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  • Livro produzido no mbito do projecto Teorizao do Jornalismo em Portugal: Das Origens a Abril de 1974, referncia PTDC/CC-JOR/100266/2008 e FCOMP-01-0124-FEDER-009078, financiado pela Fundao para a Cincia e a Tecnologia, no mbito do Programa Operacional Temtico Factores de Competitividade (COMPETE) do Quadro Comunitrio de Apoio III, comparticipado pelo Fundo Comunitrio Europeu FEDER.

  • Jorge Pedro Sousa (Coord.), Mrio Pinto, Sandra Tuna, Maria rica Lima, Patrcia Teixeira, Liliana Mesquita Machado e Eduardo Zilles Borba

    Antnio Rodrigues Sampaio: jornalista (e) poltico no Portugal oitocentista

    LabCom 2011

  • Livros LabComwww.livroslabcom.ubi.pt

    Srie: Estudos em ComunicaoDireco: Antnio FidalgoCoordenao e Edio: Jorge Pedro SousaDesign da Capa: Eduardo Zilles BorbaPaginao: Jorge Pedro Sousa e Eduardo Zilles BorbaCovilh, Portugal, 2011.

    ISBN: 978-989-654-065-4

    Ttulo: Antnio Rodrigues Sampaio: jornalista (e) poltico no Portugal oitocentista.

    Copyright Jorge Pedro Sousa, Mrio Pinto, Sandra Tuna, Maria rica Lima, Patrcia Teixeira, Liliana Mesquita Machado e Eduardo Zilles Borba

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicao deve ser reproduzida, alojada em sistemas de troca de dados, ou transmitida, em qualquer formato ou por qualquer motivo, eletrnica, mecnica, fotocpia, gravao, e demais, sem a autorizao dos autores.

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    AGRADECIMENTOS

    Fundao Fernando Pessoa e Universidade Fernando Pessoa pelo apoio logstico e financeiro concedido a este projecto.

    Ao CIMJ, pelo enquadramento. Ao LabCom da UBI, pela colaborao e pela confiana.

  • ndiceINTRODUO 1

    PARTE 1 13

    CAPTULO 1: O jornalismo portugus no tempo de Antnio Rodrigues Sampaio 15

    CAPTULO 2: Antnio Rodrigues Sampaio precoce: do nascimento primeira imerso no jornalismo 37

    CAPTULO 3: O Sampaio da Revoluo 47

    3.1. A Revoluo de Setembro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 493.2. Aco jornalstica de Sampaio no Revoluo de Setembro (1840-1846) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

    CAPTULO 4: Sampaio e a imprensa clandestina da Patuleia 101

    4.1. Sampaio e o Eco de Santarm . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1024.1.1 O discurso do Eco de Santarm . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1124.1.2 As fontes do Eco de Santarm . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 122

    4.2. Sampaio e o Espectro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1284.2.1 O discurso do Espectro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143

    4.2.1.1 Conjuntura da Patuleia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1434.2.1.2 A situao poltico-militar e a atitude dO Espectro . . . . . 1464.2.1.3 A interveno estrangeira e a atitude dO Espectro . . . . . 1574.2.1.4 A guerrilha miguelista, a sua aliana conjuntural aos

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    constitucionalistas e a atitude dO Espectro . . . . . . . 1674.2.1.5 A economia nO Espectro . . . . . . . . . . . . 1714.2.1.6 Os ataques polticos e pessoais . . . . . . . . . 178

    4.2.2 Que fontes usa O Espectro para falar do que fala? . . . . . 1854.2.3 Como fala O Espectro das coisas que fala? . . . . . . . 1934.2.4 Uma comparao estrutural entre o Eco de Santarm e O Espectro . 209

    CAPTULO 5: O regresso de Sampaio ao Revoluo de Setembro 225

    5.1 O republicanismo latente de Sampaio durante aPrimavera dos Povos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2445.2 O segundo governo de Costa Cabral . . . . . . . . . . . . . . 250

    CAPTULO 6: O Sampaio da Regenerao 295

    6.1 Aco jornalstica de Sampaio no Revoluo de Setembro . . . 3276.2 O apoio a Saldanha e a defesa da Regenerao e do PartidoRegenerador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3306.3 Interveno poltica e cvica de Sampaio atravs do Revoluode Setembro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3346.4 A Monarquia... e a Repblica . . . . . . . . . . . . . 3476.5 A economia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3636.6 O ensino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3676.7 A extino dos vnculos de morgadio . . . . . . . . . . 3706.8 Justia e Direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3716.9 O investimento pblico . . . . . . . . . . . . . . . . 3756.10 A libertao dos escravos, o caso Charles et Georges e a poltica colonial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3816.11 A emigrao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3866.12 As irms da Caridade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3866.13 A sade pblica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3876.14 A revolta da Janeirinha . . . . . . . . . . . . . . . 3906.15 Uma polmica com Alexandre Herculano . . . . . . . . 3966.16 O caso das Conferncias do Casino . . . . . . . . . . 399

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    6.17 Um naufrgio . . . . . . . . . . . . . . . 4016.18 Anlise quantitativa da produo jornalstica de Antnio Rodrigues Sampaio no Revoluo de Setembro (1851-1881) . . 4036.19 Em resumo... . . . . . . . . . . . . . . . 439

    CAPTULO 7: Evocaes de Sampaio 441

    CAPTULO 8: O pensamento de Sampaio sobre a imprensa 453

    PARTE 2 483

    CAPTULO 1: Anlise Formal 485

    1. Fnico-Grfico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4892. Morfo-Sintctico . . . . . . . . . . . . . . . . . 4972.1 Verbo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4972.1.1 Gerndio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5072.1.2 Particpio Passado . . . . . . . . . . . . . . . . 5112.1.3 Adjectivo . . . . . . . . . . . . . . . . . 5112.3 Advrbio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5222.4 Construo Frsica . . . . . . . . . . . . . . . 5253. Lxico-Semntico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5314. Estilstica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5655. Comentrio Global . . . . . . . . . . . . . . . . 5756. Concluso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 582

    BIBLIOGRAFIA 585

    APNDICES 597Apndice 1: Cronologia portuguesa 1806-1882 . . . . . . . . 598Apndice 2: Primeiros-ministros de Portugal (1834-1882) . . . . . 619Apndice 3: Cronologia internacional - Principais Eventos . . . . 623

  • INTRODUOuando o biografado neste texto, Antnio Rodrigues Sampaio, nasceu, em 1806, em So Bartolomeu do Mar, Esposende, pou-cos eram os jornais existentes em Portugal e os que circulavam

    tinham um cunho circunspecto ou mesmo oficioso, caso da Gazeta de Lisboa. S com a Revoluo Liberal de 1820 Portugal viu surgir no seu territrio o jornalismo doutrinrio, acutilante e frequentemente desco-medido, dominante durante todo o perodo em que Rodrigues Sampaio viveu. Era o tempo do Romantismo:

    (...) a presena do novo pblico e as novas relaes entre o escritor e o pblico acabam por criar o estilo, os gneros e o sentido esttico que caracterizam o Romantismo em relao ao Classicismo.As grandes camadas burguesas crentes na capacidade de criar riqueza e de providenciar o destino individual encontram-se ento numa fase de combatividade ideolgica, animadas de uma confiana na natureza e no futuro da livre concorrncia individual no jogo econmico. Acreditam na eficcia da razo, e procuram fora da Igreja uma direco espiritual. uma grande massa que pede ao escritor, acima de tudo, ideias e sen-timentos orientadores e que animem certos novos valores. O escritor encontra assim (...) oportunidades sem precedentes para se fazer ouvir, para espalhar sementeiras doutrinrias ou para provocar correntes emo-cionais de simpatia, at ento s acessveis aos pregadores religiosos.Por outro lado, o pblico do Romantismo no tem uma grande pre-parao (...). Ignora as convenes e os padres da literatura clssica (mitologia, histria antiga, tpicos e figuras da tradio retrica, re-gras dos gneros, etc.). No compreende os valores literrios clssi-cos. Aprecia mais a emoo do que a subtileza; gosta da expresso concreta imediatamente acessvel das imagens e smbolos que do cor-po bem sensvel ao pensamento. Est enraizado em vivncias locais e regionais: a terra, a rua, a paisagem local, o lar burgus, os objectos

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    familiares (...). Tem uma noo mais sensorial do que os literatos de salo do mundo ambiente, o que o leva a apreciar o realismo descriti-vo. A sua prpria impreparao esttica torna-o sugestionvel (...) pela simples intensidade e diversidade das impresses. Daqui resultam al-gumas das caractersticas mas geralmente apontadas ao Romantismo: estilo declamatrio, por vezes redundante e um tanto vago, em que a abundncia prejudica a conciso e o rigor; o gosto pelas hiprboles e pelas exclamaes que do forma tribuncia ao pensamento; o gosto das imagens, que o concretizam e popularizam; o uso de um vocabu-lrio mais rico em aluses concretas, menos selecto, mais correntio, mais familiar e mais sensorial, a introduo de dados captados no am-biente; o recurso (...) a certos ingredientes fceis e de quilate duvidoso, mas de resultados garantidos (exotismo, fantasmagoria...) (...); o tom e mensagem ao prximo que assume a obra (...), convertida em meio de comunicao e j no expresso de um mundo fechado de valores. (SARAIVA e LOPES, 1979, p. 713-714)

    Nesses tempos, em Portugal, fazer poltica e fazer jornalismo fun-diam-se com frequncia e os jornais, como relembrava o escritor Fialho de Almeida (2009), em 1889, eram frequentemente um mero trampolim para mais altos voos. Nelson Traquina (2004, p 28) aclara:

    Escrever nos jornais era visto como um passo normal na carreira poltica (...) e um meio aceite para atingir um cargo poltico. Na ausncia de uma imprensa de massas, o jornalismo era mais visto como um primeiro pas-so para outras carreiras e no uma profisso de direito prprio.

    Antnio Rodrigues Sampaio foi mestre nessa arte de fazer do jornal uma tribuna para o orador poltico. Idntico juzo fazem Antnio Jos Saraiva e scar Lopes (1979, p. 724): Na oratria e no jornalismo, e em posio mais radical, os homens representativos seriam Jos Estvo e Rodrigues Sampaio.

    Liberal de esquerda, maom, revolucionrio e qui republicano nos seus tempos de juventude, extremamente corajoso, Sampaio defrontou a censura, enfrentou a priso, travou duelos e viveu na clandestinidade para defender as suas convices e o seu direito palavra, o seu direito comunicao dos seus pensamentos atravs da imprensa. Rever-se--ia, certamente, na imagem que Antnio Jos Saraiva e scar Lopes

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    (1979, p. 715) atribuem a Zola, Vtor Hugo e outros: semeadores de ideias, medem o valor da palavra pelo poder comunicativo, apreciam os grandes efeitos, tm conscincia de desempenhar uma autoridade espiritual, esto animados de confiana no progresso. Os mesmos au-tores acrescentam:

    Entre os profissionais de jornalismo celebrizou-se Antnio Rodrigues Sampaio (...). Colaborador desde 1826 da imprensa liberal (...), aderiu situao setembrista e em 1840 entrou ara a redaco dA Revoluo de Setembro, jornal fundado por Jos Estvo para combater o domnio poltico crescente da alta finana, que arvorava o ideal de restauro da Carta e tinha o apoio da Rainha. Quando a restaurao cartista se veri-fica, em 1842, Jos Estvo entra directamente nas lides parlamentares e conspirativas, deixando a Rodrigues Sampaio a misso de dirigir na imprensa a rdua luta contra a ditadura cabralista. (...) A vibrao indig-nada dos seus artigos (...) , com a oratria de Jos Estvo, o melhor testemunho de toda essa (...) luta; e, pela crtica desassombrada da Rai-nha e das intrigas palacianas, abriu caminho posterior propaganda re-publicana. A massa enorme do seu articulismo de quase meio sculo de jornalista (...) [permite] ajuizar melhor da admirao, hoje esquecida, de que foi alvo. (SARAIVA e LOPES, 1979, p. 811)

    Rodrigues Sampaio ficou conhecido pela alcunha O Sampaio da Revoluo, pois o seu nome ficou indissoluvelmente ligado ao Revo-luo de Setembro, o jornal de que foi redactor principal1 e frente do qual travou a maioria das suas batalhas, tornando-o o principal peridico do Reino, como confirma, de resto, o ttulo que Teixeira de Vasconcelos deu, logo em 1859, sua biografia de Sampaio O Sampaio da Revoluo de Setembro, reforada pelo que diz no corpo do mesmo livro:

    Um dos jornalistas portugueses que mais exclusivamente tem vivido para a imprensa peridica desde 1834, que por ela adquiriu um nome insigne em Portugal e fora do Reino, e que mais atribulado foi nas

    1 Nominalmente, Antnio Rodrigues Sampaio surge como responsvel pelo jornal A Revoluo de Setembro entre 5 de Outubro de 1850 e 14 de Janeiro de 1860. Alis, tanto quanto foi poss-vel perceber pela anlise ao jornal, a aco jornalstica de Sampaio decai consideravelmente a partir de meados da dcada de 60, coincidindo com a sua maior envolvncia na poltica.

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    perseguies feitas imprensa, inquestionavelmente Antnio Rodri-gues Sampaio, geralmente conhecido pelo nome Sampaio da Revolu-o de Setembro (TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859, p. 30-31).

    Inicialmente desbragado, Rodrigues Sampaio ter mesmo insultado a Chefe de Estado, a Rainha D. Maria II, a quem, segundo Gomes Leal (1881, p. 29), ter chamado grande prostituta. Mas, entrado no per-odo da Regenerao, acabou por moderar-se, quer no posicionamento poltico, quer na acutilncia verbal, a ponto de os seus antigos corre-ligionrios o apelidarem de traidor, ao mesmo tempo que os seus ad-versrios conservadores lhe relembravam, criticamente, o seu perodo revolucionrio e os seus apoiantes o aplaudiam.

    Abraando, efectivamente, a causa da Regenerao, que por algum tempo ps fim instabilidade poltica e militar em favor de programas governativos destinados a promover o progresso material do pas, An-tnio Rodrigues Sampaio iniciou, em 1851, uma carreira parlamentar intermitente que, a par da jornalstica, o guindou a membro do Tribunal de Contas, presidente da Cmara dos Deputados e, j plenamente recon-ciliado com a Famlia Real, a ministro do Reino. Em 1881, alcanou a presidncia do Ministrio (equivalente ao cargo de primeiro-ministro), ponto culminante da sua vida cvica. possvel dizer-se, assim, que Ro-drigues Sampaio ter sido o poltico de jornal que maior xito teve em Portugal, entre 1835 e 1882.

    Em acrscimo, tese que se sustentar ao longo deste trabalho, pode mesmo considerar-se que, pelos cnones da sua poca, Antnio Ro-drigues Sampaio foi um jornalista, ou pelo menos um profissional do jornalismo, no no sentido que actualmente lhe dado pela sociologia contempornea das profisses, tal como dissecado, por exemplo, nas obras de Nelson Traquina (2004) ou de Rosa Maria Sobreira (2003), mas sim no sentido explorado por Mara Cruz Seoane e Mara Dolores Saiz (2007, p. 23) era algum que ganhava a vida a escrever para jornais. Na realidade, enquanto no se tornou parlamentar e ministro, Rodrigues Sampaio ganhou a vida vivendo exclusivamente da escrita e direco de peridicos polticos. Para ele, e no enquadramento tecido pelas autoras anteriormente citadas, o exerccio do jornalismo no foi, verdadeiramente, mera ocupao, mas sim uma profisso.

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    A proeminncia que Sampaio alcanou entre os seus contempor-neos, o sucesso que teve no tempo em que viveu, d legitimidade colocao de algumas questes. Quem foi ele? Como obteve sucesso? Como se envolveu no jornalismo? Qual o papel que teve nos jornais em que interveio e como actuava? Qual a influncia que exerceu no seu tempo? Atravs dos seus escritos na imprensa, possvel intuir qual o seu pensamento sobre o jornalismo e sobre a actualidade do seu tempo?

    Neste trabalho, metodologicamente assente em pesquisa bibliogrfi-ca, documental e hemerogrfica em bibliotecas, arquivos e hemerotecas, bem como na leitura e anlise do discurso2 quantitativa e qualitativa dos jornais que liderou, procurar-se- apresentar a vida de Antnio Rodri-gues Sampaio, centrando-a, no entanto, na sua actividade jornalstica, apesar desta ser indissocivel da sua actividade poltica, e tentar-se- responder s questes acima levantadas. Visou-se perceber como Sam-paio plasmou a sua mundividncia no seu discurso jornalstico, tambm poltico, incorporando-a no universo simblico da sociedade portugue-sa oitocentista ou, pelo menos, no universo simblico das elites politi-zadas da poca.

    Para essa tarefa, ganharam particular interesse os trabalhos biogrfi-cos daqueles que com Sampaio conviveram de perto, em particular os textos de Teixeira de Vasconcelos (1858; 1859) e de Pedro Venceslau de Brito Aranha (1907), fontes principais para a construo da sua bio-grafia, porque se constata que foram eles que deram o tom s recons-tituies biogrficas posteriores da vida do referido poltico jornalis-ta, self-made man notvel do seu tempo, e aduziram os factos que so multiplicadamente referidos nas suas biografias posteriores. Havendo bastante bibliografia sobre a vida de Antnio Rodrigues Sampaio (por exemplo, NEIVA SOARES, 1982, 2006; 2007; S, 1984), incluindo vrias outras obras dos seus contemporneos (TEIXEIRA DE VAS-CONCELOS, 1859; FIGUEIRA, 1882; BRITO ARANHA, 1907; VE-LOSO, 1910), no foi, assim, tarefa complicada reconstruir, em traos gerais, a vida desse sujeito maior da histria portuguesa do sculo XIX centrando-a, para o caso, nas questes do exerccio do jornalismo.

    2 A grafia de alguns dos excertos de texto aqui citados foi adaptada ao portugus actual.

  • Consultaram-se, tambm, os jornais Revoluo de Setembro (prin-cipalmente a partir de 20 de Setembro de 1851, data do primeiro artigo assinado de Sampaio3, at 1882, ano da morte do jornalista), O Eco de Santarm e O Espectro, redigidos integralmente por Sampaio, pois foi neles que ele concretizou mais intensamente a sua aco jornalstica e o seu pensamento. Do Espectro, usou-se a edio integral de 1880, dispo-nvel on-line na Hemeroteca Digital de Lisboa. Porm, essa edio no totalmente conforme original e, em alguns nmeros, at apresenta dife-renas significativas, conforme se constatou ao compar-la com a edio original (disponvel na seco de Reservados da Biblioteca Nacional) e com a edio disponibilizada pela Google Books, que, s vezes, tambm foi usada, embora menos, por causa da fraca qualidade da impresso de muitos nmeros (hipoteticamente, consequncia das vicissitudes que rodearam a impresso do jornal ou por deficincias da prpria digitali-zao).

    A anlise do discurso, mtodo que, conforme explica Sousa (2006, p. 343), procura desvelar a substncia de um discurso no mar de palavras que este possa possuir, incidiu sobre os artigos assinados por Sampaio no jornal A Revoluo de Setembro, sobre textos no assinados4 nos quais se reconhece ou parece reconhecer o discurso do autor (principal-mente sobre os artigos de fundo do Revoluo de Setembro, j que seria este o espao apropriadamente reservado para o redactor principal do peridico), sobre matrias s quais Neiva Soares (1982) atribui a autoria a Antnio Rodrigues Sampaio, ainda que tambm no sejam assinadas, e sobre a totalidade do Eco de Santarm e do Espectro, j que foram

    3 Os editoriais comeam a ser assinados somente a partir de 26 de Setembro de 1851. No entanto, a 20 e 24 de Setembro so publicados textos assinados por Antnio Rodrigues Sampaio no jornal A Revoluo de Setembro, ambos em jeito de carta.4 Obviamente, no possvel oferecer a garantia de que todos os textos no assinados recolhidos para exemplo no decurso deste trabalho sejam da autoria de Antnio Rodrigues Sampaio. Com elevado grau de probabilidade atendendo ao espao onde foram publicados e ao estilo pare-cem s-lo e provavelmente so, pelo que se assume, no decorrer do trabalho, que o so de facto. Se o procedimento no fosse este, um largo perodo da vida jornalstica de Sampaio no poderia ser ilustrado com textos. De qualquer modo, deve registar-se que mesmo a partir de 1851, ano do primeiro artigo assinado por Sampaio, o Revoluo de Setembro no manteve uma poltica constante de identificao dos autores dos textos. Por vezes, eram assinados; mas depois havia interrupes nessa poltica, sem motivo aparente, e podiam passar-se vrios meses at que os textos voltassem a ser assinados.

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  • jornais escritos por este jornalista. Para a sua concretizao, fez-se uma leitura flutuante, embora sistemtica, dos jornais referidos; leram-se os textos considerados relevantes e deles recolheram-se os excertos que, tendo em ateno o contexto discursivo, mais contriburam para dar res-posta s questes atrs equacionadas e para ilustrar as constataes que se fizeram sobre a forma e o sentido dos prprios textos.

    Assim sendo, embora sistemtica, a anlise do discurso efectuada centrou-se nos exemplos que permitiram perceber, em termos formais, a forma como Antnio Rodrigues Sampaio construa os seus textos e, em termos de contedo, qual era o seu pensamento jornalstico ou seja, como que ele encarava o jornalismo e os jornalistas e qual era o seu posicionamento sobre os acontecimentos e problemticas do seu tempo. A perspectiva no histrica, mas comunicacional e at especificamen-te jornalstica. Embora os resultados possam contribuir para lanar luz sobre a histria do sculo XIX em Portugal, o objectivo o de olhar para Sampaio como produtor de um discurso jornalstico (embora tambm com valor poltico) sobre as realidades do seu tempo, atentando, funda-mentalmente, nas temticas que ele abordava, na forma como o fazia e nas fontes que usava.

    Espere-se, portanto, uma anlise do discurso instrumental, subordi-nada ao propsito de reconstruo da vida jornalstica e da aco jor-nalstica de Sampaio. Procurou relevar-se o sujeito histrico por trs do discurso, isto , o sujeito histrico autor de discurso, e tornar mais ntida a maneira como (inter)agiu no palco social da poca. Essa instru-mentalidade da anlise conferiu-lhe, necessariamente, um pendor mais culturolgico do que crtico, traduzido mais pela tentativa de clarifica-o dos pontos de vista (ou seja, dos enquadramentos ou frames) expressos nos textos de Antnio Rodrigues Sampaio e dos valores que neles se impregnam do que pelo desvelamento de hipotticas relaes de poder e domnio que se pudessem plasmar simbolicamente nos mes-mos. De qualquer modo, seguiu-se, em geral, a orientao proposta por Sousa (2004; 2006, p. 343-374) para uma anlise do discurso global, quantitativa e qualitativa, de matriz essencialmente culturolgica, pouco preocupada com o seguimento (ou confinamento?) de uma linha terica e mais centrada no aproveitamento operacional e, quando necessrio

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  • (como o caso), instrumental, daquilo que os vrios posicionamentos tericos sobre a anlise do discurso possam dar investigao dos fen-menos comunicativos.

    Tentou-se, conjunturalmente, explicar o que o jornalismo portugus foi no sculo XIX, para depois se apurar qual a aco que sobre ele exerceu Antnio Rodrigues Sampaio, na convico de que o estudo da dimenso histrica do jornalismo e das suas figuras histricas chave au-xilia a compreender a trajectria desta estratgia de comunicao em sociedade at ao momento presente. Vrias obras contribuem para lan-ar luz sobre esse perodo. o caso, nomeadamente, da Histria da Imprensa Peridica Portuguesa, de Tengarrinha (1989), e do livro Ele-mentos para a Histria da Imprensa Peridica Portuguesa, de Alfre-do da Cunha (1941) que incide, todavia, apenas no perodo at 1820. Biografias de jornalistas da poca, como a de Alexandre Herculano, elaborada por Jacinto Baptista (1977), ou os trabalhos biogrficos sobre publicistas oitocentistas realizados pelos seus contemporneos, como os de Sampaio Bruno (1906) e de Brito Aranha (1907), so, tambm, parti-cularmente relevantes para o desvelamento do ecossistema jornalstico e poltico portugus da poca de Rodrigues Sampaio5.

    5 Noutros pases da Europa tambm h vrias obras que auxiliam compreenso do que era o jorna-lismo continental na poca de Antnio Rodrigues Sampaio. Particularmente interessante a Mono-grafia da Imprensa Parisiense, de Honor de Balzac (2009), datada de 1843. Nela, o famoso escri-tor ataca demolidora mas comicamente o jornalismo francs da sua poca, distinguindo entre duas grandes tipologias de redactores de jornais: os publicistas, escrevinhadores que fazem poltica (que se enquadram nas seguintes categorias: jornalistas, jornalistas-homens de estado, panfletrios, vul-garizadores, falsos publicistas, escritores monobiblo, tradutores, autores de convices com vrios subtipos em cada uma das categorias); e os crticos, autores incapazes especialistas na literatura dos outros (cujas categorias seriam as seguintes: crticos de linhagem antiga, jovens crticos arrivistas, grandes crticos, folhetinistas e pequenos jornalistas categorias que tambm admitem vrios subti-pos). Balzac, que no tinha grande opinio sobre os redactores de peridicos, brinda os leitores com axiomas como para o jornalista, tudo o que provvel, verdadeiro. E conclui, criticando a inci-piente mediatizao do mundo, que o jornalismo no era mais do que um alegado sacerdcio que submeteu s suas leis a justia, aterrorizou o legislador (...), submeteu a realeza, a indstria privada, a famlia e todos os interesses, enfim, converteu a Frana numa aldeia em que mais importante o que diro [os jornalistas] do que os interesses do pas. O nmero de levitas desta moderna divindade no excede um milhar. O mais insignificante entre eles um homem sbio, apesar da sua mediocridade, que sempre relativa. E para que nada falte imprensa, to singular, nela encontramos duas mulheres e dois padres: (...) saias. O que se passa com os assinantes ainda mais inexplicvel. Os subscritores de jornais vem como os seus peridicos mudam de inimigos, destilando amabilidades para com os polticos contra os quais antes abriam fogo todos os dias, elogiando hoje o que at ontem depre-ciavam, aliando-se como colegas aos que golpeavam na vspera (...), defendendo teses absurdas, e

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  • Igualmente importantes para aclarar o ambiente poltico-jornals-tico oitocentista so as monografias sobre determinados jornais ou ti-pos de imprensa, como sejam as obras de Fernando Egdio Reis (2005) sobre o Jornal Enciclopdico Dedicado Rainha; de Joo Pedro Rosa Ferreira (1992) sobre o Jornalismo na Emigrao, trabalho que se de-brua sobre O Correio Brasiliense; de Antnio do Carmo Reis (1999) sobre A Imprensa do Porto Romntico (1836-1850); de Lus Bigotte Choro (2002) sobre O Periodismo Jurdico Portugus do Sculo XIX; de Jos Augusto dos Santos Alves (2005) sobre Ideologia e Poltica na Imprensa do Exlio O Portugus (1814-1826) e Nas Origens do Periodismo Moderno Cartas a Orestes (SANTOS ALVES, 2009). Histrias da literatura, como a de Antnio Jos Saraiva e scar Lopes (1979) ou a dirigida por Forjaz de Sampaio (1929-1942), contribuem, igualmente, para explicar o estilo jornalstico oitocentista.

    No caso concreto de Antnio Rodrigues Sampaio, adquire particular relevncia entend-lo, como o fazem os seus bigrafos (TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859; FIGUEIRA, 1882; BRITO ARANHA, 1907; VELOSO, 1910; TENGARRINHA, 1963; S, 1984; NEIVA SOARES, 2006), enquanto poltico de jornal, escritor persuasivo solitrio apenas unido ideologicamente aos seus correligionrios polticos. De facto, An-tnio Rodrigues Sampaio, conforme transparece deste trabalho, no se enquadra no actual imaginrio jornalstico, marcado pela socializao dos jornalistas nas redaces. Consequentemente, para explicar a sua vida jornalstica e as aces que empreendeu, importante compreen-der a conjuntura oitocentista portuguesa, sobretudo no que respeita ao jornalismo e poltica. Principalmente, importante entender, como o faz Rui Ramos (2010), como aps a Revoluo de 1820 (apesar do interregno miguelista), e especialmente aps a Regenerao (1851), se foi construindo, em Portugal, uma repblica com Rei, de que a queda da Monarquia, a 5 de Outubro de 1910, constituiu apenas o culminar do divrcio entre a Dinastia de Bragana e a direita liberal, desiludida pelas cedncias feitas esquerda pelos ltimos monarcas portugueses:

    continuam a l-los e a subscreverem-nos com uma intrpida abnegao jamais vista entre as pessoas. A imprensa, como a mulher, admirvel e sublime quando conta uma mentira, no nos deixa ir em-bora at que nos fora a crer nela, e emprega nesta luta as suas melhores qualidades, a ponto de que o pblico, to tonto como o marido, sempre sucumbe.

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  • A Repblica incompreensvel sem a revoluo liberal de 1834 e a republicanizao da monarquia. Os liberais reduziram a monarquia a uma repblica com um rei, hostil antiga nobreza e ao ultramonta-nismo. Depois da Regenerao de 1851, a esquerda radical ficou in-corporada no regime. Por isso, os republicanos puderam ter empregos do Estado, publicar jornais, manifestar-se, ganhar eleies. (...) O 5 de Outubro no foi o resultado da falta de liberdade, poltica ou religiosa, mas do impasse a que chegara a governao liberal. (...) Os conspira-dores republicanos avanaram contra um governo de esquerda desani-mado e inseguro, contra o qual a direita tambm preparava um golpe. (RAMOS, 2010, p. 37)

    essa republicanizao da Monarquia aps a queda do absolutismo miguelista que permitir a Rodrigues Sampaio, homem da esquerda li-beral, integrar-se perfeitamente no regime aps a Regenerao de 1851.

    de advertir, contudo, que aqui no se faz uma problematizao do estatuto epistemolgico da histria nem das categorias que no trabalho so utilizadas. A opo talvez no seja a mais lcita para um historiador, mas ser, pelo menos, aceitvel para um estudo que, embora histrico, assumidamente de natureza comunicacional e at, mais concretamen-te, um estudo jornalstico, inserindo-se num campo teoricamente sus-tentado e consolidado por quase quatro sculos de pesquisa e reflexo (SOUSA, 2008a) o do Jornalismo. Contudo, embora controversamen-te, pode dizer-se que se opta por uma abordagem associvel da velha histria, que perspectiva como sendo papel do historiador recuperar, ordenar e relacionar factos histricos provados e documentados, averi-guar por que que ocorreu aquilo que ocorreu no contexto das mltiplas e variadas coisas que poderiam ter ocorrido (BONIFCIO, 1993a, p. 624-625). Neste sentido, a interpretao da histria pode ser uma verso do que sucedeu, uma opinio fundamentada sobre o mundo, que no dispensa a imaginao, mas no uma mera fico, nem arbitrarieda-de, nem subjectividade solta, at porque alguma objectividade possvel, sem o que essa mesma histria no poderia ser comunicada (BONIFCIO, 1993a, p. 629-630).

    O renascimento da narrativa trar consigo o renascimento da histria, no como cincia social, mas como disciplina literria. Como tal, a

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  • histria reabilitar o seu terreno de pesquisa tradicional: a poltica, as grandes figuras, as instituies, a histria do pensamento e das ideias, a diplomacia e as relaes internacionais, a histria militar e constitucio-nal. (...) A histria (...) (...) uma disciplina literria, mas de um gnero literrio especfico, com regras prprias e rigorosas (...). Contrariamente fico, os factos esto sujeitos a verificao documental e (...) tem de respeitar regras de inferncia conformes lgica aceite pelo senso co-mum e tem de satisfazer os requisitos de coerncia exigidos pela lgica. (BONIFCIO, 1993a, p. 628-629)

    Esta ideia vai, igualmente, ao encontro das preocupaes de Marial-va Barbosa (2008, p. 129), que tambm v na histria uma interpretao plausvel de processos histricos singulares do passado, um artefacto literrio na qual o passado um construto do presente que depende das perguntas que o historiador lana sobre ele6.

    Assim, um sujeito histrico com o calibre de Antnio Rodrigues Sampaio no ser visto unicamente como o fruto de uma estrutura nem ser apresentado luz exclusiva das cincias sociais. Antes ser apre-sentado como um sujeito que, atravs do livre exerccio da sua vontade, agiu sobre o meio e transformou-o, na linha do que defende Maria de Ftima Bonifcio (1993a), para quem, nos estudos histricos, se deve recuperar a tradio literria, embora documentalmente provada, da his-tria, e buscar-se a empatia com os sujeitos histricos:

    explicar (note-se que no digo descodificar) o comportamento de um sujeito (note-se que no digo prtica nem actor) , isto , explicar o comportamento de algum que sente, pensa, decide e actua, exige (...) compreenso e empatia (...). Mas o certo que explicar a partir da com-preenso emptica pressupe a capacidade de vivermos a subjecti-vidade dos outros, de vibrarmos com as suas ambies, de nos infec-tarmos com as suas invejas, de partilharmos as suas vinganas, de nos

    6 A autora, porm, enfatiza a dimenso fictcia do relato histrico e a predominncia da inter-pretao e da anlise sobre os prprios factos histricos, que para Marialva Barbosa (2008, p. 129) no so dados objectivos nem descobertas. Esta viso de Barbosa no ser a assumida neste trabalho. Nele no se recusa a ideia de facto incluindo os registos documentais como dados objectivos que servem de prova histrica, nem se recusa a ideia de que, apesar dos discursos histricos serem verses interpretadas e opinativas do que aconteceu, neles alguma objectivi-dade entendida como predominncia do objecto de conhecimento sobre os diferentes sujeitos que conhecem possvel.

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    emocionarmos com as suas paixes. (BONIFCIO, 1993a, p. 627-628)

    Procurar-se-, portanto, neste trabalho, construir uma moldura his-trica que permita a compreenso do jornalismo e do ambiente poltico portugus oitocentista enquanto fenmenos culturais e no enquanto pe-as de museu, para, a partir daqui, com base nos registos documentais encontrados, mas tambm com a imaginao, enquadramento e interpre-tao possveis, se construir uma verso informada da vida jornalstica de Antnio Rodrigues Sampaio e do seu pensamento jornalstico. Ape-sar desta faceta da sua vida ser indissocivel da sua actividade poltica, privilegiar-se- o entendimento que esse sujeito histrico teve do jorna-lismo, da liberdade de imprensa e do mundo do seu tempo.

  • PARTE 1

  • CAPTULO 1

  • O jornalismo portugus no tempo de Antnio Rodrigues Sampaio

    ual a experincia que teve Antnio Rodrigues Sampaio do jor-nalismo? Esta uma questo importante para perceber o rumo que a sua vida levou. Primeiro, torna-se importante acentuar a

    dinmica jornalstica com que ele contactou, bem sintetizada nas pala-vras de Antnio Jos Saraiva e scar Lopes (1979, p. 809):

    Nos dez anos que precederam a Revoluo de 1820, a mdia de jornais aparecidos anualmente no chegava a quatro, incluindo neste nmero alguns editados em Londres e no Brasil. Nos anos de 1820-1823, na vigncia da primeira Constituio, essa mdia eleva-se a cerca de 30, para baixar aps a abolio da Constituio, subir novamente com a pro-clamao da Carta, de novo baixar com o miguelismo, e outra vez subir e fixar-se definitivamente num nvel muito mais alto a partir da vitria li-beral de 1834. As pocas de maior vitalidade popular so tambm aque-las de maior produo jornalstica: iniciam-se 60 jornais em 1836, 57 em 1846, e o nmero mantm-se elevado nos dois anos (...) de guerra civil (...). As leis cabralistas repressivas da liberdade de imprensa reflectiram--se como era alis seu objectivo na actividade jornalstica: o ano de 1850 v nascer apenas 15 jornais. A partir da Regenerao nota-se um desenvolvimento progressivo da imprensa provinciana (...).

    O jornalismo hegemnico portugus que Rodrigues Sampaio conhe-ceu ao longo da sua vida e que marcou a forma de o conceber, pese embora uma viagem que fez, em 1867, pela Europa era um jornalismo panfletrio, marcado pela opinio. Nele, o artigo pontificava, custa da desvalorizao da informao noticiosa. Inclusivamente:

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  • Na sua grande maioria, os jornais so, nos primeiros dois teros do sculo, panfletos polticos em sries editadas periodicamente. (...) Em vrios (...) jornais (...) exercitaram a pena os melhores escritores da po-ca. (...) Mas j desde a primeira revoluo liberal aparecem, ao lado dos jornais polticos, peridicos (...) literrios e de divulgao cultural (...) e (...) jornais (...) teatrais (...). (SARAIVA e LOPES, 1979, p. 810)

    O jornalismo poltico com que Sampaio conviveu at quase ao final da sua vida1 era, de qualquer modo, um jornalismo de elites, feito pelas elites para consumo das elites, ou, por outras palavras, feito para a bur-guesia por escritores de jornal e polticos de jornal, que se viam a si mesmos como jornalistas, mas que desempenhavam a actividade muitas vezes mais por ocupao do que por verdadeira profisso, mesmo quan-do dela tiravam proveitos financeiros regulares2. No eram reprteres, mas sim articulistas, publicistas, opinadores e, no raramente, panfle-trios (ver, por exemplo TENGARRINHA, 1989; SOBREIRA, 2003; SOUSA, 2008b).

    Teixeira de Vasconcelos (1859, p. 26-27), que conheceu de perto a situao, tradu-la assim:

    A fundao dos peridicos polticos e de uma grande quantidade de fo-lhas literrias criou a nova e importante classe dos jornalistas, na qual entraram, ou nela se formaram, poetas, historiadores, crticos, filsofos, economistas e homens de grande valia nas cincias e nas letras, e dela saram para as cadeiras das cmaras ou do ministrio e para os mais al-tos lugares do Estado. () Os escritores que so hoje o ornamento das letras nacionais, todos receberam o baptismo na pia jornalstica.

    Os primeiros jornais doutrinrios portugueses, surgidos logo aps a Revoluo Liberal de 1820, eram publicaes artesanais, feitas por um

    1 Pelo menos at ao aparecimento do Dirio de Notcias, em 1864 (nmeros de apresenta-o)/1865 (publicao regular).2 Ainda que regulares, eram parcos. Segundo Tengarrinha (1989, p. 190), Antnio Rodrigues Sampaio ganharia apenas 40 mil ris mensais como redactor principal do Revoluo de Setem-bro no terceiro quartel de Oitocentos. Marques Gomes (1882, p. 61), um dos jornalistas portuen-ses que participaram no livro de homenagem a Sampaio editado colectivamente pela imprensa do Porto, afirma que ele recebia como colaborador do Revoluo 19200 ris mensais, tendo passado a receber 60 mil quando passou a redactor. E diz, como de resto outros dos redactores do mesmo livro, que Sampaio morreu pobre num tempo em que fazer poltica enriquecia. (Alis, ser que o pas mudou muito nessa matria?)

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    homem s. No se limitavam a procurar ilustrar ou opinar. Facilmente caam no insulto e na calnia, razo pela qual so muitas vezes deno-minados de pasquins. Embora reportando-se imprensa brasileira, que nessa altura evolua a par da portuguesa, Nelson Werneck Sodr (1999, p. 85 e p. 157) caracteriza muito bem esses jornais e encara-os de forma bastante positiva ao classific-los como imprensa peculiar, cujos tra-os de grandeza e autenticidade so normalmente apresentados como impuros:

    Eram vozes (...) bradando em altos termos e combatendo desatinada-mente pelo poder que lhes assegurasse condies de existncia com-patveis ou com a tradio ou com a necessidade. No encontrando a linguagem precisa (...), a norma poltica adequada aos seus anseios, e a forma e organizao a isso necessrias, derivavam para a vala comum da injria, da difamao (...). No podiam fazer uso de outro processo porque no o conheciam (...) num meio em que a educao (...) estava pouquissimamente difundida (...), em que os que sabiam ler no tinham atingido o nvel necessrio ao entendimento das questes pblicas e em que os que haviam frequentado escolas superiores se deliciavam em es-tril formalismo (...), a nica linguagem que todos compreendiam era mesmo a da injria.

    De qualquer modo, atentando nos aspectos positivos do vintismo, Carlos Carrasco, Ceclia Cunha e Joaquim Pintassilgo (1983, p. 66) no-tam que ele trouxe consigo o gosto pelo jornal, aspecto no despicien-do para a evoluo do jornalismo portugus. Mais do que isso, o vintis-mo trouxe consigo as ideias da liberdade de imprensa como extenso da liberdade de pensamento, direito natural do homem, que Alexandre Herculano (1907, p. 17) apelidava um dogma, o primeiro da religio poltica moderna. Mais do que isso, o aparecimento regular de jornais polticos permitiu, politicamente, a solidificao da esfera pblica bur-guesa.

    A vitria do liberalismo trouxe consigo um grande impulso imprensa e tribuna parlamentar. (...) Estes dois gneros tm na literatura uma funo importante: atravs deles que se estabelece o nexo entre a literatura e o dia-a-dia. O estilo imposto pelo jornalismo e pela tribu-na poltica a escritores que tm de se fazer entender por um pblico quantitativamente vasto projecta-se inevitavelmente noutros gneros

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    literrios e forja grandes correntes de gosto. (CUNHA e PINTASSIL-GO, 1983, p. 66)

    O vintismo, recorde-se, produziu, ainda, os primeiros arremedos de reflexo sistemtica sobre o jornalismo portugus. Autores como o po-lemista conservador Jos Agostinho de Macedo (1821a; 1821b; 1821c) criticaram os jornais por reportarem insignificncias, explorarem as emoes, apelarem superficialidade do conhecimento, gerarem confu-so e anarquia, copiarem-se uns aos outros, dividirem o povo, quererem substituir-se ao Rei, ao Governo e ao Parlamento na definio dos cami-nhos a trilhar pelo Pas e serem redigidos por pessoas incultas e impre-paradas que procuravam, principalmente, ganhar dinheiro com eles. Por seu turno, liberais como Pedro Cavro (1821) ou Joaquim Maria Alves Sinval (1823) apresentavam a liberdade de imprensa como decorrente do direito natural dos seres humanos ao pensamento, sendo susceptvel de contribuir para a emancipao do homem, para o conhecimento do mundo e, em termos mais prosaicos, para o escrutnio da governao e dos negcios pblicos e para a discusso poltica ou seja, afinal, para a democracia.

    Graas s influncias modernizadoras que os emigrados liberais trou-xeram para o pas, quando regressaram, em Portugal os jornais artesa-nais de um nico indivduo, prprios do vintismo, deram lugar, gradual-mente, aos jornais do perodo Romntico, feitos por pequenos grupos de indivduos unidos ideologicamente para um propsito comum jornais de partido, portanto. Cedo comearam a ser necessrios mais recursos para montar um jornal de bases slidas, nomeadamente uma sede para a redaco e a possibilidade de utilizao de uma tipografia bem apetre-chada, pois tambm constantes eram os aperfeioamentos nos sistemas de composio e de impresso (TENGARRINHA, 1989, p. 155). Apa-receram, nomeadamente, prensas movidas a vapor, ao mesmo tempo que a produo qumica de tintas melhorava e se incrementava a inds-tria do papel.

    Explica Jos Manuel Tengarrinha (1989, p. 153):

    Estes peridicos que aparecem depois de 1834 diferenciam-se dos ante-riores (...) por (...) maior segurana nos processos jornalsticos e apetre-chamento tcnico mais desenvolvido [e] (...) um novo contedo ideol-gico, aparecendo como rgos de partidos ou (...) de faces.

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    Eram, em consequncia, jornais que j no se limitavam a ecoar o que sucedia no espao pblico, antes mantinham com ele um dilogo, j que cada jornal representava uma corrente de opinio poltica, actuando como respectivo porta-estandarte no colquio, ou at, na maioria das vezes, no combate, com as demais correntes de opinio, frequentemente representadas, tambm, pelos seus prprios jornais, espcie de extenses do Parlamento. No Romantismo, o aumento do nmero de publicaes polticas consolidava, assim, uma esfera poltica representativa das di-versas faces em confronto, dando consistncia aos passos que, nesse domnio, tinham sido dados durante o vintismo. Mais tarde, os jornais industriais, transclassistas, tentariam interferir na prpria governao em nome do que entendiam por bem-comum, substituindo-se aos prprios parlamentos como legtimos intrpretes da opinio dos cidados.

    medida em que se tornavam instituies sociais e espaos de poder simblico e real , os jornais romnticos conseguiam propagar os pro-jectos das diferentes faces polticas na esfera pblica. Todavia, estan-do sujeitos colaborao de um reduzido, e por vezes volvel, nmero de colaboradores, podiam manifestar uma certa plasticidade ideolgica, consubstanciada nas metamorfoses que as linhas editoriais sofriam. O Revoluo de Setembro, por exemplo, de um rgo do setembrismo ra-dical, passou, durante a Regenerao, a um peridico defensor do fon-tismo, deixando de lado as grandes questes ideolgicas. Acompanhou, de resto, o trajecto poltico do seu principal mentor, Antnio Rodrigues Sampaio.

    De alguma forma, os jornais romnticos portugueses at Regenera-o reproduziam o sistema poltico existente no pas, que, embora repre-sentativo (apesar de censitrio e sexista), no integrava partidos polticos como hoje so entendidos. Era um sistema meramente protopartidrio ou faccionrio, assente, sobretudo, na aceitao e defesa, ou no, por conjuntos mais ou menos organizado de indivduos, de um dos vrios textos constitucionais, segmentando-se em trs grandes grupos princi-pais: cartistas, constitucionalistas (incluindo setembristas) e absolutistas (miguelistas, adeptos do Antigo Regime). Dentro dessas faces, po-diam surgir grupos ligados ao apoio a um nico indivduo, subservientes rede clientelar que este juntava sua volta, caso dos cabralistas e sal-danhistas (todos eles cartistas) ou, mais tarde, dos fontistas. A essa esfera pblica, juntaram-se os republicanos e outros grupos polticos (socialis-tas, anarquistas...) e ainda os operrios, cujas organizaes mutualistas

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    e de defesa, entre as quais os sindicatos, foram responsveis pela apari-o de muitos peridicos. A partir da Regenerao, os partidos polticos tornam-se, todavia, mais consistentes.

    O poder da imprensa romntica residia, portanto, na capacidade de dar expresso simblica e pblica aos mecanismos de poder, contrapo-der, balanceamento e arbitragem que permanentemente interagiam no espao social, em torno de momentos de equilbrio e de ruptura. Em alguns casos, a publicao de um jornal permitia mesmo a grupos no representados nas duas cmaras do parlamento a possibilidade de usu-frurem de uma voz pblica. Era o jornalismo, enfim, que facultava aos grupos de cidados fazerem-se ouvir na esfera pblica.

    de salientar que, poca, a dbil organizao das foras polticas e a sua infantilidade ideolgica e doutrinria lhes dava pouca capacidade de aco, j de si refreada pelo facto de o Rei deter, segundo a Carta Constitucional, o poder Executivo e o poder Moderador. Os partidos, num estado ainda embrionrio, reflectiam a segmentao da sociedade burguesa em grupos de interesses doutrinria e hierarquicamente pouco coesos e fracos. Alis, em vrios casos, conforme sucedeu durante o cabralismo e durante o fontismo, os partidos pouco mais eram do que organizaes internamente pouco estruturadas e pouco hierarquizadas que se articulavam em torno de uma personalidade dotada de capital social que conseguia satisfazer, ou manter na esperana de serem satis-feitas, as suas clientelas, at porque os negcios dos principais partidos polticos eram profundamente articulados com a governao (vendas de empregos pblicos, benesses econmicas, contratos com o Estado...).

    Nessa conjuntura, conforme d conta Teixeira de Vasconcelos (1859, p. 78), a vida de um jornalista poltico, especialmente se provasse o su-cesso na poltica e chegasse ao Governo, tal como aconteceu com Sam-paio, no era fcil. O prprio Sampaio foi desafiado para trs duelos, dos quais teve de travar um, por causa do que escrevia.

    O ofcio de periodiqueiro tem seus ossos (). A entrada de rosas. Os colegas cumprimentam o redactor esperanoso, que debuta, e auguram--lhe um grande futuro. Poucos dias depois, chamam-lhe asno, boal e estpido. Passam seis meses, e se ele sobe as escadas de uma secreta-ria, acusam-no de ladro e de concussionrio, e por d c aquela palha mandam-lhe a casa dois padrinhos () para combinarem com outros dois sujeitos chamados tambm padrinhos o modo mais decente de o

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    matarem ou de serem mortos por ele. Osso que custou a vida a Armand Carrel e que por vrias vezes ps em risco a de Sampaio. (TEIXEIRA DE VASCONCELOS, 1859, p. 78).

    Como se organizavam os jornais portugueses do tipo do Revoluo de Setembro, aquele no qual Antnio Rodrigues Sampaio se distinguiu, a meio de oitocentos, em pleno Romantismo? Explica, mais uma vez, o principal estudioso da imprensa peridica portuguesa durante a Monar-quia, Jos Manuel Tengarrinha (1989, p. 189-190):

    um jornal de certa importncia era, em geral, constitudo por um edi-tor (responsvel perante as autoridades), por um redactor-responsvel (ou chefe da redaco), por um ou dois noticiaristas encarregados da traduo das folhas estrangeiras e da informao nacional (...) e um fo-lhetinista (...). Uma seco que toma ento grande desenvolvimento a de cartas ao redactor, atravs da qual se estabelece uma comunicao ntima e constante entre o jornal e o leitor. (...) O chefe da redaco era o verdadeiro esprito e a alma da publicao. O jornal, geralmente, era um homem, mais at do que um partido. (...) Era o redactor responsvel (...) quem (...) imprimia ao jornal uma direco prpria. Cada jornal im-portante definia-se por uma grande figura: (...) A Revoluo de Setembro era Antnio Rodrigues Sampaio (...). As polmicas que (...) tomavam frequentemente carcter pessoal acentuavam esta caracterstica. Sendo o jornal todo, nele se concentravam no apenas as funes de redaco, mas tambm (...) as de direco e administrao. (...) Alm dos elemen-tos da redaco, o jornal contava com colaboradores eventuais, mais ou menos identificados com a linha poltica do jornal.

    Havia, portanto, pouco profissionalismo nos jornais de ento. A pro-fissionalidade jornalstica s ento dava os primeiros passos no territrio portugus. Brito Aranha (1907, p. 74-75), por exemplo, ao evocar a figu-ra de Jos Estvo, um dos fundadores do jornal Revoluo de Setembro, descreve como se passavam as coisas na redaco:

    Jos Estvo entrava na redaco, s vezes depois da uma hora [da ma-nh]. Esperava-o a um pobre velho, que ele tinha s ordens para escre-ver o que ditava, pois era sabido que a letra dele ningum entendia. (...) E Jos Estvo zangava-se quando lho diziam e provavam (...).

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    Vocs no o entendem? Ora essa! interjectava ele.E depois acudia: Nem eu... e ria-se.

    O velho secretrio, que muito lhe aturou, aguardava a chegada do ilustre jornalista e professor com ar sonolento e aborrecido. Jos Estvo no lhe ganhava. Sentava-se mesa de trabalho na frente do secretrio e di-tava as primeiras frases do comeo do artigo de fundo. Bocejava, fecha-va os olhos e a cabea pendia-lhe para a mesa. Passados alguns minutos despertava como se o tivessem acordado com mpeto e perguntava:

    Ento, o que voc ps l?...Ao que o velho respondia secamente: O que ditou. S isso? Mais nada. pouco. Vamos ao resto.

    vE o processo de ditar continuava com as mesmas intermitncias. Ao cabo de duas horas, estava o artigo pronto e deitava a composio do peridico pouco mais do que trs quartos de coluna.Meia hora depois de mandar entregar o original, Jos Estvo gritava:

    Chamem-me o Coutinho.Aparecia logo o chefe da composio tipogrfica e, sendo interrogado, respondia:

    O original foi entregue h poucos minutos e era impossvel apre-sent-lo j em provas. Mas no tem demora.No dia seguinte, quem lia a Revoluo de Setembro, no podia apreciar as ralaes por que passara o pessoal operrio para a dar ao pblico, mas regalava-se com o artigo enrgico, fogoso, que tinha sado do crebro privilegiado de Jos Estvo.

    Uma outra caracterstica pode ser apontada aos jornais do perodo Romntico, sobretudo quando comparados com os jornais vintistas e com os jornais industriais que lhes sucederam. Neles colaboraram gran-des nomes das letras e humanidades, como Alexandre Herculano, Al-meida Garrett e, mais tarde, Ea de Queirs e Ramalho Ortigo. A sua colaborao serviu para elevar e at individualizar o estilo dos textos, o que, aliado a uma apresentao grfica crescentemente cuidada, pro-moveu a adeso do pblico. Pode dizer-se, inclusivamente, que a acti-vidade jornalstica ganhou prestgio suficiente para algum como An-tnio Rodrigues Sampaio ter ascendido social e politicamente apenas

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    graas a ela, pois ele, antes de se dedicar poltica partidria, exercia o jornalismo em exclusividade, num tempo em que eram raros os que o conseguiam fazer. De qualquer modo, comeavam a surgir trs tipos de pessoas envolvidas nos jornais: os polticos jornalistas que produziam textos emotivos e persuasivos num estilo fluente; os escritores de jor-nal, literatos que emprestavam aos textos a marca da elevao literria e da perfeio; mais tarde, os reprteres e noticiaristas, que redigiam informaes da mais variada ndole, em especial notcias da poltica e da polcia (consultar, entre outros, CUNHA, 1941; TENGARRINHA, 1989; SOUSA, 2008b; SOBREIRA, 2003).

    Tengarrinha (2006, p. 137) sugere que foi o combate ao cabralismo que transmitiu apaixonada impetuosidade ao jornalismo poltico ro-mntico:

    O estilo jornalstico (...) nada tem do equilbrio e regras dominantes dos textos clssicos. visvel a influncia que recebe da oratria romntica (...). Em geral, a mesma impetuosa carga emocional, o mesmo estilo declamatrio, empolado, cheio de expresses redundantes. Causava o maior efeito no apenas em quem lesse, mas tambm em quem ouvisse, pois com muita frequncia os editoriais eram lidos em voz alta nos stios pblicos (...).Trao marcante a relao que esse jornalismo (...) estabelece com o leitor. Ao contrrio da fase industrial que se seguir (...), com carcter pretensamente objectivo, o intento ento era transmitir opinies que es-tabelecessem uma relao de fidelidade com os leitores. Formavam-se, assim, correntes de opinio (...). E (...) projectava-se a ideia e a palavra na aco, impelindo interveno pblica.

    Luz Soriano (1854, p. 22), que conviveu de perto com essa impren-sa, no tinha dela boa opinio, apelidando-a de depravada, imprensa de partido (...) monopolizada nas mos de meia-dzia de jornalistas, s serve para falar s paixes, aos dios e aos rancores pessoais, indo como tal (...) devassar tudo quanto h de mais privado. Tambm Teixeira de Vasconcelos (1859, p. 27) evoca o jornalismo do meio do sculo XIX, atentando nos problemas da actividade:

    A influncia dos jornais grande em Portugal e podia ser muito maior se os ataques vida particular dos cidados e a pouca compostura de linguagem lhes no diminussem consideravelmente a autoridade. H

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    muita gente que finge em pblico desprez-los, mas que os l com avi-dez em particular. () Esses mesmos, se uma linha os molestou (), acodem logo ao escritrio do peridico ou caa dos redactores com uma resposta de duas colunas e se as coisas pblicas no andam a seu gosto, no largam os redactores.

    Igualmente Guimares Fonseca (1874, p. 19), que dirige a Sampaio uma carta laudatria, no tinha boa opinio dos jornais de que era con-temporneo:

    A moderna gerao no visa to alto no diurno gladiar de questincu-las e nas apoteoses guindadas aos annimos viscondes do high-life. A imprensa, com honestssimas e brilhantes excepes, que escuso de es-pecificar porque se filiam ainda na escola de V. Ex., negoceia as vul-garidades argentarias, ou adula os dispensadores das graas rgias. No discute com a cincia dos factos, com a crtica dos acontecimentos. No agride o mal, no verbera o crime (), acusa fantasiosamente, deprime por clculos egostas, rouba o estmulo do louvor () assim desvirtuada, esta grande vestal da opinio pblica, assim prostituda e esguedelhada nas orgias imundas assim arrastada no lodo vil das paixes brutais.

    Em 1889, quase na viragem do sculo XIX para o XX, o escritor Fialho de Almeida (2009, p. 32-33), criticava, com palavras irnicas e corrosivas, os jornalistas, num texto que na altura se tornou clebre. As suas palavras descrevem bem o arrivismo daqueles que faziam do jornalismo um trampolim para outros voos e a forma atamancada e deformante de praticar um velho-novo gnero jornalstico a repor-tagem:

    Em Portugal estamos assistindo h anos a este emergir de impunes de superfcie do charco social: e os tmidos vem com assombro formi-lharem das baiucas dos jornais (...) criaturinhas que vm para a poltica como quem vai para o Brasil, de tamancos ainda, falando a galegagem da sua cidade natal, (...) quatro frases e meia na memria (...); e instala-rem-se, comearem a tramar, a rastejar pela Arcada, a rabiar pelos locais dos jornalecos, solicitando a apresentao deste, o aperto de mo daque-le, licena para escreverem a biografia daqueloutro; at que um dia apa-recem j patres, grandes concessionrios (...), absolvidos do primeiro escndalo por uma opinio que os no vergasta, dobrando as energias (...) pelo estridor das insolncias que vomitam, e espavorindo enfim as

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    conscincias, pelo tropel de escndalo de que fazem estendal.Destes Barry Lindon3 que vm capital tentar fortuna, o mais tpico o jornalista (...) pimpo, lesto em moral, intransigente em frmulas de hon-ra, desabusado porm de todas as crenas, batido de todas as misrias, esfomeado de todos os prazeres, (...) que (...) pe a sua fortuna num artigo (...), incorrendo na alternativa de acordar director-geral, ou ter de fazer saltar os miolos (...).O pblico j tem assistido alvorada duns poucos desses (...) e sabe que interpretao esses homens tm dado ao direito de pensar alto (...). Sob o consulado destes, a imprensa deixou de ser a voz da inquietao pblica (...). Eles torceram o esprito de controvrsia de que vive o jornalismo (...) em testemunho falso e vilipndio: a bela e calma linguagem falada outrora, nas pugnas vivas, porm nobres, do jornal, eles a tornaram (...) dio, que se vomita (...) em inqualificveis grosserias. E nem vislumbre de esprito alto, ironia pungente, ou dum ideal filosfico (...).Quanto aos jornalistas, dem-me seis que tenham passado a vida a de-fender os interesses do povo, sem fazer da redaco elevador para um aposentadoria; dem-me quatro onde eu escolha um grande homem de letras, ou simplesmente um grande homem de esprito (...). E a razo sal-ta sem esforo. Os jornais (...) foram fundados para a aerostao poltica dum nome, para a defesa de um sindicato, ou para fazer ganhar dinheiro a um imbecil. (...) O jornalismo um stio de passagem (...) onde cada qual se demora o menos que pode.Todos (...) contam fazer nos jornais apenas uma estao de preparo para esta ou aquela tentativa de fortuna, (...) uma ocupao sem nobreza (...).Dada (...) a durao efmera da vida jornalstica, nenhum homem de talento pode fazer do jornal a sua obra, nem convergir para artigos de transio, rpidos e destinados a viver vinte e quatro horas, o mis im-pressivo das suas faculdades (...). Se toco os outros, bastar dizer que o mais exclusivo e tenaz dos nossos jornalistas teve (...) uma mocada nos cascos (...).O tirocnio destes famlicos curto. Quase todos comeam por imprimir atitudes de puros e de austeros; tm a palavra pronta, bravatas hbeis, apoplexias de clera no argumento; e intransigentes na frmula, esses homens surgem para a crendice os tolos como umas transfiguraes da

    3 Personagem de um romance ingls que retrata a sorte de um arrivista.

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    ombridade antiga e portuguesa. (...) Ningum exige um passado a estes charlates, como garantia de futuras responsabilidades. (...) Quatro ou cinco meses depois de mortos, no restar desses homens uma ideia, uma frase sequer, uma palavra. Sero lembrados (...) pelo crime de ha-verem desviado a conscincia pblica de (...) ideias justas (...); por have-rem lanado (...) perturbaes (...); por explorarem a tolice; pela lisonja; por haverem preterido o mrito ao empenho e formulado em evangelho a posse da riqueza (...). Quanto reportage dos faits divers, essa abusa do escndalo, intervm nas deliberaes dos magistrados, deturpa fac-tos, reabilitando ou maculando, consoante as flatulncias do gnio em que amanhece.

    Os jornais polticos da poca eram lidos, principalmente, pela bur-guesia triunfante, essa mesma que, segundo Teixeira de Vasconcelos (1859), no largava os redactores, e que no tinha uma educao lite-rria requintada (...) nem cultura profunda, nem grandes preocupaes e exigncias formais, e procurava sobretudo uma aquisio fcil e rpida de conhecimentos gerais e o debate dos problemas concretos da admi-nistrao pblica. (TENGARRINHA, 1989, p. 151)

    De qualquer modo, a generalidade dos jornais publicados em Portu-gal, ao tempo de Antnio Rodrigues Sampaio, prosseguiam a tradio da apaixonada e individualista combatividade poltica dos pasquins de um homem s. E para alm disso, acentuavam a sua diversidade, corres-pondendo, portanto, a equivalente segmentao das ideias polticas e do pblico burgus, incluindo cada vez mais mulheres. Tengarrinha (1989, p. 155) da mesma opinio:

    Surpreendemos no jornalismo poltico aps 1834 (...) um novo contedo ideolgico (...). A imprensa vintista (...) exprimia a luta entre o absolu-tismo e o constitucionalismo (...). Agora aparecem jornais progressistas defensores dos estratos mais baixos da populao, em especial da pe-quena burguesia, e jornais partidrios de uma ordem cartista moderada, que beneficiava especialmente os grandes proprietrios de terras e a alta burguesia comercial. Mas alm destes, surgem tambm os primeiros peridicos (...) nem progressistas nem moderados (...). O que neles se exprime (...) apenas um estado de insatisfao, de desacordo (...), uma posio meramente negativa.

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    Qual seria, no entanto, a sua real influncia? Conjectura Jos Manuel Tengarrinha (1989, p. 205-206):

    Foi nesta (...) poca que o jornalismo exerceu mais vincada influncia na opinio pblica. O mbito dos leitores alargou-se (...) at pequena burguesia. (...) Os jornais (...) eram (...) o centro da vida poltica e social. Por eles se liam os debates nas cmaras, se conheciam as disposies oficiais, se discutiam as directrizes do partido ou da faco expressas nos artigos de fundo, se sabiam os principais acontecimentos (...), se adquiriam conhecimentos (...), se dispunha de um meio de distraco e divertimento. Essa influncia tanto mais evidente quanto certo que os leitores se agrupavam em torno dos jornais com que se identificavam (...), sendo de admitir (...) que as opinies expostas (...) fossem reforar ou corrigir as suas ideias. (...) Mas neste ponto da questo no podemos esquecer a esclarecida afirmao de R. Manevy: A imprensa faz a opi-nio (...) na medida em que esta se quer deixar fazer.

    Com a vantagem de com eles conviver, Teixeira de Vasconcelos (1859, pp. 28-29) reflecte, identicamente, sobre a influncia que os peri-dicos da sua poca teriam na sociedade portuguesa e, pertinentemente, conjectura sobre os efeitos do jornalismo na prpria lngua portuguesa:

    Os jornais tm, pois, uma importncia considervel nos negcios pbli-cos, como de justia num governo livre, e tanto os peridicos polticos, como os literrios, contribuem diariamente para a propagao da leitura, instruem e recriam as pessoas () e excitam a mocidade ao exerccio das funes literrias. A lngua portuguesa perdeu por interveno deles uma parte da sua pureza verncula (), mas adquiriu maior elasticidade do que tinha antes. Eu creio que a cessao dos jornais em Portugal seria uma grande calamidade pblica, porque ao Governo faltaria o meio mais fcil de conhecer a opinio geral, e aos governados o desafogo de pr no papel as suas boas e ms paixes, que teriam de manifestar-se por outros meios, mais perigosos. O jornal contribui para obstar s conspiraes, como o duelo evita a () emboscada ().

    A crtica mais sarcstica, e talvez tambm a mais engraada, aos jor-nais portugueses de oitocentos veio pela pena sempre corrosiva de Ea de Queirs e Ramalho Ortigo, logo no primeiro nmero de As Farpas,

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    lanado em Maio de 18714. um excerto longo, mas que vale a pena ler por completo, j que levanta uma questo central: seriam os jornais polticos romnticos portugueses assim to diferentes uns dos outros?

    Vejam a imprensa. A imprensa composta de duas ordens de peridicos: os noticiosos e os polticos.Os polticos tm todos a mesma poltica:A quer ordem, economia e moralidade.B queixa-se de que no h economia nem moralidade, o que ele receia muito que venha a prejudicar a ordem. C diz que a ordem se no pode manter por mais tempo, porque ele nota que principia a faltar a moralidade e a economia.D observa que no estado em que v a economia e a moralidade, lhe parece poder asseverar que ser mantida a ordem.Os peridicos noticiosos tm todos a mesma notcia:A noticia que o seu assinante, colaborador e amigo X partiu para as Caldas da Rainha.B refere que o seu amigo, colaborador e assinante que partiu para as Caldas da Rainha X.C narra que para as Caldas da Rainha partiu X, seu colaborador, assi-nante e amigo.D que se esqueceu de contar oportunamente o caso, traz ao outro dia: Querem alguns dizer que partira para as Caldas da Rainha o nosso ami-go, assinante e colaborador. No demos f.Se a imprensa assim harmnica na exposio da doutrina, nem sempre o na apreciao dos factos.Assim, por exemplo, o ministrio Fulano prope em Cortes que aten-tos os servios da ostra o Governo seja autorizado a declarar que se considera a ostra como um verdadeiro pai!Ento, os jornais Fulanistas exclamam:O Governo acaba de se declarar pai da ostra. uma medida de grande alcance! uma garantia para a ordem, um penhor solene de zelo pelos servios pblicos. Quando um Governo assim procede, pode dizer-se que ampara com mo segura o leme do Estado, e que caminha na senda

    4 Diga-se que nAs Farpas, Ea e Ramalho so prdigos a criticar com ironia a imprensa oito-centista portuguesa. No nmero de Outubro de 1871, por exemplo, revelam o seguinte: H um ms, (...) um telegrama do sr. visconde de S. Janurio comunicou ao Governo a lvida notcia de uma sublevao em Goa (...). O telegrama (...) era como uma charada (...). Segundo a Revo-luo de Setembro, aquilo queria dizer vitria; segundo o Dirio Popular, catstrofe. (...) Veio finalmente o correio trazendo resolvido o problema (...).

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    do progresso. Mas no imediato, por qualquer coisa, o ministrio Fulano cai. Sobe o ministrio Sicrano e logo em seguida prope em Cortes: que de ora em diante, atentas grandes vantagens para a causa pblica, o Governo se declare para todos os efeitos, em relao ostra, mais do que um pai, uma verdadeira me.Dizem os mesmos jornais Fulanistas: O Ministrio ominoso, que com mo to incerta dirige o leme da causa pblica, declarou-se me da ostra, mostrar um profundo desprezo pela ordem e pela economia! Quando um Ministrio assim pratica que vai no caminho da anarquia e leva-nos ao abismo. Que se acautele! Ficamos de atalaia a esta questo.Tambm no igualmente harmnico o processo para julgar as pessoas. O sr. Fulano feito presidente de ministros.: vai Cmara.Ao outro dia, dizem os jornais ministeriais: O nobre presidente do con-selho tinha ontem sua entrada na Cmara umas magnficas botas de pelica. Que admirvel pelica! S quando se tem como Sua Ex. um to grande zelo pelo bem do Pas e uma to grande experincia das coisas pblicas, se pode encontrar uma to boa pelica.Os jornais moderados, em expectativa, de meia oposio, dizem: No somos aduladores do poder, dizemos-lhe em face a verdade: conhece-mos a longa experincia, os altos dotes oratrios, do Sr. presidente do conselho, mas apesar do seu tacto poltico, S. Ex. tinha apenas umas botas moderadas de vitela francesa.Os jornais de oposio feroz exclamam: Insensatos! Quereis lanar--nos no abismo das revolues? Desafiais a clera do povo? Que vin-des vs falar na experincia, nas virtudes cvicas do Sr. presidente do conselho? um sujeito ominoso. No! As suas botas no so de vitela francesa, como quer a oposio hipcrita, nem de pelica fina, como quer uma maioria venal. As suas botas demonstraram que caminhamos para a anarquia: so de coiro de Salvaterra!.

    Mais frente, Ea e Ramalho, no mesmo nmero das Farpas (Maio de 1871), reforam a ideia de que os jornais polticos seriam um tanto ou quanto insensatos e trabalhariam para a sua prpria descredibilizao, escrevendo o seguinte:

    E vs, jornais polticos, no confessais vs todos os dias a impotncia dos vossos polticos? No vos tendes dito uns aos outros os extremos in-sultos? No vos tendes destrudo uns aos outros? (...) No verdade que

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    o Dirio Popular tem dito dentro do sistema, que o sr. Fontes incapaz de organizar o pas? . No verdade que a Revoluo [de Setembro] tem provado saciedade, dentro do sistema, que o sr. bispo de Viseu incapaz de organizar o pas? . No verdade que a Gazeta do Povo tem provado que ambos eles so incapazes? E no verdade que a Re-voluo e o Dirio Popular tm dito uniformemente que o incapaz o sr. Braamcamp? . Por consequncia, parece que estais inutilizados uns pelos outros. (As Farpas, n. 1, Maio de 1871)

    Por isso, os autores, ainda no mesmo nmero das Farpas, aconselham a imprensa poltica a deixar as discusses fteis e fulanizadas para abor-dar os temas que verdadeiramente interessariam aos portugueses:

    lembrem-se que o que o pas necessita fora para o seu carcter, cincia para o seu esprito, justia para sua conscincia! Falai-lhe das questes econmicas, do salrio, do trabalho, da famlia, da sano mo-ral, da educao, e sobretudo da pacfica revoluo agrria que deve transformar as condies da vida portuguesa. A poltica, deixai-a sem-pre ficar consigo mesma. (As Farpas, n. 1, Maio de 1871).

    A permanente agitao poltica e militar em que o pas viveu ao lon-go da primeira metade do sculo XIX teve uma consequncia: o inte-resse pela informao e pela opinio sobre o pas recrudesceu. O Reino ocupava cada vez ma is pginas nos jornais, enquanto o noticirio do estrangeiro se reduzia na mesma proporo (TENGARRINHA, 1989, p. 156). Porm, teve tambm uma consequncia negativa, pois por varia-das vezes se constrangeu a liberdade de imprensa no pas, quer durante o miguelismo, quer durante o cabralismo e a posterior guerra civil da Patuleia. De facto, os perodos de 1828 a 1832 e de 1840 a 1851 foram negros para a liberdade de expresso e para o jornalismo portugus, suscitando, por vezes, reaces violentas. Por exemplo, logo em 1840, autor annimo, num opsculo relatando o Processo de Arresto na Tipo-grafia Onde se Imprime O Atleta ou Alguns Monstruosos Atentados do Ministrio Pblico Contra a Liberdade de Imprensa, escrevia o se-guinte:

    A liberdade de imprensa o escolho em que os dspotas costumam nau-fragar, e por isso que a guerra que estes lhe fazem to cruel! Um go-verno representativo sem liberdade de imprensa seria o mais desptico e tirano de todos os governos as prevaricaes e torpezas dos governantes

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    ficariam em tal caso cobertas com o vu da obscuridade e assim poderiam eles caminhar desenfreados na estrada do crime, livres das censuras da imprensa, e a coberto dos tiros da opinio pblica! (p. 4)

    Registe-se, inclusivamente, que quando o perigo de imposio de no-vos constrangimentos ao jornalismo aumenta, intensificam-se as aces em defesa dessa liberdade. Foi o que aconteceu em 1850, ocasio em que se ergueram vrias vozes contra os projectos de restrio da liber-dade de imprensa acalentados pelo (segundo) Governo de Costa Cabral. No libelo A Imprensa e o Conde de Tomar, por exemplo, Jos Maria do Casal Ribeiro (1850), na linha do que Antnio Rodrigues Sampaio fez nos jornais e pela sua aco, denuncia os processos contra a imprensa intentados por Costa Cabral e critica o projecto da futura Lei das Ro-lhas. Vaticina Casal Ribeiro (1850, p. 7-9) que, com essa lei, a imprensa livre iria acabar, pois destruiria as garantias dos rus, imporia a censura sob a forma de preveno administrativa, aboliria as garantias livre comunicao dos escritos, impediria crticas s aces dos governantes, dos titulares do poder judicial e dos funcionrios pblicos, possibilitaria a suspenso de jornais pela simples deciso de um ministro e obrigaria a apresentao de garantias pecunirias insuportveis para a fundao de jornais polticos.

    Interessantemente, no mesmo opsculo, Jos Maria do Casal Ribeiro defende que a liberdade de imprensa deve ser antidogmtica, razo pela qual ataca, igualmente, uma clusula da proposta de lei que impedia qual-quer discusso sobre o dogma poltico da legitimidade do chefe de Es-tado (CASAL RIBEIRO, 1850, p. 13). Para ele, necessrio convencer com inteligncia acerca das questes polticas, e no proibir a discusso.

    Expondo, por outro lado, o seu ponto de vista doutrinrio em matria de liberdade de imprensa, o autor explica:

    H dois sistemas opostos em relao comunicao dos pensamentos o da censura e o da liberdade. O primeiro nega o direito; o segundo exige responsabilidade ao exerccio dele. O primeiro previne e impede; o segundo pode castigar. O primeiro estacionrio e falso, conduz (...) ao obscurantismo; o segundo amplo e progressista, o seu fim a ilustra-o. No primeiro sistema, o escrito no tem garantia que lhe assegure a publicidade (...), o escritor tem a certeza de no ser punido; no segundo, o escrito livre (...), o escritor responde perante a lei pelo uso que faz dessa liberdade. A Carta Constitucional adopta o segundo sistema, e re-

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    jeita completamente o primeiro. Nada porm mais absurdo, nada mais inquo, nada mais desptico do que um misto dos dois sistemas. Emba-raar por todos os modos a publicao dos escritos, cercar a imprensa de peias e estorvos, impedir directa e arbitrariamente pela aco admi-nistrativa a comunicao do pensamento, e redobrar depois a responsa-bilidade do escritor, revestir o poder de uma armadura impenetrvel e, ao mesmo tempo, arm-lo com uma espada de dois gumes. (CASAL RIBEIRO, 1850, p. 23)

    O jornalismo poltico seria, portanto, indispensvel democracia:

    O jornal poltico (...) o que mais pode prejudicar um governo imoral, assim como o mais firme esteio de um governo justo. a sentinela constante do poder, que lhe vigia os passos, que lhe segue os movi-mentos, que os discute diariamente, que o entrega admirao ou ao desprezo, estima ou ao dio da opinio pblica. (CASAL RIBEIRO, 1850, p. 24)

    Pelo que se infere das palavras de Casal Ribeiro, a liberdade de im-prensa deveria ser entendida como uma liberdade no apenas antidog-mtica, mas tambm fundamental para o controlo dos poderes, para o controlo da licitude e legitimidade dos actos polticos, para combater a corrupo, expondo os prevaricadores, e para evitar que o uso do poder se convertesse em abuso. Ou seja, a meio do sculo XIX, trinta anos passados sobre a Revoluo Liberal, j havia em Portugal plena consci-ncia dos valores que norteiam a aceitao do princpio da liberdade de imprensa valores esses tambm reconhecidos por Antnio Rodrigues Sampaio.

    Tambm Silva Ferro (1850, p. 8), em O Uso e o Abuso da Imprensa, discute os novos constrangimentos imprensa, em virtude da promul-gao da Lei das Rolhas. Ele considera que Na ordem poltica, a imprensa para as Naes modernas o mais poderoso e talvez o nico baluarte das liberdades ptrias. E o autor recorda que ainda no havia governo que no tivesse tentado escravizar a imprensa. Defende, to-davia, a maior liberdade na comunicao das ideias, dos pensamentos (...) por meio da imprensa. Escreve ele:

    No h (...) nao alguma (...) em que no exista um tribunal (...) da opinio pblica. Se o povo ignorante e corrompido, (...) desconhece

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    (...) os seus (...) interesses e, pela omnipotncia dos decretos, perpetua o mal e impede o bem. Mas se o povo se acha precavido contra o erro (...) ser sempre justo e esclarecido (...). Mas de que maneira poder esse tribunal ser instrudo da instruo de uma lei, dos vcios de outra, dos erros da administrao, do mal que o Governo tem feito ou que media fazer? Como poder reunir-se nele o sufrgio universal a favor de uma medida til? Como poder ele conhecer os projectos de um ministrio inquo ou os abusos de autoridade de um magistrado? (...) Por nenhum outro meio (...) que pela liberdade de imprensa, que as leis devem (...) proteger (...). Assim o exigem (...) o interesse pblico [e] (...) a justia. (SILVA FERRO, 1850: 10-11)

    Para o referido autor, a liberdade de imprensa seria fundada no direito natural de cada membro da sociedade pensar e contribuir para o seu bem comum. Mas ele reconhece, porm, que h quem abuse dessa liberda-de e que, pela imprensa, em vez de se ilustrar o povo e guiar a opinio pblica, se podem propagar a subverso, a desunio e a maledicncia (SILVA FERRO, 1850, p. 14-15). Ainda assim, diz que a liberdade de tudo escrever ser sempre mais vantajosa do que as falsas restries, pois o que bom, razovel e til triunfar sempre (SILVA FERRO, 1850, p. 17).

    Mesmo depois da Regenerao, em 1851, vrios governos e parado-xalmente mesmo aqueles a que pertenceu o prprio Antnio Rodrigues Sampaio, tido at ento por um campeo das liberdades perseguiram os jornais oposicionistas, embora recorrendo mais a constantes proces-sos judicirios do que promulgao de legislao restritiva da liberdade de imprensa (ver, nomeadamente, GOMES LEAL, 1881). Luz Soriano (1854, p. 47), por exemplo, revela, com ironia, que Antnio Rodrigues Sampaio, visto por muita gente como patriarca da liberdade, ter-lhe-ia movido um processo judicial por abuso de liberdade de imprensa. E diz: Eis aqui a verdade do encarniamento com que ele, at hoje, advogava a mais ampla liberdade de escrever (...). Eis aqui o homem que pela pr-tica das suas (...) aces nos vai dar (...) o desmentido de tudo sobre que tal assunto escrevera. (LUZ SORIANO, 1854, p. 47)

    De qualquer modo, talvez algumas pessoas estivessem cansadas da imoderao da imprensa poltica. Por exemplo, em 1859, Luciano de Castro deu estampa uma Coleco da Legislao Reguladora da Li-berdade de Imprensa na qual, como introduo relembra que apesar de o direito de pensar no merecer discusso, a comunicao dos pensa-

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    mentos exige responsabilidade, que pe balizas aos arrojados voos da razo desvairada ou deploravelmente desencaminhada (LUCIANO DE CASTRO, 1859, p. 7). Por isso, o autor crtico contra a falta de respon-sabilidade pessoal, que levava, muitas vezes, a abusar-se da liberdade de imprensa:

    Muitas vezes, a paixo substitui a fria imparcialidade da razo escla-recida e a voz dos interesses polticos ou pessoais levanta-se sobre os ditames da verdade e da lgica dos factos. (...) Nem sempre a imprensa (...) tem em considerao os seus deveres de rigorosa imparcialidade na justa apreciao dos homens e das coisas, e (...) por vezes o amor imoderado a exaltadas convices e a demasiada f nas ideias (...) en-caminham-na para (...) excessos (...). Daqui tm deduzido argumento contra ela os seus numerosos adversrios (...). E foram logrando os seus intentos, porque (...) as leis repressivas da liberdade de imprensa (...) revestiram sucessivamente mais austeras feies (...). (LUCIANO DE CASTRO, 1859, p. 26-27)

    Pior ainda, o pblico tambm estaria ressabiado contra os abusos de liberdade de imprensa:

    Cansado o pblico de contemplar muitas vezes a razo casada injus-tia, a paixo no lugar da verdade, a mentira e a calnia no lugar da rectido do julgar, e da imparcialidade no descriminar a inocncia e o crime, confunde no mesmo sentimento (...) os bons e os maus jornais (...). A indiferena geral pelo que se diz (...) na imprensa (...) a (...) consequncia desta situao. (LUCIANO DE CASTRO, 1859, p. 28)

    Portanto, para Luciano de Castro, se a imprensa quisesse ter influn-cia, teria de usar a sua fora moderada e discretamente.

    Foi, logo, com um jornalismo poltico e doutrinrio, exacerbado e truculento, apaixonado e polmico, arrebatado e at insultuoso, que questionava permanentemente os limites da liberdade de imprensa, que Rodrigues Sampaio conviveu e foi nele que se habituou a ver um ver-dadeiro jornalismo porque o outro, o jornalismo de notcias, repor-tagens e entrevistas, feito para informar e dar lucro mais do que para arregimentar e animar partidrios de uma causa, s se afirmaria verda-deiramente no pas a partir da fundao do Dirio de Notcias, em 1864 (nmeros de apresentao), apesar das infrutferas tentativas anteriores

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    de criao de jornais predominantemente noticiosos, caso do Jornal de Utilidade Pblica (1841) e do Telgrafo (1845), cujo insucesso se pode-r ter devido incapacidade de fornecer notcias actuais, conforme suge-re Tengarrinha (1989, p. 216). De facto, foi somente na Regenerao que se criaram ou estabilizaram as estruturas que permitiram o surgimento de uma imprensa industrial capaz de oferecer um produto mais centrado no relato de ocorrncias do que na discusso de problemticas, ainda que estas tambm nela pudessem ter lugar quando abordadas em nome do bem comum.

  • CAPTULO 2

  • Antnio Rodrigues Sampaio precoce: do nascimento primeira imerso no jornalismo

    ntnio Rodrigues Sampaio nasceu em 1806, no dia 25 de Ju-lho, em So Bartolomeu do Mar, Esposende, tendo falecido em 1882, a 13 de Setembro, em Sintra. Foi, no dizer de Tengarrinha

    (2006, p. 137), o principal arqutipo do jornalismo romntico em Por-tugal, tanto quando o jornal que dirigiu, A Revoluo de Setembro, foi o mais influente entre os peridicos do seu tempo.

    O Romantismo, efectivamente, vinha agitar as guas. A nova literatu-ra, graas a Alexandre Herculano e a Almeida Garrett, e o novo jornalis-mo romntico, mtier no qual, para alm dos dois escritores anteriores, pontificou Antnio Rodrigues Sampaio (mas tambm Jos Estvo e ou-tros), representou uma autntica ruptura com os hbitos do pas. Idntica posio assumida por Antnio Jos Saraiva e scar Lopes (1979, p. 723 e 811):

    A introduo da nova literatura do Romantismo uma revoluo compa-rvel, pelas suas consequncias radicais e pela sua quebra de continuida-de com o passado, revoluo poltica de 1832-1834.(...)O xito fulminante de Herculano e de Garrett, o esquecimento rpido e geral em que caram os gneros clssicos, mostram como esta mudan-a (...) correspondia a uma mudana no pblico. Existia na realidade um pblico alfabetizado cujas caractersticas e predileces se podem avaliar pelo xito de revistas como o Panorama (5000 exemplares vendidos por nmero em 1837). O jornalismo conhece nesta poca uma fase brilhante, dando aos grandes escritores (Garrett e Herculano

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    includos) ocasio de comunicar com muitos leitores. Homens como Rodrigues Sampaio, redactor de A Revoluo de Setembro e de O Es-pectro (...) viveram profissionalmente como jornalistas de opinio e encontraram larga receptividade no pblico em geral. Porventura o melhor representante em Portugal do tipo de escritor sintonizado com a grande massa do pblico, dando expresso a aspiraes colectivas, sentindo-se condutor da opinio pblica e evidenciando essa posio no seu estilo, altissonante e proftico, [Alexandre] Herculano no conjunto da sua obra.(...)Como notmos, a grande importncia literria do jornalismo est sobre-tudo ligada ao impulso que imprimiu a outros gneros literrios atra-vs do prprio pblico. Isto vale tambm para a eloquncia. Alguns dos grandes escritores romnticos foram simultaneamente grandes oradores parlamentares.

    Rodrigues Sampaio fez estudos eclesisticos, conforme sucedia na altura com muitos jovens, e chegou a tomar ordens menores no con-vento dos Carmelitas de Viana do Castelo, em 1821. A partir de 1822, ano em que foi promulgada a primeira Constituio1 do pas, de pendor liberal, estudou Humanidades e Teologia, em Braga, curso que concluiu em 1825. Diga-se, alis, que sua formao de seminarista nas artes da prdica (recordemos Sampaio Bruno o jornalista doutrinrio seria o pregador dos tempos modernos) e no latim teve uma forte influncia no estilo que viria a cultivar no jornalismo.

    Nesse mesmo ano de 1825, Sampaio, por no ter idade para ser or-denado subdicono, regressou casa paterna, tendo, ento, comeado a ensinar gratuitamente crianas e jovens da vizinhana. Esta sua experi-ncia oficiosa e rudimentar de ensino lev-lo-ia, futuramente, a tornar--se um feroz adepto da necessidade de prover instruo pblica de crianas e jovens. Inclusivamente, j no auge da sua carreira poltica, promulgaria uma nova Lei do Ensino Primrio, da qual foi o principal mentor.

    Por vrias vezes pregou em igrejas, mas quando chegou idade de ser ordenado sacerdote, o pedido foi-lhe recusado pelo arcebispo de Braga, possivelmente por j ser do conhecimento eclesistico que Ro-drigues Sampaio seria adepto das ideias liberais, num tempo de retorno

    1 Constituio liberal inspirada na Constituio francesa de 1791 e na Constituio espanhola de Cdis, de 1812.

  • 40 Antnio Rodrigues Sampaio

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    ao absolutismo. Alis, foi preso, aos 22 anos, em 1828, no incio do rei-nado de D. Miguel I, suspeito de ser simpatizante da causa liberal. Ficou na priso dois anos e meio, tempo em que poder ter confraternizado com o padre liberal Incio Jos de Macedo, o redactor do Velho Liberal do Porto. Eventualmente, teria sido este a rever os primeiros artigos que Sampaio escreveu, j em 1835, para A Vedeta da Liberdade. Mas Neiva Soares (1982, p. XII) tem outra opinio: A anlise (...) das fontes e circunstncias leva a rejeitar tal assero, at por o referido padre In-cio s ter sido preso em Lisboa, em 1829, donde foi recambiado para o Porto. No entanto, o mesmo autor avana com a hiptese de Sampaio ter ap