livro feliz de ti que acreditaste (amostra)

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A par de uma análise científica dos textos bíblicos, propõe-se uma leitura espiritual das passagens onde Maria é modelo de Fé. Pode comprar-se a versão em papel aqui: http://bit.ly/Feliz_Acreditaste

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JUAN JOSÉ BARTOLOMÉ

FELIZ DE TI, QUE ACREDITASTE

ETAPAS DO CAMINHO DE FÉ DE MARIA

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INTRODUÇÃO

“Quero referir-me principalmente àquela peregrinação da fé, na qual a Bem-aventurada Virgem Maria avançou.

(JOÃO PAULO II, Redemptoris mater 15.)

Maria, a bem aventurada

A memória de Maria, que a nossa geração deveria fazer, teria que reproduzir a da geração apostólica, fixada na tradição evan-gélica. O valor exemplar de Maria não se baseia na sua experiên-cia pessoal de Deus, uma vivência única e intransferível, remota e irrepetível: sendo virgem, poder ser mãe… de Deus! A relevância desta proeza de Maria não está na excecionalidade do aconteci-mento, mas na sua exemplaridade: Maria continua a mostrar-nos o que Deus exige àqueles que, como ela, avançam confiados nos seus planos e, sendo servos, se declaram dispostos a fazer o que Ele quer. Aventurar-se no mesmo destino é a oportunidade de qualquer crente.

1. Uma boa razão – divina! – para nos entusiasmarmos com Maria

Seria bom que nos perguntássemos se as razões para nos entusiasmarmos com Maria são as mesmas que Deus teve quando ficou seduzido pela virgem de Nazaré. As mil boas razões que podemos ter coincidem com a razão que convenceu Deus a escolhê-la como mãe? Maria representa para nós o que significou para Deus? Atrevemo-nos a contemplá-la com os olhos do seu Deus, com o coração do seu Filho? Como amamos a Maria: como a imaginamos nós ou como aquela que seduziu o nosso Deus?

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Porque de pouco serviria uma devoção mariana, por mais arraigada e sincera que fosse, que não estivesse fundada no que-rer de Deus. Deveríamos perceber que foi Deus quem optou por Maria muito antes que a nós nos ocorresse pensar nela; foi Ele quem primeiro a elegeu para Mãe e, só depois, é que desfrutámos da sua maternidade divina; foi antes, muito antes, serva de Deus e só depois senhora nossa.

Maria pode maravilhar-nos, certamente; mas não pelo que fez por Deus, nem – muito menos – pelo que pode fazer por nós, mas por tudo o que Deus fez nela. Maria é cheia de graça porque Deus lha concedeu gratuitamente, e não porque nós, por muito generosos que sejamos, lha atribuamos.

1.1. Contemplar Maria com os olhos de Deus

Vendo bem as coisas, a única forma justa de ver e de vene-rar Maria é aquela que reflete o modo como Deus a contemplou e amou. O olhar para Maria que mais a respeita, a piedade que melhor a venera, o culto que se lhe deve, o amor que mais lhe convém, são os daqueles que mais se aproximam do olhar entu-siasmado de Deus por Maria e que melhor o refletem. A devoção que Maria merece é a que copia a devoção que Deus sente por ela. Se em Maria descobríssemos o que encontrou o nosso Deus, o nosso amor por Maria seria, evidentemente, mais divino e a nossa devoção mariana seria, sem dúvida, mais evangélica. O que não é pouco.

O Evangelho é, antes de mais, um desvelar de Deus, tam-bém nos episódios nos quais Maria está presente e adquire certo protagonismo. Tudo quanto a tradição evangélica recorda como acontecimento mariano está sempre ao serviço da manifestação divina: é palavra de Deus, revelação e promessa. Mais do que contar-nos como foi Maria, explica-nos como é Deus e como está empenhado em sê-Lo assim para nós.

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1.2. Contemplar a Deus na vida de Maria

A biografia evangélica de Maria pode parecer-nos escassa de notícias importantes e parca em situações portentosas. E é-o, de facto. Se a imagem evangélica de Maria é palavra de Deus para nós, conviria que nos concentrássemos no que Deus nos diz d’Ele falando de Maria, em vez de nos afligirmos com a escassez de notícias biográficas que dela nos transmitem os evangelhos ou em vez de nos surpreendermos pelo mitigado entusiasmo perante a pessoa histórica.

Mais que inventar o inecessário, alimentando a curiosidade pelo factual, seria melhor escutar o fundamental1, ou seja, quanto nos diz Deus sobre Maria ou, formulado de modo mais preciso, descobrir, naquilo que se diz sobre ela, o que Deus espera de nós. A história evangélica de Maria vale, não pelo que nos conta dela, mas pelo que nos revela de Deus; na versão evangélica de Maria reflete-se o rosto autêntico do Deus vivo. A Maria do evangelho é, neste sentido, ícone do nosso Deus: o que Deus foi para Maria continua a querer sê-Lo para cada um de nós.

1 Alimento o desejo – não ainda suficientemente respeitado – de uma santa: “Todos os sermões que tenho ouvido sobre a Santíssima Virgem deixam--me fria. Como desejaria ser sacerdote para pregar sobre a Virgem Maria! ... Sobretudo, teria evidenciado até que ponto é desconhecida a vida da Virgem. Não teria que dizer dela coisas inverosímeis ou que não se saibam… Para que um sermão sobre a Santíssima Virgem produza fruto, é necessário que se mostre a sua vida real, tal como o evangelho nos deixa entrever, e não a sua vida hi-potética; e adivinha-se muito bem que a sua vida real, em Nazaré, e mais tarde, teria que ter sido completamente normal… Mostram-nos a Santíssima Virgem inacessível…; teria que dizer que ela vivia como nós e sublinhar as provas tira-das do evangelho, onde lemos: ‘Não compreenderam as palavras que lhes disse’ (Lc 2,50) e também: ‘Seu pai e sua mãe estavam admirados com o que se dizia d’Ele’ (Lc 2,33).” (TERESA DE LISIEUX, Novissima Verba [Lisieux 1926] 154).

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Maria merece de nós, pois, algo mais que simples devoção. Maria merece maiores atenções do que as que lhe dedicamos. Não a veneramos pelo que nos possa conceder. Não são os favores que pode fazer-nos – as graças que, em nosso favor, pode arran-car de Deus – as razões que nos devem levar a honrá-la. Nunca seriam muito boas tais razões, por muito necessários que fossem para nós os seus favores. Motivos de sobra para admirar Maria terá aquele que contemple as maravilhas que nela Deus realizou.

2. Maria no Novo Testamento

Por mais óbvio que seja, nem sempre nos damos conta disso: o NT presta escassa atenção a Maria, a virgem de Nazaré (Lc 1, 26-27), a mãe de Jesus (Jo 2,1). É mais que evidente o desequi-líbrio que existe entre a veneração entusiasmada que a igreja tributa à mãe de Deus e o tratamento esporádico que a sua figura histórica recebe na tradição evangélica. Este facto, uma vez iden-tificado, sem dúvida que dá que pensar.

2.1. O que o NT diz sobre Maria

Ainda que não nos agrade, a presença de Maria no NT é escassa. Um simples inventário das passagens e citações que a ela se referem demonstram-no-lo sobejamente.

2.1.1. Só dois textos não evangélicos

Fora dos evangelhos (e Actos dos Apóstolos), só temos podido citar dois textos que poderiam fazer referência a Maria: Gal 4,4, onde Paulo confessa que Deus enviou o seu filho, nascido de mulher; e Ap 12,1-18, onde aparece a mulher vestida de sol que dá à luz o messias. Ambas as passagens são, no entanto, mais mariológicas que marianas: não se centram na pessoa concreta de Maria, a virgem de Nazaré.

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O texto paulino afirma a condição humana, frágil (cf. Jb 14,1) do filho de Deus; nada diz sobre o modo de tornar-se homem; nem a ausência de varão evoca a conceção virginal de Jesus, nem a menção de “mulher” obriga a negá-la. Paulo, que nas suas cartas não menciona Maria, guarda silêncio sobre a conceção virginal de Jesus. Em relação ao outro texto, o do Apocalipse, a descoberta da biblioteca de Qumrán contribuiu para entendê-lo melhor; a mulher é figura de um resto fiel de Israel, do qual se esperava que desse à luz o messias (cf. Is 54,60; Os 2,21-25; 1QH 3,7-12); o autor do Apo-calipse vê cumprido nesse nascimento o dia de Páscoa; a mulher é símbolo de uma comunidade, mais celeste que terrestre. Ainda que seja proposta pela exegese patrística, celebrada na tradição litúrgica e popular na iconografia religiosa, a identificação direta com a mãe de Jesus só é pensável numa leitura acomodatícia do texto.

2.1.2. Apenas dois dos quatro evangelhos

À exceção dos textos de Lc (1, 26-38.39-45.46-56; 2, 1-10.21-40.41-52; 11, 27-28; Act 1,14) e Jo (2, 1-12; 19, 25-27), Maria não é recordada na tradição evangélica. E, sempre que aparece, é de forma tangencial.

• Marcos

O episódio sobre a verdadeira família de Jesus (Mc 3, 31-35; Mt 12, 46-50; Lc 8, 19-21), um relato sobre cuja historicidade básica não há dúvidas (cf. Jo 7, 5), denota uma distância real entre Jesus e os seus (cf. Mc 3, 20-21).

No episódio, nem Maria nem os seus irmãos são citados pelos seus nomes; mas é evidente que para Marcos (e Mateus) a família de Jesus não se encontrava entre os que escutavam e faziam a vontade de Deus. Lucas, o evangelista que mais retocou o episó-dio, deixa entrever o esforço por aproximar os acontecimentos à imagem de Maria que lhe é própria (cf. Lc 11, 27-28).

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Outras referências aos pais de Jesus e/ou irmãos (Mc 6, 3; Mt 13, 55; Lc 4, 22; Jo 1, 45; 6, 42) são menos conclusivas. A gente que ouve Jesus pergunta-se pela sua família, aquela pelo qual ele é conhecido, o que constitui uma forte objeção para acreditar n’Ele. Enquanto Mt 13, 55/Lc 4,22 designam a Jesus como filho do carpinteiro ou filho de José, Mc 6, 3 identifica-O como carpin-teiro, filho de Maria; tanto Mateus como Lucas, que mencionam explicitamente a conceção virginal de Jesus (Mt 1, 18. 20-23; Lc 1, 30-35), pretendem insistir na falta de fé dos seus conterrâneos, enquanto Marcos parece aludir aqui à conceção virginal.

• Mateus

Mateus não está demasiado interessado em Maria, a mãe de Jesus (Mt 2, 11). No chamado relato da infância de Jesus (Mt 1, 18-2,23), a sua personagem é José; ele é quem recebe o anúncio (Mt 1, 18-24) e as visões, que marcarão o destino do menino (Mt 2,13-15.19-23). Tal como Lucas, afirma a maternidade vir-ginal de Maria (Mt 1, 18); o termo virgem deve ser entendido no sentido de donzela (cf. Is 7, 14), que excluiria relações sexuais. O motivo da maternidade virginal é uma variante do tema do nascimento impossível (Gn 18, 13-14; Lc 1, 34): mais que pro-nunciar-se sobre o estado da mãe, o texto afirma a natureza do filho, a sua origem divina; uma intervenção divina supre a inca-pacidade para gerar, devido à esterilidade ou virgindade: o menino que há de desempenhar uma missão salvífica em nome de Deus é querido só por Ele e por Ele é doado ao seu povo.

2.2. A imagem lucana de Maria

Ninguém dentro do NT, evangelista ou não, concedeu a Maria uma atenção comparável à que Lucas lhe dedicou na sua obra. Há que reconhecer, contudo, que na obra lucana Maria nunca é tema central, nem motivo frequente sequer; contudo, chama a atenção a estreita vinculação ao mistério de Cristo que lhe atribui.

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O interesse de Lucas por Maria enquadra-se bem com a sua tendência de realçar as pessoas (Lc 7, 36-50; 10, 38-42; 19, 1-10; 23, 39-43), mulheres incluídas (Lc 8, 2-3), que acompanharam Jesus durante o seu ministério público e a vida da comunidade primitiva (At 16, 14-15.50; 18, 26). É até provável que, no am-biente de Lucas, a figura de Maria gozasse de certa veneração (Lc 1, 48; cf. 11,27). O motivo básico devemos buscá-lo, no entanto, na própria imagem que o evangelista oferece de Maria, a de cren-te exemplar, imagem que corresponde com o seu interesse mais amplo em exortar os seus leitores a uma fé inquebrantável (Lc 7, 50; 8,12-13.48; 17, 5-6.19; 18, 8; 23, 32).

A imagem lucana de Maria sublinha, além disso, uma dimensão profundamente humana: é uma virgem já desposada, que aceita uma maternidade que não estava nos seus planos, pela simples confiança no seu Deus; a sua pronta disponibili-dade em atender o seu próximo, com a qual estreia a materni-dade divina; a maternidade em Belém, em circunstâncias peno-sas; a perda e recuperação do seu filho durante uma viagem a Jerusalém; o progressivo distanciamento do seu filho, durante o seu ministério público; a ausência da mãe no relato da paixão. Uma verdadeira devoção mariana deveria saber repetir o acerto lucano, sem separar a sua exemplar disposição à obediência a Deus, da normalidade de uma vida quotidiana e, na sua maior parte, insignificante.

Lucas é o autor do NT que mais influenciou a veneração eclesial de Maria. Isto não significa que a sua peculiar visão da figura da mãe de Jesus tenha sido assumida com fidelidade. Dois são os seus traços básicos: Maria é bem-aventurada por ter acre-ditado em Deus e ter-se mantido sempre crente n’Ele. Os escas-sos episódios que a tradição lucana nos recorda são marcos da sua aventura de fé; desde que toma conhecimento do plano que Deus tem para o seu povo até que, nas origens do novo povo de

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Deus, partilha esperanças e oração com os apóstolos, Maria é apresentada como a ouvinte de Deus e a sua melhor serva: faz o que escuta, vive a obediência (Lc 1, 38); e, como tal, é imagem profética da nova comunidade (Lc 11, 28).

2.3. A imagem joanina de Maria

Ainda que João empregue o nome de Maria umas quinze vezes para falar de três pessoas diferentes (Jo 11, 1. 2. 19. 20. 28. 31. 32. 45; 12, 3; 19, 25; 20, 1. 11: Maria, a de Betânia; Maria de Magdala; Maria, esposa de Cléofas), jamais o utiliza para designar Maria de Nazaré; para ele é sempre, e só, a mãe de Jesus (Jo 2, 1. 3. 5. 12; 19, 25.27). Parece querer identificar Maria mais pela sua relação com Jesus que por si mesma: a maternidade parece defi-ni-la melhor que qualquer outro traço ou acontecimento pessoal.

A presença da mãe de Jesus no quarto evangelho, ainda que escassa, é significativa. Ao contrário de Lucas, João não parece conhecer a conceção virginal de Jesus que, tanto na boca dos antagonistas (Jo 6, 42) como dos discípulos (Jo 1, 45), é chamado filho de José. João não tem necessidade de recorrer a ela para afirmar que Jesus procede de Deus (Jo 1, 1-18).

Os dois episódios que o quarto evangelho recorda são desco-nhecidos na tradição evangélica. Mas o elemento mais caracterís-tico não é este desconhecimento. João entende ambos os relatos em relação à hora de Jesus e à fé/fidelidade do discípulo. O pri-meiro assinala o início da hora de Jesus (Jo 2, 11); o segundo, o seu cumprimento (Jo 19, 30). Em ambos, Jesus dirige-se à sua mãe chamando-a, simples e insolitamente, mulher (Jo 2, 4; 19, 26); mas a sua presença, ativa na aceitação do que Jesus diz, possibilitará uma nova relação de Jesus com os seus discípulos (Jo 2, 11; 19, 27). Maria não é, em nenhum dos dois episódios, a personagem principal (Jesus), nem sequer secundária (os dis-cípulos); mas é imprescindível para que entre ambos surja ou se

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mantenha uma relação de fé (Jo 2, 11) e de fidelidade (Jo 19, 27). Que mais se poderia dizer?

2.4. Uma primeira avaliação

Não são poucos os que ficam surpreendidos, se não defrau-dados, ao tomarem consciência da escassa atenção que o Novo Testamento presta a Maria. Passam por alto dois factos que – mais que explicar tal desinteresse – ajudam a centrar a devoção pela mãe de Jesus mesmo no coração do evangelho.

Não pode ser casual que tenham sido os evangelhos os únicos livros do Novo Testamento que nos recordem Maria e a sua aven-tura de fé. Não podia ter ficado mais bem colocada a evocação canónica de Maria; ali onde as primeiras testemunhas recolheram quanto sabiam sobre «as obras e os ensinamentos de Jesus, desde o princípio» (Act 1, 1), não pode faltar Maria. A memória apostó-lica de Jesus resgatou – e para sempre! – Maria do esquecimento.

Por sóbria que se nos afigure a sua presença na tradição apostólica, ou pouco relevante o papel que lhe é atribuído, o facto é que isso mesmo obriga a manter o Cristo do evangelho perto daqueles que desejam aproximar-se da virgem de Nazaré. Ou seja, o crente há de ser mais evangélico se quiser ser verda-deiramente mariano.

Não é fruto do azar, também, que tenham sido Lucas e João os dois evangelistas mais recentes, por assim dizer, os mais pró-ximos de nós e portanto os mais afastados dos factos que narram, aqueles que nos transmitiram, mais que um relato biográfico da sua pessoa, o esboço da sua aventura de fé. Quanto mais débil se estava a tornar a memória apostólica, mais nítida aparece nela a figura de Maria; quanto mais provada a fidelidade das comu-nidades cristãs, mais exemplar a peregrinação de Maria (Lucas) e mais eficaz o seu acompanhamento na vida de fé dos discípu-

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los do seu Filho (João). As primeiras gerações cristãs que des-cobriram Maria como crente exemplar e mãe de discípulos fiéis, viviam perseguidas na sua fé e tentadas pelo aparente abandono do seu Senhor. A sua devoção por Maria não foi um passatempo inútil nem jogo de sentimentos; foi, e deveria continuar a ser hoje, ocupação para tempos difíceis.

Uma última, mas não indiferente, observação. A presença de Maria na tradição evangélica está sempre ligada a Jesus. Só em Act 1, 14, o único texto não evangélico do Novo Testamento que a men-ciona – já é casualidade! –, Maria aparece sem Jesus, mas está, em oração, junto aos seus representantes e discípulos: a exceção con-firma a regra. Assim, para entender Maria não podemos passar por alto tal vinculação: não é casualidade que a denominação de Maria que substitui o nome próprio seja, em João, a de mãe de Jesus.

O crente hoje, como os pastores em Belém um dia, depara-se com Maria sempre que e quando andar à procura do menino e caminhar até Ele (Lc 2, 12. 16). Este livro fala precisamente do caminho até Deus que consegue fazer-nos encontrar com Maria.

Característico da imagem evangélica de Maria é o ter sido pos-ta sempre em relação com Deus, subordinada a Ele. Mas o feito que melhor a define é que esta estreita relação não tivesse permanecido indiferenciada ao longo da sua vida. Foi, evidentemente, mais in-tensa nos inícios, antes e depois do nascimento de Jesus, tornou-se menos familiar durante a época do ministério público, e rara nos momentos finais, durante a semana da sua paixão e ressurreição.

Dar-se conta disto deve tornar-se iluminador para quem qui-ser estabelecer, e manter, uma sã relação com o Deus de Maria. O crente que aspira a uma experiência de Deus terá que aprender a percorrer um caminho no qual seja Ele quem tome sempre a inicia-tiva, fixe as metas e imponha os meios. Uma experiência de Deus sem sobressaltos, que se converta em rotina, que se viva sem vazios ou silêncios de Deus, não tem garantia de repetir o modelo mariano.

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PRIMEIRA ETAPA

Nazaré (Lc 1, 26-38)

A vocação, um chamamento ao impossível

Nazaré é o ponto de partida da aventura de fé de Maria: aí vivia, virgem já prometida a José, e foi aí foi Deus lhe propôs o seu plano e pediu o seu consentimento. Maria soube que Deus pensava em salvar o seu povo no mesmo momento em que soube que Deus estava a contar com ela: o anúncio do nascimento de Jesus coincidiu, pois, com o convite a ser mãe de Deus; a salva-ção do povo de Deus concorria com a vocação de Maria.

Ser chamada por Deus foi o início da aventura de fé que Maria percorreu; a assunção da própria vocação, o seu ponto de partida. Maria entra em contacto com Deus e os seus pla-nos quando lhe concedeu audiência e os assumiu como próprios. Deus chamou-a ao impossível: ser mãe permanecendo virgem, dar à luz o seu primogénito, o unigénito de Deus.

Queremos contemplar a nossa experiência vocacional à luz da vocação de Maria. Assim poderemos assumi-la e interpretá--la como ela, acolhendo a Deus e apropriando-nos do seu plano sobre nós.

Para Maria,

a vocação foi um chamamento gratuito: ser invocado por Deus é sempre uma graça. Na origem de toda a vocação está apenas Deus, que permanece como a sua exclusiva razão de ser. E se algo atraiçoa o facto de ser chamado por Deus é a confiança que põe no chamado. Daí que este fique em dívida permanente de confiança: fiar-se é a única respos-

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ta válida. Pois, como Maria, quem é chamado « encontrou graça diante de Deus» (Lc 1, 30).

a vocação de Maria começa e realiza-se como diálogo, con-siste basicamente numa conversa e termina quando – e se – não se continua a conversa. Todos os relatos bíblicos de vocação apresentam-se – mediata ou imediatamente – como diálogo com Deus, que escolhe a pessoa que chama e a mis-são que lhe encomenda, que se compromete pessoalmente com o chamado e que, inclusive, lhe facilita a resposta que dele espera. Responder a este diálogo possibilita aceder a Deus Pai, ter a Deus como Filho e possuir a Deus como Espírito. Nem mais nem menos: viver responsavelmente a própria vocação é caminho de experiência trinitária.

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NO INÍCIO, SEMPRE, UM DEUS SALVADOR QUE CHAMA

(Lc 1, 26-38)

I. O RELATO

Interrompendo a narração, já iniciada, da conceção de João (Lc 1, 8-25. 57-80), Lucas apresenta a cena da anunciação do nascimento de Jesus (Lc 1,26-38). Ambas, efeito de uma inter-venção divina extraordinária, têm um mesmo intermediário, Gabriel (Lc 1, 19.26). A superioridade do segundo anúncio torna--se evidente na origem mais milagrosa do nascimento (Lc 1, 15. 35), na reação mais perfeita do escolhido (Lc 1, 18. 20. 34. 38), na dignidade pessoal do anunciado (Lc 1,15-32). Há que notar duas diferenças entre ambos os relatos. O segundo anúncio, dirigido a Maria, não é precedido pela descrição de uma situação infeliz dos pais (Lc 1, 7); Deus não intervém na vida de Maria por misericór-dia. No anúncio a Maria não se louva a sua justiça pessoal, mas a graça divina (Lc 1, 6-28): a benevolência de Deus não tem aqui nenhum motivo prévio; o convite a ser mãe virgem é pura graça.

O episódio de Nazaré é uma unidade literária e teoló-gica. A estrutura formal do relato é clara: apresentação das personagens (Lc 1, 26-27), aparição do anjo e reação da virgem à saudação (Lc 1, 28-29), mensagem angélica e pergunta de Maria (Lc 1, 30-34), resposta do anjo e assentimento de Maria (Lc 1, 35-38a). A entrada do anjo (Lc 1, 26a) e a sua saída de cena (Lc 1, 38b) encerram um episódio onde ele teve sempre a iniciativa e Maria reagiu progressivamente, com a contempla-ção silenciosa (Lc 1,29), a pergunta aberta (Lc 1, 34) e o mais completo consentimento (Lc 1, 38). Por três vezes, o enviado desvela a Maria o projeto divino e outras tantas responde ela;

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Índice

INTRODUÇÃO: Maria, a bem aventurada ....................................................5

PRIMEIRA ETAPA: Nazaré .................................................................................. 15

NO INÍCIO, SEMPRE, UM DEUS SALVADOR QUE CHAMA ............... 17

SEGUNDA ETAPA: Ain Karem ..........................................................................51

O SERVIÇO COMO MISSÃO ............................................................................ 53

EVANGELIZAR ORANDO, MISSÃO MARIANA .......................................70

TERCEIRA ETAPA: Belém - Jerusalém ......................................................... 89

CONTEMPLAR A DEUS, OFÍCIO DE MÃE ..................................................91

UMA ESPADA NA ALMA, SALÁRIO DO SERVIÇO CUMPRIDO .... 108

QUARTA ETAPA: Jerusalém - Galileia .......................................................127

PERDER O FILHO E ENCONTRAR-SE COM DEUS ...............................129

QUINTA ETAPA: Caná - Calvário ..................................................................167

COM MARIA, E NUM BANQUETE, É MAIS FÁCIL SER CRENTE ......169

O PREÇO A PAGAR PARA TER MARIA COMO MÃE .........................178

ÚLTIMA ETAPA: Cenáculo ................................................................................185

MARIA, ENTRE APÓSTOLOS QUE REZAM ................................... 186

CONCLUSÃO: UM CAMINHO BEM-AVENTURADO DE FÉ ............193