possvel e, mais do que isso, investigar seu significado no contexto da msica contempornea. Estas investigaes vo desencadear 1 Grupo de "jazz brasileiro" que fundamos e integramos durante 15 anos. Trataremos de uma performance deste grupo no captulo 4 desta tese.13 reflexes sobre as relaes entre a improvisao e as seguintes atividades: composio, interpretao e audio. Para isto, faremos uso de alguns conceitos formulados pelo filsofo francs Gilles Deleuze que nos fornecero referncias, tanto em nossa investigao sobre a natureza das diversas manifestaes da improvisao, quanto para o delineamento de uma proposta de prtica de improvisao livre que seja conseqncia de um pensamento sobre a linguagem e o fazer musical. Estes conceitos de Deleuze -tais como mquina, ritornelo, territrio, meios, rosto e ritmo -sero aos poucos introduzidos e explicados no decorrer do trabalho. Vale dizer, no entanto, que os conceitos so dinmicos e multifacetados e que o manuseio dos mesmos no contexto do trabalho que vai aos poucos revelar e ampliar suas conexes com o objeto de investigao Alm disso, a nossa proposta de abordagem de livre improvisao se far tambm, atravs do relato de algumas experincias dentre as quais, a prtica desenvolvida pelo grupo Akronon, que durante dois anos (2001/2002), serviu como referncia para o desenvolvimento de grande parte das reflexes contidas neste trabalho. Na verdade, a prpria constituio do grupo2, sua histria, percursos, problemas e realizaes so parte deste trabalho e a proposta de sua existncia surge como conseqncia dele. Neste sentido, importante salientar que a livre improvisao pensada aqui, como resultado de uma ao coletiva e intencional originada em uma vontade de prtica musical por parte de um grupo especfico de msicos que se configuram assim, enquanto intrpretes criadores. Neste sentido se coloca como uma proposta esttica, de ao musical e por isto,poltica. Isto, ao nosso ver, substancialmente diferente de uma situao em que um compositor abre espaos de improvisao para um grupo de intrpretes no contexto de uma obra pr-concebida (podemos lembrar de obras de Cage, Stockhausen, Boulez, Koellreuter e muitos outros3). Na anlise desta experincia prtica pretendemos aplicar uma espcie de solfejo tomando por base a tipo-morfologia do objeto 2 Edson Ezequiel ao violino, o autor deste trabalho ao saxofone e flautas e Slvio Ferraz no processamento eletrnico via Max/Msp. Trataremos mais detalhadamente desta distino nos captulos subsequentes, mais especi ficamente no captulo 4 dedicado ao relato das experincias prticas.14 sonoro desenvolvida por Pierre Schaeffer no seu Tratado dos Objetos Sonoros e demonstrar a adequao de alguns conceitos ali delineados com relao uma forma de escuta que se faz necessria para o tipo de fazer musical implicado na livre improvisao. Acreditamos que a livre improvisao um tipo de prtica musical emprica e de experimentao concreta num sentido prximo ao estabelecido por Schaeffer. Nela, qualquer eventual estruturao emerge desta manipulao experimental4 em que as interaes imprevisveis entre os msicos definem um percurso por etapas, prximo ao delineado por Schaeffer: primeiro ela uma atividade sinttica e emprica que supe uma inveno contnua de objetos num procedimento que no exclui nenhum tipo de sonoridade. No contexto mesmo de uma performance, ou durante o percurso de atividades de um grupo estvel de improvisao, acontece uma espcie de tipologia e uma morfologia concretas: os sons so comparados e combinados empiricamente. Eventualmente, neste processo surge uma forma/estrutura (resultado da articulao linear dos objetos) em movimento dinmico. A etapa de anlise pode se dar posteriormente num nvel de audio dos registros. Assim , que a prtica de improvisao foi e continua sendo usada, muito mais do que se imagina, como um recurso intermedirio para a composio, tanto para compositores solitrios (Beethoven, por exemplo) como para grupos dirigidos ou no por compositores como o caso dos grupos de Varse e de Gerard Grisey. No entanto, importante ressaltar que a nossa prtica de livre improvisao se coloca como uma proposta de ao musical autnoma, como um fim em si mesmo e no enquanto um meio para se atingir um fim composicional. Neste sentido, importante notar o quanto esta prtica de livre improvisao, conforme a concebemos aqui, sser possvel historicamente, a partir da configurao de uma escuta contempornea -mltipla e intensiva. Alm disso, pretendemos demonstrar que a improvisao livre tem caractersticas prprias que a distinguem das outras formas desta importante aqui fazermos uma distino radical entre a experimentao emprica e concreta com os objetos sonoros tpica do pensamento de Schaeffer e da composio de Varse, do experime ntalismo de compositores ligados a uma corrente mais conceitual e abstrata como o caso de Jo hn Cage, La Monte Young que, em princpio, no partem do sonoro e sim de abstrao, conceitos e idias -que podem ou no gerar um fato musical. A livre improvisao, conforme ns a propomos aqui, se liga for temente com a primeira.15 prtica como ela se d, por exemplo, no contexto de uma cultura tradicional. necessrio, portanto, estabelecer as diferenas entre a improvisao livre e a improvisao que se d nestes contextos idiomticos. O que a livre improvisa o? Em primeiro lugar: sob que ponto de vista a improvisao livre? Livre de que, afinal? Podemos, talvez, dizer que a improvisao livre o avesso de um sistema ou um anti-idioma, uma a-gramtica. Podemos comparar o seu funcionamento com o de uma mquina e diferenci-lo de um mecanismo. Examinemos a aplicao destes conceitos com relao improvisaoe msica de um modo mais geral. Improvisa o: tempo em estado puro Essa efervesc ncia passa para o primeiro plano , se faz ouvir por si mesma , e faz ouvir , por seu material molecular assim trabalhado , as for as n o sonoras do cosmos que sempre agitavam a m sica -um pouco de Tempo em estado puro , um gr o de intensidade absoluta Tonal , modal , atonal n o significam mais quase nada . N o existe sen oa m sica para ser a arte como cosmos, e tra ar as linhas virtuais da varia o infinita ( MP 2, p. 39).A partir das reflexes contidas neste trabalho imaginamos oferecer a livre improvisao enquanto possibilidade para pragmtica musical aberta a esta variao infinita em que e as linguagens deixam de impor suas gramticas abstratas rendem a um fazer fecundo, a um Tempo em estado puro, no causal, no hierarquizado, no linear. Pensamos poder, atravs da livre improvisao, alcanar "essa lngua neutra, secreta, sem constantes, toda em discurso indireto, onde o sintetizador, e o instrumento falam tanto quanto a voz, e a voz toca tanto quanto um instrumento" (MP2, p. 40).poder uma os sistemas e se16 Numa prtica deste tipo perseguimos estes objetivos atravs da variao contnua e da permanente desterritorializao das constantes que configuram os sistemas. E, mesmo que durante este processo surjam novas distines e sistemas, trabalhamos no sentido de dissolv-las passo a passo na performance. Evidentemente, no nos esquecemos da realidade dos idiomas, sistemas, gramticas, lnguas e linguagens que atravessam a todos de formas complexas. Nossa proposta parte da disposio de "gaguejar", ser um estrangeiro na sua prpria lngua. Conforme Deleuze," ser gago da prpria linguagem uma outra coisa, que coloca em variao todos os elementos lingusticos, e mesmo os elementos no-lingusticos, as variveis de expresso e as variveis de contedo"(MP2, p. 42). Por isto, para ns, o fundamental a pragmtica. Precisamos, ento, delinear o ambiente da improvisao -que uma mquina abstrata, singular -e que possibilita e prepara esta pragmtica -que o agenciamento coletivo de enunciao dos improvisadores. no contexto desta pragmtica que se delineia um devir constante e fecundo. nele, tambm, que se estabelecem os ritmos entre os meios (os msicos pensados enquanto meios) e emergem os estilos. Trata-se, pois, de subtrair, restringir as constantes e coloc-las em variao, esvaziar a forma e sobrecarregar.Substituir o par mat ria -forma , pelo par material -energia . Como Edgard Varse, que faz sua msica crescer a partir da proliferao do prprio material: um material energtico que engendra sua forma. Am sica pensamento maqu nico Quando se quer aprender sobre um mecanismo, primeiro nos voltamos para o seu funcionamento e investigamos a funo de cada pea dentro dele. Todas as peas se ajustam e trabalham juntas em funo da estrutura. Se uma pea apresenta defeito, pode ser substituida por outra que desempenhe a mesma funo. Este um pensamento mecnico por excelncia. Ou melhor, uma inteligncia mecnica, voltada para uma operacionalidade, para uma utilidade.17 No pensamento maqunico -que parece ser, para ns, o territrio da arte e dos perceptos -por outro lado, as peas notm funo pr-determinada. Na mquina, conforme conceituao delineada por Deleuze, as peas, as coisas, o conjunto de pontos simplesmente funciona e surge uma "engenhoca"5. As peas no podem ser substituidas. Os desejos e foras se acoplam e produzem um agenciamento, um funcionamento. Pode at surgir um mecanismo. Assim, segundo Deleuze, amquina maior do que o mecanismo. Ela engloba o mecanismo que uma das suas inmeras possibilidades de configurao. Amsica, enquanto potncia de acontecimento, uma mquina. J os sistemas musicais que se configuram histrica e geograficamente so mecanismos, estruturas em que as peas adquirem funes especficas. Por exemplo: no sistema tonal, as notas tem funo meldica e/ou harmnica claramente definida e os estudos acadmicos de contraponto e harmonia no tem outro propsito que o de fazer com que se entenda a estrutura e a funo das peas dentro do mecanismo. Um fazer musical que se pretenda em processo de constante inveno tem que se enfrentar como mquina, sempre aberta constituio de novas "engenhocas"(que posteriormente podem at se constituir em novos mecanismos que sero os sistemas adotados por certo tempo entre msicos acadmicos). Estendendo e aplicando estes conceitos de mquina emecanismo ao territrio da improvisao temos, que esta pode se dar num ambiente por assim dizer, mecnico -ea ela uma inteligncia6 -que quando as performances se do no mbito de um sistema claramente gramaticalizado e onde todas as intervenes remetem a uma estrutura abstrata colocada como referncia (a "hiperpartitura" Como exemplo destas "mquinas inteis", verdadeiras engenhocas sem funo, podemos elenc ar as "mquinas de som" construdas com sucata e as construes "inteis" das crianas envolvidas em maquinar objetos com blocos montveis (Lego, Pinos, etc.) A criana est sempre envolvida em at ividades maqunicas criando objetos -aparentemente simblicos -num exerccio contnuo do impulso criativo. 6 Sobre a noo de inteligncia contraposta noo de pensamento na filosofia de Deleuze ci tamos aqui uma aula de Cludio Ulpiano na Oficina Trs Rios: "A funo da inteligncia exatamente essa, d e dar conta das significaes estabelecidas, organizar a utilidade, produzir instrumentos eficazes. A questo do pensamento lidar com o caos/ /A arte s pode ser feita pelo pensamento porque o pensamento que entra em contato com os conceitos, o pensamento que entra em contato com os objetos da cincia/ /A in teligncia est prontamente atarefada em dar respostas para ns. O pensamento no. Ele s funciona se determinada fora for l e 'prender ele, puxar ele' (sic.) (Ulpiano, 1993).18 conforme expresso cunhada por Slvio Ferraz). , por exemplo, o caso daqueles que vo estudar jazz em uma escola -como h muitas hoje em dia nos EUA e mesmo no Brasil -el aprendem todos os materiais e procedimentos que podem ser usados para que a performance se d"corretamente". Em princpio, os limites esto claramente delineados e cada gesto do improvisador deve estar referenciado ao mecanismo complexo que , por exemplo, o idioma7 do Bebop. O que se aprende neste caso a parte abstrata de uma lngua, suas constantes. O pensamento mecnico, portanto, torna o aprendiz "competente" no manejo deste mecanismo, mas no o torna um artista. Seria necessrio, a partir da, fazer "gaguejar a lngua" para que surgissem as variveis. O mesmo se d com o msico hind que quer participar da prtica musical de seu territrio, apesar de que, neste territrio, a parte constante (abstrata) e a parte varivel (concreta)8 da linguagem no se definem nem se diferenciam com a clareza relativa da msica ocidental onde a sistematizao e a gramaticalizao empreendidas pela pedagogia e pela escola se configuram atravs da escrita. Neste tipo de territrio -o das msicas de culturas tradicionais -o aprendizado se d no contato concreto com a prtica e exerccios instrumentais a partir de uma relao mestre-aprendiz. J a livre improvisao quer enfrentar a msica como uma mquina que se abre para novas e infinitas atualizaes.como afirma o professor Cludio Ulpiano na j citada aula proferida na 7 Estes termos, idioma e sistema so usados aqui da seguinte maneira: sistema musica l alguma forma especfica de estruturao abstrata da linguagem como por exemplo o sistema tonal que organiza as alturas. No nos esquecendo que, "diferente do que ocorre num simples agregado, num sistema , os elementos componentes esto ligados e interagem entre si" (Iazzetta, 1993, p. 45). Os idioma s, por sua vez, so concretos e configuram -mesmo que provisoriamente -um territrio. Geralmente se ap oiam sobre algum sistema musical especfico (ou s vezes sobre mais de um como o caso de certos idiom as da msica popular brasileira onde convivem o tonalismo e o modalismo) e incorporam no seu fazer real -sua performance -caractersticas e detalhes que lhe do especificidade como por exemplo o uso de certos ritmos caractersticos, formaes instrumentais tpicas, procedimentos instrumentais, convenes de leitura, nuancesinterpretativas, etc. o caso, por exemplo, do choro que um idio ma que se apoia na estrutura abstrata do sistema tonal, mas que em sua prtica incorpora outros elementos. As caractersticas dos idiomas esto alm da abstrao de um sistema e se apoiam em dados concretos de sonoridade e de fatura dos sons. a forma especfica pela qual, tal ou qual sistema se concretiza em alguma situao. Na realida de, conforme vimos no item anterior desta introduo, Deleuze trata de mostrar que h duas maneiras de trata r as linguagens: a partir de suas constantes e a partir de sua variao contnua. A parte abstrata, gramatical, homognea da lngua o lugar das constantes, o modo maior da lngua. J a parte concreta, real, varivel, "mu sical" da lngua o lugar da variao, o modo menor da lngua, o lugar da performance. 8 Estes conceitos de parte abstrata e parte concreta da lngua se ligam, conforme veremos no captulo 1, aos conceitos de musicalidade e de sonoridade formulados por Pierre Schaeffer.19 Oficina Trs Rios em 1993, em que abordava a esttica no pensamento de Gilles Deleuze: "a experincia do artista / / afundar no vazio, ou no caos e tirar desse vazio do tempo / /, arrancar desse caos, os afectos com os quais o mundo constitudo / / essa potncia da arte no invade uma matria pronta; ela invade o vazio"(Ulpiano, 1993). Assim tambm na livre improvisao, o desejo sempre se afastar dos idiomas, sem, no entanto, ignorar que impossvel partir do grau zero da mquina. No mnimo estarol presentes como linhas de fora, os idiomas, mecanismos e sistemas que atravessam a biografia musical de cada membro do grupo de improvisao: omsico pensado enquanto um meio. Free jazz -free improvisation: antecedentes hist ricos da livre improvisa o Segundo o msico e free improvisor Derek Bailey o mpeto para a free improvisation surge de uma tendncia de radicalizao dos princpios de renovao constante da prtica musical por parte de grupos de performance de free jazz europeus. Esta radicalizao desemboca num questionamento amplo, por vezes filosfico, educacional -e em ltima anlise, poltico como no caso do compositor e performer ingls Cornelius Cardew -da linguagem musical. Este questionamento incide sobre as leis e regras idiomticas, sobre a gramaticalidade e as constantes dos sistemas que se configuram historicamente. Eo que so, afinal, estas constantes? Elas so justamente as partes das quais possvel falar.No caso especfico do jazz, so as diversas maneiras de organizar o material frequencial (mais precisamente as notas musicais) : escalas, arpejos, acordes, melodias, encadeamentos harmnicos, temas. So tambm os diversos procedimentos de desenvolvimento e variao temtica que podem ser transcritos e estudados. Assim tambm, as notas (figuras) dos solos dos grandes improvisadores que se transformam em clichs assim que so capturados em mtodos didticos e exercitados pelos aprendizes. tambm a organizao global temporal das20 performances em torno da hegemonia de um beat (pulso) constante que se faz onipresente atravs de suas proporcionalidades: neste fluxo, tudo mltiplo ou divisor. Este pensamento temporal hierarquizado atravessa todas as camadas que compem o tecido da performance: a meldica temtica e as vrias linhas que a "acompanham". Ao lado destas partes constantes da lngua h a parte varivel que se d na realizao concreta e que o lugar do indizvel, do imensurvel, do no sistematizvel. Este o lugar da performance propriamente dita. aqui que se d a renovao das constantes e as desterritorializaes. aqui que eu reconheo no interior do territrio do idioma jazz, por exemplo, o estilo de Charlie Parker e 9 que no ensinvel. o lugar dos modos menores. Apesar desta tendncia de renovao constante que sempre foi uma caracterstica essencial na histria do jazz, num determinado momento esses grupos de free improvisation sentiram a necessidade de romper com uma tradio que mantinha todas essas renovaes dentro do territrio do jazz. aqui que surge esta concepo de improvisaono idiomtica. De qualquer maneira, o que permanece daquelas tendncias de renovao constante um desejo por um direto e no adulterado envolvimento com a msica e uma tentativa de escapar da rigidez e formalismo dos backgrounds musicais. , ao mesmo tempo, um rompimento com os idiomas,seus clichs e gestos, rumo a uma liberdade individual aparentemente absoluta, mas tambm, uma busca de uma linguagem musical livre de constrangimentos regionais (territoriais) e por isto mais universal. Este tipo de agenciamento supostamente propcio, ao mesmo tempo, uma prtica musical universal, mais comunitria e coletiva e expresso individual mais legtima. Na realidade talvez possamos encar-lo como uma metfora utpica do indivduo integrado plenamente em sua comunidade que agora toda a humanidade (lar.humanidade). O indivduo se dissolve e se liberta numa enunciao coletiva. 9 Os conceitos de modo maior e menor em Deleuze esto ligados foras presentes nos t erritrios. O modo maior ligado ao conceito de maioria hegemnica, pensado enquanto fora de territoria lizao e o modo menor ligado ao conceito de minoria, linhas de fuga e foras de desterritorializao.21 Os primeiros passos para este plano ambicioso a negao. Evidentemente, negao dos idiomas, dos seus gestos caractersticos (ritornelos impregnados nos msicos devido s formaes diversas), negao da direcionalidade, determinismo e causalidade (tenso/relaxamento, tnica/dominante) do sistema tonal, negao do tempo pulsado, medido, estriado, simtrico, molar dos idiomas e sistemas diversos. Citando o msico Jamie Muir no livro de Derek Bailey: ao invs de transmutar o refugo/lixo (as dobras, ranhuras do som...) em msica com um alto grau de predeterminao qualitativa....deixe de lado as linhas e estruturas de seletividade, as boas intenes que voc herdou, e se aproxime do refugo com total respeito sua natureza de refugo o nodescobertonoidentificadonoreivindicado transmutando aquela natureza numa dimenso de performance. A maneira de descobrir o desconhecido na performance imediatamente rejeitar todas as situaes na medida em que voc as identifica o que d msica um futuro (Bailey, 1993, p. 96). Isto corresponde a evitar sempre o modo maior, a territorializao. Evitar sempre que possvel, a constituio de constantes, limites,partes duras e mortas, gramaticalidade. inevitvel porm que, durante este processo se produzam caractersticas particulares de um grupo devido ao seu intenso convvio e interao. Isto configura um estilo e um estilo no deixa de conformar limites, constantes. Neste contexto o silncio adquire uma dimenso mais importante na performance: a partir dele se desenvolve a intensa concentrao necessria e todos os sons podem funcionar como linhas de fuga. Nada suprfluo. Am sica pode , ent o , partir do sil ncio . Outras linhas de fora extramusicais importantes para o sucesso desta proposta so as qualidades necessrias para o convvio -que requer uma dose de disciplina individual -entre os msicos: humildade, generosidade, curiosidade, sensibilidade e pacincia. Assim se constri no uma linguagem conscientemente articulada22 mas, passo a passo cada passo por uma pessoa diferente uma coisa simbitica. O todo excede a soma das partes individuais. (Bailey, 1993, p. 92). Um grupo como este desenvolve uma seguran a na li berdade : todos esto prontos para dialogar com o imprevisto. O saxofonista Steve Lacy fala em brotherhood of language (irmandade de linguagem) que implica em que cada msico que se soma ao trabalho afeta a rede comum de linguagem. a identidade estilo -deste grupo. Resumo dos objetivos do trabalho Um dos objetivos do trabalho , portanto, definir os ambientes em que se do as vrias formas de improvisao. Na proposta da livre improvisao especificamente, queremos definir este ambiente tendo em vista uma cada vez maior autonomia criativa por parte dos msicos que dela participam. O horizonte pretensioso da nossa reflexo uma grande sntese em que se somam, numa elaborao complexa, aspectos educacionais, estticos e filosficos imbricados na prtica de improvisao. O aspecto filos fico estar fundamentado, conforme j explicitado, na obra de Gilles Deleuze e especialmente em seus conceitos de plano de consist ncia , meio , ritmo , modos maior e menor , territ rio ,desterritorializa o e moleculariza o . O aspecto est tico , centrado na reflexo a respeito das relaes entre a proposta da livre improvisao e o fazer musical contemporneo, buscar suas mltiplas referncias no pensamento e na obra de artistas como Varse e sua busca pela liberao do som, Pierre Schaeffer e sua reflexo sobre o objeto sonoro (a materialidade do som, algica e o pensamento do som, conseqncias e causas diretas e indiretas do surgimento da msica concreta e eletrnica a partir do desenvolvimento das tecnologias de gravao), John Cage e suas formulaes libertrias sobre o som, o rudo e o silncio, sua nfase nos processos e na experincia, seus questionamentos sobre a permanncia do objeto artsticoea msica vista como sucessoeno como progresso, ano causalidade, ono controle e sua ligao com o pensamento Zen. Esto presentes tambm enquanto referncias, as23 reflexes do compositor ingls Brian Ferneyhough e suas categorias de figura, gesto e textura que norteiam sua noo de complexidade. Isto sem falar de contaminaes e turbulncias que venham de outras reas do pensamento artstico tais como o trabalho de Pollock, Calder, Bacon, experincias de improvisao em dana, etc. O aspecto educacional do projeto est ligado investigao sobre o aspecto cognitivo (tendo como referncia o pensamento dos bilogos cognitivistas Varela e Maturana) implcito nos processos de improvisao e que capaz de configurar estruturas/processos de pensamento e cognio. E mesmo, num sentido inverso, a preocupao de delinear uma "antipedagogia" propcia a este novo tipo de fazer musical. Como criar um solfejo que habilite o msico a se aventurar neste terreno desconhecido da msica que pensada a cada momento -eno em sistemas abstratos de referncia colocados a priori -e que procura se estruturar de maneiras novas a cada prtica. Na realidade trata-se de afirmar que a improvisao, tal como ela aqui pensada, pode ser a base para um processo de cognio. Ou melhor: que a cognio se d tambm atravs de processos de improvisao. Estes objetivos sero trabalhados nesta tese em quatro captulos (alm desta introduo) que podem ser assim resumidos: No captulo O ambiente da improvisa o: refer ncias para um plano de consist ncia so explicitadas as referncias tericas, filosficas, cientficas, histricas e musicais do trabalho: os conceitos formulados por Deleuze (plano de consistncia,ritornelo, territrio, meios, ritmo, etc.), a autopoise de Maturana e Varela enquanto teoria bilogica de cognio e consistncia orgnica (estabelecendo uma analogia entre o organismo autopoitico e o ambiente da livre improvisao), os conceitos de escuta reduzida e objeto sonoro de Pierre Schaeffer, as formulaes de Deleuze e Huizinga sobre o jogo e as referncias mais especificamente musicais (Varse, Ligeti, Scelsi, Berio, o free jazz, Boulez, amsica eletroacstica, etc.). Procuramos deixar claro o quanto a possibilidade da proposta da livre improvisao depende de uma longa preparao do ambiente de um ponto de vista histrico mais amplo.24 No captulo Elementos e conex es do plano de consist ncia da improvisa o buscamos as ressonncias dos conceitos de Deleuze nas formulaes a respeito do ambiente da performance de livre improvisao: o processo constante de territorializao e desterritorializao que compreende esta prtica; a consistncia do plano, ambiente -bloco de espao tempo -onde se do as interaes; os msicos pensados enquanto meios que se acoplam num ritmo (que o que se forma entre os meios, as "npcias entre reinos"); as formas de conexo rizomtica entre os msicos; os ritornelos individuais e grupais e a emergncia de estilos. Atravs desta aproximao com a obra de Deleuze buscamos descrever as formas complexas de funcionamento desta prtica. No captulo O am biente da livre improvisa o e o tempo abrimos espao para uma discusso sobre a questo de como o tempo se delineia e se configura nas prticas de improvisao em geral e mais especificamente no ambiente da livre improvisao. Tratamos aqui principalmente das questes ligadas memria (curta e longa) no fluxo temporal (liso, estriado ou mltiplo) de uma performance. Este assunto, que diz respeito ao delineamento do plano de consistncia poderia figurar no captulo anterior uma vez que o tempo um dos elementos que constituem o plano, no entanto, achamos mais adequado, devido importncia fundamental desta questo, abrir para ela um captulo especfico. No captulo Relatos de experi ncias de improvisa o: grupo Akronon descrevemos concretamente os processos da livre improvisaoeso analisadas, a partir dos referenciais propostos nos captulos anteriores (as categorias do objeto sonoro de P. Schaeffer, os conceitos de figura, gesto e textura delineados por Brian Ferneyhough, etc.)algumas performances gravadas do grupo Akronon. Inserimos tambm o relato de um ambiente idiomatizado de improvisao (grupo Aquilo del Nisso) com o objetivo de estabelecer parmetros para uma comparao. Neste captulo a tese toma corpo, o abstrato vira concreto e a teoria se confronta com a prtica. Na Conclus o defendemos a livre improvisao da eventual acusao de primarismo ou de vale-tudo experimental infantilizado colocando as exigncias tcnicas necessrias e suficientes para definir25 uma verdadeira "sntese de disparates" a partir de um processo de desterritorializao que visa atingir o molecular nas linguagens e idiomas. Nossa inteno demonstrar que s a livre improvisao possibilita o aparecimento de um "conjunto vago" a partir de operaes especficas de consistncia. E estas operaes inslitas exigem interao, sobriedade e controle tcnico. A sim, possvel que a prtica se abra ao csmico e que o resultado no seja um pastiche ou uma colagem ready made. Tratamos, a partir destes argumentos, de afirmar o vigor da prtica de livre improvisao enquanto ao musical efetiva e defender seu papel como estratgia de atuao musical efetivamente produtora e no reprodutora.26 CAP TULO 1 Algumas pessoas perseguem a perfeita organiza o dos velhos padr es e isto para eles progresso . Outras pessoas querem derrubar os muros e encontrar algum novo territ rio . entrevista do saxofonista e free jazz man Steve Lacy ( Bailey , 1993, p .55)27 CAP TULO 1 O AMBIENTE DA IMPROVISA O:REFER NCIAS PARA UM CAMPO DE CON SIST NCIA A improvisao, genericamente falando -especialmente a coletiva -, um fazer musical com caractersticas especficas, onde muitas linhas de fora convergem. Devemos pens-la num contexto amplo -que definimos aqui como sendo o seu ambiente ou campo de operaes -que engloba muitos fatores, no somente musicais, mas tambm, sociais, culturais, pessoais e especficos do grupo que se engaja numa prtica deste tipo. Devemos pensar, inicialmente, que uma performance de improvisao se insere necessariamente como um "fato musical"-conforme concepo de Jean Molino10 -no contexto de um idioma musical. Assim, ela uma manifestao complexa que estabelece vnculos e resultado de uma srie de conexes em rede que acontecem neste ambiente. Ao mesmo tempo em que ela manifestao do ambiente, ela -enquanto um fato de cultura -um dos fatores que conferem a este ambiente sua identidade. importante ressaltar que, para a prtica da improvisao necessrio, por parte dos msicos que dela participam, um estado de prontido auditiva, visual,ttil e sensorial que diferente daquele exigido para a prtica da interpretao ou da composio. Este estado de prontido exige uma espcie de engajamento corporal integral11 . A realizao efetiva da improvisao depende, em certa medida, desta preparao especfica. 10 Molino define assim o fato musical: "Como tantos fatos sociais, a msica parece carregar-se de elementos heterogneos -e, aos nossos olhos, no musicais -, medida que nos afastamos no espao e no tempo O prprio campo do fato musical, tal como reconhecido e delimitado pela prtica social , nunca recobre exatamente o que entendemos por msica: de fato, a msica est em toda a parte mas no o cupa nunca o mesmo lugar o fato musical aparece sempre no apenas ligado mas estreitamente mistur ado com o conjunto de fatos humanos No h,pois, uma msica, mas msicas. No h a msica, mas um fato ical. (MOLINO, Jean, Umberto Eco, J-J Nattiez, Nicolas Ruwet, Semiologia da msica, Vega Limitada, Lisboa, p.112 a 114). 11 Podemos dizer que o corpo e a mente daquele que improvisa diferente daquele q ue no improvisa.28 Pensemos, conforme definio proposta por Derek Bailey (Bailey, 1993, p. xi) a partir de duas formas bsicas de improvisao: de um lado a improvisao idiomtica, que aquela que se d dentro do contexto de um idioma musical, social e culturalmente delimitado histrica e geograficamente como por exemplo, a improvisao na msica hind, e de outro a livre improvisao. Nesta ltima, supostamente, noh um sistema ou uma linguagem previamente estabelecida, no contexto da qual se dar a prtica musical. A livre improvisao , para ns, uma possibilidade no mundo contemporneo: cada vez mais integrado e onde as "membranas"lingusticas, culturais, sociais -e as fronteiras, devido intensa interao, eventualmente se dissolvem ou ao menos perdem sua rigidez. Neste contexto, os territrios se interpenetram e os sistemas interagem cada vez mais, de maneira que os idiomas tornam-se mais permeveis. Por outro lado, a livre improvisao possvel num cenrio em que os idiomas e os sistemas musicais se esgotaram enquanto possibilidades autosuficientes e expansveis. O tonalismo ocidental, por exemplo, a partir de uma longa histria de gestao, consolidao, afirmao de regras e flexibilizao das mesmas, se expandiu at"explodir" com o advento do atonalismo, serialismo esucedneos. A histria do jazz, de maneira similar, descreve um percurso que conduz a um esgotamento gradativo de possibilidades. O livre improvisador lida com vrios sistemas simultaneamente ou -supostamente -com a ausncia deles. Ele pode ser um msico proveniente do territrio do jazz que, em sua busca por novas formas de expresso e liberdade criativa acaba se deparando com um esgotamento dos antigos sistemas de referncia. Para este msico noh mais nada de novo a dizer atravs dos antigos idiomas. Cabe ressaltar que o jazz , essencialmente, uma msica que se realiza atravs da improvisao e que quando todas as solues pessoais parecem j no surpreender, todos os gestos do instrumentista parecem "dicionarizados" e previsveis, a prtica da improvisao se torna burocrtica e perde a vitalidade. Este msico pode ser tambm o compositor/intrprete de msica "eurolgica"(erudita ocidental) que vivencia o esgotamento dos sistemas aps o fim do tonalismo e se volta para novas (para29 ele ) formas de expresso que podem incluir as msicas tnicas, o jazz, etc. Lembremos que, atualmente, em vista da j citada crescente interao e integrao global, a maior parte dos msicos no mundo ocidental submetido uma enorme multiplicidade de sistemas e idiomas. Hoje temos acesso retrospectivo a toda produo de msica no ocidente e mais toda a msica feita em outros lugares do mundo e de origem no europia. Esta situao cria condies para um desenraizamento da msica atual. Este desenraizamento parece apontar positivamente para o advento de novos tempos onde as estruturas mais profundas da arte, da linguagem e do pensamento se desprendem de suas especificidades idiomticas para expressar formas mais suts da existncia: o "molecular", ocsmico12 . Num primeiro momento, centremos nossa argumentao na escuta. A livre improvisao, que para ns se d numa espcie de negao de territrios ou a partir de uma sobreposio (colagem, raspagem, transbordamento) de idiomas, , como dissemos acima, uma possibilidade (histrico/geogrfica) contempornea. E esta possibilidade s se delineia a partir da configurao de novas formas de escuta. Podemos dizer que, para o msico, o ambiente da livre improvisao longamente preparado. Por exemplo, ao contrrio doque imagina o senso comum, no jazz, a improvisaono uma performance sem preparao. De fato haveria, segundo Paul Berliner, uma vida inteira de preparao e conhecimento por traz de toda e qualquer idia realizada por um improvisador (Berliner, 1994, p.17). Pensemos nas dimenses comunicativas da improvisao idiomtica: nela h um nvel de significao dominante resultante de um processo de enunciao coletiva e um nvel de subjetivao. Assim, a improvisao idiomtica se d num contexto de redundncia que remete ao idioma (gramaticalidade) e portanto, intersubjetividade e um nvel de ressonncia onde se do as subjetividades (ou s "indisciplinas"). Os dois nveis se interpenetram e dependem da natureza dos enunciados realizados (agenciamentos) num campo histrico e social dado. Deste modo h"um agenciamento coletivo Estes termos aparentemente vagos ou deslocados de contexto -molecular, csmico -te ro seus significados especficos configurados no decorrer do texto.30 que ir determinar como conseqncia os processos relativos de subjetivao, as atribuies de individualidade e suas distribuies moventes no discurso"(MP2, p.18). Por outro lado, a possibilidade da livre improvisao -que no se d no contexto de um idioma especfico - preparada por uma srie de fatores presentes na histria e na geografia da msica. Vamos proceder agora, a uma enumerao de referncias (prticas e tericas) que iremos posteriormente detalhar em captulos subsequentes e que tornam possveis as prticas de livre improvisao a partir da configurao de novas formas de escuta. Estas referncias serviro como base para as investigaes a que nos propomos neste trabalho. Em primeiro lugar, temos as pesquisas conduzidas por P. Schaeffer no mbito da msica concreta. Dali emerge a formulao do conceito de escuta reduzida do objeto sonoro com todas as implicaes que dela decorrem. A improvisao livre, conforme a vivenciamos no contexto de nosso laboratrio prtico -Akronon - uma prtica em que este tipo de escuta orientada para o objeto sonoro tem grande relevncia. Temos tambm a obra e as reflexes de Edgard Varse13 em busca da "autonomia do som". Seus procedimentos inauguram uma Tanto Cage quanto Varse almejam a r liberao do som(reivindicao precocemente veiculada pDebussy que dizia: Qualquer som em qualquer combinao e em qualquer sucesso so doravan te livres para serem usados numa continuidade musical ). Esta liberao do som, sua percepo e uso como fenmeno autnomo, desvinculado de qualquer sistema (os idiomas, ou linguagens segun do Schaeffer) implicaria em diferentes propostas de atuao conforme o caso. Varse permanece ligado tradio europia da composio: predomina o conceito de permanncia da obra, da construo de um objeto arts tico por parte de um compositor que incumbe eventuais intrpretes de veicular, da maneira mais prx ima possvel de suas intenes originais, a sua criao, transmitida atravs de uma notao precisa na medida do p ssvel a partitura. A escuta, no entanto, j outra pois ela se dirige a verdadeiros objetos sonoros plenos de mltiplas possibilidades de aproximao (a sentido de linearidade, de direcionalidade e de cau salidade so atenuados). Para Varse no importa a nota como elemento descontnuo (apud, Schaeffer): uma altura especfica numa regio especfica e cuidadosamente escolhida de um instrumento, produzida atravs de u ma articulao rigorosamente definida, se torna, no parte de um acorde, mas sim de um agregado h armnico, de uma densidade de algo que por acaso definida por notas de alturas definidas.....a nfa se colocada na experincia ao invs da estrutura (Nyman, 1999, p.44). J para Cage a liberao do som mais radical. H tambm e sobretudo, uma nfase no processo na experincia, no fazer musical em detrimento da permanncia de um objeto artstico que queda a desmistificado. O uso de qualquer som ou rudo, a liberao do som com relao aos sistema s e s estruturaes uma conseqncia e uma necessidade inerente proposta de se enfatizar o faz er. Num texto de 1957 Cage nos diz: ...o que ser feito aos poucos liberar completamente os sons das idias abstratas a respeito deles e cada vez mais deix-los ser unicamente e fisicamente eles mesmos. (Nyman, 1999 p.50). Por outro lado, o compositor, o intrprete e o ouvinte esto muitas vezes entrelaados num mesmo personagem. A vontade de romper com a diviso entre vida cotidiana e arte transfor ma o artista em um formulador de processos, um desencadeador de experincias, um agenciador de propos tas. Vida e arte se mesclam. O artista um educador. Na livre improvisao esto presentes os elementos pro postos por Cage:31 escrita em que se busca de forma intencional, uma escuta de massas sonoras e texturas . Alm disso, para ele, a questo da forma tratada de uma maneira particular, enquanto resultado de um processo de desdobramento de elementos e componentes maneira de um organismo. Na mesma linha de referncia podemos citar a obra de Ligeti que, a partir da utilizao de procedimentos figurais contrapontsticos (micropolifonia) em obras como Atmosphres, Lux Aeterna e Continuum cria tambm a sensao de texturas em micromovimento. Nestes procedimentos de Ligeti, por exemplo, se percebe o impacto do advento da msica eletrnica no pensamento composicional moderno. O chamado "tecnomorfismo"14 que da se origina tambm uma importante referncia na preparao do plano de consistncia da improvisao. Ligeti chega, inclusive, a explicitar a influncia determinante de sua experincia com a msica eletrnica em sua escrita instrumental: Quando minha pea orquestral Apparitions foi executada em 1960 em Colnia e, um ano depois, quando a pea orquestral Atmosphres foi executada em Donaueschingen, era comumente mencionado o seguinte: essas peas, na verdade parecem ser msica eletrnica arranjadas para orquestra. Essa afirmao certamente estranha -como algo pode ser eletrnico quando puramente instrumental -de qualquer maneira, contm um gro de verdade; isto , sem as experincias no estdio eletrnico, as peas orquestrais nunca poderiam ser compostas daquela maneira (Ligeti, 1970, p.1e 2).o engajamento com o fazer, o momento, o processo, o som, a experincia, a signific ao imediata e cotidiana. Trata-se de colocar em movimento um devir. Por outro lado os intrpretes esto engaj ados num processo intenso de dilogo e interao que gera processos de cristalizao num sentido Varesiano. O sons libertados das idias abstratas em processos interativos e dinmicos so colocados em movimento. O problema de Cage que ele no quer (aparentemente), mas continua sendo o formulad or das propostas. Ele quem pe os intrpretes em movimento. O desejo pertence ao compositor/formulador . Por mais quetrabalhe com o acaso ele quem desencadeia o processo e delimita o material. ele quem faz o lance de dados (ao menos o lance inaugural). O resultado que cada vez menos se consegue e ngajar o intrpreteneste projeto. um projeto exteriorizado. Alm disto em Cage no h um a preocupao com o som em si: o que importa o conceito de som e de processo. A livre improvisao no assim. 14 O tecnomorfismo, segundo Tatiana Catanzaro, se relaciona com "a utilizao metafri ca de um processo tecnolgico aplicado em um meio diverso ao qual este foi concebido; no caso, msica composta para instrumentos mecnicos (tradicionais). Ou seja, a abstrao de uma idia tecnolgica (como a manipulao de uma fita magntica, a anlise de um espectro sonoro via computador, etc.) aplicad a msica tradicional instrumental e/ou vocal mecnica. CATANZARO, Tatiana, Influncias da linguagem da msi ca eletroacstica32 Temos tambm a obra do compositor italiano Giacinto Scelsi. Ali, o que se almeja uma espcie de molecularizao do som atravs de um processo contnuo de micro-percepes. Ele se propea "viajar dentro do som". O conceito de molecularizao e a consequente intensificao est presente de forma clara na crescente importncia que o timbre vai assumindo na produo musical contempornea. Segundo Tristan Murail (Murail, 1992, p. 20) h um grande movimento da msica ocidental, em que o timbre, antes insignificante com respeito escritura, recuperado, reconhecido primeiro como fenmeno autnomo e a seguir como categoria predominante terminando quase por submergir ou absorver as outras dimenses do discurso musical, de sorte que as microflutuaes do som (glissandos, vibratos, mutaes do espectro sonoro, trmulos...) passam do estado de ornamento ao de texto. Tudo isto molecularizao15 . A obra Scelci vai influenciar -tanto quanto a msica eletroacstica -a corrente da msica espectral. Seus maiores representantes so Gerard Grisey e Tristan Murail que trabalham a composio a partir de anlises detalhadas do som enquanto um acontecimento acstico complexo (anlise espectral). Outra referncia a obra de Olivier Messiaen. Nela, a partir de um minucioso trabalho de desdobramento de figuras e de imbricamento de proto-melodias -relacionadas na escuta e na composio de uma maneira rizomtica16 (simultnea, linear, diagonal,etc.) -, se almeja uma escuta m ltipla e heterog nea sobre a linguagem da msica contempornea in, Anais do Frum do Centro de Linguagem Musi cal -CLM, 2002. Depto de Msica da ECA-USP. 15Podemos fazer aqui uma aproximao deste conceito de molcula com o conceito de dobra conforme delineado por Deleuze ao descrever em que medida as micropercepes desterritorializ am uma escuta das macropercepes. Conforme Silvio Ferraz: "O que podemos notar que as sries de dobras no correspondem a uma seqncia de pontos de vista de um mesmo objeto, como notamos nas variaes clssicas. As sries de dobras, sries de micropercepes, correspondem s configuraes (ou alizaes) de um objeto. So constitudas de experincias sensoriais simultneas e divergentes, da intuio e do pensamento, que se cruzam, ora ressoando uma nas outras, ora se justapondo."(FER RAZ, 1998, p.177). Na improvisao no se trata de micropercepes aplicadas a objetos anteriormente compostos m as de um mesmo tipo de configurao aplicada doravante ao processo em seu devir. Na msica tradicional cada msico toca uma clula e, com os ensaios apreende a funo da c a. Na cano os msicos esto, por assim dizer, em funo da melodia-texto. Na nossa msica livre c da msico no sabe o que vai realmente resultar dos objetos que toca. uma msica molecular, tr abalhada passo a passo, uma msica feita de perto. A molcula no sabe qual ser sua funo no organismo 16 O conceito de rizoma conforme delineado por Deleuze ter seu sentido mais detal hado no captulo 233 da simultaneidade . De maneira diversa e a partir de uma colagem "alucinada" de signos musicais (figuras, fragmentos de gestos musicais) o compositor americano Charles Ives tambm prope, entre outras coisas, um tipo de escuta nmade e mltipla. Em sua obra convivem vrios estratos temporais heterogneos. Citemos tambmamsica experimental norte americana e a revoluo conceitual promovida por John Cage: sua aproximao com o Zen e as demais formas de pensamento oriental e suas conseqncias sobre o fazer musical ocidental; seus questionamentos estticos sobre a noo de obra artstica separada da vida, sua adeso a uma espcie de dadasmo que questiona a solenidade do fazer artstico na cultura ocidental. A escuta aqui se coloca como ato no intencionado ou como uma escuta sem propsito integrada naturalmente na vida. A racionalizao abre espao sensao pura. Assim tambm, o nascimento da livre improvisao conforme a propomos aqui, s possvel no contexto de uma idia de psmodernidade em que surge um trabalho como o do compositor Luciano Berio17 onde o gesto (o simblico-semantizvel investido na linguagem) e o idiomtico se vem descontextualizados, deformados, reterritorializados e reconfigurados em composies em que uma escuta polifnica resultado da simultaneidades de linhas de escuta numa proposta de convvio entre o gestual, o figural e o textural. Mas tambms possvel a partir da desterritorializao da figura18 (aspecto rtmico-meldico: propores entre as notas) promovida por Schoenberg quando, em suas primeiras obras atonais, a liberta dos condicionamentos idiomticos da tonalidade e fundamenta um pensamento propriamente figural -contrapontstico e em certa medida, timbrstico -desvinculado de um sistema (apesar de haver logo depois promovido uma extensa territorializao da mesma figura atravs do serialismo).Temos tambm a prtica e as reflexes de msicos como Cornelius Cardew, Derek Bailey, todos os grupos de free Lembremos como obras significativas desta tendncia o 3o. movimento da Sinfonia -o nde h um impressionante trabalho de colagens, raspagens de peas do repertrio ocidental -e a s Sequenzas, mais especificamente as para voz e para trombone. 18 Os conceitos de textura, figura e gesto aqui utilizados so criados pelo compos itor Brian Ferneyhough e sero melhor definidos nos captulos subsequentes.34 improvisation europeus e norte americanos que se ligam a uma longa histria de desenvolvimento do jazz norte americano e uma preocupao com o intrprete enquanto formulador e enunciador de discurso musical. Resumindo ainda de maneira provisria, podemos dizer que a livre improvisaos possvel no contexto de uma busca de superao do idiomtico, do simblico, da representao, do gestual, do sistematizado, do controlado, do previsvel, do esttico, do identificado, do hierarquizado, do dualista e do linearizado em proveito do mltiplo, do simultneo, do instvel, do heterogneo, do movimento, do processo, do relacionamento, do vivo, da energia e do material em si (em oposio dupla matria/forma). a escuta "Ouvir, de fato, os sons". Falamos aqui, ao mesmo tempo, da percepo que uma ao empreendida por um sujeito (ouvir), e um objeto a que supostamente esta ao se dirige (os sons). Na realidade, na perspectiva que aqui assumimos, esta separao entre sujeito e objeto no ocorre e nesta expresso ("ouvir, de fato, os sons")o "de fato" deve ser colocado entre parntesis. Isto implica, primeiramente, em assumir que a percepo uma atividade cognitiva e que toda atividade cognitiva se d atravs de um processo de configurao de problemas a serem resolvidos a cada momento. Ou seja, para ns a cogniono parte de uma realidade supostamente pr-estabelecida a ser percebida ou representada mas sim, se configura a partir de um cenrio (ambiente) em que se confrontam o objeto e o sujeito atravs de um ato particular de percepo, que emerge num determinado contexto, e que envolve tanto o objeto quanto o sujeito com sua histria, seu corpo e sua linguagem. Deste modo o processo continuado do viver que configura um mundo percebido a cada momento a partir de problemas reais. Essa concepo que, mais recentemente, vem sendo empregada nas cincias cognitivas, nos parece pertinente para o desenvolvimento de nosso estudo, tendo em vista as implicaes35 entre a percepo (ouvir, escutar -condio primordial para o jogo da improvisao) e o modo de cognio que este ato implica. Como afirma Francisco Varela que desenvolveu parte dos conceitos a respeito dos processos cognitivos aqui utilizados: A principal capacidade da atividade cognitiva dos sistemas vivos , dentro de amplos limites, a configurao de problemas relevantes a serem resolvidos a cada momento da existncia. Estes problemas noso pr-estabelecidos mas sim configurados, ensejados a partir de um cenrio e o que conta como relevante o que o senso comum sanciona como tal, sempre de maneira contextual/ /A noobsica, portanto que as capacidades cognitivas esto indissoluvelmente ligadas a uma histria que vivida, assim como um caminho que no existe, mas que traado pelo caminhar/ / O mundo que experimentamos no independente do observador / /(Assim, por exemplo), os mecanismos neuronais que subjazem percepo das cores noso a soluo de um problema (capturar as propriedades cromticas pr existentes dos objetos), mas sim a emergncia, em unio da percepo de cores e dos atributos cromticos (Varela, 1988, p. 464 a 467). Assumindo as conseqncias desta forma de pensamento, temos que, entre outras coisas, o ato de ouvir resultado de um processo que envolve o objeto sonoro/musical -realizao acstica de um enunciado musical, fenmeno fsico sonoro capaz de mobilizar/perturbar o nosso orgo auditivo -e o sujeito, num processo de configurao. Assim,"ouvir os sons"implica em um ato humano que surge a partir de uma necessidade, de uma disponibilidade e de uma prontido configuradas na relao com uma determinada realidade acstica. Segundo Franois Chatlet (PV, p.26), qualquer ato humano um ato de racionalizao uma vez que instaura relaes humanas num determinado ambiente. H, portanto, uma inteno de escuta que emerge como necessidade a partir de um "problema": a interao entre msicos que assumem seus36 instrumentos como uma espcie de extenso de suas vozes19 e decidem iniciar um jogo: um jogo ideal em que o que importa a continuidade do prprio jogo (a livre improvisao). J, as idias de John Cage ligadas filosofia Zen implicam em novas formas de escuta. Para Cage, que parte da idia de silncio, num certo sentido, toda e qualquer escuta pode se tornar um ato de composio. Pensemos na proposta contida em sua pea 3'44" em que o silncio emoldura uma escuta intencionada. O sujeito seleciona, recorta, a partir do grande caos sonoro, aquilo que, por determinado motivo (necessidade ou disponibilidade), se torna significativo para ele. Citamos aqui Pierre Schaeffer para ilustrar este ponto: Assim que, participando de uma conversao familiar entre diversas pessoas, eu passarei de um interlocutor a outro, sem desconfiar um instante da extravagante confuso de vozes, rudos, risadas, a partir da qual eu efetuo uma composio original diferente da que cada um de meus companheiros estaria em condies de realizar por sua prpria conta. (Schaeffer, 1993, p.94). Todavia, para Schaeffer, que conduz seu pensamento com base na fenomenologia de Husserl, o objeto sonoro concreto, que um fenmeno fsico-acstico, uma realidade anterior,pr-existente e por isso, transcende s variadas percepes que dele venhamos a ter. Assim, a partir de um mesmo objeto, possvel configurar vrias escutas. Mais frente no mesmo livro temos: Ele (o objeto sonoro) aquilo que permanece idntico ao longo do fluxo de impresses diversas que dele tenho, embora estas com ele se relacionem atravs de minhas intenes diversas/ / no objeto sonoro que estou a escutar sempre h mais a entender; uma fonte de potencialidades jamais esgotada/ / que dele eu perceba sucessivamente aspectos diversos, que ele no seja jamais igual, identifico-o sempre como este objeto a 19 Numa aproximao ao conceito de oralidade conforme delineado por Paul Zumthor em seus trabalhos, A letra e a voz e Oralidades Poticas). Discutiremos estas aproximaes mais adiante no texto (capitulo 4).37 bem determinado/ /Estas qualificaes variam, como a prpria escuta, em funo de cada experincia e de cada curiosidade. Todavia, o objeto sonoro nico, que torna possvel essa multiplicidade de aspectos qualificados do objeto, subsiste sob a forma de uma aurola de percepes (Schaeffer, 1993, p.100). Acreditamos que o princpio da nossa classificao (do objeto sonoro) permite assinalar, para o mesmo objeto quadros diversos, de acordo com a inteno de escuta. A procura de uma tipologia absoluta ilusria (Schaeffer, 1993, p.345). Ento o que o objeto sonoro para Pierre Schaeffer? Para construir sua teoria e dentro dela, o conceito de objeto sonoro, base para a msica concreta, Pierre Schaeffer distingue, genericamente,4 formas de escuta: o our, o couter, o entndre e o comprendre. Com o intuito de ilustrar estas quatro formas de escuta podemos examinar algumas caractersticas da improvisao com base em duas delas: a improvisao idiomtica -que aquela que se apoia em algum idioma musical socialmente determinado e delimitado -supe um forma de escuta que enfatiza, sem excluir as outras, o comprendre: o idioma, o sentido, olxico, a sintaxe e enfim a histria e a geografia territrio -em que se insere este idioma. Neste tipo de escuta, os sons valem por sua funo dentro de um sistema que os articula. Schaeffer define o termo musicalidade neste contexto. Por exemplo, quando uma certa freqncia (uma nota), assume um certo valorexpressivo dentro de um determinado discurso musical (uma melodia) articulado sobre um sistema hierarquizado e gramaticalizado (o sistema tonal), ela no vale por si mesma. Seus atributos acsticos e perceptivos, se definem em funo de seus relacionamentos com os outros elementos e de sua colocao dentro do discurso20 . Isto absolutamente claro no contexto de um discurso meldico tonal. Fazendo uma analogia com a linguagem verbal: o som das palavras s adquire sentido no contexto dos idiomas em que elas so pronunciadas. Para ns, este processo demonstra uma forma de configurao de uma escuta que surge enquanto necessidade 20 Pensemos numa nota no contextode uma fuga de Bach.38 21) (autopoisena consolidao de uma linguagem musical comunitria. J na improvisao livre -que aquela que procura no se subordinar a nenhum idioma especfico (e nem a eles se opor, necessariamente)-supe-se que a nfase recaia sobre o entndre22 que uma inteno de escuta dirigida s caractersticas pr-musicais do som descontextualizado de sistemas abstratos ou idiomas e tomado como um objeto em si mesmo. Neste sentido, a livre improvisao se d mais propriamente num ambiente de escuta reduzida que , segundo Schaeffer uma escuta que busca escapar tanto de uma inteno de compreender "significados"(semnticos, gestuais ou mesmo musicais no sentido de estar inserida em algum idioma) quanto de uma identificao de causas instrumentais. Ela dirigida aos atributos do som em si, ou seja, ao objeto sonoro. Considerando o fato de que todo msico condicionado pela sua biografia (o pr-existente: idiomas e sistemas) temos que, para sustentar esta proposta -a de uma livre improvisao - necessrio uma disciplina ou uma inteno de escuta. Schaeffer escreve a respeito desta inteno de escuta: poderamos, eventualmente, livrando-nos do banal, 'expulsando o natural', tanto quanto o cultural, encontrar um outro nvel, um autntico objeto sonoro/ / que seria acessvel a todo homem ouvinte? (Schaeffer, 1993, p. 247). A escuta reduzida seria, assim,como a escuta do beb que traz um ouvido ainda descondicionado, apesar de ainda inbil. A questo da habilidade se coloca s vezes como um empecilho para a livre improvisao, pois o preo de ser hbil num determinado sistema (territorializado) e, por isso, capaz de reconhecer os seus traos pertinentes ser praticamente surdo quilo que no lhe pertinente.21 Veremos a definio deste termo -autopoise -mais adiante no presente captulo. 22 Poderamos imaginar uma seqncia que vai da sonoridade musicalidade que se baseia nos balanos da escuta criados por Schaeffer e que em princpio poderiam se aplicar da seguinte ma neira livre improvisao: no incio se d, atravs de uma prtica, uma tipologia (que uma identificao dos objetos s noros no seucontexto) que desemboca numa morfologia (que qualifica estes objetos em sua contextura). partir desta dinmica pode-se atingir (com auxlio de gravaes e registros) uma anlise dos objetos qu e da emergem e39 Assim, incomum e difcil a prtica da improvisao entre msicos que no compartilham do mesmo idioma. o caso de uma sesso entre um msico de jazz e um msico hind, por exemplo. O preo de se ter uma identidade ou pertencer a um territrio com "membranas muito rgidas" no conseguir uma permeabilidade que torne possvel a invaso de elementos provenientes do Caos, espao onde as energias esto soltas, informes, ainda no se organizaram em sistemas e por isso no delimitaram fronteiras e territrios. Assim, para a prtica da livre improvisao, poderamos imaginar que os sons so somente sons -noso ainda, linguagem, representao -e que, portanto, poderiam se juntar de formas imprevisveis e novas. No entanto, em qualquer um destes contextos, a escuta exercida pelo improvisador, visa o som produzido por ele, pelos outros msicos e tambm, o som que resulta da interao entre todas atuaes. Isso porque cada som introduzido tem -inevitavelmente um peso especfico e sua presena determina em certa medida23 , modificaes na performance que assim se constitui enquanto um fluxo incessante de transformaes. Ao mesmo tempo, cada som ser introduzido devido a um ato de vontade especfica voltada para os vrios momentos daquela performance particular e ser manifestao de um pensamento sonoro ou musical especfico. No caso da improvisao livre de idiomas que propomos aqui, para que este tipo de escuta mltipla seja possvel necessrio construir uma disciplina atravs de um empenho redobrado de ateno e concentrao ou, dito de outro modo: necess rio almejar uma inten o de escuta voltada para o objeto sonoro .o jogo No livro Experimental Music:Cage and Beyond Davi Behrman escreve o seguinte: A situao do msico pode ser comparada a de pode-se (ou no) elaborar uma teoria das estruturas musicais -sntese abstrata -que dir respeito unicamente quele grupo especfico (vide captulo dedicado s prticas do grupo Akronon). 23 A questo deste "peso especfico" muito complexa e depende de uma anlise minuciosa de cada som dentro do contexto em que ele se insere. O importante notar que toda e qualquer interveno dos improvisadores no contexto de uma performance deve se revestir de sentido e acab a determinando os rumos da performance. H que se levar em conta, tambm, os momentos diferenciados e divers ificados que ocorrem dentro de performances particulares e neles examinar o peso de cada interveno dos msicos.40 um jogador de ping-pong esperando a rpida resposta de seu oponente: ele sabe o que vem (o servio) e sabe o que deve fazer quando vem; mas os detalhes de como e quando isto se d so determinados unicamente no momento da sua ocorrncia (Nyman, 1999, p. 18). Tambm na mesma pgina Nyman diz o seguinte: o jogo envolve correr riscos continuamente. As regras estabelecem limites para o que pode ser feito, mas mais importante ainda que, prov guias para a improvisao e a inovao . Nyman se refere aqui ao estabelecimento de roteiros e regras para a improvisao, procedimento este que evitamos em nossa proposta laboratorial (grupo Akronon). De qualquer maneira o texto nos d o ensejo de retomar a questo do jogo. A idia de jogo foi esboada no item anterior quando colocamos a questo da inteno de escuta que emerge enquanto uma necessidade -fato este que vai remeter ao conceito de autopoise que veremos mais adiante no texto. Para Huizinga o jogo, genericamente falando, tem importncia fundamental e se configura enquanto uma atividade primordial de procedimento vital. Para ele "o jogo mais antigo que a cultura Na forma e na funo do jogo, que em si mesmo uma entidade independente desprovida de sentido e racionalidade, a conscincia que o homem tem de estar integrado numa ordem csmica encontra sua expresso primeira " Huizinga (Huizinga, 1993, p. 3, 21). Para Huizinga o jogo se coloca antes mesmo da linguagem como manifestao pr-significante do vivo: Desde j encontramos aqui um aspecto muito importante:mesmo em suas formas mais simples, ao nvel animal, o jogo mais que um fenmeno fisiolgico ou um reflexo psicolgico. Ultrapassa os limites da atividade puramente fsica ou biolgica. uma funo significante, isto , encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa 'em jogo' que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido ao. Todo jogo significa algo Encontramo-nos aqui perante uma categoria absolutamente primria da vida, que qualquer um capaz de identificar desde o prprio nvel41 animal Como a realidade do jogo ultrapassa a esfera da vida humana, impossvel que tenha seu fundamento em qualquer elemento racional, pois nesse caso, limitar-se-ia humanidade (Huizinga, 1993, p.3 a 6). Entendemos ento que o jogo est na origem da prpria atividade do vivo. atravs do jogo que, inicialmente, o vivo se coloca em movimento, se desloca, adquire dinamismo, interage, se acomoda ou se adapta svrias situaes reais. Enfim, atravs do jogo que se vive. Aqui ele encarado como um conceito interdisciplinar aproximado das cincias biolgicas. H, por outro lado, o conceito de jogo ideal formulado por Gilles Deleuze. Deleuze nos diz que no basta opor um jogo 'maior ' ao jogo menor do homem, nem um jogo divino a um jogo humano. Para instaurar este jogo ideal preciso imaginar outros princpios, aparentemente inaplicveis, mas graas aos quais o jogo se torna puro. Ao contrrio do jogo 'menor', neste noh regras preexistentes. Todas as jogadas so possveis pois cada lance inventa suas regras. Sem a inteno de dividir o acaso em um nmero de jogadas distintas, o conjunto de jogadas afirma todo acaso e o ramifica em cada jogada . No jogo ideal portanto, as jogadas noso numericamente distintas. Elas tm qualidades distintas,"todas so as formas qualitativas de um s e mesmo lanar ontologicamente uno." (LS, p.62). Assim tambm a improvisao livre: um jogo dos problemas e da pergunta e "no do categrico e do hipottico"(LS, p. 62). O jogo ideal e a livre improvisaoso como a realidade do prprio pensamento. Este conceito de jogo ideal se ope ao conceito genrico estabelecido por Huizinga que diz que uma das principais caractersticas positivas do jogo que ele cria ordem e ordem. Introduz na confuso da vida e na imperfeio do mundo uma perfeio temporria e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta: a menor desobedincia a esta "estraga o jogo"(Huizinga, 1993, p. 13). Assim, parece que o jogo ideal o prprio jogar em que ainda no se formalizaram regras. Ele , nas palavras de Deleuze, um ritornelo primordial de territorializao anterior prpria territorializao. Nestes termos, esta nos parece ser a diferena entre42 a improvisao idiomtica (jogo com regras) e a nossa proposta de uma improvisaono idiomtica (jogo ideal). Para reforar esta relao do jogo com as diversas formas de improvisao lembremos que as lnguas saxnicas utilizam o mesmo verbo para jogar, tocar e brincar -to play. a conversa Deslocando agora a discusso para as questes ligadas ao processo dinmico da improvisao e para a forma como esta se estrutura, podemos traar um paralelo possvel desta nova idia de escuta (entendre)-e a interao que se instala entre os msicos neste tipo de fazer musical -, com a conversao que se desenrola de maneira livre e, onde a interveno de cada participante, ao mesmo tempo que a constri, a modifica e vai assim desenhando seus rumos. "Caminantes, no hay camino, el camino se hace al caminar"24 . Alm disso, a conversa -que pode, tambm ser pensada como uma espcie de jogo -se d, geralmente, de maneira no hierrquica, no determinista, no dualista e pressupe dois momentos interligados, simultneos, mas distintos: o momento do pensamento (considerado aqui como uma linha de fora), interiorizado e o momento da expresso em que se d a interao. Aqui, a linguagem atualiza de maneira particular o contedo do pensamento. Na improvisao tudo se desenrola como uma conversa em que vrios assuntos despontam dependendo do roteiro de improvisao ou do modo de jogo que se tenha criado e ao sabor de atos constantes de relacionamento entre vrios elementos e componentes. um agenciamento muito complexo e diversificado. Uma rede de relacionamentos,uma cartografia, uma geografia que desenhada a duas ou mais mos dentro de um plano. Num processo desta natureza o engajamento integral dos indivduos faz com que o processo se potencialize. Da mesma forma, uma conversa se desenrola de maneira mais instigante, proveitosa e fecunda - bem sucedida -quanto mais interessados e empenhados esto os "conversadores". O interesse e o 24 Inscricao do sc. XII escrita nos muros de Toledo, utilizada por Luigi Nono na composicao de Caminantes Ayacucho.43 empenho dependem de que haja "sucesso" na conversa. Este sucesso se define na medida em que a ao/interveno de cada um dos participantes da conversa/performance se torna uma fora significativa no tecido geral da conversa: estabelecendo trocas, influenciando, sofrendo e causando transformaes neste tecido. O grau de interao entre os conversadores a medida do sucesso da conversa. Apesar de que, aparentemente, muitas vezes o assunto o que move a conversa, a prpria necessidade ldica, autopoitica de conversar que estimula os participantes. Na conversa no existem regras pr-existentes; o que existe uma forma de relacionamento entre os participantes que acaba desenhando os rumos da conversao. Na conversa h trocas/interaes as mais diversas: de informaes, opinies, sensaes, olhares, etc. Poderamos dizer que h trocas que esto no territrio da linguagem verbal, do discurso, da representao e outras que esto no territrio dos afetos, das sensaes e das emoes (num parelelo com as trocas entre as formigas a partir dos feromnios). Cada participante da conversa vem com expectativas diferentes, estados emocionais diferentes e o resultado das conversas , o mais das vezes, imprevisvel. A conversa se sustenta -tem sucesso enquanto houver interesse por parte dos participantes e este interesse est ligado s possibilidades reais que cada um tem de ser ouvido, de ouvir e de participar ativamente. Na realidade, cada um participa na medida de suas possibilidades,segundo suas caractersticas pessoais e na medida da sua relao com o meio (meio este que incli todos os outros participantes). Se s um fala eos outros ouvem, temos um discurso e no uma conversa. O filsofo Gilles Deleuze descreve deste modo a conversa e a relao desta com a noo de devir: Um encontro talvez a mesma coisa que um devir ou npcias/ /Ele designa um efeito, um ziguezague, algo que passa ou que se passa entre dois como sob uma diferena de potencial/ /Dizamos a mesma coisa para os devires: no um termo que se torna outro, mas cada um encontra o outro, um nico devir que no comum aos dois, j que eles notm nada44 a ver um com o outro, mas que est entre os dois, que tem sua prpria direo, um bloco de devir, uma evoluoa-paralela. isso a dupla captura, a vespa E a orqudea: sequer algo que estaria em um, ou alguma coisa que estaria no outro, ainda que houvesse uma troca, uma mistura, mas alguma coisa que est entre os dois, fora dos dois, e que corre em outra direo. Encontrar achar, capturar, roubar, mas noh mtodo para achar, nada al m de uma longa prepara o .(grifo nosso). Roubar o contrrio de plagiar, de copiar, de imitar ou fazer como. A captura sempre uma dupla-captura, o roubo, um duplo-roubo, e isso que faz, no algo e mtuo, mas um bloco assimtrico, uma evoluoa-paralela, npcias, sempre "fora" e "entre". Seria isso, pois, uma conversa (D, p.15). Assim tambm, a improvisao em seu processo dinmico se aproxima deste conceito da conversa.Seu resultado, sua forma de ser (seu devir) um "entre" que no percebido e vivido da mesma maneira pelos participantes que a geram. Ao mesmo tempo, s esta conjuno especfica25 , esta qualidade de interao que capaz de gerar esta forma de devir. Devir no sentido de que no se configura enquanto um objeto ou uma representao, mas sim enquanto um processo, um "vir a ser". Este resultado de uma interao humana, de um processo de racionalizao, na medida em que racionalizao significa "instaurar relaes humanas numa multiplicidade qualquer"(PV, p.13,14). Este tipo de racionalizao tem, no a funo de representar, mas sim de atualizar uma potncia, instaurando relaes humanas numa matria sonora. A livre improvisao pode ser, portanto, este processo de racionalizao especfico que se d enquanto conversa num determinado plano de consistncia. Cada improvisao e cada conversa preparada ("numa longa preparao") num contexto que envolve uma srie de elementos 25 Segundo Chtelet, citado por Luiz B.L. Orlandi no livro de Deleuze sobre a filo sofia de Chtelet, o devir ativo, singularizado (o caso, o acontecimento ou configurao de acontecimentos -no nosso caso, o plano de consistncia especfico de cada atividade de livre improvisao musical) e originado na potncia -eu sou na medida em que exero a minha potncia -"compe-se como um movimento natural que explor a vizinhanas segundo conexes no pr-estabelecidas, indo do coletivo ao individual e inversamente" . (PV, p.15)45 constitutivos. Esta preparao parte do que chamaremos de plano de consistncia. No entanto, a analogia da improvisao com a como todas as analogias, tem suas limitaes. O problema neste caso que, no caso da conversa real temos o baseada em elementos codificados Isto , os elementos concretos da linguagemconversa,predomnio de uma interao e representativos. -as palavras e frases escritas oufaladas -no tem aparentemente26 , valor em si; eles remetem aos seus significados que resultam de processos complexos d e agenciamento coletivo e pragmtico (isto : os significados so indissociveis de seus usos reais). Colocando de outra maneira: a substncia fonolgica no tem um valor em si e sim um valor relativo sua capacidade de remeter aos significados codificados (semntica) na lngua. J no caso da improvisao musical livre (como de resto, em qualquer linguagem artstica) noh este predomnio do elemento semantizado. O que importa , em primeiro lugar, a prpria substncia concreta e posteriormente uma gramaticalidade que se forja no processo e que diz respeito estruturao27 , e ao encadeamento dos valores propriamente musicais28 . Mesmo no contexto da improvisao idiomtica, os significados e sentidos que revestem os signos/gestos musicais que se organizam em torno de uma gramaticalidade especfica, no se referem a uma semntica paralela da linguagem verbal e assim, no remetem a outros signos que no musicais29. Isto porque, como nos diz Deleuze, a arte o territrio das sensaes e dos perceptos. Nela noh-ao menos26 Veremos mais adiante, quando abordarmos a questo das constantes e das variveis na linguagem, que no se trata exatamente disto, uma vez que nos processos de comunicao, a forma e o c ontedo estabelecem conexes de diferentes naturezas que devem ser examinadas em seus cont extos especficos de atualizao. 27 Poderamos tambm dizer, conforme Maturana e Varela, a partir de um processo de c onfigurao, ou comonos diz Deleuze: "a orelha se torna orelha humana quando o objet o sonoro se torna musical. o conjunto muito diversificado dos processos de racionalizao que constitui o devir ou a ativi dade do homem " (PV, p.27) 28 Citando Pierre Schaeffer: "Podemos nos interrogar sobre o som primeiramente e nquanto um ndice (de sua fonte causal), ou tambm pelos significados de que ele portador, ou enfim escutar o som em si mesmo, numa atitude bem particular que denominaremos como escuta reduzida. Esta escuta se liga somente aos efeitos do som: forma, matria do objeto que ns percebemos. . (Schaeffer,1998, p.66) 29 Poderimos aqui citar o pequeno trabalho de Hanslick que apesar de sua antiguid ade, a este respeito nos parece muito atual:" pergunta de o que se expressa com este material sonoro, cab e responder: idias musicais/ /O contedo da msica so formas musicais em movimento/ /A msica tem sentido e lg ca, mas musicais, um idioma que falamos e entendemos mas que no somos capazes de traduzir ." (Hanslick, 1947, p. 48 a 50)46 direta e intencionalmente -criao de conceitos, que papel da filosofia, nem de funtivos ou funes, que papel da cincia. E a partir da "manipulao das substncias" que se constrem as sensaes. Ou de um processo de racionalizao que instaura relaes humanas na matria. o organismo vivo -autopoiese , multiplicidade e complexidade Gostaramos agora de situar a livre improvisao num contexto mais amplo em que convergem muitas formas de pensamento e conhecimento (artstico e cientfico) da contemporaneidade. Existem hoje, enquanto resultado de uma crescente interdisciplinaridade entre as cincias e do desenvolvimento das novas teorias da complexidade30 e da cognio, formas de ver o mundo como um todo inabarcvel e complexo, em que as causalidades noso unvocas e os movimentos resultantes das interaes estabelecidas entre os vrios sistemas, engendram realidades sempre mltiplas, dinmicas e altamente variveis. Estas novas formas de ver o mundo se refletem de diversas maneiras na produo artstica atual -que , neste contexto, encarada como uma entre outras formas de conhecimento. No campo da reflexo esttica por exemplo, o escritor italiano talo Calvino manifesta este tipo de preocupao quando fala de uma literatura que busca as totalidades mltiplas, caracterizada por uma forma de tratar o "romance contemporneo como enciclopdia, como mtodo de conhecimento e principalmente como rede de conexes entre os fatos as pessoas e o mundo"(Calvino, 1998, p.121). Para ele, a grande tarefa da literatura contempornea " saber tecer em conjunto os diversos saberes e os diversos cdigos numa viso30 Talvez o mais importante formulador das teorias da complexidade seja o profes sor Ilya Prigogine, prmio Nobel de qumica em 1977 em seu livro A Nova Aliana. As teorias de sistemas complex os tm atualmente, ampla aplicao nas cincias cognitivas, na sociologia, na biologia e nas investigaes so bre inteligncia artificial. Alm disto a teoria do sistemas complexos se apresenta enquanto propos ta interdisciplinar estabelecendo pontes e conexes entre diversas reas do conhecimento. Por exemplo, n o contexto de uma investigao sobre a interao entre as formigas e relacionando o funcionamento do formi gueiro com o funcionamento das redes neurais, a biloga Deborah M. Gordon define assim os siste mas complexos: "Unidades bastantes simples geram um comportamento global complicado/ /Em ambos os sistemas, unidades relativamente simples (formigas ou neurnios), usando estmulos locais, pod em realizar comportamento complexo, global". (Gordon, 2002, p. 115,116).47 pluralstica e multifacetada do mundo"(Calvino, 1998, p. 127). Numa perspectiva como esta, tanto os romances tratados por Calvino em seu livro -tais como, Quer pasticciaccio brutto de via Merulana de Emilio Gadda, Em busca do tempo perdido de Proust, El jardin de los senderos que se bifurcan de Borges e o Il castello dei destini incrociati de sua prpria autoria -quanto uma proposta de livre improvisao musical como a que investigamos aqui, que tem por pressupostos uma escuta mltipla e uma interao ativa entre as distintas biografias musicais dos msicos envolvidos na performance, manifestam uma vis o de mundo enquanto multiplicidade e complexidade ; um "sistema de sistemas31 , em que cada sistema particular condiciona os demais e condicionado por eles"(Calvino, 1998, p.121). Podemos observar que todas estas produes se apoiam na conexo entre sistemas complexos e parecem querer demonstrar que em nossa poca todas as formas de arte "vem se impregnando dessa antiga ambio de representar a multiplicidade das relaes, em ato e potencialidade"(Calvino, 1998, p.127). interessante notar nas reflexes estticas de msicos envolvidos com livre improvisao, a emergncia destas questes a partir de um outro ponto de vista. Citamos aqui a violista e terica da livre improvisao LaDonna Smith, em texto publicado na revista eletrnica "The Improvisor", em que ela procura traar um paralelo entre a improvisao e o comportamento humano e por extenso, todo organismo vivo. Aqui, so evidentes as influncias do pensamento Zen: Ao reconhecer a improvisao como um meio de existncia no dia a dia,como um importante fator de sobrevivncia, nos damos conta que vivemos a vida de um momento para o prximo. Na progresso de acontecimentos a que ns chamamos 31 Em seu livro sobre msica e processos dinmicos Iazzetta escreve: Pode-se encontr ar na natureza diversos exemplos onde um sistema complexo exibe no nvel macro-estrutural uma aparncia de o rganizao, simplicidade e regularidade o que leva a crer que estes sistemas so regidos por l eis deterministas. Quando, por outro lado, se vai ao nvel micro-estrutural, observa-se, em geral, que a prof uso de relaes entre as unidades e entre as sub-estruturas so regidos por processos estocsticos. Pode-se e ncarar dessa maneira a formao de um embrio, por exemplo, onde a agregao catica das molculas gera a estrutura astante harmnica e regular do ser vivo (Iazzetta, 1993, p. 47).48 vida surgem, ao lado de nossas reaes a estes acontecimentos, muitas vezes, eventos que so imprevistos. O acaso se impe sobre o previsvel, o conhecido se torna novamente elemento do desconhecido. A inevitabilidade das mudanas atravs de processos de desintegrao nos d um modelo da realidade, em ltima instncia, como improvisao. Quem diria que a realidade pr-planejada? Muitas vezes, mudanas ou descobertas significativas podem acontecer sem esforo ou por acaso; mas pela mera participao no fluxo natural Outras vezes ocorre com muito clculo e planejamento, um direcionamento emprico de passos que nos conduzem de um ponto a outro (Mas) h sempre a rea cinzenta do desconhecido, da procura por respostas ou direo, ou o territrio do processo. Este o territrio da improvisao.32 Todas estas formas de pensamento produzem ressonncias em nossas reflexes e vivncias e vo nos auxiliar na tarefa que nos propusemos de investigar como preparar um ambiente para que a improvisao musical livre (sem deixar de estabelecer as conexes com a improvisao idiomtica) seja possvel e potente. Como se sai do caos e se inaugura um processo vivo? Ou seja, como pensar a improvisao de modo a consider-la comparvel a um organismo autopoitico que surge como resultado e expresso de um processo que gera uma identidade mantendo em sua relao com o ambiente, constantes trocas sem perder esta identidade. Gostaramos de estabelecer tambm as conexes entre o conceito de autopoise e o jogo: podemos apresentar a improvisao (livre ou idiomtica) como uma manifestao privilegiada de uma atividade autopoitica do organismo vivo que o jogo. O jogo enquanto necessidade,constituinte da autopoise, enquanto ritornelo territorializador -segundo Deleuze -e a improvisao enquanto uma forma de manifestao do jogo. Humberto Maturana descreve da seguinte maneira o conceito de autopoiese: 32 http://www.the-improvisor.com49 percebi que o ser vivo no um conjunto de molculas, mas uma dinmica molecular, um processo que acontece como unidade separada e singular como resultado do operar, e no operar, das diferentes classes de molculas que a compem, em um interjogo de interaes e relaes de proximidade que o especificam e realizam como uma rede fechada de cmbios e sntese moleculares que produzem as mesmas classes de molculas que a constituem, configurando uma dinmica que ao mesmo tempo especifica em cada instante seus limites e extenso. a esta rede de produes de componentes, que resulta fechada sobre si mesma, porque os componentes que produz a constituem ao gerar as prprias dinmicas de produes que a produziu e ao determinar sua extenso como um ente circunscrito, atravs do qual existe um contnuo fluxo de elementos que se fazem e deixam de ser componentes segundo participam ou deixam de participar nessa rede, o que neste livro denominamos autopoiese (Maturana, 1997, p. 15). Assim tambm, a proposta de livre improvisao conforme a delineamos aqui, deve ter como ponto de partida a preparao de um ambiente que se constitui como uma espcie de organismo autopoitico conforme a definio de H.Maturana acima citada. Neste ambiente/organismo que se erige sobre uma necessidade de existncia33 , se estabelecem relaes entre os msicos, eles mesmos pensados como sistemas complexos a partir das suas vivncias musicais, com seus instrumentos e com os idiomas a que eles foram submetidos durante sua formao. Estes so os componentes histricos que incidem diretamente na performance pois condicionam a atuao dos msicos. Estes componentes histricos, pr-ex