livro_o inesc e a agenda brasileira (2003)
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Livro_o Inesc e a agenda brasileira (2003)TRANSCRIPT
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Ronaldo Coutinho Garcia, vice-presidente
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Gilda Barbosa Cabral de Araújo, 1a tesoureira
Pe. José Ernani Pinheiro, vogal
Guacira César de Oliveira. vogal
Colegiado de Gestão
José Antônio Moroni
Iara Pietricovsky
Assessoria
Adriana de Almeida
Denise Rocha
Edélcio Vigna
Jair Barbosa Júnior
Jussara de Goiás
Luciana Costa
Ricardo Verdum
Selene Nunes
I59 Instituto de Estudos Socioeconômicos. O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006. Brasília, 2003
132 p. : il.
Inclui bibliografi a.
1. Brasil, políticas públicas. 2. Brasil, política e governo. I. Título.
CDD: 361.1
CDU: 364(81)
Sumário
Apresentação ____________________________________________05
Parte1: O novo cenário brasileiro
1. Introdução _____________________________________________07
2. O novo Brasil exige mudança cultural ________________________13
3. Cenários para a agenda política 2003/2006 ___________________19
4. Cenários para a agenda econômica 2003/2006 ________________29
Parte 2: Os temas prioritários do Inesc
1. Cenários no campo internacional __________________________ 44
2. Cenários no campo da cultura _____________________________49
3. Cenários no campo sócio-ambiental ________________________58
4. Cenários para a questão agrária ____________________________69
5. Cenários para a questão racial______________________________80
6. Cenários para a questão de gênero _________________________89
7. Cenários para a questão indígena ___________________________93
Parte 3: O papel das ongs e do Inesc
1. Introdução _____________________________________________99
2. O surgimento das ongs e sua evolução ______________________103
3. Uma breve história do Inesc ______________________________109
4. Pressupostos metodológicos _____________________________ 119
5. Princípios e procedimentos ______________________________125
6. A ação do Inesc ________________________________________ 127
Bibliografi a _____________________________________________ 130
Apresentação
O presente trabalho resultou de um seminário realizado pelo Inesc, em
Brasília, nos dias 16 e 17 de dezembro de 2002, quando toda a equipe
do Instituto discutiu textos produzidos por especialistas em diversos
campos do conhecimento.
As contribuições foram feitas por Sérgio Leite, da Univer sidade Federal
do Rio de Janeiro (Questão agrária); Hamilton Faria, do Instituto Pólis
(Questão cultural); Sueli Carneiro, do Geledés (Questão racial);
Hélcio de Souza, do Inesc (Questão indígena); Guacira de Oliveira,
do CFêmea (Questão de gênero); Mariza Veloso, da Universidade
de Brasília, e Iara Pietricovsky, gestora do Inesc (Um olhar para o país
e para o mundo e Uma breve história do Inesc).
Alguns convidados compareceram ao seminário, como Elimar Pinheiro
do Nascimento, da Universidade de Brasília (Cenário político); Reinaldo
Gonçalves, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Cenário econômico)
e José Augusto Pádua, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Cenário
Sócio-Ambiental). Com os três, além da apresentação dos textos cedidos
ao Inesc, houve debate e troca de informações com a equipe.
O Instituto tem pautado suas atividades, historicamente, à margem esquer-
da do quadro político nacional. Assim, à parte os diversos cenários aqui
apresentados, a questão de fundo que permeou todo o seminário
diz respeito à atitude institucional do Inesc face a uma inédita situação
constituída por um governo popular de claro compromisso com a esquerda
e legitimamente eleito em pleito democrático. O objetivo desta publicação
é construir a matriz teórica e política que servirá de base para orientar
as ações do Instituto.
Iara Pietricovsky
José Antônio MoroniColegiado de Gestão do Inesc
Introdução7
1 - Introdução
A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da República
Federativa do Brasil representa um marco histórico sem precedentes para
o país e para a América Latina. Primeiro, trata-se não apenas da ascensão
de um líder de extração operária; antes disso, Lula provém do próprio
lúmpen da sociedade brasileira. Oriundo de uma categoria social origina-
riamente excluída de qualquer conceito de cidadania, e tendo migrado
de uma miserável região do agreste nordestino para a capital econômica
brasileira, São Paulo, fez-se operário, tornou-se líder de classe, fundou
o Partido dos Trabalhadores, em 1980, e desde então vem operando poli-
ticamente dentro dos parâmetros democráticos formalmente constituídos
a partir da superação da ditadura militar que vigorou entre os anos
de 1964 e 1985.
Lula elegeu-se presidente da República depois de uma quarta campanha
política. Foi eleito em segundo turno por mais de 60% dos votantes, sendo
depositário, portanto, de enormes expectativas por parte de uma popula-
ção esgotada primeiro pelo processo hiperinfl acionário herdado do regime
militar, depois pelo voluntarismo forrado de corrupção do ex-presidente
Fernando Collor de Mello e, fi nalmente, por um modelo em que a estabi-
lização da moeda implicou em privatizações em larga escala, estagnação
econômica, desemprego crônico, violência social e desesperança.
O novo cenário brasileiro
O Inesc e a agenda brasileira 2003/20068
A eleição de Lula sobrepôs-se ao temor de que seu Governo promo vesse
uma ruptura radical do sistema econômico em vigor no Brasil. Afi nal, vinha
ele de uma tradição partidária de oposição sistemática a todo e qualquer
Governo eleito desde o fi m do regime ditatorial. O PT conduziu no Con-
gresso Nacional uma sistemática pregação de rompimento com o Fundo
Monetário Internacional e pela reestruturação unilateral de todos os con-
tratos relativos às dívidas públicas externas e internas do país. Finalmente,
em setembro de 2002, assumindo um perfi l de tendência social-demo-
crata na condução das coisas públicas, divulgou uma Carta aos Brasileiros
onde se comprometeu com um regime de responsabilidade fi scal e
de respeito aos contratos fi rmados, fossem nacionais ou internacionais.
É importante retomar e ter presente os múltiplos signifi cados da eleição
de Luiz Inácio Lula da Silva. Ela é emblemática sob diversos pontos de vista.
Reveste-se de vários simbolismos imediatos e mediáticos que devem ser
tomados em consideração para qualquer prospecção quanto ao jogo
político dos próximos anos. Em primeiro lugar, representa a expressão
mais bem acabada da mobilidade social ascendente brasileira. Uma ex-
pressão em retardo, na medida em que esta mobilidade ingressou em
um processo de fossilização a partir da década de 1980. Os altos índices
de crescimento econômico dos primeiros oitenta anos do séc. XX foram
substituídos por índices medíocres, aquém da metade dos anteriores.
Não apenas a superação desse processo de fossilização, mas também a de
uma série de condições particulares da sociedade brasileira, que mantém
ainda resquícios do período escravagista que caracterizou a maior parte
de sua história, exigirão uma longa série de rupturas. Elas não poderão ocor-
rer no curto espaço de quatro anos de Governo. É preciso ter, no mínimo,
uma perspectiva semelhante à da social-democracia escandinava, que
governou durante aproximadamente setenta anos até alcançar o atual
–e, em boa parte, em processo de desmonte- estado de bem-estar social.
Quando nos referimos a rupturas, não limitamos este conceito aos campos
econômico e social. Pensamos mesmo em termos culturais, entendida a
cultura como a totalidade do nosso modo de vida e do desenvolvimento
humano. Ela parte das nossas raízes, mitos e crenças e segue por nossas
instituições, até nosso viver cotidiano e também o nosso mundo imaginá-
rio. Sem a estreiteza de um nacionalismo superado e o ufanismo do hino
nacional, acreditamos na possibilidade de se construir um país melhor,
com dignidade no cenário internacional e qualidade de vida humanizada
para seus habitantes. Se a globalização é inevitável, que não seja apenas
pela via da redução dos sonhos a uma conta bancária ou à mercantiliza-
ção da alma, mas pela convivência entre pessoas, sociedades e países,
e baseada na interculturalidade solidária de nossas experiências.
Introdução9
É preciso encontrar a competência política para, dentro da democracia,
ser reeleito seguidamente. O horizonte de uma coalizão popular demo-
crática deve ser um horizonte de décadas. Tomando as palavras de Paulo
Freire, hoje, como nunca, é necessário exercer a virtude da paciência
civilizatória para que se alcance o patamar desejado de uma sociedade
mais justa e fraterna.
Em termos imediatos, todavia, a eleição de Lula é a expressão do cansaço
da sociedade com a desigualdade social crescente que se tem traduzido,
entre outros, no aumento da violência na sociedade brasileira.1 E também
do cansaço da sociedade com uma política de malversação dos recursos
públicos e com o frágil compromisso com a erradicação da pobreza.
Por isso mesmo, a eleição de Lula é, fi nalmente, a expressão de um desejo
pouco defi nido de mudança das políticas de estabilidade sem crescimen-
to que o país tem conhecido nos últimos oito anos. É um apelo ao retorno
do crescimento econômico que fez do Brasil uma referência no séc. passado.
Quando mencionamos cansaço, esgotamento e desejo de mudança
da sociedade, não a entendemos como um corpo homogêneo. Temos,
certamente, uma parcela da sociedade que não quer ouvir falar em mu-
danças, uma parcela para a qual tudo tem caminhado bem. E temos outra
parcela que não está sequer mencionada, não está integrada ao corpo da
cidadania. São os setores excluídos da sociedade.
Entre os incluídos, temos os mais críticos e os menos críticos. É preciso
relativizar e ponderar as chamadas expectativas da sociedade. Quando
afi rmamos que a sociedade quer, é evidente que se trata de uma simplifi ca-
ção. A sociedade não é um singular; somos vários. Mas há um sentimento
que nos converge em parte ou na maioria, o que não exclui um leque consi
derável de divergências. O fato, porém, é que a sociedade quer mudanças,
um sentimento claramente traduzido no resultado das eleições de 2002.
Ainda que por hora não se obtenha uma reforma do Estado, é possível,
com a máquina que aí está, funcionar muito melhor. Nós podemos,
com essa máquina, ter programas mais racionais, ações mais efetivas.
Vivemos um período de transição, um processo de esgotamento das
tentativas de imposição de políticas neoliberais no país e a incapacidade
de sua reprodução. Por isso Lula foi eleito. Uma transição signifi ca o quê?
Signifi ca que o velho não se reproduz mais, porém o novo ainda não
ganhou uma cara. Nós não sabemos como é o novo. E o novo pode ser
uma cara velha, pior que a anterior, embora isso não seja provável.
1 Não que a desigualdade tenha uma relação automática e direta com o crescimento da violência, mas pode-se sugerir que ambos os termos estão associados no imaginário popular brasileiro. E do ponto de vista teórico, têm relações evidentes, embora ediatizadas.
O Inesc e a agenda brasileira 2003/200610
O Governo Lula não representa apenas uma substituição para melhor
dos ocupantes do poder Executivo, mas uma mudança de eixo e de
paradigma que, na melhor das hipóteses, dará início, pela primeira vez
em nossa história, ao enfrentamento sistemático e substantivo do elitismo,
da injustiça estrutural, da exclusão social, da privatização do estado e
de outros aspectos perversos da sociedade brasileira. Aproveitar as oportu-
nida des deste momento histórico para avançar na implementação do seu
programa de trabalho será o caminho lógico para as organizações da socie-
dade civil, mesmo que para isso seja necessário selecionar os espaços
estratégicos mais favoráveis e promissores.
Traduzindo politicamente as considerações acima, pode-se afi rmar que
o novo Governo deve entender que o país quer mudanças, sem perder
a manutenção da estabilidade econômica. A grande questão para Lula,
portanto, será a de traduzir este sentimento em políticas públicas e medi-
das governamentais consistentes, impactantes e coerentes. Neste quadro,
a interlocução com os movimentos sociais mais ativos do país será,
portanto, de extrema importância.
Deve-se ter em vista, no entanto, que Governo é Governo, movimento
social é movimento social. Este deverá ser um princípio basilar a nortear
as duas partes em jogo. O maior risco que as organizações representativas
dos movimentos sociais correm é, ingenuamente, imaginarem que são ou
estão no Governo após a eleição de Lula para a Presidência da República.
Sendo a recíproca igualmente verdadeira: o Governo Lula, supondo-se
representante legítimo do movimento social, e apenas dele, imaginando-o
automaticamente cooptado aos seus desígnios, que são de muito
maior amplitude.
Alguns representantes dos movimentos acreditam ter chegado ao
Governo com a eleição de Lula. A grande maioria dos sindicalistas, repre-
sentantes de ongs e representantes de movimentos sociais, no entanto,
acredita que o Governo Lula fará concessões, como já tem feito, às forças
políticas conservadoras e reacionárias, mas que essas concessões não irão
além do limite a partir do qual o Governo perderia credibilidade.
Persistem questionamentos e preocupações com relação a acordos (feitos
ou a serem feitos) entre o Governo Lula e o empresariado. Por exemplo,
com os meios de comunicação, os banqueiros, os produtores de açúcar e
álcool, as multinacionais, os grandes grupos econômicos em bancarrota, etc.
A política de ampliação da base de sustentação política do Governo Lula
deverá encontrar um limite que permita a governabilidade e, ao mesmo,
tempo, a realização de reformas que atendam aos anseios, às esperanças
e às exigências da maioria da população.
Introdução11
Essa confi ança na capacidade da nova classe dirigente é importante para
a defi nição de estratégias e táticas de atuação do movimento social, que
deve se manter atuante e crescer durante o mandato de Lula, mas não con-
siderar-se adotado pelo Governo ou mesmo eleito como um parceiro pre-
ferencial. O movimento social não pode se transformar num braço admi-
nistrativo auxiliar do Governo federal.
A estratégia do movimento social deve ser montada em quatro estágios:
1) defi nir uma agenda clara de demandas, projetos e programas;
2) defi nir os interlocutores no Governo federal;
3) extrair compromissos específi cos, com prazos determinados;
4 ) cobrar resultados, reconhecer êxitos e criticar fracassos.
Para ilustrar, podemos citar dois exemplos de situações que mostram em
que ponto se encontravam determinados movimentos sociais no período
de transição anterior à posse de Lula. O primeiro refere-se às organizações
de defesa de direitos humanos que não lograram defi nir os interlocutores
no Governo de transição, isto é, estão travadas no estágio 2. Isso parece
estar ocorrendo com os servidores públicos federais. O segundo caso refe-
re-se ao Movimento dos Sem-Terra, o mais signifi cativo da sociedade civil
brasileira, que já defi niu os seus interlocutores no Governo Lula e, muito
provavelmente, já se encontra no estágio 3 e, quem sabe, caminhando
rapidamente para o estágio 4.
As ongs que se tornarem um braço auxiliar administrativo do Governo
federal tenderão a se debilitar e a enfraquecer o próprio Governo. Partido
político é uma coisa, Governo é outra; Governo é poder, movimento social
é contra-poder. A cooptação deverá ser rejeitada, ao mesmo tempo em
que as ongs devem se propor a colaborar ativamente com o Governo Lula,
mas resguardando a independência e a posição crítica. Mantém-se, assim,
a regra clássica da política: entregando-se o acordado, mantém-se o bene-
plácito do apoio crítico; caso contrário, resta a oposição com transigência
declinante.
O movimento social deve reagir, sempre que necessário, de forma crítica,
construtiva e independente. A diferença em relação ao Governo anterior
é que agora se abre um campo de colaboração, não obstante seja observa-
da uma taxa de complacência decrescente com o tempo. Não necessaria-
mente uma taxa linear; ela pode cair abruptamente dentro de seis meses.
Devemos ter em mente o fato de que o Governo, qualquer Governo, tende
a seguir a linha de menor resistência, porque é o caminho mais fácil, espe-
cialmente no que diz respeito às negociações com o Congresso Nacional.
O Inesc e a agenda brasileira 2003/200612
Um líder político tem uma lógica própria. Ele não quer saber de problemas.
Ele quer a solução mais fácil, a de menor confl ito. A solução da cooperação
e da harmonia. No limite, obteríamos a cooperação plena entre as classes
sociais, um alargamento da base governamental no Congresso, em que
todos acham que são Governo. Não há confl ito e, portanto, não há política;
então caímos no fascismo. O papel do movimento social e das ongs
é o de permanentemente colocar resistência.
Devemos cuidar, no entanto, para que a manutenção de posições críticas
muito rígidas em relação ao novo Governo não levem à ocorrência dos
tradicionais fenômenos de autofagia, divisionismo e maniqueísmo das
esquerdas, dos quais temos muitos exemplos históricos. Trata-se de um
fi o de navalha sobre o qual todos estaremos caminhando.
Lula terá que arbitrar ganhos e, principalmente, perdas. O cenário otimista
do contrato social contempla, certamente, diferentes tipos de jogos. As li-
deranças do PT estão sendo francas quando transmitem ao conjunto da
sociedade a mensagem de que os desafi os são enormes e que não haverá
milagres. Da corrente de esperança que dominou o país no início do Gover-
no Lula, permanecerão as idéias-força presentes no pronunciamento
de 28 de outubro de 2002: otimismo, fi rmeza e paciência.
Um ator político fundamental neste cenário é o Congresso Nacional,
que deverá ter um papel de grande protagonismo nas decisões políticas
do Governo Lula. A começar pelo fato de o PT ter obtido, de forma inédita,
a maior bancada na Câmara dos Deputados e a terceira maior no Senado.
Um grande exercício será a composição de alianças. A possibilidade de
construção de uma base parlamentar majoritária, em especial no que tange
aos temas cruciais da agenda política nacional, dependerá da capacidade
do Governo Lula de trazer o PMDB para uma composição ampla. Este jogo,
caso seja bem sucedido para o Governo, poderá signifi car uma rápida
defi nição sobre temas cruciais, tais como as reformas previdenciária,
trabalhista, tributária e política, só para citar alguns dos mais importantes.
Cabe ressaltar que estas matérias permaneceram latentes por oito anos,
em decorrência da oposição do próprio PT e aliados, além de políticos
fi siológicos supostamente aliados à administração do presidente Fernando
Henrique Cardoso. Agora, na condição de Governo, o PT tudo fará para
assegurar a aprovação desses projetos.
13
Os governadores recém-eleitos terão um papel preponderante ou mesmo
decisivo na aprovação de tais reformas. A cooptação desses dirigentes
deverá ser uma estratégia largamente utilizada pelo novo Governo.
Procuramos ressaltar aqui tudo aquilo que nos pareceu mais premente
e que deverá ocupar a atenção dos atores sociais, culturais, econômicos
e políticos, assim como toda a opinião pública brasileira. Algumas questões,
de forma insofi smável e muito mediática, como o problema da relação
entre o Executivo e o Legislativo ou o processo de mudanças que o próximo
Governo deverá ser capaz de implementar, certamente estarão presentes.
Outras menos, como a capacidade gerencial do Estado. Será de fundamen-
tal importância acompanhar estas questões ao longo dos anos próximos.
2. O novo Brasil exige mudança cultural
A cultura tem sido tratada em nosso país como um artigo de segunda
classe, dispensável, componente menor do rol das políticas sociais.
Não é vista como prioridade estratégica dos Governos, como componente
essencial da qualidade de vida e do desenvolvimento humano.
Nesta agenda, pensamos cultura como a totalidade do nosso modo de vida
– que parte das nossas raízes, mitos e crenças, e segue por nossas institui-
ções, até o viver cotidiano e também o mundo imaginário. Certamente
não abordamos todos estes temas; porém, procuramos não limitar a nossa
compreensão a um departamento, uma fatia da realidade, mas a um cená-
rio complexo onde pessoas e coletividades vivenciam seu cotidiano e
buscam seus sentidos de vida.
Sem a estreiteza de um nacionalismo superado ou o ufanismo do hino
nacional acreditamos na possibilidade de se construir um País melhor,
com dignidade no cenário internacional e qualidade de vida humanizada
para seus habitantes. Se a globalização é inevitável – que não seja apenas
pela via da redução dos sonhos a uma conta bancária ou a mercantiliza-
ção da alma – mas pela convivência entre pessoas, sociedades e países
baseada na interculturalidade solidária de nossas experiências.
Certamente, o mundo mudará pela cultura e não pela sua economia.
Como diz Pablo Neruda: “Si se termina el amarillo con qué vamos
a hacer el pan?”.
O novo Brasil exige mudança cultural
O Inesc e a agenda brasileira 2003/200614
Um novo Brasil não poderá prescindir da cultura para encontrar
o seu rumo, pois terá que acrescentar humanidade à vida das pessoas.
É esta a missão mais fascinante da cultura.
Sem dúvida, o momento é propício para que se instaure um novo debate
no país, que não confi ne a cultura a um pobre cenário onde as leis de in-
centivo ganham status de prioridade e a realização dos nossos valores
mais caros é impedida pela perversa frieza do mercado.
O Brasil da inclusão cultural entenderá cultura como política de Estado,
e para isso repensará programas em andamento e, decididamente, tratará
de inverter prioridades. Deixará a cultura de mercado para o mercado,
enquanto se ocupará preponderantemente do patrimônio cultural, que
não tem possibilidade de se afi rmar independente da ajuda do Estado e
de manifestações culturais vitais à vida nacional. Sem dúvida, este caminho
contrariará interesses, a prática do clientelismo cultural e alguns aspectos
da governabilidade, pois estará mexendo na hegemonia de grupos que
construíram durante muitos séculos um imaginário de nação de mentes
colonizadas pelo mundo global e pela visão humana estreita e domina-
dora das elites.
Muitos dos nossos intelectuais caem facilmente no atoleiro da cultura como
arte e submetida às leis de incentivo. Artistas perdem completamente a visão
do país. O fato é que estamos frente a uma desagregação cultural de gran-
des proporções. Além de vivermos uma crise de paradigmas no campo
do conhecimento – em que sua maior evidência é a incapacidade da inte-
ligência de encontrar soluções para os grandes problemas da humanidade,
estamos imersos numa cultura da barbárie. Apesar disso, os grandes even-
tos, institutos privados de pesquisa e o cinema brasileiro andam muito
bem com o dinheiro público.
É preciso deixar claro que a nossa compreensão é sufi cientemente larga
para que não limitemos os processos culturais ao mundo dos pobres do
país; no entanto, é tempo de defi nição de prioridades e inclusão no cenário
do desenvolvimento humano daqueles que vivem o apartheid cultural.
Assim, grandes eventos de caráter público ou grandes produções
de qua lidade cultural podem e devem ser apoiadas pelo Estado,
desde que a maior parte dos santos não fi que sem camisa.
Não podemos perder este momento privilegiado para que as políticas
públicas de cultura assumam importância no conjunto das políticas
sociais do país.
15
A crise que ora atravessamos não é apenas do capitalismo ou de suas formas
de administração, ou mesmo da incompetência dos Governos, mas uma
crise que atinge a totalidade da existência de todas as sociedades.
Já não é mais possível vivermos e nos desenvolvermos da mesma forma,
sob pena de nos auto-destruirmos. É uma profunda crise de valores e de
sentidos do nosso modo de vida contemporâneo sustentado no desen-
volvimento material, na competição e no individualismo consumista.
Alguns países como o Brasil vivem um lado mais dramático deste modo
de vida que exclui, elimina e segrega milhões de pessoas e impõe um
mundo terrível de fome, violência e discriminação. Chegamos a um ponto
limite e para superarmos a crise civilizatória temos que fortalecer a cultura
do ser e afi rmar identidades e diferenças, além das melhorias materiais
e de riqueza do imaginário.
A eleição de um novo presidente não signifi ca o melhor dos mundos,
mas o renascimento de um processo necessário para revitalizar o sonho
e a possibilidade de uma vida diferente. No lugar do tosco pragmatismo
econômico das elites, parece surgir um campo fértil para novas vivências
comunitárias, o exercício de novos direitos e novas experiências democrá-
ticas de gestão e representação. Parece que a nossa subjetividade coletiva
volta a fermentar. Um reencantamento da política paira no ar. Trata-se de
um momento complexo e inédito: complexo porque o desenho das possi-
bilidades de realizações passará por muitas mediações e caminhos tortuo-
sos – idas e vindas, diálogos e embates, tensões e encontros, erros e tanato.
Inédito porque jamais fomos governados por alguém que não tenha saído
do celeiro de cartas marcadas das elites culturais ou dos poderosos grupos
econômicos.
Como disse Antônio Cândido, em artigo na Folha de São Paulo,
de 28 de outubro de 2002:
...ricos e pobres, radicais e moderados, cultos e incultos lhe abriram um crédito largo “...ricos e pobres, radicais e moderados, cultos e incultos lhe abriram um crédito largo “
de confi ança, esperando com certeza que possa contribuir para as transformações
de que o país precisa. (...) No Brasil, a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva simboliza
a incorporação do ‘quarto Estado’ às esferas que decidem o rumo do país “.
Parece não haver dúvida de que o processo do novo Governo terá suas
limitações. Moderação, política de alianças, fl exibilidade, coalização multi-
classista, convergência de vários setores e pacto social parecem ser a marca
do novo Governo. Mas seu programa é muito claro: embora pretenda
equi librar contas, controlar infl ação e défi cits, aposta na promoção
do desenvolvimento humano e na inclusão social.
O novo Brasil exige mudança cultural
O Inesc e a agenda brasileira 2003/200616
Se ainda não se sabe o que predominará – as urgências e a voz dos atores
ou as necessidades da governabilidade – espera-se que deverão ocorrer
reformas e acertos nas políticas sociais.
Abre-se, portanto, um grande momento para a construção de políticas
de inclusão em todos os campos da sociedade. Isso somente será possível
se a sociedade se colocar com seus apelos, pressões, parcerias e formulações
a serviço da construção do desenvolvimento humano. Esta é a grande
oportunidade neste novo ciclo histórico. Até aqui, foi priorizada a cultura
do ter – a economia, a estabilidade da moeda, a infl ação. Agora, vivemos
a possibilidade de passarmos a um novo patamar: a cultura do ser como
condição para o desenvolvimento social. E este é um momento privilegia-
do para concebermos um novo país.
No campo cultural, consideramos quatro importantes princípios:
A democracia: defendemos a importância de consolidarmos a democra-
cia, ampliando o caráter democrático das gestões nos âmbitos federal,
estadual e municipal; dos órgãos legislativos e dos campos de articulação
e representação da sociedade civil, bem como a democracia direta. Aqui
é importante desenvolver valores voltados para uma verdadeira cultura
participativa.
A diversidade: o direito à diferença, seja na afi rmação das pessoas, cole-
tividades e do país, garantindo sua identidade no cenário das nações.
Iguais, mas diferentes. Este deve ser o nosso lema. O reconhecimento das
culturas, suas raízes; o direito à ancestralidade, mas também o direito à
inven ção; o popular e o erudito; o profi ssional e o experimental; o vivido
e o construído; o tradicional e o moderno – nenhuma cultura autêntica
e verdadeira poderá ser negada. Estamos construindo vários mundos
possíveis, de várias cores. O mundo do futuro é multicultural e se constrói
na interculturalidade entre os diferentes.
A paz: não há desenvolvimento humano sem paz; portanto, criar uma
cultura da paz e da não-violência é central num cenário marcado por
uma cultura que se constrói pela eliminação ou exclusão do outro.
A cultura da paz não nega o confl ito, a luta, nem reivindica imaginários
homogêneos, ou mesmo a paz dos vencidos. A paz é ativa e se constitui
como sedimento dos processos culturais democráticos. A paz, mais do que
uma palavra de ordem, constitui-se no mais contundente paradigma
de uma sociedade para superar a barbárie da civilização.
17
A ética: há muitos anos, cresce um movimento pela hegemonia da ética,
como dizia Betinho. Não há cultura democrática ou democracia cultural
sem a promoção de valores éticos e da moralidade pública. Tanto na socie-
dade civil como nos Governos, é preciso estabelecer os limites do público
e do privado e um comportamento responsável frente aos bens públicos;
bom como fi scalizar a atividade parlamentar para que imponha-se a ética
na vida pública. Sem prevalecer a ética no mundo da política, o desenvol-
vimento cultural não se efetivará.
A partir destes princípios, podemos defi nir algumas prioridades
para o atual momento:
Prioridades para o atual momento
• A construção de políticas públicas de cultura
• A inversão de prioridades e a inclusão cultural
• A construção da esfera pública da cultura
• A implementação de políticas públicas de enfrentamento
do processo de mercantilização da cultura
• O reconhecimento da identidade do “ser Brasil”
• A hegemonia da ética e a consolidação de uma cultura democrática
• A democratização dos meios de comunicação
• O desenvolvimento de uma cultura participativa
• A criação de uma cultura de paz e da não-violência
• O reforço do protagonismo jovem e a compreensão das novas sociabilidades
• A democratização das leis de incentivo à cultura
• A revitalização da utopia e o reencantamento do mundo
O novo Brasil exige mudança cultural
O Inesc e a agenda brasileira 2003/200618
2.1 Políticas públicas de cultura Precisamos substituir a idéia de políticas culturais pela de políticas públicas
de cultura. Políticas culturais são as tradicionais, focadas na cultura em
sentido restrito, muitas vezes defi nidas a partir dos gestores, sem caráter
democrático ou público, atendendo especifi cidades, geralmente voltadas
para o desenvolvimento das artes, departamentalizadas em uma secretaria
ou ministério. Políticas públicas de cultura envolvem o sentido da cons tru
ção de uma esfera pública não-estatal, participativa, com diálogos e escutas
culturais, intersecretariais; é a cultura entendida em sentido amplo. Uma
cultura realizada com o esforço de todos e não simplesmente realizada
para alguns. Uma cultura construída com vários atores, tradicionalmente
não reconhecidos como culturais no sentido restrito da palavra.
Envolver-se na criação de políticas públicas de cultura é prioridade no ce-
nário que se avizinha e isso tem muitas implicações: abrir campos de diá-
logo (nem todos os gestores do novo Governo têm a cultura da conversa,
apesar dos apelos presidenciais); estabelecer fóruns ágeis onde Governo e
sociedade possam conversar e deliberar, superando assim a cultura inaces-
sível e burocrática que tem marcado os diálogos com gestores públicos;
construir, Governo e sociedade, uma esfera pública que possa defi nir prio-
ridades, formular políticas e fi scalizar ações e relações públicas e privadas.
Como o Brasil não tem tradição de políticas públicas, e muito menos no
campo cultural, sem dúvida isso será feito com tensões, idas e vindas, mas
será fundamental garantir o desenvolvimento de uma cultura do diálogo
permanente entre a sociedade civil e o Governo.
O Parlamento, modifi cado e fortalecido pelas últimas eleições, se consti-
tuirá em campo privilegiado de debates de temas relevantes, de projetos
e de potencial impulsionador de mudanças na cultura política. Será
o centro da negociação, das temperaturas políticas, das viabilidades de
pactos sociais, pois as reformas e a governabilidade estarão ali referenciadas,
sem negar o protagonismo da sociedade que poderá ser relevante nesta
conjuntura. Ali, embora conservadores radicais tenham perdido força,
ainda é muito marcante a presença do fi siologismo, do “é dando que
se recebe”, e de um conservadorismo alheio a mudanças. As entidades
da sociedade civil preocupadas com intervenções no campo parlamentar
deveriam pensar em formas de atuação voltadas para a geração de novos
valores de cultura política no Parlamento, incluindo a sensibilização, as
ações simbólicas e a capacitação de parlamentares para a ação legislativa.
Enfi m, o novo cenário oriundo da mobilização pela democratização exige
a construção de um campo político diferenciado, que se inicia pelo diálogo
e deve envolver a sociedade na construção de políticas de inclusão.
19
Um dos nossos maiores desafi os é fortalecer os atores culturais, sua capa ci-
dade propositiva para gerar propostas e políticas e impulsionar um clima
cultural favorável para repensar o país que queremos. Sabemos que
as políticas de inclusão social privilegiarão o combate à fome, a habitação,
o saneamento, o transporte urbano, etc. Mas, e este é o papel dos agentes
culturais, deve-se abrir espaços para a inclusão da cultura como política
relevante.
Some-se a isso a importância de se desconstruir a cultura burocrática
que constitui a vida das instituições: sabemos que o tempo burocrático
e o tempo cultural não combinam, pois a cultura é muito ágil e mutante.
Neste sentido, tornar mais ágil o Estado, mais transparente e permeável
à sociedade, reforça a importância da reforma administrativa e da reforma
do Estado.
3. Cenários para a agenda política 2003/2006
A agenda política nacional dos próximos quatro anos pode ser abordada
sob três óticas distintas, que podem ser complementares ou não. São elas
a do próprio Governo constituído, a da oposição e a da sociedade civil,
particularmente de seus segmentos organizados. Isso não signifi ca que
teremos três agendas, mas perspectivas diferentes e mesmo antagônicas:
o que é imprescindível para uns é secundário para outros. Cada qual ten-
tará defi nir a agenda em função de seus interesses e é este jogo que irá
defi nir de fato qual será a agenda política nacional a ser efetivamente
cumprida. É impossível pretender esgotar a questão nestas diversas
abordagens, mas parece pertinente sinalizar alguns temas, buscando,
sobretudo, a sua representatividade.
Não se pode esquecer que as eleições presidenciais tiveram como resulta-
do, pela primeira vez na história do país, o fato de que o Executivo Federal
estará nas mãos de um líder de esquerda de extração operária e popular,
o que atrairá resistências dos segmentos que terão seus interesses contra-
riados. Neste sentido, o primeiro macrodesafi o do Governo Lula será justa-
mente o de introduzir mudanças para satisfazer às expectativas de popu-
lares e da esquerda, sem que contrarie em demasia outros interesses que
tornem inviável o seu Governo.
Cenários para a agenda política 2003/2006
O Inesc e a agenda brasileira 2003/200620
Assim, os cenários do próximo Governo encontram-se, de forma simples,
entre o “nada acontecer de novo” (cenário 1),
pois os interesses dominantes não permitiram, ou ganhar foros de ingo-
vernabilidade (cenário 2), pois contrariou interesses fortes em demasia
para possibilitar o exercício do Governo efetivo. Em qualquer dos casos,
haverá uma enorme frustração nacional e internacional.
De toda forma, entre os dois extremos encontram-se diversas alternativas
com maiores probabilidades de efetivação. Mas estas dependem da evolu-
ção de algumas incertezas críticas.
A primeira incerteza crítica reside na evolução do contexto econômico
internacional. E neste, em particular, da capacidade das economias norte-
americana e européia se recuperarem, o que será difícil com o desenca-
deamento da guerra contra o Iraque. Em caso de recuperação, o Brasil terá
oportunidade de aumentar suas exportações, o que será uma forte contri-
buição para a retomada do desenvolvimento. Em caso contrário, as condi-
ções serão pouco favoráveis e o macrodesafi o da retomada do crescimento
econômico terá mais restrições de realização.
A segunda incerteza crítica reside na capacidade do Executivo de obter
apoio no Legislativo, sem o qual a governabilidade pode ser comprometida.
As condições, neste campo, não são de todo favoráveis. O PT, com sua
aliança eleitoral de primeiro turno (PL e PC do B, basicamente), não teria
condições de ter maioria parlamentar. Com seus aliados de segundo turno
(PPS, PSB, PDT e PTB), melhora sua situação, mas continua em minoria.
Portanto, necessita ampliar suas alianças, incluindo, provavelmente, uma
parte ou o todo dos outros três partidos importantes no Congresso Nacional
– PMDB, PFL e PSDB. Particularmente o primeiro, visto que os dois restantes
tendem a ocupar o espaço da oposição.
O destino do PMDB, porém, é uma incógnita, dividido que está entre ten-
dências fratricidas – divisão que, até o fechamento deste trabalho, impediu
o partido até mesmo de marcar a data de uma convenção nacional para
defi nir seus rumos políticos. O PFL já posicionou-se ofi cialmente como
oposição. As negociações com o PSDB não estão completamente afasta-
das, mas são sempre difíceis por motivos distintos e conhecidos.
Outra difi culdade reside no âmbito dos próprios aliados do segundo turno
eleitoral: o PSB e o PPS têm candidatos para as próximas eleições presiden-
ciais, o PDT é um partido dirigido por uma fi gura temperamental e o PL
e PTB são partidos fi siológicos. Portanto, a incerteza crítica é de monta e
ninguém pode dizer a trajetória de sua evolução nos próximos quatro anos.
21
Finalmente, a última incerteza crítica refere-se ao quadro da governança,
mais particularmente à capacidade do PT de implementar políticas que
assegurem a estabilidade monetária, produzam a retomada do crescimen-
to econômico e tenham impactos signifi cativos nos campos social e ético.
Sobretudo que produzam impactos com efeitos visíveis e aceitos pela
opinião pública2. As difi culdades residem na complexidade dos diversos
interesses em jogo, mas também na inércia da máquina administrativa
e na competência, ainda não provada, de seus gestores futuros. Houve
avanço nos últimos anos, mas a capacidade gerencial do Governo passado
foi um de seus pontos fracos, em parte pelas resistências às mudanças,
que são próprias da Administração Pública.
A evolução dessas incertezas críticas, como variáveis de grande poder
de infl uência e grande nível de complexidade, defi nirá o arcabouço sobre
o qual se erguerão os processos decisórios dos múltiplos atores que com-
põem a cena política. Mas nela situa-se, também, um conjunto de macro-
desafi os ao Governo Lula, que são aqui apresentados de maneira sintética
e que constituem elementos centrais da agenda política.
3.1 Primeiro macrodesafi o:
administrar as expectativas
Lula assume a Presidência da República com enormes expectativas,
tanto nacionais quanto internacionais, tanto partidárias quanto populares.
Neste último aspecto, é de praxe que a eleição de um Governo de esquer-
da refl ita sobre o aumento de demandas. Os excluídos e preteridos de
todos os quilates tendem a ver em Governos deste perfi l a possibilidade
de res posta às suas demandas nunca respondidas e, em grande parte, reco-
nhecidas como justas pela opinião pública. As demandas populares por
emprego, aumento salarial, reforma agrária, habitação, saúde e educação,
entre outras, deverão tornar-se cada vez maiores. E mais ainda, se não tive-
rem sinais claros de construção das alternativas em tempo hábil.
Normalmente, as demandas podem ser geridas, mas apenas se forem con-
frontadas ao casamento da visibilidade de processos com a possibilidade
de respostas. A busca do diálogo, a implementação de câmaras temáticas
com participação de atores sociais relevantes e de acordos e pactos com
os diversos segmentos sociais serão caminhos importantes a serem trilha-
dos, sobretudo no primeiro momento. Será uma enorme inovação na polí-
tica nacional. Porém, serão irrelevantes se não produzirem resultados e,
em especial, se estes não ganharem visibilidade e aceitação da maioria.
2 Conceito vago, sobre o qual reside uma longa discussão teórica, mas do qual não se pode prescindir completamente.
Cenários para a agenda política 2003/2006
O Inesc e a agenda brasileira 2003/200622
O primeiro macrodesafi o do Governo Lula será, portanto, o da sua capaci-
dade de criar um espaço de diálogo e encaminhamento de resolução,
a respeito das grandes demandas sociais e econômicas. Em outras pala-
vras, a criação de um espaço de explicitação organizada de demandas e
de negociação aberta que possibilite criar acordos consistentes e de alto
respaldo social, formalizado ou não. Conselho Geral ou Câmaras temáticas
são apenas materializações eventuais que podem vir a vingar ou não.
Isto poderia se traduzir, inclusive, em um macrobjetivo de seu Governo:
modifi car a maneira de governar. Uma espécie de tradução da maneira
petista de governar, construída ao longo das diversas experiências
de seu partido em Governos locais.
3.2 Segundo macrodesafi o:
consolidar a democracia
A democracia é uma fl or nascente no solo brasileiro. No século XX, ela foi
mais uma exceção do que uma regra. Com a queda da ditadura militar
nos anos 1980, o país conheceu, logo após as primeiras eleições presiden-
ciais livres e diretas, o primeiro choque com a renúncia - impeachment -impeachment -impeachment
do presidente eleito, Collor de Mello, mas passou bem pela prova.
A continuidade democrática foi assegurada com a posse do vice-presidente.
O Governo FHC, apesar de todos os males, contribuiu para o processo
de consolidação da democracia, garantindo as eleições de sua sucessão
e a liberdade de expressão e organização, após ter introduzido a reeleição,
algo estranho às tradições brasileiras.
Espera-se que o Governo Lula amplie a democracia, rompendo o cerco
da cidadania regulada, na medida em que parte da sociedade brasileira
encontra-se excluída. Apesar do avanço de nossa legislação e da mobili-
dade social, uma parte de nossos conterrâneos encontra-se sem possibili-
dades efetivas de participar da vida política, por falta de meios ou
por pura discriminação.
Esse macrodesafi o desdobra-se, na realidade, em um conjunto de desafi os
articulados; o primeiro dos quais é o de iniciar o processo de erradicação
da pobreza, elevando a auto-estima das camadas mais pobres. Condição
sine qua non para a participação política, na expressão de Hannah Arendt3.
Em seguida, assegurando uma melhor participação e controle da sociedade
sobre os órgãos e as ações estatais, com o fortalecimento dos conselhos
já existentes e a criação de outros. Neste sentido, a busca de uma intermu-
nicipalidade pode ser uma saída para evitar o nepotismo e o fi siologismo
marcantes na municipalidade brasileira, sobretudo nas menores, onde
habita um número cada vez maior de pessoas.
3 Filósofa e socióloga alemã de origem judaica (1906-1975).
23
Afi nal, é de notório conhecimento que o controle social não é apenas
uma condição básica para a ampliação da democracia, como também
um sistema imprescindível para assegurar a boa aplicação dos recursos
públicos, com redução sensível da corrupção.
Uma das questões centrais que se colocam hoje, não só para as organiza-
ções não-governamentais como para os movimentos sociais e populares
é justamente a ampliação dos espaços democráticos, para o que, neces-
sariamente, é preciso estender a ampliação do espaço político. Nós ainda
não progredimos o necessário na defi nição de uma nova estratégia de
participação e de democratização do Estado e da sociedade por meio
dos conselhos, sejam eles municipais, estaduais ou federais, que seriam
instrumentos privilegiados para a fi nalidade pretendida. É necessário
inventar e implantar uma nova concepção de gestão do Estado para que
estes conselhos cumpram efetivamente o seu papel.
Nesse sentido, uma reforma do Estado, ainda que restrita, torna-se realmente
imprescindível para que os conselhos deixem de exercer apenas um papel
de apêndice e passem a operar efetivamente dentro de seus quadros, como
forma de ampliar a democracia representativa e participativa. E, de fato,
tanto na campanha como no próprio programa de Governo do PT, não
são apontados muitos caminhos para essa necessária reforma do Estado.
Trata-se de uma contradição, porque a candidatura de Luiz Inácio Lula
da Silva era um depositório de todo o movimento em torno de uma demo-
cracia mais participativa e com novos formatos de representação popular.
Ainda sobre as estratégias do novo Governo, é preciso questionar as ini-
ciativas voltadas para a construção de um novo pacto ou contrato social.
Acreditamos que o conceito de contrato social é bem mais amplo, deven-
do incluir, além dos velhos e conhecidos atores – empresariado, igrejas,
sindicalistas e um número reduzido de representantes ligados às organiza-
ções não-governamentais – outros que são realmente novos. Por exemplo,
representantes da economia informal, das favelas e de movimentos cultu-
rais como o hip-hop, e aqueles que participam de toda uma nova discussão
sobre gênero. Fica o receio de que o pacto social proposto pelo Governo
Lula se assemelhe ao proposto em 1986 na Nova República do Governo
José Sarney – um movimento de elite que exclua o restante da sociedade.
Isso não pode acontecer. Que venham, no começo, os velhos atores – é im-
possível evitar. Os novos atores já são visíveis para alguns, enquanto para
outros têm visibilidade zero. Haverá, certamente, um processo de incorpo-
ração e de afi rmação desses novos atores. O fato de se criar um espaço
formal, no entanto, pode ser de fundamental importância, desde que não
se repitam os velhos vícios.
Cenários para a Agenda política 2003/2006
O Inesc e a agenda brasileira 2003/200624
E não pode o Governo Lula prescindir de lutar para garantir uma reforma
nas legislações eleitoral e partidária para que os partidos políticos se forta-
leçam, a impunidade parlamentar se restrinja ao exercício do mandato
e a obrigatoriedade do voto se mantenha.
Não se pode esquecer que um dos fantasmas que assaltam a nossa demo-
cracia reside no risco da fragmentação partidária. Se nos anos 1980 neces-
sitávamos de um ou dois partidos para constituir maioria no Parlamento
(leia-se Câmara dos Deputados)4, nos anos 1990 este número deslocou-se
para dois ou três5. Hoje, os três partidos de maior bancada, se juntos estives-
sem, não formariam maioria (240 sobre 513). Seria necessário um quarto
partido. A tabela 1 mostra a mudança da legislatura passada para a atual.
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Há armadilhas diversas neste processo, não apenas por parte dos partidos
e parlamentares que se consideram prejudicados no caso de uma reforma
política, mas também na própria concepção de reforma. Confundir,
por exemplo, modernidade com voto não-obrigatório é uma delas,
sob o ar gumento, insustentável, de que o mesmo não existe nem nos EUA
nem na maioria dos países europeus. Não se pode esquecer que o exercício
dos direitos como um dever é uma condição sine qua non no processo de
educação política. Disso já sabiam os gregos antigos, que tinham a partici-
pação política por parte dos atenienses adultos (no caso apenas do sexo
maculino) como um dever de cidadania. A nossa democracia necessita
desta obrigatoriedade para sair da adolescência.
(*) Considera-se grande partido aquele que tem 50 deputados ou mais; médios, aqueles que têm de 20 a 49; os pequenos são aqueles que têm entre 10 e 19 parlamentares. Os restantes são considerados micropartidos. Trata-se, evidentemente, de uma classifi cação empírica, mas que tem respaldo político na tradição brasileira.
4 No resultado das eleições de 1986, o PMDB tinha, sozinho, maioria na Câmara dos Deputados.
5 No Governo FHC, bastavam os três maiores partidos paraconstituir a maioria na Câmara.E, de certa forma, os três o apoiavam. A sua base governamental parlamentar foi sempre largamente majoritária ao longo dos oitos anos.
25
Outro risco, entre muitos que poderiam ser citados, é cair no alçapão do
voto distrital. Se este sistema cria proximidade entre candidato e eleitor,
aprisiona a política local e permite, teoricamente, desvios muito maiores
do que a atual legislação.6 Talvez uma saída seja o sistema misto (distrital/
proporcional). De toda forma, é preciso ter presente que não existe sistema
eleitoral partidário perfeito. Torna-se indispensável, em qualquer processo
de reforma, considerar devidamente os traços da cultura nacional. Se não
forem minimamente respeitados, ocorrerá aquilo que todos os brasileiros
mais ou menos bem informados sabem: a lei é promulgada mas não pega.
Finalmente, mas sabendo que estamos longe de esgotar o tema, ganha
relevância a questão da transparência, melhor dito, da circulação e acesso
às informações por parte dos atores coletivos ou individuais. É fundamen-
tal que o orçamento seja legível e acessível aos cidadãos comuns; que o
resultado das ações governamentais seja de conhecimento público, em
particular, todas aquelas ações que implicam o uso de recursos públicos
importantes; que as licitações ocorram em um mercado “sem cartas
marcadas”, e assim por diante.7
3.3 Terceiro macrodesafi o:
garantir a governabilidade
O terceiro macrodesafi o não será fácil e estará na pauta das discussões, so-
bretudo em 2003, mas poderá se prolongar por todo o mandato do presi-
dente Lula. Trata-se da capacidade de articular uma maioria no Congresso
Nacional; em princípio, condição sine qua non da governabilidade.
Apesar do PT ser o maior partido na Câmara dos Deputados, somados
os seus votos com os dos aliados eles ainda não são sufi cientes para
a obtenção de uma maioria tranqüila. Vide, neste sentido, a tabela 2.
6 Em 2002, a eleição de um deputado federal do Prona com apenas 279 votos soou no ouvido de alguns como uma enorme distorção do processo eleitoral. O que não deixa de ser verdade, mas nos países europeus há distorções piores.
7 O governador do Amapá, João Alberto Capiberibe, adotou um sistema de divulgação das licitações, compras e contra -tações do Governo na Internet, no seu segundo mandato, que merece ser mais conhecido. É claro que levantou contra si múltiplos e difusos (senão confusos e escusos) interesses.
Cenários para a agenda política 2003/2006
O Inesc e a agenda brasileira 2003/200626
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A soma dos deputados de todos os partidos que estiveram com Lula no
segundo turno (PT, PC do B, PL, PSB, PDT, PTB, PPS e PV) alcança o número
de 249, número que corresponde à maioria simples na Câmara. Se o PMDB
formar com a oposição que se desenha, reunindo PFL, PPB e PSDB, esta
terá maioria pouco mais folgada: 254 deputados. Portanto, atrair o PMDB
para a base governamental, assim como parlamentares isolados de outros
partidos, será fundamental. Tarefa nada fácil, como é sabido, tendo em vista
a natureza deste partido, considerado na literatura política como o partido-
ônibus, onde qualquer um parece caber. Uma alternativa será a de pinçar,
em número sufi ciente, os divergentes dentro dos partidos que constituírem
a oposição. No Senado, a situação não é, igualmente, fácil. Os partidos que
apoiaram explicitamente Lula (PT, PDT, PSB, PTB, PL, PPS) somam 30 sena-
dores, faltando 11 para alcançar a maioria. O que o PMDB (19) poderá lhe
dar, sobejamente, caso venham a fechar uma aliança.
(*) Não se pode esquecer que no momento da abertura da atual legislatura os partidos já estavam modifi cados, pois alguns parlamentares mudaram ou estão em vias de mudar de partido em função de seus interesses políticos pessoais. Assim, alguns partidos como o PL, entre outros, cresceram, atraindo parlamentares eleitos por outras legendas. O PSD e o PST, por exemplo, fundiram-se com o PTB. A legislação prevê em 2006 restrições para os partidos terem acesso à propaganda eleitoral gratuita, exigindo um mínimo de 5% dos votos nas eleições para o Congresso Nacional, o que estimula a extinção dos micropartidos.
(**) Partidos que não tinham nenhum representante
27
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Assim, é esperado o ingresso do PMDB na base governamental. Mas,
somado o fi siologismo deste partido com o de outros presentes na base
eleitoral de Lula, como o PTB e o PL, para citar os mais notórios, haverá
sem dúvida uma difi culdade adicional para introduzir mudanças, pois,
neste caso a boa pergunta é: até onde o PMDB, o PL e o PTB (e mesmo
em parte o PSB e o PDT) irão com Lula? Afi nal, faz parte deste desafi o
introduzir novas relações entre o Executivo e o Legislativo. Isso será
possível, com uma base parlamentar como esta?
3.4 Quarto macrodesafi o:
a gestão do Estado
Segundo alguns analistas, entre eles o jornalista Luis Nassif, um dos pontos
negativos do Governo FHC foi a pouca capacidade gerencial do aparato
estatal. A transformação do Plano Plurianual -PPA, com a criação de progra-
mas que se refl etem no Orçamento e possuem, cada qual, um gerente com
nome e endereço, produziu um efeito extraordinário na gestão pública.
A administração do PPA se preocupou, centralmente, com a questão dos
resultados da ação governamental, distinguindo-os dos produtos que são
normalmente observados. Existe hoje um controle físico-fi nanceiro, mesmo
que imperfeito, mas inexiste ainda um sistema de acompanhamento e
avaliação dos resultados da ação governamental.
Cenários para a Agenda política 2003/2006
(*) Conforme os resultados das eleições de 2002, e lembrando que nestas eleições foram eleitos apenas 2/3 do Senado.
Fonte: Site do Senado Federal
O Inesc e a agenda brasileira 2003/200628
Vai ser de fundamental importância, e será cobrada pela mídia e segmen-
tos sociais diversos, a capacidade governamental de agir e obter resulta-
dos consistentes e visíveis em sua ação. Será preciso sair do discurso que
imperou no Ministério de Planejamento, mas que não conseguiu se reali-
zar nos outros Ministérios, e implementar um sistema gerencial compro-
metido com resultados e de forte integração.
Está cada vez mais claro para os analistas que existe uma contradição
entre a organização governamental, por pastas setorizadas, e os problemas
sociais (no sentido amplo) reais, intersetoriais ou multisetoriais. Enquanto
os primeiros primam pela simplicidade, os segundos são de natureza com-
plexa. Não se obtém resultados satisfatórios no desempenho econômico
do país, na geração de emprego e renda, no combate à pobreza, na ampli
a ção da participação popular, no aumento da acessibilidade aos serviços
públicos e assim por diante, com ações, projetos e programas apenas
setorizados.
As difi culdades residem, principalmente, nas concepções distintas e
mesmo contraditórias que existem em um Governo, sobretudo quando
este é formado por atores díspares, produzindo políticas antropofágicas.
Mas também na formação dos gestores governamentais, na concepção
tecno crática que impera em boa parte e no arranjado administrativo da
máquina governamental que não é afeita a determinadas racionalidades,
em geral simples e notórias (veja, por exemplo, o processo de elaboração
e, sobretudo, administração do Orçamento e dos gastos públicos em geral).
Em resumo, considerando as condições de governabilidade e governança,
podemos defi nir quatro cenários para o Governo Lula, em função das
difi culdades externas que venham a se apresentar:
1) As difi culdades se reduzem signifi cativamente,
o que permitirá uma travessia para um porto seguro;
2) As difi culdades se mantém sem um agravamento expressivo,
o que signifi cará condições precárias e de difícil navegação;
3) As difi culdades externas aumentam, o que forçará o Governo
a um recuo e à mudança de rumo;
4) As difi culdades agravam-se expressivamente
(guerra prolongada contra o Iraque, por exemplo),
reduzindo drasticamente os espaços de governabilidade
e governança, o que poderá resultar em naufrágio para o Governo.
29
4. Cenários para a agenda econômica 2003-2006
Há três cenários possíveis de médio e longo prazos detectados no plano
econômico. O cenário otimista pode ser denominado de contrato social.
O pessimista é o da crise de governabilidade. O cenário intermediário
é o da alternância de poder.
O cenário otimista signifi ca que o Governo Lula logrará uma transição
difícil, mas relativamente sob controle, de aproximadamente dois anos.
Neste período, poucos resultados objetivos serão alcançados em termos
de crescimento de renda, geração de emprego e combate à pobreza.
Entretanto, o Governo será capaz de estabelecer os fundamentos da reto-
mada sustentável do desenvolvimento de longo prazo. Para isso, reformas
estruturais serão encaminhadas e executadas; reformas essas que repre-
sentarão uma efetiva ruptura histórica.
O Governo Lula vai transitar entre os campos da ruptura e da continuida-
de. No que se refere à economia, essa ruptura implicará na redução signifi -
cativa ou na correção de fortes desequilíbrios de estoque e de fl uxo de
recursos que fazem parte do legado de Fernando Henrique Cardoso.
Nesse ponto, os destaques fi cam por conta da questão externa e da
questão fi scal, bem como da contenção das pressões infl acionárias.
Nos dois primeiros anos, apesar de resultados econômicos poucos satisfa tó-
rios, o Governo Lula será capaz de incrementar a capacidade governamen-
tal de entregar bens e serviços à sociedade, de forma direta ou indireta.
Somente na segunda metade do Governo é que, efetivamente, aparecerão
os resultados mais evidentes de desenvolvimento econômico e social,
bem como das mudanças políticas e institucionais. O cenário otimis ta do
contrato social contempla, então, a permanência do PT, com a reeleição
de Lula em 2006 e, portanto, a continuação e o aprofundamento das mu-
danças históricas e a ruptura defi nitiva com o modelo neoliberal. O cenário
do contrato social é esperado e defendido pelas forças progressistas e
de esquerda que, historicamente, têm defendido mudanças e rupturas
no Brasil. O contrato social é o cenário da esquerda brasileira.
O cenário intermediário é o cenário da direita no Brasil. Neste cenário,
o Governo Lula faria mudanças marginais e, portanto, não haveria alterações
signifi cativas em termos da estrutura econômica e social. Os resultados
seriam medíocres, tanto em termos de crescimento econômico, como de
geração de emprego. Lula realizaria, então, um Governo “mais ou menos”.
Cenários para a agenda econômica 2003-2006
O Inesc e a agenda brasileira 2003/200630
A aposta da direita seria, então, que em 2006 haveria alternância de poder.
Candidatos mais carismáticos ou atividades mediáticas mais efi cazes seriam
sufi cientes para derrotar Lula e o PT nas eleições presidenciais de 2006.
Há, atualmente, inúmeras personalidades e forças políticas que apostam
neste cenário: dos candidatos e partidos derrotados nas eleições de 2002
aos governadores de estados importantes (São Paulo, Minas Gerais e Rio
Grande do Sul), que são candidatos naturais à Presidência da República na
próxima eleição. Esse cenário é compatível com a estratégia de mudanças
marginais, que focariam a política econômica na manutenção do acordo
com o FMI e na paranóia do superávit primário, nas operações de resgate
dos grandes grupos econômicos nacionais em bancarrota, na reconfi gu-
ração cosmética da ALCA e na promoção das exportações (de produtos
primários).
Sem a crise atual herdada do Governo Fernando Henrique Cardoso,
Lula e o PT não teriam ganho as eleições. O aprofundamento da atual
trajetória de instabilidade e crise pode signifi car que Lula e o PT percam
a governabilidade. Este é o cenário de “crise de governabilidade”, e, eviden-
temente, é pessimista. Este cenário, cuja probabilidade de ocorrência
é diferente de zero, faz parte das estratégias dos grupos reacionários e
da extrema direita. Este quadro signifi ca a incapacidade do Governo Lula
de desmontar as bombas de efeito retardado deixadas por Fernando
Henrique Cardoso. A incapacidade se refl etiria em crises cambiais recor-
rentes e crescentes problemas econômicos, sociais, políticos e institucionais.
O Governo não lograria aumentar a capacidade do Estado de atender as
exigências dos cidadãos. A falta de credibilidade do Governo Lula provo-
caria a perda de legitimidade do Estado e, portanto, geraria um défi cit
crítico de governabilidade.
O cenário pessimista tem três derivativos. O primeiro é uma crise seguida
de impeachment. O vice-presidente assumiria com o compromisso de “em-
purrar com a barriga” até as eleições de 2006. Nesse caso, contempla-se,
inclusive, a antecipação das eleições. O segundo subcenário envolve
a solução da crise institucional por meio do parlamentarismo. Nesse caso,
há a possibilidade de um parlamentarismo com Fernando Henrique
Cardoso como primeiro-ministro. O terceiro subcenário é o de crise institu-
cional sem uma solução tradicional (impeachment ou parlamentarismo),
e sim uma situação de caos e confl ito social aberto.
31
4.1 Confl itos de interesse A estratégia de criação de uma sólida base de sustentação política para
o Governo Lula parece envolver uma ampla gama de atores políticos.
A proposta do Pacto Social abarca, na realidade, uma estratégia que procu-
ra, pela via da negociação, o consenso. Naturalmente, deve-se reconhecer
que numa sociedade de classes como a brasileira, marcada por elevado
grau de desigualdade e extraordinária fragmentação de interesses, e com
as fortes restrições internas e externas, a montagem de um Pacto Social
será, no mínimo, uma árdua tarefa. No processo de cooperarão e confl ito,
não há dúvida de que o Governo Lula terá que arbitrar os ganhos e
as perdas dos diferentes grupos da sociedade.
Esse dilema pode ser ilustrado da seguinte forma: o maior salário mínimo
e o reajuste salarial do funcionalismo público exigem recursos orçamentá-
rios signifi cativos. Ao mesmo tempo, o pagamento de juros da dívida pú-
blica é o principal fator de desequilíbrio do orçamento da união. A redução
da taxa de juros somente ocorrerá com a menor abertura da conta de
capital do balanço de pagamentos, o que contraria os interesses da elite
econômica brasileira e do sistema fi nanceiro internacional. Há, nesse caso,
um claro confl ito de interesses. E mais, o funcionalismo público e os apo-
sentados não estarão na mesma mesa de negociações com os banqueiros
e os rentistas. Não há saída, o Governo terá que arbitrar.
A sociedade civil organizada (exclusive as organizações patronais e asso-
ciadas) é aliada natural do Governo Lula. Na hipótese de que a estratégia
da maioria das ongs seja a da cooperação independente, é provável que
nos cenários de contrato social e alternância de poder a cooperação (sem
cooptação) seja o elemento básico da relação com o Governo federal.
Esse argumento também se aplicaria, até certo ponto, ao movimento
sindical e ao funcionalismo público.
Tendo em vista o desmonte do aparelho de estado, a tecnocracia, os mili-
tares e o funcionalismo público estão com grandes demandas reprimidas
que, mais tempo, menos tempo, cairão no colo de Lula. O mesmo acontece
com o movimento sindical. O retrocesso dos direitos sociais nos últimos
anos tem gerado um esgarçamento social que atinge a classe trabalhadora
via redução de renda, precariedade das condições de trabalho e o espec-
tro do desemprego. No caso do movimento sindical, Lula sinaliza para um
processo de negociação das relações capital-trabalho, que poderá gerar
um processo de cooperação positivo para ambas as partes ou, então,
uma insatisfação generalizada.
Cenários para a agenda econômica 2003-2006
O Inesc e a agenda brasileira 2003/200632
No caso dos servidores públicos, a negociação é limitada claramente por
um problema de alocação dos recursos orçamentários. Nesse caso, volta-
mos ao dilema da redução das taxa de juros (afetando os rentistas e a elite
econômica), do custo da promoção da exportação, das operações de res-
gate dos grandes grupos privados nacionais, do programa de combate à
fome, etc. Governar é fazer escolhas. O pacto e a negociação não resolvem
esse problema.
No que se refere aos vetores políticos que poderiam ser peças de resis-
tência ao Governo, cabe destacar os meios de comunicação e o sistema
fi nanceiro. Quanto aos meios de comunicação, não há dúvida de que a
concentração desses meios em um número restrito de grandes empresas
familiares envolve uma enorme concentração de poder em mãos conser-
vadoras e até mesmo reacionárias. Entretanto, deve-se notar que Lula deve
se benefi ciar do fato de que alguns desses grupos estão quebrados fi nan-
ceiramente. Nesse sentido, ao longo do Governo Lula, talvez haja uma ati-
tude de crítica moderada por parte dos grandes meios de comunicação.
O foco da crítica, muito provavelmente, se concentrará nos elementos
(indivíduos e instituições) mais dinâmicos e progressistas da administração
federal. Se o Governo atingir um nível crítico de (falta de) credibilidade,
é provável que as grandes empresas de comunicação mudem de estraté-
gia e passem a fazer uma oposição no atacado, explícita e demolidora.
Com relação ao sistema fi nanceiro, que expressa os interesses dos rentistas,
a reação dependerá das políticas monetárias e creditícias do Governo Lula,
bem como das políticas de regulamentação do setor. Essa é uma área fun-
damental para a retomada do crescimento. Há uma série de medidas que
não afetam os interesses do sistema fi nanceiro. Muito pelo contrário. Há
medidas que não são intrinsecamente confl itivas, como a modernização
da Lei das S.A., da Lei das Falências e da Comissão de Valores Imobiliários
e os estímulos diversos ao mercado de capitais. A questão central reside,
precisamente, na redução da taxa de juros e no aumento da regulação
bancária, que provocarão a redução dos lucros absurdos do sistema ban-
cário obtidos nos últimos anos. As decisões são fáceis quando se trata de
jogo de soma positiva, mas se complicam quando o jogo torna-se
de soma zero (para alguém ganhar, é necessário que alguém perca).
Lula está propondo um mecanismo de conciliação, que ele denominou de
Pacto Social. Será que o presidente frustrará as expectativas do povo brasi-
leiro e repetirá o padrão histórico identifi cado por José Honório Rodrigues8
como de “conciliação e reforma”? Ou será que estamos no início de um
novo ciclo histórico, que será marcado pela ruptura com uma trajetória
de desigualdade, miséria e injustiça?
8 Professor, historiador e ensaísta. Nasceu no Rio de Janeiro, em 20 de setembro de 1913, e faleceu na mesma cidade, em setembro de 87.
33
A análise dos cenários do futuro Governo focada na questão econômica
examina, inicialmente, duas dicotomias fundamentais que permearão
o destino do Governo Lula, e que surgem como incertezas críticas que
determinarão a conduta e o desempenho do Governo. A primeira trata
da dicotomia mudanças históricas e mudanças marginais. A segunda re-
fere-se à dicotomia voluntarismo e ultra-realismo. Essas incertezas críticas
são de natureza estratégica e afetam as esferas econômica, política, social,
cultural e institucional. A análise dessas dicotomias é particularmente
importante no caso do Brasil, tendo em vista que as condições estruturais
e o contexto internacional são muito desfavoráveis.
As incertezas críticas, as condições estruturais internas desfavoráveis e as
restrições externas indicam que o período de transição do Governo Lula
começa, efetivamente, em janeiro de 2003 e poderá prolongar-se por toda
a primeira metade do seu Governo. Nos primeiros dois anos, difi cilmente,
serão obtidos resultados expressivos. O período deve ser de estabeleci-
mento dos novos pilares de um novo modelo. Essa leitura é claramente
otimista, visto que pressupõe a predominância de um cenário de retoma-
da do desenvolvimento econômico e social sustentável no longo prazo.
Há, no entanto, cenários alternativos, marcados pelo ceticismo e pelo
pessimismo. Esses três cenários de médio e longo prazos são analisados
mais adiante.
O desempenho do Governo Lula dependerá da conduta dos principais
atores sociais e políticos. Uma breve análise indica que, no médio e longo
prazos, o principal vetor político de resistência, e até mesmo de desesta-
bilização, está localizado nos Governos estaduais. Interesses individuais e
partidários transformarão o Pacto Federativo no eixo central dos confl itos
macropolíticos.
Os movimentos sociais, por seu turno, deverão operar estratégias que evi-
tem, de um lado, a ingenuidade de imaginar que são Governo e, de outro,
de serem cooptados e se transformarem num braço administrativo auxiliar
do Governo federal. Quando o Governo federal avançar no sentido de mu-
danças históricas, o movimento social deverá apoiá-lo; quando a concilia-
ção (ou a negociação) levar o Governo a se conter, caberá ao movimento
social reagir de forma crítica, construtiva e independente. Essa é a principal
implicação estratégica da análise apresentada a seguir.
Cenários para a agenda econômica 2003-2006
O Inesc e a agenda brasileira 2003/200634
4.2 Mudanças históricas
ou marginais?
O primeiro pronunciamento de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente
eleito, no dia 28 de outubro de 2002, começa da seguinte forma:
“Ontem, o Brasil votou para mudar”. Não resta dúvida, a maioria do povo
brasileiro votou contra o Governo Fernando Henrique Cardoso,
mais especifi camente contra a continuidade de políticas neoliberais
que tiveram um impacto negativo sobre a sociedade.
No pronunciamento, Lula afi rma que a “vitória signifi ca a escolha de um
projeto alternativo e o início de um novo ciclo histórico para o Brasil”. projeto alternativo e o início de um novo ciclo histórico para o Brasil”. projeto alternativo e o início de um novo ciclo histórico para o Brasil”.
Lula é categórico: “A maioria da sociedade brasileira votou pela adoção
de outro modelo econômico e social, capaz de assegurar a retomada do
cresci mento, do desenvolvimento econômico com geração de emprego
e distribuição de renda”. Mais adiante, o presidente eleito declara que:e distribuição de renda”. Mais adiante, o presidente eleito declara que:e distribuição de renda”.
“vamos aplacar a fome, gerar empregos, atacar o crime, combater a corrupção
e criar melhores condições de estudo para a população de baixa renda desde
o momento inicial de meu Governo. Meu primeiro ano de mandato terá
o selo do combate à fome.”
Mudança é a palavra-chave do novo Governo. O discurso do presidente
eleito deixa margem para duas interpretações. Por um lado, o empresariado,
os banqueiros e outros grupos conservadores entendem que o Governo
Lula pode signifi car mudanças marginais no Brasil. Nesse caso, não haveria
mudanças substantivas na economia, na sociedade, na política, na cultura
e nas instituições. O discurso de Lula poderia ser encaixado num modesto
compromisso social-democrata, que daria maior dinamismo à economia
e reduziria os níveis dramáticos de miséria e desigualdade no Brasil.
Por outro lado, o pronunciamento de Lula permite que o movimento social,
trabalhadores, desempregados, pobres, excluídos e todos os grupos desfa-
vorecidos da sociedade brasileira apostem nas mudanças históricas.
Nesse caso, a expectativa é de que, pela primeira vez na história do Brasil,
o colapso de um modelo excludente não seja seguido pela tradicional
fórmula da conciliação e reforma adotada historicamente pelas elites,
que evitava atender às aspirações de mudanças efetivas. Em contraste,
as mudanças históricas signifi cam alterações nas estruturas, processos
e relações econômicas, sociais, políticas e culturais.
Lula assinala claramente para um conjunto de reformas: previdência social,
tributação, legislação trabalhista, estrutura sindical, reforma agrária e reforma
política. Na visão conservadora, Lula prosseguiria avançando nas reformas
iniciadas pelo Governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso (previ-
dência social, legislação trabalhista e reforma agrária) e realizando as refor-
mas que deixaram de ser implementadas (tributação, estrutura sindical
e reforma política).
35
Nesse último caso, a expectativa, naturalmente, é que as reformas restrin-
jam-se a uma conciliação de divergências e envolvam, fundamentalmente,
mudanças marginais, que não afetem os interesses das frações dominantes
da elite brasileira.
Por outro lado, a expectativa das forças progressistas é que as reformas
prometidas por Lula impliquem, efetivamente, em mudanças históricas.
A reforma da previdência social deve transcender a lógica simplifi cadora
do eqüacionamento fi nanceiro. A reforma agrária deve ser um mecanis-
mo de alterações profundas nas relações sociais no campo, na regulariza-
ção do território e na estrutura de distribuição de riqueza no país. A refor-
ma política deve ir muito além de problemas como fi delidade partidária
e fi nanciamento de campanhas. A reforma da legislação trabalhista e
da estrutura sindical deve partir do pressuposto de que o trabalho não é
uma mercadoria qualquer e, portanto, deve superar em muito a lógica
neoliberal da fl exibilização, desoneração de tributos e competitividade.
A reforma tributária é vista como um instrumento-chave para se defi nir
a orientação do novo Governo, pois sua confi guração geral defi ne quem
paga a conta. Nesse caso, espera-se que a reforma tributária seja tanto
um instrumento de ajuste macroeconômico, como de distribuição de
riqueza e renda.
4.3 Voluntarismo
ou ultra-realismo?
No seu pronunciamento, Lula afi rmou que “vivemos um momento decisivo
e único para as mudanças que todos desejamos. Elas virão sem surpresas e
sobressaltos. Meu Governo terá a marca do entendimento e da negociação.
Da fi rmeza e da paciência.”
Essa afi rmação parece fornecer uma salvaguarda para aqueles que estão
preocupados com atitudes voluntaristas do Governo. Essas atitudes signi fi -
cariam tomar medidas que não teriam condições objetivas de serem exe-
cu tadas, tendo em vista as restrições objetivas, tanto econômicas como
sociais, culturais, políticas e institucionais. A habilidade e sagacidade demons-
trada no período de transição, bem como a declaração de Lula de que
o seu Governo “não pode errar”, parecem indicar que, muito provavelmente, “não pode errar”, parecem indicar que, muito provavelmente, “não pode errar”
o risco de atitudes voluntaristas é reduzido.
Entretanto, há o risco concreto de que o Governo Lula seja capturado pelo
otimismo, ou melhor, pela visão panglossiana9 de que as coisas vão dar
certo, porque têm que dar certo. É a armadilha criada pelo imperativo psi-
cológico – a ânsia de otimismo e de esperança. O fato é que as condições
objetivas são muito desfavoráveis. Tomemos dois exemplos. O primeiro
refere-se à volta da infl ação de dois dígitos.
Cenários para a agenda econômica 2003-2006
9 Relativo a Pangloss, personagem do romance Cândido, de Voltaire, que professava um otimismo beato e ingênuo e para quem tudo parecia sempre correr às mil maravilhas (v. Enciclopédia e Dicionário Koogan/Houaiss).
O Inesc e a agenda brasileira 2003/200636
A forte depreciação cambial em 2002, bem como a deterioração das ex-
pectativas provocaram uma pressão altista de preços. O índice geral de
preços em 2002 foi da ordem de 20% e os índices de preços ao consu-
midor chegaram a dois dígitos. Isso signifi ca que 2003 será marcado por
fortes demandas de reajustes de preços pelos segmentos afetados pela
infl ação em 2002. Essas demandas ocorrerão independentemente das
condições de renda na economia brasileira. Isto é, o provável desempenho
medíocre da produção e da renda em 2003 não provocarão infl ação de
demanda, mas haverá pressões que confi guram um quadro de infl ação
de custo e de pressões por reindexação. Essas observações indicam, na
realidade, que o legado de Fernando Henrique Cardoso é um quadro de
pressões infl acionárias que reduzirão o grau de manobra do Governo Lula
no início do mandato. Há, assim, um processo rastejante de maior desesta-
bilização macroeconômica, que limitará as políticas econômica e social
do próximo Governo.
Outro exemplo refere-se à dimensão externa da desestabilização macroe-
conômica. A vulnerabilidade externa é um elemento constitutivo e básico
da herança do Governo Fernando Henrique Cardoso. O brutal desequilí-
brio do balanço de pagamentos tem sido enfrentado, e parece que con-
tinuará sendo, com saldos positivos na balança comercial de bens. Nesse
sentido, deve-se notar que a melhora observada ao longo de 2002 se deve,
fundamentalmente, à extraordinária queda das importações. Isso ocorreu
como resultado tanto do aumento dos preços dos importados (via depre-
ciação cambial), quanto da estagnação da renda interna (de fato, queda
da renda per capita). Por outro lado, as exportações brasi leiras têm mostra-
do um desempenho medíocre.
O Governo Lula tem se comprometido com a ampliação das exportações,
não somente como um fator gerador dos dólares tão necessários ao fe-
chamento das contas externas, mas também como uma fonte de cresci-
mento da produção e do emprego. Entretanto, deve-se notar que as restri-
ções ao crescimento das exportações brasileiras no curto e médio prazos
são enormes e, muito provavelmente, crescentes. Pelo lado da demanda,
deve-se mencionar não somente o quadro de recessão internacional,
como também os indícios de uma nova onda protecionista no sistema
mundial de comércio. Pelo lado da oferta, deve-se chamar atenção para o
fato de que a perda de competitividade internacional dos produtos manu-
faturados brasileiros ao longo dos últimos anos deve-se, em grande medi-
da, à inefi ciência sistêmica da economia brasileira. O desmonte do sistema
nacional de inovações, a desnacionalização, as privatizações (que encare-
ceram o insumos), as taxas medíocres de crescimento da renda e os níveis
medíocres de investimento provocaram um desmonte do aparelho pro-
dutivo que, por seu turno, levou à perda de competitividade internacional.
37
Não há dúvida de que a capacidade de competição de produtos
manufaturados brasileiros no mercado internacional, pelo lado da oferta,
é limitada, tendo em vista os problemas estruturais. Esses problemas não
serão solucionados no curto e médio prazos. Assim, difi cilmente pode-se
esperar um aumento expressivo das exportações brasileiras de manufatu-
rados no futuro próximo. Com relação às commodities, a queda dos preços
internacionais (provocada pelo excesso de oferta e pelo reduzido dinamis-
mo da demanda) confi gura cenários desfavoráveis, principalmente, para
as commodities agrícolas. Nesse sentido, maiores incentivos às exportações
podem signifi car maior redução dos preços internacionais dos produtos
brasileiros e, possivelmente, uma queda na receita de exportação em
dólares. Isto é, exporta-se uma maior quantidade a preços menores,
de tal forma que a receita em dólares reduz-se.
No pronunciamento, Lula anunciou coerência com seu discurso de cam-
panha. Ele falou em um pacto social que, contrariamente ao apregoado
pelo neoliberalismo, em que era formado basicamente por banqueiros e
uma burguesia internacional, vai dividir melhor os assentos na sala que
é o Estado, o locus de encontro das classes e dos grupos. Ora, sendo a redu-
ção da vulnerabilidade externa uma prioridade anunciada de seu Governo,
e sendo a exportação o mecanismo fundamental de redução dessa vulne-
rabilidade (o que não é necessariamente verdadeiro), faz sentido nomear
para o Ministério da Agricultura um competente exportador de soja e para
o Ministério da Indústria e do Comércio um competente exportador de
frango. A importância maior dessas nomeações é simbólica, já que elas
expressam dois interesses de grande peso no Brasil de hoje – o agrobusiness
exportador e a indústria orientada para a exportação.
Na hipótese de que o projeto de criação da Alca se transforme em um
acordo efetivo, permanece a dúvida quanto ao efeito desse esquema
sobre a balança comercial brasileira. Na atual confi guração do acordo,
é de se esperar que os eventuais ganhos associados a melhores condições
de acesso aos mercados regionais não compensem os custos derivados
da maior vulnerabilidade externa da economia brasileira, que será decor-
rente do acordo da Alca. No que se refere à revitalização do Mercosul,
é provável que as lideranças petistas, ao se defrontarem com a realidade
sul-americana, mantenham a retórica da ibero-americanidade,
mas se restrinjam a ações e iniciativas de efeitos reduzidos.
Cenários para a agenda econômica 2003-2006
O Inesc e a agenda brasileira 2003/200638
Em contraste com o panglossianismo que pode contaminar os tomadores
de decisão no próximo Governo, há a corrente do ultra-realismo. Os ultra-
realistas são aqueles que orientam a formulação de estratégias e a imple-
mentação de medidas pelo seguinte postulado: “Uma coisa é o que a
gente quer, outra é aquilo que podemos”. Nesse sentido, os ultra-realistas
tendem a seguir a linha de menor resistência. Tendo em vista as enormes
restrições econômicas e institucionais que o próximo Governo enfrentará,
há o risco de que os ultra-realistas dominem o núcleo duro da política
econômica do próximo Governo. Nesse caso, seguir a linha de menor
resistência signifi cará, provavelmente, a implementação de mudanças
marginais, com resultados medíocres.
Entre o panglossionismo (voluntarismo) e o ultra-realismo (linha de menor
resistência) há uma margem de manobra estreita no sentido de se realizar
mudanças profundas e graduais. Entretanto, essa via alternativa (ou terceira
via) pode se transformar na “terceira margem do rio”, caso o Governo não
faça as reformas e mudanças estruturais necessárias, que rompam com a
herança do Governo Fernando Henrique. Nesse sentido, pode-se ilustrar
o argumento com o caso da reforma tributária. A desoneração das expor-
tações e da produção e a simplifi cação da estrutura tributária são aspectos
importantes. No entanto, é difícil imaginar a resolução da questão fi scal
brasileira sem um aumento expressivo da carga tributária (por exemplo,
dos atuais 34% para 40% do PIB) e da progressividade (via maior taxação
sobre a riqueza e o capital). Não resta dúvida que a reforma tributária é
um indicador da vontade e da capacidade do Governo Lula de implemen-
tar mudanças profundas e graduais no Brasil.
Outro teste decisivo refere-se à questão da vulnerabilidade externa.
O aumento das exportações e a substituição de importações são as peças
de menor resistência quando se trata de enfrentar os problemas externos.
Conforme mencionado, o crescimento das exportações é algo muito du-
vidoso no futuro próximo. A substituição de importações, por seu turno,
poderá ter um impacto positivo sobre a balança comercial, porém isso não
é evidente. A substituição de importações pode ocorrer, inclusive, em detri-
mento do aumento das exportações. Há, ainda, enormes gargalos na estru-
tura produtiva brasileira que fazem com que, no curto e médio prazos,
a substituição de importações poderá provocar efeitos negativos sobre o
balanço de pagamentos (via, por exemplo, importação de bens de capital
e produtos intermediários).
39
A substituição de importações terá um efeito negativo sobre o processo
infl acionário e, ademais, envolverá uma transferência de renda dos consu-
midores para os produtores (isto é, dos trabalhadores e dos pobres para
os produtores e os ricos). Deve-se notar, ainda, que devido ao desmonte
do aparelho produtivo nacional é provável que no curto e médio prazos
o processo de substituição de importações não tenha impacto signifi cati-
vo em termos de investimento e geração de emprego. No curto e médio
prazos, é improvável que haja aumentos expressivos dos investimentos
orientados para a substituição de importações. Se ocorrerem, esses inve-
stimentos tenderão a ter impacto sobre a renda e a produção somente
no médio e longo prazos.
Ainda com relação à substituição de importações, há duas perguntas
importantes: Até que ponto o Governo Lula permitirá a transferência de
renda dos consumidores para os produtores? E como a sociedade reagirá
ao aumento de preços e à piora na qualidade dos produtos decorrentes
da substituição de importações?
As incertezas críticas discutidas acima indicam três dilemas importantes.
O primeiro refere-se à dicotomia mudanças históricas e mudanças margi-
nais. As forças progressistas apostam e esperam mudanças históricas, que
romperão com a herança do Governo Fernando Henrique e com o próprio
processo histórico brasileiro de desigualdade, exclusão e discriminação.
As forças conservadoras esperam que o Governo Lula faça mais da mesma
coisa. Isto é, os conservadores apostam que o Governo focará suas políticas
no crescimento das exportações e no combate à infl ação. E, portanto, espe-
ram que o Governo continue amarrado às famigeradas metas infl acionárias,
ao câmbio fl utuante e ao superávit primário. Nesse contexto, de ajustes
interno e externo, não haveria margem para políticas de redistribuição
de riqueza e renda, nem para mudanças signifi cativas na estrutura de produ-
ção. Programas de combate à fome e políticas compensatórias são aceitas
(melhor dizendo, toleradas) desde que não se comprometa o programa
de ajustes interno e externo. Estratégias ou políticas que transcendam essa
lógica (melhor expressa na natureza, nas metas e nos critérios de desem-
penho do acordo com o FMI) representam risco de confl ito social e,
portanto, devem ser evitadas, segundo os conservadores e os reacionários.
O segundo dilema envolverá o embate permanente (principalmente nos
dois primeiros anos do Governo) entre os panglossianos (otimistas crôni-
cos ou irresponsáveis bem-intencionados) e os ultra-realistas (operadores
do poder ou sobreviventes oportunistas).
Cenários para a agenda econômica 2003-2006
O Inesc e a agenda brasileira 2003/200640
O confronto entre o voluntaris mo e a linha de menor resistência poderá
ocorrer no atacado (orientação geral das estratégias políticas) ou no varejo
(determinadas esferas do Go verno). O maior risco é a ambivalência perma-
nente, a oscilação de um lado para outro que, entre outros aspectos, pode-
rá agravar ainda mais a atual trajetória de instabilidade e crise e, portanto,
gerar um défi cit de governabilidade.
O enfrentamento desses dilemas, que se constituem em incertezas críticas
para o Governo, poderá ser realizado a partir de mudanças profundas e
graduais. Essas mudanças partiriam do reconhecimento de que as restri-
ções são enormes e que, no curto e médio prazos (2003-2004), difi cilmente
a economia brasileira sairá da UTI. O fundamental, no entanto, é que nesses
dois primeiros anos já se estabeleçam os marcos de uma ruptura histórica.
As reformas tributária, agrária e trabalhista serão testes decisivos. O mesmo
pode-se dizer em relação à vulnerabilidade externa, isto é, à disposição do
Governo de implementar a reversão da liberalização e da desregulamen-
tação nas esferas comercial, produtiva, tecnológica, fi nanceira e monetária
das relações econômicas internacionais do país.
4.4 Restrições externas O Governo Lula enfrentará uma conjuntura internacional particularmente
adversa. Isso é verdade tanto na dimensão econômica das relações inter-
nacionais, como na política. O crescente tensionamento político interna-
cional tem sido causado, em grande medida, pelas atitudes fortemente
intervencionistas e bélicas do Governo Bush. A intransigência de Bush em
relação aos acordos internacionais (como o Protocolo de Kyoto) e às organi-
zações multilaterais (ONU, OTAN, etc) tem mostrado que o processo de con-
fl ito tem superado o de harmonia e cooperação no cenário internacional.
No âmbito da economia internacional, o cenário é claramente desfavorá-
vel em todas as suas dimensões. No que se refere ao lado real da econo-
mia mundial, a evidência indica que no futuro próximo as locomotivas do
sistema estarão com fortes difi culdades para avançar no sentido do cres-
cimento econômico. A economia japonesa continua mergulhada numa
profunda crise que se arrasta há mais de uma década. A Europa tem sido
incapaz de se proteger, por trás do esquema da União Européia, das adver-
sidades derivadas da globalização. Os Estados Unidos procuram escapar
da crise econômica com os pés de barro da fi nanceirização e com o braço
forte dos gastos militares.
41
As economias dos países desenvolvidos estão enfrentando uma situação
tradicional de insufi ciência de demanda agregada (consumo e investimen-
to). O excesso de capacidade de produção tem aumentado o risco de
uma defl ação generalizada, que poderá ter gravíssimas conseqüências em
termos de uma recessão de dimensão global. A queda dos preços interna-
cionais das commodities, ao longo dos últimos anos, é um sério indicador
da grave situação da economia internacional. O cenário de “cheiro de
1929 no ar” continua presente.
A política do braço forte de Bush – a guerra como uma saída para a crise
econômica – aumenta ainda mais as incertezas críticas no cenário interna-
cional. Nesse caso, podem ser incluídos os riscos potenciais de uma guerra
contra o Iraque e seus efeitos negativos sobre os preços internacionais do
petróleo. Poderá ser reproduzida, assim, uma situação similar (ainda que
mais grave) àquela observada nos anos 1970, quando houve estagnação
e infl ação nos países desenvolvidos.
O quadro citado envolve restrições fundamentais para países como o
Brasil, marcados por forte vulnerabilidade externa e enormes desequilíbrios.
A estratégia de ajuste externo por meio da promoção das exportações
tenderá a enfrentar sérias difi culdades. Isso deverá ocorrer, principalmente,
tendo em vista o risco crescente de que o baixo crescimento da renda
mundial estará acompanhado por pressões protecionistas cada vez maio-
res e pelo acirramento da rivalidade no mercado internacional.
No que se refere aos fl uxos internacionais de capitais, a evidência indica
que a contração da liquidez internacional dos últimos anos deverá con-
tinuar no futuro próximo. Assim, o Brasil continuará enfrentando sérias
restrições quanto ao fi nanciamento das suas contas externas, tendo em
vista que o país difi cilmente alterará sua classifi cação de risco no futuro
próximo. Deve-se notar que, durante todo Governo Fernando Henrique
Cardoso, o Brasil foi considerado um país de alto risco, que tinha que pagar
prêmios elevados para os investidores estrangeiros (o que se manifestava
nas altas taxas de juros da economia brasileira). As restrições de crédito
internacional deverão se acentuar no futuro próximo.
A redução do excedente econômico nos países desenvolvidos implica em
menor disponibilidade de capitais para investimento no exterior. Os fl uxos
de investimento externo direto se contraem quando a economia interna-
cional entra num ciclo recessivo. Ademais, no caso brasileiro, o avanço da
privatização das empresas públicas e o extraordinário processo de desna-
cionalização ao longo do Governo Fernando Henrique implicam em me-
nores possibilidades de entrada de investimento externo direto no futuro.
Cenários para a agenda econômica 2003-2006
O Inesc e a agenda brasileira 2003/200642
Na realidade, a expectativa é que o balanço de pagamentos das empresas
transnacionais operando no Brasil seja crescentemente negativo no futuro
próximo, particularmente no que se refere à conta de serviços e aos fl uxos
de capital.
A situação econômica internacional desfavorável é um fator ainda mais
agravante quando se leva em conta não somente o desequilíbrio do ba-
lanço de pagamentos, mas também o enorme desequilíbrio de estoque
associado ao passivo externo da economia brasileira (dívida externa e es-
toque de investimento externo direto). Quase US$ 20 bilhões são enviados
todo ano para o exterior, na forma de pagamento de juros da dívida exter-
na e remessa de lucros. Essa saída de capital é, de modo geral, insensível
aos instrumentos macroeconômicos tradicionais, como a política cambial
e a política monetária. O mesmo ocorre em relação ao pagamento do
principal da dívida externa e à repatriação do capital. O serviço do passivo
externo apresenta não somente um vazamento de renda para o exterior,
como também é o principal fator de desequilíbrio externo da economia
brasileira. Para ilustrar com um exemplo da história do Brasil, Getúlio Vargas
precisou de mais de 10 anos, no seu primeiro mandato, para reduzir signi-
fi cativamente a vulnerabilidade externa da economia brasileira herdada
da República Velha, associada ao elevado nível de endividamento externo.
Assim, durante o Governo Lula, o passivo externo (com destaque para
a dívida externa) continuará sendo uma restrição fundamental
ao desenvolvimento econômico do país.
Cenários no campo internacional 43
Após a apresentação de uma visão cultural abrangente, que esperamos
possa tornar-se concreta no novo Governo, e a construção dos cenários
político e econômico, passamos a apresentar as refl exões que o Inesc
vem desenvolvendo sobre seus temas prioritários de ação. Cada um destes
temas é respaldado em textos analíticos encomendados a especialistas,
sobre os quais a equipe desenvolveu suas próprias refl exões, que passaram
a permear os textos originais.
Assim sendo, destacamos as questões internacional, cultural, ambiental,
agrária, racial, indígena, da criança e do adolescente e de gênero. Estes
temas fazem parte de uma matriz política onde os campos dos Direitos
Humanos, da questão de gênero e da diversidade cultural são transversais
aos temas agrário, racial e étnico, crianças e adolescentes etc.
Os temas prioritários do Inesc
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200644
1. Cenários no campo internacional
O Inesc atua em três diferentes dimensões no campo internacional: a
questão comercial; a questão relacionada com o sistema fi nanceiro multi-
lateral e privado; e por fi m, as questões ligadas aos paradigmas de Direitos
Humanos. Em especial, o Instituto atua monitorando os acordos desenvol-
vidos no chamado Ciclo Social da ONU. A seguir, apresentamos os diferen-
tes eixos e articulações nos quais o Instituto tem participação ativa.
1.1 As Instituições Financeiras
Multilaterais
Com intensa participação do Inesc, a Rede Brasil, que reúne 64 organiza-
ções da sociedade civil com o objetivo de intervir nas questões relativas
às Instituições Financeiras Multilaterais – IFMs, atuou, em 2002, num cenário
de grande movimentação política e fi nanceira no contexto brasileiro.
Em pleno processo eleitoral, o Governo brasileiro solicitou um novo emprés-
timo ao Fundo Monetário Internacional – FMI, no valor de US$ 30 bilhões,
o que foi concedido por seu Conselho Diretor. Este novo acordo permitiu
uma primeira retirada imediata; e uma segunda, em dezembro de 2002.
O restante, US$ 24 bilhões, estará à disposição do Governo de Luiz Inácio
Lula da Silva ao longo de 2003. Deste total, US$ 4,6 bilhões estavam em
vias de serem liberados, até o fechamento desta edição, destinando-se ba-
sicamente à cobertura de débitos com agências fi nanceiras internacionais.
Tendo em vista o recente bom desempenho das contas externas brasilei-
ras, é possível, contudo, que o Governo abra mão, por ora, desta parcela.
O acordo foi obtido por meio de uma engenharia política sem preceden-
tes, pelo fato inédito de ter sido aprovado e assinado no encerramento
de um ciclo governamental. Outros países, como a Coréia do Sul, chegaram
a negociar acordos durante o período eleitoral, mas eles só foram efetiva-
dos após o resultado das eleições.
Ficou caracterizado, assim, um novo modelo de construção de acordos,
fechados à revelia da legislação nacional. De acordo com a Constituição
brasileira, qualquer acordo fi nanceiro externo deve ser analisado, debatido
e aprovado pelo Senado Federal, o que não ocorreu neste caso.
Outra característica do acordo fi rmado entre o Brasil e o FMI é que ele não
respeitou a Lei que estabelece o ciclo orçamentário. O acordo prevê a re-
visão do superávit primário de três em três meses. Com a alteração dos
índices da meta de superávit, o orçamento fi cou mais contraído. Isto pode
inviabilizar ainda mais a execução de políticas sociais capazes de combater
as desigualdades sociais e a pobreza, pois exigirá cortes de investimentos
e nos recursos destinados a programas sociais.
Cenários no campo internacional 45
Esse modelo de ação aplicada pelo FMI, pelo Banco Mundial e pelo Banco
Interamericano de Desenvolvimento10, instituições onde são obtidos em-
préstimos que permitem ao governo brasileiro honrar suas dívidas, acaba
gerando maior fragilidade, endividamento e retração econômica, criando
obstáculos para a realização dos programas de combate à desigualdade
e à pobreza. Fica evidente a insustentabilidade deste modelo de ajuste
econômico, o que recoloca a discussão sobre uma profunda revisão não só
dos conteúdos dos acordos com o receituário recessivo e privatista, como
sobre o papel e as estratégias destas instituições no cenário internacional.
1.2 Comércio internacional No Brasil, o debate sobre comércio internacional, em 2002, foi marcado
fundamentalmente pelas negociações sobre a Área de Livre Comércio
das Américas - Alca. O cronograma de negociações avançou conforme
o previsto no calendário e, em novembro, o Brasil assumiu a co-presidên-
cia do processo, juntamente com os EUA. Neste mesmo ano, encerrou-se
a fase de negociação de métodos e modalidades de negociação, tendo
início, desde outubro, as primeiras discussões em torno de tarifas de base
e das listas de ofertas de cada país. O Brasil, governado pelo presidente
Fernando Henrique Cardoso, tinha um compromisso com as negociações
da Alca. A partir do cenário sucessório incerto, os negociadores brasileiros
se esforçaram por garantir, o máximo possível, uma margem de manobra
para o próximo governo.
O envolvimento do Congresso Nacional brasileiro em debates relativos
à Alca foi reforçado a partir da ampliação de medidas protecionistas toma-
das pelo governo norte-americano, que recaíram sobre produtos nos
quais o Brasil se mostra mais competitivo, como aço e produtos agrícolas.
Nesse meio tempo, o presidente brasileiro, em visita à Argentina, deixou
claro o intuito do Governo de revigorar as bases do Mercosul.
Tais medidas recrudesceram a oposição à Alca dentro do próprio governo.
A criação de uma Comissão Especial da Alca, na Câmara dos Deputados,
e de uma Subcomissão de Comércio Exterior, pela Comissão de Assuntos
Econômicos do Senado Federal, ampliaram os espaços de debate anterior-
mente capitaneados pelo Executivo e pelo grande empresariado nacional.
No Itamaraty, foi realizada uma única reunião da Seção Nacional de Coorde-
nação dos Assuntos Relativos à Alca - Senalca. Este foro padece do
hermetismo das informações, só compreensíveis por iniciados.
10 Instituições da família Bretton Wodds, criadas no pós-II Guerra, com papéis diferenciados, mas que, no caso de empréstimos, como o mencionado do FMI, acabam atuando em bloco para fi nanciar o pagamento da dívida pública.
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200646
A Rede Brasileira pela Integração dos Povos -Rebrip, da qual o Inesc partici-
pa na coordenação e é interlocutor junto ao Parlamento, tem capitaneado
a pressão social pela abertura e transparência do debate sobre as questões
comerciais.
Junto à sociedade, o clima diante das negociações é, no mínimo, de cautela.
Alguns poucos setores empresariais são francamente favoráveis à criação
da Área de Livre Comércio das Américas tal como ela está hoje formatada.
Nos movimentos sociais, sindicatos e ongs, congregados em grande medida
na campanha contra a Alca, o sentimento é abertamente contrário à exis-
tência da mesma, que é vista fundamentalmente como uma estratégia
de dominação norte-americana sobre os demais países da região e que
só deve piorar as condições de vida da população.
O Inesc, por meio da Rebrip, integra essa Campanha que, por sua vez,
faz parte da Campanha Continental contra a Alca, capitaneada pela Aliança
Social Continental. Durante o encontro paralelo da sociedade civil que
ocor reu em Quito, no Equador, em 2002, por ocasião da reunião Ministerial
da Alca, foram reforçadas e ampliadas as articulações em torno da Cam pa-
nha Continental contra esse modelo, com a previsão do estabelecimento,
em diversos países, de mecanismos de consulta popular, a exemplo do
plebiscito popular realizado no Brasil na Semana da Pátria, no qual mais
de 10 milhões de brasileiros se manifestaram contrariamente à existência
da Alca.
O Congresso, em fi m de Legislatura, funcionou em ritmo lento e quase
que exclusivamente no primeiro semestre. Todavia, algumas atividades
voltadas para o debate do comércio exterior brasileiro foram encaminhadas.
O Legislativo é um espaço que deve ser provocado para que os temas
comerciais sejam colocados na agenda prioritária.
As ongs e os movimentos sociais têm enfrentado difi culdades para institu-
cionalizar e aprofundar seu diálogo com o Itamaraty sobre a questão Alca,
de forma a ter maiores informações sobre as negociações do que aquelas
repassadas de forma superfi cial nos briefi ngs ofi ciais. Um bom exemplo
disso é o fato de que os documentos negociados, como regra, não têm
sido disponibilizados para as ongs, enquanto têm sido passados
regularmente aos empresários.
A estratégia da Rebrip é a qualifi cação da intervenção por meio de estudos
realizados pelo grupo nas áreas de interesse e a criação de uma Frente
Parlamentar para atuar sobre os temas internacionais.
Cenários no campo internacional 47
1.3 O debate sobre cidadania O Social Watch –SW nasceu em 1995, após a Conferência Social de Copenha-Social Watch –SW nasceu em 1995, após a Conferência Social de Copenha-Social Watch –SW
gue e a Conferência das Mulheres, ambas promovidas pelas Nações Unidas,
com a missão de monitorar, pressionar e infl uenciar a implementação dos
compromissos internacionais assumidos pelos países signatários. O grande
desafi o desta proposta sempre foi o exercício de articular o plano das deci-
sões internacionais e seus respectivos impactos nos planos nacionais.
A coalizão SW é constituída hoje por cerca de 50 países que utilizam as
mais diversas estratégias para dar conta de sua missão de monitoramento
e de advocacy dos acordos internacionais no plano nacional e vice-versa.
Estas ações são apresentadas na forma de publicações, seminários nacionais
e internacionais, lobby junto à ONU, acompanhamento das Conferências, lobby junto à ONU, acompanhamento das Conferências, lobby
elaboração de metodologia comum de acompanhamento, construção
de indicadores, etc. O crescimento de sua importância ao longo dos anos
foi tão grande que na Conferência Mundial de Revisão, após cinco anos,
realizada em Genebra, o Secretário Geral da Rede Internacional SW
foi chamado para abrir os trabalhos ofi ciais.
O Social Watch no Brasil nasceu com o nome Observatório da Cidadania
– OC, em 1996, e foi constituído através do Grupo de Trabalho - GT -
de Referência. O OC é formado por cinco ongs de diferentes qualifi cações
e abrangências temáticas. São elas: SOS Corpo, Inesc11, Centro de Estudos
de Cultura Contemporânea -Cedec, Federação dos Órgãos para Assistência
Social e Educação -Fase e o Instituto Brasileiro de Análises Socio-
econômicas -Ibase, que faz a coordenação Executiva.
O objetivo do Grupo de Referência foi construir uma articulação entre
as organizações da sociedade civil organizada no plano internacional.
O primeiro momento compreendeu a construção de metodologia e
indicadores de acompanhamento dos processos de implementação dos
acordos no âmbito nacional. Foi neste momento que o grupo brasileiro
se organizou, com projeto próprio, de forma permanente. Ele vem atuando
segundo as demandas da rede internacional, além de criar mecanismos
e instrumentos próprios de análise da realidade brasileira.
Durante o período de 1999/2000, os esforços foram concentrados na rea-
lização das Conferências Copenhague+5, Cairo+5 e Beijing+5. Em 2001 e
2002, o Grupo esteve focado nos debates ligados às Conferên cias contra
o Racismo de Durbam, na África do Sul, e a do Financiamento ao
Desenvolvimento de Monterrey, no México.
11 O Inesc faz parte do GT Referência brasileiro desde 1996. Durante 2002, o Inesc participou de toda as reuniões do grupo, produziu um texto para o relatório brasileiro e participou da Conferência sobre o Financiamento ao Desenvolvimento, no México.
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200648
O GT Referência chega ao fi nal de 2002 com uma avaliação das atividades
do Observatório da Cidadania - OC, no Brasil, que demonstrou o grande
avanço na construção de metodologia, instrumentos e processos de moni-
toramento e diálogo com diferentes parceiros. Mas fi cou evidente a neces-
sidade de promover alterações metodológicas, organizacionais e nos for-
matos dos produtos. Isto porque a realidade social e política se transformou
profundamente tanto no âmbito nacional quanto internacional, gerando
novos cenários e perspectivas.
O que nos parece claro é que teremos que promover um grande esforço
para fortalecer a articulação com outras Redes e Fóruns e dar maior visibi-
lidade aos conteúdos elaborados, para que possamos enfrentar o duro
cenário de retrocesso estabelecido no âmbito internacional.
2. Cenários no campo da cultura
No Brasil, pensa-se e faz-se muito pouco políticas públicas de cultura.
Mesmo as políticas culturais restritas a ministérios ou secretarias de cultura
são limitadas. Com o advento das leis culturais, a realização da cultura coube
ao mercado e muitos Governos abriram mão de políticas. Restaram linhas
de fi nanciamento à cultura, enquanto os grandes temas passavam em
branco. Implementou-se uma globalização perversa e acrítica; importamos
produtos e modos de ser que banalizam a vida da população; não inter-
ferimos na produção dos meios de comunicação; a produção artística se
mercantiliza; os valores de convivência não estão em questão; o papel da
indústria cultural não é posto em debate. Quase sempre a mesma clientela
é benefi ciada com os recursos da cultura, principalmente grandes produções
e artistas já consagrados ou com potencial de mercado.
Deve-se pensar seriamente na inversão de prioridades. Atingir, através
de políticas, orçamentos, espaços e atividades, as populações desprovidas
das cidades e do interior, fazendo da cultura um fator de integração e de
afi rmação de identidades, de acesso aos bens, valores e fazer artístico
e cultural.
49
Para isso, será necessário:
2.1 Criar políticas para
a pequena e média produção
Estimular grupos formais e informais, subsidiando-os com pequenos
valores para impulsionar a criação artística e cultural, o acesso à produção
de qualidade e a cidadania cultural de indivíduos, grupos e movimentos
culturais. Por exemplo: junto ao combate emergencial à fome poderão
ser criados programas e projetos sobre a fome de cultura, estimulando
pequenos trabalhos coletivos ligados a esta prioridade.
A valorização de pequenas iniciativas culturais deverá atender não somente
artistas, mas todo o circuito cultural de criação e acesso ao debate pú blico,
e a capacitação para o fazer cultural. Deve ser facilitado o acesso a fundos
pelo caráter de subsídio, e promovidas a desburocratização e a dissemi-
nação de pontos de inscrição.
2.2 Criar lugares públicos
para a vida cultural
Um dos problemas mais relevantes da exclusão cultural é a ausência
de lugares que possam ser verdadeiramente apropriados pela população
para o exercício da sua cidadania cultural – produzir e criar cultura, acesso
aos bens e equipamentos, participação nos processos culturais, decisão
sobre o fazer cultural, pertencimento à uma comunidade e à ecologia
cultural.
Cenários no campo da cultura
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200650
Mesmo nas grandes capitais, como São Paulo, existem perímetros com
mais de um milhão de habitantes praticamente sem equipamentos cultu-
rais. A criação de equipamentos poderá ser estimulada em todo o país,
a baixo custo, com linhas de fi nanciamento próprias, com o apoio do
Estado e das prefeituras. Poderão ser pontos de encontro, criação de diver-
sas linguagens, lugares de debate público e apresentações de eventos.12
Por outro lado, as atividades devem sair dos templos tradicionais para
a ocupação da rua e da praça, lugares privilegiados para a realização da
cultura. Estes espaços, articulados com equipamentos públicos, poderão
possibilitar o acesso dos jovens a linguagens artísticas, ao fazer cultural e,
também, prepará-lo para o mundo da economia e do mercado de trabalho.
2.3 Criar contribuição para
projetos de inclusão cultural
A idéia aqui é estabelecer contribuições progressivas nas leis de incentivo,
para gerar recursos para projetos de inclusão, e gerando assim a devolução
social. Mesmo que as leis de incentivo estimulando parcerias Governo-
empresas não sejam eliminadas, podem ser criados dois dispositivos im-
portantes para neutralizar o seu funcionamento excludente. Um deles
é um fundo para projetos culturais à partir dos incentivos fi scais, de modo
a garantir a devolução pública para populações sem acesso à fruição da
cultura, como estabelece a nova lei cultural do município de São Paulo
proposta pelo vereador Nabil Bonduki.
Pode-se também criar uma escala, de acordo com o valor do projeto
aprovado, onde automaticamente o recurso cairia num fundo de pequenos
projetos culturais. Circulação da obra ou evento, número de vagas gratuitas
para cursos, ingressos para show ou teatro, lugares para participar de de-
bates e bolsas gratuitas poderão estimular o projeto a sair de seu circuito
limitado onde atende exclusivamente o seu público preferencial.
2.4 Aumentar o orçamento
da cultura
Em um Governo de inclusão a cultura terá que necessariamente ser consi-
derada estratégica para o desenvolvimento. Com suas leis culturais o Brasil
privatizou as políticas de cultura, deixou a realização da cultura nas mãos
de empresas enquanto pensa em políticas sociais supostamente mais
importantes. O fato é que para intervir na cultura de forma signifi cativa é
necessário compreender que não há inclusão social sem inclusão cultural
e que cultura é componente vital da qualidade de vida de um país.
O desenvolvimento cultural, de responsabilidade do Estado, é impossível
de concretizar-se com 0,25 % do orçamento da União, sabendo-se que
mais de 70% deste percentual são destinados a custos fi xos.
12 Este é um trabalho que já existe com muito sucesso, como é o caso dos Barracões Culturais da Cidadania, projeto mais importante da Secretaria Municipal de Cultura de Itapecerica da Serra, São Paulo. Inicialmente concebidos para serem construídos com eucalipto e taipa, acabaram recebendo fi nanciamento para sua realização de forma simples e em vários bairros da periferiada cidade. Em 13 pontos da cidade são oferecidas ofi cinas de teclado, pintura, canto coral, teatro, piano, etc. Constituem-se em pontos de sociabilidade entre jovens e de referência para a população local debater os seus problemas. Estes lugares são pontos irradiadores de cultura em geral e potencia-lizadores da cultura local, com suas festas e tradições, sua criatividade e formação para a cidadania.
51
Nos parece fundamental alterar este percentual de forma a permitir que
as ações do Ministério possam ser potencializadas com leis de incentivo
reformuladas, fundos de pequenos projetos, linhas específi cas de fi nancia-
mento a projetos sócio-culturais pelos bancos públicos e privados e inte-
gração de políticas públicas.13
2.5 Potencializar a integração
das políticas públicas
O debate público, a análise de experiências de desenvolvimento cultural
do Pólis Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais
e as propostas do Fórum Intermunicipal de Cultura – FIC - têm concluído
sobre a importância da integração de políticas públicas. Por vários motivos:
a cultura não é apenas uma dimensão da realidade que requer uma ação
departamentalizada; a ação cultural poderá ser ampliada ao aproveitar-se
de recursos, equipamentos e programas de outros órgãos que trabalham
com políticas sociais; a cultura é cenário onde se movem atores relevantes
ou não e experiências de vida e os processos econômicos, religiosos,
sociais e políticos trazem inevitavelmente a presença viva da cultura.
Assim, cada órgão gestor deve no futuro defi nir políticas de cultura e mo-
bilizar recursos e agentes culturais. Há uma cultura da saúde, do transporte,
da segurança alimentar, da agricultura e da indústria. A criação do Ministério
da Cultura, Educação, Ciência e Tecnologia e Comunicações poderia ser
positiva, desde que cada secretaria tivesse recursos sufi cientes para sua
ação e não houvesse abandono de uma ou outra área como geralmente
acontece.
Mesmo partindo da existência de ministérios distintos, pode-se sugerir
que a articulação cultura-educação deverá ser caminho necessário para
a implantação de políticas de cultura. Culturalizar a escola – educando
professores e estudantes para outros processos educativos, para a consci-
ência de que o saber é mais amplo que a escola, abrindo as portas das
instituições escolares para a comunidade e a pluralidade de culturas exis-
tentes – poderá contribuir para a cidadania cultural.
O alcance das políticas públicas de cultura nesta visão transdisciplinar
poderá ser potencializado se houver integração de políticas e ações inter-
secretariais. Muitas secretarias de cultura de municípios brasileiros viveram
esta experiência, embora em pequena escala, mas com bons resultados
para a população local.
Cenários no campo da cultura
13 Ocorrem debates sobre o percentual e propostas que orçam em torno de 2% do orçamento público o percentual que deveria ser direcionado para o setor cultural.
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200652
2.6 Descentralizar
a ação cultural
A descentralização é tema dos mais relevantes para as políticas públicas
de cultura, principalmente se levarmos em conta a impossibilidade de
invertermos prioridades e públicos sem atingirmos massivamente a po-
pulação. A ação cultural descentralizada permite a valorização das identi-
dades e diversidades locais, a valorização e a criação de novos repertórios
culturais e o exercício da democracia cultural como realização da cultura
por todos. Permite também entender a população não como especta-
dora dos processos culturais ou consumidora de cultura, mas como parti-
cipante ativa dos processos culturais. A ação descentralizada não pode ser
confun dida com mera descentralização de equipamentos como comu-
mente acontece. Deve possibilitar o exercício da autonomia como o fundo
comum das políticas públicas e a criatividade como fundadora da cultura.
2.7 Globalização,
identidade e diversidade
Este é o momento de defi nirmos o lugar cultural do Brasil no processo de
globalização. Se estamos conectados com o mundo desde nossas origens,
nem por isso devemos estar abertos a qualquer globalização, especialmen-
te aquela que nos entende apenas como mercado para os produtos glo-
bais ou escoadouro da indústria cultural da pior qualidade, das drogas cul-
turais, dos lixos do imaginário. É só vermos os fi lmes da TV ou grande parte
da produção fonográfi ca ou de livros para sabermos o que não queremos.
Se a globalização é irreversível e nada original, é necessário nos abrirmos
para uma boa globalização, de qualidade, de seleção com critérios críticos
voltados para as ricas trocas interculturais, cosmopolitas, completando-se
em outras culturas. É inaceitável o tipo de globalização que mercantiliza
nossa vida concreta e imaginativa. É preciso buscar um encontro multicul-
tural das diferenças. Para isso, precisamos abrir um grande debate público
sobre o país que queremos – no Governo, no Parlamento, nos equipa-
mentos públicos, nas universidades e escolas e, principalmente, nas ruas.
Recentemente, o Grupo de Trabalho de Cultura do Fórum Social Mundial
e a Aliança por um Mundo Responsável, Plural e Solidário dirigiram-se para
sete pontos da cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, para conver-
sar com a população sobre o mundo e o país que queremos. É necessário
reproduzir esta experiência em todos os níveis para gerar uma verdadeira
cultura da identidade e da diversidade.
É necessário gerar uma cultura do “ser Brasil”. Somos um país rico em diver-
sidade – de origens, regiões, etnias e raças, modos de vida, tribos, religiões,
atividades produtivas, criação artística e cultural, formas de gêneros, opções
sexuais, escolhas de vida, etc.
53
Esse caldeirão de 170 milhões de habitantes criou no mosaico de experi-
ências culturais um modo peculiar de ser, apenas compreendido profunda-
mente a partir do contato com outras culturas do planeta. O Brasil, embo-
ra não seja paradigma da diversidade ou da convivência entre diferentes,
sabe, de alguma forma, combinar seu senti mento religioso e a vida profana
e material; a simplicidade e a informali dade com o respeito solene; o pensa-
mento selvagem e a racionalidade; a convivência da ancestralidade com
o moderno; as raízes e a capacidade inventiva; a efi cácia com a criatividade;
um equilíbrio entre o sofrimento e a alegria; a sensualidade e o movimen-
to corporal, apesar da vida industrial e o rigor do cotidiano; um sentimen-
to de paz em um cenário de desastre; um bom humor mesmo na derrota.
Este povo mestiço e aberto a várias infl uências, oriundo de matrizes cultu-
rais indígenas, negras e européias, sofrendo infl uências de todo o mundo,
sempre reelaborando a vida em processos criativos, poderá dar um grande
salto, desde que os governantes e a sociedade hajam com responsabilida-
de cultural.
Os processos culturais são plurais, transculturais e em mutação constante.
Se as identidades fossem estáticas, estaríamos submetidos às raízes e não
abertos à invenção de novas realidades e novos mundos. Mas negar raízes
é esquecer que nos fazemos pela memória e pelas heranças culturais. Não
podemos perder nossa origem nem esquecer quem somos. Nossa inven-
ção nos diz onde estamos e onde queremos chegar. A invenção nos liberta
do passado, atualiza nossos mitos e nos prepara para as possibilidades
do novo, do sonho e da utopia.
É equivocado pensar em identidades com a ótica da oposição entre
po pular e erudito. Alguns pensam em cultura apenas como o reforço de
manifestações da arte popular, negando o clássico e mesmo o experimental,
que não nasceram necessariamente dos mitos e raízes ou mesmo do
conhecimento popular. O mais importante é a qualidade cultural
e não o lugar de sua origem ou o caráter do processo criativo.
No entanto, é vital para nossa cultura fortalecer raízes e boas escolhas,
não deixá-las desaparecer no caudal da indústria cultural de má qualidade.
Como afi rma o documento elaborado durante o Fórum Intermunicipal
de Cultura -FIC: “O desenraizamento cultural é um dos principais resultados
da globalização; ele desfaz modos de vida local e expropria milhões de indi-
víduos de suas referências. Todo um processo cultural entra em decadência,
oferecendo-se um padrão fabricado pelo consumo, que tem na mídia um
emulador permanente, que busca pasteurizar todo e qualquer tipo de di-
ferença.
Cenários no campo da cultura
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200654
Trata-se hoje de incorporar políticas públicas de resistência à globalização
cultural, não como ilusão purista de retorno a um passado estático, mas
construir um futuro que não seja um modelo padronizado; que admita a
existência de modos de vida diferentes que, por sua vez, criam processos
simbólicos e culturas também diversas. É preciso impedir que a globaliza-
ção seja a anulação das diferenças e a integração a um mundo uniforme
e desumano. É preciso, pois, garantir o direito à ancestralidade
e o direito à invenção”.
Assim, Governo, entidades, movimentos da sociedade civil e os vários
atores sócio-culturais deverão trazer o debate sobre o lugar cultural
do Brasil na globalização. Com esse objetivo, algumas idéias poderão
ser implementadas:
• Debate público nas várias regiões do país sobre a defesa
da cultura brasileira e suas relações com a cultura global;
• Políticas públicas de apoio a manifestações culturais da população
- ancestrais e contemporâneas, consagradas e experimentais,
de origem popular ou não, em todas as linguagens
que reforcem o modo de ser Brasil;
• Defesa da produção e distribuição de produtos
culturais brasileiros do livro, das artes, do audiovisual;
• Programas de difusão das línguas portuguesa, indígena e africana;
• Defesa da produção da indústria cultural brasileira
de qualidade técnica e ética;
• Debate público sobre o papel dos meios de comunicação
e a construção da identidade brasileira;
• Valorização e resgate da cultura alimentar, da medicina
e da cultura dos povos que compõem o Brasil.
Estes são alguns pontos mínimos de uma agenda para enfocar a questão
identitária. É hora de compreendermos que a pura adesão espontânea
a valores de outras culturas pode resultar em descaracterização e mesmo
em uniformização do imaginário pretensamente universal. Países como
a França e Espanha têm hoje políticas de promoção da língua, do patrimô-
nio cultural e histórico e da sua indústria cultural de produtos e imagens
frente ao avassalador processo de mundialização. No caso do Brasil, sem-
pre fomos uma fronteira colonial onde consumimos tudo sem critérios.
55
Por exemplo, nos últimos anos promovemos uma desenfreada banalização
da língua ao importar palavras com similares nacionais. Promover as línguas
de nossos ancestrais indígenas, africanos, a língua portuguesa e a contri-
buição dos imigrantes é importante para nossa identidade. Isto não quer
dizer a defesa de um nacionalismo estreito, mas ao contrário, a abertura
ao mundo sem a descaracterização da essência e da vitalidade cultural
brasileira. Mestre Didi, guia espiritual e líder negro da Bahia, tem uma chave:
”Evoluir sem perder a essência”.
O processo identitário se fortalece com trocas interculturais de qualidade.
O nosso imaginário tem sido povoado de ícones do mundo colonialista-
mercantil, depois pelo racionalismo das nações européias negando nossos
mitos e cosmogonias negras e indígenas; e após, pela presença massacran-
te do american way of life. Pensamos que é o momento de se abrir para
outras trocas e estimular relações comerciais e culturais com nações
da América Latina, África e Ásia.
As políticas públicas de cultura podem conectar-se com a campanha con-
tra a fome e reforçar a cultura alimentar do país, descaracterizada nos anos
recentes pelos alimentos fast food e pela variedade de produtos ocos, isto é, fast food e pela variedade de produtos ocos, isto é, fast food
sem nutrientes sufi cientes para a saúde da população. Estas atividades cul-
turais podem gerar renda e se constituir em sustentabilidade cultural do
ponto de vista do mercado e da difusão de valores de promoção humana.
Os Governos, além de apoio econômico, poderão qualifi car agentes cultu-
rais envolvidos nestas atividades e apoiar estudos, pesquisas históricas,
formação de associações culturais e cooperativas de defesa da cultura.
Vale lembrar os projetos do Governo do Acre de valorização da cultura
da fl oresta – Florestania, a cidadania da fl oresta –, que envolvem desde
valores até a realização de feiras com produtos oriundos da fl oresta ama-
zônica, artes, etc. Particularmente, nas escolas podem ser valorizadas as
culturas matrizes do Brasil em todos os seus aspectos, incluindo-as nos
currículos e abrindo o espaço escolar para atividades culturais.
A afi rmação da identidade e da diversidade é a riqueza cultural de um
país para se evitar a colonização do imaginário. Não se pode esquecer
que mesmo o imaginário brasileiro é pleno de confl itos, pois constituído
por valores e símbolos dos vencedores que devem passar pelo crivo
do debate público.
Cenários no campo da cultura
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200656
Para fi nalizar, como disse Boaventura de Souza Santos, professor
de sociologia da Universidade de Coimbra, Portugal:“uma vez que todas as culturas tendem a distribuir pessoas e grupos
de acordo com dois princípios concorrentes de pertença hierárquica,
e, portanto, com concepções concorrentes de igualdade e diferença,
as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando
a dife rença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade
os descaracteriza”.
Em versão análoga, dita por Terena, líder indígena do Brasil:
“Eu posso ser quem você é sem deixar de ser quem sou“14.
A construção da universalidade passa pelo particular.
Ao me constituir como sujeito, posso me igualar com outro.
Se não tivermos consciência da cultura que queremos
– pois tanto a valorização de raízes como os valores a serem
praticados são escolhas – difi cilmente deixaremos de ser
o escoadouro da má cultura dos países hegemônicos.
14 FARIA, Hamilton, GARCIA, Pedro. Cadernos de propostas para o século XXI: arte e identidade cultural na construção de um mundo solidário. Polis, São Paulo, p. 15, out. 2001.
57
3. Cenários no campo sócio-ambiental
O ano de 2003, para as ongs e movimentos sociais que trabalham no
campo democrático e popular, apresentará desde o início uma realidade
historicamente inédita, que forçosamente estará no centro da nossa
refl exão política e do nosso planejamento estratégico.
Não resta dúvida, em sentido bastante prático, que a proximidade com
este Governo, em comparação com os anteriores, será muito maior em
termos de programas e objetivos, interlocução e conhecimento pessoal
dos ocupantes. Algo neste sentido já vinha ocorrendo com alguns setores
do Governo Fernando Henrique Cardoso, devendo radicalizar-se
com vários setores do Governo Lula.
Por este mesmo motivo, não obstante o reconhecimento da grande vitória
popular que esta eleição representou, e a realidade do nosso engajamento
entusiasmado na mesma, é mais do que nunca importante preservar e
defender a autonomia e o senso crítico das organizações da sociedade civil.
O natural aproveitamento do potencial concreto desta conjuntura e das
possíveis parcerias com o Governo popular não deve se confundir, como
já apontamos outras vezes no decorrer desse trabalho, com uma simples
adesão à liderança do Executivo. Até porque, como veremos adiante, exis-
tem vários riscos e problemas potenciais para a atuação do novo Governo
no campo sócio-ambiental que aqui está sendo focalizado.
Cenários no campo da cultura
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200658
Não se trata, por certo, de fazer oposição ao Governo Lula. Isto seria estrategi-
camente desastroso, ajudando a debilitá-lo diante das forças conservadoras
que a muito custo foram derrotadas e difi cultando, para nós, o bom aprovei-
tamento das inúmeras oportunidades de ação transformadora que com
ele foram abertas. É preciso considerar o novo Executivo como parte
do nosso campo, assumindo-se uma postura cuidadosa no exercício
da sua crítica, sem nunca esquecer o contexto político mais amplo. Este
cuidado não pode signifi car, porém, um bloqueio da liberdade de crítica,
que de fato constitui uma garantia de vitalidade para os Governos real-
mente democráticos e não pode deixar de ser exercitada de acordo
com necessidades estrategicamente estabelecidas.
É importante reconhecer, no plano interno, a heterogeneidade da coalizão
de forças que elegeu Lula, inclusive no que se refere ao universo interno
do PT. O programa de Governo é vago em muitos aspectos, abrindo espaço
para que uma série de decisões importantes sejam tomadas através de
uma natural disputa política, que esperamos não leve à autofagia que
muitas vezes debilitou historicamente o avanço das esquerdas. É provável,
neste sentido, que muitas decisões não sejam tomadas através da vitória
simples desta ou daquela posição, mas sim através de composições e acor-
dos. Qualquer proposta, além disso, corre o risco de ser derrotada se des-
conhecer as tendências e limitações da conjuntura nacional e mundial.
Por este motivo, um raciocínio estratégico fi no se faz especialmente
necessário.
No campo sócio-ambiental, por exemplo, é fundamental analisar os riscos
e as oportunidades que a conjuntura atual oferece. Após anos de hege-
monia das políticas neoliberais, que frearam o crescimento econômico
do país, desgastaram sua infra-estrutura, transferiram uma enorme fatia
da renda nacional para o setor fi nanceiro e ampliaram o desemprego
e a pobreza, o Governo Lula deverá ser necessariamente produtivista.
A liberação das forças produtivas, como saída para o sufoco do endivida-
mento, é um compromisso básico do novo Governo, tendo sido inclusive
a isca essencial para o apoio recebido por importantes setores do empre-
sariado produtivo, cansados dos privilégios concedidos aos agentes
fi nanceiros.
A reconstrução e ampliação da infra-estrutura também será um imperati-
vo fundamental para alimentar o novo ciclo de crescimento. Diante desta
perspectiva, não é difícil imaginar o nervosismo potencial de setores con-
servacionistas e ambientalistas, que se consideram defensores do mundo
natural diante de qualquer avanço da produção humana.
59
Para uma visão sócio-ambiental ou de ecologia política, no entanto, é pos-
sível levar em conta as nuances e oportunidades de um processo deste
tipo, sem deixar de considerar com preocupação os seus riscos potenciais.
Uma grande novidade do Governo Lula, por exemplo, deverá ser a ênfase
no atendimento das necessidades populares por infra-estrutura e bens de
consumo, promovendo a criação de um mercado popular interno alimen-
tado por políticas distributivas. Ao lado do apoio à grande produção expor-
tadora, que se apresenta no curto prazo como a alternativa menos perversa
para a busca de moeda forte e a redução da vulnerabilidade externa,
o Governo prometeu adotar, como disse no primeiro discurso o presidente
eleito, “uma inversão de prioridades no fi nanciamento e no gasto público,
valorizando a agricultura familiar, o cooperativismo, as micro e pequenas
empresas e as diversas formas de economia solidária”.
Apesar da promessa de apoiar o produtivismo em ambas as frentes
(infra-estrutura e bens de consumo), é necessário considerar, em termos
práticos, o potencial de tensão presente na disputa entre o setor expor-
tador e o setor do consumo popular, tanto no plano econômico, consi-
derando a escassez de recursos orçamentários, quanto no plano sócio-
ambiental. O grande empresariado, herdeiro do elitismo perverso da vida
brasileira, deverá reivindicar, em nome do desenvolvimentismo e do ex-
portacionismo, a parte do leão do apoio econômico governamental, evi-
tando na prática a inversão de prioridades mencionada anteriormente.
O que apoiar na prática: os grandes exportadores que geram moeda forte
ou as pequenas iniciativas locais que geram trabalho e democratizam
a renda? As lavouras de soja ou a agricultura familiar de alimentos básicos?
A tendência histórica do PT seria apoiar o segundo campo, mas é obvio
que isto será objeto de uma forte disputa política. As dimensões ambientais
desta disputa são também previsíveis: o grande empresariado, e também
partes do médio e do pequeno empresariado, podem reivindicar, em nome
do mesmo desenvolvimentismo, um vale tudo produtivo, um afrouxamento
dos controles ambientais sobre a produção e das restrições às fontes ener-
géticas sujas.
Tudo isso deve ser objeto de uma refl exão estratégica, tanto nos aspectos
positivos quanto nos negativos. A vitória efetiva de uma política que priori-
ze o atendimento das necessidades populares, por exemplo, especialmente
no campo do saneamento, abre oportunidades extraordinárias para pro-
movermos a justiça ambiental, a qualidade de vida, o combate à poluição
e o estabelecimento de padrões sustentáveis de produção e consumo.
Cenários no campo sócio-ambiental
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200660
É necessário superar a visão simplista de que existe uma incompatibi lidade
universal entre o cuidado ambiental e o produtivismo. Nas sociedades
de alto padrão de consumo do Primeiro Mundo, onde vive cerca de 1/5
da humanidade, a busca da sustentabilidade requer, efetivamente, que se
freie o crescimento econômico e se reduza drasticamente o consumo
de recursos naturais.Mas não se pode adotar uma estratégia única de tran-
sição para a sustentabilidade. Para a maior parte da humanidade, especial-
mente para as massas empobrecidas do Terceiro Mundo, a sustentabilidade
sócio-ambiental requer o aumento da produção para melhorar as condi-
ções materiais de vida e superar a poluição da miséria (como no caso
da ausência de saneamento).
Não se trata de culpar a pobreza pela degradação ambiental global, como
se pretendeu durante a Rio +10, mas sim de promover a busca de uma
linha de dignidade social e ambiental como política prioritária de Governo.
Um país como o Brasil, no quadro do espaço sócio-ecológico global, pos-
sui uma considerável margem legítima de crescimento econômico. Este
crescimento, por outro lado, é condição necessária para a susten tabilidade,
inclusive ambiental, desde que privilegie padrões de produção e consumo
ecologicamente benéfi cos e seja realmente democrático, promovendo
a dignidade da maioria pobre da população ao invés de concentrar renda
na elite minoritária (como tantas vezes aconteceu na história do Brasil).
Em suma, o produtivismo do Governo Lula apresenta riscos e oportunidades.
É preciso estar preparado para resistir a alguns dos seus possíveis impactos
perversos, como se discutirá adiante. A prioridade estratégica inicial para
as ongs, no entanto, deve ser a de trabalhar pelo “esverdeamento” da agenda
social positiva, demonstrando a compatibilidade prática entre o cuidado
ambiental e a promoção da justiça, da qualidade de vida e do
desenvolvimento humano.
É altamente desejável a criação de sinergias e confl uências entre boas
políticas ambientais e sociais. A política de combate à fome, por exemplo,
pode impulsionar a agricultura familiar agroecológica ou agrofl orestal,
fortalecendo a fi xação e a melhoria das condições de vida das comunidades
rurais/fl orestais, assim como o desenvolvimento regional sustentável,
inclusive através de uma nova interação entre espaços rurais, urbanos e
“rurbanos” (que transitam entre os conceitos de rural e urbano). A reforma
agrária, nesta visão, pode ser um instrumento de justiça ambiental e de
política ambiental, democratizando o acesso à terra e seus recursos e pro-
movendo a criação de paisagens rurais sustentáveis e equilibradas.
61
A política de saneamento, por outro lado, pode ser um instrumento
precioso de justiça ambiental, dotando os grandes contingentes margina-
lizados da população de condições decentes de acesso à água limpa,
ar puro, áreas verdes, coleta e tratamento de lixo, espaços livres
de poluição forte, etc.
Este “esverdeamento” da agenda social positiva, porém, que cada organiza-
ção da sociedade civil poderá promover e aproveitar de acordo com seu
programa de trabalho, não será capaz de resumir a ação do movimento
sócio-ambiental em 2003. Será necessário estabelecer também uma agen-
da negativa ou de resistência. Esta agenda precisará ser estrategicamente
inteligente, evoluindo de acordo com as necessidades e a conjuntura.
Por exemplo: no médio e longo prazos, uma política de apoio às exporta-
ções de recursos naturais para o Primeiro Mundo é maléfi ca para a susten-
tabilidade global, pois fortalece a concentração do uso destes recursos nas
mãos de uma minoria planetária, alimentando seus padrões de consumo
insustentáveis e impedindo a sua redistribuição global para implementar
eqüitativamente o desenvolvimento humano dos diferentes povos.
Denunciar uma política de exportações desde o primeiro momento, no
entanto, seria desconhecer a situação difícil do novo Governo no campo
do endividamento de curto prazo. Estratégia melhor seria apoiar a agenda
positiva de direcionar fundos públicos para a segurança alimentar e o
aten dimento das necessidades infra-estruturais da população pobre,
que na prática contribui para a redistribuição já mencionada, mantendo-se
a questão dos padrões globais de consumo no plano do debate para
uma transformação de mais longo prazo.
Na política concreta, no entanto, este tipo de estratégia pode inviabilizar-se
devido às demandas da conjuntura e às disputas políticas por recursos
escassos. Aceitar a continuidade na construção de usinas nucleares ou
grandes hidrelétricas, por exemplo, apenas por ser um Governo popular,
seria trair o Movimento dos Atingidos pelas Barragens - MAB - e outros
movimentos que sempre denunciaram o autoritarismo destes mega-
projetos.
Não podemos ser ingênuos. O grande capital quer continuar apropriando-
se do dinheiro publico e as obras de infra-estrutura serão objeto de fortes
disputas políticas. É importante aproveitar a presença do Governo popular,
e nossa relação com ele, como recursos políticos nesta disputa. É neste
momento que a discussão sobre as prioridades do Governo precisará ser
colocada com clareza, para além das promessas de jogo de soma positiva
(todos ganham) e do clima paz e amor que Lula usou taticamente
na sua campanha.
Cenários no campo sócio-ambiental
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200662
De toda forma, sem fazer oposição à priori, e estando abertos ao diálogo
e ao trabalho conjunto, é fundamental assumirmos uma posição de prin-
cípio no sentido de não aceitar a continuidade dos padrões perversos,
elitistas e anti-ecológicos que sempre caracterizaram os grandes projetos
de infra-estrutura no Brasil, mesmo que sob a roupagem do novo ciclo
de desenvolvimentismo. A continuidade da aliança com os movimentos
de resistência local, neste sentido, é um imperativo ético a ser seguido.
Em resumo, a posição estratégica que parece mais acertada no campo
sócio-ambiental para 2003 deve ser a de priorizar o “esverdeamento”
e o aproveitamento de todas as oportunidades da agenda social positiva
do novo Governo, sem abrir mão, porém, do monitoramento, da crítica
e mesmo da resistência, em aliança com os movimentos de base, diante
dos aspectos do crescimento econômico que possam ir fortemente
de encontro aos objetivos de construir um país justo e sustentável.
Para tanto, é necessário avaliar com realismo o potencial sócio-ambiental
do Governo popular. Em primeiro lugar, reconhecendo que não se trata
de um Governo verde ou mesmo eco-socialista. No programa do PT,
por exemplo, é chocante observar a ausência de palavras como fl orestas,
biodiversidade e agroecologia. Mesmo assim, por outro lado, sabemos
que existem importantes setores dentro do PT ou próximos ao partido
que incorporaram plenamente estas questões. Existem lideranças verdes
e eco-socialistas no partido e na coalizão que devem constituir os nossos
principais aliados. Há que se considerar, igualmente, que a abertura geral
para o diálogo será maior do que nos Governos anteriores.
Mesmo as muitas lideranças do PT que consideram a questão ambiental
pouco relevante, pelo menos em sentido prático deverão estar mais aber-
tas para o tema do que os tecnocratas do neoliberalismo. De toda forma,
o fortalecimento das lideranças especifi camente verdes e eco-socialistas
constitui um indicador básico na montagem do novo Governo. Neste sen-
tido, a presença da senadora Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente
abre um campo extraordinário de ação, mesmo considerando o poder
limitado da sua liderança. Do documento preparado pela Secretaria de
Meio Ambiente do PT para o programa de Lula, por exemplo, coordenado
pela senadora, apenas uma parte pequena foi aproveitada.
63
A mobilização inteligente e bem informada das organizações da sociedade
civil desta forma, será essencial no avanço destas políticas. O “esverdeamento”
do Governo Lula dependerá em grande parte da capacidade estraté gica,
conceitual e argumentativa dos setores sócio-ambientais. Será preciso de-
monstrar, com cada vez maior competência, a profunda conexão existente
entre a visão ecologista e a transformação democrática da socie dade.
Será preciso demonstrar a confl uência possível e necessária entre as polí ti-
cas de desenvolvimento humano, superação da pobreza, qualidade de vida,
cuidado ambiental e sustentabilidade. Será preciso, por fi m, produzir argu-
mentos fortes contra a continuidade de práticas e projetos econômicos
convencionais, em nome de valores éticos e de questões concretas de sus-
tentabilidade e contraprodutividade sócio-ambiental. O fortalecimento
organizacional e teórico/argumentativo do Fórum Brasileiro de Ongs e
Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, neste
sentido, será crucial, pois só uma articulação política ampla poderá acumu-
lar recursos políticos para fazer frente às pressões do grande capital na
defi nição do novo ciclo desenvolvimentista do Governo popular.
Após analisar o dilema político de fundo presente nas perspectivas sócio-
ambientais do Governo Lula, que apresenta questões essenciais para
a discussão da nossa estratégia para 2003, é necessário abrir brevemente
alguns espaços potencialmente estratégicos para o trabalho sócio-ambien-
tal em 2003, buscando apontar sua relevância na nova conjuntura política
que se inicia.
3.1 Saneamento
e Justiça Ambiental
Dos temas ambientais, este foi de longe o que ganhou mais espaço no
programa do PT, inclusive lançando mão do conceito de justiça ambiental.
Trata-se, de fato, de um campo prioritário, que apresenta uma oportunidade
única para aproximar políticas ambientais e sociais. A promoção do sanea-
mento básico signifi cará um grande avanço na qualidade de vida e na
redução do impacto ambiental que sua ausência representa para a socie-
dade brasileira. O saneamento pode associar-se sinergicamente ao com-
bate à pobreza, a democratização das políticas públicas e a consolidação
do apoio da maioria ao Governo popular. Os setores sócio-ambientais
devem estar preparados para intensas parcerias neste campo, que receberá
recursos consideráveis e necessitará de forte apoio na organização da cida-
dania, para que não ocorra de cima para baixo e de forma assistencialista.
Cenários no campo sócio-ambiental
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200664
É importante, neste sentido, chamar atenção para o conceito de justiça
ambiental, garantindo que as obras de saneamento sejam dirigidas para
a maioria injustiçada e para o enfrentamento da dívida social brasileira.
E também que estas obras incluam o fechamento dos focos de poluição
e degradação que se direcionam, prioritariamente, para os bairros habita-
dos pelas comunidades pobres. Este ponto é necessário porque os setores
empresariais já estão se articulando gulosamente para lucrar com estas
obras, podendo infl uenciar a manutenção do sentido elitista que sempre
as caracterizou, focalizando os bairros mais ricos e as obras mais fáceis
e lucrativas.
A questão dos executores das obras, aliás, é outro aspecto que deve ser
considerado. A construção civil é geradora de trabalho e renda, mas isso
pode ocorrer de forma concentrada, através de grandes empresas e
empreiteiras, ou através de cooperativas, pequenas empresas ou agentes
da economia solidária. As grandes empresas tendem a favorecer a adoção
de padrões de produção ambientalmente descuidados, além de aumentar
o custo e reduzir a qualidade das obras em sua busca por lucro fácil
(que tradicionalmente incluiu farto uso da corrupção). Para combater
esta possibilidade, é necessário que as obras sejam submetidas ao
controle social dos orçamentos participativos, das frentes populares
pelo saneamento e de outras ações semelhantes.
Cabe lembrar aqui a existência, no Brasil, do chamado capital empreiteiro,
conceito formulado pelo ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Carlos Lessa, atual presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social. Trata-se de um capital não-fi nanceiro, não-industrial
e nem comercial. O capital empreiteiro ganha, se reproduz e se amplia
nas obras públicas. Quanto maiores e mais custosas as obras, quanto mais
abertas as possibilidades de corrupção, melhor. Ele dispõe de um lobby
extremamente poderoso e usa a situação política de cada momento.
O novo ciclo desenvolvimentista que deverá inaugurar-se durante o
Governo Lula certamente já despertou seu apetite.
3.2 Agricultura Familiar,
Reforma Agrária
e Agroecologia
A reforma agrária também será prioritária para o Governo, até mesmo
em termos emergenciais, já que a agricultura familiar, junto com
a construção civil, é uma grande geradora de trabalho e renda.
Existe a informação de que Lula comprometeu-se com o Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra - MST - a assentar em 2003 as 80 mil
famílias que estão acampadas no Brasil, além de consolidar os assenta-
mentos já criados no Governo Fernando Henrique Cardoso.
65
Apesar disso, o MST iniciou, mal completados dois meses de mandato do
presidente Lula, um novo ciclo de invasões de terras e ocupações de sedes
regionais do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - Incra.
A intensifi cação do processo de reforma agrária e a consolidação de assen-
tamentos abrem um espaço extraordinário para a agroecologia, apesar de,
signifi cativamente, este conceito não estar presente no programa do PT.
O importante, no entanto, é o fato dele estar presente nas publicações
e nos discursos de lideranças do MST e de muitos Sindicato de Trabalha-
dores Rurais, além de apresentar um importante portfólio de experiências
bem sucedidas em diferentes regiões. Trata-se, de fato, de um dos movi-
mentos mais profundos de aproximação entre os setores populares e
a visão ecologista, tendo em vista que a disseminação das práticas agroe-
cológicas hoje atinge milhares de famílias camponesas.
Para que este espaço estratégico de atuação possa desenvolver-se
com sucesso, é necessário associar a produção agroalimentar à busca
por um desenvolvimento local/regional sustentável. Por exemplo:
a produção agroecológica familiar pode ser integrada diretamente
às políticas de combate à fome, segurança alimentar, educação popular
e desenvolvimento humano. O mesmo pode ser dito das políticas
de saneamento básico que, ao contrário do que muitos imaginam,
não devem fi car restritas ao espaço das cidades. As áreas rurais, efetiva-
mente, possuem uma carência de saneamento muito maior do que
as urbanas, sendo este um dos fatores que favorecem o êxodo rural.
O programa do PT – e isso é muito positivo – apresenta o fato de 20%
da população brasileira viver no campo como uma oportunidade e não
como um problema. A disponibilidade de terras públicas para serem
distribuídas para agricultores familiares representa um grande recurso
de inclusão social disponível para o poder público brasileiro, e apresenta
a vantagem adicional de não fomentar endividamentos e vulnerabilidades
externas. Mas, para tanto, é preciso tomar o fortalecimento do mundo rural,
em toda a sua multidimensionalidade, como um objetivo geopolítico
do campo alternativo. Não faz sentido, considerando a realidade social e
geográfi ca do Brasil, copiar o caminho dos países da Europa e da América
do Norte, que quase acabaram com a sua população rural e hoje investem
bilhões de dólares por ano para manter o que restou. Tal objetivo, no entanto,
apenas poderá ser atingido com uma política integrada que possa reverter
o quadro hoje observado, onde, ao mesmo tempo em que se promove
o assentamento de centenas de milhares de famílias, um número ainda
maior deixa o campo por não conseguir obter condições dignas de vida.
Cenários no campo sócio-ambiental
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200666
3.3 Florestas,
Populações Tradicionais
e Unidades de Conservação
Neste ponto, como já foi dito, o programa do PT foi muito omisso. A nomeação
de Marina Silva para o Ministério do Meio Ambiente, no entanto, cria uma
situação extremamente benéfi ca para uma mudança substantiva das polí-
ticas para as fl orestas e para os grandes biomas brasileiros. Com a conside-
rável redução da bancada ruralista no Congresso eleito em 2002, pode-se
esperar que perca alento o esforço político pela deformação do Código
Florestal em benefício dos grandes proprietários, confi rmando-se a versão
atualmente em vigor. Pode-se prever, igualmente, que a conclusão das
demarcações das terras indígenas e a defesa destas populações ganharão
mais força. Pela sua formação cultural coletiva, e por sua ligação com a Igreja,
é pouco provável que os políticos petistas não tenham uma performance
melhor neste campo. É um bom momento, portanto, para uma ofensiva
em favor dos direitos indígenas.
O espaço que deve apresentar maior apoio e crescimento, no entanto,
é o da reforma agrária agrofl orestal e da defesa das populações extrativistas.
O próprio Lula sempre se refere de maneira elogiosa ao movimento
das quebradeiras de coco. A ligação da ministra Marina Silva e do PT do
Acre com o Conselho Nacional dos Seringueiros -CNS é notória. Pode-se
esperar um aumento do apoio às políticas sócio-ambientais de assenta-
mento de populações tradicionais em unidades de conservação de mane-
jo comunitário e sustentável. Este será um campo igualmente promissor
para o trabalho de muitas organizações da sociedade civil.
É importante garantir, porém, que o aumento no número e no tamanho
das reservas extrativistas seja considerado parte integrante do projeto
maior de reforma agrária para as regiões com forte presença de biomas
nativos, associando-se este projeto com as políticas de combate à fome
e de desenvolvimento local/regional sustentável. É fundamental infl uenciar
uma mudança nas ações do Ministério da Reforma Agrária, evitando, espe-
cialmente, que a região da fl oresta amazônica continue a ser utilizada como
espaço de reforma agrária convencional, com a divisão individual de lotes
e o quadriculamento do espaço que tem sido, efetivamente, um fator intenso
de desfl orestamento desnecessário.
67
3.4 Considerações Os campos de ação mencionados anteriormente não representam, obvia-
mente, uma lista exaustiva, mas apenas uma indicação de algumas áreas
prioritárias da agenda social positiva do Governo popular que podem ser
“esverdeadas” no curto prazo. O caráter prioritário destas áreas pode ser
deduzido do exame do programa de Governo e dos nomes indicados
para posições de liderança. Estas áreas deverão receber um volume consi-
derável de recursos e deverão ser, desde o início, objeto de um debate
aberto e de um acompanhamento participativo por parte da sociedade
civil. Elas também permitirão o estabelecimento consistente de diversas
parcerias, já que envolverão ações nos planos Legislativo, Executivo e
da organização cidadã.
Existem tendências na atual conjuntura, por outro lado, especialmente
derivadas das necessidades e opções de uma política econômica que
decidiu não romper bruscamente com a ordem anterior, que poderão
constituir entraves, ou mesmo ataques ativos, contra a busca pela qualidade
de vida sócio-ambiental e pela sustentabilidade democrática. Neste caso,
as organizações da sociedade civil devem manter a sua autonomia e seu
senso crítico, em aliança com os movimentos de base, para questionar
ativamente o sentido destas opções com base em argumentos éticos
e substantivos que sejam claros e bem formulados. Sempre lembrando
a necessidade de evitar a autofagia e garantir, na medida do possível,
a continuidade histórica do Governo popular por um tempo indefi nido.
Isto porque as transformações que precisam ser feitas na sociedade brasi-
leira não serão realizáveis em quatro anos, mas requererão uma hegemo-
nia política popular de longo prazo, garantida por uma contínua obtenção
da confi ança do eleitorado.
Esta visão de longo prazo pode auxiliar na adoção de uma postura de
paciência revolucionária, como dizia Paulo Freire. Mas não pode signifi car
uma abdicação de valores, posições ético/políticas e senso crítico. Não
se pode exigir do Governo popular uma resolução rápida dos problemas
seculares da sociedade brasileira, mas sim a manutenção de um direcio na-
mento e de uma prática que sejam compatíveis com os ideais de transfor-
mação moral e social que vieram se acumulando na sociedade brasileira e
nas organizações da sociedade civil ao longo das últimas décadas.
Cenários no campo sócio-ambiental
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200668
4. Cenários para a questão agrária
Diferentemente daqueles que, ao longo dos anos 80, pontuavam a obsoles-
cência de medidas e processos relacionados à questão agrária brasileira
– aqui especialmente compreendida pela dicotomia reforma agrária/
agricultura familiar –, a agenda praticada durante os anos 1990 mostrou
claramente que o tema ainda ofertava um enorme campo de possibilida-
des. Possibilidades exploradas e concretizadas, sobretudo, através da inicia-
tiva e atuação de diferentes movimentos sociais rurais e suas organizações
de apoio e assessoria15.
A análise dos processos agrários ao longo dos últimos quarenta anos
oferece os elementos necessários para entendermos a confi guração
assumida pelo tema na transição do regime autoritário para a democracia:
a da contraposição entre dois movimentos. Por um lado, a progressiva
ilegitimação das formas tradicionais de dominação conduzindo à multipli-
cação dos confl itos e à ampliação do seu âmbito, fato que se desdobra nas
décadas de 1980 e 1990, levando à constituição dos assentamentos rurais.
15 Os parágrafos imediatamente a seguir estão fundamentados nas conclusões de um artigo escrito por Sérgio Leite em colaboração com Moacir Palmeira. O presente exercício toma, portanto, essas mesmas conclusões como ponto de partida para as refl exões aqui sistematizadas em torno do quadro agrário atual. Ver PALMEIRA, M., LEITE, S. Debates econômicos, processos sociais e lutas políticas. In: COSTA, L.F.C., SANTOS, R.N.(Orgs.). Política e reforma agrária. Rio de Janeiro: Mauad, p. 92-168, 1998.
69
Por outro, as vantagens asseguradas pelo Estado, no bojo da política de
modernização da agricultura, atraindo para o setor capitais de diferentes
origens e dando lugar a uma poderosa coalizão de interesses, articulada
por dentro da máquina pública em torno dos negócios com a terra. Isso
pareceu levar a uma espécie de impasse. O primeiro movimento colocou
a reforma agrária na ordem do dia. Mas o peso dos interesses agrários
dentro do Estado foi sufi cientemente forte para inibir qualquer tentativa
mais séria de realizá-la. No entanto, entre um período (pré-80) e outro
(pós-80), algumas descontinuidades, nada desprezíveis, pareceram
emergir, redimensionando a temática agrária.
Essas descontinuidades remeteram, fundamentalmente (e de modo dife-
renciado), ao funcionamento de certos aspectos do regime democrático.
No que diz respeito à legislação, a descontinuidade corre menos por conta
das mudanças de conteúdo do que pelos procedimentos legais, que limi-
tam o grau de arbítrio dos governantes e dos seus funcionários. A liberdade
de informação, dependendo do estado das disputas entre agentes da mídia
e de outros fatores, contribui, certamente, para a publicização de processos
e demandas sociais. Mas a ruptura maior talvez tenha a ver com a autono-
mização dos poderes. A participação efetiva do Congresso nos processos
decisórios, independentemente de sua eventual composição, contribui
para difi cultar certos procedimentos políticos e administrativos que se
davam em circuito fechado. A participação do Congresso abriu espaço
à pressão popular. Um dos aspectos que ressaltamos, diretamente relacio-
nado à prática institucional do Inesc, é a focalização sobre as ferramentas
e os trâmites que marcam a proposição, votação e implementação do
Orçamento Geral da União16. Esse novo locus de enfrentamento de pro-
postas constitui-se verdadeiramente numa arena decisória vital na capaci-
dade de execução de determinadas políticas públicas direcionadas
ao campo agrário17.
Parece-nos que são, sobretudo, essas descontinuidades introduzidas
pela operação do regime democrático que têm pesado na reconfi guração
da questão agrária e na incorporação de uma dinâmica nova às lutas
que se dão em torno da terra. Se, sob o regime autoritário, intervenções
localizadas para resolver esse ou aquele confl ito tendiam a esgotar-se
nelas próprias, na vigência de um regime político democrático, com mo-
vimentos sociais atuantes, seu destino pode ser outro. A experiência dos
assentamentos rurais, que têm se transformado numa espécie de prolon-
gamento do campo de luta da reforma agrária, ilustra bem isso. É possível
que se esteja criando uma dimensão de acúmulo que torne mais difícil
o bloqueio desse longo processo de quebra do monopólio da terra.
Cenários para a questão agrária
16 O assessor do Inesc Edélcio Vigna ressalta a “importância do PPA, pois só os projetos ou atividades que o compõem é que necessariamente entram no orçamento. Dessa forma, se uma organização social desejar que os projetos de seu interesse entrem obrigatoriamente no orçamento da União, deve garanti-los, anteriormente, no PPA”. Cf. VIGNA, E. Empréstimos externos infl uenciam a reforma agrária no Brasil. Nota Técnica n. 71, Inesc, Brasília, p. 5, out. 2002.
17 VIGNA, E. O PLDO 2003 e a política agrária. Nota Técnica n. 64, Inesc, Brasília, p. 7, jun. 2002.
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200670
Mas a consolidação da democracia política por si só não garante a demo-
cratização da propriedade da terra; simplesmente abre espaço para que
isso ocorra. Instituições democráticas funcionando normalmente, movi-
mentos sociais ativos, opinião pública receptiva e adversários extrema-
dos da reforma postos, por várias razões, em atitude defensiva, não elimi-
nam automaticamente aquela presença quase simbiótica dos interesses
agrários dentro da máquina do Estado ou mudam a composição de um
Congresso em que a vinculação direta ou indireta de parlamentares ao
negócio da terra vai muito além da eventualidade de uma bancada ou
de um bloco parlamentar, como tem sido a experiência observada nos
últimos dez anos. Ou ainda, a prática, como aquela desenvolvida pela ad-
ministração do Governo FHC, de impor ao Legislativo uma pauta determi-
nada pelo Poder Executivo através de medidas provisórias, também
no segmento da reforma agrária, vai de encontro ao efeito positivo
das descontinuidades que mencionávamos acima.
4.1 As mudanças em curso As transformações que se avizinham na estrutura da administração do
Governo Federal, bem como na composição parlamentar, seja na Câmara
dos Deputados, seja no Senado, podem fortalecer determinados processos
desenhados no campo agrário recentemente. Esse fortalecimento, no nosso
entender, estará sujeito, todavia, ao complexo jogo de pressões políticas,
abrindo a possibilidade, agora mais concreta, de instituições como o Inesc
e movimentos organizados avançarem na viabilidade de determinadas
questões, numa direção voltada à construção da nova agenda rural. Trata-
remos a seguir de alguns desses processos, tomando o devido cuidado de
pensá-los à luz de um quadro que, se de um lado possibilita esse exercício
transformador, de outro mantém certos constrangimentos e contingencia-
mentos, como os de ordem orçamentária, que não devem ser descartados.
O primeiro aspecto a ser aqui examinado, no âmbito da questão agrária,
refere-se ao programa de reforma agrária e à implantação de assentamen-
tos rurais. Desde logo é preciso destacar a necessidade de rever parte da
legislação infraconstitucional, especialmente aquela derivada do Decreto
2.250, de 11 de junho de 1997, e outras medidas que tendem à uma pos-
tura criminalizadora com relação ao processo de luta pela terra. Na realida-
de, é necessário revisitar a legislação agrária, incluindo nesse movimento
a edição de um novo Programa Nacional de Reforma Agrária, que não
tome o assentamento de famílias de trabalhadores rurais como apenas
um negócio.
71
Estudos recentes sobre os impactos locais e regionais proporcionados
pela criação de projetos de reforma agrária têm mostrado a capacidade
dinamizadora desses núcleos, quer na dimensão econômica, quer ainda
nas dimensões políticas e sociais18. Uma dessas dimensões, cruciais ao
quadro socioeconômico atual, é a capacidade de geração de novos postos
de trabalho. Levantamento feito com 1.568 benefi ciários, instalados em
assentamentos existentes em nove estados brasileiros, mostrou que a de-
mocratização da terra pode cumprir um papel importante na atividade
empregatícia, amálgama de qualquer processo de desenvolvimento real.
De acordo com a tabela 3, do total da população maior de 14 anos nos
projetos pesquisados, 79% trabalhava somente no lote, 11% no lote e
também fora do lote, 1% somente fora do lote e 9% declarou não trabalhar.
Ou seja, 90% dos assentados maiores de 14 anos trabalhavam ou ajuda-
vam no lote, numa média de três pessoas por lote. Dos que faziam algum
trabalho fora do lote (12% do total), 44% o faziam em caráter eventual,
24% em caráter temporário e 31% de modo permanente. É interessante
observar ainda que, dos que trabalhavam fora do lote, mais da metade
(56%) exercia atividades somente dentro do próprio assentamento,
inclu indo trabalhos não-agrícolas gerados pela implantação do projeto
(construção de estradas e infra-estrutura coletiva, professora, merendeira,
agente de saúde, trabalhos coletivos, benefi ciamento de produtos, etc).
Abrindo um pequeno parêntese, é preciso lembrar que o trabalho não-
agrícola pode signifi car, em boa parte dos casos dos domicílios rurais
– localizados ou não nos assentamentos rurais – um determinado nível de
precariedade. Assim, é necessário tomar cuidado com o incentivo exacer-
bado na promoção das ocupações não-agrícolas, sem contudo descartar
as estratégias de reprodução familiar que passam por atividades pluriativas
ou multifuncionais, fugindo da rigidez do modelo produtivista agrícola19.
A extrapolação dos dados da amostra para os municípios e para a “man-
cha” permite perceber que os assentamentos são importantes geradores
de emprego. No conjunto das “manchas”, são 45.898 pessoas maiores
de 14 anos que efetivamente trabalham nos assentamentos; 93,76% delas
somente no projeto (no próprio lote, em outros lotes, ou em outras ativida-
des). Do total das que trabalham, com mais de 14 anos, 42,7% são mulhe-
res, indicando sua ativa participação nas tarefas que envolvem as diferen-
tes atividades do assentamento.
Cenários para a questão agrária
19 Graziano da Silva, em trabalho recente, qualifi ca bem esse aspecto, destacando os alcances e limites do que ele chama de novas questões do rural brasileiro. Cf. SILVA, Graziano J. da. Velhos e novos mitos do rural brasileiro: implicações para as políticas públicas. BNDES. In: Seminário “Desenvolvimento em Debate” – Painel “Desenvolvimento Rural Sustentável”. Rio de Janeiro, p. 28, out. 2002.
18 Conferir, entre outros, MEDEIROS, L., LEITE, S. (Coord.). Impactos regionais dos assentamentos rurais: dimensões econômicas, políticas e sociais. Rio de Janeiro : PDA/UFRJ- Finep, 2002. (Relatório de Pesquisa); HEREDIA, B. et al. Análise dos impactos regionais da reforma agrária no Brasil. Estudos, Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, n. 18, p. 73-111, abr. 2002.
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200672
Além de gerar empregos para a família, os lotes também geram trabalho
para outros. Com base nos resultados dessa mesma pesquisa, verifi cou-se
que quando se considera a contratação de trabalho pelos assentados,
36% dos lotes pesquisados contratam pessoas de fora. Os índices mais
baixos de contratação aparecem no Sul da Bahia (14%), Oeste de Santa
Catarina (15% para região de Abelardo Luz e 17% para o Extremo Oeste)
e Ceará (18%). No Entorno do Distrito Federal, 43% dos lotes contratam.
O mesmo índice aparece na Zona da Mata, com variações internas (33%
no Brejo, 40% na Mata paraibana e 47% na Mata pernambucana e alagoana).
tabela 4
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A lotes (ou famílias) entrevistados
B Pessoas nos assentamentos (todas as idades)
C Total de Maiores de 14 anos (exclui menores de 14 anos e sem informação.
Inclui os “sem idade” que são responsáveis, cônjuges ou genro/nora,
provavelmente maior de 14 anos).
D Nº de pessoas trabalhando no lote (Inclui todas as idades)
D/B % sobre total de pessoas assentadas
D/A Nº médio de pessoas ocupadas por lote
E Maiores de 14 trabalhando no lote (só no lote ou no lote e fora do lote).
E/C % do total de maiores de 14 anos
E/D % do total de pessoas que trabalham
E/A Nº médio de maiores de 14 anos ocupados por lote
(*) Inclui pessoas que trabalham só no lote, ou no lote e fora do lote
73
A referência às “manchas”, na tabela 3, refl ete uma delimitação das áreas
de estudo de uma dessas pesquisas, indicando regiões do país com eleva-
da concentração de projetos de assentamento e alta densidade de famí-
lias assentadas por unidade territorial, com base na pressuposição de que
este procedimento traria maior possibilidade de apreensão dos processos
de mudança em curso, potencializando os efeitos regionais identifi cados
a partir da criação dos assentamentos. Estas regiões passaram a ser deno-
minadas “manchas” e sua delimitação geográfi ca não necessariamente
coincide com outros recortes regionais existentes (como, por exemplo,
o do IBGE, dos Governos estaduais, do Incra, dos movimentos sociais):
o critério para a sua defi nição foi a existência de um conjunto de municí-
pios vizinhos com concentração relativamente elevada de assentamentos,
tanto em número de projetos quanto em número de famílias e em área
ocupada, e com uma dinâmica histórica, econômica, social e organizativa
comum20.
O que estamos querendo ressaltar aqui, com essa noção, é o fato de que
a conformação das manchas, contrapondo-se à lógica de desapropriações
isoladas que caracterizam a intervenção do Estado na questão agrária,
já é, por si, um aspecto relevante das transformações que os assentamen-
tos têm provocado no espaço regional. O Estatuto da Terra foi a primeira
legislação a estabelecer uma sistemática de intervenção e de desapropria-
ção e a prever a indicação de “áreas prioritárias de reforma agrária”, mas elas
não se tornaram realidade durante o período militar. Uma perspectiva
de alteração desse quadro surgiu com a redemocratização, em 1985.
A proposta do Programa Nacional de Reforma Agrária - PNRA, pautada
sobre o Estatuto da Terra, visava ao estabelecimento de zonas prioritárias
de reforma agrária. No entanto, a reação das forças anti-reformistas levou
ao abandono dessa idéia. Daí para frente, realizaram-se desapropriações
não planejadas que, embora bem mais freqüentes do que no regime
militar, ocorreram na esteira dos confl itos e das mobilizações sociais que,
com o arrefecimento da repressão, desenvolveram-se mais rapidamente.
As medidas que resultaram na criação dos assentamentos do período
democrático, sem estarem orientadas para a realização de uma reforma
agrária massiva, foram potencializadas por uma certa simultaneidade
(pacotes de desapropriações) e por sua concentração nas regiões em
que os movimentos atuavam, mesmo não atingindo necessariamente
áreas contíguas. A percepção do sucesso do caminho adotado estimulou
trabalhadores das cercanias a seguirem na mesma linha, com novas desa-
propriações sendo feitas, adensando-se os assentamentos em determina-
das áreas e levando os movimentos a tentarem repetir a experiência
em outras tantas. Assim foram surgindo como que áreas reformadas
a posteriori21.
Cenários para a questão agrária
20 Foram selecionadas seis grandes “manchas”, refl etindo a diversidade da realidade brasileira: Sul da Bahia, Entorno do Distrito Federal, Sertão do Ceará, Sudeste do Pará, Oeste Catarinense e Zona Canavieira Nordestina. Para detalhes sobre a metodologia do trabalho, consultar HEREDIA, B. et al., 2002, op.cit.
21 Cf. HEREDIA et al., 2002. Op. cit.
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200674
O programa apresentado pelo Partido dos Trabalhadores nas últimas elei-
ções presidenciais deixa explícita, em diferentes passagens, sua orientação
no resgate da noção de zonas reformadas22, indo ao encontro dos nossos
resultados de pesquisa, que prevêem a multiplicação dos impactos regio-
nais da reforma agrária a partir de áreas com alta densidade de famílias
assentadas e não através de uma política pontual e atomizada de assen-
tamentos rurais. O destaque dessa proposição parece-nos fundamental.
Ainda mais por centrar esforços na desapropriação por interesse social
como instrumento básico da democratização da terra, através da constitui-
ção dos projetos de assentamento23.
Assim o resgate do grau de centralidade da política de desapropriação
é outro aspecto que merece ser analisado cuidadosamente. Uma rápida
passagem pela composição orçamentária da “função agrária”24 irá mostrar
um peso importante dos recursos alocados (previstos e/ou desembolsa-
dos) nas rubricas referentes ao crédito fundiário, tanto para o exercício fi s-
cal de 2002 como para aquele desenhado para 2003. Por crédito fundiário
estamos considerando os programas relativos ao Cédula da Terra, Banco
da Terra e Combate à Pobreza Rural, ainda que existam diferenças concei-
tuais e instrumentais entre os mesmos. Mas não deixa de ser notória
a prioridade atribuída ao instrumento de “reforma agrária via mercado”25
quando contrapomos os recursos deste mecanismo àqueles de implan-
tação e gerenciamento dos assentamentos de reforma agrária propria-
mente dita.
A maior parte dos estudos tem feito tábua rasa a respeito de todo acú-
mulo recente que se vem obtendo com o processo de desapropriação
de imóveis rurais ociosos, por interesse social. Mais do que simplesmente
uma alocação de recursos, trata-se de uma política social e politicamente
amparada por crescentes camadas de movimentos sociais, que tem rever-
tido na inclusão social de um contingente signifi cativo de brasileiros.
Dessa forma, há uma substancial modifi cação no ritmo processual do ins-
trumental básico à ação desapropriatória, como a efetiva participação
do Ministério Público no encaminhamento do processo, que precisa ainda
ser aprimorada. Por outro lado, constata-se que a elevação do custo impu-
tado pelos processos de perícia administrativa e judicial tem se concentra-
do nessa última. Assim, a sustentação do programa, inclusive em termos
fi nanceiros, tem passado pela reforma e defi nição desse instrumental26.
22 “Promover o estabelecimento de zonas reformadas, priorizando a desapropriação por interesse social como instrumento de arrecadação de terras improdutivas”. Cf. PT. Vida digna no campo: desenvolvimento rural, política agrícola, agrária e de segurança alimentar. São Paulo, p.18, 2002.
23 A política recente de emancipação e consolidação dos assentamentos rurais efetuada pelo Incra, incluindo a distribuição dos títulos de propriedade das parcelas ocupadas pelos benefi ciários pode estar gerando um efeito desagregador. Para poder pagar o valor cobrado pelos títulos, valor calculado com base nos preços praticados no mercado de terras, os assentados começam a esboçar um movimento que consiste em “picotar” o lote, vendendo parte do mesmo. Ou seja, mais uma vez, a “racionalidade mercantil” prevalecente pode estar gerando resultados inversos ao esperado. Para uma argumentação teórica sobre o assunto, ver HIRCHMAN, A. O progresso em coletividade: experiências de base na América Latina. Rosslyn: Fundação Interamericana, 1987; e POLANYI, K. A nossa obsoleta mentalidade mercantil. Revista Trimestral de História & Idéias. Porto, n. 1, p.7-20, 1978.
24 Ver VIGNA, E. Op. cit. e VIGNA, E. Empréstimos externos infl uenciam a reforma agrária no Brasil. Nota Técnica n. 71, Inesc, Brasília, p. 10, out. 2002..
25 Um balanço recente e atualizado desse processo é encontradoem MEDEIROS, L. Movimentos sociais, disputas políticas e reforma agrária de mercado no Brasil. Rio de Janeiro : Edur/Unrisd, p. 127,2002.
26 Conferir resultados detalhados sobre o assunto no estudo coordenado por SAMPAIO, O.B.M. Desapropriação agrária pelo rito sumário: justa indenização. Brasília : Incra, p. 133, 2000.
75
A tabela 4, contendo dados de uma detalhada pesquisa realizada em
diferentes estados brasileiros, apresenta um quadro de diminuição, ainda
que relativa, dos valores praticados pelo Incra na chamada fase administra-
tiva do processo. Uma comparação inicial permitiria colocar que, se com-
parados aos valores praticados pelo Programa Cédula da Terra (PCT),
a possibilidade de, na média, trabalharmos com valores muito próximos,
ou até favoráveis à reforma agrária, é bastante alta.
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A tabela 5 demonstra ainda que a majoração dos valores ocorre fundamen-
talmente na fase jurídica, especialmente no parecer que serve de base ao
laudo judicial do processo, ainda que, nos poucos casos em que se chega
à fi nalização dos mesmos, as sentenças tenham revelado valores bem
abaixo desses últimos.
Cenários para a questão agrária
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200676
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Podemos concluir, portanto, que o instrumental em si da desapropriação
não deve ser descartado em nome de uma efi ciência maior dos mecanis-
mos de mercado, mecanismos esses que têm sido questionados a partir
da experiência recente dos programas de crédito no Brasil e em outros
países27.
Na realidade, a questão agrária, seja aquela relativa à reforma agrária pro-
priamente dita, assunto mais explorado neste texto, seja aquela referente
à agricultura familiar, tem demandado um aprimoramento dos instrumen-
tos de intervenção e sua prática, bem como a construção de uma rede
de proteção social e o redesenho do arcabouço institucional sobre o qual
as mesmas operam.
No primeiro caso, e aqui há outro aspecto das mudanças em curso a ser
destacado, é o papel fundamental que o programa de previdência social
rural tem proporcionado à fi xação e ao funcionamento de um enorme
conjunto de domicílios rurais situados em regiões desfavorecidas. Fugindo
às controvérsias sobre conceitos como rural, agrícola ou agricultura fami-
liar, um estudo recente sobre o tema28 centrou sua bateria sobre a unidade
domiciliar benefi ciária do programa em tela.
27 Ver MEDEIROS, L. 2002, Op. cit.
28 Ver DELGADO, G.; CARDOSO JR.., J.C. (Orgs.) A universalização de direitos sociais no Brasil: a Previdência Rural nos anos 90. Brasília : IPEA, 2000..
77
A sensibilidade em tomar este tema como objeto de pesquisa, além de dar
visibilidade a um conjunto extremamente importante de inovações insti-
tucionais em matéria de políticas públicas/políticas sociais e seus impactos
regionais, permitiu concluir que um dos principais elementos do que hoje
é denominado de novo rural ou o novo mundo rural são os idosos.
Um dos pontos destacados pelo trabalho é a vertiginosa expansão dos
recursos dispendidos com esse programa que, ao eleger a unidade familiar
como base da atividade econômica sobre a qual incide o benefício rural,
ampliou drasticamente o grau de cobertura da política, para o qual tam-
bém contou a elevação do piso de meio salário mínimo para um salário
mínimo. Dessa forma, o grau de importância e a abrangência do programa,
que fundado no recebimento de um salário mínimo mensal (programas
universais com fl at rate (tarifa plana) reforça a constatação da relação entre
o aumento do salário mínimo e o combate à pobreza, ainda que no caso
da Previdência estejamos tratando de um sistema de proteção social como
lembramos anteriormente. Isto justifi caria a conclusão dessa pesquisa sobre
a manutenção das transferências extra-programa, socialmente embasadas
diante do enorme signifi cado do mesmo sobre o nível de renda, de atividade
econômica e condições de vida da população rural brasileira. Particularmente
interessante nesse aspecto é a idéia de seguro-agrícola (ou seja, os recursos
da Previdência fi nanciando parte do custeio da produção agropecuária)
e o estabelecimento de uma linha endógena da pobreza, onde fi ca com-
provada a capacidade, especialmente na região Nordeste, das famílias cujas
rendas derivam basicamente da Previdência (caso das famílias com renda
até 2 salários-mínimos) de galgarem a um esquema de reprodução ampliada
da unidade doméstica.
Outro ponto sobre o qual gostaríamos de chamar a atenção é a adoção
de um sistema que consolidou sua capacidade de atendimento e seu grau
de cobertura não através do tempo de contribuição, mas sim nos benefícios
de aposentadoria por idade e no reconhecimento do trabalho dispendido
no meio rural. Tal fato tem sido objeto atualmente de forte pressão contrária,
tendo em vista os projetos governamentais encaminhados ao Congresso
tratando de ampliar a capacidade de arrecadação das contribuições rurais
no sistema previdenciário, especialmente naquelas camadas de agricultores
familiares ou da pequena agricultura. Guardadas todas e possíveis propor-
ções, poderíamos dizer que, em detrimento de uma postura de orientação
keynesiana (implica em intervenção do estado), pautada por programas
de bem-estar social, reforça-se uma perspectiva que prioriza o equilíbrio
fi scal da política, quando na realidade sistemas de transferências implicam
em decisões, legitimadas social e politicamente, em prol de determinados
segmentos da sociedade.
Cenários para a questão agrária
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200678
Isso nos leva ao último ponto deste texto, voltado ao arcabouço institu-
cional dos programas direcionados ao ambiente agrário. Primeiramente,
é preciso fazer referência à necessidade de ampliar e tornar mais capilar
a política de crédito, especialmente de investimento, que tem sido conso-
li dada através do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Familiar - Pronaf. Com ela, gerou-se igualmente um conjunto de inovações
institucionais, como a implantação dos Conselhos Municipais de Desenvolvi-
mento Rural, que precisam ser aprimoradas no sentido de garantir a efetiva
participação dos agricultores familiares no processo decisório das políticas
públicas de ordem local voltadas ao desenvolvimento rural e não apenas
ao crescimento agrícola.
Mas o que nos parece relevante destacar é a localização de tais programas
na futura esfera governamental. A problemática agrária estará alocada em
ministério próprio, desvinculada daquele destinado a tratar dos assuntos
agrícolas. Essa divisão apresenta aspectos positivos e negativos sobre
os quais seria desejável uma refl exão mais apurada. Especulativamente,
é possível mencionar o risco de termos um ministério centrado, e ainda
com poucos recursos, no tema da pobreza; e outro, com recursos e apare-
lhos institucionais de maior envergadura (como a Embrapa, por exemplo),
para tratar da produção de riqueza. Tal divisão fazia sentido num contex-
to político onde a relação de forças pendia para uma dimensão agrícola
conservadora (e com isso, a necessidade de ter um fórum específi co para
o assunto agrário), contexto que poderia estar confi gurado de uma forma
diferente na conjuntura próxima. No entanto, pesa favoravelmente à sepa-
ração a dose de realismo ao presumir que uma inversão de poder dessa
natureza ainda não seja um passo factível, sendo necessário consolidar
e proteger os espaços alcançados para a promoção da política agrária.
No entanto, é preciso mobilização para que esses processos que aqui
destacamos possam avançar.
79
5. Cenários para a questão racial
Tendo em vista ser a missão institucional do Inesc “contribuir para a pro-
moção e o fortalecimento da democracia representativa, participativa,
plural, que garanta os direitos humanos, a cidadania, a diversidade, o plu-
ralismo, a sustentabilidade sócio-ambiental e a eqüidade de gênero, me-
diante a inclusão social, política, econômica e cultural”, consideramos como
uma prioridade inicial a introdução da análise da dimensão racial presente
em alguns dos temas estratégicos de sua missão, a saber: criança e adoles-
cente, a questão agrária e agrícola e a dos gastos públicos. Em todas essas
temáticas há uma dimensão racial que se expressa no diferencial negativo
que o racismo e a discriminação agregam aos segmentos a eles expostos,
seja pela ausência ou omissão dessa variável - o quesito cor - nos temas
em questão, o que compromete a focalização mais qualifi cada das políti-
cas públicas para atingir metas desejáveis de inclusão social.
5.1 Cenários para
crianças e adolescentes
Sabe-se, por pesquisas realizadas pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada - IPEA, que as crianças e os adolescentes negros compõem
o segmento mais pobre da sociedade brasileira. Segundo Ricardo
Henriques economista
Cenários para a questão agrária
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200680
“ao analisarmos a incidência da pobreza a partir das faixas etárias da
população vemos que ela se concentra de forma desproporcional entre
as crianças. Vemos que 43% da pobreza se concentra em crianças de 0 a 14 anos,
sendo que o peso desta faixa etária na população total é de 29%. (...)
Na faixa etária de 7 a 14 anos, (...) para cada 100 meninos brancos pobres
contamos com 103 meninas brancas, 189 meninas negras
e 203 meninos negros.”
É nítida, portanto, a existência de dois patamares signifi cativamente distin-
tos da pobreza, orientados, de forma direta, pela composição racial
da população brasileira.29
Portanto, qualquer enfoque voltado para a temática das crianças e dos
adolescentes requer a consideração das desigualdades raciais nela presen-
tes para que as políticas públicas nessa área possam atingir de fato, dentre
crianças e adolescentes, os mais despossuídos.
Esta questão nos remete diretamente ao problema da focalização nas
políticas públicas, ponto em relação ao qual o Inesc, com sua experiência
em políticas públicas, pode dar importante contribuição. Segundo Ricardo
Paes de Barros economista, os gestores das políticas públicas costumam
dizer que para mudar a focalização dessas políticas é preciso mudar a
Cons tituição. Porém, é sua opinião que bastaria uma decisão política do
Conselho de Assistência Social para que essa mudança na focalização das
políticas públicas fosse empreendida.
Isso não ocorre, segundo ele, porque “o Conselho Nacional de Assistência
Social segue o que eles chamam de critério histórico”: o dinheiro do passado
se divide como sempre se dividiu. Apenas se houver maior aporte de recur-
sos é que se pensa nos pobres.30 Ele usa como exemplo um estudo realizado
pelo IPEA sobre como o dinheiro de creches é repartido entre as unidades
da federação: “Vimos que a última criança atendida em Santa Catarina tinha
renda per capita de 50 reais. Em Pernambuco, a renda da criança era de
5 reais. Então, é tirar dinheiro de um e dar para o outro. Quem está abaixo
da média são os estados de Sergipe, Piauí, Ceará, Bahia, Alagoas, Maranhão
e Pernambuco. O que é isso? Isso é o Nordeste. Então, o Nordeste é aquele
que menos recebe dinheiro (...) Se eu der muito dinheiro para Santa Catarina
e pouco dinheiro para o Piauí, não adianta Santa Catarina focalizar perfei-
tamente e o Piauí não focalizar perfeitamente porque vai fi car tudo mal
focalizado.”31
29 HENRIQUES, R. Meninas negras na escola: silêncio e horizontes da desigualdade racial brasileira. MIMEO, 2002.
30 BARROS, R.P. Palestra proferida no seminário Relatório do SeminárioCARE/IETS: Erradicar a pobreza: compartilhar o desafi o, ocorrido em 14 e 15 de dezembro de 2001, em São Paulo.
31 Ibidem.
81
Com esse exemplo queremos chamar a atenção para a necessidade de
incidência sobre os padrões conservadores e discricionários que orientam
a distribuição regional dos recursos destinados para a atenção à infância.
É necessária uma ação política sobre órgãos como o Conselho Nacional
de Assistência Social para a reversão dos critérios de focalização que
historicamente vêm alimentando os padrões de desigualdades sociais.
Cabe ressaltar também um tema recorrente na questão do combate
à pobreza que é a visão consagrada de que esse combate está inteira-
mente subordinado à questão do crescimento econômico.
Conforme ainda Ricardo Paes de Barros, há duas maneiras de combater
a pobreza: via crescimento econômico e via diminuição das desigualdades.
Para ele, “uma das conseqüências importantes de se ter um país rico e cheio
de pobres é que acabar com a pobreza requer uma quantidade de dinhei-
ro irrisória; porque o problema desse país não é ser pobre, é ter esquecido
de um certo pedaço da população. Aquele 1% necessário para acabar com
a miséria extrema é um volume de recursos muito pequeno perante a renda
brasileira. (...) Se eu quiser reduzir a pobreza no Brasil em 10 pontos percen-
tuais eu preciso que a renda per capita brasileira cresça 35%. Preciso de dez
anos de crescimento de mais de 3% per capita ao ano. Ou seja, uns 5%
de crescimento ao ano durante dez anos para reduzir a pobreza em 10
pontos percentuais. Isso é uma característica de país rico e desigual,
onde o crescimento é pouco efetivo na erradicação da pobreza. No entan-
to, se o combate for à desigualdade, o Brasil, que seria menos afetado pelo
crescimento, é mais afetado pela redução na desigualdade. Se quiser 10
pontos percentuais de redução na pobreza, basta reduzir a desigualdade
em 12 pontos percentuais. Ou seja, em termos de porcentagem eu preciso
três vezes mais de crescimento do que de combate à desigualdade.”32
A visão hegemônica na sociedade é a de que sem crescimento econômico
é impossível combater a pobreza. Ela está fortemente presente inclusive
na maioria dos membros do Conselho Econômico e Social, espaço de con-
certação do Pacto Social proposto pelo presidente eleito. Consideramos
fundamental que essa outra tese de combate à pobreza via redução das
desigualdades raciais seja considerada com boa vontade pelo que ela acena
de possibilidade de redução do tempo necessário para se alcançar resul-
tados positivos na redução da pobreza e sobretudo pelo que ela implica
em termos de focalização prioritária das políticas públicas de combate à
pobreza nas desigualdades raciais. Ou seja, trata-se de colocar no centro, e
como meta das políticas universalistas, a redução das desigualdades raciais.
Cenários para a questão racial
32 BARROS, Ibidem.
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200682
5.2 Questões agrária e agrícola Em relação à questão agrária e agrícola, enfatizamos a problemática
espe cífi ca dos remanescentes de quilombos que, para além do problema
de titulação de suas terras ancestrais, necessitam de incentivos tais como:
crédito; acesso a tecnologias básicas de produção; estruturas para o esco-
amento de sua produção que lhes permitam vender seus produtos num
mercado melhor, por um preço maior.
Nas terras dos remanescentes de quilombos também se incluem outros
desafi os como a universalização da educação e da saúde. Soma-se a isso
a confl ituosa situação das comunidades remanescentes de quilombos em
disputa pelas suas terras ancestrais com empreendimentos agropecuários,
madeireiros e grilagens para fi ns de especulação imobiliária, que operam
para postergar a titulação das terras dos quilombos, um direito conquista-
do e reconhecido pelo artigo 68 da Constituição Federal.
5.3 Racismo e meio ambiente Consideramos também que a temática ambiental, apesar de já apresentar
algum acúmulo no plano internacional, tem uma dimensão ainda incipiente
em nossa sociedade. Trata-se do tema racismo ambiental.
Experiências e casos em alguns estados do Brasil e outros lugares nos per-
mitem observar as conseqüências diretas da degradação ambiental para
a população negra, em especial para as mulheres e crianças. Em Alcântara,
no Maranhão, os acordos para a instalação de bases de lançamento norte-
americanas vêm promovendo a desterritorialização e conseqüente desagre-
gação social das comunidades negras quilombolas. Nos EUA, nos bairros
de Nova Orleans próximos ao rio Mississipi, as mulheres negras apresentam
uma alta porcentagem de câncer de mama por causas que não estão sendo
estudadas. As crianças negras são afetadas por problemas respiratórios e
asma como conseqüência da poluição provocada pelas grandes indústrias
que as autoridades autorizam a instalar-se em bairros periféricos, habitados
majoritariamente por populações negras e latinas.
O artigo 14 da Declaração da Conferência Regional das Américas expressa
“preocupação porque os povos indígenas e as pessoas de descendência
africana, migrantes e outros grupos vulneráveis freqüentemente sofrem
a carga da contaminação industrial e a degradação do meio ambiente
e a transferência de dejetos tóxicos, o que afeta adversamente sua quali-
dade de vida e sua saúde.”3333 Plataforma da Conferência Regional das Américas- PrepCon da III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância. Santiago do Chile, dezembro 2000.
83
Há, portanto, um caráter indissolúvel entre miséria/degradação ambiental
e vida/meio ambiente. Um levantamento cartográfi co da miséria no Brasil
localizaria a maioria da população negra do país sobrevivendo às adversi-
dades impostas pelos vários processos de deterioração do meio ambiente,
no campo e na cidade.
Portanto, entendemos que o conceito de racismo ambiental, e tudo o que
ele envolve em termos de exclusão para o desenvolvimento sustentável,
deve ser aprofundado à luz das contradições da sociedade brasileira
no tocante à questão ambiental.
5.4 Políticas públicas específi cas Sobre essa questão, há em primeiro lugar a ausência do segmento racial
negro nas rubricas orçamentárias, fato incompatível com a dimensão que
a questão racial tem na confi guração das desigualdades sociais, apesar do
reconhecimento crescente na esfera governamental da identidade entre
raça e exclusão social no Brasil, o que coloca como um dos desafi os para
o próximo Plano Plurianual –PPA- a inclusão de políticas específi cas para
a população negra no orçamento da União.
Dentre as poucas políticas específi cas para os negros, destaca-se a medida
provisória nº 62, editada recentemente, que destina US$ 9 milhões para o
programa Diversidade na Universidade. Trata-se de uma política de fortale-
cimento e ampliação dos cursinhos pré-vestibulares para negros e carentes,
programa que requer monitoramento no que tange à efetiva aplicação
desses recursos na política defi nida.
Esse mesmo monitoramento merecem as portarias que estabelecem
cotas para negros na administração federal, que espera-se sejam mantidas
e ampliadas pelo novo Governo. São elas:
1) a observância, pelos órgãos da administração pública federal,
de metas percentuais de participação de afro-descendentes,
mulheres e pessoas portadoras de defi ciência no preenchimento
de cargos em comissão;
2 ) a inclusão de cláusulas de adesão ao Programa Nacional de Ações
Afi rmativas nas transferências de recursos celebradas pela
administração pública federal;
Cenários para a questão racial
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200684
3) a observância, nas licitações promovidas por órgãos da administração
pública federal, de critério adicional de pontuação, a ser utilizado para
benefi ciar fornecedoresque comprovem a adoção de políticas compatí-
veis com os objetivos do Programa Nacional de Ações Afi rmativas;
4) a inclusão, nas contratações de empresas prestadoras de serviços,
bem como de técnicos e consultores no âmbito de projetos desenvolvi-
dos em parceria com organismos internacionais, de dispositivo estabele-
cendo metas percentuais de participação de afro-descendentes, mulhe-
res e pessoas portadoras de defi ciência.
5.5 O Estatuto
de Igualdade Racial
A aprovação do PL nº 3.198/2000, que institui o Estatuto da Igualdade
Racial, em defesa dos que sofrem preconceito ou discriminação em fun-
ção de sua etnia, raça ou cor se constitui numa das principais esperanças
e expectativas dos movimentos negros brasileiros de estabelecimento
de um marco legal para uma política nacional de promoção da igualdade
racial e de combate ao racismo.
Espera-se que o Estatuto da Igualdade Racial se constitua, em âmbito na-
cional, no marco legal que oriente, normatize e assegure a implementação
de um programa nacional de promoção da igualdade racial e de comba-
te ao racismo e à discriminação racial como um objetivo a ser perseguido
pela sociedade brasileira de forma sustentada, a despeito de qualquer con-
juntura e de qualquer coloração política/ideológica na administração
do Estado. Que esse marco legal atenda ao imperativo ético de restituição
da plena humanidade aos afro-brasileiros como decorrência dos compro-
missos assumidos pelo Estado Brasileiro na Conferência de Durban, na
África do Sul, em 2001.
A agenda que Durban impõe vai muito além das propostas de cotas que
vêm monopolizando e polarizando o debate da questão racial no Brasil.
Embora seja um dos efeitos positivos da Conferência, as cotas podem
reduzir e obscurecer a amplitude e diversidade dos temas a serem enfren-
tados para o combate ao racismo e à discriminação racial na sociedade
brasileira. O que Durban ressalta e advoga é a necessidade de uma inter-
venção decisiva nas condições de vida das populações historicamente
discriminadas. O desafi o da eliminação do fosso histórico que separa essas
populações dos demais grupos não pode ser enfrentado com a mera ado-
ção de cotas para o ensino universitário. Precisa-se delas e de muito mais.
85
Essa percepção conduziu um conjunto de organizações da sociedade civil
a elaborar o documento “Subsídios para uma Política Nacional em Favor dos Afro-
descendentes”, com o objetivo de oferecer insumos ao Executivo, ao Legislativo descendentes”, com o objetivo de oferecer insumos ao Executivo, ao Legislativo descendentes”,
e ao Judiciário para a consecução de uma política nacional de promoção
da igualdade racial. Essa proposta é subscrita pelas seguintes organizações:
Articulação de Mulheres Brasileiras - AMB; Articulação de Organizações
de Mulheres Negras; Cidadania, Estudo, Pesquisa, Infor mação e Ação -Cepia;
Centro Feminista de Estudos e Assessoria -Cfêmea, Comunidade Bahá’í
do Brasil; Criola, o extinto Escritório Nacional Zumbi dos Palmares, Geledés
– Instituto da Mulher Negra e o Instituto Brasileiro de Análises Socio-eco-
nômicas -IBASE .
Esse documento foi em grande parte incorporado ao substitutivo do PL
nº 3.198/00 apresentado pelo relator, deputado Reginaldo Germano, e
aprovado por unanimidade pela Comissão Especial da Igualdade Racial
da Câmara dos Deputados. Espera-se que em breve seja votado em
plenário, e em 2003 seja submetido à apreciação do Senado Federal.
As organizações que subscrevem a proposta “Subsídios para uma Política
Nacional em Favor dos Afro-descendentes” empreenderam também “um
levantamento dos projetos em andamento no Congresso Nacional sobre
a questão racial e formularam uma agenda mínima de prioridades para
as votações, levando em conta os projetos com maior acúmulo no debate
público tais como: PL 715/95, de autoria da deputada Telma de Souza (PT/SP),
que acrescenta artigo à Lei 7.716/89, que defi ne crimes resultantes de pre-
conceito de raça ou de cor, incluindo dentre os crimes de racismo a práti-
ca de injúria, calúnia e difamação; (...) PL 4.833/98, de autoria do deputado
Paulo Paim (PT/RS), que dispõe sobre a representação racial e étnica nos
fi lmes e peças publicitárias veiculados pela televisão, para assegurar a par-
ticipação de artistas afro-descendentes; PL 302/99, de autoria do sena dor
Geraldo Cândido (PT/RJ), que proíbe o uso da expressão “boa aparência”
nos anúncios de recrutamento e seleção de pessoal; PL 1.643/99, de au-
toria do deputado Antero Barros (PSDB/MT), que estabelece reserva de
vagas nas universidades públicas para alunos egressos da rede pública
de ensino.”34
Impõe-se, ainda, a retomada dos diferentes PLs que regulamentam o pro-
cedimento de titulação de propriedade imobiliária aos remanescentes
das comunidades quilombolas, na forma do art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias; bem como a atenção especial às iniciativas
que visam à redução da menoridade penal, que atingem negativa e majo-
ritariamente os jovens e adolescentes negros.
Cenários para a questão racial
34 CARNEIRO, Sueli. Falta o Congresso. Correio Braziliense, Brasília, 11/01/2002. Coluna Opinião.
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200686
O Inesc buscará contribuir para o avanço da questão racial da seguinte
forma:
• apoio iniciativas das organizações negras no campo da advocacia;
• promoção de um fl uxo privilegiado de informações nas áreas
temáticas trabalhadas pelo Inesc junto às organizações negras,
de forma a capacitá-las para uma incidência maior e melhor
qualifi cada naquelas áreas temáticas, em especial no que diz respeito
ao controle social das políticas públicas e dos gastos públicos.
• sensibilização das lideranças da Câmara dos Deputados e do Senado
para que a temática racial possa efetivamente entrar na agenda
nacional, posto que ela se encontra confi nada na Comissão Especial
sobre a Igual dade Racial sem repercutir nas principais lideranças
das duas Casas do Congresso que são as que sinalizam para a socieda
de quais são os temas de maior relevância nacional. O mesmo se faz
necessário em relação aos sistemas de comunicação das duas Casas.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos realizou,
de 1º a 3 de julho de 2002, na cidade do México, o primeiro Seminário
Regional de Especialistas para a América Latina e Caribe sobre o Cumpri-
mento do Programa de Ação Adotado em Durban, resultante da III Confe-
rência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia
e Formas Correlatas de Intolerância. Este seminário reiterou em suas reco-
mendações aos Estados da região a necessidade de implementação
de Planos Nacionais de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial
que “contenham medidas específi cas em favor dos grupos vulneráveis”,
entre eles os afro-descendentes, e que, “de maneira especial, se levará
em conta a perspectiva de gênero que, em muitas ocasiões, produz discri-
minações múltiplas”.
Recomendou, ainda, “integrar a Plataforma de Durban, suas pautas e aspi-
rações nas metas de desenvolvimento e eliminação da pobreza acordadas
pela comunidade internacional nos objetivos do milênio. Os grupos em
pauta devem ser sujeitos de especial atenção na superação do défi cit edu-
cativo; na melhoria da qualidade da educação; na diminuição dos níveis
de incidência da AIDs, particularmente nas populações afro-descendentes;
e no aumento da participação dos grupos excluídos em seu acesso a fon-
tes de emprego.”
A partir de 1990, foram defi nidas sete metas que tratam de diferentes
aspectos inter-relacionados da pobreza, no sentido dos objetivos
a serem atingidos até 2015. São elas:
87
• Redução da proporção de pessoas vivendo em extrema pobreza em 50%;
• Educação primária universal;
• Eliminação das disparidades de gênero na educação (2005);
• Redução da mortalidade infantil e da mortalidade das crianças
menores de cinco anos em 75%;
• Redução da mortalidade materna;
• Acesso universal a serviços de saúde reprodutiva;
• Implementação de estratégias nacionais para o desenvolvimento
sustentado até 2005, de forma a reverter as perdas de recursos
ambientais até 2015.
A Plataforma de Durban estabelece uma nova meta, a oitava, referente
à redução ou eliminação das defasagens raciais e étnicas antes de 2015,
articulando as sete metas anteriores em relação aos grupos discriminados.
A realização desse seminário regional ratifi ca mais uma vez o compromis-
so do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos
com a proteção dos grupos discriminados e com as metas de superação
das desigualdades raciais produzidas pelo racismo e a discriminação na
América Latina e Caribe. É também uma convocação aos estados da região
a impulsionarem decisivamente as medidas decorrentes da Plataforma
de Durban.
Entendemos por isso que todas as iniciativas voltadas para o cumprimento
dos compromissos assumidos pelos Estados em relação às metas de desen-
volvimento acordadas requerem proposições e/ou monitoramento, sobre-
tudo no que diz respeito à observância nas metas de desenvolvimento
das recomendações relativas aos afro-descendentes introduzidas pela
Conferência de Durban.
Cenários para a questão racial
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200688
6. Cenários para a questão de gênero
O contexto pós-eleitoral coloca algumas questões urgentes para o movi-
mento de mulheres. Os resultados da eleição 2002 revelam que nossa
sociedade é hoje mais democrática e que ocorreu, de fato, uma mudança
de mentalidade e de valores para signifi cativa parcela da população.
Ao conformismo, que marcou de maneira tão forte os últimos quatro
anos da política nacional, contrapôs-se a força da indignação, expressa
no surpreendente desempenho obtido pela oposição em 6 de outubro
e na vitória de Lula no segundo turno. Nas eleições para as Câmaras Federal
e Estaduais, e para o Senado, o eleitorado também fez o que pôde e
mudou a correlação de forças político-partidárias.
Nas eleições 2002, as mulheres saíram fortalecidas como movimento
organizado e como população. As questões sociais, as necessidades e
as demandas das mulheres tiveram uma relevância sem precedentes.
As candidaturas femininas cresceram 50% desde a última eleição, em 1998.
O eleitorado respondeu bem e as mulheres conseguiram preencher espa-
ços importantes, obtendo votações expressivas. Em 13 estados, as candida-
turas femininas angariaram o primeiro e o segundo lugares nas eleições
ao Senado e à Câmara. O desequilíbrio de gênero no Poder Legislativo
fi cou, portanto, atenuado.
89
A imprensa tentou explicar esse fenômeno quantitativamente, alegando
que as mulheres representam hoje 51% do eleitorado. Mas a visibilidade
das mulheres foi devido a mudanças qualitativas na participação política.
Houve uma ruptura com a idéia de que o voto das mulheres é um voto
dependente. Isso levou a olhar as mulheres eleitoras como sujeitos com
capacidade de decisão.
A vontade política das mulheres não foi canalizada somente para os parti-
dos. Nessas eleições, a capacidade dos movimentos feministas e de mulhe-
res de se posicionar e se responsabilizar pelas transformações almejadas
aconteceu com bastante antecedência e fi rmeza. Houve uma participa-
ção ativa na construção da Plataforma Política Feminista e na realização
da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras. O processo demandou
a organização de 26 conferências estaduais e de 20 lançamentos da
Plataforma, gerando um debate intenso que renovou a agenda do movi-
mento social e fortaleceu seus atores como sujeitos políticos.
6.1 A democracia radical Para sustentar as mudanças almejadas, será imprescindível a existência
de uma base política organizada, motivada e capaz de dar conta dos de-
safi os que virão. Pela primeira vez no país, estamos diante da possibilidade
de uma democracia radical, onde a participação será questão integrante
da defi nição e implementação das estratégias e linhas de desenvolvimen-
to. As mulheres terão um papel fundamental a cumprir, uma vez que são
maioria nos espaços de democracia participativa no país.
No cenário em que vai se esboçando a construção do novo pacto social (o
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social), os atores são, em sua
maioria, homens brancos. Entre empresários, sindicalistas, evangélicos, ca-
tólicos e gente do terceiro setor, vê-se o pequeno quinhão reservado aos
movimentos sociais, onde as mulheres negras e feministas estão presentes.
Para além da classe trabalhadora e do empresariado, dos trabalhadores ru-
rais e do latifúndio, há novos sujeitos políticos em cena. Os movimentos de
mulheres e feministas, o movimento negro, o movimento pacifi sta, o mo-
vimento de gays, lésbicas e travestis e o movimento ecológico são alguns
deles. É impossível “refundar” o Brasil sem reconhecer esses novos sujeitos.
É hora, portanto, de trabalhar para a mobilização da sociedade; de fortale-
cer a capacidade de mudar a realidade rumo à democracia e à justiça; de
alimentar o sentimento de poder que emana do exercício ativo da cidada-
nia. O futuro vai exigir mais do que alterar a composição político-partidária
no Estado, bem mais que eleger um programa político e rejeitar outro.
Cenários para a questão de gênero
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200690
Exige-se dos movimentos de mulheres, e dos movimentos sociais de uma
maneira geral, a necessária preservação da autonomia frente ao Governo.
Como diz o sociólogo Francisco de Oliveira, é preciso manter a autonomia
para pôr o acento na igualdade, para retirar todas as discriminações e in-
troduzir as classes populares nas instituições mais importantes.
6.2 O papel da sociedade civil Com a vitória de Lula, cresce a importância da sociedade civil organizada.
Os desafi os são enormes, visto que somos o país com a segunda maior
concentração de renda do mundo e enfrentamos grave situação social.
O Governo Lula vai precisar das duas dimensões da sociedade civil organi-
zada: a dimensão crítica e a dimensão do apoio. E o apoio não poderá ser
feito sem a dimensão crítica.
Nesse sentido, a criação de um novo espaço de diálogo entre a sociedade
civil e o Governo – o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social
– merece alguns comentários. Em primeiro lugar, o Conselho mostra a he-
terogeneidade da sociedade civil. A despeito da tendência de pensar que
a sociedade civil organizada é sempre de esquerda ou progressista, cons-
tata-se que ela inclui setores em confl ito por interesses bastante diferentes.
E esses setores estão representados no Conselho. O presidente Lula
se coloca como um negociador que vai possibilitar a criação de pactos.
Mas os pactos não se fazem sem confl itos nem sem o estabelecimento
de uma ordem de prioridades.
Ao examinar o signifi cado das eleições 2002 para a geração-68, é impor-
tante lembrar minimamente o que foi essa geração. Antes de tudo, 68 foi
o ponto de partida de um longo processo de resistência ao autoritarismo
nos espaços públicos e privados e em favor da soberania nacional. Como
em uma catarse, forças muito novas surgiam dentro da própria esquerda
e fora dela, desejosas de uma nova prática política. Emergia o valor da dife-
rença, da diversidade. O movimento verde e o movimento de mulheres es-
tavam entre essas forças, trazendo como características o pacifi smo rebel-
de contra a cultura e pela criatividade. Trata-se de uma grande reviravolta
daquele momento que, no Brasil, se consolida hoje, com a eleição de Lula.
Para a geração brasileira de 68, portanto, estamos vivendo uma conjuntura
de vitória. A vitória é algo que traz novas energias, novas possibilidades,
e a chance de construir as bases de uma sociedade mais justa.
91
A eleição de Lula tem importante signifi cado no contexto internacional. Se
consideramos que o terrível da globalização é a hegemonia dos Estados
Unidos nos campos político, econômico, cultural e bélico, precisamos levar
em conta que a vitória do PT, um partido que sempre questionou explici-
tamente essa hegemonia, não poderia deixar de causar expectativas fora
do país. O novo presidente deve deslocar o eixo das questões de mercado
para problemas de outra ordem, como a pobreza e a injustiça social, esta-
belecendo uma interlocução imediata com uma enorme parcela da popu-
lação deste país e do mundo.
O Hemisfério Sul sofre as conseqüências dos ajustes estruturais negocia-
dos com base nos interesses do mercado. Os últimos oito anos no Brasil,
especifi camente, foram de grande ambigüidade democrática: de um lado,
o imenso comprometimento econômico, com empobrecimento e perda
de soberania; e de outro, a ampliação e o fortalecimento das forças eman-
cipatórias que levaram à vitória de Lula. As possibilidades de seguirmos
adiante no processo democrático, frente às questões externas, dependem,
em grande parte, da qualidade das negociações entre o Governo e a so-
ciedade civil. Qualidade essa que se adquire com a perspectiva de inclusão
daqueles que sempre estiveram fora do jogo da governabilidade, e que
será sempre mais sustentável quanto maior for a capacidade política
de abrigar as diferenças e diminuir as desigualdades.
É preciso requalifi car a negociação política interna. Nesse sentido, a pre-
sença ou a ausência das mulheres organizadas nos espaços de governabi-
lidade serão indicadores concretos dos rumos da sociedade. Isso signifi ca
que o presidente Lula precisará garantir espaço para negociar organica-
mente com as forças que identifi cam o patriarcado como supra-estrutura
cultural condicionante das desigualdades socioeconômicas entre homens
e mulheres. É preciso negociar com o Movimento de Mulheres da mesma
forma com que se negocia com as forças sindicais.
Existe hoje uma ordenação política muito diferente daquela de 20 anos
atrás. O movimento de mulheres conseguiu estruturar-se em torno da
questão feminista: promover a igualdade entre homens e mulheres, re-sig-
nifi cando as diferenças entre os sexos, e, com maior ou menor intensidade,
colocar na agenda da sociedade civil organizada – sindicatos, ongs, parti-
dos -, assim como na do Estado, as questões de gênero.
Um dos desafi os agora será defi nir melhor o espaço da ação política femi-
nista no governo do PT. Em termos de identidade, o feminismo continua
sendo a principal e talvez a única referência política construída a partir
das mulheres.
Cenários para a questão de gênero
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200692
Força política considerável, as mulheres têm uma ação intelectual e prá-
tica de transformação da sociedade que vem dos tempos da Revolução
Francesa e, de forma incessante, buscam a compreensão de outras corren-
tes do pensamento humanista para a importância de desconstruir o pa-
triarcado para romper com as desigualdades, o autoritarismo e a violência.
Não basta às mulheres o papel de coadjuvantes. É importante que haja
espaço político para implementar o projeto feminista na construção
desse país.
7. Cenários para a questão indígena
As potencialidades oferecidas pela Constituição de 1988, que reconheceu
uma série de direitos indígenas, resultaram, no entanto, em avanços muito
tímidos no plano concreto da formulação de uma política indigenista. O
défi cit de regulamentação jurídica nas relações sócio-econômicas entre os
povos indígenas e a sociedade brasileira se constitui no principal entrave
a ser enfrentado pelo novo Governo.
93
O atual desenho do órgão indigenista - a Fundação Nacional do Índio e
suas práticas administrativas - refl ete claramente o espírito da Lei 6.001
(Estatuto do Índio), elaborada em 1973, durante o regime militar e num
quadro jurídico inteiramente antagônico às formulações da Constituição
de 1988. Uma legislação específi ca que viria a substituí-lo de forma harmô-
nica com a Constituição vigente, o Estatuto das Sociedades Indígenas (pro-
jeto de lei 2.057/91), permanece em tramitação no Congresso Nacional
desde 1991. Os Governos que se seguiram evidenciaram a falta de empe-
nho na aprovação dessa lei, introduzindo paralelamente reformas adminis-
trativas que, se por um lado permitiram o início de algumas experiências
inovadoras em Ministérios como os da Saúde e do Meio Ambiente, por
outro lado fragmentaram defi nitivamente a ação indigenista, estabelecen-
do ações de Governo desarticuladas e contraditórias, enquanto paralela-
mente era imposta à Funai uma severa redução de recursos humanos
e materiais.
A década de 90 viu uma reedição de impactos negativos sobre povos
indígenas através dos grandes planos e programas de desenvolvimento
governamentais. Recentemente, tivemos os Planos Plurianuais “Brasil em
Ação” (96/99) e Avança Brasil (2000-2003), com a visão de “Eixos Nacionais
de Integração e Desenvolvimento”35, distribuídos geografi camente por
corredores de transporte para o período de 2000 a 2007.
Foram assim selecionados 42 empreendimentos considerados estratégi-
cos para melhorar a competitividade econômica do país e reduzir as de-
sigualdades regionais e sociais. São, contudo, empreendimentos que têm
um grande potencial de impactar negativamente a vida e o território dos
povos indígenas próximos. Existem indicadores concretos demonstrando
tendências de continuidade desses empreendimentos no Governo Lula.
Temos a perspectiva de execução de um pacote de obras de infra-estru-
tura na mesma direção dos Programas do Avança Brasil, apontando para
o retorno da devastação planejada.
Neste contexto, são preocupantes as mortes e agressões sofridas pelos
indígenas na área Raposa Serra do Sol, em Roraima, em decorrência
da instalação de sedes municipais em meio às malocas indígenas (caso
de Uiramutã) e da expansão da ação dos invasores (especialmente
o caso dos arrozeiros).
Cenários para a questão indígena
35 Fronteira Norte (Arco Norte); Oeste Norte (Madeira-Amazonas); Nordeste (Transnordestino) ; Araguaia-Tocantins; Leste; São Francisco ; Transmetropolitano (Rede Sudeste); Sudoeste ; Mercosul (Sul)
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200694
Da mesma forma, é escandalosa a atividade criminosa de garimpeiros
e madeireiros nas terras dos índios Cinta-Larga, em Rondônia, assim como
as violências e humilhações sofridas pelos Xukuru e os Pataxó (especial-
mente na região de Monte Pascoal, Bahia). Cabe igualmente enfrentar
de imediato a situação de penúria e aviltamento sofrida pelo povo Tuxá
no estado da Bahia, que aguarda há 16 anos os procedimentos de repa-
ração por sua remoção forçada, causada pela construção da Barragem
de Itaparica, bem como a impunidade e a violência implantadas na área
Xucurú, no estado de Pernambuco.
7.1 Os grandes desafi os O desafi o imediato e inadiável, não só do Governo mas dos povos indí-
genas e da sociedade brasileira como um todo, é aprovar o Estatuto dos
Povos Indígenas (PL 2.057/91), inaugurando-se uma nova regulação infra-
constitucional que norteie outros diplomas legais compatíveis.
A negociação do novo Estatuto dos Povos Indígenas deverá enfrentar
e sobrepor pressões setoriais, oligárquicas e econômicas anti-indígenas
– tais como as que se expressam no Congresso Nacional na forma de pro-
postas de emendas constitucionais e projetos de lei ora em tramitação.
São exemplos os projetos de lei sobre mineração em terras indígenas,
os que visam fl exibilizar o rito demarcatório e o marco legal que permite o
acesso aos recursos naturais em áreas indígenas.
O Estatuto dos Povos Indígenas deverá criar as condições para que se cris-
talize um novo patamar de inserção dessas populações no projeto nacio-
nal de país, a partir da incorporação defi nitiva da noção de etnodesenvol-
vimento como arcabouço legal na relação com estes povos.
A noção de etnodesenvolvimento está relacionada com uma concepção
mais ampla e abrangente das condições de vida, não se restringindo ex-
clusivamente a melhorias econômicas. Envolveria, nesse sentido, uma pre-
ocupação com educação básica e capacitação técnica, atendimento
à saúde indígena e valorização cultural, assim como o desenvolvimento
de atividades que promovam a melhoria das condições econômicas e ga-
rantam a sobrevivência e reprodução desses povos. A preocupação com a
terra (questão fundiária) e com os recursos ambientais nela existentes
é prioridade máxima.
Nestes termos, conforme o fi lósofo da educação e professor da USP, José
Mário Pires Azanha, etnodesenvolvimento, quando referido às sociedades
indígenas brasileiras, envolveria os seguintes indicadores:
95
• aumento populacional, com a segurança alimentar plenamente atingida;
• aumento do nível de escolaridade (seja na língua nativa
ou no português) dos jovens aldeados;
• procura pelos “bens dos brancos” plenamente satisfeita através
de recursos próprios gerados internamente de forma não predatória,
com relativa independência das determinações externas de mercado
na captação
de recursos fi nanceiros;
• domínio pleno das relações com o Estado e agências de Governo
ao ponto da sociedade indígena defi nir essas relações, impondo o modo
como deverão ser estabelecidas.
Tais questões são, portanto, os pressupostos para a execução de qualquer
projeto nacional que busque uma harmonia com sustentabilidade da
nossa sócio-biodiversidade caracterizada pela riqueza dos povos indígenas
brasileiros e marca indelével de nossa natureza plurinacional.
O etnodesenvolvimento dos povos indígenas, como observou o antropó-
logo francês Bruce Albert, se dá na inter-relação entre economia, território
e situação sanitária, onde reside o nexo ecológico sobre o qual se exercem
as pressões adaptativas do contato – tais como a redução territorial, a se-
dentarização, a concentração demográfi ca, as perturbações ambientais
– e a partir do qual elas podem ser avaliadas e eventualmente corrigidas
(Albert, apud Müller, 1997). apud Müller, 1997). apud
Em termos gerais, a idéia é discutir a sustentabilidade dos territórios e das
próprias populações indígenas, o que vai desde a sobrevivência primária
(garantia alimentar) até alternativas para o futuro e os anseios de melhoria
da qualidade de vida. Passa, igualmente, por um universo amplo dos dese-
jos e valores que estão em jogo, como a revitalização das tradições cultu-
rais, do sentimento de solidariedade, das formas de reciprocidade e parti-
lha; a segurança alimentar; o fortalecimento institucional das organizações
indígenas; a participação indígena nos processos decisórios; o desenvolvi-
mento diferenciado; e, em termos amplos, a sustentabilidade econômica,
política e cultural.
Em seminário36 realizado no Rio de Janeiro, em dezembro de 2002, as
principais organizações indígenas brasileiras apontaram um conjunto de
proposições que se constituem no núcleo central de prioridades relacio-
nadas às políticas indigenistas de etnodesenvolvimento que deveriam
servir de referência ao novo Governo e serem regulamentadas pelo Poder
Legislativo. Entre elas, destacamos, por assunto
Cenários para a questão indígena
36 Seminário “Bases Para uma Nova Política Indigenista II”, realizado pelo Museu Nacional, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira -Coiab e a Associação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo -Apoinme.
O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/200696
Terras indígenas:
• Exigir prioridade absoluta à regularização fundiária das terras
indígenas ainda pendentes;
• Rever as áreas indígenas já demarcadas e que vêm passando por aumen-
to populacional ou que tiveram suas identifi cações inadequadas;
• Buscar recursos alternativos para a extrusão de não-índios das terras
indígenas;
• Resolver os casos de sobreposição de terras indígenas por unidades
de conservação e fi xar critérios que impeçam novos casos.
Economia Sustentável:
• Criação de um fundo constitucional para fi nanciar projetos
de desenvolvimento indígena;
• Gestão participativa indígena deste fundo;
• Certifi cação de garantia da autenticidade dos produtos indígenas;
• Linhas de crédito e fi nanciamento, como o Programa Nacional
de Agricultura Familiar -Pronaf, o Imposto sobre Circulação
de Mercadorias e Serviços (ICMS ecológico), entre outros;
• Maior transparência quanto aos recursos obtidos e destinados
a projetos de desenvolvimento gerenciados ou estimulados pela Funai;
• Projetos geridos por alguns povos indígenas, como o de aproveitamen-
to sustentável de recursos naturais. Pretende-se apoio para promover
o intercâmbio e a divulgação de projetos indígenas bem sucedidos,
assim como estimular outras iniciativas semelhantes, através de progra-
mas que considerem as especifi cidades regionais, como o Programa
Demonstrativo dos Povos Indígenas -PDPI, coordenado pelo Ministério
do Meio Ambiente.
• Serviços ecológicos: propõe-se a formulação de um programa e um
fundo interinstitucional específi co de valoração e remuneração dos servi-
ços ecológicos realizados nas terras indígenas. O fundo seria utilizado de
forma solidária, independentemente da região de sua arrecadação, prio-
rizando a recuperação e gestão ambiental das terras indígenas degrada-
das em todo o país;
• Maior conhecimento dos recursos naturais existentes nas áreas indígenas,
de modo a permitir sua exploração sustentável;
• Regularização urgente da exploração sustentável dos recursos naturais
exclusivamente pelos indígenas nas suas áreas, inclusive recursos minerais;
• Com relação ao mercado, defi nir uma forma menos agressiva quanto
à fi losofi a e ao modo de vida indígena. Foi feita a proposta de estimular
a organização em cooperativas;
97
Nesta primeira fase do Governo Lula, o Programa Fome Zero é uma opor-
tunidade real de obtenção de apoio para muitos povos que vivem em si-
tuação de penúria e escassez de recursos naturais. O “Mapa da Fome entre
as populações indígenas do Brasil”, publicado pelo Inesc em 1995, mostrou
que havia uma situação de fome crônica em 198 áreas indígenas, totali-
zando uma população de 106 mil pessoas. Esse quadro pouco se alterou.
Foi constatado que a situação de fome é maior nas regiões onde as terras
indígenas sofrem pressão e invasão mais intensas, ou seja, nas regiões
Nordeste, Sul e Centro-Oeste. A maior parte destas terras, além de invadida,
foi degradada e ainda não está regularizada.
É importante destacar que as políticas públicas indigenistas devem, em
primeiro lugar, ter os povos indígenas como interlocutores principais –
resguardada a sua sociodiversidade, a variedade de suas formas próprias
de representação política e a singularidade de seus movimentos políticos
e organizações.
O princípio da participação paritária indígena em todos os fóruns e instân-
cias que afetam diretamente seu destino deve ser um dos norteadores
da ação do novo Governo. Para efetivá-lo, o Governo deve disponibilizar
recursos para a mobilização dos povos indígenas no exercício da participa-
ção democrática, tendo como principal interlocutor o movimento indíge-
na organizado.
A formulação dessa política deveria caber a um Conselho de Estado de
caráter normativo, deliberativo e supervisor, cuja vinculação institucional
deveria garantir sua independência e seu elevado grau de compromisso
com os povos indígenas.
Numa perspectiva de médio prazo, o Governo Federal pode e deve apoiar
a continuidade da refl exão, dentro do Movimento Indígena brasileiro, sobre
a construção de um Parlamento dos povos indígenas brasileiros, como es-
paço para sua articulação, visando a construção de consensos mínimos
em questões essenciais para o relacionamento com o Estado brasileiro.
É essencial e urgente que a política indigenista passe a ser elaborada de
modo integrado, pactuado e solidário, de modo a impedir que os diversos
ministérios desenvolvam programas isolados relativos aos povos indígenas.
Um dos sinais de compromisso e vontade política do novo Governo em
reverter o passivo histórico junto aos povos indígenas seria a assinatura
do Decreto que incorpora ao ordenamento jurídico nacional a Convenção
169, da Organização Internacional do Trabalho -OIT, cujo texto foi aprovado
pelo Senado Federal através do Decreto Legislativo n.º 143,
de 20 de junho de 2002.
Cenários para a questão indígena
99
1. Introdução
Para o Inesc, uma instituição articuladora dos movimentos sociais, a eleição
0o Instituto se constituiu como organização não-governamental no rastro
da ditadura e comprometido, basicamente, com os anseios que fi nalmente
elegeram Lula presidente da República. A identidade entre o Inesc e o novo
Governo é, portanto, evidente e inevitável. Acima disso, contudo, somos
um Instituto suprapartidário, o que é assegurado em nosso estatuto
e enquanto sociedade civil organizada.
Entendemos que devemos exercer um papel independente e crítico.
Um Governo forte é conseqüência de uma sociedade consciente e forte.
O poder Executivo deve ser encarado como uma instância executora do
projeto que obteve a maioria dos votos do povo brasileiro. Não foi fortuito
que o presidente Lula, em seu discurso de posse na Câmara dos Deputados,
tenha se referido a si próprio como “o funcionário público número um
de meu país”. Essa idéia já é indicativa de um conceito novo em relação
ao poder e ao seu exercício.
Introdução
O papel das ongs e do Inesc
O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006100
A atividade política se reveste hoje de uma nova signifi cação que se
encontra disseminada tanto no âmbito do Estado quanto da sociedade.
Contemporaneamente, assiste-se a uma profunda mudança da ação polí-
tica. Há uma descentralização da representação do poder. A ação política,
ao invés de defi nir-se somente através de grupos organizados institucio-
nalmente, passa a expressar múltiplas vozes sociais, antes completamente
silenciadas.
A construção da ação política passa a pautar-se pelo exercício de escuta
dos múltiplos grupos sociais que em sua polifonia defi nem a sociedade.
Ao contrário de algumas profecias pessimistas, em tempos pós-modernos
a ação política não sofreu esvaziamento de sentido e efi cácia. Senão, reno-
vou sua força e atuação ao ampliar os limites da ação política antes restrita
a organizações específi cas e cristalizadas, como os partidos ou sindicatos,
dentre outras.
Ao expandir as fronteiras ou derrubar muros, a ação política atual exige
a transformação do sujeito contemplativo, ancorado em verdades absolu-
tas como progresso, mercado, representatividade, dentre outras, em ator
social que, inscrito em um grupo concreto articula suas reivindicações a
partir de uma rede social que entrelaça interesses individuais e coletivos.
Uma das mudanças signifi cativas das práticas sociais e suas representações
aponta para uma nova condição pós-moderna da sociedade, o que incide
na transformação de determinados valores e práticas que deixam de se
orientar por um conteúdo ontológico e inexorável, dado a-historicamente.
Os valores como democracia, cidadania, justiça e direitos humanos, estão
atravessando o milênio de modo renovado. Passaram de uma idéia fecha-
da em si mesma para um conjunto dinâmico de práticas sócio-políticas
entranhadas no cotidiano dos grupos sociais.
A dimensão política da vida social revela-se cada vez mais signifi cativa,
uma vez que as identidades sociais encontram-se fragmentadas, ocor-
rendo uma espécie de culturalização da política, o que não a torna nem
difusa, nem sem importância; ao contrário, empurra a dinâmica política
em direção às práticas culturais, as quais, por defi nição, são regidas por
uma lógica que expõe uma rede de interdependência entre os indivíduos.
101
Esta rede social faz destacar imediatamente a relação entre ação política
e espaço público, pois o que está verdadeiramente em pauta no cenário
atual é a garantia de acesso ao espaço público, seja para usufruir de um
patrimônio social comum a todos, nas democracias modernas, seja para
reivindicar participação ou mudança nos critérios de distribuição da
riqueza social e cultural gerada por todos.
A temática do espaço público torna-se especialmente importante nas
sociedades contemporâneas, onde predominam valores e signos midi-
áticos que enfatizam, sobretudo, as práticas de consumo. Paralelamente,
ocorre uma espécie de privatização da vida social, com certo encolhimen-
to das redes de sociabilidades, o que enseja a importância fundamental
de se restaurar e revitalizar o espaço público.
O espaço público passa a basear-se num modelo intersubjetivo de enun-
ciação, onde os indivíduos adquirem seu justo tom de voz e enunciam
suas prioridades e possibilidades. Concretamente, é preciso discutir o aces-
so ao espaço público. Há muitas maneiras de ocupar tal espaço, formas
variadas de participação e diferentes frentes de atuação, como por exem-
plo, o Parlamento, considerado um dos mais importantes pilares das
democracias modernas.
A existência de um Parlamento saudável, nutrido por um amplo espectro
de informações, com capacidade de representar os mais diferentes inte-
resses da sociedade, é um pressuposto importante para a consistência
das democracias modernas. Dentre outras funções, o Parlamento deve
ser capaz de elaborar políticas públicas que visem à manutenção das
conecções entre os grupos e a comunicação entre as várias instâncias da
organização social, não permitindo a exclusão de nenhum grupo e instau-
rando na vida social princípios jurídicos-normativos de validade universal
para todos.
Ocupar o espaço público através da atuação no Parlamento signifi ca não
apenas possibilitar aos parlamentares trabalharem com um número maior
de informações oriundas de fontes diferenciadas, como permitir dar voz
a diferentes grupos sociais, os quais, de modo geral, não teriam outros
meios de acesso ao espaço público, especialmente em sua especifi cidade
e concretude, no âmbito do Parlamento.
Introdução
O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006102
A atuação das ongs em várias direções e, especialmente no Parlamento,
tem provocado uma mudança profunda na cultura política brasileira,
não apenas porque contribui para o fortalecimento das políticas públicas,
mas também porque permite que tais políticas abarquem de fato a diver-
sidade social presente na sociedade brasileira.
Além disso, as ongs que atuam no Parlamento têm provocado uma mu-
dança signifi cativa na cultura política, ao estabelecerem um procedimento
diferenciado de negociação política, que quebra a cultura do favor, pois
trabalha a partir de uma compreensão da ação política não mais baseada
no clientelismo e no personalismo, mas visando à construção do diálogo
entre os diferentes grupos que compõem a sociedade e que necessitam
viabilizar processos de comunicação entre si e com os poderes públicos
institucionalizados.
É nesse contexto, e a partir de tais pressupostos, que esta refl exão se anco-
ra para discutir a atuação de uma organização não-governamental especí-
fi ca: o Instituto de Estudos Socioecômicos – Inesc.
Propomos uma refl exão crítica em torno da atuação das organizações
não-governamentais, especialmente do Inesc, tanto em nível histórico
quanto no cenário contemporâneo.
O propósito de mapear algumas temáticas que demarquem o percurso
desenvolvido pelo Inesc busca conduzir a refl exão não apenas para a
trajetória histórica, mas, sobretudo, para o presente, procurando assim
exercer uma vigilância permanente do cumprimento dos objetivos do
Instituto, numa busca incessante de novos possíveis, novo amanhã,
para além do hoje existente.
O surgimento das ongs e sua evolução103
2. O surgimento das ongs e sua evolução
O termo organização não-governamental surgiu no âmbito da Organização
das Nações Unidas - ONU, criada em 1945. A designação buscava identifi -
car um tipo específi co de instituição, diferenciada das instituições governa-
mentais e das empresariais.
A partir dos anos 50, especialmente nos EUA e nos países europeus, come-
ça a proliferar a criação de ongs, as quais passam a diversifi car sua atuação.
No Brasil, as primeiras ongs começam a surgir a partir da década de 1970,
justamente com a reativação dos então denominados movimentos popu-
lares, ou movimentos de base. O Inesc é criado em agosto de 1979.
A partir de meados da década de 70, a obra de Antônio Gramsci37 começa
a ter ampla divulgação no Brasil. Os conceitos de sociedade civil e de he-
gemonia apontam para novas possibilidades de compreensão e reorde-
namento das atividades sócio-políticas.
A década de 70 tem sido caracterizada no Brasil como os anos de chumbo,
período de radicalização da ditadura militar, onde a presença do Estado
encontrava-se super dimensionada e a sociedade submetida ao mais pro-
fundo silêncio. Nesse contexto, sumariamente defi nido, o conceito de so-
ciedade civil aponta para outras modalidades de organização dos grupos
sociais, não vinculadas necessariamente à estrutura partidária, sindical
ou estatal.
Paralelo a este movimento no plano das idéias, alguns grupos sociais pas-
sam a organizar formas alternativas de práticas políticas para viabilizar
o alcance de objetivos comuns, relacionados ao cotidiano desses grupos,
como por exemplo, a estabilização dos preços dos produtos da cesta
básica, a melhoria dos serviços de saúde, educação, transporte coletivo etc.
Tal organização dos grupos sociais ocorreu tendo em vista a concorrência
de vários fatores, dentre eles a presença das ongs, as quais, neste momen-
to, impulsionam a articulação e o desenvolvimento de estratégias discur-
sivas específi cas relacionadas predominantemente às idéias de democra-
cia e cidadania. Constróem, ainda, procedimentos que instauram práticas
concretas que permitem não só organizar um conjunto de atividades
específi cas como também estabelecer uma série de conexões entre
os grupos sociais e a dimensão coletiva de sua existência.
37 Antônio Gramsci, escritor e político italiano (1891-1937). Secretário do Partido Comunista Italiano (1924), foi preso em 1926 e libertado em 1937, dias antes de falecer.
O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006104
Ao longo das décadas de 1970 e 1980, houve crescimento e diversifi cação
dos movimentos sociais, identifi cados, num primeiro momento, como mo-
vimentos populares. Porém, sua ampliação para setores da classe média
e alguns segmentos dos extratos mais altos faz com que estes movimen-
tos passem a ser designados não mais como populares, mas sociais, mo-
mento em que adquirem uma grande visibilidade social e política.
A partir dos anos 1980, os conceitos de movimento social, cidadania,
democracia, dentre outros, adquirirem hegemonia em diversos discursos
em circulação na sociedade, como aqueles produzidos pelos cientistas, in-
telectuais, artistas, políticos, etc. Nos anos 90, outras idéias adquirem força,
como gênero e direitos humanos e transformam-se em vetores na orienta-
ção de condutas sociais e práticas políticas.
Os movimentos sociais não apenas ampliam seu escopo como adquirem
maior visibilidade social, na mídia, no espaço acadêmico. Despertam
a atenção dos partidos políticos e dos órgãos de controle e segurança pú-
blica e, principalmente, passam a contar com um aliado poderoso: as ongs.
O fortalecimento dos movimentos sociais e das organizações não-go-
vernamentais foi signifi cativo ao longo dos anos 80, resultado de muitos
fatores, dentre eles o amadurecimento, a maior consciência política dos
movimentos sociais e o aprimoramento administrativo-institucional das
próprias ongs. Esta nova realidade garantiu-lhes não apenas maior visi-
bilidade no espaço público, mas fundamentalmente transformou-as em
novos atores sociais no cenário político.
Neste contexto, verifi ca-se um movimento de consonância entre os movi-
mentos sociais e as ongs, quando sucede, com ambos, uma mudança de
atitude. Isto é, de uma presença diluída na sociedade, que se nutria de ini-
ciativas isoladas, passa-se a uma nova condição – a de ator político – legíti-
mo representante de interesses coletivos.
As ongs passam a ser portadoras de um capital simbólico específi co,
advindo de seu contato direto e sua proximidade com os grupos organi-
zados da sociedade, o que se traduz num acúmulo de conhecimentos es-
pecífi cos sobre as práticas sociais e suas representações. Estes fatos impri-
mem às ongs uma vitalidade própria e uma especifi cidade social e política
que lhes garante uma “autonomia relativa” no campo da política institucio-
nal, conforme o pensador francês Bourdieu (1982).
O surgimento das ongs e sua evolução105
Tal fato ancora-se justamente na legitimidade que as ongs passam a
adquirir, e isto deve-se ao modo como as mesmas mantém uma relação
orgânica não só com os movimentos sociais organizados mas com todo
tipo de demanda social signifi cativa, do ponto de vista de sua represen-
tatividade, no conjunto da sociedade civil.
Assim, as ongs não comportam-se necessariamente como entidades
de base, mas mantêm de forma sistemática uma base nos movimentos
sociais, o que lhes permite uma permanente vitalidade ao incorporar em
sua dinâmica institucional valores, interesses, confl itos e consensos reinan-
tes no tecido social em sua plenitude histórica; isto é, no interior dos pro-
cessos concretos de produção e reprodução da sociedade em sua multi-
plicidade e complexidade.
Nos anos 1990, as ongs alcançaram uma fase de signifi cativa importância
política no cenário nacional, atuando no interior do Estado e da sociedade
civil, sendo esta última assim designada exatamente por estar organizada
e tornar-se capaz de expressar suas demandas sob a forma de proposições
concretas. As ongs não contribuem, no entanto, apenas para a organização
da sociedade civil, mas também para a democratização efetiva das institui-
ções políticas, ao se constituírem em importantes interlocutores do Estado.
Ao longo da década de 1980, as ongs posicionaram-se predominantemen-
te como mediadoras entre a sociedade e o Estado. Com a consolidação do
Estado democrático no Brasil, as ongs ampliam e diversifi cam suas propos-
tas e suas formas de atuação. Novas idéias, propostas científi cas e políticas
são postas em circulação no conjunto das múltiplas redes discursivas que
a sociedade produz. Dentre estas idéias, destacam-se o desenvolvimento
sustentável, a globalização, o liberalismo e o neoliberalismo, as novas teorias
da identidade e de gêneros, a democracia, os direitos humanos e outras.
As mudanças econômicas, políticas e culturais que se consolidaram nos
anos 1990 foram de grande monta e imprimiram nova dinâmica à socie-
dade brasileira que, por sua vez, buscou inserir-se de modo competitivo
no mundo dito globalizado.
As novas conjunções internacionais, que juntamente com os grandes pro-
gressos nas áreas tecnológica e da informática têm gerado extrema con-
centração da propriedade, da renda e do lucro, e processos avassaladores
de exclusão social, como também os novos reordenamentos nas práticas
culturais e políticas, fi zeram com que as ongs encontrassem novos espaços
de atuação e ampliassem suas agendas, entrelaçando em suas perspecti-
vas de trabalho práticas culturais, sociais, políticas e econômicas
em nível societário e planetário.
O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006106
Dessa forma, é possível afi rmar que, durante os anos 1990, as ongs sofrem
uma sorte de mudanças que incidem não apenas sobre a dinâmica institu-
cional de cada uma, mas sobre o seu modo de inserção na sociedade civil
e em sua relação com o Estado.
Novamente, encontram-se conexões entre mudanças nos movimentos
sociais e nas ongs, ambos passando a assumir uma forma de ação mais
universalista, quebrando a predominância de conteúdos localistas, e deslo-
cando a dinâmica de sua pauta do eixo nacional para o eixo internacional.
Verifi ca-se ainda que alguns temas, como direitos humanos e preservação
do meio ambiente, tornaram-se de interesse geral e transformaram-se em
temáticas transversais, uma vez que são permeáveis aos vários domínios
da sociedade e aos vários campos disciplinares. Essas temáticas suscitaram
a tomada de consciência sobre processos sociais que possuem uma di-
mensão universal, sem deixar de possuir, paralelamente, um enraizamento
local, seja em suas causas ou em suas conseqüências.
No entanto, ao lado da luta pela efetiva implantação dos direitos humanos
em todas as sociedades, não se pode descolar esta conduta de práticas
democráticas concretas, que implicam no exercício da cidadania e em
seus desdobramentos referentes à observação de direitos e deveres
concretos, endereçados a todas os grupos sociais da sociedade.
Esta refl exão conduz à discussão sobre as possibilidades de concretização
de valores universais em confi gurações sócio-históricas específi cas (Elias
-1990). Trata-se de, no contexto das sociedades modernas, afi rmar o valor
da democracia, enquanto regime representativo da maioria, que apesar de
todas as precariedades nos princípios, ou nos modos de realização, apre-
senta como característica vantajosa representar de alguma forma a diver-
sidade social.
A construção de um espaço público como a instância política constituída
pelo Legislativo é de extrema importância para o funcionamento da socie-
dade, enquanto totalidade histórica, pois descortina no horizonte da cultu-
ra política um cenário social pleno de diferenciações, o que repõe a neces-
sidade radical de vincular as idéias de democracia e diversidade.
O surgimento das ongs e sua evolução107
As ongs, atentas aos novos movimentos sociais, aos novos modelos de orga-
nização do Estado e da sociedade civil, reordenam sua forma de atuação,
sem perder de vista a vigilância crítica relativa à diversidade de grupos
sociais que compõem a sociedade e, portanto, à multiplicidade de direitos
e deveres dos cidadãos.
Tal refl exão propõe a aproximação entre as idéias de democracia e diver-
sidade, o que mais uma vez mais reforça a necessidade de garantir acesso
dos diferentes grupos sociais ao espaço público. Neste sentido, é fundamen
tal levar em consideração a importância da vigência dos direitos humanos,
uma vez que estes devem e podem instituir um modelo de referência nor-
mativo, público, plural e universalizante para a organização das condutas
sociais. O papel conferido hoje aos direitos humanos pode reforçar a orga-
nização democrática da sociedade, dentre outros motivos por destacar
o valor da noção de direitos.
Segundo o sociológo Janine Ribeiro (1999), “os direitos humanos
têm forte papel positivo na medida em que concorrem para que o cidadão
moderno se defi na a si próprio a partir de seu direito a ter direitos; a partir,
portanto, de uma idéia de cidadania na qual a recusa do arbítrio,
da dependência da vontade alheia, é crucial”.
Porém, a ênfase nos direitos humanos não pode ser considerada pela
medida dos direitos privados, individuais. Estes oferecem ao indivíduo
a liberdade de usufruirem dos direitos num sentido ou, então, se tenho
o direito de expressão, posso exprimir-me dizendo uma coisa, afi rmando
outra - ou, ainda, calando-me. Ou seja, trata-se da liberdade negativa rei-
nante nos tempos modernos.
Ora, o problema é que tal idéia do direito, fazendo parte de um patrimônio
do indivíduo, perde de vista o que pertence à essência mesma dos direitos
políticos, se os considerarmos como fundamentalmente vinculados à demo-
cracia, isto é, poder do povo. A democracia como um poder constante-
mente criado pelo povo, um poder em perpétua constituição. Se a demo-
cracia é precisamente um regime onde a política é assunto de todos e
deve ser decidida por todos, isso implica que os direitos políticos, na demo
cracia, devam necessariamente ser, ao mesmo tempo, direitos e obrigações.
O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006108
Os direitos políticos nas democracias modernas, revigorados pela temáti-
ca dos direitos humanos, devem estar ancorados nos direitos e obrigações
coletivas e devem ser exercidos levando-se em consideração sua dimensão
política e pública, e não tomar como medida para os direitos humanos
os direitos individuais.
O que há de equívoco é considerar que os direitos humanos podem e
devem ter como medida os direitos individuais, quando o correto é consi-
derar como referência, além dos direitos individuais, os direitos coletivos;
isto é, aqueles direitos que atingem grupos sociais mais amplos.
A multiplicidade e a diversidade dos grupos sociais e das práticas culturais
e políticas, e, portanto, dos direitos e obrigações, são abundantemente re-
gistradas na cultura brasileira e devem servir como referência para a orga-
nização da sociedade civil.
Uma das modalidades organizacionais atuais efetua-se através de redes
sociais, as quais congregam grupos acadêmicos de pesquisa, sindicatos,
partidos, diversas representações religiosas, e ligam outros grupos formais
e informais da sociedade civil, além da presença constante e sistemática
das organizações não-governamentais.
Em síntese, as ongs, além de adquirirem maior autonomia, enquanto atores
políticos, passam por uma internacionalização de seus objetivos e práticas,
que se concretizam, quer nos múltiplos acordos internacionais de coope-
ração técnica e fi nanceira, quer na participação nas mais variadas redes
de organizações e fóruns nacionais e internacionais.
No que diz respeito ao Estado, especialmente nos anos 1990, este deixou
de ser o único interlocutor e parceiro das ongs. Estas assumem outras e
diversas parcerias e passam a interagir com múltiplas vozes e diferentes
atores sociais.
Neste mesmo diapasão, altera-se o conceito de política, e a maior intensi-
dade de tal transformação incide sobre o modo de ser do procedimento
político, o qual passa a incorporar um sentido mais propositivo de ação
política, menos personalista e contingente, e mais encarnado em práticas
sociais e políticas inseridas de forma radical no cotidiano dos grupos sociais.
109
3. Uma breve história do Inesc
No fi nal década de 1970, a sociedade brasileira mostrava os primeiros
sinais de superação dos constrangimentos impostos pela ditadura militar.
A sociedade civil, que esteve anos submetida a rígidas formas de controle,
começava a articular as forças sociais dispersas, demonstrando vigor e ob-
jetividade na organização de reivindicações específi cas que encontram
profunda repercussão nos âmbitos nacional e internacional .
Dentre eles, destacou-se o Movimento pela Anistia, que obteve resultados
fundamentais para a sociedade, especialmente no que concerne à reorga-
nização da cultura e da ciência no Brasil. A Anistia permitiu a volta ao país
de muitos intelectuais e artistas que traziam em sua bagagem uma rica
e diversifi cada experiência. Muitos haviam desenvolvido atividades, antes
da ditadura, que uniam as perspectivas cultural e política, buscando a eman-
cipação da sociedade em relação a seus laços de dependência externa
e condições de igualdade econômica e social no plano interno.
Uma das intelectuais que retornam ao Brasil, sem abrir mão de uma cons-
ciência crítica e da disposição para lutar a favor dos direitos humanos e
pela melhoria das condições sociais, foi Maria José Jaime, a Bizeh. Nascida
em Goiás, retornou em 1979 às terras do Planalto Central com um fi rme
propósito: manter aberto o horizonte da política, ampliando seu escopo
quer no que se refere às formas de atuação política, ou a novos conteúdos
sociais, culturais e econômicos, associados à perspectiva política.
No fi nal da década de 70, a sociedade brasileira ensaiava os primeiros pas-
sos rumo à normalização democrática. Nesse contexto, começaram a ser
formalizados os grupos sociais que se dedicavam ao ordenamento de
ações políticas concretas, em consonância com os anseios da sociedade.
Em 1979, Bizeh cria o Inesc e, junto com sua equipe, promove a consolida-
ção e o desenvolvimento do Instituto durante 23 anos. Bizeh é parte im-
portante da história relatada a seguir.
Uma breve história do Inesc
O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006110
O Inesc começou sua atuação vocacional como entidade voltada à consul-
toria parlamentar. Após três anos de experiência nessa atividade, surgiu a
necessidade de ampliação dos horizontes. Isso ocorreu a partir da consta-
tação da importância de estreitar os encontros entre os consultores e os
parlamentares, bem como a aproximação e discussão conjunta entre os
próprios consultores. Assim, o aprofundamento desse trabalho resultou
na necessidade de ampliação do número de consultores. Esses fatos cons-
tituem o embrião da formação do corpo técnico do Inesc.
O Inesc começou a confi gurar, com maior nitidez, um perfi l institucional
que, aos poucos, afi rma seu caráter independente e resoluto na defesa
de princípios éticos, informando a atividade política.
Biseh Jaime: fundadora do Inesc
111
Passa a pautar sua atu a ção não só ancorando-se numa postura institucional,
como também articulan do-se com outras instituições da sociedade civil,
como a Confederação Na cional dos Trabalhadores na Agricultura –Contag;
a Confederação Na cional dos Bispos do Brasil –CNBB; sindicatos; partidos;
academia, etc.
É interessante observar que a história do Inesc acompanha a própria his-
tória da constituição e atuação das organizações não-governamentais no
Brasil. A vocação do Inesc nunca se desvirtuou, sendo fi rmada com muita
convicção desde o início.
Por volta de 1981, estabeleceu-se um contato com a Instituição Desenvol-
vimento e Paz, do Canadá, que aprovou um projeto de fi nanciamento apre-
sentado pelo Inesc. O fi nanciamento visava à promoção de seu desenvolvi-
mento institucional, viabilizando sua autonomia fi nanceira.
Posteriormente, contatos com outras instituições internacionais foram rea-
lizados, e viabilizados outros projetos e fi nanciamentos. A autonomia fi nan-
ceira concretizou-se por volta de 1982-1983. Neste mesmo período, devido,
entre outros fatores, à maior estabilização fi nanceira, o Inesc entrou em
rota de plena expansão.
Especialmente nesse momento, uma das opções signifi cativas do Inesc
foi priorizar a questão indígena como área temática que merecia atenção
especial, tendo em vista a gravidade do genocídio das populações indí-
genas, seu estado de miséria e abandono. Essa realidade suscita até hoje,
no corpo técnico do Inesc, a consciência de uma atuação urgente com
relação a esses grupos sociais. Também, dentro desta mesma lógica, a te-
mática agrária é introduzida como questão estruturante para a ação políti-
ca, na medida em que começavam os movimentos em torno do direito
à terra e da realização da reforma agrária.
Depois de desfrutar de uma posição mais consolidada no interior-
do Congresso Nacional, o Inesc começou a ganhar projeção fora do
Parlamento e a estabelecer contatos sistemáticos com outras entidades
congêneres. Tais fatos conduziram ao crescimento da instituição, tanto
no que se refere ao seu corpo técnico quanto às suas formas de atuação.
No período das Diretas-Já, o Inesc já apresentava um perfi l mais defi nido,
uma atuação reconhecida dentro e fora do Congresso Nacional; um aumen-
to signifi cativo do número de funcionários e a ampliação das áreas temáti-
cas consideradas foco de atenção privilegiada.
Uma breve história do Inesc
O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006112
Assim, foi criada a área de direitos humanos, que já englobava questões
indígenas assim como aquelas relativas às formas de solidariedade interna-
cional a todos os países que estavam em guerra na América Latina. O Inesc
se aproximou dos movimentos sociais para além dos índios e cam poneses
e começou a atuar junto aos seringueiros e extrativistas da Ama zônia bra-
sileira, tendo realizado o primeiro Congresso Nacional de Seringueiros, que
contou com a presença de um dos maiores líderes deste movimento,
inclusive seu ícone, Chico Mendes.
A temática dos direitos humanos sempre foi central nas preocupações e
nos debates travados pelo Inesc. Desde o começo, o Instituto manteve con-
tato com entidades de direitos humanos, inclusive algumas foram criadas
junto com o Inesc. Por exemplo, passou-se a articular contatos diretos com
a Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, com várias entidades de Brasília,
e também com o Clamor, grupo de São Paulo.
Nesse momento, quando estavam em marcha no Brasil os processos de
abertura democrática, o Congresso Nacional voltou a assumir relevância
no cenário político, onde o jogo das forças políticas vivas da sociedade
começava a se manifestar.
O Inesc passou a ocupar um lugar de grande importância no cenário polí-
tico nacional ao desempenhar o papel de intermediário entre a sociedade
civil e o Estado e entre as outras ongs e o Congresso Nacional.
Os papéis de aglutinador e articulador desempenhados pelo Inesc fi zeram
com que seus horizontes e atuação alcançassem a América Latina, através
de contatos e trocas com entidades relacionadas à temática dos direitos
humanos.
No período compreendido entre 1983 e 1986, o Inesc encontrou campo
fértil de trabalho, diversifi cando suas atividades tanto no Parlamento quan-
to na sociedade civil. Em relação ao trabalho com os parlamentares, novas
estratégias de aproximação entre os deputados e a sociedade foram viabi
lizadas. Todos os relatos sobre o Inesc enfatizam a busca incessante de apro-
fundar a refl exão e a atuação em torno das áreas temáticas tomadas como
objeto de interesse, e a tentativa permanente de incluir novas áreas, ampli
ando as possibilidades de ação do Inesc.
Nos anos 1986 e 1987, o Inesc aprofundou seu trabalho no âmbito do
Congresso Nacional. Começava, naquele momento, a preparação para a
Assembléia Nacional Constituinte. O INESC adquiriu, nesse período, maior
consistência institucional, assumindo atitudes enquanto ator político.
113
Assim, o Instituto ganhou as ruas, aproximando-se mais do cotidiano do
povo, que em suas múltiplas misturas e seus variados arranjos evidenciavam
o verdadeiro tecido social da realidade brasileira.
É interessante frisar que o Inesc, nesse momento, diversifi cou suas atividades,
atuando na assessoria a parlamentares; conduzindo a ação no Legislativo;
assessorando prefeitos do campo progressista; participando de ações no
âmbito do Executivo, intensifi cando o contato com outras entidades e
concretizando uma ação no interior da sociedade civil.
Desta forma, o Inesc buscou realizar um trabalho substantivo em todas
as suas frentes, inscrevendo em suas atividades um caráter crítico-refl exivo
e um compromisso com a construção democrática. Movido por tais
prerrogativas, o Inesc procurou desenvolver ações concretas no espaço
público. Buscou, inclusive, fortalecer a própria idéia de espaço público,
propondo a organização de uma nação constituída de cidadãos, onde
todos podem e devem participar do seu destino histórico.
Em 1986, o Inesc promove mudanças institucionais e administrativas qua-
litativas, ao redimensionar sua gestão fi nanceira. Os procedimentos fi nan-
ceiros mudaram de orientação e passaram a ser operados, tão somente,
com os recursos já adquiridos e instruídos em caixa, tendo sido implan-
tados uma política orçamentária e um planejamento fi nanceiro. O Inesc
começava então um aprofundamento rumo à sua profi ssionalização e
ao fortalecimento institucional.
Logo depois desse movimento, começou a organização da Constituinte.
A participação do Inesc foi intensa e de grande importância no que diz
respeito à sua atuação em relação às questões indígena e agrária e às
primeiras iniciativas em relação ao meio ambiente. O Inesc, depois disso,
passou a incorporar os temas indígena, ambiental, dos sem-terra e
a discussão dos direitos humanos, que mais tarde sofreram um desmem-
bramento temático com a incorporação das questões da criança e do
adolescente, violência, etc.
O trabalho na Constituinte aprofundou a dinâmica interna do Inesc,
ao consolidar seus procedimentos de trabalho, aprofundar sua atuação
nas áreas temáticas e processar os conteúdos por meio de textos que
fossem instrumentos de ação política. Essa consolidação se expressava
na articulação que o Inesc construiu com as Redes e Fóruns da sociedade
civil organizada, que incluem as ongs, os movimentos sociais e sindicatos,
onde o Instituto ocupa, ainda hoje, posição privilegiada na maioria deles.
Uma breve história do Inesc
O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006114
Vimos que o Inesc aprofundou e diversifi cou suas ações, mantendo fi rme
sua posição de luta frente às áreas temáticas eleitas como campos de
trabalho, tais como as questões indígena, agrária, de direitos humanos,
meio ambiente, criança e adolescente e questões internacionais (comércio,
sistema fi nanceiro, tratados internacionais). Além disso, foi defl agrado
um trabalho de intensa produção de informação, por meio da elaboração
de boletins, livros e revistas que ganharam repercussão nacional. Hoje,
a linha editorial é bem maior e a distribuição é feita nacional e internacional-
mente.
Em síntese, durante o período compreendido entre 1986 e 1989, quando
o Inesc completou 10 anos, apesar das condições de trabalho ainda precá-
rias e da intensidade das tarefas a serem cumpridas, havia uma crença
inexorável e uma determinação resoluta nos objetivos e nos resultados
do trabalho implementados. Esses haviam alcançado uma consolidação
e adquirido, de forma consistente, legitimidade política e prestígio profi ssional.
De 1989 a 1992 foram anos difíceis que arrefeceram os ânimos e reduziram
as perspectivas: foi a chamada era Collor. No entanto, de modo surpreen-
dente e revigorado, a própria sociedade, por meio de seus vários grupos
organizados, começou a se mobilizar em torno da questão do impeachment
do Presidente da República. Foi constituído, nesse momento, o Movimento
pela Ética na Política, que se desdobrou no Movimento Ação e Cidadania
e este, por sua vez, organizou-se por meio da Campanha Contra a Fome
e a Miséria, e pela Vida. A presença do Inesc foi marcante e vital para
a renovação dos horizontes políticos, que começavam a ser gestados
naquele momento.
O Inesc viveu essa espécie de vácuo político e crise institucional do Estado
de forma madura. Isso ocorreu porque o Instituto já detinha uma experiência
consistente, por já ter enfrentado situações de extrema difi culdade,
como o período da ditadura.
Assim, o mais positivo desse momento é que foi retirado dele uma poderosa
lição: era preciso reformular a concepção de política e, conseqüentemente,
o método e as práticas políticas. Fatos signifi cativos haviam ocorrido:
a queda do muro de Berlim, em 1989; as mudanças realizadas na Europa
do Leste; a transnacionalização do capital, cada vez mais incisiva; as mudan-
ças no plano da cultura, com o surgimento de novos atores sociais demar-
cados por identidades micrológicas, defi nidas a partir das idéias de gênero,
sexualidade, etnia, etc.
115
Dessa forma, as concepções políticas que propunham como referência
básica grandes sistemas totalizantes tornaram-se inoperantes frente às
novas realidades. Era preciso construir uma proposta de ação política
que se aproximasse dos movimentos mais sutis e profundos da cultura.
Assim, tornou-se viável estreitar as idéias de ética e política, produzindo
um grande rendimento para o maior amadurecimento da cultura
política brasileira.
Era preciso rever as práticas de intervenção política, aprofundar os conhe-
cimentos e se mostrar propositivo no enfrentamento das questões nacio-
nais de interesse público. Não podíamos mais nos manter em posturas
defensivas. A sociedade civil brasileira era chamada a assumir a responsa-
bilidade por seu destino.
Mais uma vez, o Inesc exerce sua liderança, sua capacidade de articulação
política, congregando as várias entidades como ongs e outras como a
CNBB. Esse conjunto de organizações envidou esforços para que a cons-
trução democrática estivesse assentada sobre o exercício público e ético
da política, tendo em vista a plenitude da cidadania.
Com a criação do Movimento pela Ética na Política e o lançamento de
seu manifesto, o Inesc foi designado para a secretaria do Movimento e,
logo em seguida, vieram as denúncias contra o então presidente Fernando
Collor. O Movimento pela Ética tinha algumas normas, e não tinha uma di-
reção. Era composto por uma secretaria e algumas entidades. Havia o
manifesto e com base nele cada organização tinha autonomia para reali-
zar, na sua entidade, nos seus estados, atividades que convergissem para
aqueles princípios que estavam ali delimitados.
O Inesc teve participação ativa todo o tempo. Nossa primeira manifestação
foi uma passeata em Brasília, que saiu da Ordem dos Advogados do Brasil
-OAB- e foi até o Congresso Nacional. O movimento cresceu e tomou todo
o país. Aí veio o impeachment, um dos momentos de maior experiência
cidadã vivido pelos brasileiros.
É assim que, a partir de uma refl exão sobre a ética na política, e a consta-
tação de difi culdades e desigualdades sociais, econômicas e políticas exis-
tentes na sociedade brasileira, começava a ser delineada uma ação política
no interior da sociedade, buscando enfatizar a mediação pública entre
sociedade e Estado. Esse período foi muito importante, na medida em
que o Inesc participava, promovia, articulava conexões políticas, passando
a compreender então, política como capacidade dialógica.
Uma breve história do Inesc
O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006116
Foi decisiva a participação do Inesc na implantação e efi ciência tanto
do Movimento pela Ética na Política quanto na Ação Contra a Fome e a
Miséria e pela Vida. Como conseqüência de sua atuação, o Inesc cumpriu
um papel fundamental no processo de consolidação democrática, ao
contribuir para a maior visibilidade da sociedade civil, permitindo seu
acesso às instâncias de decisão política.
A percepção e o reforço às formas de solidariedade existentes na socieda-
de brasileira mostraram-se de extrema importância. Dentre outras conse-
qüências, ajudaram a reverter estereótipos sobre nós, brasileiros, vistos como
portadores de um individualismo primitivo, cujo valor supremo é a vantagem
pessoal, e a sociedade percebida através do signo da violência. O Movimento
pela Ética na Política e a Ação Contra a Fome e a Miséria e pela Vida estavam
referendados pelo conhecimento das profundas distorções e desigualdades
presentes na estrutura social brasileira.
Embora o Inesc tenha diversifi cado e ampliado suas estratégias de atuação,
nunca abandonou seus princípios básicos de defesa dos direitos humanos
e a luta permanente pela construção democrática. Tampouco arrefeceu
sua participação no Parlamento, buscando sempre torná-lo o mais represen-
tativo possível da dinâmica e da diversidade da sociedade. O Inesc contribuiu
com a Campanha atuando na organização, na viabilização fi nanceira, na
ação política e na elaboração de uma pesquisa importante sobre a situação
de fome entre os povos indígenas do Brasil. O Mapa da Fome dos Povos
Indígenas do Brasil tornou-se referência para a incorporação dos povos
indígenas nesse debate e na tomada de consciência sobre a real situação
dos mesmos, muitas vezes idealizada pelos cidadãos.
Ao longo de vinte e três anos, o Inesc desempenhou uma missão política
de profundo signifi cado, pois sua atuação, especialmente no interior do
Parlamento, transformou-o em um ator político que amplia a legitimidade
do espaço público no cenário político.
Um dos principais objetivos foi o de tornar o Parlamento mais represen-
tativo da sociedade. Ao longo dessas duas décadas, o Inesc concretizou
formas promissoras para transformar o Parlamento em um espaço público
mais democrático. Embora o objetivo seja fazer com que o Congresso se
torne cada vez mais democrático, isso é algo que, obviamente, não temos
condições de cumprir sozinhos. Essa é uma tarefa de toda a sociedade.
Nós somos uma parte da sociedade que está lá dentro, lutando por isso,
mas ancorada na sociedade civil organizada.
117
No momento atual, o Inesc mantém a fi rme convicção de sua missão po-
lítica no interior do Parlamento e sua vocação para promover o agencia-
mento e a articulação junto a vários grupos sociais dispersos na realidade
brasileira. O Inesc acredita que a cidadania passa pela capacidade de aper-
feiçoamento dos mecanismos de controle social, da construção do sentido
do público e do campo dos direitos humanos como eixos fundantes
de um novo indivíduo e de novos valores societários.
Como resultado do seu amadurecimento, o Instituto passou a especifi car,
com instrumentos de ação cada vez mais depurados, sua atuação junto
ao Parlamento, como a ação desenvolvida junto à Comissão de Orçamento,
para acompanhamento e avaliação permanente da implementação das
políticas sociais do Governo federal. O Inesc se transformou na instituição-
referência sobre o funcionamento do ciclo orçamentário, o uso do dinheiro
público e os mecanismos de controle sobre o mesmo. O Inesc educa cida-
dãos e capacita organizações para que exerçam o direito e o dever do
controle sobre o orçamento público e sobre as políticas públicas de inte-
resse público.
Entre as questões mais recentes que vêm desafi ando o Inesc, existem os
temas relativos ao debate internacional, repartidos em três grandes blocos:
aquele relativo ao chamado “Ciclo Social da ONU”, onde consideramos todo
o processo dos anos 1990 onde foram construídos novos princípios que
orientam a ação dos Estados-Nação membros das Nações Unidas -o chama-
do campo dos Direitos Humanos de última geração -; um segundo campo
que foi o debate sobre as instituições fi nanceiras multilaterais e as dívidas
externa e interna; e um terceiro, inaugurado neste início de século, que
são os debates sobre integração comercial.
O Inesc aceitou o desafi o de se aprofundar nestes temas, participando ati-
vamente de todos os processos a eles relativos, atuando em todos os es-
paços, ofi ciais ou não-governamentais, monitorando e tentando perceber
as tendências das discussões, as repercussão internas das decisões interna-
cionais, tanto no âmbito orçamentário quanto no das políticas sociais.
Sobre os rumos do Inesc, pretendemos continuar evoluindo como enti-
dade, assim como evoluímos nesses vinte e três anos, na medida em que
refl etimos sobre o nosso conteúdo político e organizativo. Enquanto a
sociedade brasileira vai mudando, novas demandas vão sendo formuladas.
Hoje, a sociedade tenta intervir sobre o próprio processo legislativo, para
democratizá-lo.
Uma breve história do Inesc
O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006118
O Parlamento federal continua sendo um espaço privilegiado do trabalho
do Inesc por ser aquele que permite a maior participação dos diferentes
setores da sociedade brasileira, na defesa de seus interesses e do interesse
público.
Além disso, o Inesc tem promovido seminários com representantes qualifi -
cados dos círculos científi cos, políticos e da sociedade civil em geral.
Igualmente, tem participado de fóruns de discussão permanentes sobre
temas de interesse coletivo, como dívida externa, a questão agrária,
a exclusão social, etc. Mantém um diálogo sistemático com outras ongs,
sindicatos, universidades e outras entidades nos âmbitos nacional e inter-
nacional. O Inesc está fi rmemente ligado às organizações do campo demo-
crático, popular e progressista, atuantes na construção de um mundo
mais justo, solidário e igualitário.
Confi rmando a proposta de diversifi cação das ações e da construção de
parcerias, o Inesc, atualmente, está sediando a Rede Brasil sobre Instituições
Financeiras Multilaterais, e é responsável pela secretaria desta Rede.
Também participa da coordenação das principais Redes, Fóruns e Grupos
de Trabalho temáticos que existem no país e nos espaços internacionais,
participando ativamente do Fórum Social Mundial.
Enquanto ator político, o Instituto viabilizou novas práticas políticas para
ampliar o acesso dos mais diferentes grupos sociais ao espaço público,
visando, dessa forma, ao exercício concreto da cidadania. Foi assim que
o Inesc construiu uma experiência sólida, não perdeu o rumo político,
não esqueceu de seus objetivos primordiais e, em consonância com
os tempos pós-modernos, mantém acesa a luz da utopia na busca por
um mundo melhor para todos os habitantes do planeta.
119
4. Pressupostos metodológicos
Sabe-se que o mundo global apresenta uma interdependência complexa,
em permanente mudança nas conexões entre as esferas da sociedade,
entre os grupos e entre as nações.
O sociólogo português Boaventura Santos (1996) propõe que sejam
examinados os processos de globalização e localização, buscando não
perder de vista que os procedimentos e mecanismos de globalização têm
um modo específi co de inserção em cada realidade histórica concreta,
como é o caso das diferentes nações.
É fundamental, portanto, não perder de vista as relações entre o local
e o global, o singular e o universal, o nacional e o internacional. Faz-se
necessário, em cada caso particular, examinar o modo específi co de
entrelaçamento entre esses fatos ou dimensões.
Nesse sentido, as ongs têm procurado trabalhar com valores universalistas,
como sociedade civil, democracia, cidadania e direitos humanos, sem
contudo deixar de examinar o modo como tais idéias são enraizadas
e incorporadas à dinâmica das sociedades nacionais.
Diante da complexidade da sociedade atual, não se deve considerar nem
o Estado, nem a sociedade civil, como blocos monolíticos. A diversidade
de interesses e de posições é rica e garante a possibilidade de múltiplos
arranjos sociais, políticos e econômicos.
Assim, a democracia deve garantir condições iguais de acesso aos equipa-
mentos e procedimentos sociais que permitam o exercício da cidadania
por todos os grupos sociais. Nesse sentido, a democracia, além de garantir
a igualdade de acesso aos serviços públicos, deve exibir a diversidade dos
grupos sociais, suas formações e perspectivas diferenciadas, viabilizando
a concretização de objetivos variados e específi cos.
Não se deve ignorar que é o cidadão o verdadeiro ator da democracia,
e não o Estado, o que enseja a consolidação crescente da sociedade civil.
Este é um dos pressupostos básicos que têm orientado a ação do Inesc.
As ongs, de modo geral, e o Inesc, de modo particular, têm pautado suas
ações lutando, através de ações concretas, por uma sociedade civil autô-
noma e dinâmica, encorajando o fortalecimento de diferentes expressões,
cujos objetivos visam à emancipação política, econômica e social dos mais
diferentes grupos sociais.
Pressupostos metológicos
O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006120
Decorrente desses pressupostos, surge um princípio fundamental referente
à necessidade permanente de construção da autonomia da sociedade civil
e da capacidade dessa sociedade se somar às iniciativas do Estado. Isto
signifi ca, ainda, a construção e ampliação do espaço público e a transfor-
mação das demandas sociais em proposições políticas concretas.
As ongs têm tido um papel fundamental enquanto atores na construção
de uma esfera pública ampliada. Como atores políticos, têm desempenha-
do um papel crucial para a consolidação democrática, ao possibilitarem
maior consistência nas relações entre a sociedade e o Estado, ou ainda,
por viabilizarem a capilaridade dos mecanismos de poder do Estado no
interior da sociedade. Ou seja, as ongs concretizam uma relação de media-
ção entre os poderes constituídos do Estado e a realidade vivida por gru-
pos sociais portadores de uma experiência social cotidianamente produzi-
da e reproduzida no interior da sociedade.
O Inesc tem organizado sua ação não apenas como ator político, mas tam-
bém como ator social, enquanto produtor de conhecimento e de informa-
ções empíricas relevantes sobre a realidade brasileira.
Há, hoje, um conjunto sistemático de informações geradas pelas ongs
como um todo, assim como pelo Inesc, que atualmente constitui um acer-
vo signifi cativo concernente à melhor compreensão da realidade brasileira.
O outro princípio fundamental que sustenta o modo de ação do Inesc diz
respeito à construção, articulação e ampliação do espaço público, através
da organização efetiva de grupos sociais, como mulheres, crianças, idosos,
pequenos produtores urbanos e rurais, além de todo grupo social excluído,
quer culturalmente (como os gays e exilados de todo tipo), quer economi-
camente, como aqueles que estão à margem do mercado de trabalho.
Essa atuação se concretiza em dois níveis: primeiro, através da busca de
relacionamento entre o conhecimento total da sociedade e o conhecimen-
to relativo a universos sociais mais específi cos; o segundo nível de atuação
refere-se à construção de estratégias que articulam o procedimento demo-
crático geral da sociedade às reivindicações específi cas da realidade micro-
lógica.
Este modo de atuação das ongs tem uma conseqüência concreta que é
a capacidade de reconhecer a demanda social. Dessa experiência, tem
resultado dois desafi os: o primeiro refere-se à construção e ampliação
permanentes do espaço público; o segundo diz respeito à articulação
de ações coletivas intra e inter grupos sociais existentes na sociedade.
121
Vencer tais desafi os signifi ca fortalecer a existência de uma sociedade ver-
dadeiramente democrática e multicultural, onde o discurso da diferença
não seja uma mera retórica, cuja cilada é o autoritarismo dissimulado ou
explícito.
Alguns pressupostos equivocados devem ser apartados do horizonte polí-
tico e pragmático das ongs e, igualmente, do Inesc. Trata-se do signifi cado
e alcance da ação implementada pelas ongs. Estas não devem almejar
a substituição da ação do Estado; não devem e não podem, igualmente,
se transformar em meros parceiros complementares à ação defi citária
dos Estados.
Não se trata de substituição, mas de deslocamento da compreensão da
atividade política, que passa da atitude de dependência em relação ao
Estado às formas alternativas de organização política da sociedade civil.
Mais do que buscar substituir ou complementar a ação do Estado, as ongs,
e o Inesc em particular, postulam-se como aliados na busca da governabi-
lidade da sociedade brasileira.
Governabilidade que deve ser entendida não só como o exercício do poder
ou a função executiva do Governo, mas algo mais amplo que abarca “todas
as condições necessárias para que esta função se possa desempenhar com
efi cácia, legitimidade e respaldo social”, conforme Gelson Fonseca Júnior,
representante do Brasil junto à ONU.
É através de uma substantiva governabilidade que é possível alcançar uma
verdadeira democratização das gestões públicas: o aumento do grau e do
modo de participação dos cidadãos em processos decisórios das políticas
nacionais.
As ongs têm lutado obstinadamente para promover a participação plena
ou cidadã, a qual é vista como um processo capaz de gerar uma nova di-
nâmica na organização social, fomentando a participação e a intervenção
popular nas políticas públicas.
Tal participação não deve se esgotar no âmbito de projetos setoriais,
mas deve se relacionar, diretamente, com questões mais amplas, tais como
a democratização, a equidade social, a cidadania e a defesa dos direitos
humanos. Nesse sentido, requer sobretudo a democratização do poder
no que se refere ao uso de recursos fi nanceiros e sobre a defi nição e
implementação de políticas públicas.
Pressupostos metológicos
O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006122
A participação da sociedade civil na gestão das políticas públicas é funda-
mental no estabelecimento de uma ordem democrática sólida, especial-
mente se concordamos com o economista Paul Singer (1977), que diz:
“o Estado preside uma economia que sem dúvida é de mercado, mas também uma ad-
ministração pública que é democrática e que deve estar ao serviço da maioria dos cida-
dãos, sem distinção entre os que têm e os que não têm capital”.
Atualmente, verifi ca-se no Brasil, e em nível internacional, que os processos
de globalização têm sido acompanhados por processos de concentração
de renda, exclusão social, aumento da miséria e da pobreza.
“A pobreza, hoje, não deve ser vista apenas como herança do passado. Está em curso
uma nova produção da pobreza, resultado do modo de crescimento econômico e das
características da evolução social, assim como das políticas postas em prática. Deste
ponto de vista, cabe falar não só da pobreza, mas sim de um processo ativo de empo-
brecimento: não só aumenta o número de pobres, mas se aprofunda a pobreza”. (Singer
1997 – p. 38)
A constatação das afi rmações acima referidas conduz à necessidade pre-
mente de se construir procedimentos políticos que introduzam preceitos
éticos e ações efi cazes na organização de objetivos e interesses específi -
cos dos grupos sociais.
A necessidade de uma ação sistemática, organicamente apoiada em práti-
cas sociais concretas, capaz de revelar a especifi cidade dos grupos sociais,
torna-se cada vez mais urgente frente aos mecanismos de globalização,
como o incentivo às “forças cegas” do mercado e ao consumo, o que pode
ameaçar as bases de solidariedade, fundamentais para a reprodução razo-
ável do tecido social.
Os ditos processos de globalização, que transformaram o cidadão em mero
consumidor, provocaram uma brutal concentração das atividades econô-
micas, do capital e da renda, e aumentaram sobremodo a pobreza, o que
em conjunto tem trazido muitos resultados nefastos para a sociedade.
Uma conseqüência social bastante visível é o aprofundamento dos pro-
cessos de exclusão social, quer econômica, quer simbólica: processos que
levam ao individualismo em todos os níveis, à individualização da deman-
da social, à perda de identidades coletivas, à fragmentação da sociedade.
Na sociedade contemporânea, mais do que em outros períodos históricos,
faz-se necessário incrementar e dinamizar a participação coletiva nas ins-
tâncias públicas de decisão, sobre o destino e a história dos grupos sociais.
123
Nesse sentido, o Parlamento, enquanto instância de decisão política, cujo
funcionamento satisfatório garante as bases da sociedade democrática,
requer a presença sistemática de grupos organizados da sociedade civil.
As atividades políticas não devem se restringir apenas à participação
dos cidadãos nos momentos de campanha eleitoral, quando de modo
geral ocorre uma ritualização da política, que condensa um momento
de grande vitalidade para a sociedade. Essa vitalidade, porém, ocorre
de forma intermitente e, por si só, não garante a predominância dos
procedimentos democráticos na gestão da política.
Além da necessidade de realização de campanhas eleitorais transparentes,
com apresentação de propostas concretas e viáveis, urge a manutenção
das atividades políticas, garantido-lhes continuidade e possibilidades efe-
tivas de realização, além de impulsionar as forças sociais capazes de con-
gregar objetivos coletivos e interesses comuns, isto é, praticar o exercício
da política, o que implica, necessariamente, em arranjos grupais e minima-
mente institucionalizados.
É preciso assim estabelecer conexões mais plausíveis entre as práticas polí-
ticas e a vivência cotidiana dos grupos sociais, vinculando de modo defi ni-
tivo política e cultura. É preciso ampliar a capacidade de organizar “propos-
tas políticas plausivelmente sustentadas por valores e princípios culturalmente vigentes”. tas políticas plausivelmente sustentadas por valores e princípios culturalmente vigentes”. tas políticas plausivelmente sustentadas por valores e princípios culturalmente vigentes”.
(Fonseca Júnior 1998).
Igualmente importante é a relação entre a política e o cotidiano, pois as
práticas políticas deveriam emergir do cotidiano e a ele retornar sob a
forma de gestão pública dos interesses individuais.
A regularidade da prática política suscita seu desenvolvimento e dinamis-
mo, quer no interior da sociedade, quer no âmbito do Parlamento, o que
concorre para a diversifi cação dos “cenários do poder”, segundo o antro-
pólogo francês Georges Balandier (1980); isto é, além dos rituais políticos,
que por defi nição são esporádicos, como campanhas e eleições, é preciso
construir procedimentos que mantenham diálogos entre os diferentes
grupos sociais, ou as partes envolvidas e as instâncias políticas.
Pressupostos metológicos
O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006124
A importância da atuação das ongs no Parlamento, e em particular do Inesc,
que defende os interesses de grupos considerados “minorias sociológicas”,
como os grupos indígenas, crianças e adolescentes, mulheres, dentre outros,
transparece na garantia de representação da diversidade social e do diá-
logo entre diferentes atores políticos, pois só dessa forma a prática política
reveste-se de legitimidade, sendo esta compreendida como um “espaço
de proposições possíveis” numa determinada conjuntura política.
(Fonseca Jr. - 1998)
Assim, o poder e as instâncias de manifestações das práticas políticas só
poderão expressar e conduzir à justiça se forem legítimos, o que requer
a ampliação do espaço de proposições, de enunciação por parte dos
mais diferentes grupos sociais, permitindo a justa inclusão de todos,
pois só assim se pode gerar o legítimo espaço do exercício do poder.
O Inesc, enquanto organização não-governamental que tem desenvolvido
uma ação sistemática junto ao Parlamento - subsidiando deputados na
elaboração de políticas, fornecendo informações e conhecimento técnico
sobre temas especializados, participando de audiências públicas, dentre
outros procedimentos, tem procurado contribuir para a ampliação e
consolidação do espaço legítimo de exercício do poder.
Podemos, então, concordar com o pensador contemporâneo Quentin
Skinner, que “o campo do possível, em política, regra geral, está circunscrito
ao seu potencial de legitimação”. (Skinner, 1998).ao seu potencial de legitimação”. (Skinner, 1998).ao seu potencial de legitimação”.
Conforme afi rmou-se no início desta proposta de refl exão, a atividade po-
lítica tem renovado sua força como prática social, o que tem suscitado um
conjunto signifi cativo de mudanças na cultura política brasileira, e mesmo
em nível internacional, com a crescente importância que ganham o direito
internacional e as cortes internacionais de justiça.
Atualmente, tanto a política quanto a cultura revestem-se de uma nova
densidade, o que impulsiona os grupos sociais a organizarem novas formas
de sociabilidade, de resolução dos confl itos e de alternativas de coopera-
ção. Tais posturas repõem no universo do possível a construção de uma
sociedade onde as idéias e práticas da política, da justiça e da ética convi-
vem juntas, mantendo ao mesmo tempo a perspectiva universalista dos
direitos humanos e a concretude da prática política como ação substanti-
va no espaço público inserido em uma sociedade histórica específi ca.
125
O modo como o Inesc tem pautado sua ação tem sido orientado pelos
pressupostos acima discutidos, e que se transformam em princípios e
objetivos institucionais rigorosamente desdobrados em procedimentos
que evidenciam a modalidade intrinsecamente democrática da gestão
interna do Inesc, sua forma de atuação, assim como suas relações com
a sociedade e com o Estado.
5. Princípios e procedimentos
Do ponto de vista específi co do Inesc, tem-se reforçado o trabalho com
temas que concretizam os esforço coletivos de construção da cidadania.
O Inesc entende que não é realista imaginar um cenário de mudanças
profundas. Avalia que é preciso - e possível - nortear suas atividades para
a construção e promoção da democracia, pela defesa e garantia dos direi-
tos humanos, pelo pluralismo e pela alteração das relações de gênero
na sociedade brasileira. Estes temas se colocam para o Inesc não como
defi nições genéricas, mas como objetivo institucional que deve ser bus-
cado cotidianamente, em todos os seus programas de trabalho.
A democracia deve ser encarada como um valor universal e estratégico
para a afi rmação e construção de uma sociedade justa. O Inesc entende
a construção da democracia como um processo permanente e procura
contribuir neste processo dentro do seu campo específi co de trabalho.
O Instituto acredita ser necessário estimular e fortalecer, na sociedade,
uma clara consciência sobre a importância do Congresso Nacional como
instituição fundamental para garantir e consolidar a democracia participa-
tiva, caminho para a edifi cação da democracia solidária, base de uma
sociedade justa.
O pluralismo é básico para a consolidação da democracia, para o respeito
dos direitos humanos, para o exercício da cidadania. Pluralismo aqui enten-
dido, principalmente, como aceitação e respeito às diferenças. Diferenças
étnicas, culturais, políticas, de sexo, de religião.
A luta pela garantia dos direitos humanos sintetiza um esforço coletivo
pela construção e busca de uma sociedade democrática e que garanta
o desenvolvimento sustentável. É um projeto de futuro sem prazo para
ser atingido, mas que deve ser concretizado em ações do presente.
Princípios e procedimentos
O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006126
A concepção de direitos humanos que norteia o trabalho do Inesc é
ampla. Incorpora os conceitos da universalidade e a indivisibilidade dos
direitos humanos. Ou seja, não é mais possível admitir, em nenhuma hipó-
tese, a distinção entre os direitos individuais da pessoa humana, os direitos
dos povos e os direitos econômicos e sociais. A Conferência de Viena, reali-
zada em junho de 1993, signifi cou um salto em relação à classifi cação dos
direitos (os chamados direitos de primeira, segunda e terceira geração),
afi rmando a indivisibilidade dos mesmos, reconhecendo inclusive o direito
ao desenvolvimento, o direito a um meio ambiente equilibrado que garan-
ta o futuro das próximas gerações e os direitos da mulher, entre outros.
Quando falamos de relações de gênero, devemos buscar compreender o
peso específi co de cada variável e a relação entre elas. É necessário, então,
considerar, na análise e no planejamento, quais os caminhos que podem
facilitar a luta contra a injustiça social e sexual do trabalho.
Mais ainda: assumir uma perspectiva de gênero na realidade específi ca do
Brasil exige uma tomada de posição sobre prioridades. E não há dúvida de
que aqui, como na maior parte do mundo, falar em relações de gênero
signifi ca falar na condição da mulher, e, principalmente, assumir um com-
promisso com as reivindicações das mulheres, lutando contra a discrimina-
ção a que estão submetidas e pela garantia de seus direitos.
Na prática, todas estas questões estão inter-relacionadas. São questões es-
pecífi cas que conformam uma agenda que, em escala global, expressa os
interesses humanos também globais. Por isso, é importante saber articular
e fazer a ligação estratégica da intervenção política em todos os espaços.
Da atuação na base, passando pelo plano institucional e ligando-se aos
movimentos da sociedade civil no âmbito internacional.
É evidente que a atenção maior deve estar sempre voltada para a realida-
de concreta e a conjuntura interna. Também não se pode perder de vista
a especifi cidade de cada temática de trabalho e o processo histórico de
sua formação.
Estes princípios básicos do Inesc orientam todas as suas atividades. E, se
pensarmos em termos de uma matriz, perpassam, verticalmente, todos os
temas de atuação: política agrária e agrícola; índios; meio ambiente; criança
e adolescente; orçamento público; comunicação e cooperação internacio-
nal. O trabalho desenvolvido em cada área temática tem como princípios
básicos a incorporação em suas atividades da perspectiva de gênero, o
aprofundamento da democracia, o pluralismo, a garantia legal e o respeito
concreto aos direitos humanos.
127
Estes objetivos, portanto, defi nem o Instituto como uma organização que
tem como fundamento de sua ação a prática política, a educação e a in-
formação, além de seu papel como ator político nos cenários nacional e
internacional. Sendo assim, sua missão institucional é contribuir para a pro-
moção e o fortalecimento da democracia representativa e participativa,
dos direitos humanos, da cidadania, da pluralidade política, da diversidade
cultural, da eqüidade de gêneros e da sustentabilidade sócio-ambiental.
Para tanto, monitora e avalia políticas e orçamentos públicos, elabora e
acompanha proposições legislativas, articula-se com outras organizações
da sociedade civil, tendo como espaço prioritário de atuação o Congresso
Nacional.
6. A ação do Inesc
Orientado pelos seus princípios e por sua missão institucional, o Inesc de-
senvolveu uma metodologia de trabalho que expressa sua ação bifocal: o
acompanhamento, a articulação e a intervenção junto à sociedade civil, de
um lado; e do outro lado, o acompanhamento, a articulação e a interven-
ção no âmbito do Congresso Nacional.
Dentro do Congresso Nacional, o acompanhamento se dá através
dos seguintes passos:
• Solicita a relação de proposições legislativas com bases em suas temáticas;
• Decide quais proposições vai acompanhar no Congresso Nacional;
• Identifi ca os setores contrários às proposições no Legislativo e no
Executivo;
• Elabora o perfi l parlamentar das comissões e divulga-o para as
organizações ligadas à temática;
• Solicita cópia de projetos;
• Organiza o acompanhamento de acordo com os temas;
• Analisa o conteúdo das proposições;
• Elabora propostas (emendas, substitutivos, etc.) frente às proposições
contrárias aos direitos;
• Elabora notas técnicas e promove sua discussão junto a parlamentares
e entidades;
• Alimenta um banco de dados com resumos;
A ação do Inesc
O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006128
• Mobiliza organizações da sociedade civil com interesse na temática,
elaborando em conjunto a posição e a estratégia a ser adotada no acom-
panhamento da tramitação, em especial nos momentos decisivos;
• Atualiza o quadro de proposições legislativas prioritárias por temática;
• Socializa as informações legislativas, por segmento ou temática, durante
todo o processo e produz publicações para o aprofundamento temático;
• Consolida a argumentação favorável ou contrária;
• Monitora a tramitação de proposições nas comissões e discute com
os atores legislativos (relator, assessores de parlamentares, secretários,
formadores de opinião nas comissões);
• dentifi ca e articula parlamentares que formam opinião nas comissões,
bancadas e no conjunto do Congresso Nacional;
• Qualifi ca a ação dos parlamentares debatendo as propostas com eles
ou seus assessores;
• Articula frentes parlamentares e/ou bancadas para garantir a aprovação
de proposições;
• Provoca seminários e/ou audiências públicas sobre projetos polêmicos;
• Organiza audiência de representantes de movimentos sociais com
parlamentares ou com presidentes das Casas Legislativas;
• Acompanha a votação de proposições nas comissões e no plenário;
• Articula a assinatura de parlamentares para garantir o envio ao plenário
das propostas que tenham sido derrotas nas comissões;
• Articula a obstrução de votação de proposições contrárias aos direitos;
• Provoca a criação de Comissões Parlamentares de Inquérito - CPIs
e atua no seu processo de constituição e funcionamento.
Na sociedade civil, a atuação do Inesc segue os seguintes passos:
• Elabora o plano anual de atividade de forma articulada com as ongs
e os movimentos sociais que têm ação articulada e parceira com o
Instituto;
• Propõe agenda de intervenção para o movimento social e as ongs
em assuntos relativos ao Parlamento;
• Realiza ofi cinas educativas sobre o Parlamento e como se deve atuar
dentro do mesmo;
• Participa permanentemente de Fóruns, Redes, articulações mais amplas
ou grupos de trabalhos dentro dos temas prioritários do Inesc;
• Participa das coordenações e secretarias executivas dos Fóruns, Redes, etc;
• Difunde as proposições legislativas e o perfi l dos parlamentares
junto ao movimento social e as ongs;
• Incentiva os diferentes setores da sociedade civil a atuarem
no Congresso Nacional, fazendo lobby ou estimulando a mobilização
social em momentos estratégicos da pauta do Parlamento;
129
• Elabora e difunde artigos, textos mais aprofundados, livros e informações
rápidas de interesse do movimento social e das ongs, através da grande
impressa e de publicações próprias, voltadas para a formação e informação
dos públicos estratégicos do Inesc (cerca de 7 mil nomes de entidades;
políticos; lideranças políticas, sindicais e sociais; professores;
órgãos governamentais, entre outros);
• Elabora Notas Técnicas sobre as proposições de interesse
da sociedade civil organizada;
• Abre espaço na pauta das Comissões Técnicas do Congresso Nacional
para que as representações organizadas possam fazer a defesa de suas
propostas, mediante a realização de audiências públicas;
• Agenda encontros com lideranças políticas, presidentes de Comissões
Técnicas, relatores de projetos de lei e parlamentares, para a discussão
de temas de interesse do movimento social e das ongs;
• Promove ações de sensibilização, informação e articulação junto
à sociedade civil para monitorar os gastos públicos sociais e atua
junto aos poderes Executivo e Legislativo, com a fi nalidade de aumentar
os recursos do Orçamento da União destinados às políticas sociais.
A ação do Inesc
O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006130
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