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Eória O retorno da guerreira Julianna S. Santos Dezembro de 2011 Permitida a cópia e distribuição. Autora: Julianna Santana Santos Não autorizada qualquer alteração de formato, ou conteúdo. Material protegido pela Lei de Direitos Autorais. Conheça a Lei 9610.

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Page 1: Livro julianna i

Eória O retorno da guerreira

Julianna S. Santos

Dezembro de 2011

Permitida a cópia e distribuição. Autora: Julianna Santana Santos Não autorizada qualquer alteração de formato, ou conteúdo. Material protegido pela Lei de Direitos Autorais. Conheça a Lei 9610.

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SUMÁRIO A tutora Leonor..................................................................................................... 3 Elizabeth e o espelho.............................................................................................. 9 O testamento de Billie Grant................................................................................. 15 Memórias de Liz.................................................................................................. 21 O terrível pesadelo............................................................................................... 28 Surpresa do passado............................................................................................. 32 O casamento........................................................................................................ 40 O caçador de encarnados....................................................................................... 44 Eória um mundo novo.......................................................................................... 52 As respostas......................................................................................................... 58 A marca do guerreiro............................................................................................ 66 O encontro com o rei............................................................................................ 71 O presságio de Semíramis..................................................................................... 79 Recordações de uma vampira................................................................................ 84 O amor do passado............................................................................................... 91 O soldado injustiçado........................................................................................... 98 A arena............................................................................................................. 110 Julgamento precipitado....................................................................................... 117 Desfazendo desenganos....................................................................................... 122 Acusações dolorosas........................................................................................... 130 A morte do rei.................................................................................................... 135 O vampiro sombrio............................................................................................. 142 O traidor............................................................................................................ 149

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Capítulo 1

A tutora Leonor

Momento de angústia... Ele me encontrou... Na verdade, não sei se ele realmente me

encontrou ou se eu o atraí de alguma forma. Algumas pessoas acreditam em coincidências,

mas eu não faço parte delas.

Quem sou eu? Apenas alguém que já enfrentou a morte algumas vezes, o bastante para

saber a diferença entre, encarar o pior de frente ou fugir para lutar amanhã, e garanto que

qualquer que seja a decisão nunca será fácil.

Cidade de Clayton, Condado de Rabun, Georgia. 15 de junho de 2008, 07:00 AM.

-Elizabeth, abra a porta!

O barulho era ensurdecedor do lado de fora, minha tutora parecia querer entrar com porta

e tudo dentro do meu quarto.

-Elizabeth querida, tem um assunto importante o qual quero conversar com você, abra a

porta!

Bammm! Bammm! Bam!

Bem, isso era a novidade e era o que me fazia relutar em abrir, “conversar”, não me

lembro quando foi a última vez ou se houve alguma vez depois da morte do Bill, que ela tenha

tido necessidade de conversar qualquer coisa comigo e usado um tom tão preocupado e suave

como agora. Essa não era a “dona Leonor” que eu conheço. A não ser que o seu cérebro

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tivesse sido sugado e com ele toda a frieza, regras e impaciência que faziam da minha..., da

“Leoa” uma das pessoas mais irritantes que eu já conheci.

- Querida eu entendo que você tenha sua privacidade..., mas será que poderia abrir a

porta, é algo importante e do seu interesse eu garanto. Gostaríamos de conversar em particular

com você, está bem, querida!?

- “Gostaríamos”, ela disse isso? Sussurrei. Não soava mais suave e sim apelativo o que

era ainda mais estranho.

Eu sussurrei ainda mais baixo me certificando que somente eu ouvisse:

–“Eu entendo”, “importante”, “do seu interesse”, “querida”, eram muitas palavras

estranhas para mim vindas da boca da Leonor e de uma só vez.

“O que diabos estava acontecendo afinal?”

Eu acabara de acordar, com um barulho louco e ainda pensava estar dormindo quando

ouvi essas palavras e ao invés de me animar e pensar que enfim um pouco de humanidade

havia se apossado da minha tutora, vi-me preocupada, sem saber se abria ou não aquela

maldita porta, naquela hora tão indecente.

Leonor era simplesmente a tutora legal que o meu avô deixou para mim, caso

acontecesse alguma coisa a ele. “Leoa”, era assim que eu pensava nela, como uma leoa no

pior sentido da comparação; foi casada com o Bill por estúpidos quinze anos, além disso ela

era vinte anos mais jovem que ele o que a qualificava para o cargo de tutora... Bill supôs que

ela teria uma vida mais longa que a dele, no entanto, o Bill também achou que o grande

Jhonny, viveria mais tempo, e se enganou. E por falar em engano a “Leoa” não supriu as

expectativas do Bill quanto a mim, não após sua morte. Se ele achou que ela me amaria como

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uma “neta”, ou melhor, “filha”, ele se enganou. A vida na mansão era cada dia mais incômoda

e fria, embora nos respeitássemos. Por pura falta de sorte, ela era o parente mais próximo que

eu conhecia.

Meu pai era filho único e minha mãe cresceu num orfanato, ela não sabia nada sobre os

próprios pais ou parentes. Quando Leonor se casou com o Bill, o meu pai já tinha se formado,

casado com a minha mãe e eu tinha acabado de nascer na mansão. Nós morávamos em

Athens, Georgia. O meu pai decidiu ficar lá após ter cursado a universidade. Embora essa

distância sempre fosse motivo de discussão entre o Bill e o Jhonny, para a Leonor era um

tanto satisfatório. Meu pai, o “grande Johnny” como o Bill costumava chamá-lo, e, sua bela

esposa Margaret, eram visitantes toleráveis de tempos em tempos, para Leonor. Já que as idas

do Jhon a mansão dos Grants eram intercaladas, ano sim ano não. O que deixava o velho

bastante aborrecido. Como ele mesmo costumava dizer, nós éramos (vovô e neta), uma dupla

imbatível. Eu adorava as férias com ele. Ele era incrível.

Com o tempo descobri, que a “Leoa” era o tipo de mulher a qual se devia ter cautela em

chatear, caso contrário, como minha tutora, ela cortaria o pouco de regalias que eu ainda

possuía aquela altura. Ela tinha um filho, que não vejo desde o enterro do velho Grant, há dois

anos e meio. Não, ele não era filho do Bill Grant, mas sempre tinha tudo o que queria com ele,

o Bill simplesmente amava aquele garoto e a sua mãe, apesar de ter casado com ela em

regime de separação total de bens e com isso ter ganhado o apelido de “velha raposa”. Era

assim que ela o chamava. Então ele morre e nós descobrimos que a “velha raposa”, também

se esqueceu dela e do seu filho no testamento. Um casamento de quinze anos é um bom

tempo para se mudar de idéia quanto a bens; ou não.

Pelas minhas contas acho que ela está na faixa dos cinqüenta anos, mas nunca perguntei.

Com certeza, teria sido um crime interrogá-la sobre sua idade. Caso fizesse, certamente eu

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seria levada para um reformatório e esquecida lá até apodrecer, sem direito a visitas. Mulheres

vaidosas ficam ofendidíssimas quando o assunto é idade, por isso quando quero mantê-la

ocupada, às vezes, com cautela, dou a entender que ela está com uma aparência cansada e saiu

de fininho para que ela possa se intumescer de cremes anti-idade e aliviar sua rasa consciência

me deixando em paz.

A senhora Grant tinha se tornado uma mulher dura, mas apesar do jeito sisudo que ela

adquiriu com a viuvez, notava-se que ela ainda era bastante bonita. Certamente não parecia

nada ter a idade que eu desconfiava que ela tivesse. Ela simplesmente parecia ser pelo menos

dez anos mais nova do que qualquer idade que eu pudesse imaginar para ela. Fisicamente

tinha mais ou menos, um metro e oitenta de altura, cabelos loiros dourados, corte Chanel,

olhos escuros e questionadores, sorriso irônico nos lábios, daqueles meio sorrisos frios que

não pede muito esforço para ser dado, era dona de um corpo esguio e bem cuidado,

incrivelmente elegante.

Quando o Bill era vivo, ela parecia ser bem mais agradável, mas depois tudo mudou.

-Ok, se você não abrir, eu vou chamar um chaveiro e as coisas ficarão bastante difíceis

pra você mocinha!

Palavras mágicas, chaveiro e difíceis.

Olha lá a Leonor que eu conheço isso significa que eu não estava sonhando, e que

também algo muito estranho estava acontecendo.

-Ok, ok, Já estou indo...

Ao abrir a porta, quase imediatamente, ela se aproximou do meu rosto e com aqueles

olhos escuros, deu seu sorriso pouco agradável e disse:

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-Aí está você!

Aquele olhar de cima a baixo me fez gelar, mas eu raramente perdia minha máscara de

durona na frente daquela mulher. Antes que ela continuasse, eu disse:

-Posso ajudar em alguma coisa Leonor? Posso saber por que queria derrubar a porta do

meu quarto em pleno dia de domingo e a essa hora da manhã?

-Meu bem!

Ela disse pausadamente em tom docemente assustador.

-Você entendeu errado, eu apenas gostaria que você se juntasse a nós, a mim e ao senhor

Trevor, aqui, para uma conversa em particular no escritório. Tudo bem para você querida?

Vejo que sua noite deve ter sido difícil. Não precisa se apressar, estaremos a sua espera o

tempo que for preciso.

Deve ter sido um grande esforço para ela dizer aquilo tudo, suponho já que sua voz soava

um tanto nervosa.

“Então era isso, o advogado da família tinha algo a me dizer, com certeza deveria ser sobre a

herança que finalmente passaria para as minhas mãos daqui há seis meses, quando eu faria

dezoito anos e conquistaria minha maior idade, minha IN-DE-PEN-DÊN-CI-A. Sim, isso

explica a suavidade e nervosismo na voz da minha tutora.”

- Já vou descer, só preciso lavar o rosto, desço num minuto.

Não perderia isso por nada... antes de bater a porta deixei escapar as palavras mais alto

do que gostaria:

- Não comecem sem mim!

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E ouvi por trás da porta um sorriso nervoso e palavras inseguras dizerem.

- Jamais começaríamos sem você.

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Capítulo 2

Elizabeth e o espelho

Eu estava horrível, dois anos e meio haviam se passado após a morte do Bill, e não havia

uma só noite que eu não chorasse ou tivesse pesadelos. Estava tão diferente daquela ocasião,

que já tinha até me esquecido que espelhos existiam. Fazia tanto tempo que eu não prestava

atenção em mim mesma, que quando olhei para o espelho quase perguntei, “quem é você?”. O

que faria o Bill gritar: “Não seja ridícula quem mais teria olhos como esses?”. Olhos grandes

e esverdeados, cabelos castanhos, lisos ondulados, que agora estava medindo um pouco mais

abaixo que o meio das costas. O cabelo! A parte favorita do velho Bill. Ele sempre dizia que

os cabelos compridos são sempre mais bonitos e eu os conservei assim em homenagem a ele.

Lábios carnudos e nariz pequeno, pele clara. Se ele estivesse aqui diria: “Você me lembra

tanto uma princesa indiana!”. Eu não parecia nada com uma indiana. O Bill era descendente

de ingleses. Mas ele sabia que eu morria de inveja da cor de canela que elas possuem e diria

qualquer coisa pra me agradar. Eu tinha uma foto da minha mãe colada no espelho e tenho

que admitir, a semelhança entre nós duas era grande, principalmente fisica. Margaret era

linda, corpo curvilíneo e harmônico, a altura dela? Bem, dessa parte eu não sei muito, mas eu

media pouco mais que um metro e setenta, nesse momento.

O meu reflexo não era dos melhores. Pálida e cheia de olheiras, vestida em uma camisa

grande que me servia de pijama. Sem pensar muito, Tirei a roupa e me joguei debaixo de uma

ducha quente e tomei um banho revigorante... de jeito nenhum desceria com uma cara abatida

e apática, demonstrando fraqueza diante dos meus inimigos. Sim porque, o senhor Robert

Trevor não poderia ser classificado propriamente como meu aliado nessa batalha, embora

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fosse sempre muito educado e disponível para esclarecer minhas dúvidas ele,

indisfarçavelmente, tinha uma queda pela senhora Grant. Por esse motivo a “Leoa” sabia tudo

que fôra conversado entre eu e o “meu advogado”. Bastante constrangedor para mim, eu

nunca podia perguntar abertamente o que queria já que sabia o que aconteceria assim que eu

saísse do escritório.

Mas eis que eu estava a incríveis seis meses do meu aniversário, minha maior idade...

Não havia nada que a “Leoa” e o senhor Trevor poderiam fazer para mudar essa situação.

Fora quando os meus pais estavam vivos, esse seria o primeiro aniversário realmente feliz

após anos de culpa. Esse seria o aniversário da liberdade.

Com certeza a primeira coisa que eu faria seria deixar aquela mansão, e saíria por aí,

daria a volta ao mundo e começaria pela África do Sul, acho que duas ou três semanas lá, me

fariam muito bem.

Eu ria para mim mesma com meus devaneios. Quando esses pensamentos me enchiam

de força e excitação, um outro sentimento tomava conta de mim ao mesmo tempo, nostalgia,

aquela mansão era dos Grants há mais de um século, quando eu penso Grants, penso em

descendência e não em laços contratuais. E depois a casa não era sombria e velha como um

mausoléu. É verdade que ficava um pouco afastada da cidade. Mas era moderna, graças ao

bom gosto em decoração da atual senhora Grant, isso eu não tenho como negar. Era também

espaçosa, tanto por dentro, quanto por fora, com seu imenso terreno e jardins. Porém sua

atmosfera se tornou insuportável com a presença da Leonor, como se fosse um fantasma, a

espreita pelos cantos, como se tramasse algo sempre... Mas de uma coisa eu tinha certeza, não

havia nada que ela pudesse fazer contra mim. Não que eu pensasse que ela fosse capaz disso.

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Uma vez o Bill, me disse que aquela mansão foi palco de muitas alegrias, meu pai

nasceu num dos quartos e por mais estranho que pareça, apesar de todo avanço da medicina,

parece que minha mãe optou pela tradição, assim, eu mesma nasci naquela casa.

Não sei por que, mas eu tinha a sensação que ao sair rumo a liberdade, aquele lugar

jamais seria meu novamente. Pensamento estranho já que ela, como todos os bens do Bill,

todo dinheiro guardado e tudo o mais pertenciam a mim.

A fortuna dos Grants,vem da indústria madeireira. As Indústrias Grant estão entre as

líderes nacionais na confecção de produtos de madeira.

Apesar da senhora Grant e seu filho não herdarem nada, ela ficou como minha tutora

legal e seu filho como presidente da empresa até que eu fosse capaz de dirigí-la legalmente e

correspondesse as exigências para o cargo. O período em que eu estivesse na universidade, o

Anthony, permaneceria lá até minha volta e certamente sua mãe permaneceria na casa por

tempo indeterminado.

Há dois anos atrás ela me fez assinar um documento cedendo a casa para ela, mas eu era

menor, por lei incapaz, portanto, inapta para isso. Mesmo que ela tivesse uma procuração

para cuidar de tudo para mim, ela não podia gastar os meus bens de forma que prejudicasse o

meu patrimônio futuro. Além disso, aquela mansão agora não era só minha... o que a irritava

ainda mais. Leonor não tinha muita opção a não ser o pouco de poder que ela exercia sobre

mim, o que a agradava muito, principalmente no primeiro ano de seu reinado.

Alimentação, vestuário, vigilância, privacidade, quase tudo em mim tinha dono e não era

eu, era a “Leoa”.

Às vezes, eu passava horas e horas trancada no quarto imaginando uma vida simples,

com pais, irmãos, vizinhos, amigos e festas. Quando eu tinha quinze anos tudo que eu queria

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era ser normal. Palavra impossível no momento em que eu passei a ser dona de um império,

eu tinha aulas em casa com professores particulares, a Leonor dizia que era para minha

própria segurança, por causa de seqüestros e tal. Compras? Eu fazia geralmente quando íamos

a Atlanta, quando o shopping estava fechando ,e, no final de expediente do comércio em

grifes preferidas por Leonor. Geralmente, as lojas eram fechadas para que eu pudesse escolher

à vontade. Roupas e roupas, acessórios e sapatos que, em sua maioria, eu jamais teria chance

ou ocasião para usar.

Era uma prisioneira em minha própria casa.

Mas ao invés de ajudar no plano da minha querida tutora, e não ter em quem confiar a

não ser nela, eu percebi a tempo tudo o que acontecia de errado na casa e nunca me deixei

enganar. Com o tempo nossa relação se tornou cada vez mais desconfortável a ponto de quase

não mais existir. O que me ajudava a não perder a cabeça era a minha amizade com o

Andrew, o Bill colocou esse nome nele e ele se orgulhava de seu nome, não admitia apelidos.

Mas eu sempre o chamei de Drew.

O Drew e eu nascemos quase no mesmo dia, ele era um dia mais velho que eu e só por

isso se sentia no direito de exigir ser respeitado por ser mais velho. Ele morava na propriedade

com sua mãe, na residência dos empregados, desde que o velho se casara com Leonor. Sally,

esse era o nome de sua mãe, ela cozinhou para o senhor Grant todo esse tempo e em seu

testamento ela herdara parte da casa. Porém, continuava trabalhando de cozinheira para nós,

como se não soubesse o que fazer com o que tinha ganho.

Ela era doce como os pêssegos da Georgia, e devia ter no máximo, trinta e oito anos, e

apesar de não se cuidar tanto quanto sua patroa era bem mais bonita que a desagradável

Leonor.

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A Sal, como meu velho a chamava, cheirava a rosas, sua pele era de um branco dourado,

seu sorriso era espontâneo e seus abraços calorosos. Como eu gostava dela e do Drew! Os

cabelos da Sal eram vermelhos ondulados e os olhos azul celeste. Eu quase não lembrava do

jeito da minha mãe, mas acho que se ela fosse viva teria que ser como a Sally.

O Drew era alto, corpo mediano, rosto simples de traços suaves como o de sua mãe,

olhar acolhedor castanho, cabelo de fogo, e bem mais branco que a Sal, ele nunca conheceu

seu pai e a Sal nunca falou dele, mas o Drew parecia muito tranquilo quanto a isso. E acima

de tudo, ele era o meu melhor amigo desde que eu me conhecia por gente. Crescemos em

volta daquela mansão, brincando no bosque próximo a propriedade, subindo em árvores e

medindo forças como dois meninos quando brincam de luta. Eu o vencia todas às vezes, mas

conforme crescemos deixamos de brincar, o covarde dizia que não queria me machucar.

Quando eu falava com Drew sobre os planos que eu tinha após o meu aniversário, ele

não parecia gostar muito. Mas apesar de sua cara de “não estou certo se essa é a melhor

opção”, ele não me recriminava, apenas dizia:

- É melhor pensar em levar o necessário para você não ter que ligar pra casa chorando

feito um bebezinho e pedindo ajuda pra voltar.

Depois batia no meu ombro, sorrindo:

- Você deve saber o que está fazendo.

Eu sempre gostei disso nele e se eu não tivesse tanta certeza sobre ele nunca deixar a Sal

sozinha e sobre ela nunca deixar a casa, eu levaria os dois comigo.

Mas essa era uma preocupação para daqui a seis meses, tudo o que eu podia fazer agora

era me lavar, me vestir e descer para a tão importante conversa.

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Coloquei o meu jeans favorito, com uma camiseta branca, sequei um pouco os cabelos

com uma toalha, penteei e sacudi para deixá-los solto, pensando não haver tempo de secá-los

direito, em seguida calcei sandálias de dedos e sai do quarto.

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Capítulo 3

O testamento de Billie Grant

A mansão era um lugar confortável pra mim, era lá naquela casa que todas as minhas

lembranças pareciam vivas. Todas as vezes que eu descia aquelas escadas era como se em

seguida o velho Bill Grant surgisse e com seu olhar vivo e seu sorriso largo me apressasse

escada abaixo dizendo:

“- Pronta para mais uma batalha, minha pequena guerreira!”.

Ele sempre me chamava assim, ele sempre estava me lembrando que cada dia era uma

batalha na vida e ao final o que contava eram suas pequenas vitórias sobre si mesmo, sua

cautela e resignação para vencer a derrota e lutar no dia seguinte. E, acima de tudo, nunca

desistir. Ele nunca desistiu de nada, não que eu me lembre.

“Lutar e vencer ou recuar e planejar para a próxima batalha”. Esse era o seu lema.

Sem sentir que já havia se passado meia hora, ao chegar à porta do escritório que estava

aberta, pude ver a Leonor sentada em uma cadeira imponente de couro atrás de uma mesa de

aparência austera, pesada e escura. Aquele foi o único lugar em que ela não pode decorar, o

Bill a proibiu. Ela estava tensa e impaciente. Enquanto isso o senhor Trevor estava em sua

frente sentado em uma das duas cadeiras que ficava em frente ao móvel, estrategicamente

afastadas uma da outra, e, ambas, de frente a Leonor. O Sr. Trevor não parecia impaciente,

porém notava-se um nervosismo em seus olhos e suas mãos apertadas uma contra a outra.

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Quando me viram, automaticamente ela apontou para cadeira vazia em sua frente sem

dizer uma só palavra, me dando uma olhar lascivo. E virando-se em direção ao senhor Trevor

ela disparou:

- Agora podemos começar logo com isso senhor Trevor?

O que me fez deduzir que ela quis saber antecipadamente do que se tratava, mas que

dessa vez o senhor Trevor não pode ser conivente. Entrei, fechei a porta e caminhei em

direção a cadeira vazia.

-Bom dia senhorita Elizabeth!

-Bom dia senhor Trevor!

-Muito bem...

Ele fez uma pausa, olhou para mim e prosseguiu:

- Após a morte do seu avô, o senhor Billie Grant, o testamento foi lido parcialmente aos

interessados...

Antes que ele pudesse continuar Leonor cortou suas palavras.

- O que? Mas como é possível ter sido... de forma parcial... eu não entendo... isso não é

certo...

Eu também fiquei surpresa, não conseguia pensar no que poderia ser aquilo de parcial

que o Bill poderia ter feito.

- É o que eu gostaria de explicar senhora Grant.

Disse ele, dando uma pausa e olhando para ela, para ter certeza que não seria mais

interrompido.

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-Bem, o senhor Grant, deixou um testamento parcial após sua morte que deveria ser

apresentado imediatamente após todos os tramites legais aos familiares e interessados em

questão. Uma das cláusulas, porém do testamento definitivo impedia este de ser lido antes do

prazo, e isso só seria possível quando faltasse apenas seis meses antes da maior idade da

senhorita Grant, herdeira de todos ou quase todos os seus bens.

-Leia!

Impacientemente eu ordenei.

- Pois bem. Todos os bens, contas, ações, propriedades e inclusive essa casa...

Casa? Eu pensei e rapidamente falei.

-Espere senhor Trevor, se a casa está incluída nesse testamento definitivo, então a Sally

deveria estar aqui, não deveria?

-De fato sim.

-Vamos logo com isso senhor Trevor.

Leonor replicou.

Mas o senhor Trevor muito calmamente se fez ouvir:

-A senhorita Elizabeth de fato tem razão quanto à presença da outra parte interessada,

precisamos que ela esteja presente, não posso dar continuidade sem ela.

Insatisfeita, Leonor passou por nós e abriu a porta pesada a nossas costas, chamando uma

das empregadas bufou:

- Vá chamar a cozinheira! Diga para ela vir ao escritório rapidamente!

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A pequena só teve tempo de dizer um singelo, sim senhora. Ignorado por Leonor com

um balançar de mãos.

Em menos de cinco minutos a figura de Sally se fazia presente no escritório.

-Senhora, mandou me chamar?

Sally disse com simplicidade.

Leonor por sua vez a olhou desgostosamente dos pés a cabeça como era de seu costume

e disse:

-Sim, arranje um lugar para sentar-se e ouça.

Eu sorri para ela, ela retribuiu e sentou-se próxima a mim em uma cadeira esquecida no

canto da sala, sem nada dizer. Porém seu olhar me dizia que ela compreendia a urgência do

seu chamado até aquela sala e do que se tratava a pequena reunião.

-Bom...

Falou o senhor Trevor testando a garganta e bebendo um pouco da água de um copo que

estava próximo a ele na mesa.

- É melhor continuarmos de onde paramos.

E sem se preocupar em explicar nada a Sally ele continuou:

- O senhor Grant deixa a sua herdeira e neta senhorita Elizabeth Grant, todas as suas

posses e metade desta casa, juntamente com suas ações, contas em banco e tudo mais que lhe

pertencia definitivamente assim que esta atingir a maior idade.

-Isso já sabemos, qual é a novidade senhor Trevor, diga sem hesitação.

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Leonor esbravejou, quase não se contendo de tanto nervoso.

-Bem, a novidade em questão...

Ele disse dando uma pequena pausa:

- É que a senhorita Grant, somente herdará tudo, caso ela se case dentro de seis meses. E

isso inclui a parte da casa que pertence à senhora Sally Cupper. Se a menina não se casar,

tudo que pertenceu ao senhor Billie Grant, pertencerá automaticamente ao Estado.

“O queeeeeê? O quê? Como?”

Eu não conseguia parar de pensar nisso, não tive reação, não tive palavras, a saliva

sumiu da minha boca e garganta. E os pensamentos me atropelavam feito loucos, sem

controle.

“Casar? O velho estava louco? Eu só tenho dezessete anos, pelo amor de Deus, corrija esse

erro, isso só pode ser uma das piadas do Bill, só pode ser brincadeira.”

Sally encostou em mim com um copo com água que eu nem vi ela pegar, ela me deu com

sua calma habitual e me dizia palavras de consolo... só depois de beber a água entendi o que

ela estava dizendo.

-Vamos menina se acalme, você precisa respirar, precisa se acalmar está pálida.

Voltando a mim, eu gritei um pouco rouca e entre os dentes:

-Senhor Trevor, isso é um engano, um erro, meu avô jamais faria isso comigo.

O que eu ouvi em resposta remexeu meu estômago:

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-Criança, infelizmente, não há nenhum erro, seu avô estava inteiramente lúcido e sabia

muito bem o que estava fazendo quando impôs essa condição como cláusula do testamento,

eu mesmo fui testemunha.

Ao dizer isso, Leonor arregalou os olhos para ele, como se estivesse se perguntando; se

ele sabia disso esse tempo todo e porque diabo não contou nada a ela?

Mas ao encarar minha tutora vi seu rosto mudar suavemente do tom assustado, para o seu

meio sorriso e isso me fez pensar que ela pode ter pensado que desta vez tudo estava muito

melhor para ela. E me deixou ainda mais nervosa. Um olhar de triunfo naquela tempestade,

não era bem o que eu achei que veria mesmo na sisuda “Leoa”.

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Capítulo 4

Memórias de Liz

A mansão pela primeira vez parecia um lugar desconfortável pra mim, eu queria sumir

daquela casa, eu queria sumir daquele lugar e de todos, especialmente, eu queria matar o

velho biruta...

“Se eu pudesse fazer com que ele morresse uma segunda vez...”

Entrei no meu quarto completamente desorientada, bati a porta com força chorando

grossas lágrimas e pensando o quanto eu o odiava por ter tornado minha vida um inferno

desde de que ele decidiu morrer... e o quanto ele continuava a me punir mesmo após a sua

morte.

“Talvez ele me culpasse pela morte do papai, talvez...”

-Nãooooooo! Eu confiava em você...! Eu te odeio, seu velho sem juízo! Você quer

acabar com a minha vida?! Mas eu não vou deixar! Eu não me importo com sua fortuna!

Guarde-a no seu caixão! Eu vou embora daqui, vou fugir... e só!

Era um choro convulsivo, minha cabeça doía muito como se fosse explodir e eu tremia

de raiva e indignação com aquela traição.

Sally batia na porta pedindo para entrar, mas eu não queria ver ninguém, não queria.

Não havia nada a ser feito eu simplesmente estava condenada.

- Liz minha querida, Liz abra a porta...

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Não sei dizer quando eu apaguei, mas dormi pesado e sonhei com o velho Bill, rindo pra

mim, ou seria rindo de mim, não sei dizer. Porque mesmo ali, a raiva era imensa e eu não

conseguia pensar direito.

A escuridão tomou conta do sonho e uma névoa espessa se formou entre eu e o velho, a

raiva, deu lugar ao medo, eu não conseguia mais ver o sorriso dele, nem vê-lo. Eu estava lá

sozinha, só escuridão e neblina, nenhum pensamento ousava passar pela minha cabeça, a

expectativa era imensa, o medo do que eu podia encontrar fazia com que o meu coração

acelerasse mais rápido que o coração de um bebê. Eu costumava a ter pesadelos e geralmente

eram iguais, quase toda noite, um desconforto apertou meu estômago e eu os vi, olhos

brilhantes, vermelhos sangue dentro da névoa em minha direção, e se aproximavam cada vez

mais. Olhos, que eu não conhecia, olhos de ódio, profundos e frios.

- Bill é você? Vovôôô...

A medida que aqueles olhos se aproximavam as minhas palavras iam sumindo, até que

eu não consegui mais dizer nada e imediatamente eu quis fugir, mas não conseguia me mexer.

Percebi sua sombra na névoa, era mais alta do que eu e sua forma era forte e masculina, fechei

os olhos esperando acordar a tempo até que uma mão tocou meu antebraço com força eu gemi

de dor e desespero, suas mãos queimavam em mim. Logo em seguida, acordei suando muito,

coração batendo acelerado, boca seca e mil pensamentos invadindo minha cabeça, mas o que

era aquilo, quem era aquele...? Falando para mim mesma, eu repetia feito louca:

- Esquece isso, foi só um pesadelo, só um pesadelo...

Era tudo que eu podia fazer agora, tentar me controlar. Foi uma noite difícil pensei; dia

estranho. E quando olhei no relógio, marcavam onze horas da manhã? O quê? Ou eu dormi

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um dia inteiro ou ainda nem era noite. Foi então que me lembrei o porquê me joguei na cama,

o porquê estava me sentindo quebrada e desejei voltar ao pesadelo a viver a minha realidade.

Mas uma vez alguém batia na porta do meu quarto, só que dessa vez era leve e uma voz

trêmula disse do outro lado:

- Senhorita, senhorita Liz, a senhora Leonor espera pela senhorita para servir o almoço.

De súbito gritei sem ao menos abrir a porta:

- Clarice, diga a Leonor que não tenho apetite, não quero ver ninguém e nem falar com

ninguém, entendido?

Clarice era quase da minha idade, seu pai era o nosso jardineiro, boa gente. Ela era

bastante tímida e um tanto simpática, eu não me relacionava muito com ela, e é verdade que

nem sempre notava sua presença de tão quieta que a menina era. A Sal é que vivia

conversando com a Clarice, dando conselhos e incentivando-a a estudar, a ir mais longe,

“quem sabe cursar a universidade”, a Sal dizia. Não via muito entusiasmo de sua parte, mas

com certeza respeito eu via. Era uma boa moça como diria o Bill.

- Sim, senhorita.

E logo passos apressados cruzaram a frente do meu quarto e sumiram pelo corredor,

descendo as escadas. Deitada na cama, deixei que diversas coisas passassem pela minha

cabeça, menos aquilo que me fez perder a fome.

“Não sei por que Leonor insistia tanto em viver como no século passado.”

Eu ironizei:

- Senhorita isso, senhora aquilo...

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“Não entendo porque ela fazia tanta questão em obrigar os empregados a aprenderem as

normas cultas e repetí-las o tempo todo. Quem fazia isso hoje em dia?”

- Por mim seria sempre Liz, Liz, Liz... Sem mais...

Olhei ao redor e dei uma boa observada em meu quarto. Espaçoso, minha cama no

centro, colchas grossas e bem trabalhadas, armários, um frigo-bar, um imenso closet e muitas

outras coisas que enchiam aquele ambiente de requinte e bom gosto, quase um quarto digno

de uma princesa ou seria inteiramente de uma princesa. A verdade é que ele não perdia para

nenhum outro em que eu estivera hospedada quando o Bill era vivo. Ele adorava conforto e

não economizou em nada com a minha pequena e luxuosa suíte cinco estrelas Grant. Na

verdade ele se esforçou ao máximo para que eu não sentisse tanta falta de casa quando os

meus pais se foram. Foi um choque para ele, seu filho único, sua nora... Foi um verdadeiro

milagre que a criança tivesse sobrevivido, foi isso que disseram a ele quando me entregaram

nos seus braços, após o resgate. Eu tinha cinco anos e ele era tudo que me restou.

Sentada ali, pude me lembrar o quanto ele era carinhoso, como se preocupava com os

detalhes da vida da sua pequena guerreira. Seus olhos fortes e seu sorriso fácil era o que eu

costumava receber todas as manhãs, pois era ele quem me acordava, era ele quem falava que

eu tinha o espírito de uma índia guerreira. Ele confiava na minha força, mas do que eu

mesma, e não desviava seu olhar de mim. O tempo em que passávamos juntos era tão grande,

que o Anthony, filho da Leonor e preferido do meu avô antes que eu chegasse, torcia o nariz

para mim e cutucava sua mãe, quando me via. Ele era muito chato, às escondidas, puxava

meu cabelo e gritava comigo, não só comigo, mas também com o Drew. Anthony era pelo

menos dez anos mais velho que eu e o Drew, o que dava a ele uma vantagem imensa sobre

nós. Nunca conseguimos revidar suas maldades.

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Desde que fui morar com o Bill, nenhum dos meus dias tinham sido iguais, ele sempre

inventava uma viagem, era um desbravador, um espírito livre, ele ouviu isso na África quando

fomos lá em certa ocasião. Um chefe de uma tribo, disse a ele que o seu espírito era livre,

desbravador, foi lá que nós ouvimos do mesmo senhor que eu tinha um espírito guerreiro e

indomável. Ele gostou tanto disso que depois desse dia ele nunca mais deixou de me chamar

de “minha pequena guerreira”.

As lembranças passavam diante dos meus olhos como se estivessem acontecendo

naquele momento.

O Bill apesar de nunca tirar seus olhos de mim, sempre deixou que eu resolvesse os meus

problemas sozinha. E sempre me alertou quanto a julgamentos. Ele dizia:

“- Julgamentos minha pequena guerreira, pertencem às almas precipitadas, lembre-se

disso. O homem sábio trava a batalha dentro de si e somente na exaustão o guerreiro vencedor

pode dominá-lo, assim, ele jamais nega a sua natureza, mas amadurece o seu espírito.”

De todos os lugares que ele mais gostou - sei disso por causa da intensidade do seu

entusiasmo quando visitávamos muitos lugares- A Índia, a África, a China e a Grécia, tocaram

seu coração como diamantes tocam os olhos das mulheres apaixonadas. Não pelas suas belas

paisagens, mas pelo povo. Meu avô gostava de gente e de conhecimento e esses lugares o

enfeitiçaram irremediavelmente.

É por isso que eu queria tanto viajar, queria viver um pouco disso tudo novamente,

terminar o que ele começou, dá a volta ao mundo e me tornar um espírito livre e desbravador.

Com todas essas viagens eu nunca pude ter uma vida normal, sempre tinha um professor

particular nos acompanhando, o vovô os escolhia pela coragem demonstrada e pelas charadas

decifradas que ele lançava como desafio, ele nunca escolhia pelo conhecimento acadêmico e

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por seus belos currículos, o que era estranho, já que eu precisava aprender algo. O mais

estranho é que sempre dava certo e todo mundo saía ganhando. Eu aprendia, nós

desbravávamos, o professor ganhava muito bem e todos voltávamos felizes e seguros para

casa. A Leonor detestava as viagens do velho Bill, ele geralmente evitava os lugares

convencionais como Paris e Paris, não que ele não gostasse, mas é que ele era um homem

rústico, se escolhesse Paris, teria que levar sua jovem esposa, portanto, não poderia dizer não

ao tempo perdido com grifes e jantares que não matavam a fome de ninguém, segundo ele.

Eu por outro lado adoraria se ele variasse um pouco, e ajudasse a me sentir mais

feminina. A presença de uma mulher, não seria nada mal de vez em quando, mesmo que fosse

a “Leoa”.

A Leonor quase nunca me dirigia a palavra e depois de um tempo nem mesmo com o

Bill ela costumava a falar direito. Vivia pajeando seu tão precioso filho e ensinando-o a tirar

vantagens do coração bondoso do Bill.

No dia em que o desbravador fechou os olhos, eu tinha quinze anos, e tantos sonhos pra

realizar com ele ao meu lado. A pequena guerreira vacilou, parte de mim entristeceu tão

profundamente que eu pensei nunca mais ser possível gargalhar despreocupada e

naturalmente como antes. A dor não tinha fim. Os dias passaram. As coisas mudaram. Eu me

tornei prisioneira em minha própria casa e Leonor a cada dia que passava espalhava

vitoriosamente suas peças sobre o tabuleiro. Mas eu não me importava, eu só queria levar

adiante. E nem mesmo as conversas animadas e o coração entusiasmado do Drew,

conseguiam transpor a barreira de gelo ao redor do meu.

“ Por que ele fez isso? Por que ele pensou uma coisa dessas? Por que me prender assim, se eu

era sua pequena guerreira indomável?”

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- Ele me traiu!

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Capítulo 5

O terrível pesadelo

- Vá chamá-la, e diga-lhe que não aceitarei recusas para o jantar. Diga-lhe também que

não se trata apenas de jantar, mas de uma conversa que precisamos ter.

Leonor falou tão mecanicamente, como se estivesse maquinando algo, e sem levantar a

cabeça, dispensou a criada com uma das mãos.

- Vá, vá, vá...

Quando Clarice bateu em minha porta novamente o relógio marcava 08:00 PM, quis dar

uma desculpa qualquer, ainda não queria ver ninguém. Porém, ela foi tão insistente com o

recado de sua senhora que eu resolvi descer para o “jantar”.

Como previ, Leonor estava sentada na cabeceira da mesa de jantar, não tocou em sua

comida até que eu sentasse e me servisse, no mais absoluto silêncio como sempre.

Foi então, que ela começou assim...

- Como está o jantar?

- ótimo!

Embora ela tenha percebido que eu brincava com a comida distraidamente.

- Espero que esteja do seu agrado, mandei fazer especialmente para você, imaginei que a

falta de apetite lhe sobreviesse depois da infortuna notícia.

“Por que ela estava tão preocupada comigo?”

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- Você adivinhou.

Respondi secamente.

- Minha criança, você precisa se alimentar. Afinal de contas você é nossa pequena

guerreira.

“O quê? Que merda é essa que eu acabei de ouvir?”

Meu apetite fugiu de vez ao som daquela afirmação. Meu primeiro impulso era de sair

dali para o mais longe possível daquela mesa. Mas eu não fiz.

- O que quer dizer com isso Leonor?

- Vou direto ao assunto, pois acho que conhecendo o Bill Grant como eu conhecia, tenho

certeza que o que vou dizer faz total e absoluto sentido.

E Continuou:

-Elizabeth, o seu avô se arrependeu do primeiro testamento, nós nos desentendemos por

um período, porém acho que ele se arrependeu de ter sido tão duro e resolveu dar uma

segunda chance criando esse testamento definitivo.

- O que quer dizer?

Eu não estava conseguindo entender o que ela dizia, eu achei que assim como eu, ela

estaria desesperada, pois, caso eu não me casasse o testamento era bem claro, todos

estaríamos na sarjeta. Então, me lembrei do seu olhar de triunfo e do seu meio sorriso na sala

do escritório pela manhã.

- É simples. Seu avô se aborreceu comigo e quis se vingar de mim, mas conhecendo ele

como eu conheço, deve ter se arrependido de não ter nos incluído, em seu testamento, o

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Anthony e eu obviamente , portanto, criou este testamento definitivo, para garantir que nós

tivéssemos uma segunda chance minha querida! Pense comigo, o seu avô jamais admitiria ver

o suor do seu trabalho, nas mãos do Estado, ou de um desconhecido. E quem é o homem de

confiança hoje a frente dos nossos negócios? Por outro lado, ele saberia que eu jamais

permitiria deixar você solta, sem segurança se algo acontecesse com ele. Então, me

conhecendo como ele conhecia saberia que certamente eu assumiria a sua educação e a

manteria como sempre foi; sobre os nossos olhos. O que é um inconveniente, pois, não

permitiria a você conhecer outras pessoas. Levando-me a concluir que seis meses é muito

pouco tempo para se conhecer alguém e casar-se. Posso afirmar, com certeza, que a intenção

da minha raposa velha, era que tudo ficasse em família, dando a você apenas uma opção:

Anthony.

Isso tudo era tão absurdo que eu nem consegui piscar.

“Casar com o Anthony? Nãnãnão! Ele não faria isso comigo, não me armaria um golpe

desses, então além de casar, ele próprio se certificou de com quem seria? E logo o Anthony?”

- Você está falando do velho Bill, alguém que eu conheci alguém da minha inteira

confiança, ele não tiraria minha liberdade assim, ele não me deixaria sem alternativa.

-Não seja tola Elizabeth, o Anthony não é um fardo para nenhuma mulher com um

perfeito juízo em sua cabeça. Aliás, você está sendo egoísta mocinha, pois, ele também não

tem opção diante das circunstâncias e talvez ele esteja perdendo bem mais com esse

testamento do que você.

Essa foi boa, Anthony, o sonho de toda mulher com juízo perfeito. Eu estava cansada

demais para pensar em mais alguma coisa, apenas levantei e saí. Prometendo a mim mesma

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que por hoje, não pensaria em mais nada que dissesse respeito a esse assunto, apenas recuar

para lutar amanhã, no momento era tudo o que eu podia fazer.

Entrei no quarto passavam das 09:00 PM, precisava descansar, liguei a TV em frente a

cama e deitei, meus olhos estavam tão pesados que não consegui me conter diante da exaustão

e me entreguei ao sono.

A lua estava linda, cheia e clareava parte de uma floresta. Eu sentia todas as sensações de

voar. Frio, um pouco de medo de altura, adrenalina, o cheiro da floresta. Podia ver tudo de

cima, percorrer distâncias imensas rapidamente. Adiante entre as árvores, vi uma mulher

deitada no chão, na terra, imóvel. Será que estava dormindo? Num impulso cheguei mais

perto e quando me aproximei, pude perceber que ela estava toda de branco, não dava para ver

direito, mas eu acho que...

“Ó meu Deus! Ó meu...”

-Não quero ver isso.

Vi manchas vermelhas e minha visão embaraçou, não podia acreditar no que via, mas

acho que ela estava ferida, estava m-o-r-t-a...?!

-Ó não, não...volte, preciso ajudá-la!

Eu não conseguia segurar o meu sonho, ele estava me puxando para fora da visão.

“Não acorde, não acorde, não acorde... NÃO ACORDEEEEEEEEEEEEE!!!”

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Capítulo 6

Surpresa do passado

Mal o dia clareou e eu pulei da cama, dois pesadelos num dia e todo o turbilhão de coisas

que estavam acontecendo ao meu redor, estavam sugando minhas forças e eu precisava reagir.

Tomei uma ducha, vesti um short que estava pendurado numa cadeira do quarto,

coloquei uma camiseta preta, sandálias e desci disposta a tomar um café da manhã completo

na cozinha de preferência, trocando conversa com a Sal e o Drew.

Mas quando me aproximei da sala de visitas vi que a Leonor conversava animada com

alguém, tentei me aproximar e gelei quando ela me viu. Mas, ao invés de me olhar duramente,

ela imediatamente sorriu e acenou com a mão me chamando.

-Mas um dia como o anterior e eu vou precisar de calmantes muito fortes.

-Elizabeth, venha até aqui. Tem uma pessoa que deseja ver você.

-Bom...dia!

Eu disse sem acreditar no que via.

-Bom dia! Ora, ora! Da última vez que a vi, era apenas uma menina e em pouco mais de

dois anos vejo que se tornou uma linda mulher.

-Meu Anthony sempre foi um cavalheiro!

Leonor dizia sem tirar os olhos dele.

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- Obrigada Anthony! Faz mesmo muito tempo desde a última vez que nos vimos, eu

acho.

Eu parecia uma segunda Leonor respondendo a ele. Não conseguia acreditar que ele

estava ali. Pensei que ao menos demoraria um mês para isso acontecer. Mas, o mais estranho

é que eu não estava chateada em vê-lo, mesmo sabendo que sua mãe nem ao menos esperou

eu me recuperar do susto. Mesmo desconfiada de que ele estava ali com o intuito de fazer

cumprir as bobagens que ela tinha empurrado pra cima de mim na noite anterior.

Os meus olhos não piscavam, ele estava mudado. Ele era dez anos mais velho que eu e

não, eu nunca tive paixões por homens mais velhos. Aliás eu nunca tive paixões por ninguém.

Não que eu me lembre.

Mas esse Anthony, esse... era mais bonito do que o que eu conhecia. Será que era ele

mesmo?

-Elizabeth?

Leonor olhava para minha cara de surpresa e seu meio sorriso se estampou no seu rosto

tão automaticamente que eu tive que inventar uma desculpa qualquer e correr até a cozinha.

-Eu tenho que ir.

Assim que eu entrei o Drew disparou:

-Você viu quem chegou? Anthon...iergs!

-Vi.

-O que você tem? Acordou mais cedo e tá com uma cara...

-Cara? Qual cara?

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Respondi assustada e corri para janela tentando ver o meu reflexo. Ó! Parecia horrível.

“Será que ele me viu desse jeito?”

-Por que está tão preocupada?

O Drew perguntou pegando uma maçã na fruteira, mordendo e mastigando continuou a

falar:

-A Sally, falou que vocês tiveram uma reunião ontem com o doutor gravata e a “Leoa”.

Ela disse também que você não estava nada bem. Mas eu acho que você está ótima.

Ele chamava a mãe pelo nome, assim como eu costumava chamar o vovô de Bill.

Desconfiada que ele soubesse o porquê eu o sondei:

- Estou ótima, porque ficaria mal com uma conversinha qualquer?

Não tinha certeza se ele sabia, mas se ele não soubesse, não tinha certeza se queria falar

sobre isso agora.

-Mulheres... dramáticas. Mães... pior ainda. Acredita que ela nem dormiu direito

preocupada com você? Eu disse que ela tinha que entender de uma vez por todas que você não

era mais uma menininha e que daqui a seis meses, seria dona do seu nariz. Mas quanto mais

eu falava, mas ela chorava.

“Chorava? A meu Deus, com toda essa confusão eu nem pensei em como a Sal estaria se

sentindo. Definitivamente ele não sabia de nada.”

-Onde está sua mãe?

-No quarto

- A Sal no quarto?

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-O mundo está louco, você madrugando e a Sally trancada no quarto. Vocês trocaram de

corpo?

-Drew, será que dá pra ser mais esperto? Quando foi que sua mãe ficou jogada nos

cantos?

-Nunca. Ela adora trabalho!

-O-ho! Então ela deve está se sentido mal ou doente talvez.

-Nããão... ela é forte.

-DREW!

-O que?

-Você viu? Foi lá? Perguntou a ela? Tentou conversar?

-Claro que eu tentei. Ela só pediu pra eu avisar a ela quando você descesse. Acho que ela

quer conversar não sei o que com você.

-Será que dá pra fazer isso quando eu descer pela segunda vez?

-Hãm?

-É que eu ainda estou com sono e só desci pra beliscar alguma coisa antes.

-Ok!

-Então quando você descer pela segunda vez e tiver conversado não sei o que com a

Sally, me procura quero te mostrar uma coisa.

-O que?

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-Depois.

-Fala...

-Vai insistir? Vou chamar a Sally!

-Ok!

Nós dois rimos ao mesmo tempo e eu me senti bem melhor, por um instante nem me

lembrei de toda a confusão instalada agora em minha vida. Peguei uma maçã e saí. Enquanto

estava indo em direção a escada, uma voz masculina me chamou no escritório. Quando entrei,

vi que o Anthony estava sorrindo pra mim, sentado na mesma cadeira que o senhor Trevor

estava no dia anterior.

-Liz!

Seus olhos brilhavam.

O Anthony nunca foi muito bonito, não antes. Mas agora ele parecia tão maduro. Não só

por sua idade. Leonor nunca fora a favor do amadurecimento do Anthony.

O Anthony que eu via agora na minha frente era sereno. Nunca percebi isso e acho até

que antes, isso não estava nos olhos dele. Só agora de perto percebi que os seus olhos eram

verdes e seu sorriso perfeitamente alvo.

Quando ele ficou de pé para se aproximar de mim, vi o quanto era alto, não era nem

sombra do adolescente magrela, espinhento e maldoso que um dia eu conheci.

Na morte do Bill, eu estava tão arrasada que não notei ninguém que estava lá. Me lembro

vagamente de ter visto o Anthony de relance, mas na ocasião não percebi a mudança.

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Porém agora eu via um homem na minha frente. Alto, forte, cabelos alourados, olhos

escuros, boca e nariz bonitos. Eu não queria admitir, mas ele estava lindo!

-Liz... Sente-se. Acho que precisamos conversar.

-Tony, eu não sei se é a melhor hora pra isso...

-Do que você está falando?

Ele parecia surpreso.

“Ó meu Deus será que sua mãe não disse nada a ele ainda?”

-Nada.

-Liz...

Ele pausou e olhou firme nos meus olhos e adivinhando o meu pensamento, falou:

- A minha mãe me contou sobre o testamento e também sobre o que ela acha disso tudo.

Se for a isso que você se referia. Quero que saiba que diferente da opinião dela, eu acho que

não devemos nos precipitar dessa forma. Podemos achar uma saída menos radical. O que

acha?

-Sssi, é.

Estava chocada, definitivamente não esperava essa atitude. Qual é? Ele é filho da Leonor

e até então ele era sua cópia fiel, o que está acontecendo? O Drew tem razão o mundo está

louco. E o pior eu fiquei ressentida por ele ter descartado tão facilmente a possibilidade de se

casar comigo.

-Tudo bem?

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Ele perguntou calmamente sorrindo.

-Eu só ia perguntar...

-Sim?

-O que andou fazendo todo esse tempo fora?

Mudei imediatamente de assunto. Mais nervosa do que devia.

-Tomando conta da empresa do Bill, você sabe, agora sou o presidente.

Não foi uma pergunta. Mas eu respondi mais rápido do que devia.

-Sim.

-E você? Você sai da mansão? Tem amigos na cidade? Um namorado?

-Eu? Namorado? Não, não tenho, não saio muito.

-Então continua de namorico com o Andrew?

“O queeeeeeeeeeee? Então ele achava que eu tinha um namorico com o Drew?”

- Eu não tenho nenhum namorico com o Drew, nunca tive e nunca vou ter. De onde você

tirou isso?

-Calma só estava descontraindo... você parecia tensa.

Parecia? Agora eu estava em brasa. Que vontade de sair correndo, ele percebeu que eu

fiquei nervosa.

“Ó merda!”

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-Não, não estou tensa. Tenho que ir para o meu quarto, depois falo com você. Você vai

ficar não é?

Ele riu descontraído.

-Sim, vou ficar. Até mais.

-Até...

Naquele dia eu não desci pela segunda vez, não procurei a Sally, nem o Drew. E quando

saí a Leonor estava a minha espera para o almoço e o Anthony estava lá. Desse dia em diante

ele passou a frequentar a mansão e nós nos tornamos mais íntimos, tanto que sua mãe logo lhe

ofereceu um quarto e ele se mudou para lá.

O Drew não gostou nada disso e desde que o Anthony e eu nos tornamos amigos ele

passou a me evitar.

Seis meses se passaram e no dia 15 de dezembro de 2008...

Eu estava lá nervosamente vestida de branco seguindo por um corredor com um lindo

tapete vermelho aos meus pés, convidados nas laterais, a área da mansão lindamente

ornamentada com rosas brancas e um noivo em minha frente a esperar no altar.

Há seis meses atrás eu estava completamente apavorada com a idéia de casamento. Hoje,

eu estou tão ansiosa por isso que nem me reconheço.

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Capítulo 7

O casamento

Foi tudo perfeito, a cerimônia, a festa, a alegria. Apesar de não conhecer nem a metade

das pessoas que estavam lá. Eu estava feliz e tudo isso era por causa dele, Anthony. O Bill

estava certo, como eu pude duvidar dele.

Sentada no jardim, com os pés ardendo de tanto dançar, tirei os sapatos e pisei na grama.

Foi quando ouvi um choro descontrolado intercalado por soluços e corri pra ver quem era.

-Drew?

-Liz? O que está fazendo aqui?

-Porque está chorando Drew?

-Não é da sua conta, volte para sua festa... Só não diz que eu não avisei.

-Avisou o quê?

-Ele vai se aproveitar de você, sua boba. O Anthony é como a mãe dele, você parece

estar cega.

-E você está com inveja da minha felicidade, agora que eu finalmente estou feliz você

vem me jogar um balde de água fria. Logo você...

-Logo eu o que ELIZABETH?

-Nada. Vou voltar pra minha festa, o meu esposo está me esperando.

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-Vai, volta pra sua festa, pra um bando de gente que você nem conhece, pra seu noivo

bundão e a madrasta-sogra megera.

-Você é RIDÍCULO ANDREW, o Tony tem razão quando diz que você é um criança...

-O queeee? Pois eu também vou dizer o que acho desse... Lizzzz, volte aqui.

Aaarrrrrrsss, merda!

Foi a última vez que falei com o Drew depois daquela noite.

Saindo dali, passei pelo jardim e antes de chegar a tenda da festa uma sensação estranha

ao meu redor, senti como se alguém me observasse.

-Que estranho!

O Anthony vinha em minha direção e me pegando no colo anunciou ali mesmo que

estávamos partindo para nossa noite de núpcias. Ele me pôs no chão e segurou a minha mão

até entrarmos na Limusine que nos levaria para o hotel.

Tudo estava programado, depois das núpcias, no dia seguinte pegaríamos um vôo sem

escalas para Paris, a Cidade Luz.

No caminho do hotel, a Limusine parou bruscamente na estrada, eu me assustei, mas o

Anthony me acalmou, dizendo não ser nada, me beijou e se consertou no banco.

Contudo, num minuto o motorista abriu a porta ao meu lado, a impressão que eu tive ao

olhar para ele foi a pior, ele era enorme, forte e desajeitado no uniforme de motorista, traços

pesados, cara mal humorada, os seus olhos pareciam com... pareciam com os olhos do meu

pesadelo...

“Não pode ser...”

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Bradando para mim, ele ordenou:

-Desce do carro.

-O que está acontecendo? Anthony?

Anthony sorriu, me olhou e disse:

-Ah querida quase me esqueci, feliz aniversário!

-Falei pra DESCER DO CARRO.

O homem esbravejou me puxou para fora e me carregou pra dentro da floresta a puxões,

o medo tomou conta de mim, eu não conseguia ver onde estava o Anthony. Meu Deus o que

estava acontecendo? Eu só conseguia gritar, gritava sem parar.

-NÃÃÃÃOOOOO!!! o que está acontecendo!? ME SOLTAAAA!!! Por favor, me

solta!!! Lágrimas desciam do meu rosto.

O homem era muito mais forte que eu, muito mais forte que qualquer um que eu já

conheci. A cada puxão que ele me dava eu tinha a impressão que o meu braço seria arrancado.

Eu não via o rosto dele direito, só que ele tinha uma cicatriz próxima ao pescoço.

-SOCOOOOORROOOOO!!! ALGUÉM ME AJUDEEE!!! Por favor! Não me

machuque! Por favor! Por favor! SOOOOCORROOOOO!!!

Eu tentava me soltar, mas não conseguia. E nem sinal do Anthony. Estávamos

embrenhados na floresta agora, não dava para ver a estrada e estava tudo muito escuro a não

ser pela lua cheia no céu que clareava alguns trechos.

-O QUE VAI FAZER? SEU DESGRAÇADO!!! ME SOOOOOLTAAAA!!!

Então ele parou e disse:

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-Ajoelha.

-Nãoooo! Por favoooor! Não!

O choro era quase convulsivo agora.

Ele me esbofeteou no rosto e me lançou no chão com tanta violência que quando eu caí,

bati a cabeça com força em uma pedra próxima e no mesmo instante fiquei tonta, passei a

mão pela cabeça e senti molhado e quente. Eu já não estava raciocinando direito com a

pancada. Quando ouvi ele dizer:

-Esses são os votos do noivo, para a noiva.

Ele gargalhou terrivelmente e disparou dois tiros em mim. A dor foi lacerante, meu peito

queimava.

A última coisa que me lembro daquele momento antes de cerrar os meus olhos foi a Lua

cheia sobre mim.

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Capítulo 8

O caçador de encarnado

Não sei quanto tempo fiquei sem consciência, mas assim que a minha cabeça começou a

funcionar, minha primeira sensação foi o medo de estar morta. Num impulso abri os olhos e

percebi minha vista embaçada, era um teto de um lugar estranho. Não havia muita luz ali.

Virei a cabeça de lado antes de tentar mexer o meu corpo e senti-la quase a estourar de dor.

Ao redor tudo parecia velho, abandonado e assustador. O cheiro era horrível, cheiro de coisa

podre, de carne podre e o calor que eu sentia... Meu Deus! Era dezembro, como podia estar

tão quente? Tentei virar o corpo para o outro lado e a dor foi terrível, então virei só a cabeça

novamente e muito dificilmente consegui enxergar, fogo? Fechei os olhos e...

-A merda...!!! Não acredito! Merda! Merda! Morri virgem e fui para o inferno!!! É muita

falta de sorte.

-Você não foi para o inferno.

Uma voz forte de homem falou perto de mim.

Levei um susto, tentei levantar, mas ele segurou os meus ombros me imobilizando para

que eu permanecesse onde estava. A dor do esforço me despedaçou por dentro. Então ele

disse:

-É melhor não fazer muito esforço, você ainda está se recuperando.

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-Quem é você? Que lugar é esse? Eu estou morta?

Ele riu alto e disse:

-Muitas perguntas. Mas vou responder estas e nenhuma a mais, ok?

Eu não entendi que graça tinha as minhas perguntas e que graça tem uma situação

daquelas, mas concordei.

-Sim.

-Meu nome é Maviael, eu sou um caçador de encarnados, você está num abrigo na

floresta de Chattahoochee e não! Você não morreu!

-Você me salvou? Você viu aquele homem? Você o conhece? O quê...?

-Xiiiii! Já disse que não responderei mais a nenhuma pergunta. Agora descanse. Precisa

se recuperar.

-Eu, não sei se posso confiar em você...

-Não tem escolha Ádria. Durma.

Não tive tempo para pensar, um cheiro de ervas surgiu ao meu redor e antes que eu

pudesse dizer qualquer coisa apaguei novamente.

A segunda vez que abri os olhos percebi que a minha visão estava ótima, meu corpo já

não doía mais, nem minha cabeça. Tudo parecia tão distante, como se tivesse sido um

pesadelo e só. Pensei ter sonhado com um homem chamado Maviael, que me salvou.

Enquanto pensava nisso permaneci olhando para o teto e foi então que reconheci o abrigo.

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Era verdade... eu estava num abrigo de caçador, não parecia tão ruim assim dessa vez.

Era escuro e bagunçado, tinha um cheiro ruim ainda, mas não mais de coisa podre, estava

mais para mofo. Mas nem sinal do tal Maviael.

Sentei na cama improvisada que estava ao lado de uma lareira e percebi que ainda estava

vestida com as roupas do casamento. O vestido estava rasgado, horrivelmente manchado de

marrom, aquilo era sangue, meu sangue. Ele estava tão coberto de sangue que não entendi

como pude ter escapado dessa com vida.

Fiquei de pé e mexi o corpo, eu estava ótima, abaixei a parte de cima do vestido para ver

meu ferimento e...o que? Não tinha nada lá, nem uma mancha, nem cicatriz.

“Não entendo. Aquele homem afirmou que eu não estava morta, então como pode ontem eu

ter levado dois tiros e hoje não haver marca alguma?”

Sem que eu percebesse Maviael entrou e falou:

-É tudo muito novo pra você. Entendo que esteja surpresa.

Droga eu estava nua, ou seminua, ele não devia ter entrado assim. Suspendi a roupa e

quando olhei para ele não pude acreditar no que vi.

Ele era o homem mais atraente que eu já conheci. Só de olhar, daria a ele vinte e poucos

anos, cabelo preto, liso, olhos castanhos, queixo quadrado, boca olhos e nariz perfeitos, forte,

mas como se fosse musculoso, não como se fosse gordo, alto mas não muito e sua voz agora

parecia tão firme e confiável. Estava vestido com calças pretas e sobretudo preto aberto, de

forma a deixar a mostra a blusa branca de botões.

“Será que ele também estava no casamento? Será que conhecia o Anthony? Será que estava

ali a mando dele?”

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Comecei a pirar... Quando ele me interrompeu.

-Ádria? Você está bem? Trouxe algo para você se alimentar.

-Meu nome é Liz, acho que você me confundiu com outra pessoa.

-Hahahahaha!

Ele riu um riso solto como da primeira vez e logo em seguida acrescentou:

-Eu sei que agora você se chama Elizabeth Grant. “Ádria” é uma longa história que no

tempo certo você vai saber. Agora, é melhor se apressar e se alimentar. Partiremos em

seguida.

-Ótimo preciso ir até a polícia e denunciar aquele cretino. Você pode me ajudar no

depoimento. Você sabe o que aconteceu com aquele homem horrível da floresta?

-Polícia? Homem da floresta? E o que você dirá no seu depoimento? Que levou tiros

ontem, mas que hoje está completamente curada por milagre? Não temos tempo para polícia.

Partiremos para a morada dos imortais hoje mesmo.

-Hahahaha!!!

Dessa vez fui eu quem não conseguiu se conter.

Repeti com um ar de graça ainda nos lábios. Imitando seu tom de voz.

- Partiremos para morada dos imortaaaais!!!

Ele me olhava fixamente e sem a menor graça no rosto. Perdi o riso no mesmo instante e

percebi que ele falava sério comigo.

-Quando você diz morada dos imortais, você quer dizer morada dos imortais?

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Foi a coisa mais estúpida que eu já perguntei na vida.

-Sim. Coma, vista-se, que em seguida partiremos.

Seu tom descontraído e respeitoso agora soava mais como ordens de um general.

-Desculpe, mas você não entendeu senhor Maviael, eu fui vítima de tentativa de

homicídio ontem à noite, a mando do meu próprio esposo, no dia do meu casamento. E ele

agora deve estar lá rindo de mim achando que eu estou morta, herdando o que é meu. Eu

tenho que pensar como organizar as coisas com toda essa confusão, eu...

-Ádria, você não pertence mais ao mundo dos humanos, suas preocupações de antes, não

servem mais de nada, você mudou.

E apontando para uma jarra na mesa, olhou para mim, sorriu e disse:

-Quando terminar me avise. Partiremos em seguida, e não se preocupe, suas dúvidas

serão esclarecidas ao chegar em casa...

Mundo dos mortais? Casa? Eu ia surtar naquele momento, mas, ao olhar para ele percebi

que ele estava tão seguro do que disse que decidi não discutir, supus que ele não me

responderia mais do que já respondeu. Parecia ansioso em sair logo dali.

Fui até a mesa e estava tão sedenta que nem procurei um copo, virei a jarra na boca e

senti um gosto delicioso. Nunca tomei uma bebida como essa, bebi até o fim e quando afastei

a vasilha da boca, olhei curiosa para dentro para ver com que se parecia. Tomei um susto tão

grande que deixei a jarra cair... era s-a-n-g-u-e!

-Ó MERDA!

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Gritei tão alto. A porta se abriu com um estrondo e Maviael estava de pé olhando pra

mim assustado, procurando por alguém no abrigo.

-Quem é você? O que fez comigo? Isso é sangueeee...

-Sim é. E eu também já respondi a você quem sou eu. Agora é melhor partimos.

Chegaremos em casa cedo se sairmos agora. Vista-se, está suja.

Ele falou apontando para uma mochila que estava junto a mesa. Parecia nervoso demais.

Eu olhei e assenti com a cabeça, decidi não fazer mais perguntas e me virei em direção

as roupas para vestí-las. Ele ficou ali e eu virei em direção a ele me perguntando se ele ficaria

olhando eu me trocar.

-Desculpe. Deixarei você à vontade. Qualquer coisa estarei aqui fora.

-Como se isso me acalmasse!

Resmunguei.

Abri a mochila e tirei as roupas. Jeans surrada, camiseta branca e tênis, pareciam com as

minhas roupas preferidas. Me despi do vestido e olhei o meu corpo nu, impressionante não

tinha marca alguma. Vesti as roupas limpas, depois abri a mochila e joguei o vestido dentro.

Estava resignada a guardá-lo até o momento certo de pedir contas pelo que me fizeram. Seria

o meu estímulo.

Abri a porta do abrigo coloquei a mochila nas costas e vi Maviael que estava bem em

frente, quando ele se virou eu assenti com a cabeça em sinal de que estava pronta. Sem dizer

nada mais, ele começou a andar em silêncio dando espaço para eu o seguir.

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Grandes árvores nos cercavam a medida que caminhávamos, devíamos estar muito longe

da estrada agora, o dia estava frio, mas eu não reclamei, apenas continuei seguindo Maviael

que agora andava a passos largos e rápidos. Caminhamos por horas sem descanso, mas eu não

sentia cansaço algum. Desde que saímos do abrigo não trocamos uma palavra, somente

quando eu vacilava em meus passos, ele se inclinava e me apoiava sem nada dizer e ao me

equilibrar seguíamos em frente.

Estava começando a escurecer quando paramos em frente a uma caverna, meu coração

batia acelerado, hesitei em entrar pensei que pudesse ter algum bicho, como urso ou algo pior

ali dentro. Maviael entrou sem medo e enquanto eu fiquei ali me perguntando se devia entrar

ou não, um braço saiu da escuridão da caverna e me puxou firmemente. Ele voltou para me

buscar. E sem dizer nada pegou minha mochila.

Ao entrar na caverna percebi que sem muito esforço, eu conseguia enxergar naquela

escuridão, Maviael passou a mão numa pedra no final do túnel e ela abriu imediatamente,

depois de passarmos ela se fechou atrás de mim e começamos uma descida por uma escadaria

de pedras.

Depois de muitas direitas e esquerdas cercada de pedra o corredor se alargou e no umbral

da abertura pude ler.

“Bem-vindos a Eória, lar dos guerreiros imortais!”

“Nunca vi nada igual. Como podia existir um lugar assim embaixo da terra?”

Passamos pela abertura e para minha surpresa o rústico deu lugar ao moderno, passamos

por um corredor de vidro imenso e entramos em um elevador, vi Maviael apertar um botão

com um símbolo estranho e imediatamente começamos a descer, não sei ao certo quanto

descemos, mas parecia uma eternidade. Quando o elevador parou e abriu suas portas, vi mais

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um corredor de vidro. Ao redor rocha e em frente uma porta metálica que ao nos

aproximarmos se abriu.

Antes de seguirmos, Maviael olhou para mim e disse:

-Você está sendo esperada no conselho, haja o que houver não fale nada. Apenas escute.

Ele me olhou incisivamente até ter certeza que eu havia entendido o que ele tinha dito.

-Tudo bem.

Eu disse e olhei para ele tão firme quanto ele me olhou e assenti com a cabeça em sinal

de entendimento.

Entramos em outro corredor, mas este não era de vidro, era todo de metal com portas nas

laterais, viramos à direita e paramos em frente a uma grande porta escura com um brasão de

dois leões brigando.

Em tom de reverência e gestos que me lembravam um soldado com os dois punhos

fechados e erguidos para frente na altura da cintura, Maviael saudou a porta:

-Com sangue lutamos por Eória!

A porta se abriu e nós entramos.

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Capítulo 9

Eória um mundo novo

O lugar me lembrava uma arena de gladiadores só que menor, era uma sala redonda, com

arquibancadas ao redor. Em frente, um camarote com três tronos. O do meio se sobressaia

sobre os outros dois, estes estavam organizados um de cada lado do trono central. Também

dois lugares no centro do círculo. Que eu entendi ser ali que eu e Maviael deveríamos sentar.

Percebi também que a arquibancada estava completa e que havia muito mais homens do que

mulheres, e que todos os homens se vestiam exatamente como Maviael, com exceção de suas

camisas internas por serem da cor preta.

O chão e as arquibancadas, eram de mármore cinza, menos o púlpito e o trono que

pareciam ser de ouro maciço, as paredes eram da rocha do próprio lugar. Num ponto central

bem no alto, percebi uma espécie de marcador com o número 10.000 gravado nele. A

arquibancada parecia confortável, mas apesar disto eu não me sentia a vontade e enquanto

ainda estava distraída, um homem velho se levantou ao lado de destaque próximo ao camarote

e disse estar iniciada a sessão.

Me senti coagida como uma criminosa prestes a ser julgada. Todos estavam de pé,

inclusive nós. Um homem entrou no camarote e todos o saudaram, acenando ele assentiu que

todos sentassem.

Eu não conseguia vê-lo direito, estávamos num local muito claro, onde o homem estava

parecia ter uma sombra. Todos sentamos em nossos lugares e eu percebi que os dois tronos ao

seu lado estavam vazios. O silêncio tomou conta do lugar. O mesmo homem acenou para que

prosseguissem com a reunião.

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O homem velho que inicialmente havia aberto a sessão, levantou-se por detrás do púlpito

e sem demora tomou a palavra:

-Quando o marcador indicou a chegada de Ádria na terra a cerca de dezoito anos atrás,

nós enviamos o nosso melhor caçador de encarnados, o guerreiro imortal Maviael de Eória,

para que a encontra-se e a trouxesse para nós, porém...

Esse “porém” me fez gelar, o homem era frio e inquisidor.

-Porém, Maviael sumiu e a menos que o marcador retrocedesse em sua marca sabíamos

que ele não havia sido morto pelos malditos lobos, sua falta de comunicação conosco, feriu a

lealdade e o juramento dos caçadores e demonstrou seu imenso desrespeito ao seus

superiores, a esse conselho e ao seu rei.

-Que prova nos dá Maviael de que está é a Ádria?

Maviael levantou-se e olhando para o rei o saudou.

O rei assentiu com a cabeça e ele pôs-se a falar:

-Por lealdade ao meu rei e honra ao meu juramento de caçador, eu Maviael de Eória,

afirmo diante deste conselho que a jovem que trago comigo é o último espírito perdido dos

nossos guerreiros.

Maviael se fez pronunciar de maneira honrada e segura.

-Palavra? É só isso que nos traz? Ela tem a marca?

O ancião retrucou venenoso.

-Sim. Assim que nasceu no condado eu a identifiquei. Estive muito perto da jovem todos

esses anos. Por muitas vezes tive oportunidade de trazê-la, mas por uma série de desencontros

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não pude, o humano que a criava a levava para longe muitas vezes, e quando reaparecia

estava sempre cercada de humanos. Além disso, eu não estava sozinho. O Bautox estava lá.

Nesse momento a assembléia se inquietou e todos falavam ao mesmo tempo, até que o

rei com um gesto fez todos se calarem.

-Você se certificou de não deixar vestígios Maviael?

O ancião o sondou.

-Sim senhor.

O ancião olhou em direção ao rei, fez sinal e se voltando para frente pronunciou o fim da

sessão.

O rei levantou-se e saiu pelo mesmo lugar que entrou. De relance vi que se vestia como

os outros, porém a cor de suas roupas eram brancas. Após sua saída, a assembléia começou a

esvaziar.

Me voltando para Maviael que continuava de pé, olhando para frente com os punhos

cerrados, eu indaguei:

-Agora posso perguntar?

Ele relaxou, se virou em minha direção e disse:

-Sim, você pode.

-Será que você pode me contar o que é tudo isso? Eu não estou entendendo nada.

Desabafei desanimada e mais assustada do que o normal.

-Tudo bem, mas antes vou levá-la até sua dependência.

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-Hum?

-É possível que o rei a chame ainda hoje. Venha e não faça essa cara eu vou responder

todas as suas perguntas... se eu conseguir...

E eu vi um sorriso em seu rosto. Não sei por que, mas eu confiava nele como se o

conhecesse a vida inteira.

Saímos por onde entramos e chegamos novamente em frente ao elevador, dessa vez uma

linda mulher negra e alta vestida como uma versão feminina dos trajes masculinos nos

cumprimentou. Seus olhos eram cor de amêndoas e seu rosto era tão cordial, que eu a

cumprimentei de volta com um sorriso, Maviael apenas acenou com a cabeça olhando-a

firmemente nos olhos. Cada um apertou um símbolo diferente no elevador e calados subimos

alguns andares.

A porta do elevador se abriu e nós saímos deixando a bela mulher para trás.

Desta vez não havia corredor e sim um vasto andar aberto, muito parecido com um

shopping. Jardins de inverno decoravam o lugar, bancos como se fosse uma praça e uma

estátua de um guerreiro de punhos cerrados na altura da cintura em reverência, assim como vi

Maviael fazer mais cedo, ela era imensa no centro do andar. Passamos pela estátua e seguimos

em frente, então comecei a perceber que ao redor daquele lugar, aos invés de galerias, haviam

portas, cada uma de uma cor, algumas com jardins em frente e outras sem nada, e enquanto

me perguntava o que era tudo aquilo? Paramos e Maviael se virou mais uma vez, passou por

trás de mim e me empurrou para frente, pensei que ia bater com o rosto na porta, fechei os

olhos e ela se abriu.

Ele sorriu e me explicou:

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-Normalmente precisamos de um pouco de sangue para nos registrar como proprietários,

mas achei que você já tinha sangue o suficiente para isso.

-Hummm?.

Ele sorriu e ao entrarmos vi o vestido pendurando por um cabide numa sala, que parecia

ser um pequeno apartamento.

Foi quando me dei conta, que ao entramos na caverna eu dei minha mochila a ele e não o

vi mais com ela, eu estava tão distraída que nem percebi que não carregava nada nas costas.

-Uau! Isso é lindo! É uma graça esse lugar! Me sinto em casa.

Não a casa em que eu vivi nos últimos treze anos. Mas meu espaço, como eu sempre

sonhei ter. O visual da sala era clean, arejado e moderno, com ventilação artificial e

inteiramente equipada com eletrônicos de última geração. Não parecia que estávamos debaixo

de toda aquela terra e rocha. Havia televisão e home theater. As paredes eram brancas, os

moveis de metal, menos o sofá vermelho bastante confortável na sala. Tela de Salvador Dali

na parede (A menina na janela), e...

-Eu sei. Essa será mesmo a sua casa de hoje em diante. Pelo menos até...Você deseja

alguma coisa em particular...Adri...Liz?

-Roupas, eu acho...ainda não sei se tenho tudo aqui. Não consigo acreditar que é meu

tudo isso.

-Tem roupas pra você no closet. Eu estou perguntando se você precisa de algo em

especial, particular. Vai ser difícil, mas acho que posso trazer para você.

-Você diz...ir até a mansão e pegar meus pertences?

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-Sim. Se for importante pra você.

Ele disse isso olhando nos meus olhos de uma forma que eu tive que desviar o olhar.

-Não, não precisa. Não quero me lembrar de nada da minha velha vida. Só preciso que

você me explique o que está acontecendo?

-Antes, você não deseja se alimentar, tomar banho, ficar a vontade?

-Sim. Mas se eu deixar você sair alguma coisa me diz que não vou ter essa oportunidade

novamente.

Ele riu e piscou pra mim. E levantando as mãos para o alto, disse:

-Agora você me pegou, era isso mesmo que eu iria fazer. Sair de fininho!

Gargalhamos juntos e ele continuou:

-Relaxe, eu espero por você. Prometo que não sairei daqui até que você tenha todas as

suas perguntas respondidas. Ok?

-Ok!

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Capítulo 10

As respostas

Refiz minhas forças ali naquele banho. Estava cansada, mas sem sono algum. Deixei a

água cair sobre a minha cabeça por um bom tempo, fechei os olhos, mas automaticamente vi a

imagem daquele homem grotesco da floresta, a raiva me invadiu e eu sacudi a cabeça

lançando para longe aqueles pensamentos. Sequei o cabelo e ao sair do banheiro fui em

direção ao closet e para minha surpresa, não encontrei um terno feminino, mas roupas

comuns, shorts, calças, blusas e vestidos para todas as ocasiões.

“O que mais poderia me surpreender naquele lugar?”

Escolhi um vestido simples longo, verde claro e muito bonito, sem surpresa alguma ele

se ajustou no meu corpo, fechei o zíper na parte superior e me olhei num grande espelho em

frente. Impressionante, meus olhos combinaram com a cor da roupa, os ombros ficaram a

mostra, o vestido contornava os meus seios e destacou minha cintura, nos quadris ele era solto

e se alongava até os pés. Fui até a penteadeira e em cima havia uma caixa de jóias, dentro

peças prateadas, douradas e trabalhadas. Escolhi uma tornozeleira prata com pingentes

diversos e dois braceletes pratas iguais, um para cada braço. Me olhei novamente e vi o meu

reflexo no espelho eu estava tão diferente, mas completamente à vontade. Estava faminta,

porém as respostas que eu precisava eram mais urgentes do que a fome.

-Liz, agora é a hora da verdade garota!

Estava tudo tão quieto, entrei na sala e olhei ao redor, não vi ninguém. Sorri para mim

mesma, balancei a cabeça e disse:

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-Saiu de fininho!

Antes que eu desse o próximo passo, Maviael falou:

-Procurando por alguém senhorita?

Ele estava atrás de mim, quando me virei o vi encostado na lateral da entrada de um

outro cômodo do apartamento. Ele me olhou surpreso e fixamente nos olhos, eu desviei o

olhar e ele disse:

-Com o tempo você vai perceber que a palavra dada por um vampiro é mais certa do que

a própria morte.

Vampiro, esse era o termo que eu temia. Embora eu já soubesse intimamente que ele

surgiria, todo esse tempo procurei fingir naturalidade. Ainda parecia um pouco absurdo pra

mim, apesar de todo esse novo mundo está bem na frente dos meus olhos, eu não sabia o que

pensar.

-Tem certeza que não quer se alimentar antes? Vai ser uma longa história.

-Não tenho certeza de nada.

-Venha até o estoque.

Ele me chamou com as mãos e entrou no cômodo. De frente a uma geladeira imensa, ele

me olhou e disse:

-Você vai se acostumar com tudo mais rápido do que imagina.

O eletrodoméstico tomava toda a parede lateral do lugar, eram quatro portas largas de

inox, uma ao lado da outra. E quando ele abriu havia tanto sangue dentro que eu fiquei tonta.

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Também percebi armários e uma pia, parecia uma cozinha mas não seria esse o termo

adequado. Talvez estoque fosse mesmo a descrição certa para o lugar.

Maviael pegou dois copos alongados, encheu com o líquido vermelho, estendeu a mão

para que eu pegasse um, levantou como se brindasse e tomou. Eu fiz o mesmo, a princípio

achei que não conseguiria, mas quando encostei nos lábios, o cheiro e o sabor me fizeram

perder os sentidos e senti novamente a ânsia de beber de forma incontrolável, o que fiz

prontamente.

O prazer daquele momento durou pouco, ao terminar olhei para o copo ainda em minhas

mãos distraidamente e quando voltei a mim, fiquei envergonhada ao perceber que o Maviael

me olhava com ar de entendimento.

-Por que tanto sangue para um só vampiro e de onde vem tudo isso?

-Nós precisamos nos alimentar com pelo menos três litros de sangue por dia.

Por isso estocamos 30 litros de sangue em cada dependência por semana. Sempre

colocamos a mais para caso de emergências. Todo esse sangue que você vê no estoque é

artificial. Beber sangue in natura é proibido e punido com pena de morte. Já que geralmente o

ato leva os humanos à óbito.

-É melhor sentarmos.

E passando por mim foi até a sala e sentou-se.

-Quem são todas aquelas pessoas daquela sala e o que elas fazem?

-Fazem parte do conselho. O conselho é composto de duzentos vampiros. Eles não se

reúnem sempre, apenas para tratar de assuntos importantes.

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- O homem de branco... quem é?

- É o nosso rei Irad.

-O que significa as cores das roupas?

Ele riu surpreso e respondeu:

-O conselho é composto pelos nobres. O título de nobreza é devido ao grau de

antiguidade das suas famílias, não aos membros delas. A cor branca pertence a instância

maior, ou seja, ao rei e aos seus herdeiros.

-Não dos membros delas?

-Nenhum lugar no conselho pode ser substituído, um lugar só pode ser preenchido

somente se tratando de reintegração. Por exemplo, um guerreiro encarnado encontrado,

mesmo tendo renascido a pouco tempo, toma parte no conselho, se pertencente a algumas

daquelas famílias, pois subentende-se que o lugar era dele anteriormente.

-Vampiros possuem famílias?

-Alguns, no início, foram transformados com toda sua família. Algumas delas existem há

séculos. Mas nem todos os transformados sobreviveram a mudança. Porém os que

sobreviveram instituíram ordem e liderança.

-Como a lei do consumo artificial de sangue?

-Sim.

-Se beber sangue diretamente de um humano é proibido, como conseguiu sobreviver

longe daqui?

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-Dos lobos (lobisomens), eles vivem na superfície e precisam tanto de sangue quanto

nós. Embora o Condado fique bem longe do nosso local de origem, a alguns séculos

começamos a perceber uma imigração de lobos para a região. Eles assim como nós precisam

de um estoque, o deles é vasto e sem muita vigilância, alguns atacam humanos sem

represálias de nossa parte, pois, eles acreditam que fomos eliminados na grande batalha. Uma

vez que o estoque não é vigiado, fica fácil de conseguir pegar o que precisa, mas eu nem

sempre recorri a esse meio, ora bebia do estoque dos lobos, ora bebia de animais da floresta, o

gosto é péssimo e o valor energético é menor, mas serve. Aliás, o sangue artificial foi

descoberta dos lobos, nós tínhamos um projeto antigo, antes da grande batalha acontecer. A

pedido do rei, lobos e vampiros trabalharam juntos para descobrir como desenvolver sangue,

um lobo cientista chamado Nesmut foi quem desvendou o processo primitivo. O povo estava

passando fome e o rei tinha pressa. Com grande esforço conseguimos chegar a um extrato

muito parecido com o que temos hoje. Daí quando tivemos que nos esconder, retomamos as

pesquisas de onde paramos, a princípio os eorianos saíam da caverna em grupos para se

alimentar mas era muito arriscado para nós, aceleramos as pesquisas e desenvolvemos o

sangue, a partir daí os vampiros não tiveram mais necessidade de ir até a superfície, a não ser

para resgatar os encarnados. E pelo visto os lobos também levaram adiante as suas pesquisas e

assim como nós tiveram êxito.

-Deve ter sido difícil.

-Sou um caçador, estou acostumado.

-Eu nunca vi um lobisomem em Clayton, nem nunca ouvi falar sobre isso.

-Existem muitas coisas que você nunca ouviu falar. Os lobos vivem em bandos, moram

como nós em sua própria reserva, mas agem como humanos e se misturam entre eles. Nós

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costumávamos fazer isso até a grande batalha, onde os lobos mataram muitos de nós e

tomaram o poder.

- É por isso que se escondem aqui?

-Sim.

-O que aconteceu nessa grande batalha?

Ele puxou o ar e continuou:

-Há mais de quatro mil anos atrás, Irad, nosso rei, governava as duas linhagens sobre a

Terra, vampiros e lobos. No seu governo nunca nos foi permitido massacres de humanos,

contudo, podíamos tirar proveito das guerras dos homens, pois, o rei entendia que nas guerras

as baixas humanas aconteciam sem a interferência de nenhuma das partes. Mas quando estas

passavam e os lobos ou os vampiros sentiam fome e se rebelavam, a matança era sem

controle. Então no ano de 522 d. C, o rei Irad tomou uma decisão extrema que mexeu com os

dois lados, ele restringiu o consumo exagerado de sangue e delimitou o seu uso para vampiros

e lobos. Cada vampiro e lobo só tinham direito a um humano a cada duas semanas. Estando

sob pena de morte aquele que desobedecesse a lei. Os lobos não ficaram satisfeitos, eles não

têm palavra, mentiram e burlaram a lei e muitos foram condenados. Mas o rei calculou que se

continuássemos daquela maneira extinguiríamos a raça humana desse planeta em pouco

tempo. Então, quando o rei decidiu que seria feito um senso entre vampiros e lobos e decretou

que o limite permitido de transformados tanto para vampiros como para lobos seria de 10.000

habitantes, houve rebelião, a aliança foi quebrada, o rei traído e caçado, e, com ele, todo o seu

povo. Como vingança, Sneferu, condenou a morte o filho do rei e sua esposa, com eles mais

de mil guerreiros vampiros de valor.

O reinado de Sneferu teve início e nosso povo fugiu da superfície.

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-Recuar hoje para lutar amanhã!

Pensei alto tentando entender.

-Sim isso mesmo.

Ele viu que eu estava acompanhando e continuou.

-Havia uma profetiza antiga em nosso reino, cem anos antes da batalha ela profetizou:

“O trono mais alto perecerá e um rio de lágrimas e sangue sobrevirá. Um rei será traído e todo

o seu povo pagará por isso, para que sejam purificados das maldades de seus corações”.

O rei não a ouviu. O conselho não a ouviu. Ninguém a ouviu.

Quando começamos a nos abrigar no subsolo, ao final de nossas primeiras construções,

outra profecia foi feita aos pés do guerreiro imortal.

“Quando duas mãos injustas tomarem o poder sobre a Terra, o sangue dos guerreiros

mortos retornarão a marca estabelecida, um povo esquecido retomará o poder pela mão de

uma guerreira renascida, ela trará a esperança; a ela será dada a força sem limites. Somente

ela poderá domar o filho selvagem do injusto e unificar os reinos. Então um trono será

erguido e a Terra será governada com paz e justiça para todos”.

-Dessa vez ouvimos a profetiza, e quando Jubal e Jabel, mataram seu próprio rei Sneferu,

por causa do trono, há quinhentos anos atrás, deu-se início a profecia. Nosso marcador do

senso, símbolo das nossas baixas na batalha, marcou um número a mais e entendemos que

deveríamos sair a procura, foi então instituída a ordem dos caçadores de encarnados e a nossa

última missão terminaria quando o marcador estivesse marcando 10.000.

Ele concluiu me olhando seriamente nos olhos.

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-Dez mil? A mesma marca que eu vi num relógio no salão de conferência.

Eu disse.

-Sim, você foi nossa última guerreira encarnada.

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Capítulo 11

A marca do guerreiro

Fiquei um bom tempo calada pensando em todas as informações que Maviael tinha me

dado, levantei e dei a volta no sofá, por trás eu caminhei um pouco para lá e para cá,

pensativa. Maviael permaneceu sentado, de costas pra mim. Retomei o meu lugar e com

coragem perguntei:

-Como pode ter certeza que sou eu a última guerreira a ser encontrada?

Ele disse simples e rápido.

-Você tem a marca, todos os renascidos tem a marca. E você foi a última guerreira a ser

contada no marcador, completou o número do senso e da profecia.

-Eu o ouvi dizer isso para o conselho, desculpe Maviael, mas eu não tenho marca

alguma.

-Todos tem. E continuou:

-Lembra do brasão na porta do salão de conferência do conselho?

-Sim.

-É o nosso símbolo guerreiro. Quando a ordem dos caçadores foi criada sobre magia

antiga, foi revelada aos seus membros que estes saberiam onde os guerreiros encarnados

estavam pelo grau de ligação que eles tinham com tais guerreiros mortos e suas marcas seriam

reconhecidas, pois todas seriam iguais e relacionadas com o símbolo dos guerreiros.

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Maviael tirou seu sobretudo, levantou a manga da sua camisa e estirou o braço em minha

direção.

-Como essa aqui. Você reconhece?

Estiquei meu próprio braço e vi uma marca semelhante, quatro garras encravadas na

pele, como se fossem quatro tiras de uma cicatriz causada por um urso, ou...

-LEÃO? Desculpe, estava pensando alto, eu sempre achei que essa marca no braço tinha

sido por causa do acidente que matou os meus pais. Mas então você... como pode ser um

guerreiro encarnado e um caçador ao mesmo tempo?

-Como eu disse, os guerreiros são escolhidos pelo grau de ligação com os encarnados,

quando um encarnado nasce, geralmente o caçador recebe uma mensagem, ou em sonho ou

em visão, ou de qualquer forma que auxilie sua localização. Ele é inteiramente responsável

pelo êxito ou não da missão e deve ir sozinho. Não pode ser negado a ele o direito da missão

nem imposto o momento da partida, assim como no conselho nenhum membro pode ser

substituído, na ordem nenhuma missão pode ser delegada.

-Como se chamava antes vir para cá?

-William.

Ele parecia desconfortável com isso e eu mudei de assunto.

-Eu ouvi você dizer no conselho que teve inúmeras oportunidades de me resgatar e não o

fez. Ouvi também você citar um tal de Bautox, quem é ele?

-Bautox é o lobo de confiança do Jubal. Não sei porque ele estava lá, os lobos não

conhecem nossa profecia ou pelo menos achamos que não.

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-Como sabia que aquela noite na floresta seria a melhor hora para me resgatar e o que fez

com aquele homem horrível que atirou em mim?

-Não sabia. Apenas segui vocês e não fiz nada com o homem, apenas a transformei a

tempo quando ele partiu e deixou você no chão, inconsciente.

-Mas você podia ter evitado tudo aquilo? É um vampiro guerreiro!

-Não, não podia. Não com o Bautox por perto, eu não tinha certeza se os encarnados

ainda eram segredo para Jabel e Jubal, não entendi o que ele estava fazendo no casarão do seu

protetor.

Nunca tinha chamado o Bill de meu protetor, mas gostei ainda mais do Maviael quando

se referiu a ele de forma tão respeitosa e grata.

-Liz, se eu deixasse vestígios de que andava rondando o lugar colocaria você e todo

nosso povo em perigo e as minhas chances de tirá-la de lá seriam mínimas. Sabe-se lá quanto

tempo demoraria até você encarnar de novo e se isso seria possível uma segunda vez ou se

teríamos outra oportunidade de resgate.

Ele parecia precisar de que eu confiasse nele. Ele parecia sofrer ao lembrar-se daquela

noite. Mas o que ele não sabia é que não precisava se explicar, eu confiava nele e sabia que

estava sendo mesmo sincero. Não sei como e nem porque, porém eu confiaria minha vida a

ele em qualquer circunstância. E ele precisava saber disso.

-Não precisa se explicar Maviael, confio em você. Sei que fez o seu melhor e sei também

que nunca deixaria que nada de ruim acontecesse comigo.

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-Não é verdade Liz. A verdade é que quase te perdi na floresta. Eu tive que transformá-la

imediatamente, caso contrário tudo estaria perdido. Eu tive muito medo de perder você

novamente.

-Novamente? É a tal de Ádria? É sobre ela não é?

-É sobre você Liz. Você e ela são a mesma pessoa. Com o tempo vai se lembrar de

tudo.Vai se lembrar de onde veio, quem você é, e seguir daqui pra frente. Os encarnados não

são como novas pessoas com lembranças antigas e sem sentido. É mais como se estivéssemos

dormindo todo esse tempo e então acordássemos para voltar ao lugar o qual pertencemos.

Entende?

-Não muito.

-As lembranças são vivas e próximas, quando elas vierem, você não vai sentir como se

tivesse acontecido com outra pessoa, não vai imaginar outras escolhas, vai ser como se você

reassumisse o controle depois de um tempo longe.

-Foi assim que aconteceu com você?

-É assim que está acontecendo comigo.

Os seus olhos estavam sobre mim. Eu tinha certeza de já conhecê-lo. Eu queria muito

lembrar. Ele me encontrou, se isso aconteceu é porque tínhamos uma ligação forte. Eu senti

isso quando o vi pela primeira vez e sentia agora também. Eu quis me aproximar dele, mas

antes que eu me movesse ele me interrompeu.

-Tenho que ir. Espero ter ajudado a esclarecer algumas coisas mais urgentes. Com o

tempo você mesma lembrará o necessário.

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Ele levantou muito rápido e foi até a porta. Eu fiquei sentada a princípio sem reação, mas

antes que ele desse um singelo até mais e sumisse, levantei e fui até a porta para me certificar

que nos veríamos depois. Como imaginei, ele se virou para mim, mas ao invés de me dizer o

que faríamos no dia seguinte, ele se aproximou, olhou nos meu olhos e beijou minha fronte

carinhosamente, em seguida afastou o meu rosto de suas mãos e disse:

-Agora sim, me sinto finalmente em casa com você aqui. Boa noite!

-B-o-a n-o-i-t-e!

Eu fiquei parada na entrada da dependência até ele desaparecer, as luzes da praça

diminuíram sua intensidade como se estivesse simulando uma noite. Eu entendi que era tarde

e entrei. Sentada no sofá pensei o que eu poderia fazer para ter minhas lembranças de volta

mais rapidamente. Mas acabei desistindo, estava muito cansada.

-Quanta informação, estou tão cansada!

Entrei no quarto e apreciei meu novo lugar, não era tão luxuoso quanto o quarto da

mansão, mas também não dava para comparar nada daquele lugar com tudo que eu tinha na

mansão. Simplesmente a dependência, como os vampiros chamavam, era o máximo! Era

compacta, mais ou menos como os pequenos apartamentos japoneses modernos. E o melhor

dela é que não economizaram na cama, era enorme e parecia super confortável, tive sono só

de olhar para ela e não resisti, assim que deitei, cerrei os olhos e só acordei no dia seguinte.

Eu acho.

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Capítulo 12

O encontro com o rei

Eu não tinha a menor noção de tempo em Eória. Acordei descansada e despreocupada

quanto a horários. Era a primeira noite depois de muito tempo que não chorava até dormir ou

que não tinha pesadelos. Me lavei, me troquei e assim que terminei de me alimentar, como se

adivinhasse quando eu estaria pronta, alguém apareceu na porta, uma campanhia soava suave

na dependência. E certa de que seria o Maviael, me apressei para abrí-la.

-Bom dia Elizabeth! Eu sou Nebet e vou acompanhá-la esta manhã.

-Bom dia!

Nebet era simplesmente a mulher linda que vimos no elevador. Sem muito entusiasmo,

mas curiosa para saber aonde iria e o que faria eu a acompanhei.

O rei espera vê-la agora. Depois você será levada a Semíramis e em seguida ao

recuperador de memória.

Essa última notícia me encheu de entusiasmo. Mas como eu havia notado que todos

apesar de muito solícitos eram também bastante sérios, comecei a ter cautela em ficar

demonstrando minhas emoções. Sorri cordialmente concordando com o roteiro.

-Você parece bem.

Ela observou.

-Eu estou.

-Nos primeiros dias pode ser confuso tanta informação para os recém-chegados.

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-Realmente é muita informação. Mas estou bem com isso. Você também foi uma

resgatada?

-Não. Mas meu irmão sim, seu nome é Katep.

Ela sorriu e me deu espaço ao sairmos do elevador.

Ao sair vi uma pequena área antecedendo uma porta, muito parecida com a entrada de

um cofre de segurança máxima. Nebet parou em sua frente e saudou a porta com a mesma

frase dita por Maviael diante da porta de conferência.

-Com sangue lutamos por Eória.

Em seguida pôs sua face próxima a lateral para ser reconhecida e a porta se abriu depois

de alguns minutos, silenciosamente. Percebi que realmente tinha a espessura de um cofre de

segurança máxima. Dois vampiros estavam em frente nos esperando, ao entrarmos a porta se

fechou atrás de nós e os seguimos por um corredor ricamente decorado. Eu conhecia aquela

arquitetura e decoração, era indiana. Saindo do corredor os vampiros pararam cada um de um

lado da entrada do recinto e nós entramos numa sala riquíssima.

Sempre gostei da Índia e suas riquezas. A sala era cheia de tapetes, sofás e almofadas,

cortinas e peças antigas em ouro velho e pedrarias.

-Deixe-nos Nebet!

Uma voz pronunciou brandamente a ordem. Quando olhei para Nebet, ela estava em

reverência de punhos cerrados diante do homem vestido de branco que certamente se tratava

de ser o próprio rei.

-Bom dia, Liz!

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-Bom dia vossa majestade!

-Não precisa cerimônias comigo Ádria. Isso é para os outros.

A princípio me mantive na defensiva, mas nada em mim dizia que eu não gostaria

daquele homem.

-Certo.

-Maviael me disse que esclareceu parte da nossa história e também da nossa organização

aqui em Eória para você.

-É verdade, ele o fez.

O rei sorriu espontaneamente e disse:

-Não duvido que ele o tenha feito minha menina. Suponho que as palavras desconfiadas

do nosso Rashne na reunião do conselho tenham deixado você insegura quanto ao que

faríamos com Maviael por sua falta de lealdade conosco.

-Sim. Mas ele não foi desleal...

-Eu sei que não. Apenas me expressei conforme foi dito lá. Entendo que queira preservá-

lo.

-Me preocupo com o que possa acontecer a ele.

-Sua preocupação já era esperada. Dou-lhe minha palavra que nada acontecerá ao

Maviael.

-Obrigada majestade!

Ele disse:

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-Irad!

-Obrigada Irad!

Vendo-o de perto percebi que ele tinha uma aparência tranqüila, como das histórias dos

sábios contadas na Ìndia. Quando o vi a primeira vez, as sombras da sala de conferência

imaginei uma figura austera, mas ali de frente a ele essa impressão foi varrida da minha mente

e um profundo respeito me sobreveio.

-Imagino que esteja curiosa quanto a sua própria história.

-Muito. Espero lembrar o quanto antes.

-O tempo é o mestre de todas as coisas! Desejo mostrá-la algo que talvez a ajude com

suas lembranças. Gostaria de ver?

-Sim. Por favor!

Saímos da sala e entramos em um corredor largo cheio de quadros nas paredes. Enquanto

andávamos o rei dizia:

-Esses são os retratos de cada um dos bravos guerreiros vampiros de todos os tempos,

aqui nessas telas estão pintadas mais de quatro mil anos de história.

E parando em frente a um quadro, ele apontou e disse:

-Essa é a mais corajosa guerreira da nossa história. Você!

A mulher do quadro e eu éramos iguais. Quando Maviael falou em se tratar de ser a

mesma pessoa e não simplesmente uma lembrança de uma outra pessoa, nunca imaginei que

pudesse ser a mesma literalmente. Ao olhar para o quadro ao lado vi Maviael segurando uma

lança, era ele. Então perguntei ao rei:

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-Todos os guerreiros renasceram iguais ao que eram?

Ele entendeu o meu espanto. E disse:

-Todos. No início não esperávamos que fosse assim. Mas quando os primeiros guerreiros

foram sendo resgatados, percebemos que todos seriam semelhantes. E para algumas famílias

isso foi crucial para a adaptação, verdadeira benção dos deuses. Os caçadores ao perceberem

que suas fisionomias atuais eram iguais as anteriores, tiveram a preocupação de transformá-

los exatamente com a idade que tinham ao partirem.

-Então foi por isso que o Maviael esperou tanto?

-Esperávamos Maviael retornar daqui a quatro anos, você tinha vinte e dois quando

partiu, imagino que algo muito sério deve ter acontecido para ele se antecipar. Porém Maviael

foi o único caçador com exceção de mais um antes dele, que partiu assim que soube do

surgimento do encarnado, ou seja, do seu surgimento. É muito difícil se manter fora de Eória

por muito tempo.

-Ele não disse o que houve no dia do resgate?

-Não. É uma escolha dele, aliás de todos, compartilhar ou não suas as dificuldades. É

uma honra para mim acolhê-los é um dever permanecer ao seu lado mesmo que eu esteja na

ignorância quanto a perturbação que os oprime.

-Então, não são obrigados a prestar conta de tudo o que acontece?

-São. Mas apenas quanto aos fatos necessários. Os motivos que os fizeram tomar

decisões difíceis cabe somente a eles e certamente todos tem a minha confiança.

-No conselho o senhor Rashne não tinha a menor dúvida de que eu era realmente a

guerreira Ádria.

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-Não, não tinha.

-Então por que tudo aquilo?

-Apesar de ser a mesma fisicamente e sabermos que as lembranças surgirão ao seu

tempo, é necessário estimular a intimidade do guerreiro para que esse comece a ter contato

com sentimentos semelhantes aos quais pertenciam a eles antes de partirem. E ao mesmo

tempo expô-los a nossa realidade.

-A preocupação com Maviael?

-Sim. Esse sentimento com relação a ele é um estímulo a sua memória.

-Uma coisa nessa história me intriga.

-Sim?

-Quando chegamos Maviael me disse que estávamos sendo aguardados e no entanto, o

senhor acabou de me dizer que esperava que chegássemos somente daqui há quatro anos...

-Então como sabíamos que haviam chegado? Todo habitante de Eória é registrado pelo

sangue e todos que desejem sair precisam da autorização do rei. Por isso desenvolvemos um

sistema de segurança com cobertura em toda Eória e uma parte da superfície na floresta,

assim qualquer um que se aproxime, entre ou que saia é identificado. Quando o Maviael se

aproximou da caverna fomos avisados e nos preparamos.

-Entendo.

-O nome do lobisomem Bautox também foi mencionado na reunião, seria outra estratégia

para reavivar minha memória. Eu o conheço?

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-Você mais do que todos o conhecia muito bem, eram inimigos jurados e se odiavam

mutuamente. No entanto, a informação dada por Maviael é verdadeira e essa foi uma surpresa

para todos nós. É muita coincidência a presença dele na casa do seu protetor.

-Então eles sabem sobre os encarnados?

-Pra isso teríamos que ter um traidor entre nós.

-Acha que ele me reconheceu?

-Acho que a semelhança é inegável, mas você era inteiramente humana, não teria do que

ele desconfiar. Se Bautox soubesse sobre os encarnados, ele não teria poupado a sua vida. Por

outro lado sendo apenas coincidência a presença dele ali, não consigo imaginar que tipo de

negócio os lobos poderiam ter com um humano.

Sorrindo Irad disse:

-Estou deixando você agitada, é melhor pararmos com esse assunto por aqui. Você terá

tempo para se preocupar com isso mais tarde. Agora importa que você se sinta segura para

que possa resgatar sua memória.

Mudando de assunto rapidamente o rei perguntou:

-Ádria, o Maviael contou detalhes a seu respeito, sobre o passado?

-Não. Ele saberia contar?

-Não sei dizer.

Mas algo me dizia que ele sabia. Porém era a primeira vez que eu conversava com o rei,

não queria ser impertinente mesmo em se tratando do meu passado.

-O Maviael demorou de ser encontrado?

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-Ah não, com cem anos de busca após a profecia, o marcador correu o próximo número e

ele foi encontrado na Escócia.

-Quem o achou?

-Eu.

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Capítulo 13

O presságio de Semíramis

Nebet entrou na sala no exato momento em que o rei terminara de me revelar que ele

mesmo teria resgatado Maviael. Minha surpresa agora era indisfarçável, se ele mesmo

resgatou Maviael isso significa que a ligação do rei com o guerreiro era forte o suficiente para

que ele saísse da segurança do seu reino e se arriscasse para tê-lo de volta. Em contrapartida o

rei conversava comigo com uma intimidade que parecia ser habitual, porém ao observar o seu

tratamento com os outros não percebi o mesmo tom de espontaneidade.

-Vossa majestade!

Disse Nebet, respeitosamente.

O rei virando-se para mim, disse:

-Imagino que o meu tempo com você tenha acabado Ádria, mas espero sua visita em

breve para uma nova conversa.

-Certamente!

-Nebet.

-Sim majestade!

-Conduza Ádria ao seu próximo destino e após isso chame Maviael aqui.

-Sim majestade!

-Até mais minha filha!

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-Até mais Irad.

Saímos pelo mesmo caminho do qual viemos e chegando ao elevador perguntei a Nebet.

-O rei recebe a todos os guerreiros?

-Sim. Quando chegam aqui o rei os recebe e lhes deseja boas-vindas, pessoalmente. A

medida que suas memórias são restauradas o laço entre eles é fortalecido com lealdade e

respeito, pois o nosso rei é um grande sábio. Os guerreiros encarnados e os outros vampiros,

geralmente o procuram para pedir conselhos. Porém, raramente o rei os chama em seus

aposentos. Poucos tem esse acesso e com o tempo você se lembrará que o seu acesso a ele é

ilimitado.

“Ilimitado? Nebet falou com naturalidade. É estranho que todas as pessoas saibam coisas

sobre você sem que possa se lembrar delas.”

O elevador subiu até o andar desejado e ao sairmos dele entramos em um andar que era

uma grande mistura de jardins e construções de pedra, como um castelo antigo. Entramos

numa pequena capela no centro do lugar e uma mulher ruiva, muito bonita nos recebeu.

-Na hora exata! Ádria, estava ansiosa por sua visita!

O seu sorriso era familiar, talvez ela me lembrasse a Sal por causa dos seus cabelos

vermelhos. Mas não tenho certeza se era mesmo essa a razão da familiaridade que eu sentia.

-Elizabeth, está é Semíramis, a profetiza de Eória.

Em seguida a apresentação, Nebet saiu rapidamente sem dizer nada mais.

-Aparentemente ela é muito harmônica, mas pessoalmente é um tanto fria.

Semíramis falou se referindo a Nebet.

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Eu não fiz comentários. E ela prosseguiu.

-Apesar de chegar recentemente e não se lembrar de nada ainda, sinto que o seu espírito

conservou em você o jeito cauteloso que sempre a caracterizou. Ela sorriu espontaneamente e

girando ao meu redor me observou mais de perto.

-Quando um eoriano surgi, eles os trazem até mim para que seja revelado os segredos

escondidos da sua alma e seus caminhos.

Pausa...

-Quando você veio aqui a primeira vez eu disse que amor e dor andavam ao seu lado de

mãos dadas. Geralmente os presságios são sempre de vitória, conquistas e honra ou mesmo de

perdas, derrotas... mas sempre muito objetivos. No seu caso não foi assim. Você era nossa

melhor guerreira e, no entanto o oráculo não revelou combates bélicos, mas sim íntimos. Não

tenho dúvidas quanto a guerreira da profecia ser você, mas me pergunto se a paz conquistada

será por meio de uma grande batalha entre lobos e vampiros, ou se será um caminho que você

deverá trilhar sozinha?

-Não lembro de nada. Mas este lugar... você... é tão...

-Familiar?

-Sim.

-Você costumava muito vir a mim na antiga Eória, principalmente quando precisava

manter-se calma.

-Você vai fazer alguma revelação ao meu respeito hoje?

-Se você desejar guerreira!

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-Por favor, eu desejo que faça.

Saímos do lugar e entramos numa espécie de santuário, sem imagens. Apenas velas e

incenso em todo lugar e uma mesa pequena sobre um grande tapete no centro do salão imenso

ao nosso redor. Não havia mais nada além disso ali. Nos aproximamos da mesa, Semíramis

sentou-se no tapete e fez um gesto para que eu sentasse a sua frente. Eu fiz. Ela pegou minhas

mãos nas suas, e de olhos fechados depois de alguns minutos, pronunciou:

“Dor e amor seguem ao seu lado, um sobrevém ao outro constantemente, o destino de muitos

dependerá da sabedoria de um, uma alma restaurada estará pronta quando o autodomínio

estiver completo, no final de um ciclo, a verdade será o caminho da salvação”.

Semíramis abriu os olhos e disse:

-Nada mudou para você.

-Mudou para os outros?

-Sim. Com exceção do Maviael.

Ao dizer isso ela me sondou com os olhos.

-O que disse a ele?

-Não posso revelar-lhe isto.

-Mas dessa vez eu senti algo mais em você, vi mais claramente do que antes.

-O que viu?

-Lágrimas, dúvida, escolhas...

-Não faz sentido pra mim, talvez quando eu recuperar minha memória...

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-Não diz respeito ao passado. Quando revelei a você no passado eu falei de futuro e essa

realidade ainda é verdadeira.

-Eu não sabia do que se tratava?

-Não.

Não se preocupe sinto que suas revelações estão mais próximas agora de acontecer. Só

não ignore o que foi dito. Na hora certa saberá qual decisão tomar.

-Existe algo que você não está me contando Semíramis?

-Ádria!

Ela não respondeu. Apenas sorriu de leve.

-O tempo é o senhor de todas as coisas! Nebet!

-Semíramis! Hora de ir Elizabeth.

-Sim.

-Até mais Ádria!

-Até mais Semíramis!

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Capítulo 14

Recordações de uma vampira

Fomos para o mesmo andar da sala de conferência, numa das portas laterais do corredor

prateado, do lado esquerdo, entramos. A sala estava à meia luz e parecia pequena. Um

vampiro idoso veio até nós e eu o reconheci.

-Rashne!

-Isso mesmo Ádria! É bom revê-la.

-Nebet, obrigado por ter trazido a Ádria até aqui.

Eles se olharam como se estivessem se estranhando.

-Eu venho buscá-la mais tarde Elizabeth.

Nebet saiu da sala sem pressa e bateu a porta de leve ao sair.

-Não entendo o que Irad vê na Nebet!

Notei que o tom que Rashne usou para falar do rei, foi íntimo. Logo ele se virou para

mim e disse:

-Aí está você!

Mudando imediatamente de assunto.

-Sabe o que veio fazer aqui?

-Lembrar.

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-Isso mesmo.

-Como fará isso?

-Simples. Hipnose.

-Você quer dizer regressão?

-Em parte. Porque acha que trariam você a sala de um senil?

-Pela sua experiência?

-Hahahahhaa!

Ele gargalhou.

-Você quer dizer por eu ser um velho fofoqueiro.

Rimos juntos e ele prosseguiu:

-Basicamente isso... relaxe aqui.

E apontou um divã em frente a uma cadeira.

-Que atual!

-Não sabe quanto isso é antigo minha pequena guerreira!

O som de suas palavras me lembrou alguém que eu adoraria que estivesse descobrindo

aquele novo mundo comigo.

-Agora relaxe e respire profundamente, inspire e solte. Mais e mais, quando eu contar até

três você retornará a antiga Eória.

-Um...dois...três.

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Eória ano de 328 d.C...

Eu estava andando no meio de um conjunto de jardins imenso, era dia, o sol estava quase

se pondo, a cor do entardecer deixava aquele lugar ainda mais bonito. Eu estava vestida com

um vestido verde água e um véu do mesmo tom de verde com dourado ao redor da cabeça e

ombros. De onde eu estava dava para ver o incrível palácio branco de arquitetura indiana. Eu

me sentia em paz! Alguém se aproximou de mim, era Maviael, ele passou os braços ao redor

da minha cintura e parados ficamos admirando o sol se esconder no horizonte. Mais alguém

se juntou a nós, era o rei Irad, ele chegou silencioso e contemplativo, ao seu lado Rashne. Não

demorou muito o céu escureceu e deu lugar a lindas estrelas e a lua nova.

-A dança perfeita dos astros!

Rashne elogiou.

-A morada dos espíritos dos nossos ancestrais que descasam em paz.

Apontando para as estrelas, Irad concluiu.

-Meu pai!

Maviael o beijou na face.

-Filho! Linda noite para um passeio com a sua bela esposa. Filha!

Irad beijou minha face.

-Senhor meu sogro!

Maviael pegou minha mão e me puxou para caminharmos pelo jardim. E ao pararmos

perguntei:

-E qual a opinião do meu senhor sobre a mágica das estrelas?

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-De que nenhuma delas teriam sentido para dançar se não houvesse os olhos da minha

senhora para contemplá-las.

Nos beijamos e a cena mudou.

Eória ano de 532 d.C.

Eu estava no mesmo jardim, era madrugada, e desta vez estava vestida e armada como

uma guerreira, ao meu lado muitos guerreiros sob o meu comando, corríamos em direção ao

palácio, o rei estava aflito e muitos vampiros se amontoavam apavorados, assim que

chegamos ao palácio, os direcionamos para a fuga, enquanto desciam uma escadaria,

voltamos para entrada do castelo bloqueando a passagem. Mas os inimigos eram muitos e

vinham de toda parte. Matamos o máximo que conseguimos, porém a rendição foi inevitável,

o palácio foi destruído. Um homem imenso forte como um urso, saiu do meio dos lobisomens

e urrou. Todos os lobos vestidos com armaduras, mudaram sua aparência para a forma

humana. Depois ordenando a um dos seus, mandou-o tocar fogo no palácio. Quando o

segundo homem se aproximou do primeiro, este o reverenciou como um rei, e deu-lhe a

palavra:

-Meus filhos...

Ele se referiu a orda ao seu redor. Eu imediatamente o reconheci.

-Sneferu.

Ele tinha um olhar sombrio.

-Hoje começa o dia da nossa revanche sobre esses que nos exploraram por séculos. Hoje,

os filhos dos lobos, tendo a mim o deus lobo que encarnou na Terra, como seu líder,

pegaremos de volta tudo que nos foi tirado, nosso direito de agir conforme eu os criei; livres.

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Os homens lobos urravam em sinal de concordância. O homem era de uma cor

amarelada e cadavérica. Ele apontou para o troglodita ao seu lado, e disse:

-Bautox!

-Sim mestre.

-Traga os líderes vampiros.

Este estalou os dedos, e dois homens lobos empurraram a mim, ao Maviael e a um outro

vampiro até eles. Me olhando ele ironizou.

-Como podemos ter ficado tanto tempo sob o julgo de seres comandados por uma fêmea?

E gargalhou juntamente com seu troglodita.

-Bautox, junte o restante dos guerreiros para ouvirem as suas sentenças.

Meu ódio por aquele lobo gigante era tão grande, quanto o ódio no olhar que ele lançava

em minha direção. Nos encarávamos o tempo todo. Assim que todos os guerreiros foram

juntados, Sneferu pronunciou:

-Todos os guerreiros vampiros perecerão hoje mesmo, sem misericórdia para que sirvam

de exemplo a todos os outros caso pensem em rebelar-se. E eu decreto hoje como novo

soberano e deus vivo, que todos os vampiros estão banidos da face da Terra, estes deverão ser

caçados e mortos, até não restar mais nenhum indivíduo desta escória.

Dizendo isso cuspiu no chão.

Foi colocado uma grande pedra no centro e com um machado, Bautox começou a

decapitar e queimar um de cada vez dos soldados do exército de Eória. Eu, Maviael e um

outro general, ficamos para depois e cada soldado que subia, procurava apoio em nós. Eles

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sabiam que chegaria nossa vez e quando ela viesse nosso dever estaria cumprido, pois

teríamos conduzido um a um, até o seu leito e com eles morreríamos. E sem desespero

entravam na fila para morrer corajosamente, como era de se esperar que grandes guerreiros

agissem, Bautox ria de satisfação, mas o que ele não sabia é que não estava matando um

exército de soldados vencidos. Aaquela postura transcenderia a morte, por que os deuses são

justos. Eu olhei para o Maviael, e balancei a cabeça em sinal de aprovação e ele retribuiu o

gesto com a postura de um general imbatível. Tudo escureceu e eu acordei.

-Ó meu Deus, o Bautox é o homem da floresta.

-O que disse?

-Nada.

-Você se lembrou de quem era o Bautox?

-Sim.

-Hum. E o que mais?

-Eu vi um tempo de paz e depois um tempo de guerra e como aconteceu.

-Acho que se lembrou bastante, se esforçou muito por hoje. É melhor pararmos por aqui.

-Obrigada Rashne!

-Não tem de que guerreira!

Sorrindo ele me deu a mão e me ajudou a levantar. Como sempre Nebet apareceu no

momento exato.

-Hora de ir Elizabeth. Por hoje é só.

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Concordei e saímos.

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Capítulo 15

O amor do passado

Entrando em minha dependência as luzes acenderam automaticamente e eu me joguei no

sofá.

-Fome?

-O que?

O susto foi tão grande, não percebi Maviael quando entrei.

-Como entrou? Achei que a dependência reconhecia apenas ao seu proprietário?

-Eu tenho um pedaço do seu vestido, acho que é o suficiente.

Rimos e eu estendi o braço para pegar o copo em sua mão.

-Então...dia produtivo?

-Sim.

Ele se aproximou e sentou-se ao meu lado. Eu me lembrei da cena do jardim e meu

coração disparou.

-Você visitou Rashne?

-Sim.

-E teve êxito com suas lembranças?

-Porque não me contou?

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-Sobre o quê?

-Sobre você ser filho do rei?

-Isso é irrelevante.

-Do que mais se lembrou?

-Bautox.

-Imaginei isso também.

-É o mesmo homem da floresta, o mesmo que atirou em mim. Por que não contou ao rei

que ele tentou me matar?

-Por que não estou entendendo essa história direito. Se ele soubesse sobre os encarnados

e sobre você, principalmente naquele momento, ele poderia tê-la estraçalhado, até mesmo ter

se alimentado de você. Mas ao invés disso ele atirou em você como se fosse uma humana

qualquer. Por quê?

-É mesmo estranho!

“Pensando bem ele tinha razão. Aquele lobo não hesitaria em acabar comigo uma segunda

vez.”

-Algo muito estranho está por trás de tudo isso.

-O rei disse que admitir que o Bautox sabia sobre mim, é o mesmo que ter certeza de que

um traidor vive entre nós.

-Ele tem razão e isso é algo muito sério. Antes dessa hipótese ser levantada deve-se

investigar com cautela os últimos acontecimentos. E talvez até mesmo investigar o Bautox

mais de perto, para saber o que realmente está acontecendo.

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-Era isso que o rei queria quando mandou te chamar após minha visita?

Ele me olhou desconfiado e disse:

-Não. Outros assuntos.

Como quem está querendo privacidade não deu mais explicações, entendendo me calei e

mudei de assunto:

-Por que Rashne não gosta da Nebet?

Perguntei tentando não pensar na pergunta que eu queria fazer desde que começamos a

conversar, ou seja, sobre nós.

-Rashne acha que Nebet, deve ser tratada como a sua família, mas o rei insiste em tê-la

por perto.

-Tratada como sua família?

-Sim. O seu irmão foi condenado por alta traição.

-Katep?

-Não. Nimlot. Você se lembrou do Katep também?

-Não. Eu apenas perguntei a Nebet se ela tinha sido uma encarnada e ela falou do irmão.

-Hum!

-É melhor deixar você descansar.

E levantando como na noite passada caminhou até a porta. Mas antes que saísse eu tomei

coragem e disse:

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-Eu me lembrei de você, de nós...

Ele se virou para mim e com olhos cheios de lágrimas, disse:

-Há muitos anos tenho esperado por este dia.

E caminhando em minha direção, perguntou:

-O que viu?

Eu disse:

“-E qual a opinião do meu senhor sobre a mágica das estrelas?”

E ele respondeu para a minha surpresa:

“-De que nenhuma delas teriam sentido para dançar se não houvesse os olhos da minha

senhora para contemplá-las.”

E em seguida me beijou demoradamente. Meu coração estava aos pulos e quando nos

afastamos após o beijo eu estava completamente sem fôlego e extremamente feliz.

-Ah Ádria! Sei que ainda precisa lembrar de muitas coisas, mas estava ansioso e com

medo de que você me rejeitasse.

-Não me disse que isso poderia acontecer.

-É difícil, nenhum outro encarnado rejeitou seus hábitos antigos, suas famílias, amigos

ou qualquer coisa que fazia parte deles. Mas você poderia ser a exceção. Já que eu trouxe

você antes da hora. Eu falhei...

-Maviael! Você está mesmo se culpando pelo que aconteceu na floresta?

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-Eu já vi você morrer uma vez, e não pude fazer nada. Na floresta, com o Bautox

novamente agredindo você eu tive que me manter muito frio, quase não consegui. Se eu

tivesse tirado você de lá antes...

-Se você tivesse me tirado antes de lá toda a polícia humana estaria atrás de mim, o caso

teria grande repercussão e os lobos suspeitariam, ou pior o Bautox poderia não está sozinho e

você não teria chance alguma, nem de salvar a mim, muito menos a si próprio.

-Eu sei, eu... você não sabe como foi da primeira vez...

-Eu sei, lembrei disso também.

-Então viu o quão covarde eu fui.

-Não vi covardia alguma, vi honra!

Os olhos dele brilharam e ele sussurrou:

-Então agora que sabe como aconteceu, não me culpa? Não acha que eu deveria ter

resistido e mantido minha postura?

-Você morreu em combate Maviael, ficou ao lado dos seus companheiros, de pé, com a

cabeça erguida, dando força aqueles que se foram antes de nós. Foi isso que eu quis que você

entendesse quando te olhei pela última vez. Não deixamos nossos inimigos nos verem

desesperados, mas sim de cabeça erguida, com honra!

-É por isso que você sempre foi a melhor entre todos os guerreiros!

Ele ficou estranho ao pronunciar essas palavras.

-Você era tão bom quanto eu.

-Mas eu sempre tive uma fraqueza.

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-Fraqueza? Qual?

-Você!

Não sabia o que pensar. Ele não parecia ser minha fraqueza naquela lembrança, mas sim

minha força, meu orgulho. Será que eu descobriria em minhas lembranças um Maviael

inseguro e dependente? Não consigo imaginá-lo assim.

-Não diga isso! Você não era minha fraqueza e sim minha força!

-Essa sempre foi a grande diferença entre nós. Essa sua forma de ver as coisas. Sempre

firme, decidida.

-Eu o admirava Maviael, foi isso que eu senti naquela hora.

Ele pareceu se perturbar com isso. A conversa estava tomando um rumo estranho.

Resolvi interromper antes que discutíssemos.

-Estou cansada, nos vemos amanhã?

-Sim. Boa noite minha senhora!

-Boa noite Maviael!

Eu estava enganada, ou havia um ressentimento do Maviael comigo, com relação a

minha postura como guerreira? Não sei, mas não tomaria decisão alguma sobre nós até

descobrir todo o passado. Algo me diz que o rei sabe de muitas coisas, mas não sei se me

falaria algo. Não parece ser a postura do rei revelar intimidades de quem quer que fosse,

mesmo a alguém de sua confiança. Rashne! Ele me responderá. Amanhã mesmo vou procurá-

lo.

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Depois de ter ajustado as coisas na minha cabeça, resolvi me deitar, mas estava tão

ansiosa pela conversa que queria ter com Rashne que demorei a pegar no sono.

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Capítulo 16

O soldado injustiçado

Na “manhã” seguinte sai da dependência assim que acordei, desci até o andar da sala do

Rashne, de frente a porta, pensei comigo mesma que não perguntaria diretamente nada a ele,

mas o sondaria como fazia com o senhor Trevor quando tinha alguma dúvida. Balancei a

cabeça e apertei a campanhia. Rashne abriu e sem surpresa sorriu do outro lado.

-Bom dia, Ádria!

-Bom dia, Rashne! Desculpe chegar sem avisar, mas ontem eu me lembrei de muitas

coisas que me deixaram confusa e gostaria de ajuda. Você está ocupado?

-Não pequena, entre.

-Obrigada!

-Então, vamos nos sentar um pouco, creio que essa conversa será demorada.

Sentamos e logo ele perguntou:

-Em que posso ajudá-la?

-Ontem na minha última lembrança eu vi todo um exército de vampiros ser encurralado

por lobos e morto por Bautox, preciso que me conte o que sabe sobre aquela noite.

-Sim, sim, sim. Já esperava por essa pergunta quando me disse ontem o que havia

recordado.

Continuou:

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-Lembro-me como se fosse hoje. Estávamos comemorando o aniversário do rei. A festa

avançava pela madrugada nos jardins, a maioria dos guerreiros tinham sido dispensados de

suas funções aquela noite, para que pudessem prestigiar Irad. Todos dançávamos alegremente

até que o tumulto começou. Alguém avistou lobos armados vindo de todas as direções, como

um exército nos cercando. Ficou evidente que se tratava de um ataque e pela ânsia com que

demonstravam em sua postura ao caminharem até nós, eles iriam massacrar a todos sem

misericórdia. Eles já estavam próximos do palácio e eram muitos. Por isso você decidiu tirar

todos, o povo e o rei dos jardins e improvisou uma fuga pelos túneis do subsolo perto das

masmorras. O rei queria resistir, mas você o convenceu dizendo que o povo precisaria mais

dele que vocês naquele momento. Então bloqueando a passagem da entrada do palácio com os

guerreiros sobre seu comando vocês impediram que eles fossem atrás de nós. Dando-nos

tempo necessário para ir bem longe dali.

-Onde estava Maviael?

-Maviael? Não me lembro. A confusão era grande. Eles nos pegaram de surpresa.

-Como descobriram sobre a traição?

-Não descobrimos.

-Nem suspeitam de quem tenha sido?

-Ah! Sim.

-Quem?

-Nimlot irmão da Nebet.

-Por quê?

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-O Maviael o viu conversando com um lobo próximo ao muro do palácio, um dia antes

do acontecido.

-Maviael?

-Como sabem sobre isso?

-Maviael recordou quando foi resgatado, aqui mesmo nessa sala.

-Quem era Nimlot? O que aconteceu com ele?

-Nimlot era um soldado do segundo batalhão de Eória. Ele morreu.

-Foi condenado?

-Não. Morreu na batalha junto com vocês.

“Não faz sentido. Por que trairia sem garantias de que seria poupado?”

-Rashne...

-Sim.

-Algum dos soldados teve sua memória completamente restaurada?

-Comple-ta-men-te... sim. O guerreiro Katep. Mas... Ádria se estiver pensando em ir até

ele para perguntar sobre aquela noite é melhor ter cautela, pois, após as suspeitas de que o

Nimlot seu irmão seria o suposto traidor, Katep sofreu a grande vergonha de ser afastado de

sua função de guerreiro e sua família perdeu o direito de representar perante o conselho, assim

como seu título de nobreza. A única que permaneceu num cargo de confiança próximo ao rei

foi a Nebet.

-Vocês o condenaram sem ter certeza? Sem julgamento?

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-Mocinha a palavra de um vampiro é mais certa que a própria morte.

-Então o Nimlot se entregou depois da acusação?

-Não fazemos interrogatórios e nem investigações aqui se é o que você deseja saber. A

palavra do Maviael é mais do que suficiente para o conselho.

“Como uma sociedade pode ser justa, sem que um indivíduo tenha o direito de se defender?

Não faz sentido. Essa história toda parece errada.”

-Obrigada Rashne.

-De nada Ádria, pode vir a hora que quiser será sempre bem-vinda!

Saí da sala disposta a encontrar Nebet, mas onde?

“A única que permaneceu num cargo de confiança próximo ao rei foi a Nebet. Claro!”

Entrei no elevador e subi até o andar do rei. Quando suas portas se abriram eu saí e fiquei

esperando, na porta, ela aparecer. Esperaria o tempo que fosse preciso e pra minha sorte meia

hora depois a porta se abriu e Nebet saiu dos aposentos do rei.

-Elizabeth? Deseja ver o rei?

-Não Nebet, gostaria de falar com você um segundo.

-Comigo?

-Sim. É possível?

-Creio que sim.

-Como posso fazer para falar com o Katep?

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-O que? Você lembrou dele?

-Sim.

Ela me olhou desconfiadamente e resolveu me ajudar.

Me chamou para entrarmos no elevador, apertou um símbolo dois andares acima do

andar das dependências e disse:

-Ele não tem falado com ninguém, o velho deve ter lhe contado o porquê, não sei se

conseguirá o que quer, mas caso ele se recuse a conversar, deixe-o em paz! Tudo bem?

-Sim. Dou minha palavra.

Ela calou-se, parecia pensar no que eu disse e não me deu mais respostas. O elevador

parou.

-Vá, ele fica na última dependência.

-Obrigada!

-Ádria...

Era a primeira vez que ela se referia a mim dessa forma.

-Os meus irmãos sempre a consideraram a guerreira mais honrada do exército.

Pronunciou como se quisesse me dizer algo e calou-se bruscamente, então, sumiu pelo

elevador.

Aquele andar não era nada parecido com os anteriores, era sujo e sem vida. Um andar

para os condenados. As casas eram desordenadas, toscas. Andei até onde elas terminavam e

na última dependência, parei. Não tinha campanhia, bati na porta. Silêncio. Bati com mais

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força. Mais silêncio. Insisti a bater, em seguida, um homem abriu, de súbito, a porta. Era ele,

o general da minha última lembrança. Ele era uma cópia da Nebet, versão masculina, porém

seu aspecto era de cansaço.

-Katep?

-Você? O que faz aqui?

Sua voz era amarga. Mas no momento em que a ouvi minha memória trabalhou

rapidamente e eu voltei no tempo...

-Katep?

-Você? O que faz aqui?

Um lindo guerreiro estava a minha frente com um sorriso acolhedor, e sorrindo nos

abraçamos.

-Ádria, não é bom que nos vejam sempre juntos, algumas más línguas andam dizendo

que foi por sua causa que eu me tornei general do terceiro batalhão.

-Katep, você é nosso melhor guerreiro, o rei admira sua bravura e o Maviael não vê

problemas em nossa amizade.

Eu não me sentia certa quanto ao Maviael ser favorável a nossa amizade. Mas não quis

preocupá-lo com isso.

-Você é nossa superiora.

-Não sou mais sua superiora, agora você é tão general quanto eu ou Maviael.

-Não estou acostumado ainda.

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-Não vou deixar de procurar você por causa de intrigas da oposição.

Rimos...

-Você é o meu melhor amigo e a pessoa em quem eu mais confio. Nunca se esqueça

disso.

Eu sentia como se aquele guerreiro fosse tão importante para mim quanto um irmão

seria, quando disse isso.

-Sim senhora!

Gargalhamos alto, e eu voltei a realidade.

-Como vai?

-Como acha que vou?

-Posso entrar?

-Não deveria estar aqui.

-Por favor, preciso falar...

-Soube que estava de volta, mas não achei que teria a ousadia de vir aqui.

-Porque não teria?

-Porque tudo mudou, Ádria. Se você se lembrar de alguma coisa do passado, vai saber

que agora somos de mundos diferentes.

-Porque me julga tanto? Pensei que você fosse o meu melhor amigo?

Ele se surpreendeu com as minhas palavras e os seus olhos se encheram de lágrimas.

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-Não. Agora eu sou só uma vergonha para o meu povo e para o meu batalhão.

-Isso não faz sentido.

-Está duvidando dá palavra de um vampiro? Maviael viu o Nimlot...

-Não duvido que ele tenha visto, mas duvido que isso seja o suficiente para condenar

alguém de traição.

-O que está dizendo, Ádria? Você, apesar de justa e coerente, jamais foi de encontro ao

Maviael.

-Me conte sobre isso Katep. Me conte sobre o meu relacionamento com os outros

guerreiros e principalmente com Maviael.

Ele parecia confuso com o meu pedido, mas aceitou. Abriu a porta o suficiente para que

eu entrasse em uma pequena sala e apontou para uma cadeira, em seguida sentou-se junto a

mim e começou assim:

-Vocês eram um casal muito unido fora do exército. Mas lá, suas posturas divergiam.

Tinham o mesmo grau de comando e isso causava atrito e desconforto ao Maviael, que

orgulhoso, geralmente, não admitia estar errado, nem aceitava as suas sugestões. Você era a

força, o incentivo e a confiança dos guerreiros. O Maviael era a autoridade e a disciplina.

Você tinha os corações dos guerreiros e sua lealdade e o Maviael tinha o respeito deles.

Habitualmente, em reuniões restritas, vocês discordavam em opiniões sobre estratégias e

comando e sempre discutiam, porém você nunca anulava uma ordem dele, mesmo que

achasse injusta ou incoerente.

-E ele já agiu de forma injusta com o exército?

Ele parou, olhou muito seriamente nos meus olhos, e disse:

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-Uma vez ele puniu um guerreiro por este se recusar a torturar um lobo que havia

desacatado ao rei.

-O que aconteceu?

-Um lobo, Melchior era o seu nome, conseguiu burlar a segurança do palácio e ao se

aproximar do rei ele o acusou de ter matado seu filho. O homem lobo estava inconsolável e

gritava para o rei: “Assassino de lobos! Teremos nossa vingança!”. Nós o imobilizamos e o

levamos. O rei pediu que o soltasse, o soldado iria cumprir as ordens do rei, quando Maviael

interferiu e disse para o soldado puní-lo. O soldado se recusou e ele puniu tanto o lobo quanto

o soldado, trancando-os na masmorra, sem direito a alimentação por dias.

-Eu sabia disso?

-Sabia.

-E não fiz nada?

-Não na frente dos outros soldados, mas me chamou para que fossemos até o rei apelar

pelas suas vidas, o rei não quis passar por cima das ordens de Maviael e tentou persuadi-lo

por dias, até que ele os soltou.

-Quem era esse soldado?

-Nimlot.

-Isso é muito grave!

Eu estava chocada.

“Então havia um histórico entre eles anterior a acusação?”

-Eu sei. E esse foi o argumento irrefutável usado contra o Nimlot. Desejo de vingança.

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-Foi você quem resgatou Nimlot?

-Sim. Há cinqüenta anos.

-Ele se lembra do que aconteceu?

-Sim. Assim como eu, ele recuperou toda sua memória.

-Mas, Rashne me disse que só você se lembrava de tudo.

-Rashne se recusou a ajudar Nimlot, assim como todos os outros, virou as costas para

nós, com exceção do rei e da Nebet, ninguém mais vem nos visitar. Nem mesmo nosso pai.

Por isso, eu mesmo o ajudei com as lembranças.

-Ele está aqui? Eu posso vê-lo?

-Sim. Venha.

Ao entrarmos num cômodo com pouca luz, vi um vampiro abatido deitado.

-Nimlot tem alguém aqui querendo vê-lo.

Ele não se mexeu.

-Nimlot!

Eu pronunciei seu nome. Ele, reconhecendo a minha voz, virou-se para mim.

-Generala!

-Nimlot, como se sente?

-Cansado, estou muito cansado.

Segurando o Katep pelo braço, sussurrei:

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-Acha que eu o aborreceria se perguntasse a ele sobre a acusação?

-Fique tranqüila para perguntar o que quiser o Nimlot a respeita muito.

-Nimlot, pode me contar o que houve um dia antes da grande batalha?

Nimlot sentou-se na cama, os irmãos se pareciam muito, aliás, todos eles se pareciam

muito. Porém este parecia ser o mais novo dos três. Ele ficou em silêncio por um breve tempo

e começou assim:

-Um dia antes da grande batalha, eu estava de guarda no turno da noite, faltando uma

hora para terminar o meu turno, Melchior um lobo que eu conheci, foi até o palácio me pedir

para falar com o rei. Eu disse a ele que seria muito difícil que o rei o recebesse e mandei que

fosse embora, expliquei que se o Maviael ou os outros guerreiros o vissem lá, ele não mais

seria poupado. Mas Melchior estava tão nervoso que parecia não me ouvir. Foi quando o

Maviael gritou do alto perguntando quem estava ali e ao reconhecer sua voz o lobo correu

assustado.

-E depois?

-Não o vi mais.

-Nem mesmo no dia da batalha?

-Nem mesmo lá.

-Obrigada, Nimlot!

-Com sangue lutamos por Eória!

Ele levantou e me saudou.

-Até mais!

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-Até mais generala! Você voltará?

-Certamente!

Eu sorri para ele, eu e Katep saímos do cômodo e voltamos para a pequena sala na

entrada da dependência. Ainda em pé eu disse:

-Tenho que ir agora, Katep.

E abrindo a porta para eu sair, disse quando eu passei por ela:

-Não esperaria menos de você, sabia que viria!

-Voltarei com notícias, em breve.

Ele ficou sério e concordou com a cabeça.

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Capítulo 17

A arena

Saí daquele lugar disposta a fazer o que fosse preciso para encontrar o verdadeiro traidor.

Não posso deixar que o Katep e sua família sejam injustiçados dessa forma. Quanto mais eu

pensava nisso, mais eu tinha certeza da inocência do Nimlot. Alguma coisa nessa história não

fazia sentido, havia uma ponta solta e eu iria descobrir onde ela estava.

Descendo dois andares de volta para minha dependência, comecei a pensar qual seria

meu próximo passo.

“Visitar o rei seria o mais correto a fazer; pedir ao conselho que ouvisse o que Nimlot tem a

dizer não é duvidar da palavra do Maviael.”

E enquanto pensava, o elevador passou do meu andar e só então percebi um outro

vampiro dentro dele. Ele era um tipo comum, branco, nem alto e nem baixo, olhos e cabelos

castanhos, forte como todos os outros e bonito. Percebi que ele me olhava insistentemente e

decidi cumprimentá-lo:

-Oi

-Com sangue lutamos por Eória!

-Guerreiro?

-Sim, senhora generala.

-Qual o seu nome, guerreiro?

-Alexis, senhora.

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-Onde estão os outros guerreiros?

-Na arena de treinamento, senhora.

-Me leve até lá, soldado.

-Já estamos a caminho, senhora.

-Ok! Não precisa ficar me chamando de senhora o tempo todo, Alexis.

Eu sorri para ele.

-Sim, senhora.

Ao pararmos as portas se abriram e o que eu vi parecia impossível. Era o coliseu,

impossível não o reconhecer, com seus arcos romanos. Dei passagem ao soldado e em seguida

o segui. Ele, muito naturalmente, passou pelos arcos para se apresentar ao comandante

encarregado. Assim que ele o saudou deu passagem para que o vampiro que estava próximo a

ele me visse.

-Generala?

O homem me saudou, automaticamente. Seu porte físico e sua idade parecia ser a mesma

do Alexis, ou seja, vinte e poucos anos, seus cabelos eram de um preto azulado e liso, seus

olhos eram verdes, e sua beleza incomum. O soldado falou-lhe de orelha:

-Ela não se lembra de nós?

-É possível que ainda não, Alexis.

Eu o escutei dizer e fiz sinal de que a informação era verdadeira antes que o comandante

o advertisse.

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-Eu sou Marcus Aurélius, senhora. Fui designado pelo general Maviael para treinar os

soldados resgatados. É uma honra tê-la aqui conosco. Venha, vou reapresentá-la ao seu

exército.

Andamos até a arena e pude ver o aglomerado de guerreiras e guerreiros em minha

frente. Assim que chegamos Marcus Aurélius bradou:

-Atenção!

Todos ficaram em suas posições.

-Sentido.

Ao me verem saudaram todos de uma só vez.

-Com sangue lutamos por Eória!

Mais uma vez, voltei ao passado... Ao abrir os olhos vi uma grande arena, como a

anterior, porém estávamos iluminados pela Lua. Todos os soldados em suas posições. Eu,

Katep e Maviael estávamos um andar acima em uma varanda e Katep tomou a palavra:

-Guerreiros e guerreiras de Eória, estamos aqui hoje para honrar a lealdade e a bravura

com que cada um de vocês tem demonstrado ao longo de todos esses séculos e reconhecer a

coragem que tiveram ao se alistarem neste exército. Não sabemos que tipo de renuncias

tiveram que fazer para permanecerem unidos e chegarem até aqui, mas sei que podem

deslumbrar todas as suas conquistas com satisfação e honra. Este é o verdadeiro pagamento

que recebem por suas disciplina e lealdade, mais que isso! Receberam uma família, respeito,

um nome na história. São temidos por muitos e alguns de vocês aprenderam a controlar a

ânsia por violência e se tornaram guerreiros sábios, quando entenderam que força não é

intolerância, mas flexibilidade. E por isso este comando os saúda!

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Nós três em posição de sentido repetimos a saudação ao exército.

-Com sangue lutamos por Eória!

E eles repetiram no mesmo tom:

-Com sangue lutamos por Eória!

Foi uma lembrança rápida, mas pude resgatar o orgulho que eu sentia em fazer parte

daquele exército, eles eram a minha família e a nossa obrigação era a de proteger-nos uns aos

outros com as nossas próprias vidas, se fosse preciso.

Então firmemente eu os saudei também.

-Com sangue lutamos por Eória!

Marcus Aurélius se fez anunciar após minha saudação.

-Guerreiros sabemos que nossa generala foi resgatada há poucos dias, todos vocês sabem

o que isso significa, é certo que, com o tempo, tudo tomará seu devido lugar como antes, mas,

desde já, esse comando se sente honrado por tê-la conosco novamente.

Eu entendi que ele se referia as minhas lembranças, quando disse que, “com o tempo

tudo tomaria seu devido lugar”. Quando ele terminou eu me dirigi a ele para me inteirar sobre

os dias e horários dos treinamentos. O que ele atendeu prontamente:

-Nos reunimos todos os dias das treze às dezoito horas da tarde. Intercalamos os

exercícios físicos com os táticos. Treinamos artes marciais, arte com espadas e tiro. Também

aprendemos tudo sobre armamento e estratégia. Além das normas e disciplinas do regimento.

-Ótimo. Quando posso começar?

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-Creio que... somente será possível retomar seu posto quando a memória da generala

estiver reestabelecida.

-Não quero retomar nada agora, comandante. Quero apenas receber treinamento

adequado como um soldado.

-Como um soldado? Mas...o general não apreciará senhora.

-Apenas solicite comandante, o argumento será meu.

-Sim, senhora!

-Liz, por favor!

-Como?

-Meu nome comandante.

Ele pesou o meu pedido por um tempo e concluiu:

-Então é melhor estar acostumada a ser pontual, os soldados indisciplinados são

severamente punidos aqui, soldado Liz.

-Sim, senhor!

Então ele entendeu exatamente o meu pedido e a necessidade de usar meu nome atual e

mais ainda, entendeu a importância de ser tratada como qualquer outro soldado. Por um

instante meu pensamento fugiu dali. Com todos esses termos “senhor” e “senhora”, todo o

tempo, imaginei que a Leonor adoraria isso aqui. Por pensar em passado, como será que a Sal

e o Drew estariam vivendo naquela casa agora que a Leonor e seu filho usurparam minha

herança? Como eu gostaria de trazê-los para cá! O Drew morreria de inveja se soubesse que

eu sou uma generala de um exército milenar. Ri para mim mesma. O covarde não poderia

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mais dá a desculpa de que me machucaria se me enfrentasse. Eu pensava nisso como se

tivesse sido há tantos anos, e, no entanto, há quatro dias atrás eu não fazia idéia sobre tal

mundo.

-Tenho que ir comandante, assim que tiver minha autorização estarei aqui, pontualmente,

senhor.

-Alexis...

-Sim, senhor.

-Acompanhe a soldado Liz até a saída.

-Senhor?

Ele não entendeu o fato do comandante me chamar de Liz e se referi a mim como

soldado.

-Não entendeu as minhas ordens soldado? A senhorita pode acompanhar o soldado

Alexis, ele a levará até a saída.

-Obrigada, senhor.

No caminho de volta, Alexis estava inquieto. Percebi que ele não se sentia confortável

com aquela ordem. Porém não desobedeceria ao seu comandante. E perguntei:

-Algo o incomoda Alexis?

-Não, senhora.

-Liz, soldado. Somos iguais por enquanto, por isso me chame de Liz.

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-Desculpe senhora, mas isso não é certo. A senhora deve lembrar como todos nós e

assumir seu posto com toda a honra que lhe é de direito. A senhora é uma grande guerreira

para ser rebaixada. Ninguém concordará com isso.

-Você diz o general Maviael?

-Também senhora.

-Alexis...

Eu parei e olhei firme para ele.

-Antes de ser generala eu sou uma soldada, e ser uma soldada para mim não é

rebaixamento algum e sim um orgulho.

Os olhos dele brilharam e eu senti que ele entendia muito bem o que eu estava dizendo,

mais que isso, eu vi respeito em seus olhos.

-Chegamos, você precisa que eu a ajude com os símbolos, Liz?

Ele me perguntou apontando para o elevador.

-Não, obrigada! Eu sei aonde ir.

-Até mais irmã!

-Até.

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Capítulo 18

Julgamento precipitado

Entrando em casa percebi o quanto estava cansada e principalmente com sede, antes de

qualquer coisa fui ao estoque e tomei um grande copo de sangue artificial, dirigi-me até a

sala, sentei e percebi um aparelho novo, um telefone fora instalado e uma pequena lista

telefônica deixada junto a ele. Percebi que se tratava de uma rede telefônica interna de Eória.

Isso facilita muito as coisas, pensei. Mas certamente teria cautela em usá-lo. Não que eu

desconfiasse de alguém, mas a história do Nimlot era um alerta na minha mente, até que eu

descobrisse toda a verdade não ficaria tranquila. Fui para o quarto, as horas passaram sem que

eu percebesse, voltei a sala e passei a mão pela lista, vi o número de Maviael e liguei:

-Alô!

-Oi! Liguei para agradecer pelo telefone.

-Ah! Isso! Não é mérito meu. Assim que você foi cadastrada, seu nome foi

automaticamente colocado na lista de instalação.

-Você quer dizer que eu não tenho privacidade nenhuma na minha dependência? Todo

mundo pode entrar aqui?

-Todo mundo não, Ádria. Não foi uma invasão. Eles não pegaram nada, pegaram?

Eu fiquei envergonhada.

-Não é isso... é só que se eu estivesse em casa, eles entrariam aqui sem...

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-Se você estivesse em casa, eles teriam tocado a campanhia, se você não quisesse atendê-

los, eles iriam embora. Porque toda dependência tem um sinal digital que informa se o

proprietário se encontra ou não.

-Desculpe, eu fui grosseira.

-Não precisa se desculpar. Soube que você foi à arena hoje?

-Sim. Eu pretendo voltar a treinar.

-Eu fui informado da sua solicitação também, isso é algo que conversaremos

oficialmente.

-Certamente. Ah... já ia esquecendo, preciso de um favor seu.

-Pois não, minha senhora!

Seu tom mudou e sua voz ficou suave.

-Um relógio, estou sem noção de tempo aqui.

Ele riu do outro lado da linha.

-Como pude esquecer disso! Desculpe, ainda é cedo se você estiver desocupada posso

levá-lo agora para você.

-Adoraria!

-Até logo então.

-Até.

Estou começando a entender como o Maviael funciona. Eu devo ter sido mesmo uma

guerreira. Ri alto. Mas apesar das diferenças a ligação que existe entre nós é mais forte do que

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eu sou capaz de controlar. Com o tempo creio que ela aumentará ainda mais, quando minhas

memórias voltarem.

A campanhia soou.

-Oi!

Ele não me respondeu, apenas entrou e me beijou.

-Minha senhora, trouxe o seu relógio.

Mas as suas palavras soaram estranhas, como se eu tivesse inventado uma desculpa para

vê-lo.

“Deixa pra lá.”

-Obrigada estava perdida com as horas.

O relógio marcava 04:00 AM, eu me assustei ao ver o quão tarde era.

-Nossa como é tarde!

-Tarde!

-É madrugada!

Ele riu.

-Somos seres da noite meu bem, esse é o melhor horário para nós, é claro que aqui não

temos dia ou noite, mas instintivamente seguimos a lua, nosso metabolismo começa a acelerar

ao anoitecer da superfície e ao fim do dia, para nós, ele está no ápice, ao amanhecer é o

período em que nos encontramos mais cansados.

-Quando será decidido sobre a minha solicitação?

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-Você receberá um convite para uma conversa.

Fiquei agitada, mas me contive. Não era hora nem lugar para falarmos sobre isso.

-É melhor eu ir.

-Certo.

Ele me olhou seriamente e disse:

-Não tem nada para me dizer?

-Não. O que eu deveria dizer a você?

-Você foi até o Katep, hoje?

-Fui. Como soube?

-Todos ficam sabendo quando alguém vai até o andar dos desonrados.

Eu fervi por dentro. Katep não era um desonrado e eu iria provar isso para todo mundo e

todos pediriam a ele perdão pelo que fizeram. A começar por Maviael.

-Está tarde é melhor você ir.

-O que foi fazer lá?

Ele ignorou minha observação.

-Fui visitar um amigo.

-Devo alertá-la que o seu amigo não é bem visto pela nossa sociedade e que ficar de

visitas a ele é se condenar também.

-Ótimo, estou acostumada com poucos amigos.

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Eu senti que ele se irritou com as minhas palavras, mas resolvi manter a calma e repeti:

-Está tarde é melhor você ir.

-Boa noite, Ádria.

Ele falou secamente.

Boa noite, Maviael.

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Capítulo 19

Desfazendo desenganos

-Alô, Nebet?

- Oi Ádria! Precisa de alguma coisa?

-Sim. Preciso que me ajude a falar com o rei.

-Você tem acesso livre Ádria. Só precisa fazer o mesmo que me viu fazendo e entrar.

-Não preciso agendar visita?

-Precisaria se fosse outra pessoa, mas sendo você não.

-Ok! Obrigada!

-Não tem de quê.

Nebet estava amistosa comigo desde a minha visita ao Katep. Ela tinha agido de forma

fria com todos a minha volta, inclusive comigo, enquanto me guiou por Eória dias atrás, mas

eu tive uma excelente impressão a seu respeito quando a vi pela primeira vez.

Saí apressadamente da dependência e percorri todo caminho imaginando como abordaria

o assunto “Nimlot o traidor”, com o rei, se eu dissesse qualquer coisa errada ou fosse

precipitada poria tudo a perder. Estando de frente a porta de segurança máxima, eu a saudei e

em seguida pus meu rosto no identificador e a porta se abriu. Os guardas estavam lá, porém

dessa vez não me acompanharam. Entrei e passei pelo corredor indiano ao fim segui para sala

do rei. Ele estava sentado, a minha espera.

Page 123: Livro julianna i

123

-Que bom revê-la, minha filha!

Eu sorri um pouco sem jeito, pois sabia que o motivo que me levou a procurá-lo talvez o

irritasse.

-Igualmente, Irad!

-Posso fazer alguma coisa por você hoje, minha filha?

Era a minha deixa, eu tinha que aproveitá-la.

-Sim. Existe uma dúvida senhor que só o senhor poderia me esclarecer, pois acredito que

só a sua sabedoria entenderia o que me aflige.

-O que está afligindo você, minha criança?

-Começo a compreender que o senhor era como um pai para mim e eu não teria coragem,

nem confiança de perguntar isso a mais ninguém.

-Prossiga...

-Desde que fui resgatada eu ouvi mais de uma vez a seguinte afirmação: “A palavra de

um vampiro é mais certa que a própria morte”.

-Sim. Um vampiro fará qualquer coisa para honrar uma promessa e qualquer sacrifício

para honrar um compromisso. É motivo de orgulho para nós. A palavra de um vampiro é

sinônimo de confiança. Mas, prossiga com o seu raciocínio.

-Se um vampiro tem uma versão para uma história e um outro, uma outra versão, ambas

verdadeiras, porém a conclusão da primeira liberta e a da segunda condena... Como se

resolveria tal situação?

Page 124: Livro julianna i

124

-Nunca ouvi falar de tal coisa, em Eória. Mas isso significaria que uma das versões

estaria incompleta, e, esta fora interpretada precipitadamente.

-O que poderia ser feito se nesse caso somente a segunda versão fora ouvida e um

homem inocente fora condenado?

-Nesse caso uma audiência extraordinária seria convocada no conselho, afim de que

ambas as partes fossem ouvidas, já que uma não contradisse a outra.

-De quem estamos falando Ádria?

-Do Nimlot, senhor.

O rei não parecia surpreso, e, energeticamente, sorriu dizendo:

-Eu sabia que você conseguiria!

Eu não entendi aquela reação e fiquei apreensiva.

-Sabia o que senhor?

-Que você me daria a resposta para solucionar o caso. Eu passei muito tempo achando

que se acreditasse em um, desacreditaria no outro, quando na verdade é isso, as duas versões

são verdadeiras, ambas vistas de ângulos diferentes sendo interpretadas de formas opostas.

-Como o senhor não pensou nisso antes? É um rei sábio.

-Na verdade estou contando com você para me contar o que ouviu do Nimlot, pois eu fui

diversas vezes visitá-lo depois da acusação, mas ele não me revelou nada, nem ele nem seu

irmão.

Então contei ao rei tudo o que ouvi, ele ficou muito quieto e pensativo. Até que começou

assim:

Page 125: Livro julianna i

125

-Meu filho, Maviael, sempre foi um grande guerreiro, mas a verdade é que lhe falta

prudência, ele age no calor de suas emoções e muitas vezes reage mais do que age. Apesar de

toda sua força ele é inseguro e por isso impõe respeito pelo medo, não é um líder nato, mas

teima em tentar fazer com que as pessoas o vejam como um, carrega a liderança nas costas de

forma tão penosa que parece um fardo, e, quando se sente sufocado, age precipitadamente. O

seu exército sente isso, sua esposa sente isso, seu pai também, somente ele não enxerga.

-Como podemos resolver este mal entendido?

-Primeiro é necessário saber se o Nimlot está disposto a falar. Depois é preciso solicitar,

formalmente, uma audiência extraordinária com o conselho e só o rei pode fazer isso, em

seguida as duas partes devem ser ouvidas. Comprovado o equívoco será restituído ao acusado

e a sua família tudo que perderam, além de um pedido oficial de desculpas do conselho, do

acusador e do próprio rei perante a comunidade, para que não haja dúvidas sobre sua

integridade moral.

-O que posso fazer para ajudar nesse processo, senhor?

-Vá até ele e peça para falar. O restante eu mesmo farei, minha filha!

-Obrigada Irad, o esclarecimento dessa história significa muito pra mim!

-Pra mim também!

-Agora, que tal uma bebida?

-Hum?!

-Vamos brindar, a verdade?

-Claro!

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126

E o resto da noite conversamos sobre a história, arte, música e literatura no meio

vampírico, o Irad me explicou sobre a influência indiana em sua vida e sobre como ele se

tornou rei, e também, como sua esposa não resistiu a transformação. As horas passaram e eu

resolvi me recolher, antes que eu saísse da sala ele reinteirou seu compromisso quanto ao

esclarecimento dos fatos e nos despedimos.

No dia seguinte, fui até a dependência do Katep, contei a ele toda a conversa que tive

com o rei no dia anterior e pedi que me ajudasse a fazer com que o Nimlot contasse sua

versão, no conselho.

-Katep, é importante que ele fale. Um grande equívoco será esclarecido.

-Eu sei disso, Ádria. Acha que gosto de viver aqui? Até nesse lugar entre os excluídos

somos excluídos também. As pessoas se afastam de nós. Viram a cara. Cospem no chão

quando passamos. Fomos acusados de alta traição. Se tudo isso fosse verdade seríamos

responsáveis por todas as mortes e humilhação a qual nós, Eorianos, sofremos nas mãos dos

lobos. Eu, mais do que ninguém, sei da importância do Nimlot ter a oportunidade de falar no

conselho.

-Então...?

-Todavia, não posso obrigá-lo, Ádria. Ele sofreu muito com tudo isso e se isolou de tudo

e de todos; a verdade é que você foi a única pessoa, de fora, com a qual ele conversou depois

de todos esses anos, nem mesmo o rei, ou mesmo a Nebet conseguiram fazer com que ele

dissesse uma só palavra. Não sei se ele conseguirá e eu não o culpo por isso.

-Ah Katep, sei que seria incapaz de culpá-lo, principalmente por algo que está além do

seu controle, entretanto, me prometa que vai tentar e me deixe tentar também. Só tentar!

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-É justo!

-É sim. Vamos?

-Me deixa respirar um pouco.

Ele se sentou e se acalmou. Então levantou.

-Vamos!

Chegamos ao quarto do Nimlot, e ele estava exatamente como da última vez.

-Nimlot?

Katep o chamou.

-Você tem visitas hoje. É a generala!

-Generala!

Ele se virou na cama e se sentou.

-Oi Nimlot, eu disse que viria novamente!

-Sim. Eu não duvidei da sua palavra. Só não sabia quando viria de novo.

-Ela veio te pedir algo, Nimlot.

-O que generala? O que posso fazer pela senhora?

-Eu preciso que conte para o conselho sobre a história daquela noite em que viu o lobo

Melchior. Acha que pode fazer isso, Nimlot?

-Ah... no conselho? Muita, muita gente... talvez melhor não.

-Eu estarei lá com você.

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-E eu também.

Disse Katep.

-Eu não sei...e a Nebet? Estará lá também?

-Se você quiser, ela estará.

Eu falei devagar.

-Sim quero! Ela tem que ir.

-Certo. Isso significa que você contará a eles tudo o que aconteceu. Acha que consegue?

-Não sei, maaasss... acho que sim.

Aquelas palavras foram um alívio para mim e quando olhei para Katep vi que para ele

também era consolador aquela esperança.

-Bem, providenciarei para que o rei saiba que o Nimlot concordou, assim ele pode dar

entrada na solicitação para sessão extraordinária o quanto antes.

-Até mais, Nimlot!

-Até mais, Katep!

-Até mais, generala!

Falou o Nimlot.

Os olhos de Katep estavam cheios de lágrimas, mas ele estava respeitosamente se

contendo e se despediu de mim com um aceno.

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Chegando em casa liguei para a dependência do rei e deixei-o ciente de tudo. Agora era

só uma questão de tempo.

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Capítulo 20

Acusações dolorosas

Na semana seguinte recebi o resultado da solicitação do meu pedido de readaptação ao

exército como soldado. O pedido foi negado. Eu recorri com argumentos efetivamente

convincentes, sobre como ter a necessidade de me atualizar com os novos métodos de

treinamento e de como isso seria bom, quando eu me recordasse do passado. Além de me

ajudar a conhecer as atuais necessidades dos soldados sobre o meu comando. Mais uma

semana se passou e eu fui convidada para ser ouvida. Chegando lá repeti todos os argumentos

à comissão chefiada por Maviael, que era constituída de mais quatro comandantes, eu

reconheci o comandante Marcus Aurélius, mas os outros três não. E após discutirem o caso

entre si, aceitaram meu pedido para voltar para o exército como soldado Liz. Me empenhei

muito nos treinamentos, pude me aproximar dos guerreiros e conhecê-los mais de perto. Eu

não tinha tratamento diferenciado e isso ajudou muito a reconquistar o respeito e a confiança

de todos. Dois meses se passaram e finalmente o conselho resolveu apurar o caso “Nimlot”.

Posto assim, fui imediatamente ter com o rei.

O Maviael estava inconsolável, os seus gritos davam para ser ouvidos desde a entrada da

dependência real.

-COMO PODE DUVIDAR ASSIM DA MINHA PALAVRA, PAI? AGORA EU

ESTOU HUMILHADO NA FRENTE DE TODOS. O PRÓPRIO REI, MEU PAI,

CONVOCAR O CONSELHO PARA ME QUESTIONAR?

O rei nada disse, Maviael tremia de raiva, ele não entendia que se tratava da inocência de

um vampiro e sua família e não de humilhá-lo como ele acusava o pai de ter feito.

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-SE VOCÊ NÃO CONSIDERA SEU PRÓPRIO FILHO, EU TAMBÉM NÃO O

CONSIDERO COMO PAI.

Dizendo isso cuspiu no chão. Eu senti um ímpeto de indignação com tamanho

desrespeito e entrei de súbito na sala, olhando para ele com firmeza.

-Eu devia saber que você também estava metida nisso. Traidores! Meu pai e minha

mulher.

“Minha mulher”? Eu ainda não me decidi quanto a isso mas, não começaria uma nova

discussão. Não vendo o estado do rei com a reação de Maviael. Maviael saiu calado, tomado

de ódio. O rei continuava em silêncio como se não estivesse ali. Tomei coragem e me

aproximei perguntando:

-Sei que nada que eu diga o consolará diante de tantas palavras cruéis. Mas existe algo

que eu possa fazer pelo senhor rei?

Seu olhar triste encontrou o meu e ele sorriu sem entusiasmo.

-Filha, poderia se abrigar de uma grande tempestade apenas com um guarda-chuva? Sou

o rei, sou responsável pelas vidas de milhares de vampiros e vampiras, tenho muitos sob meu

comando, o próprio exército primeiro obedece ao seu soberano e rei, e no entanto, nunca

soube governar meu próprio filho. Não acho que você possa me ajudar, existem coisas que ele

precisa descobrir sozinho e eu devo deixá-lo descobrir, mesmo que isso me corte por dentro.

É necessário que ele cresça ,e, infelizmente, seu crescimento, por minha culpa, será pela dor.

-Por que diz isso, senhor?

-Porque é a verdade, Ádria!

-Gostaria de ajudá-lo, talvez se eu conversasse com ele, talvez ele me ouvisse.

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-Ele não ouvirá ninguém, esta se sentindo traído. O melhor a fazer é deixá-lo refletir e

torcer para que ele enxergue que nem tudo é sobre ele.

-Nenhum pai ou mãe deveria se culpar pelo que se tornaram os filhos, todos somos

responsáveis por nossas próprias escolhas e devemos arcar com os nossos erros sozinhos.

-Você é muito sabia, Ádria. Sabe dizer sempre as palavras certas para acalmar o coração

desse velho rei cansado.

-Não faça isso, você ainda é muito jovem e tem muitos anos pela frente!

Nós rimos juntos e a descontração daquela risada ajudou-nos a afastar as palavras duras

de Maviael.

-Eu vim agradecer por ter dado uma oportunidade ao Nimlot de se explicar.

-Você ainda não entendeu o significado da palavra de um vampiro, Ádria?

-Sim, senhor.

Eu disse surpresa, é claro que eu sabia.

-Não, Ádria. Você ouviu dizer, mas ainda não vivenciou confiar em uma promessa a

ponto de não recorrer a uma segunda opção caso ela falhe. Talvez mesmo confiar sua própria

vida sem reservas se a promessa for de protegê-la.

-Senhor eu sei que...

-É preciso mais que saber, é preciso viver.

Não tive resposta para o rei.

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-A apuração é para daqui a uma hora, certifique-se que o Nimlot e o Katep estejam

prontos. Vejo-a novamente na sala do conselho. Até breve!

-Até breve!

Ao entrar na dependência do Katep percebi a presença de Nebet, sua voz vinha do

cômodo do Nimlot e parecia chorosa.

-Por favor...me desculpe...

“Ele não pode desistir, não agora.”

Mas ao entrar no cômodo, vi Nimlot vestido como um guerreiro, em pé e pronto para

enfrentar o conselho, eu me surpreendi com sua postura imponente, não parecia o mesmo

vampiro jogado na cama que eu tinha visto todo esse tempo. Katep estava próximo a ele e o

seu olhar era fabuloso, brilhante. Nebet tinha os olhos cheio de lágrimas e um sorriso

estampado no rosto. Assim que eu entrei no quarto fui saudada por todos, o Nimlot olhou para

mim e disse:

-Muito obrigado, generala. Terei uma dívida de gratidão para sempre com a senhora.

-Não sou senhora, Nimlot e você não tem dívida nenhuma comigo, era mais que a minha

obrigação acreditar na palavra de um dos meus guerreiros e lembre-se que esta batalha ainda

está no começo, você ainda precisa enfrentar a todos no salão e resgatar a honra de sua

família. Somente quando isto for feito então comemoraremos.

-Sabemos disso, Ádria...

Disse Nebet e continuou:

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-Não estamos comemorando antes da hora, estamos somente sendo gratos a você, pois

ninguém deu ao Nimlot a oportunidade de falar antes. Você arriscou sua posição na

comunidade para ajudá-lo. Não só o Nimlot deverá para sempre a você por sua atitude, mas

toda a nossa família estará sempre ao seu lado, juramos lealdade a você.

-Devem jurar lealdade somente ao rei. E não pode jurar por toda sua família...

Antes que eu terminasse fui interrompida por um homem austero, com expressão de um

homem de quarenta e poucos anos, dizendo:

-Ela pode sim, pode fazer um juramento de lealdade por toda nossa família, porque de

fato todos concordamos.

Nimlot falou surpreso.

-Pai! Eu...

-Filho me desculpe por ter fugido como um covarde e não ter vindo antes. Eu fui um

tolo. Me perdoe.

Todos estávamos surpresos, não esperávamos o que o pai do Nimlot, aparecesse, porém

o Nimlot não pensou muito, sorriu abertamente e o abraçou.

-Claro que perdoo, todos cometemos erros.

O Katep e a Nebet abraçaram o pai cada um de uma vez, ao terminar ele me saudou e

disse:

-É um prazer revê-la, Ádria. Imagino que não se recorde de mim, eu sou Nebhotep.

Apertamos as mãos e em seguida ele nos alertou:

-Agora é melhor nos adiantarmos não seria bom chegarmos atrasados.

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Capítulo 21

A morte do rei

Todos já tinham ocupado seus lugares. Rashne me guiou até uma cadeira ao lado do

trono central, o Maviael não estava na outra visto que haveria de ser ouvido, este se

encontrava no centro juntamente com Nimlot e toda sua família. Rashne estava em sua

posição e todos apenas esperávamos o rei. Meia hora se passou e o rei não apareceu. Rashne

chamou dois guerreiros que se encontravam na arquibancada e saiu logo em seguida. Mais

tempo se passou e quando Rashne voltou sua expressão era terrível. Ele se aproximou do

púlpito e anunciou:

-Povo de Eória é com pesar que anuncio que o nosso rei Irad está morto.

“O quê? Mas como isso aconteceu?”

Eu levantei e saí pela abertura atrás dos tronos em direção a dependência do rei, lá nos

fundos havia um elevador privado que dava acesso somente a dependência real e nele um

identificador como o da porta de segurança que permitia somente a pessoas autorizadas usá-

lo, ao entrar estava sozinha, mas uma mão impediu que a porta se fechasse e o Maviael

entrou, completamente atordoado. Subimos em silêncio e lágrimas, quando a porta se abriu

descemos diretamente na sala indiana, o sangue estava por todo lado, como se tivesse havido

uma grande luta. O corpo do rei estava no chão, não muito longe de nós. O Maviael ao ver

aquela cena gritou desesperado.

-PAI... NÃO!

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Eu não sabia o que dizer, meus olhos queimavam e o meu peito doía angustiado, vi

Maviael no chão abraçar o corpo de seu pai já completamente sem vida num ato de desespero,

como se isso pudesse trazê-lo de volta, senti como se o chão faltasse debaixo dos meus pés. E

a única coisa em que pensei foi acalmar Maviael. Ajoelhei próximo a ele, o puxei para perto

de mim fazendo com que ele soltasse o corpo do rei e o envolvi nos meus braços.

-Maviael se acalme, não há mais nada a fazer.

Nós dois chorávamos.

-Não. Eu vou descobrir quem fez isso, eu juro! E o assassino será punido sem

misericórdia.

Ele se deixou em meus braços e chorou convulsivamente. Ali naquele momento tive uma

lembrança.

Estava segurando o Maviael da mesma forma, mas não havia choro, havia felicidade e

risos. Estávamos naquela sala sentados entre almofadas e o rei estava bem próximo sorrindo

das nossas tagarelices.

-Confesse, eu sei que foi você quem o roubou!

-Agora você me prendeu minha senhora, não tenho como escapar!

-Então confesse...

Eu ria espontaneamente. E ali entendi que eu o amava e aceitava suas falhas apesar de

tudo.

-Fui eu sim e ele estava comigo até pouco tempo, mas outro o pegou.

-como pode deixar que isso acontecesse? Devo ir atrás desse outro?

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-Não, minha senhora jamais deve ir atrás de um outro, eu mesmo resgatarei seu coração e

punirei quem ousou levá-lo de mim e isso se dará sem misericórdia.

-Então terá coragem de punir o seu velho pai?

Irad entrou na brincadeira.

-Pai! Estava aí?

Rindo o rei falou:

-Sim!

-Então o senhor meu sogro é cúmplice no roubo?

-Ah! Sim filha! E para garantir que jamais fuja eu o guardei em um lugar secreto!

As gargalhadas atravessavam minha memória e eu voltava para a cena de desespero. Eu

o apertei mais forte, depois o soltei e o puxei para tirá-lo de lá. Rashne chegava com mais

alguns guerreiros que se puseram a levar os dois corpos caídos do outro lado da sala, eram os

guardas do rei. O guerreiro Alexis, veio em nossa direção e me ajudou a tirar o Maviael de lá,

levando-o até o meu quarto e partindo em seguida. Maviael deitou-se em minha cama

completamente indefeso, mudo sem expressão alguma. Eu o deixei sozinho no quarto para

que ele pudesse ter privacidade de extravasar sua dor se quisesse, ou mesmo para organizar

seus pensamentos.

-Como isso pode ter acontecido?

Disse para mim mesma... Indo em direção ao estoque me alimentei mecanicamente, e

deitei no sofá. No dia seguinte, ao acordar, fui ver se o Maviael estava bem e vi que estava

dormindo ainda. Peguei um copo grande de sangue e pus ao lado da cama. Saí da dependência

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e fui a procura de Rashne o encontrando na dependência real. Ao me ver ele perguntou pelo

Maviael e em seguida disse ser melhor que eu não ficasse ali. Mas eu recusei, eu mesma

queria preparar o corpo do rei para a cerimônia fúnebre. Rashne não teve escolha a não ser

consentir.

Respirei fundo e me contive para não chorar convulsivamente. Lágrimas escorriam dos

meus olhos enquanto eu limpava o sangue do corpo do rei, Nebet me ajudou a vestí-lo e

prepará-lo no caixão aberto que Rashne providenciou. Enquanto cuidávamos dos detalhes

com os arranjos de flores, Maviael se aproximou e o olhou de perto. Ele tinha se recomposto e

apesar de abatido com a perda, parecia mais forte.

-Prometo meu pai que o assassino não terá lugar para se esconder, não descansarei até

pegá-lo e puní-lo com as minhas próprias mãos.

Não havia mais lágrimas em seu rosto, somente dor.

Eu me aproximei e ele falou ainda sem tirar os olhos do rei.

-Fez um excelente trabalho, Ádria. Eu aprecio o seu cuidado com o rei, ele está

dignamente pronto para o próximo passo, como sempre foi do feitio de um soberano. E dessa

vez graças ao seu zelo.

A dor mexe com as pessoas e as fazem amadurecer. Maviael ao dizer estas palavras

comportou-se como um rei. E é isso que ele seria, assumiria o lugar de seu pai. Eu não tinha

me dado conta disso até aquele momento.

Rashne aproximou-se.

-Está tudo pronto para a cerimônia fúnebre. Vocês precisam se apressar em aprontar-se.

Eu havia me esquecido.

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-Ádria, peço desculpas pelas minha tolices e inseguranças, sei que antes de sermos

resgatados eu fiz você sofrer com o meu temperamento, mas hoje, todos os subterfúgios que

eu usava não fazem mais sentido e ...

-Maviael, talvez agora não seja hora...

-Preciso falar, ouça. Eu quero ser um rei tão bom quanto ele foi para o seu povo e preciso

de você ao meu lado.

-Eu estarei.

Um outro Maviael se apresentava em minha frente e apesar de não estar completamente

segura dessa mudança, eu não podia deixá-lo nesse momento.

Rashne insistiu com o pedido.

-É melhor se apressarem a cerimônia começa em vinte minutos.

A cerimônia fúnebre começou, ela estava sendo realizada na arena para que todo o povo

pudesse prestar as últimas homenagens ao seu rei. Eória estava de luto. Ninguém acreditava

naquela perda e ao se aproximar do caixão suas expressões não eram de curiosidade, mas de

dor. Depois que todos tiveram a oportunidade de vê-lo e depositar flores aos seus pés,

Semíramis disse palavras de consolo e encomendou sua alma:

“-O rei Irad, sem dúvida, foi o homem mais sábio que já existiu na Terra. Seu legado

jamais será esquecido e suas histórias serão contadas por séculos. A morte não é o fim,

quando a alma conquistou seu lugar no coração dos deuses. Por isso, povo de Eória, Maviael

seu herdeiro e Ádria sua nora, não pensem em fim e dor quando lembrarem do rei Irad, mas

olhem para as estrelas, porque é lá que sua alma agora descansará em paz junto com o nossos

ancestrais.”

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Semíramis andou em círculo com as mãos estendidas para o alto pedindo aos deuses que

o dessem descanso eterno. E parando em frente ao caixão, se fez ouvir por todos:

“-Invoco os elementos sagrados da natureza para que recebam este corpo e equilibrem a

balança da vida. Invoco a Anúbis para que este lhe dê um julgamento justo e passagem no

reino dos mortos a alma virtuosa do nosso rei. E finalmente invoco Ahura Mazda e os

Amesha Spentas para que o guie pelas forças do bem e afaste os maus espíritos de sua

presença durante sua jornada no outro mundo, abrindo para o nosso rei as portas do paraíso.”

Ao chegar a vez do exército, observamos todos os seus guerreiros entrarem a caráter na

arena. Os guerreiros se dividiram em duas partes, deixaram o caixão no meio, e, de frente para

o rei morto, saudaram-no... Um pequeno grupo se aproximou e levou o corpo até perto de

Maviael e depois para o incinerador. Maviael recebeu suas cinzas e no dia seguinte as jogou

no jardim no andar de Semíramis, onde o rei costumava passar horas de seu tempo

contemplando...

A cerimônia de posse estava marcada para a semana seguinte as dez horas da noite, ela

também aconteceu na arena, e novamente todos de Eória estavam presentes.

Maviael recebeu a coroa com simplicidade e prometeu, diante de todos, honrar o nome

do seu pai e seguir os seus passos. Eu fui nomeada rainha junto com Maviael por sermos,

diante de todos, casados, segundo as tradições de Eória. Apesar de se tratar de uma encarnada

ainda em processo de resgate da minha memória, eles entendiam que eu não deixei de ser

esposa do guerreiro.

O mais estranho foi ocupar a residência real, todos os objetos que faziam parte dela

lembravam muito o Irad, tão pessoal... senti-me invadindo o seu espaço e desejei voltar para

minha dependência, mas a essa altura eu não tinha escolha a não ser aceitar e estar contente

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por poder ter algo para lembrar daquele que foi como um pai para mim, durante toda minha

história.

-Você está bem, Ádria?

-Sim. Só um pouco cansada.

-Agora que estamos aqui não sei como agir com você, pois sei que assumiu o seu papel

de rainha pelo bem maior de Eória, porém não tenho certeza se está pronta para ser minha

esposa novamente.

-Estou um pouco confusa, mas não quero que pense que me recuso a você, só preciso de

um pouco mais de tempo.

-Entendo e respeito sua posição. Eu já esperei tanto, que não me custa muito esperar um

pouco mais.

Eu estava começando a entender o porquê de ter me entregue, sem reservas, a esse

vampiro no passado. Quando o assunto era nós dois ele era o homem mas encantador do

mundo.

-Temos muitos quartos aqui, eu morava com o meu pai nesta dependência, você pode

escolher um de seu gosto.

-Obrigada!

-Bons sonhos, minha senhora!

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Capítulo 22

O vampiro sombrio

Um mês se passou e com ele um pouco da dor pela perda do Irad. Maviael estava dando

conta de administrar o reino muito bem. Eu em contrapartida não deixei de treinar com o

exército, porém, não havia mais visitado o Katep e sua família desde o dia fatídico. Pensando

ser o momento oportuno fui até o gabinete do rei solicitando uma audiência em particular e

fui recebida de imediato.

-Vossa majestade a rainha Ádria.

Eu fui anunciada por Nebet e entrei vendo que o rei estava de pé a minha espera.

-A que devo a honra de ter uma visita de minha senhora?

-Preciso falhar-lhe majestade.

-Não me chame de majestade, Ádria. Me chame como quiser.

-Preciso falar-lhe, Maviael.

-O que deseja?

-Saber qual a posição do rei quanto a audiência do Nimlot e sua família?

O rei me olhou longamente.

-Sim, o Nimlot, quase me esqueci dele. Vou cuidar pessoalmente disto, hoje mesmo

solicitarei uma nova audiência com o conselho.

Que bom que o Maviael, enfim, compreendeu que não se tratava dele, mas de justiça.

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-Obrigada, meu senhor!

Ele riu e se aproximou. Eu estava radiante com aquela notícia.

-Entendo que se preocupe com ele já que o Katep é seu amigo. Quero apenas a sua

felicidade minha rainha!

-Não se trata de mim Maviael e nem do Katep, mas de corrigir uma injustiça!

-Sei que sim!

Ele se aproximou ainda mais e se inclinou para beijar-me a boca, eu não me mexi e nos

beijamos intensamente. Maviael passou seus braços ao meu redor e apertou-me contra ele. Eu

senti um misto de calor e alegria e retribui o seu abraço agarrando-o também, era como se eu

tivesse medo de soltá-lo, então o apertava mais e mais até que alguém bateu na porta e nos

separamos.

-Majestade...

Nebet interrompeu-nos.

-Pois não!

-O senhor Asdrúbal deseja vê-lo.

-Mande-o entrar.

Eu o olhei e sussurrei em seu ouvido.

-Tenho que ir!

Ele me imitou e disse.

-Podemos terminar isso mais tarde!

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Eu sorri envergonhada e me apressei em sair, bem a tempo de ver o vampiro sinistro que

entrava. Nunca o vi por aqui antes. Sua feição era diferente da dos guerreiros. Ele era alto,

forte, cabelo completamente branco, mas sua aparência era jovem, o olhar assustador e lábios

finos e apertados. Não gostei dele. O que será que Maviael quer com este vampiro? Ou o que

será que este vampiro quer com Maviael?

Saí intrigada procuraria saber sobre isso em outra ocasião e como estava feliz com a

notícia da audiência fui direto para a dependência do Katep avisá-lo.

-Ádria, faz tempo que não a vejo, a última vez foi no dia da morte do rei. Cheguei a

pensar que o rei Maviael havia proibido você de visitar-nos.

-Eu sei meu amigo e peço desculpas por isso, a verdade é que Maviael não me proibiu de

nada ,fui eu que me ocupei de tantas coisas que precisavam ser providenciadas e com os

treinamentos na arena quase não me sobrou tempo algum para vir aqui.

-Eu entendo irmã, espero que tudo esteja sobre controle, a sua responsabilidade e a do

Maviael principalmente agora, é muito maior do que quando vocês eram apenas generais do

exército.

-Embora eu não me lembre completamente, acredito que sim.

-Ficamos muito sentidos de não ter podido participar do funeral, além de ser nosso

soberano, o rei sempre foi muito prestativo conosco.

-Eu sei que deve ter sido difícil para todos vocês e não acho justo que as coisas tivessem

que ser desse jeito.

-Oh! É verdade! Agora você é rainha! Que honra a minha de receber uma rainha em

minha casa. A primeira rainha de Eória!

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-A primeira? O rei nunca...?

-Não que nós soubéssemos.

-Quase me esqueci. O Maviael me comunicou que hoje mesmo solicitará nova audiência

para o Nimlot.

-Me sinto aliviado, pois pensei que agora que Maviael tomou o poder, nunca mais

teríamos a chance de falar no conselho. Isso significa que teremos um rei tão sábio quanto o

anterior?

-Ele parece mudado, devemos dar a ele um voto de confiança.

Katep ficou distante por um momento, mas logo respondeu:

-Talvez tenha razão...

-Quero entrar para ver o Nimlot, como ele está?

-Está apreensivo, mas está bem. Não fica mais jogado na cama. Tornou-se ativo e tem

me ajudado a treinar um pouco. Defesa, combate, essas coisas...

-Bom!

Alguém se aproximou e pude ver Nimlot em sua melhor forma.

-Nimlot, você está ótimo!

Ele me saudou, como de costume, e disse:

-Estarei melhor quando sair daqui e assumir meu posto novamente, majestade!

Adorei seu tom confiante, ele ficava bem melhor daquele jeito.

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-Viu? Eu disse que ele mudou.

Afirmou o Katep.

-Estou vendo e gosto muito de vê-lo assim, também tenho confiança em sua

reintegração.

-Alguma coisa a mais a está preocupando minha irmã?

-Não. Não é nada.

-Eu te conheço, Ádria... Não adianta esconder nada de mim.

-É você me conhece mesmo! Então... hoje antes de sair do gabinete do rei, vi um

vampiro sinistro entrar lá.

-Sabe o nome dele?

-Asdrúbal, eu acho.

-Asdrúbal? Tem certeza?

-Sim. Você o conhece?

-Ele é desertor do exército, condenado e desonrado como nós.

-Como ele conseguiu ir até o gabinete do rei e pedir para falar com ele?

-Não seja ingênua, Ádria. Ninguém pode sair daqui a não ser que seja oficialmente a

pedido do conselho ou a mando do rei.

-O que Maviael poderia querer com um vampiro daqueles?

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-Não sei, mas o Asdrúbal tem fama de agir com crueldade e frieza. Como um matador.

Ele fazia o trabalho sujo para o general Anibal antecessor do Maviael.

-E onde está ele?

-Morto.

-Morto? Como ele morreu?

-Queimado, em sua residência, há uns dois milênios e pouco. Sua morte foi estranha,

ninguém entendeu porque o general simplesmente não saiu de casa. Mesmo com tantos

agravantes, o caso foi esquecido, sem suspeitos. Embora eu ache que o Asdrúbal tem tudo a

ver com isso. Ele era o oficial mais condecorado do regimento, depois do Anibal. Era ele o

melhor nome para ser nomeado como general. Mas o Maviael foi nomeado em seu lugar. Dias

depois, ele abandonou o exército...

-Suspeito!

-Muito!

-Katep meu irmão, tenho que ir. O dever me chama, assim que der mando notícias.

-Mas não se demore muito todos sentimos sua falta aqui!

Sorrindo os deixei e parti. Por que Maviael precisaria de um vampiro como Asdrúbal?

Quando cheguei à dependência real o rei já estava lá a minha espera.

-Vejo que foi contar a notícia pessoalmente ao seu amigo Katep.

Mas o tom em sua voz não era ameaçador e sim comum.

-Fui contar-lhe a boa notícia sim.

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O rei me olhou mais de perto por um longo tempo, como se procurasse por algo, nos

encaramos por minutos e ele relaxou dizendo:

-Estava ansioso para ver você!

Meu coração disparou e eu fiquei nervosa, sabia sobre o que ele estava falando.

-Eu...

-Xiiii...

Ele me calou com um dos dedos em meus lábios e me puxou em sua direção. Me beijou

voraz e tudo recomeçou como no seu gabinete. Porém eu o interrompi e me afastei.

-Só um pouco mais de paciência, me deixe lembrar mais sobre nós dois.

Dessa vez vi irritação em seus olhos, mas seus lábios falaram em tom gentil.

-Eu quero você por inteira Ádria, mesmo que isso me custe sacrifícios.

Eu respirei aliviada e antes de sair perguntei:

-Quem era o homem que vi entrar em seu gabinete?

Ele riu e não disse nada, virou pegou um copo e bebeu seu conteúdo. Vendo que ele não

responderia fui para o meu quarto com uma sensação de que algo estava muito estranho e o

medo tomou conta de mim por um instante, foi um alerta para agir com cautela com o rei até

descobrir o que a visita daquele homem significava.

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Capítulo 23

O traidor

O tempo passou e o dia da audiência chegou e, como anteriormente, todos estávamos lá

em nossos lugares, mas diferente de antes não havia uma cadeira a mais para que o Maviael

se sentasse junto com as partes que seriam ouvidas. O Rashne levantou-se e anunciou a

abertura da audiência, para a minha surpresa Maviael entrou pela lateral dos tronos e tomou

seu lugar no centro ao meu lado. Acenando, deu lugar para Rashne se pronunciar:

-Senhoras e senhores estamos aqui hoje, para dar prosseguimento ao último desejo do rei

Irad, quanto ao destino do soldado Nimlot, acusado outrora de alta traição contra este reino.

Maviael acenou e Rashne lhe passou a palavra.

-Como todos sabemos, o nosso sistema é baseado em confiança, pois todos temos

conhecimento que a palavra de um vampiro é mais certa que a própria morte. O meu pai,

antes de morrer, desejou que Nimlot tivesse uma sentença justa e eu seu sucessor, farei

cumprir seu último desejo. Por decisão unânime deste conselho em audiência fechada, foi

decido que Nimlot e sua família, sem exceção, fossem poupados das penas de morte e cárcere

privado respectivamente, apenas sendo condenados a pena de banimento. Serão expulsos e

proibidos de voltar a Eória, pelo resto de suas imortalidades.

Eu me levantei de súbito, vi Katep completamente sem expressão na cadeira dos réus...

junto com toda sua família guerreiros os cercavam e os empurravam para fora.

Rashne anunciou o fim da audiência e Maviael saiu do recinto e junto com ele o

conselho começou a esvaziar o salão, não me deixando tempo para reagir. Cruzei o salão para

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ir ao encontro do meu amigo e irmão, afim de prometer a ele justiça verdadeira, mas um braço

forte segurou minha cintura por trás, imobilizou meu braço e me levou em direção ao

elevador do rei, entramos e quando consegui identificar de quem se tratava, vi a figura sinistra

de Asdrúbal. Tentei lutar mas não havia como, estava presa. Chegamos a sala real e ele me

soltou, eu me virei e bati em sua face com toda a força, ele cambaleou e seus olhos eram pura

indiferença. Maviael apareceu em seguida, aplaudindo a cena.

-Ele a machucou, minha senhora?

Sem que eu fosse capaz de me controlar, outra cena apareceu diante de mim, insight!!!

Eu olhei para o Maviael e balancei a cabeça em sinal de aprovação e ele retribuiu o gesto

com a postura de um general imbatível. Bautox estava em nossa frente, acabando de decapitar

um dos nossos. Ele acenou para um soldado próximo, continuar sua tarefa, faltavam muitos

guerreiros ainda para serem mortos. Sneferu levantou de sua cadeira e com um gesto fez o

soldado lobo parar.

-Bautox, acha que eu deveria ser piedoso com um deles?

Ele olhou malicioso para o troglodita e este a princípio não acompanhou o raciocínio do

seu rei.

-Meu rei, deseja ser piedoso com um vampiro?

-Ora ora Bautox, esse trabalho é muito pesado até mesmo para você, digo a qualquer

vampiro aqui que queira poupar sua própria vida, que se apresente para terminar a tarefa do

Bautox e eu o deixarei viver.

Bautox gargalhou e olhou para a fila de soldados, todos permaneceram onde estavam.

Ele se irritou e disse ao rei.

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-Talvez devêssemos obrigar um deles a fazer o serviço majestade.

-Muito bem, então eu mesmo escolho. Você será a minha escolha.

Ele apontou para mim com olhos venenosos.

Bautox riu ainda mais alto e me puxou para o centro, pegou o machado e estendeu em

minha direção.

-Faça.

Eu não me movi.

Ele bradou novamente.

-VAMPIRA IMUNDA CUMPRA A ORDEM DO REI SNEFERU.

Eu continuei onde estava. Ele então jogou o machado de lado e partiu em minha direção,

todos estavam observando a cena, Marviael e Katep fizeram menção de me socorrer e homens

lobos os seguraram. Chegando próximo a mim, Bautox me bateu na face com tanta força que

eu caí no chão, levantei e ele aplicou outro golpe, ainda caída ele continuou me batendo,

Maviael a essa altura estava desesperado e Katep junto com o exército me olhavam sem nada

poderem fazer. Eu levantei mais uma vez completamente ensangüentada e nem um pouco

disposta a reagir, olhei para Bautox e disse:

-Você não vale um por cento de nenhum dos meus soldados! Seu desgraçado!

Cuspi nele o sangue da minha boca.

Ele avançou com fúria em minha direção e ao levantar o braço Sneferu o gritou:

-Bautox, chega! Você, tire-a daqui.

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Ele apontava para Katep e este correu em minha direção, me apoiando em seus ombros e

me levando para perto de Maviael. Ele quis me por no chão, mas eu pedi que ele me

mantivesse de pé.

Então a voz de Maviael cortou o silêncio.

-Se eu fizer o serviço, o rei me dá sua palavra que poupará a mim e a generala?

Sneferu riu alto e ironizando falou:

-Um vampiro de valor! É claro que dou minha palavra.

Eu não pude acreditar no que estava ouvindo e tentei impedí-lo, mas não tive forças, só

consegui gritar:

-Não faça isso Maviael. NÃO FAÇA ISSO!!!

-CALE-SE!

Bautox bradou:

O Katep e eu não acreditávamos no que estávamos vendo, Maviael mataria nossos

guerreiros.

Quando ele pegou o machado e olhou em minha direção, indignação e nojo tomaram

conta de mim. Um dos nossos já estavam na posição para ser decapitado, ele levantou o

machado e arrancou-lhe a cabeça. Vi que ele não conteve as lágrimas, mas continuou na

posição, mantendo a sua decisão, eu, em contrapartida, ao ver Maviael deferir o golpe, senti

como se alguém houvesse arrancado meu coração.

-Quando todos os soldados foram mortos e só restavam eu o Katep e o próprio Maviael,

Bautox apontou para Katep, mas eu me pronunciei pela primeira vez. E Sneferu, consentiu:

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-Que a próxima seja eu.

Maviael olhou para o rei a fim de que este nos poupasse, mas o rei riu e ironizou mais

uma vez:

-Acha mesmo que eu não manteria a minha promessa diante dos seus soldados, quando

disse que todos morreriam hoje? Não são vocês vampiros que prezam tanto uma promessa?

Talvez eu poupe sua vida, mas a da vampira não. Agora termine com isso!

-Eu não posso.

Maviael jogou o machado no chão. Bautox veio em minha direção, me pegou dos braços

de Katep e literalmente me arrastou pelo chão até a grande pedra, visto que eu não conseguia

me manter em pé. Maviael ajoelhou implorando ao rei pela minha vida. O rei parecia se

divertir com a dor de Maviael e com gestos mandou Bautox seguir. Este me amarrou as mãos

e o tronco na pedra, seus olhos avermelhados brilhavam de satisfação, contentamento e ódio,

ao mesmo tempo. Ele empurrou com força minha cabeça contra a pedra, mas a essa altura eu

já não sentia dor alguma. De onde eu estava via o Katep de pé me olhando firme e o Maviael

de joelhos chorando. Eu mantive meus olhos firmes em direção aos olhos do Katep e sorri.

-Até mais meu irmão!

Ele se manteve firme, embora eu visse lágrimas escorrerem em seu rosto.

Então tudo escureceu.

Quando eu retornei a sala, não pude conter o desprezo que estava sentindo de Maviael.

Ele se aproximou de mim e me segurou no braço.

-Não encoste em mim seu covarde!

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Ele se assustou com a minha firmeza e viu que algo estava errado.

Maviael me olhou com firmeza e disse:

-Tinha certeza que iria atrás deles, não tive outra opção. Foi para o bem do trono.

Do que ele estava falando, lembrando do que acabara de acontecer com Nimlot e sua

família, a raiva que eu estava sentido do Maviael cresceu ainda mais.

-Para o bem do trono, eu não serei rainha de um rei injusto.

-Não me obrigue a ser severo com você, Ádria.

-Não teria coragem, é um vampiro preocupado em poupar sua própria vida, Não ousaria

me desafiar.

Ele ficou sem expressão quando eu usei a palavra poupar e pediu que Asdrúbal saísse.

Eu fui para o meu quarto inconsolada e o deixei absorto em seus pensamento enterrado no

sofá da sala.

Não iria conseguir dormir, desde que os eorianos se mudaram para cá faz séculos que

eles não saíam, a não ser os caçadores de encarnados. O que me deixava mais tranqüila com

isso tudo, era que Katep havia sido um caçador, ele saberia se virar na superfície.

“Tenho que sair, tenho que encontrá-los. Vou sufocar aqui.”

Saí do quarto e vi que não havia ninguém por perto, peguei o elevador da sala e saí direto

na antessala do salão de conferências. Cruzei todo espaço, e quando estava virando no

corredor ouvi as vozes de Asdrúbal e Rashne, me escondi e tentei prestar atenção na conversa.

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-Tudo saiu conforme combinado, você tem a confiança do rei e a tarefa de guardar a

rainha. Por enquanto ela não é propriamente um empecilho, porém pode vir a ser, à medida

que a sua memória retorne.

-Quais são as minhas próximas ordens?

-Apenas fique de olho em tudo ao seu redor, por enquanto não podemos agir, a morte do

rei foi muito arriscada e recente, Maviael está investigando e ele pode ser perigoso, agora que

o rei morreu é possível que a rainha queira conversar com alguém mais antigo, que possa ser

de confiança e a ajude com suas lembranças, ou seja, eu. Porém, o episódio de hoje deve

deixá-la abalada por um tempo, sua amizade com o guerreiro Katep é conhecida de toda Eória

e isso nos dará tempo para agir.

-Mas e se ela conseguir convencer o rei da importância de uma nova audiência para que

possam ouví-los no conselho?

-Ela não conseguirá, Maviael é orgulhoso o suficiente para passar por cima das

necessidades de sua própria esposa. Além do mais eles não sobreviverão muito tempo na

superfície, com tantos lobos agora no Condado. Quando eu conseguir a liderança de Eória,

farei uma nova visita ao Bautox e terei o prazer de entregar a Jabel e Jubal, o rei e a rainha de

Eória como sinal de aliança entre nós.

E sussurrando Asdrúbal disse:

-Mas, os lobos já nos traíram uma vez... lembra? Se não fugíssemos com o restante do

povo teríamos sido decapitados como os guerreiros.

-Não seja tolo, isso era com o prepotente do Sneferu, as coisas mudaram com Jabel e

Jubal, no comando, eles entendem a importância de nós vampiros e não nos subestimam, com

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o exército sob o meu comando, poderemos voltar a superfície e governar de igual para igual

com os lobos.

-Pai, acha mesmo que os lobos irão querer dividir seu reino conosco?

-Pare de sussurrar seu tolo, esse andar é seguro, quem quer que desça por aqui terá que

vir por aquele elevador, o outro é privativo. E sim. Eles dividirão, não terão escolha agora que

nosso exército está completo e nossas forças retomadas.

-Me fará justiça, me dará o meu posto?

-Você será o general, o exército é seu. É só uma questão de tempo. Agora vá, vá antes

que o rei sinta falta da sua presença.

-Sim senhor!

Eu rapidamente entrei no salão e me escondi na arquibancada. Vi quando Asdrúbal

passou e entrou no elevador. Depois sentei em uma cadeira retomando o fôlego. Droga então

era isso, o Rashne estava por trás de tudo desde o início, tramando pelas costas do rei. O

Maviael jamais me ouvirá e o único que faria isso é o Katep, mas a esta altura eles já

deveriam estar bem longe de Eória. Os lobos sabem da nossa existência. Katep não está

seguro lá fora, será caçado. O povo não está seguro aqui dentro se os lobos souberem da nossa

localização. O que vou fazer? Não posso voltar pelo elevador reservado o Asdrúbal

desconfiaria, tenho que esperar um pouco e pegar o elevador convencional, mas antes tem

uma coisa que preciso realizar. Olhei para cima e vi o marcador na parede com o número

10.000, gravados nele. Estranho, o rei estava morto, o número deveria regredir. Esperei até as

sete da manhã e sai pelo corredor, subi até o andar de Semíramis e entrei nos jardins, aquele

lugar era tudo que eu estava precisando. Não consegui me controlar, me sentei num banco e

me permiti chorar, extravasei e quando terminei vi Semíramis de pé me observando.

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-De pé uma hora dessas querida?

Ela era doce. E sua voz acolhedora.

-Sim. Precisava vir até aqui.

-Eu sei, já vi muito dessas cenas antes.

Viu? Então minha vida não tinha sido tão fácil como algumas das minhas lembranças me

faziam acreditar.

-Quer um pouco?

Ela estendeu um copo em minha direção, enquanto bebericava outro.

-Obrigada, estou mesmo precisando.

E virando-se disse:

-Fique o quanto quiser. E não se esqueça, é necessário descobrir toda verdade para então

decisões serem tomadas.

A Semíramis é assustadoramente precisa.

-Semíramis!

-Sim!

-Por que o marcador do senso não regrediu sua numeração?

-Porque o rei vive entre os seus ancestrais, vocês guerreiros só tiveram uma segunda

chance porque os deuses são justos.

Eu a observei sair antes de tomar o primeiro gole.

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-Sangue, é isso!

Me lembrei da conversa que tive com o Irad certa vez.

“-Uma coisa nessa história me intriga.

-Sim?

-Quando chegamos Maviael me disse que estávamos sendo aguardados e, no entanto, o senhor

acabou de me dizer que esperava que chegássemos somente daqui há quatro anos...

-Então como sabíamos que haviam chegado? Todo habitante de Eória é registrado pelo

sangue e todos que desejem sair precisam da autorização do rei. Por isso desenvolvemos um

sistema de segurança com cobertura em toda Eória e uma parte da superfície na floresta,

assim qualquer um que se aproxime, entre ou que saia é identificado. Quando o Maviael se

aproximou da caverna fomos avisados e nos preparamos.”

Fui até minha dependência antiga, abri meu closet e peguei a velha mochila do dia do

resgate, entrei na dependência real pela porta convencional, todos estavam dormindo inclusive

o Asdrúbal, entrei no quarto onde as coisas pessoais do Irad foram guardadas e com elas as

roupas que ele usou no dia de sua morte, eu as guardei na ocasião, não sei porque tenho essa

mania, mas agora elas me servirão imensamente. Fui até perto do Asdrúbal, peguei sua arma,

passei pelo estoque coloquei três garrafas na mochila e antes de sair, dei uma olhada no

Maviael e pus um bilhete em seu criado mudo.

“Majestade,

Me desculpe, mas tive de partir.

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Preciso que confie em mim.

Ádria.”

Saí silenciosamente, mas ao passar pelo Asdrúbal ele se virou na cadeira e eu quase pulei

de susto. Passando pela porta dei mais uma olhada no lugar e entrei no elevador. Eram nove

horas da manhã naquele momento e Eória dormia tranqüila. Fui até o andar das dependências

novamente, sentei na praça tirei um papel, uma caneta e um envelope da mochila e escrevi

uma carta endereçada ao rei. No envelope eu escrevi, somente entregar caso eu esteja morta.

Assinei e coloquei aos cuidados de Marcus Aurélius. Fui até a frente da sua dependência e pus

a carta debaixo da porta.

Em seguida vesti as roupas do rei Irad, entrei no elevador e ao passar pela caverna

percebi que o meu plano estava dando certo, eles não viram necessidade de excluir o cadastro

do rei dos arquivos do computador, e este autorizou minha passagem. Era a primeira vez que

eu saia de Eória desde que cheguei, senti medo da superfície, olhei para trás e contemplei o

meu mundo. Depois me enchi de coragem e percebi que agora estava por minha conta.