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APOSTILAS OPÇÃO A Sua Melhor Opção em Concursos Públicos Livros e Artigos A Opção Certa Para a Sua Realização 1 1. AZEVEDO, Cecília e RAMINELLI, Ronaldo. História das Américas: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2011. Uma reflexão sobre as raízes da América Latina, não pode deixar de trazer à tona a visão dos vários passados históricos distintos que se confrontam cotidianamente nas mais diferentes formas de relação. Teremos de varrer todo o período colonial, testemunha de tantos en- contros e desencontros com nosso passado, de nossas buscas e des- prezo por todos eles. Ao chegar a América os europeus, pulverizaram as sociedades americanas que perderam sua identidade e ganharam muitas. Os séculos em que fomos colônia nos acrescentaram uma pluralidade de passados e nos fizeram prisioneiros da busca incessante de uma iden- tidade que fosse capaz de unir-nos. Hoje, estamos na busca de nossa verdadeira identidade; caminha- mos lado a lado, nos esbarramos nos percalços da história, mas conti- nuamos desconhecidos e vivemos no conflituoso embate dialético de não sermos índios, não sermos negros, não sermos brancos, sendo todos ao mesmo tempo. Esse sentimento de pluralidade é muito nítido na América espanho- la, uma vez que a presença de grandes civilizações pré-coloniais de- ram características especiais às sociedades. O violento confronto cultural determinado pela presença e atuação europeia amorteceu durante quase dois séculos a necessidade de a América reconhecer sua singularidade, fruto radical desse confronto. Verifica-se que so- mente a partir do século XVII fragmentos de uma consciência cultural, resultado de longo processo de introspecção da elite criolla, se mani- festam com contornos mais claros. É certo que os criollos nunca deixa- ram de se pensar como espanhóis, mas paulatinamente se percebem como parte de um grupo que tem identificações diferentes das matri- zes ibéricas. O processo de conscientização teve seu apogeu no século XVIII, que agita toda a América hispânica, da Nova Espanha ao Rio da Pra- ta. É nesse momento que essa consciência cultural se encaminha na busca de uma proposta política, levando as elites criollas à dolorosa constatação de não encontraram no passado hispânico nenhum ele- mento que possa servir de apelo político-ideológico aos movimentos autonomistas. Voltam-se então para o longínquo passado histórico, e é nessa ancestralidade que se encontram os signos e emblemas para o encaminhamento de proposta de identificação cultural, que irá ser justificada nas grandezas e virtudes das sociedades pré-coloniais. Assim contraditoriamente, a apropriação de um passado mítico e mís- tico será o fundamento do orgulho “patriótico” da elite “branca” da América espanhola. A utilização desses elementos é determinada muito mais pelo lugar de nascimento do que por outro tipo de identifi- cação. Estudando mais profundamente as obras de criollos, como as de Carlos Siquienza y Cóngora (século XVIII), entende-se melhor o pro- cesso de conscientização e também os fundamentos ideológicos, ainda hoje muito mal definidos, dos pressupostos e projetos que servi- rão de suporte aos movimentos independentistas. Esses autores, em- bora responsáveis pelo descobrimento e glorificação do passado histó- rico das civilizações asteca e inca, abstêm-se de colocar explicitamen- te, em suas imagens políticas, elementos dessas antigas civilizações, conquanto manifestem grande hostilidade à Espanha. Essa contradi- ção faz parte de nossa essência, está tão profundamente arraigada em nossas entranhas que ainda nos é possível desvencilhar dela. A América e a Civilização Ocidental: Uma Avaliação A partir do século XV, a civilização ocidental torna-se uma civiliza- ção ou a civilização atlântica. Dos dois lados do oceano, os continen- tes interpelam-se e respondem-se. A partir dessa época, os europeus extasiam-se mais com o que levaram para a América do que com o que a América lhes trouxe. Os americanos não fazem forçosamente o inverso, incomodados que se sentem às vezes - sem motivos, aliás - por um complexo de inferioridade. Na verdade, desde o início a Améri- ca fez muitas contribuições à Europa, em parte sem o saber. Além disso, recebeu da Europa um capital que soube fazer frutificar, o que lhe permitiu “reembolsar” a Europa. Como levantar a parte de cada um, fazer o inventário? A descoberta da América, mesmo para aqueles que não sabem que se trata de um continente novo, destrói todas as ideias errôneas. A da Terra Plana e muitas outras. Os conhecimentos dos sábios pas- sam para a consciência popular. As leis da vida também parecem ser as mesmas que as da Europa. Encontram-se, sem dúvida, animais e plantas até então desconhecidos. Desse modo, reforça-se e compro- va-se a lei da unidade do universo, pelo menos no universo terrestre. Muito rapidamente percebeu-se as leis universais da existência humana, da condição humana, apesar das lendas sobre as amazonas ou sobre os homens sem cabeça ou aqueles cuja cabeça se confunde com o tronco. A famosa “disputa” de Valladolid, onde graves teólogos indagavam se os índios são homens como nós ou seres inferiores, correspondente às discussões do mesmo estilo que objetivaram saber se os negros da África tinham uma alma. Pouco a pouco essas hesita- ções cedem lugar ao sentimento de que todos os homens têm a mes- ma natureza, são filhos de Deus e chamados a ser salvos pelo sacrifí- cio do Gólgota. A ideia de unidade do universo faz reconhecer que aquilo que é comum à Europa e à América o é igualmente à Ásia, à África à Ocea-

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APOSTILAS OPÇÃO A Sua Melhor Opção em Concursos Públicos

Livros e Artigos A Opção Certa Para a Sua Realização 1

1. AZEVEDO, Cecília e RAMINELLI, Ronaldo.

História das Américas: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2011.

Uma reflexão sobre as raízes da América Latina, não pode deixar de trazer à tona a visão dos vários passados históricos distintos que se confrontam cotidianamente nas mais diferentes formas de relação. Teremos de varrer todo o período colonial, testemunha de tantos en-contros e desencontros com nosso passado, de nossas buscas e des-prezo por todos eles.

Ao chegar a América os europeus, pulverizaram as sociedades americanas que perderam sua identidade e ganharam muitas. Os séculos em que fomos colônia nos acrescentaram uma pluralidade de passados e nos fizeram prisioneiros da busca incessante de uma iden-tidade que fosse capaz de unir-nos.

Hoje, estamos na busca de nossa verdadeira identidade; caminha-mos lado a lado, nos esbarramos nos percalços da história, mas conti-nuamos desconhecidos e vivemos no conflituoso embate dialético de não sermos índios, não sermos negros, não sermos brancos, sendo todos ao mesmo tempo.

Esse sentimento de pluralidade é muito nítido na América espanho-la, uma vez que a presença de grandes civilizações pré-coloniais de-ram características especiais às sociedades. O violento confronto cultural determinado pela presença e atuação europeia amorteceu durante quase dois séculos a necessidade de a América reconhecer sua singularidade, fruto radical desse confronto. Verifica-se que so-mente a partir do século XVII fragmentos de uma consciência cultural, resultado de longo processo de introspecção da elite criolla, se mani-festam com contornos mais claros. É certo que os criollos nunca deixa-ram de se pensar como espanhóis, mas paulatinamente se percebem como parte de um grupo que tem identificações diferentes das matri-zes ibéricas.

O processo de conscientização teve seu apogeu no século XVIII, que agita toda a América hispânica, da Nova Espanha ao Rio da Pra-ta. É nesse momento que essa consciência cultural se encaminha na busca de uma proposta política, levando as elites criollas à dolorosa constatação de não encontraram no passado hispânico nenhum ele-mento que possa servir de apelo político-ideológico aos movimentos autonomistas. Voltam-se então para o longínquo passado histórico, e é nessa ancestralidade que se encontram os signos e emblemas para o encaminhamento de proposta de identificação cultural, que irá ser

justificada nas grandezas e virtudes das sociedades pré-coloniais. Assim contraditoriamente, a apropriação de um passado mítico e mís-tico será o fundamento do orgulho “patriótico” da elite “branca” da América espanhola. A utilização desses elementos é determinada muito mais pelo lugar de nascimento do que por outro tipo de identifi-cação.

Estudando mais profundamente as obras de criollos, como as de Carlos Siquienza y Cóngora (século XVIII), entende-se melhor o pro-cesso de conscientização e também os fundamentos ideológicos, ainda hoje muito mal definidos, dos pressupostos e projetos que servi-rão de suporte aos movimentos independentistas. Esses autores, em-bora responsáveis pelo descobrimento e glorificação do passado histó-rico das civilizações asteca e inca, abstêm-se de colocar explicitamen-te, em suas imagens políticas, elementos dessas antigas civilizações, conquanto manifestem grande hostilidade à Espanha. Essa contradi-ção faz parte de nossa essência, está tão profundamente arraigada em nossas entranhas que ainda nos é possível desvencilhar dela.

A América e a Civilização Ocidental: Uma Avaliação

A partir do século XV, a civilização ocidental torna-se uma civiliza-ção ou a civilização atlântica. Dos dois lados do oceano, os continen-tes interpelam-se e respondem-se. A partir dessa época, os europeus extasiam-se mais com o que levaram para a América do que com o que a América lhes trouxe. Os americanos não fazem forçosamente o inverso, incomodados que se sentem às vezes - sem motivos, aliás - por um complexo de inferioridade. Na verdade, desde o início a Améri-ca fez muitas contribuições à Europa, em parte sem o saber. Além disso, recebeu da Europa um capital que soube fazer frutificar, o que lhe permitiu “reembolsar” a Europa. Como levantar a parte de cada um, fazer o inventário?

A descoberta da América, mesmo para aqueles que não sabem que se trata de um continente novo, destrói todas as ideias errôneas. A da Terra Plana e muitas outras. Os conhecimentos dos sábios pas-sam para a consciência popular. As leis da vida também parecem ser as mesmas que as da Europa. Encontram-se, sem dúvida, animais e plantas até então desconhecidos. Desse modo, reforça-se e compro-va-se a lei da unidade do universo, pelo menos no universo terrestre.

Muito rapidamente percebeu-se as leis universais da existência humana, da condição humana, apesar das lendas sobre as amazonas ou sobre os homens sem cabeça ou aqueles cuja cabeça se confunde com o tronco. A famosa “disputa” de Valladolid, onde graves teólogos indagavam se os índios são homens como nós ou seres inferiores, correspondente às discussões do mesmo estilo que objetivaram saber se os negros da África tinham uma alma. Pouco a pouco essas hesita-ções cedem lugar ao sentimento de que todos os homens têm a mes-ma natureza, são filhos de Deus e chamados a ser salvos pelo sacrifí-cio do Gólgota.

A ideia de unidade do universo faz reconhecer que aquilo que é comum à Europa e à América o é igualmente à Ásia, à África à Ocea-

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nia. Aliás a América foi povoada inicialmente - há vinte ou trinta mil anos - por asiáticos e, sem dúvida, também por povos da Oceania. Outros povoamentos asiáticos ocorreram após a chegada dos euro-peus: os chineses no Peru, os Japoneses no Brasil. Da mesma forma, a escravidão dos negros inundou a América tropical e africanos. Aqui, os homens encontraram-se com outros homens.

Ao descobrir-se a América, descobriu-se um patrimônio comum a todos os europeus, a realidade da unidade do mundo e a unidade da humanidade. Assim, o patrimônio comum possui duas funções distin-tas: é ele que faz a unidade o mundo e, no interior do mundo, a do Ocidente; e ao mesmo tempo, e através dele que a América faz o mundo tomar consciência de sua unidade - portanto, desse ponto de vista, é uma contribuição original da América.

Pode-se fazer um inventário do que é próprio da América e não existia no Velho Mundo, particularmente no Ocidente medieval: plan-tas, animais, solos, formas geológicas, ou paleontológicas particulares. Algumas dessas novidades são interessantes não apenas em si mes-mas mas também pelo uso que delas se pôde fazer: seja um uso ensi-nado pelos autóctones - o caso dos remédios, constituídos que são de certos produtos vegetais ou animais e que também podem servir de alimentos, como lembra Gilberto Freyre a propósito do Brasil, em Casa Grande & Senzala -,seja um uso descoberto pelos próprios europeus, como no caso das sequóias da América do Norte, com seus dois mil anos de idade, cujas duas mil camadas lenhosas nos permitem estu-dar a evolução do clima ao longo de dois milênios. Essas sequóias não existem na Europa.

Essas peculiaridades americanas são, em sua maioria, particulares a uma ou várias regiões da América, mas raramente a toda a América. E isso por diferentes razões: o clima, que varia de uma zona para outra, a maior ou menor proximidade do mar ou dos rios, o papel dife-rente representado pelo homem, o ameríndio, a quem chamamos erroneamente de autóctone. Por outro lado, alguns produtos conheci-dos na América não se encontram na Europa, mas são conhecidos na Ásia ou na África. O exemplo célebre é o pau-brasil, que deu seu no-me a um país porque já era conhecido por esse nome pelos viajantes europeus nas Índias Orientais.

Nesse campo das originalidades, as ausências são tão importantes quanto as presenças. É o que chama a atenção nas técnicas dos grandes impérios ameríndios: asteca, maia, inca, Não conhecem a roda, não conhecem os animais domésticos de grande porte (com exceção da ilhama, da alpaca e da vicunha, no que diz respeito aos incas). Os quínchuas se servem dos “quipos”, mas ignoram a escrita; os astecas e os povos submetidos por eles conhecem a escrita mas ignoram o quipo. Existe também um contraste entre a ciência maia, muito avançada para a sua época se comparada à ciência europeia, e a técnica maia, muito atrasada em relação à nosso Ocidente. Desco-brimos assim - penso na Índia e na China - que a força da ascensão euro ocidental foi talvez a elaboração da ciência e da técnica, colabo-ração inexistente no mesmo grau em outros locais.

Não é simples saber quando cessa a contribuição propriamente americana. Isso porque as transferências de homens, animais, plan-tas, técnicas, civilização material, cultura implícita ou explícita, ciência, filosofia, espiritualidade, da Europa para a América, ao longo de cinco séculos, foram consideráveis. Ora, essas contribuições fecundaram a terra americana. Aí floresceram, transformaram-se e algumas, assim modificadas, retornaram à Europa. Fenômenos bastante curiosos foram essas transformações, essas metamorfoses. É o caso dos dissi-dentes religiosos ingleses do século XVII. Trata-se de uma espécie de elite intelectual, dotada de um potencial revolucionário considerável que a perseguição se arrisca, a todo momento, a fazer explodir com violência. Ora, esse “gás comprimido” e explosivo, quando atravessa o Atlântico e volta a encontrar-se no vasto continente americano - e os Pilgrims Fathers não são os únicos -, perde seu caráter explosivo e revolucionário e torna-se um grupo de empreendedores dinâmicos, no sentido mais schumpeteriano da palavra. Homens de inovação. São os ancestrais dessas gerações de businessmen e de industriais que, no século XX, os empresários europeus tentaram imitar. Pode-se dizer que foi um verdadeiro efeito bumerangue.

Outro setor em que se manifestou o efeito bumerangue foi o políti-co. Instituições e estruturas políticas nascidas na Europa transporta-ram-se para a América, onde atingiram certo grau de perfeição teórica para suscitar, em seguida, um efeito de imitações na Europa.

A Dimensão Territorial nas Formações Sociais Latino-americanas

Vista como mediação particularizadora, o apelo à especialidade, adquire respaldo antológico no estuda da história da América Latina quando acatamos a centralidade dessa dimensão no objetivar-se dos processos de colonização. Tomemos, pois, a formação do sistema colonial moderno - e a construção da América principalmente - como, antes de mais nada, um processo que interessa à relação socieda-de/espaço. Disso deriva que é no apetite territorial de certas socieda-des europeias que devemos buscar o móvel primeiro da expansão marítima efetuada no “longo” século XVI. E é igualmente na capacida-de plástica de se apropriar de lugares os mais diversos e moldá-los segundo seus interesses que se pode avaliar o êxito ou fracasso dos vários empreendimentos coloniais.

Assim, inicialmente pode-se constatar que qualquer colônia é o re-sultado de uma conquista territorial. Ela é um espaço novo, na pers-pectiva do colonizador. Um espaço ganho da natureza, de outros po-vos e de outros Estados. Uma adição de terras ao fundo territorial sob sua soberania. Por isso a determinação básica da colônia é a conquis-ta, entendida aqui como uma revelação específica entre uma socieda-de que se expande e as pessoas, recursos e áreas dos lugares onde se exercita essa expansão. A violência e a expropriação são assim dados irredutíveis desse processo, variando em grau, mas sempre presentes em suas manifestações. Colonização implica assim, antes de mais nada, uma hierarquia entre sociedades e entre lugares.

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Pode-se observar que a formação colonial expressa, já em sua gê-nese, uma qualidade de subordinação. Ela é o resultado de uma ação que lhe é externa. Pois a colônia é, não um domínio abstrato (formal), mas a efetiva instalação do colonizador - a objetivação da conquista. As novas terras só são assim designadas para aqueles que chegam; obviamente não o são para as populações autóctones. Estas também aparecem, aos olhos do colonizador, como verdadeiros atributos do lugar que devem ser submetidos como parte da natureza a ser ganha. E a subordinação primeira necessária ao se instalar é, exatamente a dos naturais. E, em função disso, os quadro demográficos defrontados vão constituir-se no elemento básico para se entender a forma da instalação e o arranjo gerado em cada caso.

Existem objetivos comuns aos centros difusores, móveis metropoli-tanos animados pela dinâmica da transição que, em essência, perse-guem a remuneração do capital comercial, isto é, o lucro mercantil. Todavia o tônus mercantilista se objetiva através de combinações de interesses amarrados em quadros estatais nacionais. Tal arranjo re-dunda em projetos próprios a cada Estado, num quadro internacional pensado em termos essencialmente bélicos. Isso explicita em diferen-tes geopolíticas ultramarinas. Estas, por sua vez, exercitam-se em meio a realidades também variadas. Os territórios coloniais são erigi-dos na plasticidade dessa interface. Os desígnios geopolíticos metro-politanos devem se aplastar com o defronto, tendo na adaptabilidade um elemento de eficiência.

Levando-se em conta este raciocínio, de imediato dica difícil equa-cionar a realidade colonial numa óptica que trabalhe com a oposição interno/externo. Pois - repetimos - a colônia é, em si, a instalação do agente externo, sua internalização na nova terra, através da conquista dos lugares e da subordinação dos antigos ocupantes. Assim, sem submeter a população encontrada não há colonização, fato que coloca - por exemplo - várias feitorias seiscentistas portuguesas na Ásia fora da economia-mundo capitalista. O estabelecimento de uma colônia implica necessariamente domínio da terra - soberania -, e isso é im-possível sem algum nível de submissão de seus primitivos habitantes.

Assim, a eliminação e/ou apropriação das populações autóctones não pode ser avaliada como um aspecto a mais da expansão colonial mercantilista, pois está em seu centro. O recurso a uma das duas alternativas apresentadas repousará, em grande parte, na reação indígena ante o conquistador. Porém a submissão efetiva se impõe em todos os casos, independentemente do nível político-cultural ou do efetivo demográfico de cada sociedade conquistada. Essa variedade vai influir, isto sim, e muito, na forma de exploração desenvolvida em cada rincão.

Quanto à vida econômica entabulada pelo colonizador, fato que já pressupõe certa perenidade da instalação (logo, um relativo êxito da conquista), dois vetores emergem com relevância na explicação dos vários resultados. Um está nas características do povo submetido, outro nos atrativos e riquezas defrontadas. Como se viu, a densidade populacional e a organização social da população encontrada atuaram

fortemente sobre as formas de assentamento do europeu no Novo Mundo. Nas zonas de maior concentração (logo, com uma divisão do trabalho mais complexa), o conquistador depara com territórios forma-dos (com hierarquias locacionais e circuitos definidos), e a obra coloni-zadora se traduz inicialmente na apropriação dessas estruturas pree-xistentes. Nas áreas de população menos adensada e divididas em unidades políticas menores, a colonização se efetiva na destruição direta dos gêneros de vida tradicionais e no redirecionamento da força laboral indígena. Nos dois casos, o controle dos habitantes é a chave da conquista.

Também a perspectiva de lucratividade do empreendimento nas novas terras influi na velocidade e profundidade do processo de insta-lação. Certos atrativos naturais, como a existência de jazidas de me-tais preciosos, elegem determinados sítios e imprimem direções a esse processo. Vale lembrar que a extração da prata e o abastecimen-to das zonas mineiras criaram novos circuitos e assentamentos que, inclusive, envolveram amplos deslocamentos de populações. Assim, foram povoadas áreas naturalmente desfavoráveis como habitats hu-manos. O que pode revelar certa primazia desse vetor em relação ao anteriormente mencionado. Enfim, a força do valor contido (o valor do espaço) revela-se tanto na riqueza natural depositada quanto no traba-lho morto acumulado in situ. E, ainda no contingente humano estacio-nado em cada lugar. O espaço do colonizador contém recursos, he-ranças e pessoas - são os vetores da atração.

A valorização colonial do espaço tem no controle do fator trabalho um elemento nodal. As diferentes formas de que se reveste a coerção não devem enturvar a recorrência e centralidade dessa determinação. Nesse entendimento o escravismo é, em sua maior parte, um fluxo migratório forçado. Seja o servo branco sob contrato (aprisionado, comprado ou raptado), seja o escravo africano, seja ainda o índio (aldeado ou escravizado), todos pertencem a populações deslocadas de seu hábitat originário e submetidas a um novo ordenamento social e espacial que as qualifica através de mecanismos de exclusão, como os impedimentos raciais e a seletividade territorial.

A fixação dessas populações obedece, à localização das unidades produtivas, e esta é comandada pela taxa de remuneração do capital investido em cada lugar. Onde a lucratividade compensar o gasto todos os obstáculos à instalação serão superados, como bem demons-tra a aglomeração humana no estéril e insalubre sítio do cerro de Po-tosi. Onde a inexistência de braços conviveu com grandes atrativos naturais, a modalidade da força de trabalho compulsoriamente deslo-cada preencheu esse requisito. O que reforça o carácter modal do escravismo. Enfim, o dado locacional que comanda a tração é, sem dúvida, a produtividade natural dos lugares em face dos interesses da economia mercantil da época.

A tônica exportadora do colonialismo em geral, e do seiscentista com maior ênfase, acarreta um padrão de instalação com um claro sentido exomorfo. Isto é, os assentamentos se fazem, mesmo quando bastante interiorizados, articulados numa rede de circulação que de-

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manda um porto, o qual engata as diferentes unidades produtivas, com os circuitos atlânticos, os da realização de seus produtos. A subordi-nação desenha-se assim com clareza no ordenamento espacial, no estabelecimento daquele padrão que Bernard kaiser denominou bacia de drenagem. A riqueza produzida nas colônias escoa por esses cir-cuitos que têm nos desníveis de preços, entre a América e a Europa, o seu princípio motor.

O sistema colonial implica um formidável mecanismo de transferên-cia geográfica do valor. A parcela do valor produzido na colônia res-tringe-se, geralmente, ao mínimo necessário para tocar a vida econô-mica, política e cultural. O valor se fixa, por exemplo, como engenho, como fortificação e como catedral. Todavia, é esse cabedal acumulado que define em grande parte o destino das diferentes colônias quando das conjunturas de retração do comércio mundial na “crise” do século XVII. Diferentes saídas de maior ou menor estruturação autárquica definem o modo como várias colônias americanas vão vivenciar os rearranjos no cenário metropolitano.

A valorização colonial do espaço, apesar de objetivar um padrão voltado para fora, avança internamente num movimento de forte cará-ter extensivo. Isto é, a riqueza gerada repousa diretamente na magni-tude do espaço apropriado, tal fato sendo válido tanto para o avanço areolar da fronteira agrícola e pecuária quanto para a dilatação da zonas de trânsito onde se encontram as “riquezas do sertão” (os ín-dios, os metais preciosos e as especiarias). Por isso, o móvel da con-quista não se restringe ao período inicial da instalação, mas permane-ce como motor constante do dinamismo interno das formações territo-riais coloniais.

A grandeza territorial das colônias americanas, aparentemente inesgotável na perspectiva dos colonos e dos Estados metropolitanos, faz com que o mercado fundiário demore para aí se efetivar. É somen-te quando a margem de cultivo começa a decair (em função da distân-cia e da produtividade dos solos) que algumas áreas de altíssima favo-rabilidade (e mesmo assim restritas a certas localizações e a certos setores econômicos) adquirem um valor mercantil, Assim, durante largo tempo a terra não é mercadoria na colônia, repousando no con-trole da mão-de-obra o meio de sua obtenção. Podemos dizer que, de um ponto de vista genérico, a existência de fundos territoriais atraves-sou todo território colonial americano. E, havendo terra a ser apropria-da, havia conquista. E, havendo conquista, a dimensão espacial vem ao centro da estruturação da vida social.

Em síntese, a valorização colonial do espaço necessita de agentes “passivos” (submetidos) que se amoldem aos interesses do sujeito colonizador, que os aloca seguindo uma lógica subordinada a um mercado e a um centro difusor externo. Lógica mercantil atraída por recursos raros e por possibilidades de produções complementares de alto valor nas trocas internacionais. O povoamento, a instalação de equipamentos, a fixação de valor, tudo responde a essa lógica, até o momento em que o volume do capital internalizado começa a gerar interesses locais que podem ou não se antagonizar com os da metró-

pole, ao sabor das conjunturas. A partir desse momento, a condição subordinada passa a conviver com estímulos autocentrados, abrindo a possibilidade de a colonização interna agregar mais interesses que o intercâmbio metropolitano.

Tal dinâmica interior das formações coloniais pode ser mapeada através dos circuitos internos de produção e dos círculos de coopera-ção que se estabelecem. São eles as expressões e os fundamentos dos interesses locais. As especializações complementares dos varia-dos lugares, dentro de uma data divisão regional do trabalho, revelam certa maturidade desse processo, que advém de perenização de al-guns fluxos. Aqui, resta muito a pesquisar no que tange às realidades coloniais latino-americanas. A dependência externa em muito obscu-receu esses ativos circuitos internos, e é rastreando-os que podemos captar a agregação de interesses nos movimentos de emancipação política que desenham as fronteiras nacionais dos vários países do subcontinente.

Ainda, o advento da emancipação política das várias colônias não rompe antes, recicla, reiterando, a centralidade da dimensão espacial na análise da América Latina. O móvel da conquista territorial perma-nece ativo, exercitando-se sobre lugares, recursos naturais e popula-ções. Em primeiro lugar, o fundo territorial ainda não explorado pela economia (agora) nacional permanece à espera de novas ações, o que recoloca a noção de conquista no centro da estruturação das nascentes nações, inclusive dando alguns trações comuns à constitui-ção dos respectivos aparelhos de Estado, com destaque para um forte caráter cêntrico. Também as formas compulsórias de extração do trabalho, em geral, se mantêm. Nesse sentido, a ruptura com a estru-turação colonial interna pouco se exercita - expressando com clareza as qualidades de processos de modernização conservadores. No que toca à nossa discussão, cabe assinalar o aumento da parcela do valor criado que se internaliza em terras americanas.

A Colonização e seus Impactos sobre o Meio Ambiente 1. Descobrimento e Colonização

A delimitação dos territórios que pertenciam à Espanha e a Portu-gal foi feita, logo após o descobrimento da América (1494), com o Tratado de Tordesilhas. E as “descobertas” iniciadas por Colombo, em 1492, foram seguidas de viagens sucessivas que localizaram mais territórios - continente e ilhas - no além-mar, e, após a viagem de Fer-não de Magalhães (1519-22), constatou-se não só a existência do Oceano Pacífico como a grande extensão por ele ocupada.

Assim sendo, a palavra descobrimento é utilizada de forma impró-pria, porque sugeriria a chegada dos europeus a terras desabitadas, e não apenas desconhecidas. A América teria sido descoberta apenas para os europeus, uma vez que os indígenas que nela viviam, vindos da Ásia ou da Oceania, já a conheciam. Resultou, assim, de uma posi-ção europeizante que não levava em conta a existência e a importân-cia dos povos não-europeus. Hoje, os americanos, que receberam uma grande influência europeia em sua cultura, mas têm também

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raízes culturais indígenas e africanas, não podem aceitar essa deno-minação como correta. O certo seria caracterizar como invasão e con-quista a ação europeia desenvolvida sobretudo no século XVI, porque, na realidade, o que aconteceu no Novo Mundo foi um processo de ocupação, de desapropriação e de dizimação das populações que aí viviam. Bem diverso, portanto, do que ocorreu nas pequenas ilhas do Atlântico, onde os europeus encontraram terras desabitadas e as ocu-param com colonos trazidos da metrópole e negros originários da África, utilizados como escravos.

O início da colonização se daria com o processo de exploração da costa, a fim de que se ficasse informado dos recursos disponíveis a explorar e da população que poderia ser utilizada como força de traba-lho, através do escambo, seguido da ocupação do litoral e da escravi-zação da população nativa para a exploração agrícola e mineral. No início, a colonização no Brasil limitou-se à porção litorânea, onde foi implantada a plantation açucareira, e às áreas de montanha da Améri-ca espanhola, onde havia minas de ouro e parta já exploradas por populações indígenas que haviam alcançado um grau elevado de civilização.

De início os europeus ficaram perplexos, diante da natureza tropical da vegetação exuberante, da fauna e da flora tão diversas da pátria de onde vinham, com um ritmo sazonal também diferente, e sentiram a necessidade de se adaptar a técnicas novas de trabalho e de comér-cio, diante de uma realidade desconhecida. Daí as informações, à primeira vista ingênuas, dadas por cronistas como Américo Vespúcio, André Thevet, Hans Staden e outros, a respeito da natureza, do ho-mem e dos costumes dominantes no mundo a ser colonizado. Daí também os problemas surgidos quando se defrontaram com as mais diversas situações, sem uniformidade que pudesse orientar uma políti-ca única de colonização, deparando com porções de dimensões diver-sas, como ilhas e continente, com características físico-naturais bem individualizadas, como as terras árticas ao norte - Canadá e Groelân-dia -, áreas temperadas no território hoje dos Estados Unidos e climas tropicais na América ao sul do rio Grande; além de contraste entre uma Amazônia super úmida e as áreas áridas e semiáridas do Pacífico e do Nordeste brasileiro, entre planícies como a platina e a cordilheira dos Andes, entre áreas de solos aluviais ricos e outras de solos terciá-rios pobres.

Sob o aspecto humano, contrapunham-se civilizações elevadas, como a dos maias, dos astecas, dos quíchuas e dos aimarás, a povos primitivos que viviam ainda na Idade da Pedra Lascada. Povos que se hostilizavam, com Estados organizados em algumas áreas com clas-ses bem definidas - se se pode caracterizar classes sociais em socie-dades pré-capitalistas - ao lado de grupos tribais de nações diversifi-cadas.

Os europeus viviam no período de transição entre o sistema feudal e o capitalista, na fase do capitalismo mercantil em que o desenvolvi-mento comercial ia se acentuando as relações capitalistas de trabalho e eliminando os restos feudais, mas na qual os burgueses iniciavam a

sua participação nos negócios de governo, ora em luta, ora em com-posição com os aristocratas, procurando expandir os seus negócios. Negócios a que se associaram os reis de Portugal, Espanha, França e Inglaterra e que culminaram com a formação, na Holanda, de um ver-dadeiro governo da burguesia. Desse modo, o processo de ocupação da América far-se-ia já sob a égide da burguesia, uma vez que ela comandava os negócios, armava exércitos e escravos e até conquis-tava terras, como ocorreu, no século XVII, no Nordeste brasileiro, em-bora essa ocupação se desse de forma diversa conforme a área. As terras árticas foram exploradas por grandes empresas, como a Com-panhia da Baía de Hudson, que se dedicou ao comércio de produtos extrativistas, peles sobretudo; na porção temperada da América do Norte formou-se uma sociedade de pequenos produtores, verdadeiros povoadores que tentaram criar uma Inglaterra do outro lado do Atlânti-co; na porção meridional dos Estados Unidos e da América Latina desenvolveram-se sociedades multirraciais que visavam à exploração de minérios, com o emprego da força de trabalho indígena, ao lado de grandes latifúndios agrícolas e pecuários que utilizavam sobretudo a força de trabalho africana, escravizada. Nas Antilhas os indígenas foram dizimados e substituídos, inicialmente, por negros e, a partir do século XIX, por orientais. Daí a grande diversidade da América e a formação de uma sociedade que resultou do impacto do capitalismo comercial sob condições bem diversas daquelas que geraram na Eu-ropa e do que ocorreria na Ásia.

2. O Europeu e o Indígena

Em sua maioria os navegadores europeus, não eram colonos; era marinheiros, aventureiros que se faziam aos mares à procura de ri-quezas fáceis através de um comércio desigual ou do simples saque. Eram empresas arriscadas, em face da insegurança da navegação, mas, ao seu retorno, davam, em geral, grandes lucros não só aos navegadores como aos governos que as financiavam. Era um comér-cio desigual, porque os indígenas da América ainda viviam em uma fase de autoconsumo, com um comércio inexpressivo, e não conheci-am o sistema de propriedades dos meios de produção; prestavam-se a fazer trabalhos e a trocar objetos por produtos europeus de baixo va-lor, dando aos comerciantes um lucro muito elevado. No princípio, os colonizadores não pensaram em estabelecer-se no novo continente, mas em transportar nativos escravizados, madeiras e metais preciosos para a metrópole. O que interessava, sobretudo aos reis que gastavam dinheiro em obras suntuosas e a empresários da Itália e da Europa Central, ávidos em desenvolver os seus negócios e enriquecer, era aumentar capitais e ampliar o poder que dispunham.

Entretanto a colonização não podia limitar-se à exploração do lito-ral; além disso, a luta entre navegadores dos vários países da Europa impunha a necessidade de se estabelecerem em pontos fortificados e povoados na costa. Também a exploração do interior à procura de minérios e de terras para a criação de gado determinava a necessida-de de expansão do povoamento. Daí o surgimento de importantes cidades portuárias, pontos de apoio para o comércio com a metrópole,

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e de cidades no interior, na área de produção. Daí a importância, no México, de cidades como México e Vera Cruz; na Colômbia, de Bogo-tá, Cartagena e Barranquilla; no Peru, de Cruzco e Lima; no Brasil, de São Paulo, Ouro Preto e Rio de Janeiro; no Rio da Prata, de Buenos Aires e Montevidéu no litoral e Assunção no interior etc.

Dentro dessa política de povoamento, surgiram as figuras da classe dominante, formada pelas autoridades de maior categoria, pelos co-merciantes e pelos grandes proprietários, em contraste com os mi-grantes pobres que vinham para a América à procura de riquezas, com os degredados pelos mais diversos crimes, com os cristãos-novos e judeus que fugiam da Inquisição e com os escravos trazidos da África cada vez maior número à proporção que cresciam as atividades eco-nômicas e se constatava que os indígenas não eram suficientes para o empreendimento. A concentração de judeus era de tal ordem que ainda no século XVI houve uma ação do Santo Ofício no Nordeste do Brasil, pondo em polvorosa muito senhor de terras e de escravos de ascendência judia ou que eram suspeitos de práticas dessa religião.

Bem diversa era a situação do colono pobre, uma vez que ficava à mercê dos poderosos do dia, trabalhando ora em serviços de adminis-tração em casas comerciais e em fazendas e engenhos, ora como artífice “independente”, ora nos poucos serviços urbanos ou no interior como autônomo. Nesse caso caracterizar-se-iam os que acompanha-vam os grandes conquistadores, como os senhores das casas da Torre e da Ponte, na conquista dos sertões, tornando-se sitiantes ou capangas em suas terras. A descoberta de minerais preciosos atraiu maior quantidade de migrantes e abriu um leque de especializações para os trabalhadores que não dispunham de capital.

Em relação ao missionário, este era uma categoria da maior impor-tância, devendo-se salientar que não somente os jesuítas mas tam-bém os capuchinos, os franciscanos, os mercenários etc. se destaca-ram no trabalho com indígenas. Atuavam de formas diversas, e mes-mo dentro de uma determinada ordem religiosa se encontravam aque-les preocupados com a ampliação do patrimônio da ordem e aqueles preocupados com a conversão do gentio. Daí ordens religiosas como a dos jesuítas terem se apropriado de grandes latifúndios e adquirindo grande escravaria, enquanto os capuchinos, apegados aos ensina-mentos de São Francisco, relutavam em adquirir propriedades.

Havia uma contradição na posição dos missionários, uma vez que os seus compromissos religiosos levavam a procurar converter os indígenas mediante a destruição das suas crenças e da sua organiza-ção social, facilitando a dominação dos colonos. Ao mesmo tempo, havia os que se opunham ao tratamento dado aos indígenas e os defendiam da ganância dos conquistadores, como o padre Antônio Vieira, jesuíta famoso, e o frade José de Barbarolo, que não dava absolvição aos proprietários de índios escravizados em guerra que não fosse considerada justa. De qualquer forma, quando os colonos ricos derrotavam os indígenas e os aldeavam sob a guarda de missio-nários, estes colaboravam com a política de consolidação do latifúndio, pois as aldeias eram reservatórios de força de trabalho a ser utilizada

de forma gratuita ou por baixo custo nos momentos de maior necessi-dade, e os indígenas sedentarizados tornavam-se presas mais fáceis dos colonizadores.

Quanto pôde, o indígena reagiu ao processo de dizimação e de es-poliação, mas foi prejudicado tanto pela desigualdade das armas como pelas rivalidades existentes entre eles. No México, por exemplo, os indígenas dominados pelos astecas viram na invasão de Cortés a oportunidade para se livrar do jugo de seus dominadores, enquanto no Peru uma guerra civil entre dois pretendentes à coroa facilitou a con-quista de Pizarro. Mesmo no Brasil, as nações indígenas foram facil-mente induzidas pelos próprios portugueses a lutar umas contra as outras por se colocarem algumas delas como aliadas destes e outras como aliadas dos franceses; os mamelucos, em sua maioria, se alia-ram aos brancos contra os indígenas, fato corriqueiro nas bandeiras paulistas, em que numerosos mamelucos se destacaram como preda-dores de índios, e no Nordeste, com Jerônimo de Albuquerque II, que conquistou o Maranhão.

Diante dos conquistadores, o indígena foi escravizado até o século XVIII ou dizimado em grande parte. Muitos se refugiaram em áreas interioranas de mais difícil acesso, onde, em alguns países, vivem isolados ou com pouco contato com a civilização até os dias de hoje, como ocorre na Venezuela e no Brasil. No século XX, com a abertura de estradas cortando o interior e com a exploração desenfreada dos minérios e das florestas, grande parte das nações indígenas vem sen-do destruída, dizimada, a fim de que grandes grupos econômicos se apossem dos seus bens. No Brasil, algumas nações foram pratica-mente destruídas, como os uaimiri-atroari, ou estão em processo de destruição, como os ianomâmis.

Perseguido, expropriado, dizimado e aculturado, o indígena viu sua cultura ser praticamente destruída, mas As influência na formação dos países latino-americanos é ora menos expressiva conforme a intensi-dade do processo de absorção. Assim, ainda é muito forte no México, na Guatemala, no Equador, no Peru, na Bolívia e no Paraguai, locais em que até as línguas continuam sendo usadas nas áreas rurais, a agricultura absorveu técnicas agrícolas pré-colombianas e a miscige-nação entre o indígena e o colonizador é grande, havendo mesmo numerosos indígenas que ascenderam socialmente. Essa ascensão se faz de forma individual - caso de Benito Juárez no México -, mas não se faz acompanhar da ascensão como nação. É menos importante nos países em que a população indígena era menos expressiva durante a conquista e em que a cultura era mais primitiva, como no Brasil e na Venezuela, mas, mesmo nesses países, algumas nações indígenas têm conquistado expressão econômica na exploração dos recursos existentes em suas reservas, como acontece com os caiapós e com os xavantes.

3. A Formação de uma Sociedade Patriarcal e Patrimonial

Após o processo de dizimação e desapropriação da população in-dígena e a sua substituição por colonos europeus e negros - escravos

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africanos - e em seguida por imigrantes asiáticos e europeus, estrutu-rou-se uma sociedade patriarcal e patrimonialista. Sociedade patriarcal porque dividida em classes sociais bem definidas, colocando-se de um lado proprietários de terra, altos comerciantes e funcionários qualifica-dos e, de outro, os sem-terras, os trabalhadores destituídos de títulos e de acesso aos bons cargos e os pequenos comerciantes. Nessa sociedade a divisão em classes é acompanhada por uma divisão étni-ca. Em geral, admite-se como branco o que ascende socialmente e como de cor o que se mantém nos postos mais baixos da sociedade. O preconceito não é institucionalizado como o foi na América do Norte e o é na África do Sul, mas funciona perfeitamente quando se usam expressões como “o negro deve conhecer o seu lugar” ou quando se diz que o índio é incapaz e preguiçoso. Há até versos populares que exprimem bem essas distinções sociais, como os que dizem:

Branco é filho de Deus,

Mulato é enteado,

Cabra não tem parente

Negro é filho do diabo,

Ou quando se quer elogiar um negro e se diz que ele “tem alma branca”.

A sociedade patriarcal gera o nepotismo, uma vez que do mesmo modo que os bens passam por herança de pai para filho, os cargos públicos também passam, formando verdadeiras dinastias. Governa-dores, ministros, prefeitos, secretários de Estado se sucedem numa mesma família; o fato de pertencer a “uma boa família” é apontado como indicação que favorece nas eleições e nas disputas por cargos e empregos.

A situação de patriarcalismo chega a tal nível que em Pernambuco se dizia no século XIX que:

Quem viver em Pernambuco

Há de estar desenganado

Ou há de ser Cavalcanti

Ou há de ser cavalgado.

Na Paraíba, durante a Primeira República, quando Epitácio Pessoa era grande chefe político, se dizia que “na Paraíba quem não é pessoa é coisa”, ou referindo-se à grande extensão de propriedades da família Ribeiro Coutinho, no vale do paraíba do Norte, o mais rico do Estado, se dizia “quem não é Ribeiro Coutinho é Ribeiro coitado”.

Verifica-se, assim, que a grande família patriarcal ou foi formada a partir do exercício de cargos políticos e cresceu com a expansão da propriedade da terra e dos negócios, ou, ao contrário, se iniciou com o acúmulo de fortunas que lhe deu influência para a “compra” de manda-tos e em seguida a apropriação do Estado como se fosse um bem de família. E a influência das grandes famílias é muito grande nos vários

países da América, sendo que muitas delas desfrutam do poder desde o período colonial e a guerra da independência.

Teria sido a guerra da independência a grande oportunidade para a destruição do colonialismo, do patriarcado e do patrimonialismo, se tivesse sido conduzida pelos escravos e pelas populações pobres e não pelos grupos dominantes do período colonial. Só no Haiti é que os grandes proprietários franceses e descendentes, foram derrotados pelos negros, onde se formou uma república negra, que não conse-guiu desenvolver-se. É o país mais pobre do continente, tem pequena extensão territorial, é subpovoado, pobre em recursos naturais e dirigi-do por grupos espoliadores e sem espírito público. Esses grupos, após a independência, foram cooptados pelos norte-americanos que, utili-zando a força militar, transformaram o Caribe em uma área de sua dominação direta. Vejam-se os casos de Cuba, de Granada e, mais recentemente, do Panamá.

Nos demais países, excetuando-se os Estados Unidos, a “aristo-cracia rural” fez a revolução, preservando as instituições coloniais e mantendo as classes consideradas inferiores no lugar em que sempre estiveram. Também não conseguiram realizar uma unidade política que contrapusesse os Estados Unidos da América do Sul dos Estados Unidos da América do Norte, como desejou Bolívar, ele próprio aristo-crata, e se assistiu à conquista de grande parte do México pelos Esta-dos Unidos, ao desmembramento da América Central em cinco paí-ses, ao desmembramento dos vice-reinados da América do Sul - Nova Granada, Peru e Rio da Prata - e à manutenção do Brasil sob um sis-tema monárquico por mais de meio século. Em todos esses países os movimentos populares que tentaram dar ao povo acesso ao poder foram reprimidos e vencidos. No Brasil, durante o período regencial, quando os quadros políticos dominantes se viram mais enfraquecidos, ocorreu uma série de revoluções populares na Amazônia, em Per-nambuco e Alagoas, na Bahia e no Rio Grande do Sul, mas elas não tiveram êxito e possibilitaram a ascensão antecipada de Dom Pedro II ao governo.

Esse modelo da sociedade oligárquica só veio a sofrer um maior abalo no México em 1910, na Bolívia em 1952 e em Cuba a partir de 1959. Mas nos dois primeiros países as oligarquias já se recompuse-ram, fazendo algumas concessões modernizadoras, e em Cuba a revolução se encontra em perigo, sobretudo após a debacle do socia-lismo real na Europa do leste. É provável que, nesse final de século e na entrada do terceiro milênio, as oligarquias se ampliem um pouco e, aliadas aos interesses dos países do Primeiro Mundo, abram cada vez mais a exploração dos recursos latino-americanos aos grupos econô-micos sequiosos de matéria-prima barata e de força de trabalho sem poder de pressão. Daí a política neoliberalista e dita modernizadora, que procura desorganizar o movimento sindical e a resistência dos nacionalistas, empobrecendo a massa trabalhadora e enriquecendo os grupos dominantes. É difícil modernizar uma sociedade recorrendo-se ao ideário do século XVIII, que defende a livre concorrência entre ricos e pobres e permite às potências do Primeiro Mundo desenvolver uma

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política protecionista em seu território e livre-arbitrista nos países do Terceiro Mundo. Assim, dialeticamente, a modernização e a moderni-dade representavam uma volta ao passado e a consolidação de privi-légios que estavam envelhecidos.

4. Destruição e Degradação do Meio Ambiente

É fácil observar como a colonização foi feita em detrimento da mai-oria da população e como ela se expressou em dupla dominação: a dos países coloniais sobre os países colonizados, em escala mundial, e a de alguns grupos sobre a maioria da população, em escala conti-nental.

Analisando-se o caso do Brasil e de outros países da América Lati-na, observa-se que o imigrante que enriquece traz uma contribuição para a modificação da superestrutura, mas de adapta aos velhos cos-tumes de oligarquia, passando a usar o Estado como propriedade sua, transferindo os prejuízos de suas empresas para a população, sociali-zando-os enquanto privatiza os lucros. O capitalismo não pode concili-ar-se com políticas ecológicas globais de preservação do meio ambi-ente; o que interessa prioritariamente ao capitalista é a multiplicação do capital, a maximização do lucro, desprezando-se os impactos que a atividade econômica possa provocar no meio ambiente. Por isso a atividade econômica;e sempre acompanhada pela degradação do meio ambiente e pela exploração desenfreada dos recursos naturais.

A destruição dos recursos é demonstrada de forma mais acentuada na exploração extrativa, animal, vegetal ou mineral; assim, no período colonial havia produtos do mar de grande importância, mas que foram explorados de forma desordenada até a extinção da espécie. Nos séculos XVI e XVII, por exemplo, a costa brasileira era ponto de pas-sarem, área de migração de baleias que subiam até a linha equatorial na época da procriação. Cronistas coloniais fazem referência ao fato e chegam a dizer que havia uma grande caçada às baleias, a fim de obter o óleo, utilizado como combustível para iluminação e como mate-rial que dava maior consistência à argamassa na construção civil.

Na extração mineral é conhecida a atuação dos colonos espanhóis na exploração do ouro e da prata no México, no Peru, na Colômbia, no Brasil e na Bolívia, tendo sido uma atividade econômica das mais importantes do período colonial; os americanos do norte exploraram o outro no oeste, no século XIX, e os portugueses no Brasil, no século XVIII, nas Minas Gerais, em Goiás e Cuiabá. A história das Minas Gerais é, em grande parte, a história da exploração de outro, prata e diamantes no período colonial, como o é da exploração mineral de metais ferrosos.

Para que a América se liberte da dominação colonial, é necessário que ela se conscientize de que necessita procurar os seus caminhos a fim de que possa construir uma sociedade mais justa - o maior ataque ao meio ambiente é a preservação da miséria e da fome - e mais inte-grada aos desafios do meio ambiente; isso sem radicalismo.

FINANÇAS PÚBLICAS E RELAÇÕES DE TRABALHO NA AMÉRICA LATINA

A ganância por parte de indivíduos e Estados predatórios, sujeita à variação dos preços relativos dos fatores e a compulsões associadas ao custo das transações, pode ser responsável pelo surgimento do trabalho escravo indígena e pela transição para um campesinato mes-tiço livre, num país que é o paradigma latino-americano da abundância de terras da periferia. A substituição da escravidão indígena pela ser-vidão e por formas de trabalho contratado visou regular o mercado de trabalho no Paraguai, atenuar o esgotamento do trabalho indígena, prover a defesa da colônia e aumentar o quinhão da coroa nas rendas do trabalho. O grau de coerção diminuiu à medida que o campesinato cresceu, que a terra se tornou menos abundante e as perspectivas de comércio exterior melhoraram. Então, os governos tributaram as ren-das da terra, apropriaram-se das terras e criaram um exército perma-nente.

Há muito tempo a escravidão era conhecida dos índios pré-colombianos, que habitavam as planícies relativamente pouco povoa-das da periferia do Novo Mundo, mas a sua escravização ostensiva, que caracterizou o início da colonização espanhola no Paraguai, ocor-reu em escala muito maior. Seguiu-se o decréscimo da população indígena, e suas implicações nas finanças públicas levaram a coroa a substituir a escravidão, em meados do século XVI, por duas formas de trabalho servil: a encomenda “yanacona”, que disfarçava e restringia a escravidão anterior e a encomenda “mitaria”, mas semelhantemente à servidão europeia. Os yanaconas viviam nas casas, propriedades agrícolas e - mais tarde - nas fazendas de gado de seus senhores e os serviam permanentemente, em todos os tipos de tarefa. Os índios mita, em vez de para o imposto que deviam ao rei, revezavam-se na prestação de serviços específicos a seus senhores, por um período de tempo que no final se reduziu a dois meses por ano. De 1580 em dian-te, os mita foram progressivamente confinados em povoados segrega-dos, em sua maioria fundados por missionários, a princípio francisca-nos e depois também jesuítas. Os índios dos pueblos foram mais tarde submetidos também aos mandamentos, um sistema de trabalho con-tratado, gerido pelo Estado, que alugava os trabalhadores indígenas a senhores espanhóis para determinadas tarefas de curta duração. Nem as encomendas nem os mandamentos podiam ser comercializados legalmente. Apesar do sistema das encomendas e do confinamento dos povoados segregados, por volta de 1630 a população indígena, tanto a servil quanto a ainda livre, havia declinado para uma fração de seu tamanho original.

Com a chegada do século XVII, um pequeno campesinato mestiço, de fala guarani, livre das encomendas, começou a ocupar as terras abandonadas pelos indígenas. No início, sua expansão foi lenta. A terra era abundante, mas os ataque de índios cavaleiros a oeste, as incursões de portugueses em busca de escravos índios a leste e a expansão das missões jesuítas para o norte tornavam arriscada a colonização da fronteira. O campesinato livre cresceu mais rapidamen-te no século XVII, quando diminuíram as incursões portuguesas, me-

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lhorou a defesa contra os ataques de índios e foram expulsos os jesuí-tas. Floresceu literalmente no fim da época colonial, quando o Edito de Livre Comércio dos Bourbon liberou o comércio internacional das res-trições impostas pelos Habsburgos no século anterior, fazendo com que aumentassem o comércio, a imigração e a população.

A escravização dos índios americanos, por Ter contribuído para o declínio da população indígena, teve implicações deletérias nas finan-ças públicas, fenômeno já observado pela coroa em outras partes do Novo Mundo. Embora os espanhóis tivessem de pagar à coroa um imposto para cada escravo indígena, que capturavam ou compravam de outro grupo indígena, os índios livres também eram vassalos da coroa e teoricamente tinham direito a sua proteção, pela qual lhe devi-am um imposto. Seria de esperar, portanto, que os benefícios a curto prazo para as finança públicas advindos da escravização indígena fossem afinal mais do que anulados pelo declínio da população indí-gena livre induzido pela escravização e pela consequente redução da base potencial de impostos, como já havia ocorrido em regiões con-quistadas anteriormente.

O controle da população indígena e o seu confinamento em pue-blos podiam acontecer, como de fato aconteceram, independentemen-te um do outro, especialmente no começo. Assim, enquanto alguns povoados indígenas temporários foram fundados por particulares es-panhóis antes mesma da concessão das primeiras encomendas, em 1550, os primeiros povoados indígenas permanentes só foram funda-dos em 1580, por missionários franciscanos. Ademais, a fundação de pueblos de índios permanentes acompanhou o início da produção de erva-mate e a expansão de Assunção para o sul. A erva-mate era consumida primeiramente apenas em Assunção, mas por volta de 1630 já era o maior item de exportação do Paraguai.

Arrendar a cobrança de impostos era do interesse da coroa: os vassalos da coroa, os índios tinham direito à sua proteção, pela qual deviam pagar ao rei uma taxa. No entanto, os índios americanos das planícies tropicais, por causa de seu grau de desenvolvimento agrícola relativamente menor e do comércio praticamente inexistente, eram bem menos capazes de pagar impostos do que em outras regiões do império hispano-americano. Nessas regiões, os custos da coleta de impostos em espécie frequentemente excediam o valor da arrecada-ção, devido ao alto custo de transação: os mercados locais de leilão para produtos agrícolas eram relativamente raros, as receitas em es-pécie eram perecíveis e o alto custo do transporte por terra e por água dificultava o transporte das receitas para outras regiões da América ou para a Espanha, onde poderiam ser leiloadas de forma mais vantajo-sa. Os colonos espanhóis, ao contrário, podiam Ter um uso mais lu-crativo para o produto da agricultura indígena do que a coroa. Podiam não só consumir no local as provisões fornecidas pelos índios como também elevar significativamente a produtividade do trabalho indígena se pudessem submeter a mão-de-obra indígena a um regime de traba-lho mais disciplinado. A produção per capta poderia aumentar ainda mais se pudessem fazer os trabalhadores indígenas trabalhar com

instrumentos de ferro, que os próprios índios reconheciam ser superio-res aos de pedra e desejavam ardentemente. Permitindo-se a imposi-ção da servidão, portanto, tanto a produção final como a renda tributá-vel poderiam aumentar. No entanto, a distribuição da produção foi significativamente deformada em relação ao que teria sido se os direi-tos de propriedades sobre o trabalho e a terra tivessem sido assegu-rados.

O surgimento do Campesinato Mestiço Livre

Logo após as primeiras uniões polígamas entre espanhóis e índios os descendentes mestiços começaram a aparecer. Seu número conti-nuou a aumentar com o início da escravidão e com a imposição das encomendas, já que os índios escravos tornaram-se servos yanaconas e continuaram a viver bastante próximos de seus senhores enquanto os novos servos mita ainda tinham de ser confinados em povoados segregados próprios.

Sob alguns aspectos importantes o estado legal dos mestiços acul-turados era mais próximo do dos espanhóis. Além disso, quando seus pais os reconheciam e o governador anuía, os mestiços aculturados eram eximidos da encomenda, isenção ratificada pelos tribunais. Os mestiços aculturados não só eram livres das obrigações de trabalho forçado como também poderiam manter encomendas. Devido à au-sência de imigração espanhola, os criollos e mestiços chegavam a ocupar cargos públicos supostamente reservados aos espanhóis.

O pequeno campesinato mestiço começou a adquirir maior impor-tância e os índios eram confinados em pueblos. Com o advento da depressão do século XVII e a queda de produção das minas de prata de Potosi, sobreveio a contração da economia regional, cessou lite-ralmente a imigração e as fazendas familiares de propriedades dos camponeses de fala guarani se espalharam pelas terras que o confi-namento dos índios em povoados havia deixado vazias. Esse proces-so continuou pelo restante do século XVII e início do século XVIII a uma taxa que, dada a ausência de migração, deve Ter sido semelhan-te à do crescimento populacional. No entanto, no começo do século XVII os camponeses ainda eram em pequenos número e, embora a terra fosse abundante, a fronteira permanecia perigosa, devido aos ataques dos índios cavaleiros vindos do oeste, às incursões dos por-tugueses a partir do leste vindos de São Paulo em busca de escravos índios e à expansão em direção norte das missões jesuítas. Índios nômades das planícies a oeste do rio Paraguai tornaram-se um inimi-go temível depois que adotaram o cavalo para suas necessidades militares e de caça, como fariam mais tarde os índios dos Estados Unidos. Na ausência de fortificações militares, suas incursões ao norte e ao sul de Assunção confinavam a terra efetivamente ocupada pelos espanhóis a uma faixa estreita a leste dessa cidade, ao longo da cordi-lheira central. As incursões portuguesas em busca de escravos força-ram os aldeamentos espanhóis e as missões jesuítas do Guairá a mudarem de lugar, as primeiras para a jurisdição de Assunção, as últimas para a área às margens dos rios Paraná e Uruguai, que se

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tornou seu locus classicus. As “bandeiras” continuaram a fazer com que os povoados paraguaios recuassem. Embora os jesuítas tenham conseguido deter, em 1648, as “bandeiras” que buscavam escravos, sua própria expansão subsequente para o norte também restringiu tanto o trabalho indígena quanto a área disponível aos mestiços, para assentamento, cultivo e pastagem. Os conflitos resultantes entre para-guaios e jesuítas chegaram ao ápice na chamada Revolta dos Comu-neros, no primeiro terço do século XVIII.

Rapidamente o pequeno campesinato espalhou-se no final do sé-culo XVIII e começo do século XIX, depois da expulsão dos jesuítas, bem como da liberalização das restrições comerciais em 1770 e do aumento da imigração daí decorrente. O incremento do comércio regi-onal provocou um aumento na produção de erva-mate no norte, de tabaco no oeste e de gado, migrações constituídas por exemplo de moradores dos povoados de missão ao sul abandonados pelos jesuí-tas recentemente expulsos e por imigrantes vindos de fora da provín-cia, embora as fazendas de gado também estivessem surgindo na “Costa Abajo”. O crescimento da produção de tabaco ocasionou um aumento do pequeno campesinato e, portanto, da fronteira do país. Correspondentemente, o mercado de terras tornou-se mais ativo: subi-ram os preços da terra, surgiram os aluguéis da terra, os arrendamen-tos agrícolas e os camponeses sem terra, e a fronteira foi expandida ainda mais. Além disso, os forasteiros começaram a invadir cada vez mais as terras dos índios durante esse período. Os salários também aumentaram, em parte porque as reformas dos Bourbon estimularam o desenvolvimento de empresas estatais agrícolas e manufatureiras cuja demanda de mão-de-obra indígena ressuscitou uma política de admi-nistração colonial do século XVII cujos pontos principais eram: não outorgar novas encomendas e obrigar as encomendas livres a reverter à coroa. A maior demanda doméstica e internacional e a maior de-manda, daí derivada, de terra e mão-de-obra ajudou a expandir a fron-teira do país e, embora tenha introduzido uma certa concentração de terra e maior diferenciação social, aumentou a importância relativa de pequenos proprietários camponeses.

O surgimento do pequeno campesinato mestiço e sua eventual predominância sobre as formas de trabalho forçado que o precederam pode ser atribuída a dois fatores. Primeiro, as proporções de fator eram requeridas, isto é, no início a terra era abundante e o declínio da população indígena e seu confinamento em povoados tornaram a terra ainda mais abundante, em termos relativos, do que era originalmente. Segundo, os direitos dos mestiços aculturados a seu próprio trabalho eram bem definidos e o Estado os assegurava. Quando a escassez de trabalhadores indígenas se tornou ainda mais acentuada e as enco-mendas estagnaram, os encomenderos tentaram sujeitar os mestiços aculturados, mas não foram bem-sucedidos, porque os mestiços eram legalmente isentos da sujeição e os tribunais coloniais asseguravam essa isenção. Acontece que a maior parte da população espanhola era composta de mestiços e, uma vez desaparecida a população ainda livre, os mestiços passaram a depender, para sua sobrevivência, de seu próprio trabalho e da terra ainda abundante, isto é, os mestiços

tornaram-se camponeses. Assim, foi a intervenção do governo para garantir os direitos de propriedade que permitiu ao campesinato livre permanecer livre, quando as forças econômicas o teriam levado à sua sujeição. Na medida em que crescia a população e aumentava a de-manda internacional de produtos de exportação paraguaias, principal-mente após as reformas de Bourdon, as terras tornavam-se mais es-cassas, surgiam aluguéis de terra, arrendamentos de terra e trabalha-dores sem-terra. Como consequência, ocorreu um processo de con-centração de terra e a fronteira do país foi estendida pelas fazendas familiares.

Embora desestimulasse as encomendas privadas no final do século XVII, o Estado encorajava simultaneamente as empresas estatais que faziam uso de mão-de-obra indígena forçada e subsidiava algumas empresas privadas mediante a concessão de trabalhadores indígenas forçados. Assim, embora a coroa espanhola tenha finalmente abolido as encomendas em 1803, as empresas do Estado, como a fábrica real de tabaco e a fábrica de cabos, continuaram usando trabalhadores forçados indígenas, enquanto os estaleiros privados recebiam mão-de-obra forçada subsidiada. A continuidade tanto das encomendas priva-das quanto do emprego de trabalhadores forçados em empresas esta-tais mesmo depois da abolição das encomendas é sugerida pelo fato de que, após a independência, o governo nacional esforçou-se por reiterar, em 1812, a ilegalidade das encomendas.

CONCLUSÕES

Se a escassez relativa de mão-de-obra em relação à terra e uma distribuição desigual de aptidões militares deram origem à escravidão ou servidão, isso dependia do grau em que o Estado assegurava os direitos de propriedade. Por sua vez, essa garantia do governo depen-dia da taxa de retorno ao Estado do investimento de seus recursos escassos nessa atividade em comparação com outras. No Paraguai, a escravidão indígena surgiu quando o Estado mercantilista predatório, a fim de dar incentivos aos agentes privados para povoarem essa pobre colônia fronteiriça e atenderam a seus próprios interesses, deixou de garantir os direitos dos índios sobre seu próprio trabalho e permitiu os espanhóis que os considerassem um recurso de propriedade comum. Os espanhóis proprietários de escravos e o Estado dividiam as rendas do labor de trabalhadores forçados, embora na época a distribuição de rendas favorecesse os indivíduos espanhóis. A exploração, por parte de empresários privados, do trabalho indígena pertencente à coroa Segundo as linhas do recurso de propriedade comum levou ao esgo-tamento do recurso e à perda de rendas que, de outro modo, reverteri-am para ele. Quando o recurso se tornou mais escasso e, portanto, mais valioso, e para evitar esgotamento posterior e perda de renda, assim como prevenir efeitos deletérios de longo prazo sobre as finan-ças públicas, a coroa procurou regulamentar a exploração do trabalho indígena e prover a defesa colonial mediante a encomenda, esquema de arrendamento de impostos, e a congregación, que confinou os índios e os segregou dos espanhóis. Essas instituições regulamenta-doras eram similares aos esquemas de administração da pesca oceâ-

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nica. Pretendiam limitar o acesso ao recurso e reduzir a perda das rendas que o recurso poderia gerar para a coroa. Juntamente com os mandamientos, procuravam aumentar a proporção das rendas do trabalho que cabia ao Estado. No entanto, o sistema não funcionou muito bem. Tão logo se tornou claro que os índios poderiam contribuir melhor para a defesa colonial e para os cofres da coroa se fossem reunidos em missões jesuíticas e isentos das encomendas em vez de serem sujeitados aos encomendeiros, as missões jesuítas tornaram-se o arranjo institucional preferido. O crescimento da população mestiça legalmente isenta das encomendas na época tornou a mão-de-obra relativamente mais abundante e a terra comparativamente mais es-cassa, tendência que foi exacerbada quando as reformas dos Bourbon aumentaram o comércio internacional e a imigração. Quando a terra e o comércio internacional substituíram o trabalho como fontes predomi-nantes de receitas de impostos para o Estado, a coroa procurou prover a defesa e obter receitas através de outros arranjos institucionais fora das encomendas e das missões jesuíticas. No entanto, o trabalho forçado persistiu nas empresas do Estado. Quando os bloqueios ao comércio internacional no século XIX reduziram o excedente de expor-tação e causaram uma crise nas finanças públicas, o Estado recorreu novamente a formas coloniais de taxação, entre elas a expropriação de terras e a renovada tributação dos pueblos de índios. O estado voltou a expropriar terras e a dissolver povoados indígenas quando previu que a navegação livre dos rios iria generalizar-se, levando a um boom no comércio internacional. Os sistemas de coerção de trabalho indígena nada mais eram que um sistema de monopólios do mercanti-lismo aplicado ao mercado do trabalho.

PLANTAÇÕES, PASTOS E PORTO: A ECONOMIA COLONIAL E MUDANÇAS AMBIENTAIS NO BRASIL

Um velho tupinambá, na década de 1550 perguntou a Jean de Léry, o pastor protestante da colônia francesa no Rio de Janeiro, por que os europeus vieram de tão longe para colher madeiras. Léry explicou que queriam o pau-brasil não como lenha mas para tinta, e que precisavam de muito para abastecer seus negociantes ricos que possuíam montões de tecidos, facas, ferramentas, espelhos e outras mercadorias. “Mas”, disse o velho, “esse homem de quem você fala, que é tão rico, ele não morre?” Léry lhe assegurou que sim, e quando o índio perguntou a quem o negociante deixaria sua propriedade, Léry lhe disse que seria para seus filhos ou outros parentes. O velho respondeu:

“Na verdade, vejo que vocês são grandes tolos, é preciso trabalhar tanto para atravessar o mar, onde (como nos disse) vocês sofreram tantas misérias, somente para juntar riqueza para seus filhos e aqueles que lhes vão sobreviver? A terra que os nutre seria suficiente para eles? Temos parentes e filhos que, como você vê, Amamos e estimamos; mas porque estamos certos Que depois de morrer a terra que nos nutria Também nutrirá a eles, não nos preocupamos Mais com isto.”

O pastor Léry utilizou essa conversa como texto de sermão para mostrar a cobiça de europeus aquisitivos e a inocência dos tupinam-

bás, que Léry via como vivendo em estado de natureza. Refletindo sobre as consequências da chegada do Colombo às Américas há quinhentos anos, a história de Léry também vem ao encontro de nos-sas preocupações ambientais. Os tupinambás estavam em casa e percebiam o mundo natural como um aliado em sua subsistência e reprodução social. Os europeus estavam numa terra estrangeira. Iden-tificaram um recurso para colher e para transformá-lo numa mercado-ria. O objetivo dessa transformação foi a acumulação de riqueza, que tinha sentido somente em sua própria sociedade. Para ambos, tupis e europeus, a natureza brasileira era viçosa e abundante, mas divergiam nos usos dessa abundância. Os europeus, ao se estabelecer no Brasil e fazer dele sua terra; guardaram consigo suas percepções, práticas, ferramentas, e um exército de organismos - não somente para sobre-viver no Brasil, mas também para ligar a colônia ao mundo europeu.

Ao observarmos o processo de alteração ambiental no período co-lonial, descobrimos que não foi um processo unilinear. O impacto das atividades europeias sobre a natureza não-humana muitas vezes foi indireto e contraditório. Na verdade, é bem provável que, durante os mais ou menos trezentos anos de domínio colonial no Brasil, os seres humanos perturbaram menos a natureza do que antes e depois. A importância do período para a história ambiental do Brasil reside me-nos no dano em si do que na implantação de ideias novas e na criação de práticas econômicas novas cujo potencial destruidor foi ampliado pela população e tecnologia crescente dos séculos seguintes.

Em 1500, o Brasil era ocupado por muitos povos com grande diver-sidade de língua, cultura e estratégias de subsistência. Nossas estima-tivas da população indígena do Brasil em 1500 são pouco melhor que conjeturas. A cifra de 2,5 milhões de habitantes é a estimativa mais conservadora, podendo elevar-se até 6 milhões de habitantes com base em novas descobertas arqueológicas sobre o hábitat dos povos ribeirinhos na Amazônia e em novas análises das crônicas dos primei-ros europeus que visitaram a região, as quais falavam das margens dos rios com populações densas. Essa evidência indica a ascendência e a decadência, na Amazônia, de sociedades tribais complexas que praticavam a agricultura nas planícies aluviais.

Três grupos de fenômenos ambientais marcam a história ambiental da colonização: 1. Mudanças na demografia humana; 2. Desmatamen-to e suas consequências para a vegetação, os solos e o clima; 3. In-trodução de espécies exóticas. Em muitos casos os europeus foram agentes inconscientes de mudanças, como, por exemplo, na introdu-ção das doenças do Velho Mundo e na transferência de animais e plantas nocivas. Não obstante, esses três grupos de fenômenos ambi-entais estavam diretamente ligados ao modelo econômico colonial. O sistema colonial significou a utilização do ambiente americano para satisfazer a objetivos europeus e criar e intensificar os vínculos entre o Novo e o Velho Mundo.

A primeira e mais importante consequência ambiental da invasão eu-ropeia foi demográfica. Mudanças demográficas incluíam o efeito catas-trófico das doenças do Velho Mundo nos indígenas, migrações indíge-

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nas ao interior para escapar do contato com os europeus e a imigração, intencional ou forçada, de portugueses e africanos ao Brasil. Nunca poderemos saber exatamente a enormidade da população indígena, mas temos exemplos numerosos de grande mortalidade entre índios ao contato com os portugueses. A concentração de trabalhadores indígenas nos engenhos ou nas aldeias dos jesuítas facilitou a transmissão das doenças. Por exemplo, epidemias de varíola e sarampo em 1559-63 mataram talvez sessenta mil índios na Bahia. As expedições em busca de escravos, legais e ilegais, transmitiram doenças e estimularam a migração de grupos indígenas mais profundamente para o interior, su-bindo os rios. Posto que a ocupação da Amazônia fosse limitada, as populações densas e as chefias fortes ao longo do grande rio, registra-das pela expedição de Orellana em 1541-42, tinham desaparecido em 1700. Existem casos em que as doenças e migrações resultaram na perda de conhecimento agrícola e mesmo de como fazer fogo.

O modelo econômico colonial imposto à terra teve como consequên-cia o desmatamento. A agricultura colonial estava baseada na abundân-cia de terra e na escassez de mão-de-obra. Na economia açucareira o desmatamento não se limitou à limpeza da terra para plantações, visto que também se precisava de lenha para as fornalhas e de tábuas para as caixas. Os colonos notaram a falta de madeiras perto dos centros de população, mas acreditavam que as florestas eram inexauríveis. Já em 1607 Ambrósio Fernandes Brandão escreveu que era impossível cons-truir grandes navios em Pernambuco porque as madeiras já tinham sido usadas pelos senhores de engenho. Todavia, como ainda existiam ou-tras florestas, Brandão concluiu que “as matas nunca deixam de fornecer madeiras”. Luso-brasileiros perceberam o meio ambiente tropical como viçoso, verde, fértil e capaz de regeneração contínua depois da violência de machados e queimadas.

O dano à natureza não foi a principal herança ambiental deixada pela época da colonização, que estabeleceu atitudes e práticas que criaram padrões de comportamento com consequências ambientais destrutivas. Uma mentalidade econômica, instrumental e extrativa para com a natureza dominava o Brasil colonial. Como dizia Caio Prado Jr., “todos os esforços e todas as atenções convergiam para um simples fim: a exploração máxima de uma vantagem temporária”. Em certo sentido, os europeus e seus descendentes no Brasil tinham em co-mum com o velho tupinambá com quem falou Léry a ideia de que a natureza abundante iria sempre sustentá-los. Mas os europeus viam o Brasil como uma estufa, onde produtos para venda poderiam ser ama-durecidos e transformados em riqueza. Seus objetivos eram diferen-tes, seu conhecimento do ambiente neotropical foi deficiente, e os organismos que os acompanhavam, suas ferramentas e práticas, ti-nham um grande potencial destrutivo.

BAHIA, FINAL DO SÉCULO XVII: SOB O SIGNO DE UMA ESTRELA PÁLIDA E BARBADA

Por volta do século XVII, o impacto de uma fase negativa, embora operando de forma desigual sobre o Brasil, atinge duramente a Bahia.

O fim da União Ibérica (1580-1640) interrompe de vez o fluxo da prata espanhola para a colônia. É bem verdade que tal fluxo já diminuíra muito, embora ainda fosse um fator importante do abastecimento de moeda boa, a chamada “inversão americana” - a ruralização de am-plos segmentos mineradores na América espanhola - potencializa a interiorização da produção agrícola há hacienda. Ambos os fenômenos contribuem bastante para diminuir o nível das atividades comerciais, legais ou não, na colônia, acentuando, assim, ainda mais o caráter depressivo do período.

Estes fatos, somados à crença inabalável da coroa portuguesa na necessidade de um posto avançado no Rio da Prata, explicam, a partir de 1676, a pretensão de se Ter, na Colônia do Santíssimo Sacramen-to, uma janela aberta para o comércio com as colônias de Espanha. Desde 1651 a Bahia sentia os efeitos da “fome de numerário”, ao mesmo tempo que os mercados norte-europeus - interconectados com Lisboa - retraíam-se, acentuando a crise.

No período entre 1652 e 1656 surgem grandes domes em Pernam-buco, em seguida a uma prolongada seca, com efeitos negativos so-bre a sede do governo-geral, gerando inquietações e transtornos. É após 1687 que a rotina da Bahia se vê seriamente alterada. Os anos de 1684 e 1685 vinham-se caracterizando por uma acentuada penúria dos alimentos, com reclamações da população urbana junto ao gover-nador-geral Antônio de Souza de Menezes (1682-1684), o Braço de Prata. Em particular, a infantaria da cidade de Salvador, paga em fari-nha, dava sinais de grande inconformidade.

Paralelo a uma prolongada seca, que ocasionava a penúria dos alimentos, a Bahia é sacudida pelas lutas entre os partidários do go-vernador-geral, o Braço de Prata, aliado ao alcaide-mor Francisco Teles contra as demais autoridades locais, principalmente o poderoso clã Vieira Ravasco, que tradicionalmente dominava a alta administra-ção baiana.

As duras batalhas entre as diversas facções locais afugentam mer-cadores, regatões e vivandeiros, que se desviam de Salvador e vão vender seus produtos nas vilas do Recôncavo.

Tais fatos deixam Salvador em um estado de penúria ainda mais acentuado. Para acentuar o caráter dramático da situação, um jesuíta, frei Estancel, anuncia a passagem de um cometa, sinal de desgraças.

O padre Vieira, em disputa aberta com o governador, usa, com seus dotes de orador barroco, a passagem do cometa como anuncia-dor dos males decorrentes das descobertas da terra.

Vieira via no cometa o anúncio da volta do “Encoberto”, o retorno de El-Rei Dom Sebastião perdido nas areias de Alcácer Quibir.

O clima político na colônia refletia, em larga escala, um certo can-saço e perplexidade que se seguira às lutas pela Restauração em 1640. Os jesuítas, particularmente no Brasil, defendiam uma maior abertura para judeus, em especial para com comerciantes e banquei-ros, no sentido de atrair capitais e investimentos que assegurassem a

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retomada das atividades econômicas, única garantia da liberdade recém-conquistada.

Enquanto isso, outras forças políticas, em especial a Inquisição e os dominicanos, lutavam por um projeto diferenciado, longe do modelo mercantilista e mais voltado para uma monarquia de fundo medieval, fortemente tutelada pela Igreja. É nesse campo de lutas, tanto na me-trópole como na colônia, que Vieira procura desenvolver seus projetos, articulando forças de ambos os lados do Atlântico e procurando enfra-quecer o partido rival.

A chegada do novo governador-geral, Antônio Luís de Souza Telo (1684-1687), o Marquês das Minas, iria, por fim, restabelecer a paz na tumultuada cidade de Salvador, fazendo cessar as “alterações” que haviam prejudicado a vida local.

PROPRIEDADE RURAL NA AMÉRICA LATINA: A FRONTEIRA URUGUAIO-RAIO-GRANDENSE NO SÉCULO XVIII

Ao contrário de se constituir num processo pacífico, a apropriação da terra na América Latina foi um movimento repleto de conflitos que resultou na formação da grande propriedade fundiária e no enquadra-mento dos grupos subalternos como mão-de-obra para as nascentes formações econômico-sociais. A formação da propriedade e o enqua-dramento da mão-de-obra constituem um binômio inseparável para a compreensão da organização social latino-americana no decorrer da sua história.

As sociedades latino-americanas apresentam diferenças regionais decorrentes, entre outros fatores, de preexistência de populações indígenas hierarquicamente organizadas, do ritmo de incorporação de cada região ao sistema colonial e das demandas oriundas do mercado internacional. A história da apropriação da terra na América latina já data, como sabemos, do período colonial e sempre apresentou os traços de violência, roubo e apropriação indevida. E a resistência das populações que estavam localizadas nas terras quais se apossaram os espanhóis sempre se fez sentir.

O século XIX foi de grande importância para a formação do atual sistema de propriedade e das relações de trabalho na América Latina. Foi uma fase de privatização e concentração de terras nas mãos de uma oligarquia de grandes proprietários rurais ligados especialmente à produção agropecuária, destinada ao mercado externo.

O processo de vinculação ao mercado mundial ocorre nessa fase de transição para a definitiva implantação do capitalismo na América Latina, que, além de caracterizar-se como a etapa de apropriação de terras, é também a fase de organização e de consolidação dos Esta-dos nacionais.

Se deixarmos de lado o Brasil e o Caribe, que apresentaram um conjunto de países de formação escravista, vemos que os países lati-no-americanos que desde os tempos coloniais exploravam a mão-de-obra indígena apresentaram uma estrutura social mais variada e que sofreu transformações no decorrer do tempo.

Essa variedade se constitui num empecilho que muitas vezes difi-culta as generalizações para a América Latina.

Nos países em que a população indígena era densa e foi enqua-drada como mão-de-obra desde o período colonial, a questão da or-ganização de um mercado de terras, através da desapropriação das terras da Igreja (a chamada desamortização - que constitui em trazer os bens imóveis da Igreja e das ordens monásticas para a circulação econômica), do avanço sobre as terras das comunidades indígenas e da venda das terras públicas, criou, no decorrer do século XIX, o duplo efeito de proporcionar simultaneamente uma oferta de terra e mão-de-obra, organizando-se dessa forma o mercado de terra o mercado de trabalho, ou seja, levando à formação da propriedade e ao enquadra-mento da mão-de-obra. Esse processo em geral foi violento e houve resistência tanto da igreja (com suas posições apoiadas pelos conser-vadores) quanto das comunidades indígenas, como no caso do México - mais fortes e persistentes. O meio jurídico de subordinação e de redução dos indígenas à situação de camponeses que pagavam renda em trabalho ou dinheiro era a universalização da propriedade privada do solo. No México, esse processo foi perseguido de maneira aberta e conduzido pelo Estado até o começo do século XX. Este sistema per-mitiu separas os indígenas de suas terras, mediante o estabelecimento do princípio de propriedade privada geral da terra. A resistência dos indígenas ao estabelecimento das relações de propriedade privada da terra, que eles ignoravam, conduziu a lutas e rebeliões constantes. O objetivo dessas rebeliões não era, como foi entendido com frequência, “recuperar suas terras”, subentendendo-se suas propriedades, mas, ao contrário, impedir o estabelecimento das relações privadas de pro-priedade (Gutelman, 1974, p. 51). No México, os trinta anos de gover-no de Porfirio Díaz foram, com relação a esse processo, decisivos. Pela violência, pelo roubo e pelo assassinato coletivo, esse regime fez entrar maciçamente no circuito comercial um bem que até então era praticamente excluído: a terra (Gutelman, 1971, p. 34).

O governo mexicano, em face das revoltas indígenas provocadas pela expropriação, decidiu transformar a propriedade comunal em propriedade particular, favorecendo seus respectivos possuidores. Criou-se uma propriedade privada extremamente pequena (mini fundi-ária) em contrapartida à grande propriedade fundiária, ainda mais aumentada graças à expropriação dos bens do clero, adquiridos pela oligarquia agrária exportadora.

Vila, Reino e Sertão no São Paulo Colonial

A partir dos primeiros dias da colonização, os moradores do Brasil viviam em entre três mundos: a vila, o reino e o sertão. Cada um des-ses mundos era diferente; cada um afetava as famílias de forma pro-funda. O modo como as famílias interagiam em cada uma dessas áreas determinou em grande parte sua riqueza e posição social no futuro. Além disso, a maneira como algumas famílias dominaram es-ses três mundos em conjunto explica o modo como surgiu e se perpe-tuaram as classes sociais no Brasil colonial. Este artigo analisa as

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interações das famílias da vila paulista de Santana de Parnaíba nos três mundos, da vila, do reino e do sertão, e a maneira como essa interação afetou as formações sociais dessa região do Brasil colonial.

Os membros das famílias de Santana de Parnaíba passavam a maior parte de suas vidas na vila, uma comunidade legalmente esta-belecida dentro do império português na América. A cultura criada na vila tinha origem nas tradições tanto no velho quanto do Novo Mundo. As leis de Portugal, o catolicismo europeu e as instituições municipais ibéricas conformaram a vila, da mesma forma que a alimentação, a língua e os métodos agrícolas dos índios se tornaram parte da vida cotidiana. Como as vilas portuguesas, Santana de Paraíba tinha sua matriz, o senado da câmara, a ordenança, o rossio e funcionários que representavam a sociedade portuguesa: sacerdotes, corregedores, capitães de milícia e notários. Ainda assim, situada como estava no Brasil colonial, uma vila como Santana de Parnaíba apresentava mui-tas características do sertão, como florestas virgens e uma vasta po-pulação de índios. A vila tornou-se, sob diversos aspectos, a síntese entre o reino e o sertão: pois aí se constitui, no século XVII, uma cultu-ra híbrida, mameluca. Dessa forma, uma vila brasileira como Santana de Parnaíba não era uma réplica completa de uma vila portuguesa; apenas reproduzia algumas de suas instituições. Tornou-se, assim, um mundo novo e diferente.

Do reino, Portugal, vieram o impulso para a colonização, as políti-cas que estruturaram o domínio colonial e os valores culturais predo-minantes. O reino representava a base de origem da civilização portu-guesa: a sede da autoridade em questões espirituais e temporais. Era a fonte do poder político, das leis que governavam a família e a vida de comunidade. Nem todos na vila compreendiam a importância e o significado do reino. Apenas alguns poucos moradores de Santana de Parnaíba visitaram algum dia Portugal. Mas, para uma pequena mino-ria que compreendia a relação da vila com o reino, ele propiciava uma fonte de poder. Aqueles que defendiam o domínio do reino sobre a vila e aqueles que comerciavam com Portugal os produtos agrícolas da vila reconheciam que seus vínculos com o reino aumentavam sua autoridade e seu status na vila.

Por outro lado, a palavra sertão, designava o desconhecido, a imensa vastidão. Nos mapas, o sertão especificava o interior do Brasil, os territórios sob controle dos índios e a floresta virgem que poderia ainda existir em torno dos povoamentos portugueses e entre eles. Se o reino representava um polo de um continente que se estendia do Velho ao Novo Mundo, o sertão sintetizava o oposto: a América em seu estado natural, Altas florestas agrestes, habitadas por tribos indí-genas, cobriam a maior parte do sertão. Os rios que nasciam nas ser-ras, serpenteavam pelas florestas e finalmente desaguavam no Ocea-no Atlântico propiciavam as únicas vias de acesso ao sertão. Quase todos os moradores de Santana de Parnaíba, no período colonial, tiveram experiência com o sertão. Para os índios, o sertão era um mundo familiar. As mamelucos se movimentavam facilmente entre o sertão e a vila. Mas, para um recém-chegado de Portugal, o sertão

parecia incompreensível. Para os portugueses, o sertão pedia para ser colonizado, explorado e transformado.

Em 1625, Santana de Parnaíba foi elevada oficialmente à categoria de vila. Um pequeno centro municipal começou a tomar forma ao lon-go das margens do rio Tietê. Na década de 1640, na praça central, situada num acentuado declive, trabalhadores indígenas começaram a construir a igreja matriz. Utilizando grande blocos de terra comprimida, edificaram um santuário simples de um pavimento. Numa das laterais erguia-se uma torre que, mais tarde, abrigou os três sinos que convo-cava o povo para a missa. No interior da igreja fria e escura ficavam o altar-mor, cinco altares menores nas alas do santuário e a uma pia batismal de madeira. Do outro lado, em frente à igreja, ficavam as câmaras onde se reunia o conselho da vila. Essas duas instituições, uma que representava a herança religiosa dos fundadores da vila e a outra, as tradições civis do governo português local, simbolizavam a identidade e aspirações dos primeiros colonizadores.

No início do século XVII, o sertão não só dominava a vida na vila, como também toda a economia que se baseava em sua exploração. Os colonos dependiam da terra livre e da mão-de-obra encontradas no sertão para criar e tornar possível o crescimento e a prosperidade da vila.

Para os índios do sertão, a vida nas vilas do planalto significava es-cravidão. A maioria deles foi trabalhar nas grandes plantações de trigo nas vilas de São Paulo e Santana do Parnaíba. Para os colonos esses índios não eram considerados escravos; eram chamados de servos ou peças forras, ainda que os indígenas vivessem claramente sob uma instituição semelhante à escravidão. Os colonos de Santana do Parna-íba, como nos demais povoados do planalto, submetiam os índios a um tipo de vínculo de trabalho conhecido pelo nome de “obrigação”. Em troca de alimentação, roupas e catequização, os índios “eram obrigados” a prestar serviços a seus senhores. Aos olhos dos colonos, isso representava um serviço, e não, escravidão. Ainda assim, nos testamentos dos colonos os índios eram contados como propriedades e divididos entre os herdeiros na herança. Mas, ao contrário da escra-vidão vigente em outros locais do Brasil, os colonos da capitania de São Vicente raramente vendiam seus escravos e tampouco forneciam escravos índios a outras regiões do Brasil.

Os índios do sertão, caçados, capturados e submetidos a uma vida de trabalho, forneceram a mão-de-obra que constitui a vila de Santana de Parnaíba e sua economia agrícola no século XVII. Embora conhe-cessem estreitamente o sertão, os índios não compartilhavam da ri-queza que traziam para a vila. Em vez disso, os colonos de Santana de Parnaíba os transformaram em propriedade.

As sesmarias transformaram as florestas do sertão em terras “pos-suídas” por indivíduos, de acordo com a legislação portuguesa. Algu-mas dessas concessões foram dadas aos irmãos e irmãs dos fundado-res de Santana de Parnaíba, mas outras foram entregues aos primei-ros colonizadores sem parentesco com os fundadores. Os colonos que não receberam sesmarias participaram também da transformação das

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terras do sertão. A maioria dos moradores de Santana de Parnaíba simplesmente ocuparam as terras tal como fizeram os índios: apropri-ando-se não da própria terra, mas dos frutos de seu trabalho. Essas famílias limparam a plantaram as terras da vila que não foram reivindi-cadas e não estavam ocupadas.

Quando as terras do sertão começaram a ser ocupadas por coloni-zadores, surgiram outras formas de apropriação de terras que lembra-vam melhor as práticas portuguesas. Por exemplo, a igreja matriz e as pequenas capelas da vila possuíam terras que lhes haviam sido lega-das perpetuamente por seus fundadores e que eram arrendadas a moradores locais por somas simbólicas. Outros meios de aquisição de terras foram as heranças ou os presentes e dotes de casamento. Esse tipo de transação tornou-se cada vez mais comum no caso da Segun-da e da terceira geração de colonizadores de Santana do Parnaíba.

Com o trabalho fornecido pelos índios capturados no sertão e com as terras ao longo do rio Tietê, os colonizadores de Santana de Parna-íba criaram a sua vila. No século XVII, as famílias viviam com simplici-dade e poucas propriedades materiais. Um dos primeiros inventários feitos na vila descreve a fragilidade dos primeiros sítios, inteiramente cercados por sertão. O inventário registrava uma casa de sapé, uma plantação de algodão e uma de mandioca, 34 servos índios, bateias para ouro, pólvora e cargas explosivas e mercadorias de comércio para troca com índios. As maiores propriedades do século XVII tinham dezenas de índios, casas mais amplas e produziam grandes safras de trigo, que eram comercializadas no Porto de Santos em troca de itens produzidos na capitania de São Vicente. Somente essas famílias podi-am fazer comércio em troca de tecidos de lã, tafetá, algodões finos, linha, botões, guarnições para roupa, chapéus, sabão, vinho, papel, sal, pólvora, chumbo e correntes de ferro, tudo importado de Portugal.

No século XVII, a maior parte da população não procurava identifi-car-se com o reino. Não podia adquirir as caras sedas e as camas provenientes de Portugal, que marcariam o status daqueles que ale-gavam ascendência portuguesa. Mas, da mesma forma que os ricos, os pobres dependiam dos recursos que eram obtidos facilmente no sertão. Aventurar-se ao mundo do sertão tornou-se a estratégia princi-pal usada pelas famílias para sobreviver em Santana de Parnaíba no século XVII.

Com a ocupação das terras do sertão e o declínio da população in-dígena, claramente visível no final do século XVII, poderia parecer que a estratégia de pilhagem do sertão em benefício da vila havia chegado ao seu limite. Mas não seria assim. As primeiras descobertas de ouro no sertão brasileiro, na última década do século XVII, causaram um impacto profundo sobre todas as capitanias de São Vicente, especial-mente sobre as vilas do planalto, como Santana do Parnaíba. Esse recurso novo e rico do sertão revitalizou a vida econômica da vila tão logo alguns homens avançaram sertão adentro em busca de outro e metais preciosos.

Graças a seus vínculos históricos com o interior, Santana de Parna-íba, como tantas outras vilas do planalto de Piratininga, pôde facilmen-

te tirar proveito da corrida do ouro do século XVIII. Rapidamente, os homens de Santana de Parnaíba, que haviam formado armações ou participado de bandeiras, fizeram a transição de caçadores de índios para garimpeiros e comerciantes de ouro.

A descoberta de ouro no interior arrastou para o sertão novas gera-ções de homens de Santana de Parnaíba. Próxima às três rotas prin-cipais para as regiões mineiras, Santana do Parnaíba, durante a corri-da do ouro, funcionou como porta de entrada para o interior do Brasil. Alguns homens da vila tornaram-se comerciantes, remetendo fumo, aguardente, escravos, cavalos, gados e outras mercadorias para os acampamentos mineiros. Famílias ricas instalaram fazendas no Rio Grande para criar gado, cavalos, mulas para as vilas mineiras, perto do mesmo local onde outrora seus pais e avós haviam caçados índios guaranis. Outros demarcaram concessões de mineração que explora-vam juntamente com o trabalho em seus sítios em Santana de Parnaí-ba. Os mais ricos emprestavam dinheiro a juros aos homens das vilas mineiras, O ciclo da mineração também abriu um mercado para a produção das grandes propriedades de Santana do Parnaíba. Algu-mas famílias plantaram cana-de-açúcar, constituíram engenhos de açúcar e destilaram aguardente que vendiam nas áreas de mineração.

Santana de Parnaíba continuou sendo a base de origem de muitas famílias. Em vez de juntar seus bens e mudar-se para as regiões mi-neiras, alguns homens deixavam periodicamente a vila para negociar no interior. Como seus pais e avós antes deles, esses homens passa-vam muitos anos de suas vidas fora de casa.

Em 1765, a coroa restaurou a capitania de São Paulo e começou a incentivar o desenvolvimento econômico da área como um meio de proteger a fronteira sul do Brasil contra as pretensões territoriais da Espanha. A ação da coroa, e particularmente a de uma série de go-vernadores reais, intensificou o grau de integração da região ao impé-rio português. Quando chegou a São Paulo como novo governador da coroa, em 1765, Dom Luís Antônio de Souza percebeu imediatamente a tensão em São Paulo entre o sertão e o reino. A vastidão do Brasil e o isolamento em que vivia a população intrigaram. Desse ponto de vista, as pequenas vilas de São Paulo não passavam de barreiras frágeis contra o poder de um vasto sertão que ameaçava o desenvol-vimento de São Paulo.

No entanto, quando o reino se tornou mais influente em São Paulo, a prosperidade das famílias que aí viviam continuou a depender do método tradicional de prosperidade: exploração do sertão. Em vez de caçar indígenas ou catar ouro no sertão, as famílias de Santana de Parnaíba preparavam seus filhos para serem colonizadores das novas terras para as quais o açúcar deveria empurrar gerações futuras. Os filhos deixaram Santana de Parnaíba rumo às vilas imediatamente a oeste, uma área que se tornou o núcleo da economia de açúcar em São Paulo.

Entretanto, por volta da Segunda metade do século XIX, Santana de Parnaíba, bem no interior da fronteira cafeeira, perdeu finalmente seus vínculos com o sertão. Pela primeira vez em sua história, as

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famílias da vila já não podiam explorar os recursos do sertão. Aqueles que permaneceram em Santana de Parnaíba viam que seus recursos, cada vez mais limitados sem um sertão contíguo diminuía a cada ge-ração que passava. As terras da vila haviam sido repartidas em muitos descendentes. No final do século XIX, Santana de Parnaíba caía sob a sombra da florescente cidade de São Paulo.

A atração do reino e do sertão conformou o espaço no qual viveram os primeiros colonizadores da vila de Santana de Parnaíba. No século XVII, o mundo do sertão eclipsou a vida na vila. Também no século XVIII o sertão continuou a eclipsar a vida na vila, na medida em que longas permanências nas regiões mineiras ocupavam uma parte con-siderável da vida dos homens. Entretanto, no século XIX a presença do sertão e sua atração para o povo de Santana de Parnaíba haviam desaparecido. Durante todo o período colonial, os valores do reino conduziram a vila prá longe do sertão. Com o passar do tempo, a vila de Santana de Parnaíba ficava mais parecida com o reino do que com o sertão.

Em momentos específicos do tempo, o modo como as famílias inte-ragiam com a vila, o reino e o sertão afetou o modo decisivo o desen-volvimento da vila. As famílias mais bem-sucedidas sabiam como utilizar cada um desses mundos em benefício próprio. Quer fosse explorado os recursos do sertão, quer controlados as instituições do governo local, que ainda se tornando representantes do reino, as famí-lias da elite compreendiam a importância de cada uma dessas esferas para sua sobrevivência em Santana de Parnaíba. As famílias pobres também desenvolveram com sucesso estratégias que combinavam os três mundos, enquanto outras conseguiam fazê-lo, ocorreu uma divi-são desigual de poder e recursos na vila, o que formou as bases para a emergência das classes sociais.

A Sociedade Paulista nos Fins do Período Colonial na visão da Elite

A comemoração dos quinhentos anos da descoberta da América é o momento oportuno para constatar e avaliar os efeitos da colonização europeia na América. A colonização com estabelecimento de europeus e a exploração dos recursos do novo continente envolveu dois proces-sos - o de destruição e o de construção. Para instalar a nova socieda-de que deveria criar e gerir o processo de exploração colonial em be-nefício da Europa, julgou-se necessário destruir as estruturas de poder e cultura das sociedades autóctones para que seus indivíduos pudes-sem ser utilizados economicamente.

Dessa forma, as culturas indígenas dos mais diversos níveis de de-senvolvimento tecnológico, social e artístico foram destruídas, ainda que parte de suas técnicas e conhecimentos fosse aproveitada para a adaptação do colono à terra.

As perdas culturais não foram só do lado do indígena vencido, mas também atingiram o conquistador português. A cultura europeia delibe-radamente transplantada e imposta, na prática, sofre perdas conside-ráveis devido ao pequeno número de colonos, na maioria solteiros, sobre os quais recaía a responsabilidade de transmitir o amplo espec-

tro de conhecimentos técnicos, costumes e práticas cotidianas à mas-sa dos povos conquistados.

A propósito, é preciso lembrar que o mesmo processo de perda cul-tural sofreram os milhões de africanos transportados à força, com suas estruturas familiares e sociais deliberadamente desintegradas, ficando impossibilitados de contribuir adequadamente para a nova sociedade que se fundava.

No entanto, apesar das perdas e mutilações étnicas e culturais do pro-cesso de destruição, iniciou-se simultaneamente o da construção de uma nova sociedade. Esse processo de construção continua até hoje, com todo o sofrimento e as injustiças inerentes ao nascimento de algo novo.

A migração portuguesa foi essencialmente masculina, ficando com-prometida a transmissão do legado cultural da família lusitana como um todo. Prevaleceu uma espécie de rotina relaxada na manutenção da cultura portuguesa em contato com as influências americanas e africanas.

O transplante de expressivo número de famílias poderia Ter resul-tado numa maior fidelidade aos modelos europeus ou, então, no sur-gimento de um projeto social novo, como foi o caso das colônias da Nova Inglaterra nos Estados Unidos.

Aqui, a miscigenação inevitável e intensa alterou a composição e a estruturação ideal da sociedade tal como era prevista pelas leis e cos-tumes portugueses.

A Arqueologia e a Cultura Africana nas Américas

Ao longo dos anos, a escravidão e a cultura negra no Brasil têm constituído, ao longo dos anos, um campo de estudo constante e cres-cente. Desde o início do século, o negro tem sido objeto de referências por parte dos pensadores que se ocuparam da constituição de uma identidade nacional brasileira. Nas últimas décadas, com a intensifica-ção da produção acadêmica sobre a cultura africana, surgiram verten-tes e especializações, intensificaram-se os debates e as contraposi-ções interpretativas, atestando o aprofundamento dos estudos sobre o tema, No entanto, permanece válida a afirmação de Stuart B. Schwartz (1977, p. 69) de que “em grande medida, a despeito de uma bibliogra-fia extensa e sempre crescente, a História da escravidão no Brasil está por escrever”. Cinco anos depois, também para Emília Viotti da Costa (1982, p. 45) “a conclusão a que se chega é de que, apesar dos louvá-veis esforços que os historiadores têm feito nos últimos anos, a ques-tão escrava no Brasil é, ainda, uma questão aberta”. A produção cien-tífica tem sido grande, seja nas Ciências Sociais (cf. Reis 1988, 57), seja na História, a ponto de se calcular (Gutiérrez, 1988, p. 185) que, entre 1976 e 1985, foram divulgados 276 trabalhos, ou um artigo novo a cada quinzena. Assim, só sobre a escravidão, há 407 títulos arrola-dos por Gutiérrez e Monteiro (1990) e, sobre a cultura afro no Brasil, 1965 títulos recolhidos por Alves (1976).

Escravidão, cultura afro-brasileira e “problema negra” (Cardoso, 1982, p. 108) constituem questões não apenas acadêmicas mas, prin-

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cipalmente, sociais. A diferença do que se passa nos Estados Unidos, não possuímos, aqui, um “público negro atendo, qualificado para ab-sorver e criticar a produção científica” (Oliveira e Oliveira, 1984, p. 69). Os anseios das comunidades d entidades afro, não apenas em nosso país mas em outras partes do continente americano, de “resgatar, realça e desenvolver a identidade étnica, cultural e histórica afro” (Mo-vimento Nacional Cimarrón de Colômbia, em Friedemann, 1988, p. 4) passa, contudo, por uma superação das limitações impostas pelo refe-rencial branco da documentação escrita dominante. Nesse sentido, a arqueologia, como estudo do cotidiano através da cultura material, permite chegar ao escravo, captando sua voz, nunca escrita, mas materializada nos objetos e espaços por eles produzidos e usados.

A Escravidão Negra e Suas Influências na Sociedade Brasileira

O fluxo dos europeus ao Ocidente, em seguida às viagens de Cris-tóvão Colombo, iniciou um processo econômico e demográfico de dimensão universal. Todos os continentes se viram englobados neste processo, cujo epicentro se situava na Europa. As disputas sobre a primazia do que tem sido denominado “descoberta da América” (hipó-teses acerca dos fenícios, dos vikings, dos chineses etc) constituem meras curiosidades historiográficas, na medida em que a confirmação de qualquer dessas hipóteses não inclui consequências de relevo histórico-mundial. O mesmo não se dá com as viagens de Colombo, efetuadas no momento em que na Europa despertavam forças socioe-conômicas expansionistas potencialmente capazes de iniciar o pro-cesso de formação do mercado mundial.

Já antes das viagens de Colombo, vinham os portugueses devas-sando a costa africana. Começaram pela ocupação das ilhas atlânticas próximas de Portugal (Açores, Madeira, São Tomé, arquipélago de Cabo Verde), onde viriam a instalar plantações de cana-de-açúcar. No continente africano propriamente, na Guiné e no Congo, iniciaram o comércio do ouro e se inseriram no tráfico interno de escravos.

Mas a coroa liboeta tinha em mira um objetivo de mais longo alcan-ce: a descoberta do trajeto para as Índias, uma vez conhecido o ex-tremo meridional da África. Por conseguinte, o trajeto que seguisse do Ocidente para o Oriente, por via marítima, em substituição do antigo trajeto por via terrestre, bloqueado pelos turcos, após a conquista de Constantinopla, em 1453. Conforme veio comprovar a viagem de Vas-co da Gama, em 1948, o plano estratégico da coroa portuguesa era correto do ponto de vista geográfico. Os portugueses foram os primei-ros a chegar às Índias, por via marítima, o que lhes permitiu estabele-cer o monopólio do comércio das especiarias asiáticas, no século XVI.

Na parte do território sul-africano submetida à soberania de Portu-gal, o ouro em abundância só veio a ser localizado cerca de dois sécu-los após a entrada da esquadra de Cabral na enseada de Porto Segu-ro. Nesse entre tempo, desenvolveu-se no território colonial português um tipo de exploração agroindustrial baseado no trabalho escravo. A crescente demanda de açúcar no mercado europeu induziu as planta-ções de cana-de-açúcar e a construção de engenhos em algumas

regiões litorâneas, onde a terra e o clima eram propícios ao empreen-dimento. Mas terra e financiamento para as inversões iniciais não resolviam o problema, se os colonizadores não dispusessem de mão-de-obra a custos favoráveis.

2. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. En-sino de História: fundamentos e métodos. São

Paulo: Cortez, 2005.

Disciplina escolar

O que é disciplina escolar? Não é simples, existe séria polemica a respeito desse conceito, a qual pode parecer meramente acadêmica e teórica, mas esta relacionada a questões mais complexas sobre a escola e o saber que ela produz e transmite assim como sobre o papel e o poder do professor e dos vários sujeitos externos à vida escolar na constituição do conhecimento escolar.

Transposição didática

Para determinados educadores, franceses e ingleses, as disciplinas escolares decorrem das ciências eruditas de referencia, dependentes da produção das universidades ou demais instituições acadêmicas, e servem como instrumento de “vulgarização” do conhecimento produzi-do por um grupo de cientistas.

No que se refere aos conteúdos e métodos de ensino e aprendiza-gem, os partidários da ideia de “transposição didática” identificam uma separação entre eles, entendendo que os conteúdos escolares provêm direta e exclusivamente da produção cientifica e os métodos decorrem apenas de técnicas pedagógicas, transformando-se em didática.

Disciplina escolar como entidade cientifica

Para outros pesquisadores, especialmente o inglês Ivor Goodson e o francês André Chervel, a disciplina escolar não se constitui pela simples “transposição didática” do saber erudito, mas antes, por inter-médio de uma teia de outros conhecimentos, havendo diferenças mais complexas entre as duas formas de conhecimento, o cientifico e o escolar.

André Chervel, o critico mais contundente da concepção de “trans-posição didática”, sustenta que a disciplina escolar deve ser estudada historicamente, contextualizando o papel exercido pela escola em cada momento histórico. Ao defender a disciplina escolar como enti-dade epistemológica relativamente autônoma, esse pesquisador con-sidera as relações de poder intrínsecas á escola. É preciso deslocar o acento das decisões, das influencias e legitimações exteriores à esco-la, inserindo o conhecimento por ela produzido no interior de uma cultura escolar. As disciplinas escolares formam-se no interior dessa cultura, tendo objetivos próprios e muitas vezes irredutíveis aos da

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“ciência de referencia”, termo que Chervel emprega em lugar de co-nhecimento cientifico.

A concepção de Chervel sobre a disciplina escolar provém de sue estudos da historia da Gramática escolar da França. Pela pesquisa histórica do ensino da Gramática em seu país, concluiu que a criação das famosas “regra gramaticais” e toda serie de normas da língua francesa decorreram de necessidades internas da escola, que preci-sava ensinar todos os franceses a escrever corretamente de acordo com determinados critérios a ser obedecidos por todo o meio escolar. A Gramática, como estudo acadêmico, só passou a existir posterior-mente, absorvendo e integrando os princípios estabelecidos pela esco-la.

Constituintes das disciplinas escolares

Foi importante, estabelecer as finalidades de cada uma das disci-plinas, explicitar os conteúdos selecionados para serem “ensináveis” e definir os métodos que garantissem tanto a apreensão de tais conteú-dos como a avaliação da aprendizagem.

As finalidades de uma disciplina escolar, cujo estabelecimento é essencial para garantir sua permanência no currículo, caracterizam-se pela articulação entre os objetivos instrucionais mais específicos e os objetivos educacionais mais gerais.

Compreendem-se assim alguns objetivos gerais ao qual a escola teve de atender em determinados momentos históricos, como a forma-ção de uma classe media pelo ensino secundário, a expansão da alfa-betização pelos diferentes setores sociais ou a formação de um espíri-to nacionalista e patriótico. Tais objetivos estão evidentemente, inseri-dos em cada uma das disciplinas e justificam a permanência delas nos currículos. As finalidades das disciplinas escolares fazem parte de uma teia complexa na qual a escola desempenha o papel de fornece-dora de conteúdos de instrução, que obedecem a objetivos educacio-nais definidos mais amplos. Dessa forma as finalidades de uma disci-plina tendem sempre a mudanças, de modo que atendam diferentes públicos escolares e respondam as suas necessidades sociais e cultu-rais inseridas no conjunto da sociedade.

Outro constituinte fundamental da disciplina escolar – e o mais visí-vel – é o conteúdo explicito. Esse componente da disciplina corres-ponde a um corpus de conhecimento organizado segundo uma lógica interna que articula conceitos, informações e técnicas consideradas fundamentais. Os conteúdos explícitos articulam-se intrinsecamente a outro componente da disciplina escolar: métodos de ensino e de aprendizagem. Tais conteúdos são necessariamente apresentados ao publico por intermédio de diferentes métodos, indo da aula expositiva até o uso dos livros didáticos ou da informática.

Disciplina escolar e produção do conhecimento

Ivor Goodson, para quem o próprio termo “disciplina” possibilita identificar distinções. O autor inglês entende a disciplina como uma

forma de conhecimento oriunda e característica da tradição acadêmica e para o caso das escolas primarias e secundarias utiliza o termo ma-téria escolar (school subjects). Entre nos é comum no cotidiano esco-lar, utilizar o termo “matéria”, embora não se use, nos textos oficiais acadêmicos, “disciplina escolar” no caso dos cursos superiores, o termo usual é “disciplina” a qual por sua vez é composta de matérias especificas, correspondentes a divisões internas das disciplinas aca-dêmicas.

Em seus estudos empíricos sobre a gênese e a trajetória de deter-minadas matérias escolares, Goodson é mais contundente ao tratar das relações entre as disciplinas acadêmicas e as matérias escolares.

Ele demonstra que a interferência do conhecimento acadêmico não foi benéfica para a constituição de determinados saberes escolares, no caso de “Ciências”, que inicialmente, no século XIX, era matéria ensi-nada como ciência das coisas comuns (the science of de common things) e tinha como objetivo atender aos interesses dos alunos.

Disciplina escolar e conhecimento histórico

O historiador francês Henri Moniot ao debruçar-se sobre a Historia enquanto disciplina escolar pondera sobre suas especificidades, e conclui que seu ensino, no final do séc. XIX assegurou a existência da Historia em grandes períodos – Antiguidade, Idade Média, Moderna e Contemporânea –, criada para organizar os estudos históricos escola-res, acabou por definir as divisões da “cadeiras” ou disciplinas históri-cas universitárias assim como especialidades dos historiadores em seus campos de pesquisa.

A articulação entre as disciplinas escolares e as disciplinas acadê-micas é, portanto complexa e não pode ser entendida como um pro-cesso mecânico e linear, pelo qual o que se produz enquanto conhe-cimento histórico acadêmico seja necessariamente transmitido e in-corporado pela escola. Os hiatos são evidentes, mas não se trata de buscar superá-los, integrando automaticamente as novidades das temáticas históricas às escolas. Os objetivos diversos impõem sele-ções diversas de conteúdos e métodos. A formação de professores por outro lado, vem dos cursos superiores, e nesse sentido, é preciso entender a necessidade de dialogo constante entre as disciplinas es-colares e acadêmicas.

Professores e disciplinas escolares

Por intermédio da concepção de disciplina escolar podemos identi-ficar o papel do professor em sua elaboração e pratica efetiva. Cabe então indagar sobre a ação e poder dele nesse processo, uma vez que há vários sujeitos na constituição da disciplina escolar: desde o Estado e suas determinações curriculares ate os intelectuais universitários e técnicos educacionais, passando pela comunidade escolar composta de diretores, inspetores e supervisores escolares e pelos pais de alu-nos que, muitas vezes, se rebelam contra determinados conteúdos e métodos dos professores, forçando-os a recuar em suas propostas inovadoras.

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O papel do professor na constituição das disciplinas merece desta-que. Sua ação nessa direção tem sido muito analisada, sendo ele o sujeito principal dos estudos sobre currículo real, ou seja, o que efeti-vamente acontece nas escolas e se pratica nas sala de aula. O pro-fessor é quem transforma o saber a ser ensinado e em saber aprendi-do, ação fundamental no processo de produção do conhecimento. Conteúdos, métodos e avaliação constroem-se nesse cotidiano e nas relações entre professores e alunos. Efetivamente, no oficio do profes-sor um saber especifico é constituído, e a ação docente não se identi-fica apenas com a de um técnico ou de um “reprodutor” de um saber produzido externamente.

2. Conteúdos e métodos de ensino de Historia

O contexto da produção da Historia escolar é significativo para identificar as relações entre diversos elementos constituintes da disci-plina, ou seja, entre objetivos, conteúdos explícitos e métodos. A ana-lise da disciplina em sua longa duração visa fornecer alguns indícios para a compreensão da permanência de determinados conteúdos tradicionais e do método da memorização, responsável por um slogan famoso da Historia escolar: uma “matéria decorativa” por excelência.

Memorização no processo de aprendizagem

Um modelo de livro didático muito utilizado em variadas escolas era o catecismo, e muitos textos de Historia destinados a criança seguiam o mesmo molde. A Historia, segundo o método do catecismo, era re-presentada por perguntas e respostas, e assim os aluno deviam repetir oralmente, ou por escrito, exatamente as respostas do livro. Como castigo, pela imprecisão dos termos ou esquecimento de algumas palavras, recebia a famosa palmatória ou férula. O sistema de avalia-ção era associado a castigos físicos.

Uma obra interessante, a Methodologia da Historia na aula prima-ria, escrita, em1917, pelo professor Jonathas Serrano da escola nor-mal do Rio de Janeiro, indicava a possibilidade de mudanças no méto-do do ensino de Historia para os alunos a partir de 7 anos. Sem deixar de exaltar o ensino da Historia pátria e o culto aos heróis, o autor con-siderava que para tornar mais eficiente a Historia biográfica, era preci-so preparar melhor o professor. Este deveria escolher muito bem as narrativas que pudessem despertar interesse dos alunos e também atentar para a importância do uso materiais, como mapas e gravuras.

Estudos Sociais e os Métodos Ativos

Os Estudos Sociais foram adotados em algumas escolas, denomi-nadas experimentais ou vocacionais, no decorrer da década de 60, e, depois da reforma educacional na fase da ditadura militar, pela lei 5.692 de agosto de 1971, na área fio introduzida em todo o sistema de ensino – o qual então passou a se chamar de primeiro grau -, esten-dendo para as demais series do antigo ginásio.

Estudos de Historia no secundário

O nível secundário no Brasil caracterizou-se como um curso ofere-cido pelo setor público – no colégio Pedro II do Rio de Janeiro, capital do império e da republica, em Liceu Província, em Ginásios Estaduais Republicanos – e pelo setor privado. A rede particular de escolas, para esse nível escolar, desempenhou e continua a desempenhar importan-te papel, levando-se em conta que o secundário foi criado para aten-der à formação dos setores de elite.

A Historia, tanto nas escolas publicas como confessionais do séc. XIX integrava o currículo denominado de “Humanismo Clássico”, o qual se assentava no estudo das línguas, como destaque para o La-tim, e tinha os textos da literatura clássica da antiguidade como mode-lo padrão cultural. O currículo humanístico pressupunha uma formação desprovida de qualquer utilidade imediata, mas era por intermédio dele que se adquiriam marcas de presença a uma elite. Assim, o estudo do latim não visava simplesmente formar um conhecedor de uma língua antiga, mas servia para que o jovem secundarista fizesse citações e usasse expressões características de um grupo social diferenciado do “Povo Iletrado”.

A Historia e o currículo cientifico

A Historia integrou-se nesse currículo sem maiores problemas. Seu objetivos continuaram ainda associados à formação de uma elite, mas com tendência mais pragmáticas. E a disciplina passou a ter uma função pedagógica mais definida em relação à sua importância na formação política dessa elite.

A Historia das civilizações e a Historia do Brasil destinavam-se a operar como formadoras da cidadania e da moral cívica. Um dos obje-tivos básicos da Historia escolar era a formação do “Cidadão político”, que, em nosso caso era o possuidor do direito ao voto a Historia do Brasil servia para possibilitar as futuras gerações dos setores de elite informações a cerca de como conduzir a nação ao seu progresso, ao seu destino de “Grande Nação”.

3. Nas atuais propostas curriculares Renovações curriculares

Os currículos escolares tem sido objetivo de muitas analises que si-tuam seu significado político e social, e essa dimensão precisa ser entendida para determinarmos o direcionamento da educação escolar e o papel que cada disciplina tende a desempenhar na configuração de um conhecimento próprio da sociedade contemporânea.

No Brasil, as reformulações curriculares iniciada no processo de de-mocratização na dec. 80 pautaram-se pelo atendimento às camadas populares, como enfoques voltados para uma formação política que pressupunha o fortalecimento da participação de todos os setores soci-ais no processo democrático. Juntamente com tais propósitos, introduzi-ram-se nas diversas propostas que estavam sendo elaboradas, também os projetos vinculados aos das políticas liberais, voltada pra os interesse

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internacionais. Como parte da política federal, alinhado ao modelo libe-ral, o MEC comprometeu-se realizar total reformulação curricular, que abarcasse todos os níveis de escolarização do infantil ao superior, para atender aos novos pressupostos educacionais.

Atualmente, a ideia de currículo é concebida em todas as suas di-mensões distinguindo-se o currículo formal (o pré-ativo ou normativo), criado pelo poder estatal o currículo real (ou interativo), corresponden-te ao que efetivamente é realizado na sala de aula por professores e alunos, e o currículo oculto constituído por ações que impõem normas e comportamentos vividos nas escolas, mas sem registros oficiais, tais como discriminações étnicas e sexuais, valorização do individualismo, ausência ou valorização do trabalho coletivo, etc. Estudos recentes incluem ainda o currículo avaliado, que se materializa pelas ações dos professores e das instituições ao “medirem” o domínio dos conteúdos explícitos pelos alunos e incorpora valores não apenas instrucionais, mas também educacionais, como as habilidades técnicas e praticas da cultura letrada.

Quanto às concepções de currículo os autores mais importantes são: Ivor Goodson, Michael Apple, Jimeno Sacristán, Antonio Flavio Moreira, Tomás Tadeu da Silva e Thomas Popkewitz.

Métodos e novas tecnologias

As mudanças culturais provocadas pelos meio audiovisuais e pelos computadores são inevitáveis, pois geram sujeitos com novas habili-dades e diferentes capacidade de entender o mundo. Para analisar essas mudanças, há a exigência de novas interpretações aos atuais meios de comunicação que ultrapassem aquelas que os consideram degenerescências ou involução. Interpretações permeadas de precon-ceito não possibilitam um entendimento das configurações culturais emergentes e, portanto, dificultam todo dialogo como o nosso aluno. Por outro lado, e este é o mais importante desafio para os professores, não se pode também ser ingênuo em relação a essa nova cultura.

Portanto os métodos, nos processos de renovação curricular, de-vem-se a essa serie de problemas do mundo tecnológico, com o en-tendimento de que tais tecnologias não são “inimigas”, mas também não são produtos que possam ser utilizados sem uma critica profunda do que transmitem, das formas individualista de comunicação e de lazer que estabelecem, do fortalecimento do ideário de uma submis-são irrestrita ao domínio da maquina como instrumento educativo que promove. O uso de computadores, programas televisivo, filmes, jogos de vídeo game corresponde a uma realidade da vida moderna com a qual crianças e jovens tem total identificação, e tais suportes merecem atenção redobradas e métodos rigorosos que formulem praticas de uso não alienado.

Propostas curriculares para os diferentes níveis Historia para alunos de primeira à quarta serie.

As formulações para o ensino de Historia a partir das serie ou ciclos iniciais do ensino fundamental sofrem variações, mas visam ultrapas-

sar limitação de uma disciplina aprendida com base nos efeitos dos heróis e dos grandes personagens, apresentados em atividades cívica e com figuras atemporais.

Historia para alunos de quinta à oitava serie

As propostas para as series ou ciclos finais do ensino fundamental matem, como nas anteriores, a caracterização disciplinar, ministrada por um professor especialista. Dessa forma, os fundamentos teóricos e metodológicos são apresentados de maneira que explicitem os pres-supostos da Historia a ser ensinada.

Historia para o ensino médio

A Historia proposta para o ensino médio pelos PCN mantém a or-ganização dos conteúdos por temas, mas sem elencá-los ou apresen-tar sugestões, como foi feito para os demais níveis. Tem como preo-cupação maior aprofundar os conceitos introduzidos a partir da series iniciais e ampliar a capacidade do educando para o domínio de méto-dos da pesquisa histórica escolar, reforçando o trabalho pedagógicos com propostas de leitura de bibliografia mais especifica sobre o tema de estudo e com possibilidade de dominar o processo de produção de conhecimento histórico pelo uso mais intenso de fontes de diferentes natureza. Não inclui, entre seus objetivos, a formação de um historia-dor, mas visa dar condições de maior autonomia intelectual ante os diversos registros humanos, assim como aprofundar o conhecimento histórico da sociedade contemporânea.

Sobre os objetivos do ensino de Historia

Um dos objetivos centrais do ensino de Historia, na atualidade rela-ciona-se à sua contribuição na constituição de identidades. A identida-de nacional, nessa perspectiva é uma das identidades a ser constituí-das pela Historia escolar, mas, por outro lado, enfrenta ainda o desafio de ser entendida em suas relações com o local e o mundial.

Temas para o ensino de Historia

A organização de estudo de Historia por temas produz assim vários problemas que precisam ser esclarecidos. Um deles é o de distinguir entre Historia temática, tal qual os historiadores a concebem na reali-zação de suas pesquisas, e Historia ensinada por eixos temáticos. Essa distinção fundamental tem sido pouco explicitada nas propostas curriculares, o que induz os vários equívocos na pratica escolar.

A seleção temática proposta pelos PCN visa ultrapassar os proble-mas e sugere assim a preocupação em discerni a Historia temática, produzida pelos historiadores, da Historia por eixos temáticos ou te-mas geradores, produzida pelos currículos escolares.

Os temas de ensino de Historia propostos pelos PCN são, por outro lado articulados aos temas transversais: meio ambiente, ética, plurali-dade cultural, saúde, educação sexual, trabalho e consumo. Essa proposta de temas interdisciplinares gera novos desafios para o ensino

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de Historia. Um deles é articular os conteúdos tradicionais, como os de uma Historia política ou econômica, com conteúdos característicos de outras disciplinas, como é o caso do meio ambiente ou questões de saúde.

Métodos e conteúdos escolares, uma relação necessária. Conteúdos históricos

Conteúdos escolares e tendências historiográficas

Historia como narrativa: a Historia pode ser concebida como uma narrativa de fatos passados. Conhecer o passado dos homens é, por principio, uma definição de Historia, e aos historiadores cabe recolher, por intermédio de uma variedade de documentos, os fatos mais impor-tantes, ordená-los cronologicamente e narrá-los. A reconstituição do passado da nação por intermédio de grandes personagens serviu como fundamento para a Historia escolar, privilegiando-se estudos das ações políticas, militares e das guerras, e a forma natural de apresen-tar a historia da nação era por intermédio de uma narrativa.

De uma Historia econômica a Historia social: do decorrer XX, a produção historiográfica passou a disputar espaço com as novas ciên-cias sociais que se constituíam na busca de compreensão da socieda-de, especialmente a sociologia, a antropologia e a economia. Como conseqüência dessa disputa houve uma renovação na produção Histo-riográfica com paradigmas que visam ultrapassar o Historicismo. O historiador Siro Flamarion, ao sintetizar as tendências desse percurso Historiográfico, identifica duas filiações básicas entre os anos de 1950 e 1968: à escola dos Annales e os Marxismo. O paradigma Marxista desenvolvido paralelamente ao do grupo dos Annales tem como prin-cipio o caráter cientifico do conhecimento histórico, e o enfoque de sua analise é a estrutura e a dinâmica das sociedades humanas. A analise Marxista parte das estruturas presentes com a finalidade de orientar a práxis social, e tais estruturas conduzem à percepção de fatores for-mados no passado cujo conhecimento é útil para atuação na realidade hodierna. Existe assim uma vinculação epistemológica dialética entre presente e passado.

Entra em cena a Historia cultural: a Historia cultural que atualmente procura vincular a micro Historia com a macro Historia e tem sido co-nhecida como nova Historia cultural, com propagação em escala mun-dial. Essa tendência renovou a Historia das mentalidades, e, sobretu-do, a velha Historia das ideias, inserindo-as em uma perspectiva soci-ocultural preocupada não apenas com pensamento das elites, mas também com as ideias e confrontos de ideias de todos os grupos soci-ais.

Historia do tempo ou presente como Historia: para os pesquisado-res da área de ensino de Historia, torna-se fundamental o domínio conceitual da Historia do tempo presente, a fim de que o ensino da disciplina possa cumprir uma de suas finalidades: libertar o aluno do tempo presente – algo paradoxal à primeira vista. Essa aparente con-tradição ocorre porque o domínio de uma Historia presente fornece conteúdos e métodos de analise do que esta acontecendo e as ferra-

mentas intelectuais que possibilitam os alunos a compreensão dos fatos cotidianos desprovidos de mitos ou fatalismos desmobilizadores, alem de situar os acontecimentos em um tempo histórico mais amplo, em uma duração que contribui para a compreensão de uma situação imediata repleta de emoções.

Presente como Historia ou também Historia imediata é também comentada nas aulas de Historia quando acontecimentos mais trági-cos são divulgados pela mídia, como uma espécie de exigência por parte do aluno e pelo próprio compromisso do professor com a forma-ção política deles. Entretanto, a Historia do tempo presente possui exigências metodológicas e conceituais, para que não se transforme em repetições de ensaio jornalístico pouco profundo nas analises. Um ponto crucial é situar essa historia dentro do conceito de contemporâ-neo e situar sua periodização. Com base no conceito de longa dura-ção, pode se perceber que a historia do presente tem outras escalas de tempo e espaço. No que se refere ao tempo, à concepção de con-temporâneo esta associada a uma temporalidade de mudanças acele-radas, e, no que se refere ao espaço, trata-se pensar em uma Historia mundial.

Historia Nacional ou Mundial Tendências e perspectivas do ensino de Historia no Brasil

Os conteúdos de Historia do Brasil são apresentados, na maior par-te dessas obras escassamente. A diminuição dos conteúdos referente ao Brasil explica-se não pela sua inserção em uma Historia integrada, mas pela opção teórica que continua priorizando apenas as explica-ções estruturais para as situações nacionais ou regionais. a Historia do Brasil aparece como um apêndice da Historia Global. E sua existência deve ao desenvolvimento do capitalismo comercial. A partir da expan-são marítima europeia. A macro Historia pela a lógica é a chave para a compreensão de nossa condição de pais permanentemente periférico do sistema econômico capitalista.

A Historia do Brasil precisa necessariamente ser e estar integrada a Historia Mundial para que seja entendida em suas articulações como a Historia em escala mais ampla em sua participação nela. A Historia mundial não pode estar limitada ao conhecimento sobre a Historia do mundo, que na realidade é a Historia da Europa. Não se trata de negar a importância e o legado da Europa para a nossa Historia; trata-se, antes, de não omitir outras Historias de nossas heranças americanas e africanas.

Historia regional e nacional

A Historia regional passou a ser valorizada em virtude da possibili-dade de fornecimento de explicações na configuração, transformação e representação social do espaço nacional, uma vez que a Historiogra-fia nacional ressalta as semelhanças, enquanto a regional trata das diferenças e da multiplicidade. A Historia regional proporciona na di-mensão do estudo do singular, um aprofundamento do conhecimento sobre a Historia nacional, ao estabelecer relações entre as situações Históricas diversas que constituem a nação.

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Cotidiano e Historia local

Os estudos da Historia do cotidiano conduziram historiadores fran-ceses, brasileiros e argentinos, entre outros, à elaboração de coletâ-neas sobre a Historia da vida privada, tendo, entretanto, o cuidado de não situar os temas da vida cotidiana de forma isolada dos contextos históricos e dos temas tradicionais. Por exemplo, os autores da obra “Historia da vida privada no Brasil” advertem que a reconstituição de aspectos cotidianos e da vida privada fez se no processo histórico da formação brasileira. Não se pretendeu a reconstituição de hábitos, gestos e amores como se estes nada tivessem que ver com a organi-zação mais ampla da sociedade, da economia, do estado.

A Historia local, por outro lado, tem sido elaborada por historiadores de diferentes tipos. Políticos ou intelectuais de diversas proveniências têm se dedicado a escrever Historias locais com objetivos distintos, e tais autores geralmente são criadores de memórias mais do que efeti-vamente de Historia. A memória é sem duvida aspecto relevante na configuração de uma Historia local tanto para historiadores quanto para ensino.

Historia local ou Historia do “lugar”

A Historia do lugar como objetivo do estudo ganha, necessariamen-te, contornos temporais e espaciais. Não se trata, portanto, ao se pro-porem conteúdos escolares da Historia local, de entendê-los apenas na Historia do presente ou de determinado passado, mas de procurar identificar a dinâmica do lugar, as transformações do espaço é articu-lar esse processo às relações externa, a outros lugares.

Aprendizagens em Historia A formação de conceitos: confronto entre Piaget e Vygotsky

A formulação epistemológica do professor suíço Jean Piaget de 1896-1980, provem de parte de suas preocupações biológicas, das adaptações orgânicas do homem e dos processos cognitivos que pos-sibilitam sua adaptação ao meio por intermédio da inteligência. Nessa perspectiva, o ponto central de sua obra é a construção do conheci-mento pelo sujeito, partindo da gênese do pensamento racional.

As estruturas cognitivas dos indivíduos são adquiridas ao longo da vida em estagio delimitados pela maturidade biológica e, em face do meio, assimilam estruturas internas orgânicas. Ao se situar diante de um objeto cada individuo acomoda-o determinados esquemas, incor-porando-o de acordo com as condições disponíveis e organizando o pensamento para a assimilação. O funcionamento constante dos dois processos – assimilação/ acomodação correspondente ao principio de desenvolvimento das estruturas mentais e ao crescimento da capaci-dade cognitiva: o sujeito responde por meio de compensações ativas aos desafios exteriores, aos desequilíbrios criados pelos problemas enfrentados, pelos conflitos, esse reequilibrio promove o desenvolvi-mento intelectual. Para essa etapa de reequilibrio são necessária a maturação física do sistema nervoso e a interferência de fatores soci-ais.

Pressuposto sobre conceitos sociais

O pesquisador russo L.S.Vygotsky (1896-1934), em seus escritos dos anos 30 sobre a formação dos conceitos, aponta para alguns dos problemas da formulação piagetiana. Uma de suas criticas refere-se à forma negativa como o professor suíço encara os conceitos e nova-ções provenientes do senso comum – o conceito espontâneo, como denomina Vygostky. Piaget entende o conceito espontâneo e o concei-to cientifico como antagônicos, pressupondo que o primeiro fosse impeditivo ou opusesse obstáculos à constituição dos conceitos cientí-ficos. Segundo essa linha de interpretação deve se conhecer o pen-samento espontâneo da criança, para que, com base nesse conheci-mento, tal pensamento possa ser combatido e anulado.

Contrariamente a essa a proposição, Vygotsky defende a existência de uma interação muito próxima entre os conceitos, o espontâneo e o cientifico, a qual não é considerada pela pesquisa de Piaget.

O estudioso russo, mesmo reconhecendo os estágios de desenvol-vimento cognitivo entende como questão fundamental sobre a aquisi-ção dos conceitos a distinção entre os conceitos espontâneos, ou os do senso comum, e os conceitos científicos, demonstrando sua interfe-rência mutuam. No processo de apreensão do conhecimento cientifico proposto normalmente em situação de escolarização, não há necessa-riamente o desaparecimento do conceito espontâneo, mas modifica-ções de esquemas intelectuais anteriormente adquiridos.

Reflexões sobre o conhecimento prévio dos alunos.

As novas interpretações sobre a aprendizagem conceitual e a im-portâncias das interferências sociais e culturais nesse processo erigi-ram o aluno e seu conhecimento prévio como condição necessária para a construção de novos significados e esquemas. Como conse-qüência, a psicologia social passou a contribuir para reflexão a cerca das seqüências de aprendizagens, partindo do conhecimento prévio dos alunos.

Do que se refere ao conhecimento histórico essa posição torna-se ainda mais relevante, levando em conta as experiências históricas vividas pelos alunos e as apresentações da historia apresentada pela mídia – cinema e televisão em particular - por parte das crianças e dos jovens em seu cotidiano. A historia escolar não pode ignorar os con-ceitos espontâneos formados por intermédio de tais experiências.

Conceitos fundamentais

Historia e conceitos: no exercício do seu oficio, os historiadores empregam conceitos específicos especialmente produzidos para a compreensão de determinado período histórico. De acordo com alguns historiadores existem as noções histórica singulares, tais como renas-cimento, mercantilismo, descobrimento da América, feudos medievais, cruzadas, republica velha. Muitos dos conceitos criados pelos historia-dores tornaram-se verdadeiras entidades a designar povos, grupos sócias, sociedades, nações: “povos bárbaros”, bandeirantes, colonato,

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donatários das capitanias, patriciado romano, democracia ateniense, mercadores. Esse conceito tem sido consolidado pela comunidade de historiadores e são delimitados no tempo e no espaço. A história esco-lar utiliza essas noções e conceitos bastante familiaridade, a ponto de acabarem por designar conteúdos programáticos e constituírem capí-tulos de livros didáticos.

Apreensão de conceitos históricos na escola: o conhecimento histó-rico escolar, comparado ao historiográfico, informações e – acrescenta o autor francês Henri Moniote – valores, especialmente os cívicos, que se relacionam à formação da cidadania. As especificidades dos con-ceitos históricos a ser apreendidos no processo de escolarização tem conotações próprias de formação intelectual e valorativa, e a precisão conceitual torna-se fundamental para evitar deformações ideológicas. A historia possui um conteúdo escolar que necessita estar articulado, desde o inicio da escolarização com os fundamentos teóricos para evitar conotações meramente morais e de sedimentação de dogmas.

Para Moniote, o ensino da disciplina justifica-se em todo o proces-so de escolarização se estiver aliado à necessidade de domínio e precisão de conceitos. Dessa concepção vem suas criticas a teoria piagetiana dos estagio de desenvolvimento, a qual serviu para impedir o ensino da história para crianças e jovens de determinadas faixas estarias.

Pilar Maetro, historiadora espanhola em seu texto

“ Um nueva concepcion del apredizage de la historia” critica as in-terpretações e as pesquisas baseadas nas concepções piagetiana e afirma que a convicção de impossibilidades de um conhecimento sóli-do da historia escolar teve conseqüências consideráveis, levando a disciplina a tornar-se um saber secundário. Considera ainda que em-bora tenha havido interferência de outros fatores para a criação dessa visão, sobre tudo o ideário de uma sociedade industrial e tecnocrática que proclama as virtudes do conhecimento cientifico e técnico, em é certo que esta teoria concedeu respaldo cientifico a essa limitação distorcida do papel da historia do currículo.

Conceitos históricos fundamentais (noção de tempo e de espaço)

Uma reflexão inicial sobre as noções de tempo é necessária para esclarecer as especificidades do tempo histórico. Há o tempo vivido, o tempo de experiência individual: o tempo psicológico – os aconteci-mentos agradáveis parecem passar rápidos e os desagradáveis pare-cem durar mais tempo.

O tempo vivido é também o tempo biológico que se manifesta nas etapas de vida da infância, adolescência, idade adulta e velhice. Na nossa sociedade, o tempo biológico é marcado por anos de vida ge-ralmente comemorados nas festas de aniversario, é evidenciado em idades bem limitadas, que possibilitam a entrada na escola, na vida adulta – a maioridade -, o direito de votar, de dirigir automóveis, o alistamento militar... Em culturas indígenas, as passagens do tempo

biológico, embora não sejam delimitadas por idades, tem marcas ritua-lísticas importantes, realizadas por cerimônias que indicam as fases de crescimento e de novas responsabilidades perante a comunidade.

O tempo concebido varia de acordo com as culturas e gera rela-ções diferentes como o tempo vivido. Na sociedade capitalista, apenas para ilustrar, tempo e dinheiro, não se pode perder tempo, e as pesso-as são controladas pelo relógio. Para alguns grupos indígenas brasilei-ros e mesmo de outros lugares essa concepção gera algumas perple-xicidades. Uma delas é receber dinheiro pelo tempo de trabalho, e não pelo produto realizado. Tal procedimento provoca à vezes a incompre-ensão de muitos povos indígenas que trabalham como assalariados para os brancos e acolhem mal a ideia das oito horas de trabalho, os feriados de domingos, uma vez que o tempo cíclico e o mais significa-tivo para eles e indica outras formas de ordenar o trabalho ou mesmo o descanso, o lazer, a festas, associando-o ao tempo da chuva, da seca, de plantar e colher e dos respectivos rituais. A semana de sete dias não faz parte do tempo indígena, das aldeias, bem como os anos, os meses, as mudanças dos fusos horários.

Historiadores e o tempo histórico

Tempo e espaço constituem os materiais básicos dos historiadores. De fato, qualquer escrita da historia fundamenta-se em uma dimensão temporal e espacial. Um dos objetivos básicos da historia é compreen-der o tempo vivido em outras épocas e converter o passado em nos-sos tempos. A historia propõe-se reconstituir o tempo distante da ex-periência do presente e assim transformá-los em tempos familiares para nós.

Tempo histórico e espaço

Os historiadores além de se preocuparem em situar a ações huma-nas no tempo, tem a tarefa de situá-las no espaço. Não se pode con-ceber um fazer humano separado do lugar onde esse fazer ocorre. O ambiente natural ou urbano, as paisagens, o território, a trajetórias, os caminhos por terra e por mar são necessariamente parte do conheci-mento histórico. Mudanças dos espaços realizadas pelos homens assim como as memórias de lugares também integram esse conheci-mento.

Tempo histórico e ensino

Prática de ensino de história com alunos de diversos níveis de es-colarização demonstrou alguns dos obstáculos enfrentados pelo pro-fessores para efetivar essa aprendizagem. O aspecto que estes desta-caram como a maior dificuldade dos alunos relaciona-se à localização ou identificação dos acontecimentos no tempo; mais especificamente à identificação dos séculos e do período antes do Cristo (a.C) e depois de Cristo (d.C). E às datações decorrentes dessa divisão temporal. Verificou-se assim que o tempo histórico ao quais os professores se referiam limitava-se a se ao tempo cronológico. Tempo era, portanto sinônimo de tempo histórico.

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No caso do ensino do tempo cronológico para as series iniciais, é interessante vinculá-los à noção de geração. Pais, avós, os vestígios do passado de p familiares mais velhos mostram um momento diferen-te do atual, revelando uma historia e as transformações sociais possí-veis de ser percebidas nas relações com o tempo vivido da criança.

Essas sucessões e transformações podem ser sistematizadas por meio de linhas do tempo, chegando à visualização de um tempo cro-nológico que é apreendido progressivamente. Posteriormente, nas séries escolares seqeunciais, essa etapa é acrescida de linha do tem-po de uma genealogia mais extensas e com associações de outros tempos e lugares.

Cap. 3 Procedimentos metodológicos no ensino de Historia Métodos tradicionais versus Métodos inovadores

Ao referir-se ao método tradicional, professores e alunos geral-mente o associam ao uso de determinado material pedagógico ou a aulas expositivas. Existe uma ligação entre o método tradicional e uso de lousa, giz e livro didático: o aluno, em decorrência da utilização desse material, recebe de maneira passiva uma carga de informações que por sua vez passam a ser repetidas mecanicamente de forma oral ou por escrito com base naquilo que foi copiado no caderno ou res-pondido nos exercícios propostos pelos livros.

As mudanças de métodos e conteúdos precisam ser entendidas à luz da concepção de tradição escolar, sendo necessário perceber por intermédio desse conceito dois aspectos fundamentais.

O primeiro põe-se à ideia de que, em educação é preciso sempre inventar a roda, bastando verificar que muito do que se pensa ser novo já foi experimentado muitas outras vezes. Outro aspecto a ser levado em conta no processo de renovação é o entendimento de que muito do tradicional deve ser mantido, porque a prática escolar já comprovou que muitos conteúdos e métodos escolares tradicionais são importan-tes para a formação dos alunos e não convém serem abolidos ou des-cartados em nome do novo. Assim há que haver cuidado na relação entre permanência e mudança no processo de renovação escolar.

Reflexões sobre o método dialético em situação pedagógica

O método dialético corresponde a um esforço para um progresso do conhecimento que surge no confronto de teses opostas: o pro e o contra, o sim e o não, a afirmação e a negação.

O confronto das teses opostas possibilita a elaboração da critica. Esse método pretende chegar ao conhecimento de determinado obje-tivo ou fenômeno defrontando teses contrarias, divergentes. Tais te-ses, não são apenas divergentes; são opostas e por vezes contraditó-rias. Muito estudiosos, especialmente, os filósofos, destacando-se os alemães Friedrich Hegel (1770-1831) e Karl Marx (1818-1883), dedica-ram-se à explicitação do método dialético e de suas reflexões derivan-do muitos estudos sobre a questão.

Um ponto inicial, ao se propor a introdução do método dialético no ensino, é identificar o objeto de estudo para os alunos e situá-los como um problema (com prós e contra) a ser desvendado com a utilização da analise a decomposição de elementos, para posteriormente esse objeto voltar a ser entendido como um todo.

Representações sociais e princípios metodológicos de pesquisa em sala de aula

A representação social é entendida como uma modalidade particu-lar de conhecimento.

O termo designa ao mesmo tempo o produto, o processo, os con-teúdos de conhecimento e os mecanismos de constituição e de funci-onamento do produto. Considerando a representação social na situa-ção educacional, o fundamental é identificar os conhecimentos adqui-ridos pela experiência de vida, pela mídia, etc. Que estejam solida-mente enraizados, porque são uma construção pela qual o jovem se apropriam do real, tornando-o inteligível. Mas a representação social ultrapassa essa atividade de conhecimento prático e preenche igual-mente uma função de comunicação. Ela permite às pessoas inserir-se em um grupo e realizar trocas intervindo na definição individual e soci-al, na forma pela qual o grupo se expressa.

Denise Jodelet, outra estudiosa das representações sociais, adver-te que o jovem possui domínio pertinente sobre numerosos objetos de estudo. Pertinente porque adaptado aos problemas que ele teve de conhecer ou resolver, e não pertinente do ponto de vista, a priore, que interessa ao professor, preocupado com o entendimento cientifico do objeto ou pelo menos da matéria ensinada.

Aquele conhecimento tem, além do mais, um caráter de autorida-de, legitimidade, porque é por meio dele que o individuo estabelece comunicação com o grupo ao qual pertence.

As representações como instrumento de avaliação e diagnostico

Fazer que os alunos exponham suas representações sociais sobre o tema proposto para estudo pode favorecer igualmente uma reflexão por parte dele próprio. Ao possibilitar por intermédio de debates e discussões orais e de respostas a questionários cuidadosamente pre-parados, a exposição das representações sociais dos aluno sobre determinado objeto criam se condições para que eles identifiquem os diferentes tipos de conhecimento: o proveniente da vivência, das for-mas de comunicação diária que organizam suas representações sobre a realidade social (expressa notadamente pelas expressões eu penso, eu acho, em minha opinião...), e o conhecimento sobre essa mesma realidade proveniente do método cientifico.

Inclusive, fazer surgir às representações sociais dos alunos sobre o objeto de estudo, no decorrer das aulas, permite ao professor meios de avaliar os próprios alunos e o curso em sua integralidade.

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Procedimento metodológicos em praticas interdisciplinares Meio ambiente e historia

Temas da historia ambiental: a historia ambiental foi se constituindo basicamente em torno de um objetivo comum: investigar como os homens, em diferentes sociedades, ao longo dos séculos, foram afe-tado pelo meio ambiente, e, de maneira recíproca, como o ambiente foi afetado pelos homens. Os historiadores esclarecem de forma sim-ples que a historia ambiental trata do papel e do lugar da natureza na vida do homem Worster (1991). Vários temas passaram a constituí-la em um levantamento parcial demonstra o crescimento da área entre os historiadores brasileiros, mas os norte americanos e europeus os liderem essa produção.

Interdisciplinaridade e pratica de ensino de historia ambiental

Para haver interdisciplinaridade, é importante partir de alguns prin-cípios fundamentais que devem permear e estruturar as disciplinas envolvidas em trabalho que se baseiam na concepção de conhecimen-to escolar integrado. Para a educação ambiental, um dos princípios articuladores é o de a natureza ser dinâmica e não poder ser entendi-da como estática, sendo necessário percebê-la em seu movimento. Outro principio pouco explicito, é o que estabelece o homem como parte integrante da natureza.

Estudo do meio como pratica interdisciplinar

O estudo do meio é uma pratica pedagógica que se caracteriza pe-la interdisciplinaridade. Em relatos de escolas anarquistas de São Paulo do inicio do século XX, já se nota a preocupação dos educado-res da linha pedagógica de Ferrer de colocar o aluno em contato com o meio social ou em situação de observação direta dos fenômenos naturais, para lhe proporcionar um estudo mais interativo e envolvente. o educador francês Celestin Freinet foi um dos ardentes defensores do “estudo da realidade próxima do aluno”, sendo esta pratica uma das bases de seu método.

O estudo do meio é um método de investigação cujos procedimen-tos se devem ater a dois aspectos iniciais. O primeiro deles é que esse método é um ponto de partida, não um fim em si mesmo. O segundo é que sua aplicação resulta sempre de um projeto de estudo que integra ou parcial.

O estudo do meio orienta-se também para o atendimento da forma-ção intelectual dos alunos. Um objetivo central dessa pratica é o de-senvolvimento da capacidade de observação do educando. A obser-vação como procedimento de investigação em, um estudo do meio é destacada por Ligia Possi (1993): observação simples, observação participante e observação sistemática.

Materiais Didáticos: concepção e uso. Materiais didáticos para a historia escolar

Uma concepção mais ampla e atual parte do principio de que os materiais didáticos são mediadores do processo de aquisição de co-

nhecimento, bem como facilitadores da apreensão de conceitos, do domínio de informação e de uma linguagem especificada área de cada disciplina – no nosso caso da Historia.

A diversidade de materiais didáticos conduz-nos a uma reflexão sobre as diferenças entre eles. Pesquisadores de Historia e Geografia do Institu National de Recherche Pèdagogique (INRP) da França indi-caram diferenças importantes entre o que é denominam de suportes informativos e os “documentos”.

Os suportes informativos correspondem a todo discurso produzido com a intenção de comunicar elementos do saber das disciplinas es-colares. Nesse sentido temos toda a serie de publicações de livros didáticos e paradidáticos, Atlas, dicionários, apostilas, cadernos, alem das produções de vídeo, CDS e DVDS e material de computador.

Os suportes informativos pertencem ao setor da indústria cultural e são produzidos especialmente para a escola, caracterizando por uma linguagem própria, por um tipo de construção técnica que obedece a critérios de idade, vocabulários, extensão e formatação de acordo com princípios pedagógicos.

Material didático: instrumento de controle curricular

Um aspecto fundamental a ser considerado ao analisarmos o mate-rial didático é o papel de instrumento e de controle do ensino por parte dos diversos agentes do poder. Michel Apple, no artigo “Controlando a forma do currículo”, alerta para a produção e consumo de material didático e desqualificação do professor. O despreparo do professor, resultante de cursos sem qualificação adequada, e as condições de trabalho na escola muitas vezes favorecem, segundo o autor, uma cultura mercantilizada que transforma cada vez mais a escola em um mercado lucrativo para a indústria cultural, com oferta de materiais que são verdadeiros pacotes educacionais.

Livro didático: um objeto cultural complexo

A produção da literatura didática tem sido objeto de preocupações especiais de autoridades governamentais, e os livros escolares sem-pre foram avaliados segundo critérios específicos ao longo da historia da educação. Os livros de Historia, particularmente, tem sido vigiados tanto por órgãos nacionais como internacionais, sobretudo após o fim da Segunda Guerra Mundial. A partir da segunda metade do século passado, divulgam-se estudos críticos sobre os conteúdos escolares, nos quais eram visíveis preconceitos, visões estereotipadas de grupos e populações. Como se tratava da fase pós-guerra, procurava-se evi-tar, por intermédio de suportes educacionais, qualquer manifestação que favorecesse qualquer sentimento de hostilidade entre os povos. Nessa perspectiva, a Historia foi uma das disciplina mais visadas pelas autoridades. Essa vigilância é visível ainda na atualidade, como bem o demonstra a imprensa periódica.

A familiaridade como o uso de livro didático faz que seja fácil identi-ficá-lo e estabelecer distinções entre ele e os demais livros.

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Entretanto, trata-se de objeto cultural de difícil definição, por ser obra bastante complexa, que se caracteriza pela interferência de vá-rios sujeitos em sua produção, circulação e consumo. Possui ou pode assumir funções diferentes, dependendo das condições, do lugar e do momento em que é produzido e utilizado nas diferentes situações escolares. É um objeto de múltiplas facetas, e para sua elaboração existem muitas interferências.

Entre os livros didáticos pesquisados, os de Historia tem sido os mais visados. Em estudo recente sobre o predomínio de investigação da produção didática nessa área a partir da segunda metade do século passado na Alemanha e na Europa em geral, a historiadora Verena R Garcia destaca o papel político dos manuais escolares de Historia, considerando-os verdadeiras “autobiografias” dos Estados modernos. Tendo em vista o momento político do pós-guerra, período extrema-mente complexo para as relações entre países participantes da Se-gunda Guerra Mundial - explica a pesquisadora - houve a criação na Alemanha, de uma instituição encarregada de revisar os manuais escolares.

O objetivo inicial era detectar erros e preconceitos no livro didáti-cos por intermédio de estudos comparativos em escala internacional.

Caracterização dos livros de Historia

Certas pesquisas sobre livros didáticos permitem identificar algu-mas características dessa produção e mostram que ela está em pro-cesso de mudança.

Um dos mais importantes pesquisadores de livros didáticos, o histo-riador francês Alain Choppin, tem afirmado que os manuais estão, na atualidade, convertendo-se de uma ferramenta polifônica, com varias funções. As funções atuais do livro didático são: avaliar a aquisição dos saberes e competências; oferecer uma documentação completa provenientes de suportes diferentes; facilitar aos alunos a apropriação de certos métodos que possam ser usados em outras situações e em outros contextos.

Do ponto de vista da forma, entre nós os livros didáticos tem sofrido muitas mudanças nos últimos anos e se adaptado ao referencial do Programa Nacional do Livro Didático.

Os livros são produzidos em forma de coleções, que se destinam ás diferente series do ensino fundamental e obrigatoriamente apresen-tam o livro do aluno e do professor.

Conteúdos históricos escolares

A importância do livro didático reside na explicitação e sistematiza-ção de conteúdos históricos provenientes das propostas curriculares e da produção historiográfica. Autores e editoras tem sempre, na elabo-ração dos livros, o desafio de criar esse vinculo. O livro didático tem sido o principal responsável pela concretização dos conteúdos históri-co escolares.

Conteúdos pedagógicos

Os conteúdos dos livros didáticos têm outra característica que pre-cisa ser analisada: a articulação entre informação e aprendizagem. A analise do discurso veiculado pelo livro didático é indissociável dos conteúdos e tendências historiográficas de que é portador. Porém, devem-se levantar algumas questões sobre essa qualificação impositi-va do texto, ao se ater as relações entre o conteúdo da disciplina e o conteúdo pedagógico. É importante perceber a concepção de conhe-cimento expressa no livro; ou seja, além de sua capacidade de trans-mitir determinado acontecimento histórico, é preciso identificar como esse conhecimento deve ser aprendido. O conjunto de atividades con-tidas em cada parte ou capitulo fornece as pistas para avaliar a quali-dade do texto no que se refere ás possibilidades de apreensão do conteúdo pelos estudantes. O conhecimento contido nos livros depen-de ainda da forma pela qual o professor o faz chegar ao aluno.

Praticas de leitura de livros didáticos

A utilização do livro didático pelos professores é bastante diversa. Algumas das pesquisas sobre esse tema revelam que não existe mo-delo definido e homogêneo nas praticas de leitura, conforme pressu-punha muita das analise sobre a ideologia dos conteúdos escolares das obras didáticas.

Segundo muitas das pesquisas, o poder da ideologia reside em uma imposição sem mediações e toda ideologia é integralmente incor-porada por alunos e professores.

Embora não se possa negar e omitir o papel dos valores e da ideo-logia nas obras didáticas, as conclusões de muitas das atuais pesqui-sas sobre as praticas de leitura desse material tem apontado para a importância das representações sociais na apreensão de seu conteú-do e método. A recepção feita pelos os usuários é variada, ate porque o publico escolar não é construído por um grupo social homogêneo.

Usos didáticos de documentos

Os documentos também são materiais mais atrativos e estimulan-tes para os alunos e estão associados aos métodos ativos ou ao cons-trutivismo, conforme algumas justificativas de algumas propostas curri-culares.

Os documentos tornam-se importantes como um investimento ao mesmo tempo efetivo e intelectual no processo de aprendizagem, mas seu uso será equivocado caso não se pretenda que o aluno se trans-forme em um pequeno historiador, uma vez que para os historiadores, os documentos têm outras finalidades, que não pode ser confundida com a situação do ensino de Historia. Para eles, os documentos são fonte principal de seu oficio, a matéria-prima por intermédio da qual escrevem a historia.

Métodos de analise de documentos

O primeiro passo é o professor saber como o documento é utilizado na investigação do historiador, para, em seguida, poder apropriar-se

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do procedimento de analise tendo em vista outras situações de estu-dos históricos.

A compreensão de um documento em toda sua complexidade deve também se pautar pela reflexão de outro historiador.

O uso de documentos nas aulas de Historia justifica-se pelas con-tribuições que pode oferecer para o desenvolvimento do pensamento histórico. Uma delas é facilitar a compreensão do processo de produ-ção do conhecimento histórico pelo entendimento de que os vestígios do passado se encontram em diferentes lugares, fazem parte da me-mória social e precisam ser preservados como patrimônio da socieda-de.

Documentos escritos: jornais e literatura

Os documentos escritos são os mais comuns e os que tradicional-mente tem sido usado por historiadores e professores nas aulas de Historia. Não raro encontramos documentos usados com fins pedagó-gicos em muitos livros didáticos ou em coletâneas que selecionam textos escritos de diferente natureza, tais como textos legislativos, artigos de jornais e revistas de diferentes épocas, trechos literários e, mais recentemente, poemas e letras de músicas.

Literatura Como Um Documento Interdisciplinar

Romances, poemas, contos são textos que contribuem, pela sua própria natureza, para trabalhos interdisciplinares. O uso de textos literários pó outras disciplinas faz parte de uma longa tradição escolar, que remonta ao período em que dominava o período humanístico.

Atualmente a literatura integra os conteúdos das aulas de Língua Portuguesa, mas tem sido utilizada por outras disciplinas, a ponto de existirem muitos exemplos de atividades integradas entre duas ou mais tendo por base textos literários.

Para o caso da Historia, o enlace como o ensino de literatura é sempre desejável. Muitas praticas de ensino optam pelo relato de lendas a alunos das series iniciais do ensino fundamental como meio de introduzir conhecimento históricos, além de procurar favorecer o gosto pela leitura por intermédio de uma literatura adequada a essa faixa etária.

Documentos Escritos Canônicos

Entre os documentos escritos, os produzidos pelo poder institucio-nal são bastante usuais na pesquisa historiográfica, notadamente naquela afinada som a tradição de uma historia política que se preo-cupa com o poder institucional e privilegia o papel do Estado nas transformações históricas. O ensino de Historia pautado por essa linha não se utilizou, no entanto, de documentos legislativos. Em livros didá-ticos não é comum encontrar documentos provenientes do poder insti-tucional para serem explorados do ponto de vista pedagógico.

São exceções alguns artigos da Declaração dos Direitos do Ho-mem e do Cidadão de 1789, nos capítulos destinados à Revolução

Francesa, e alguns outros artigos de Constituições dos Estados Mo-dernos.

Documentos Não Escritos Na Sala de Aula

Objetos de museus que compõe a cultura material são portadores de informações sobre costumes, técnicas, condições econômicas, ritos e crenças de nossos antepassados. Essas informações ou mensagens são obtidas mediante uma “leitura” dos objetos, transformando-os em documento.

Imagens diversas produzidas pela capacidade artística humana também nos informa sobre o passado da sociedade, sobre suas sen-sações, seu trabalho, sua paisagens, caninhos, cidades, guerras. Qualquer imagem é importante, e não aquelas produzidas por artistas.

É comum encontrarmos crianças e jovens em museus, acompa-nhado de seus professores, percorrendo as salas onde estão expostos variados objetos em vitrinas com iluminação atrativas.

Uma atividade educativa dessa natureza é sempre bem vinda, en-tão as visitas aos museus merecem atenção, para que possam consti-tuir uma situação pedagógica privilegiada como trabalho de analise da cultura do material, em vista da compreensão da linguagem plástica. Mesa, vasos, cerâmica, vidro ou metal, tapetes, cadeiras, automóveis ou locomotivas, armas e moedas podem ser transformados de simples objeto da vida cotidiana, que apenas despertam interesse pelo “viver antigamente”, em documentos ou em material didático que servirão como fonte de análise, de interpretação e de critica por parte dos alu-nos.

Imagens no ensino de Historia

As gravuras ou ilustrações têm sido utilizadas com freqüência como recurso pedagógico no ensino de Historia. Atualmente além das ima-gens dos livros escolares, há também a proliferação da produção de imagens tecnológicas como recurso didático, proveniente de máquinas ou aparelhos eletrônicos e constituídas de filmes, fotografias e ima-gens informáticas dos CDs e softwares.

O interesse dos historiadores pelas imagens que circulam em dife-rentes espaços e momentos por diversas sociedades e culturas au-mentou na ultima década. As diversas imagens têm se tornado em fontes importantes da pesquisa historiográfica, sobretudo pra os espe-cialistas da historia social e cultural, saindo do âmbito dos historiado-res da arte.

Cinemas e Audiovisuais

Jonathas Serrano, professor do colégio Pedro II e conhecido autor de livros didáticos, procurava desde 1912 incentivar seus colegas a recorre a filmes de ficção ou documentários para facilitar o aprendiza-do da disciplina. Para ele os professores teriam condições, pelos fil-mes, de abandonar o tradicional método, mediante o qual os alunos se limitavam a decorar páginas de insuportável seqüência de eventos, isto é, a memorização.

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É interessante destacar que, se as imagens cinematográficas de-moraram a penetrar na escola e ainda o fazem de maneira ilustrativa, elas foram praticamente ignoradas por longo tempo pelos historiado-res, ocupados em analise de documento “mais nobre” – os textos es-critos.

Atualmente com a contribuição de vários estudos interdisciplinares de antropólogos, linguistas, sociólogos e demais teóricos da comuni-cação, os historiadores podem dispor de uma metodologia mais abrangente para analisar tantos filmes de ficção como documentários ou filmes científicos.

Música e História

A música tem se tornado objeto de pesquisa de historiadores muito recentemente e sido utilizada como material didático com certa fre-qüência nas aulas de História. Entre os tipos de música que atraem tanto pesquisadores brasileiros como professores, a música popular se sobressai.

Marcos Napolitano, historiador especializado nessa área, a música popular emergiu do sistema musical ocidental tal como foi consagrado pela burguesia no inicio do século XIX, e a dicotomia popular e erudito nasceu mais em função das próprias tensões sociais e lutas culturais da sociedade burguesa do que por um desenvolvimento natural do gosto coletivo, em torno de formas musicais fixas.

3. BURKE, Peter. Variedades de História Cultu-ral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

Autor: Zezé Caldas

INTRODUÇÃO

Uma obra acadêmica de Peter Burke, intitulada “O que é História Cultural”, onde exemplifica, reproduz e discorre a respeito das tendên-cias existentes na história cultural, citando autores e suas colabora-ções.

Cautelosamente, e em gênero poético às vezes, escreve sobre di-versas maneiras de estudar a cultura e relaciona os parâmetros segui-dos pelos historiadores, na tentativa de responder ao mesmo tempo em que faz a pergunta, levando o leitor a refletir, replicar o seu questi-onamento, procurando a resposta ao longo da leitura.

Aborda a existência de problemáticas entre as tendências, onde os conflitos e as criticas, são diversos, procura expor os rumos da nova virada cultural.

A posição de Peter Burke, nessa obra, será a tentativa e a preocu-pação em demonstrar, algumas possíveis resoluções a despeito dessa problemática, procurando amenizar os conflitos de ideias, embates e controvérsias existentes.

Enfim, uma abordagem totalmente acadêmica como dita anterior-mente, cultural, racional, orientadora, capaz de leva as múltiplas refle-xões e conhecimentos que julgamos ser fundamental para se fazer uma História Cultural.

DESENVOLVIMENTO

Ao estudar o que vem a ser História Cultural, entendemos sua efe-tivação difundida por anos na Alemanha. Encontramos fase clássica, a passagem da sociologia à história social da arte, cultura popular e nova história cultural.

Na História Cultural Clássica encontramos diversos autores e suas contribuições como, Jacob Burckhardt, onde em sua obra – A cultura do Renascimento na Itália procura retratar em seus estudos na esfera do não coletivo, que procurou chamar de individualismo incorrigível. Johan Huizinga, em seu livro, Outono da Idade Média, fora na verdade crítico quanto a alguns métodos incorporado nos estudos de Burc-khardt, com sua abordagem morfológica, acreditava que era conveni-ente ao historiador delinear maneira individual de pensar, o conjunto de opiniões ou preconceitos que comandam o pensamento de um indivíduo ou de um grupo social.

O alemão Max Weber procurou enfatizar o lado cultural de mudan-ças econômicas. Norbert Elias, outro alemão, favorecido pelos escritos de Huizinga, seguiu o caminho do estudo das civilizações, o que cha-mou de pressões sociais pelo autocontrole. Aby Warburg, alemão, não era acadêmico, mas contribuiu muitíssimo para a história cultural, sua curiosidade girava em torno da filosofa, psicologia e antropologia e história da cultura do Ocidente, seu alvo era desenvolver uma ciência da cultura e observamos ser opulento e fragmentado.

Verificamos o legado de Erwin Panofsky nos clássicos sobre her-menêutica visual, que seria a iconografia e iconologia, ou seja, a inter-pretação e explicação através das imagens. Houve uma divulgação bastante importante e estimulante quanto a História Cultural, onde a grande diáspora formou grupos em busca de novos estudos e novas explicações que migraram da Alemanha para os Estados Unidos, sen-do difundida e explorada cada vez mais, adentrando ao mundo das ideias, enquanto que na Grã-Bretanha, estava surgindo uma história cultural e intelectual, fora dos campos da história. Apesar de um grupo de marxistas interessarem pela ligação cultura e sociedade, muitos deles literalmente contemplavam somente as lutas de classes, esque-cendo-se totalmente do social. Edward Thompson exaltando papel crucial nos novos historiadores com ideias de novos estudos na vida cultural da população.

Em análise a algumas questões, invocando para a reflexão a res-peito das obras de Huizinga e Burckhardt, em Outono da Idade Média de Huizinga, Burke acredita que o autor não observou fontes de cará-ter primordial para um perfeito exame, criação e conclusão de uma excelente época estudada. Alerta para que os historiadores não caiam no anacronismo, no trato com fontes e textos. Burckhardt acreditava na confiabilidade dos historiadores no aspecto das conclusões como

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no caso da Grécia onde as informações às vezes geravam dúvidas, sendo bem aceito seu argumento a respeito do testemunho involuntá-rio.

A história cultural pode ser tanto impressionista quanto serial, par-tindo do pressuposto da análise de toda realidade que o passado quer nos mostrar e a outra o estudo cientifico como um todo, uma poderá dialogar com a outra. Continua a questão citando Clapham que levanta o problema de análise de conteúdo, consiste em escolher um texto ou corpus de textos, contando a freqüência das referências analisando associação entre temas. Exemplifica o grupo de Saint-Cloud, que tra-balhou com a Revolução Francesa, onde os resultados não foram satisfatórios levando-se em conta que as mesmas palavras podem significar coisas diferentes, agrupando métodos literários, a análise do discurso pode trabalhar similarmente, através da análise lingüística.

Os marxistas criticam a abordagem clássica da cultura dizendo que ela “fica no ar”, e não tem nenhuma base econômica ou social. Burc-khardt aceitou o comentário alegando não ter muito a dizer sobre eco-nomia do Renascimento italiano, enquanto que Huizinga desconhecia a peste negra. Panofsky também nada falou sobre as classes sociais que realizaram arquiteturas, escolásticas góticas, mestres-de-obras e os mestres das artes.

Outra crítica dos marxistas aos clássicos, viria de Edward Thomp-son, onde imputa aos historiadores clássicos da cultura de valorizar a homogeneidade cultural, ignorando conflitos, sendo ele, um marco da história cultural britânica, recebendo críticas e fazendo-as, sua obra estimulou uma crítica interna aos conceitos marxista, fundação eco-nômica, social/base e superestrutura cultural. As respostas principais seriam estudar as tradições culturais, tratar a cultura erudita e popular como subculturas, não completamente separadas ou autônomas.

Do encontro gerado entre a história e antropologia, foi adotado o termo cultura no plural, e que ao longo do tempo expandiu-se. Na expansão da cultura houve um interesse crescente por estudos cultu-rais nas décadas de 80 e 90, surtindo efeitos em diferentes disciplinas, como a Psicologia, Geografia, Economia entre outros.

A Expressão nova historia cultural, bem sucedido nos Estados Uni-dos, agrupando historiadores da literatura com olhar voltado para o novo historicismo, conhecido internacionalmente, como na França onde a história das mentalidades e do imaginário social, tendo em como referência Jacques Lê Goff.

Nas explicações culturais, seria a busca para averiguar fenômenos econômicos, mudanças no mundo político, formação dos estados, entre outros. A busca da cultura cotidiana, seus costumes, valores e moldes de vida e a aproximação da visão de cultura dos antropólogos. Alguns historiadores estudaram meticulosamente antropólogos como Marcel Mauss, fenômeno do Dom, Edward Evans Pritchard em Pureza e Clifford Geertz sobre Bali, seria a hora de antropologia histórica. Alguns historiadores sentiram-se totalmente atraídos pelos estudos de

Claude Lévi Strauss, abordagem estruturalista, resistindo à apropria-ção.

O primeiro passo na virada antropológica veio da URSS, impulsio-nado por essa vertente, o russo Aaron Gurevich, assim a Antropologia determinou que os historiadores olhassem os bárbaros com um ponto de vista diferente. Sabemos que se uma cultura existente estiver cada vez mais afastada de outra cultura, a facilidade de tratá-la como objeto de estudo é muito maior.

Geertz acreditava que, cultura é um padrão historicamente transmi-tido por meio dos quais os homens se comunicam, perpetuam e de-senvolvem seu conhecimento e suas atitudes acerca da vida. Victor Turner seguia linha similar as de Geertz, estudando as perturbações da vida social. Robert Darnton também fora influenciado por Geertz, que causou um grande impacto entre os historiadores culturais, devido ao modo em que a abordagem foi realizada, pensamento totalmente voltado para a filosofia, trazendo explicações que gira em torno de símbolos, grande indício desse pensamento está descrito no livro O Grande Massacre dos Gatos.

Historiadores sociais como Emmanuel Lê Roy Ladurie, Daniel Ro-che, Lynn Hunt, Carlo Ginzburg e Hans Medick, não marxistas, mas contempladores Marx, na década de 60, seguiam a antropologia a fim de relacionar cultura e sociedade. O interesse pela cultura popular, foi capaz de tornar a antropologia mais relevante para os historiadores, pois possuía um conceito mais amplo de cultura, estudos dos símbolos e da vida cotidiana.

Com a chegada da década de 70, a micro-história aparece eluci-dando um novo gênero histórico por um grupo de historiadores italia-nos como Carlo Ginzburg, Giuovanni Levi e Edoardo Gerandi, uma crítica a história das grandes narrações, e a “globalização” da cultura. Peter Burke argumenta que na década de 70, muitos foram os estudos sobre micro-história, mas adverte para a depreciação no rendimento intelectual.

O problema significante estaria em relacionar o estudo do “local” com o global, o debate ente a micro e a macro história.

Peter Burke lança a questão sobre um novo paradigma, referindo-se a nova história cultural, e o que vem a ser de fato esse modelo e fundamentações. Lynn Hunt cunha o termo “nova história cultural”, expressão usada em livro lançado em 1989, sendo a “nova” uma ex-pressão a fim de diferenciá-la dos da antiga história cultural, o termo cultura ainda se mantém, com a função de especificar o tipo de história que é feito.

Nitidamente uma particularidade da NHC, é a preocupação com as teorias. Um conjunto de fundamentações que permitia aos historiado-res, tomar consciência de problemas até então ignorados e modernos. Sobre a investigação de novos temas teóricos, qualificando os antigos, deparamo-nos com os teóricos Mikhail Bakhtin com sua teoria voltada para a linguagem, Norbert Elias, Michael Foucault e Pierre Bourdieu, com teorias focando o social. As pesquisas geradas por estes quatro

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teóricos influenciaram muito os historiadores culturais, propiciando a preocupação com as representações e as práticas, o desejo de não só descrever, mas analisar, obrigando a reexaminar nossas suposições tanto sobre a tradição como sobre a mudança cultural, ponto de vista principal da NHC refletido por Roger Chartier.

A história das práticas seria uma das áreas mais afetadas pela teo-ria social e cultural, causando impacto sobre campos relativamente tradicionais na história cultural. Foucault realçava as representações, criticando também os historiadores pela ideia empobrecida do real, que não deixava ideia para o que é imaginado, houve reação pelos historiadores a essa provocação.

Existe um forte interesse popular pelas memórias históricas, rea-ções e acelerações das mudanças sociais e culturais que ameaçam as identidades, ao separar aquilo que somos daquilo que fomos. Quando algo retrocede no tempo, perde algo de sua especificidade, ou seja, são distorcidos. As memórias de conflitos são também conflitos de memória.

A Cultura Material foi focada pelos historiadores econômicos en-quanto os historiadores culturais estavam preocupados com as ideias, mas a partir dos anos 80 e 90, os historiadores culturais voltavam suas atenções para os materiais, aproximando-se dos arqueólogos.

A ideia de representações através de imagens e textos, suas ino-vações, problemáticas e críticas, o deslocamento dos historiadores. As imagens e textos não refletem ou imitam a realidade, ocorrendo uma construção ou produção por meio de representações dessa realidade. A partir disso houve um deslocamento de interesses, por parte dos historiadores culturais, passando a ser comum pensar e falar em cons-trução e produção.

Da virada para o construtivismo, houve uma ascensão da história de baixo, representação do passado do ponto de vista de pessoas comuns. Assim os historiadores ficavam conscientes de que pessoas diferentes vêem o mesmo passado de modos diferentes. Os historia-dores uniam-se com estudiosos de outras disciplinas, o qual seu obje-to de estudo seria a construção social da realidade.

Houve a virada lingüística, onde através de discursos de Foucault informava que sistematicamente se constroem os objetos que falam. De Certau, estudou as práticas cotidianas, nelas enfatizava sua criati-vidade, sua escolha e suas interpretações. Houve crítica a Bourdieu, no conceito de noção de “habitus”, uma ideia de que as pessoas co-muns não têm consciência do que fazem, seria o princípio da improvi-sação regulada. Novas construções trouxeram Hayden Luhite, com a análise formalista dos textos teóricos, concentrando-se nos Clássicos, onde modelaram sua narrativa e ou enredo em um gênero literário. Na recepção da arte, não houve somente a preocupação com os artistas, mas também com o publico que recebe as artes.

Na construção de classe e gênero, existiam categorias sociais, que agora parecem mais flexíveis, a classe, é vista como uma construção

cultural, histórica ou discursiva. No gênero, é necessário distinguir entre visões de masculinidade e feminilidade, e os papéis de cada.

No ano de 1983, ocorreu um marco da teoria construtivista, o qual seria a publicação de dois livros, o de Benedict Anderson e Eric Hobs-bawn e Terence Ranger. Hobsbawn e Ranger trazem a tradição que parecem ou apresentam como antigas são muitas vezes recentes em suas origens e algumas vezes são inventadas. Com o passar do tem-po à mensagem foi reinterpretada, onde generalizou que toda a tradi-ção era inventada.

Na construção de identidades individuais, uma característica da NHC, refletia as políticas de identidades, relevantes em muitos países. Interesse em documentos pessoais, textos em 1ª pessoa, retórica da identidade, a Linguagem não só expressa como cria, ou ajuda a criar, identidades.

A performance nunca é mera interpretação ou expressão, mas tem um papel mais ativo, de vez que a cada ocasião o significado é recria-do. Destacar a multiplicidade e os conflitos de significados. O ocasio-nalismo seria um movimento que distância da ideia de reações fixas, segundo regras, e que caminha, em direção à noção de respostas flexíveis, de acordo com a lógica ou a situação.

A ideia de construção cultural desenvolveu-se como parte de uma reação saudável contra o determinismo social e econômico, mas é necessário evitar o excesso de reação. Passar a diante uma tradição é um processo de reconstrução, dizia Certau, fazendo a necessidades de adaptar velhos conceitos as novas circunstâncias, gerando conflitos internos da tradição, onde tentativa de encontrar soluções universais para os problemas humanos e as necessidades ou lógica da situação. Isso é um problema, para o futuro da historia cultural, argumenta Bur-ke.

A novidade apresentada pela NHC é um trunfo que se esgota rapi-damente, portanto é chegado o tempo de uma fase ainda mais nova. Na década de 80, a produção material era inovadora e alta, mas decli-na gradualmente na década de 90. É necessário distinguir daquilo que queremos que aconteça com a NHC, ou daquilo que provavelmente aconteça. O futuro será muito mais do que uma simples continuação de tendências.

Há alguns cenários alternativos, argumenta Burke como, o retorno de Burckhardt, com símbolos para renascer da história cultural tradici-onal, a expansão dos domínios da NHC, deixados de fora e a vingança da história social, o qual seria contra a redução construtivista da soci-edade em termos de cultura.

A ideia de fronteira cultural é interessante, porém temos que tomar cuidado, sobre visões de fora e visões de dentro de uma cultura. Fron-teiras culturais, zonas de contato, mas que, porém existem obstáculos que dificultam a velocidade dos movimentos culturais ou que desviam para canais diferentes. Há também as zonas de resistência e tendên-cias culturais. Interpretação dos encontros culturais, os movimentos

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pelos qual a história cultural não desaparece, seria a necessidade de compreendê-los no passado.

O Modelo de mudança cultural vem da lingüística, onde a narrativa também aparece, onde se faz necessário uma busca de novas formas de narrativa para lidar com a história social e cultural. O atual interesse histórico pela narrativa seria um interesse pelas práticas narrativas, características de uma cultura em particular, as histórias que as pes-soas contam naquela cultura de si mesmas sobre si mesmas, expres-sando uma multiplicidade de ponto de vista, seriam uma maneira de tornar inteligíveis os conflitos, bem como de resistir à tendência da fragmentação.

CONCLUSÃO

A NHC pode estar chegando ao fim do seu ciclo de vida, mas a his-tória cultural mais ampla está em progresso – história das linguagens. Porém os problemas correntes ainda estão sem solução. A ultima geração de discussões estão mais estimulantes sobre os métodos históricos-ampliação do território da profissão e ampliação do publico.

A história cultural sozinha não é a melhor, junto com as outras his-tórias dão uma visão histórica do toda – história total. Ciente de que “modas culturais” passam, devem-se garantir os ganhos da percepção histórica da virada cultural.

Positivistas e empiristas, “levam tudo ao pé da letra”, carecem de sensibilidade a assuntos julgados sem importância, sendo a ultima geração de historiadores culturais e antropólogos culturais portadores dessa fraqueza, no futuro não deve haver um retorno a esse tipo de compreensão literal.

PALAVRA DO LEITOR

A leitura da obra de Peter Burke, detalhista, cheia de argumentos mesmo quando voltada para a analise critica, sai do campo da veros-similhança, envolvendo a leitura para um campo da conformidade do conhecimento com o real. Princípio certo e verdadeiro, de que as di-versas correntes, tipos de cultura, os diversos historiadores, antropó-logos, sociólogos, os temas citados, os que poderiam ter sido analisa-dos mais concretamente, mesmo o julgamento de cada historiador para com o outro, o poder trazido em cada símbolo, suas diversas orientações e a intenção de provocar no leitor a capacidade de se fazer pesquisas, partindo de vários e primordiais pressupostos, en-trando agora no campo do verossímil, encontrando nas representa-ções.

Toda a explanação de Burke nessa obra que consideramos serem excelentes para nós iniciantes na área de Licenciatura de História, onde engatinhamos no desconhecido, para se chegar à consciência da própria existência, de tudo e todos, gerando uma partícula minúscula de fantasias podem se tornar uma realidade ao adentrarmos o campo das pesquisas, das análises, conjecturas, e sentir através de aborda-

gens do passado poderia se fazer uma História Cultural, a Nova Histó-ria Cultural e a História Social.

A partir da leitura desse livro, concluímos com veemência o que vem a ser História Cultural, porque traz uma essência com a possibili-dade de se chegar a um pensamento sólido, quanto ao que se diz a respeito à História Cultural, ela não é limitada, nem efêmera, simples-mente ela é sedutora de novas perspectivas de estudos e análises de diversos campos, conceitos dos que ainda não foram estudados e de nova análise dos que já foram examinados, seria uma infinidade de novas perspectivas, no ponto de vista da virada cultural. Peter Burke menciona que a NHC já fez 20 anos, e de que ela pode estar chegan-do ao fim, depois da leitura desse livro, pensamos que ela apenas atingiu a maioridade, e que agora encaminha para o seu amadureci-mento total. Embora houvesse alguns temas e conceitos com visões de fora ou até mesmo de dentro, totalmente inviáveis, assim, concluí-mos existir uma fraqueza evidente por parte de alguns historiadores, ou até mesmo um esgotamento de estudos e pesquisas.

http://recantodasletras.uol.com.br/trabalhosacademicos/662716, disponível em: 03/02/2010

4. CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ro-naldo. Novos domínios da História. Rio de Ja-

neiro: Editora Campus, 2012.

No livro “domínio da História, o autor Ciro Flamarion Cardoso e Ro-naldo Vainfas teve como objetivo essencial o de traçar um panorama geral e atualizado dos vários campos de investigação na área da histó-ria, dando conta dos percursos historiográficos dos principais concei-tos e dos debates e polêmicas que se fizeram presentes na história disciplina e da pesquisa, com ênfase nas controvérsias atuais. Contro-vérsias aos que muitos consideram ausência ou embate de paradig-mas no cenário contemporâneo das ciências humanas.

Em todos os capítulos procurou-se dar um panorama quando me-nos uma notícia sobre os domínios da “história” no Brasil. É certo que dominam as considerações sobre a trajetória e modelos concebidos noutros centros, mas e procedente respostas os ritmos e interesses das investigações em nosso país sobretudo porque há mais de vinte anos a pesquisa histórica brasileira tornou-se em numerosos aspectos verdadeiramente profissional e exclusivamente universitária.

Neste limiar do século XXI, vivemos segundo muitos uma crise de civilização, simbolizada talvez cm forma adequada pela maneira com que se encara hoje em dia a dupla conceitual cultura/civilização.

Foi no século XVIII que filósofos franceses e alemães começaram a empregar o termo cultura, de início restrito a assuntos agrícolas, para referir-se ao progresso material e mental da humanidade: a "cultura da terra" proporcionava, portanto, uma metáfora para a "cultura de si

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mesmo", numa tradição que desembocaria, no século XX, na formula-ção antropológica do homem como um animal auto domesticado - a ideia, bem exposta pelo arqueólogo Gordon Childe, de que "o homem faz-se a si próprio" Se tanto franceses quanto alemães estiveram pre-sentes na gestação do conceito de cultura - que seria adotado pela nascente disciplina antropológica em 1871 através de E.B. Tylor no Brasil poucos historiadores se dão conta, segundo creio, de uma di-vergência que, também desde o século XVIII mas de forma mais clara posteriormente, se estabeleceria entre as maneiras francesa e alemã de conceber a relação entre as noções de cultura e civilização.

Na vertente francesa, a civilização, termo sem dúvida ainda mais polissêmico do que cultura, foi vista tradicionalmente numa perspectiva evolucionista e otimista. As civilizações seriam "altas culturas" caracte-rizadas pela urbanização, a escrita, o desenvolvimento das ciências, a metalurgia, o surgimento de um poder separado do parentesco (o Estado), o desenvolvimento da divisão social do trabalho e das dife-renças de status entre indivíduos e grupos - e outros traços ainda, já que houve inúmeras teorias, assim como muitas divergências a respei-to de como definir a civilização. O que me importa, aqui, é que a civili-zação era vista como uma forma superior de cultura aculminação de etapas sucessivas como, por exemplo, no caso de Lewis Henry Mor-gan (1818-1881), selvajaria-barbárie-civilização; e cal culminação era considerada positivamente.

Na vertente alemã, cultura designou habitualmente os costumes específicos de sociedades individualmente tomadas em especial os modos de vida de mudança muito lenta (rurais ou tribais) que serviam de base à coesão social, em oposição à civilização definida como urbana, cosmopolita e rápida em suas transformações; sendo a primei-ra valorada positivamente, mas não assim a segunda. Tais ideias viri-am a corporificar-se sobretudo na obra monumental que o etnólogo alemão Gustav Klemm dedicou à história cultural da humanidade ° Diga-se de passagem que ignorar essa oposição básica de perspecti-vas entre as visões francesa e alemã dificulta, entre outras coisas, o entendimento da corrente paramarxista conhecida como Escola de Frankfurt.

O paradigma ora ameaçado em sua hegemonia ou, segundo os cultores mais radicais da Nova História, já destronado pode ser cha-mado de "moderno" ou "iluminista”. Opôs-se, neste século, durante várias décadas e com bastante sucesso, ao historicismo em suas várias vertentes-incluindo aquelas de Benedetto Croce e R.G. Col-lingwood - e ao método estritamente hermenêutico ou interpretativo que tal corrente propugnava. Fê-lo cm nome da razão e do progresso humano, em uma perspectiva que pretendia estender aos estudos sociais o método científico. Em história, o marxismo (ou um certo mar-xismo, já que eu não incluiria aqui, por exemplo, a Escola de Frankfurt, a meu ver integrante do paradigma "pós-moderno") e o grupo chama-do dos Annales no período 1929-1969 foram suas vertentes mais in-fluentes e prestigiosas.

Os historiadores filiados a este paradigma - cujo domínio sobre os estudos históricos foi máximo entre talvez 1950 e 1968, mas nunca total - escrevem uma história que pretendem científica e racional. Seu ponto de partida na produção de conhecimentos é, no mínimo, hipoté-tico (a "história-problema" dos Anrrales), às vezes hipotético-dedutivo (se bem que isto raramente se pratique com rigor, mesmo porque muitos historiadores carecem de uma formação que a tanto os habili-te), sempre racionalista. Acreditava-se que, fora de tal atitude básica, o saber histórico não responderia às demandas surgidas da práxis social humana no que tange à existência e à experiência dos seres humanos no tempo, nem seria adequado no enfoque da temporalidade histórica como objeto. As tendências filosóficas fundadoras vinham dos séculos XVIII e XIX- sendo este último aquele em que a história surgiu como disciplina reconhecida acadêmica e profissionalmente eram reforça-das, no século XIX c neste, pelo emprego de modelos macro-históricos e teorizantes: estes podiam ser distintos e até opostos entre si, mas voltavam-se sempre para a inteligibilidade, a explicação, a expulsão ou pelo menos a delimitação do irracional, do acaso, do subjetivo. Exem-plificam tais modelos o evolucionismo (em diversas modalidades), o marxismo, o weberianismo, algumas das vertentes estruturalistas. Trata-se de uma história analítica, estrutural (e mesmo macroestrutu-ral), explicativa (na prática, ainda em casos como o de Weber que pretendia praticar uma "ciência da compreensão", e não "da explica-ção") - sendo estes alguns dos aspectos centrais de sua racionalidade, sua cientificidade assumida.

A visão marxista da história foi adequadamente sintetizada por Adam Schaff nos pontos seguintes, nos quais, segundo afirma, o mar-xismo estabelece:

· Que a realidade social é mutável

· Que essa mudança é submetida a I leis dinâmicas da ci-ência (histórica),

· Que as mudanças conduzem a estados periódicos de equilíbrio relativo, cuja característica não é (...) a ausên-cia de qualquer mudança, mas sim a duração relativa de suas 'formas' e ‘relações recíprocas (hoje expressaría-mos isto mais precisamente com as palavras: da estrutu-ra do sistema)

O conhecimento que se pretende conseguir basear-se-á num mo-delo epistemológico que difere tanto do que formula o sujeito do co-nhecimento como passivo, limitando-se a refletir a realidade exterior, quanto do que limita ao sujeito todo o aspecto ativo no processo do conhecimento. Tal modelo é chamado de teoria modificada do reflexo, a qual postula, entre o sujeito que conhece e aquilo que é conhecido, a mediação da prática (trabalho, práxis, produção: devendo tais termos entender-se em sua acepção mais ampla)." No caso específico da história, a consequência desta teoria do conhecimento é que, como os processos passados não podem transformar-se, nós os conhecemos através de transformações constantes de suas imagens consecutivas, em função das mudanças que intervêm na práxis atual.

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Assim, a teoria marxista do conhecimento implica necessariamente uma vinculação epistemológica dialética entre presente e passado. Um livro de Jean Chesneaux pretendeu extremar esta relação, interpretan-do a mediação do trabalho, da prática e da produção no processo do conhecimento como algo que deve significar pôr a história-estrita e história - estrita e pragmaticamente - a serviço direto de uma militância política qualquer, desde que revolucionária e popular.

Deve notar-se que a preocupação holística do marxismo trans-cende, mesmo, a esfera estritamente humana. Natureza e história humanas aparecem como subsistemas da realidade do mundo, ambos em movimento dialético autodeterminado mas, por outro lado, vincu-lados um ao outro. É assim que a principal contradição dialética reco-nhecida pelo materialismo histórico marxista é a que se estabelece entre o homem (sócio historicamente determinado: daí a teoria das classes sociais, no caso das sociedades pós-tribais) e a natureza, e se resolve no desenvolvimento das forças produtivas. As outras contradi-ções centrais ligam, como se sabe: a dinâmica das forças produtivas ao caráter conservador das relações de produção e a determinação em última instância pela base econômica à autonomia relativa dos diversos níveis da superestrutura. Da análise integrada dessas contra-dições é que surgem conceitos fundamentais como: modo de produ-ção, formação econômico-social, classes sociais.

Assim sendo, é possível ao mesmo tempo reconhecer que na histó-ria humana os participantes têm consciência; e que o curso da história é governado por leis objetivas e cognoscíveis. Outra razão disto é o fato de os homens não poderem escolher livremente- com indepen-dência das circunstâncias- as suas forças produtivas, pois toda força produtiva é o produto de uma atividade anterior (e as forças produtivas evoluem com relativa lentidão). Em outras palavras, em cada momen-to, as lutas sociais que determinam a configuração que terá a socieda-de estudada, incluindo os aspectos mais conscientes e voluntários dessas lutas, não se travam no vácuo, livres de determinações, mas, pelo contrário, no interior de uma delimitação estrutural herdada da história anterior e que não há como transformar in totum num período curto por simples atos de vontade. Assim, as estruturas em questão impõem limites ao que é ou não possível em cada momento.

O impacto do marxismo sobre os historiadores profissionais não se fez sem dificuldades; e estas não foram principalmente teóricas ou acadêmicas. Eis aqui o que diz, sobre o caso francês, Le Roy Ladurie:

· "A influência marxista foi capital e ao mesmo tempo bas-tante oculta. Simplesmente porque, há cinquenta anos, ser marxista na universidade francesa não era bem visto, sobretudo se houvesse preocupação em fazer carreira."

· Segundo Geoffrey Barraclough, que não era marxista:

· "A influência crescente do marxismo deve-se principal-mente ao fato de que oferecia a única base verdadeira-mente satisfatória para um ordenamento racional dos dados complexos da história da humanidade."

Em contraste, o mesmo historiador acha, sobre os Annales: "O que é preciso sobretudo lembrar a propósito desta nova concepção da história, e que mais contribuiu para que fosse amplamente aceita, é que não procurava impor um novo dogma, nem uma nova filosofia da história, mas sim convidava os historiadores a que mudassem seus modos de trabalhar e seus métodos; ela não os amarrava a uma teoria rígida, mas sim abria-lhes novos horizontes.

Baseando-me em síntese de minha autoria já antiga, eis aqui o que vejo como pontos básicos quanto à tendência ora em foco:

1. A crença no caráter científico da história, que no entanto é uma ciência em construção: isco conduziu, em especial, à afirmação da necessidade de passar de uma "história-narração" a uma "história-pro-blema" mediante a formulação de hipóteses de trabalho.

2. O debate crítico permanente com as ciências sociais, sem reco-nhecer fronteiras entre elas que sejam estritas e definitivas; sendo menos estruturada que tais ciências, a história delas importou proble-máticas, conceitos, métodos e técnicas, incluindo, desde 1930, a quantificação sistemática e o uso de modelos em certas áreas - cada vez mais numerosas - de estudos históricos, movimento ampliado ainda pela generalização dos computadores.

3. A ambição de formular uma síntese histórica global do social, explicando a vinculação existente entre técnicas, economia, poder e mentalidades, mas também as oposições e as diferenças de ritmo e fase entre os diferentes níveis do social.

4. O abandono da história centrada em fatos isolados e também uma abertura preferencial aos aspectos coletivos, sociais e repetitivos do sócio histórico, substituindo a anterior fixação em indivíduos, elites e fatos "irrepetíveis": daí o interesse maior pelas temáticas econômi-cas, demográficas e relativas às mentalidades coletivas.

5. Uma ênfase menor do que no passado nas fontes escritas (em-bora elas continuem sendo as mais usadas, no conjunto, pelos histori-adores, sem excluir os dos Annales), favorecendo a ampliação do uso da história oral, dos vestígios arqueológicos, da iconografia etc.

6. A tomada de consciência da pluralidade dos níveis da tempo-ralidade: a curta duração dos acontecimentos, o tempo médio (e múlti-plo) das conjunturas, a longa duração das estruturas; além de que o próprio tempo longo, estrutural, é diferencial em seus ritmos depen-dendo de quais estruturas se trate (o mental, por exemplo, muda mais lentamente do que o econômico, e este mais do que o técnico).

7. A preocupação com o espaço, primeiro por meio da tradicional li-gação com a geografia humana; depois, através da história, ainda mais espacialmente pensada, inaugurada com os escudos de mares e oceanos: o Mediterrâneo de Fernand. Braudel, o Atlântico de Frédéric Mauro, o Atlântico e o Pacífico de Pietre e Huguette Chaunu etc.; e, o tempo todo, a sólida tradição francesa da história regional.

8. A história vista como "ciência do passado" e "ciência do presen-te" ao mesmo tempo: a história-problema é uma iluminação do presen-

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te, uma forma de consciência que permite ao historiador homem de seu tempo -, bem como aos seus contemporâneos a que se dirige, uma compreensão melhor das lutas de hoje, ao mesmo tempo que o conhecimento do presente é condição sine qua non da cognosci-bilidade de outros períodos históricos.

A comparação das características gerais do grupo dos Annales com a concepção histórica do marxismo permite notar sem dificuldade numerosos e importantes pontos comuns, em grande parte explicáveis pela "influência oculta do marxismo" de que fala Le Roy Ladurie em passagem que citei anteriormente. Eis aqui os principais:

· O reconhecimento da necessidade de uma síntese global que explique tanto as articulações entre os níveis que fa-zem da sociedade humana uma totalidade estruturada quanto as especificidades no desenvolvimento de cada nível.

· A convicção de que a consciência que os homens de de-terminada época têm da sociedade em que vivem não coincide com a realidade social da época em questão.

· O respeito pela especificidade histórica de cada período e sociedade (por exemplo, as leis econômicas só valem, em princípio, para o sistema econômico em função do qual foram elaboradas).

· A aceitação da inexistência de fronteiras estritas entre as ciências sociais (sendo a história uma delas), se bem que o marxismo seja muito mais radical quanto à unidade delas.

· A vinculação da pesquisa histórica com as preocupações do presente.

· Alguns dos membros do grupo dos Annales - mas nem todos, nem a maioria - aproximaram-se à noção marxista da determinação em última instância pelo econômico.

Há, na verdade, muito maior compatibilidade entre o marxismo c as ideias do grupo dos Annales do que do primeiro com tendências su-postamente marxistas, como as de Louis Althusser e seguidores ou as da chamada Escola de Frankfurt. Mas há também diferenças. Amais importante é, provavelmente, a pouca inclinação teórica dos historia-dores dos Annales e o fato de não disporem de uma teoria da mudan-ça social.

Passando agora às críticas de que foi objeto o paradigma que aca-bo de resumir, sobretudo após 1968, deve notar-se que minha opção, ao formular este capítulo, faz com que se distingam as objeções ao paradigma como um todo daquelas mais específicas dirigidas ao mar-xismo.

Um primeiro grupo de críticas ao paradigma "iluminista" em seu conjunto tem um caráter amplo - filosófico e epistemológico - que, até certo ponto, deriva de um abandono dos poucos de referência filosófi-

cos até então preferidos (a alternativa: Hegel e Marx de um lado ou Kant do outro), inseridos no grande âmbito do racionalismo moderno, em favor de outros que são semi-racionalistas (Karl Popper, Noam Chomslry) ou irracionalistas (Friedrich Nietzsche, Martin Heidegger e, no campo da filosofia da ciência, P. Feyerabend e Thomas Kuhn).

Tal arcabouço filosófico é usado em oposição ao evolucionismo e à noção de progresso que, em outro nível, apoia-se em argumentos tirados da história do século XX - armas químicas e atômicas, o na-zismo com seus fornos crematórios e câmaras de gás, guerras mun-diais e genocídios em áreas mais restritas, destruição do meio ambien-te, uso das tecnologias modernas (incluindo as de comunicação) no sentido da desumanização e da massificação etc. - e resulta na pro-posta de um abandono da ideia de progresso ligado à desilusão radi-cal com uma história recente que estaria mostrando que a moderniza-ção, o racionalismo, a ciência (com frequência, aliás, confundida com a tecnologia, que é coisa bem diferente) não foram fatores de liberta-ção e felicidade, e sim, pelo contrário, geraram monstros. Este conjun-to de críticas desemboca, metodologicamente, na contestação da possibilidade de explicação racional do social, do humano, que não passaria de uma ilusão cientificista desprovida de conteúdo efetivo, mas perniciosa porque em torno dela se constituiria um saber terrorista a serviço do poder (agora entendido à maneira nietzscheana) e eva-cuador de outros saberes.

Assim, por exemplo, boa parte dessa argumentação pretensamente científica ou baseada na ciência apoia-se na Escola de Copenhague da filosofia da ciência, que há umas décadas dava a impressão de representar a interpretação ortodoxa em matéria de teoria quântica, mas hoje em dia faz água por todos os lados, razão pela qual suas posições indeterministas, subjetivistas e antirrealistas em nada ajuda-riam já a embasar a linha de discussão pretendida. Às vezes a coisa é ainda pior: a crítica à ciência e sua objetividade parece referir-se a uma ciência à maneira de Newton ou de Laplace, o que, como é óbvio, carece de sentido neste final de século XX em que ninguém sustenta posições assim.

Jacques Monod, prêmio Nobel de Biologia, ataca, por exemplo, a teoria marxista do reflexo, não somente reduzindo-a à forma que tinha no século XIX, sem levar em conta suas modificações e correções posteriores (que ao parecer desconhece), mas também pretendendo que progressos científicos de nosso século invalidariam quaisquer teorias epistemológicas do reflexo: “... os progressos da neurofisiologia e da psicologia experimental começam a revelar-nos alguns dos as-pectos, pelo menos, do funcionamento do sistema nervoso. O bastante para que seja evidente que o sistema nervoso central não pode, sem dúvida nem deve, entregar à consciência uma informação que não esteja codificada, transposta, enquadrada em normas preestabeleci-das: em suma, assimilada e não simplesmente restituída”.

Pode destacar-se, ainda, alguma super simplificação deformadora em outras críticas específicas ao marxismo. Um bom exemplo é a questão da determinação em última instância dos níveis superestru-

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turais pela infraestrutura. Quase sempre, tal discussão trata Marx e Engels como se fossem perfeitos imbecis que teriam pretendido ver a base econômica, absurdamente, como uma espécie de glândula capaz de gerar ideias e instituições, ao não considerar; entre outros pontos, os esclarecimentos de Engels acerca da diferença entre forma e con-teúdo das superestruturas, ocasião em que diz com todas as letras que, no tocante ao "político, jurídico, filosófico, teológico", o que há é: ... um material que se formou independentemente, por obra do pen-samento de gerações anteriores e que atravessou no cérebro dessas gerações sucessivas um processo próprio e independente de evolu-ção".

O desafio maior que enfrenta o paradigma de que estou tratando é outro, porém, que vai além do marxismo tomado isoladamente, ao afetar qualquer visão holística do social; e tem a ver muito diretamente com os historiadores, por referir-se ao sentido ou ausência de sentido da história. Refiro-me às afirmações, correntes hoje em dia, da impos-sibilidade de surgimento de novas ideologias globais e novas teorias holísticas do social, no que vem sendo chamado de "fim da história" (entenda-se: tanto a história que os homens fazem, se se pretender perceber nela algum sentido, quanto a história que os historiadores escrevem, entendida como uma explicação global do social em seu movimento e em suas estruturações).

Os últimos anos do século XIX caracterizaram-se, então, por um mal-estar teórico e epistemológico entre os cientistas naturais, similar ao dos cientistas sociais da atualidade: com o agravante, para estes últimos, de que as teorias disponíveis caducaram sobretudo porque o próprio objeto central as sociedades humanas contemporâneas - mu-dou muito intrinsecamente. Ou melhor, o que nos leva ao cerne do problema: ainda está mudando radicalmente, mas em um processo que, se já revela alguns de seus aspectos e potencialidades, longe está de haver chegado ao fim e portanto de manifestar todas as suas consequências. Vivemos com um pé num mundo ainda presente mas em vias de superação (o das primeiras revoluções industriais, com suas concentrações fabris e urbanas, com sua ênfase na palavra es-crita, com suas lutas sociais específicas e conhecidas) e o outro pé num mundo que ainda está nascendo (no qual o computador, ao gene-ralizar-se em conjunto com elementos tecnológicos como o fax, os processos digitais de armazenagem e comunicação de informações e a robótica, poderá perfeitamente tornar anacrônicas as concentrações fabris e urbanas; em que a primazia da palavra escrita vê-se contesta-da; em que as lutas sociais mudam de forma e de objetivos).

A perspectiva do historiador deveria torná-lo imune a mais este "fim da história" - em função da prosperidade de pós-guerra, que durou umas três décadas, não ouvimos falar de outro fim da história, especi-ficamente o conto do fim das crises capitalistas, o que desde o primei-ro choque do petróleo, cornou-se uma piada e hoje está de todo es-quecido? -, além de que o fato mesmo da ausência de solução a pro-blemas como o desemprego, a miséria, a exploração social e a punção de recursos de certas partes do mundo em proveito de outras, através

de mecanismos renovados (serviço de dívida, política de patentes) ou antigos (guerra do Golfo), não poderá deixar de suscitar teorias, ideo-logias e utopias de luta, a médio prazo, que necessariamente precisa-rão levar em consideração o mundo em seu conjunto. Mas a inexistên-cia, por enquanto, de teorias globais satisfatórias sem dúvida corna difícil a defesa de uma perspectiva holística, sem a qual não há como propor uma mudança cabal do estado de coisas imperante em direção a um futuro distinto. Certos historiadores de esquerda, como Josep Fontana, acham que a volta a um marxismo depurado bastaria." Não o creio. As transformações (tanto do social mesmo quanto das ciências sociais) acumuladas de fins do século XIX até agora são suficiente-mente, a meu ver, para garantir que a nova visão holística e potenci-almente renovadora das sociedades humanas que vier a surgir num futuro próximo será muitos elementos do marxismo e, mais em geral, do "paradigma iluminista"; mas será uma teoria nova, diferente.

Com efeito, para J.F. Lyocard, o pós-modernismo se caracteriza pela "morte dos centros" e pela "incredulidade em relação às meca narrativas". O primeiro ponto, se aplicado à história-disciplina, levaria a afirmar que os pretensos centros (entenda-se: lugares de onde se fala) a partir dos quais se afirmariam as diversas posturas diante da mesma não são legítimos ou naturais, mas sim ficções arbitrárias e passagei-ras, articuladoras de interesses que não são universais: são sempre particulares, relativos a grupos restritos e socialmente hierarquizados de poder (em outras palavras: não há História; há histórias "de" e "pa-ra" os grupos em questão). O segundo ponto significa que, no mundo em que agora vivemos, qualquer "metadiscurso", qualquer teoria glo-bal, tornou-se impossível de sustentar devido ao colapso da crença nos valores de todo tipo e em sua hierarquização como sendo univer-sais, o que explicaria o assumido niilismo intelectual contemporâneo, com seu relativismo absoluto e sua convicção de que o conhecimento se reduz a processos de semiose e interpretação (hermenêutica) im-possíveis de serem hierarquizados de algum modo que possa preten-der ao consenso.

Em primeiro lugar, então, os modernos partidários de uma con-cepção hermenêutica dos estudos sociais - incluindo a história -retomam, com um novo discurso, uma velha bandeira dos neokantia-nos do fim do século passado e começo do século XX: a noção de que o comportamento humano e seus resultados são essencialmente dife-rences dos fenômenos estudados pelas ciências naturais, o que impe-diria qualquer aproximação metodológica a estas últimas. E verdade que a própria ciência é, muitas vezes, impugnada em si reduzida a mero discurso terrorista do poder, evacuador de "saberes alternativos".

O segundo aspecto básico consiste em, a partir do anterior afirmar ser desejável, no campo do humano ou social, levar-se em conca o papel dos indivíduos e dos pequenos grupos, com seus respectivos planos, consciências, representações (imaginário), crenças, valores, desejos. Num outro nível, o do observador, seria preciso reconhecer que, com sua subjetividade, faz parte integrante daquilo que estuda - conduza isto ou não a recomendar alguma inefável "empatia" com os

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indivíduos ou grupos tomados como objeto (ponto sobre o qual não há consenso entre os defensores da autoproclamada Nova História).

Neste ponto, as posições possíveis variam bastante, indo da subje-tividade do autor individual ou de um leitor implícito igualmente indivi-dual às posições de grupos de pessoas diversamente designados: "comunidade interpretativa", "comunidade textual", "sociedade discur-siva". Em qualquer hipótese, tratar-se-ia de um processo hermenêutico de interpretação, no caso da história tomado de empréstimo de prefe-rência a uma cerca antropologia, com maior frequência a de Clifford Geertz ou alguma outra vertente de culturalismo relativista. Em posi-ções extremas pode ocorrer a simples recusa de qualquer validação como desnecessária, impossível ou indesejável.

A pergunta central a ser formulada seria: que formas, prévias a qualquer conteúdo específico, o saber histórico recebe de sua estru-tura literária, de sua textualidade ideologicamente condicionada (ou, se se preferir, daquilo que Foucault chama de epistemes)? Respondendo-a, chegar-se-ia à noção de que a reconstrução do labor profissional empreendido pelos historiadores a partir das "formas de repre-sentação", dos "níveis de discursividade", das "epistemes" mostraria a inexistência, no conhecimento que produzem, de um caráter cientifico, objetivo, racional. Por conseguinte, seria recomendável abandonar o analítico, o estrutural, a macro análise, a explicação ilusões cienti-ficistas - em favor da hermenêutica, da micro história, da valorização das interações intencionalmente dirigidas, da concepção da história como sendo narrativa e literária.

Qual pode ser a origem do avanço do paradigma pós-moderno, progressivamente visível ao longo do período 1968-1989? Em outra ocasião, ocupei-me do assunto numa perspectiva histórico-social.

O século XIX, no seu final, e principalmente o nosso século, assisti-ram à descoberta da existência e da presença generalizada de nume-rosas programações sociais do comportamento. Muito do que as pes-soas fazem está programado por sua sociedade: sem isco, nenhum comportamento poderia ser identificado como pertencente a uma dada classe de ações e assim ser compreendido.

Alguns batizam esta opção de enfoque como uma visão "simbólico-realista" da teoria social. Se todo conhecimento é uma construção simbólica, cada uma com o seu modelo próprio de articulação, então 0 que forma uma comunidade, o que a constitui como comunidade, é a forma específica de "socialidade" baseada em linguagens e grades de leitura das mesmas partilhadas por seus membros. Em lugar de uma sociedade global - nível que, se existiu alguma vez, desapareceu no mundo pós-moderno da desarticulação social -, teríamos grupos nu-merosos e diversos, interesses também variados, subculturas. Isto foi criticado como sendo uma "cultura do narcisismo" e ajudaria a expli-car, por exemplo, o surgimento da "ego-história".

Convém notar, que os cultores da Nova História nem sempre se alinham a uma posição ortodoxa ou estrita nestas questões, ou a fazê-lo podem recuar.

Outro exemplo adequado é o de Giovanni Levi ao tratar da "micro-história" e das distâncias que deve tomar em relação às opções deri-vadas de Geertz. Diz Levi que, enquanto a antropologia interpretativa tende a ver um significado homogêneo nos signos e sinais socialmente difundidos, o historiador os vê como ambíguos, no sentido de compor-tarem múltiplas representações socialmente diferenciadas e fragmen-tadas. Outra forma de escapar a uma antropologia como a de Geertz tem sido buscar o apoio na posição antropológica mais dinâmica ou processual de alarshall Sahlins: os "signos em ação" (fala, mensa-gem), em relação ao sistema de signos (a "língua' em Ferdinand de Saussure), podem seja reproduzir, seja mudar o significado original.

Outrossim, há muitas vezes um desejo, na Nova História, de ser a porta-voz de uma visão que seria a do "homem comum", do "homem da rua", das "massas inarticuladas"; ainda que tal engajamento com frequência prefira enfocar as minorias discriminadas em lugar das maiorias exploradas.

Passando agora às críticas de que o paradigma tem sido alvo, as questões filosóficas mais gerais. Ao tratar do modernismo como pro-blema filosófico, Robert Pippin chega à conclusão de que os pós-estruturalistas e pós-modernistas, apesar de toda a atenção que pres-tam a coisas como linguagem, texto, desejo, psicanálise, gênero etc., não souberam resolver os problemas que atormentaram os pensado-res que pioneiramente, formularam em pleno século XIX uma crítica radical da modernidade; nem mesmo conseguiram livrar-se efetiva-mente das problemáticas próprias do modernismo - coisa que também demonstra Callinicos.

Os pós-modernos costumam, com efeito, ser mais apodícticos e re-tóricos do que argumentativos: abundam em seus textos as afirma-ções apresentadas como se fossem axiomáticas e auto evidentes, não sendo então demonstradas - como se bastasse dizer "eu acho", "eu quero", "minha posição é"...

Poder-se-ia invocar também, contra muitos membros da corrente atual, o fato de caírem no velho "façam o que eu digo, não o que eu faço". Assim, embora Jenkins afirme que todos os discursos históricos se ligam a bases hierarquizadas de poder, procurar-se-ia em vão em seu livro um esclarecimento de qual é, afinal, a base de poder de seu próprio discurso. E não se trata de uma exceção. A denúncia da ciên-cia e do racionalismo como terrorismos a serviço do poder está longe de significar que os pós-modernos, uma vez encastelados em posição de poder, sejam mais tolerantes na prática, devido ao relativismo que em tese pregam, do que aqueles que criticam e combatem.

Acha que a oposição à teoria e a um "enquadramento dos fenôme-nos históricos dentro de direcionamentos temporais globais" acaba relegando alguns dos problemas caros aos próprios pós-modernos - devastação da natureza, armamentismo, aperfeiçoamento das técni-cas de dominação, por exemplo - a um "limbo de fenômenos" como que naturalizados; os quais, livres da crítica e da resistência (enfra-quecidas pela eliminação dos contextos sociais globais), podem gras-sar "muito mais impunemente".

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Esta proposta de método ou estratégia de pesquisa não só me pa-rece perfeitamente razoável como, também, em nada seria incom-patível com as posições básicas do paradigma que chama de "ilumi-nista"; mesmo porque achar as "inconsistências internas" e "espaços'' mencionados supõe levar em conta os "sistemas normativos" mais globais.

Quanto à história econômica está organiza. Em meio a esse con-texto, nada mais previsível do que a afirmação da teoria econômica-social dos Annales e em um plano mais radical, a exacerbação do determinismo “infra estrutural” por parte do marxismo da Guerra Fria.

Por outro lado, não podemos afirmar que a história econômica não mais responderia aos anseios de uma sociedade em franca pulveriza-ção.

Em primeiro lugar porque é óbvio, os homens. Em primeiro lugar porque, é óbvio, os homens continuam trabalhando, produzindo e consumindo, atitudes que, no plano da cultura, se expressam de for-mas muito específicas. Em segundo lugar, nos parece que o longo percurso trilhado até aqui serviu para sedimentar a história econômica enquanto um legítimo campo do saber humano. Cabe recordar, aliás, que mesmo a chamada "história serial", tal como foi proposta pelos clássicos dos Annales, continua contribuindo decisivamente para um melhor conhecimento dos processos econômico-sociais. Basta citar aqui que até muito recentemente ainda se pensava a América colonial hispânica a partir dos restritos parâmetros da "dependência".

Contudo, J.C. Garavaglia, dentre outros, tendo por base séries fis-cais, demonstra, por exemplo, que o que predominava nos mercados internos da Nova Espanha e do Peru não eram bens provenientes da Europa, mas sim os produzidos localmente. O que nos leva a assumir que tais áreas não podem ser apreendidas apenas como meras cau-datárias dos processos de acumulações realizados na esfera do mer-cado internacional. No mesmo sentido, outros trabalhos recentes que, também calcados nesta clássica história serial, tendem a redefinir a tradicional vinculação entre a região do Prata do século XVIII e o pre-domínio da pecuária. Pelo contrário, outras séries fiscais mostram que a paisagem agrária local era dominada, já então, pela triticultura, fe-nômeno que tem por consequência novas leituras do sistema agrário em questão.

Por fim, nada indica que a história econômica não possa incorporar os ganhos derivados da vertebralização do saber histórico proposta pelas vertentes mais recentes. Vejamos um exemplo de como pode ser enriquecedor este procedimento, através do contato com o que atualmente se conhece por "micro história" - perspectiva que releva a utilização de conceitos derivados da antropologia.

As possíveis vantagens deste tipo de perspectiva são afirmadas por artigo de Giovanni Levi, cuja reflexão acaba por desnudar os limites de uma história econômica tradicional na abordagem de um tema, em princípio, totalmente adequado a ela: o mercado de terras. Segundo ele, durante muito tempo assumiu-se que a frequência das transações

com terras em certas áreas da Europa do Antigo Regime e da América colonial indicaria a precoce presença do capitalismo e do individualis-mo. Contudo, um estudo mais apurado, em nível local, tende a de-monstrar que o valor do solo varia não apenas em função de suas potencialidades diferenciadas, mas também segundo relações tais como o parentesco entre os contratantes. Deste modo, contra tudo que afirmava um certo tipo de análise (baseada na agregação de uma enorme quantidade de transações monetárias), estaríamos distantes de um mercado do por práticas puramente "econômicas".

Desde a década de 1930 até a de 1970, Caio Prado, Simonsen, Furtado, Novais, Ciro Flamarion Cardoso e Gorender buscaram mon-tar quadros explicativos que dessem conta da sociedade e economia coloniais, apontando inclusive para os condicionantes estruturais futu-ros. Em que pese, por vezes, as profundas divergências teóricas e diferenciados graus de embasamento empírico de suas obras, esses autores nos legaram abordagens que primavam pela tentativa de en-tender sobretudo a história brasileira como uma totalidade.

Tal perspectiva, , não deve ser perdida, sob pena de, nas palavras de Le Goff, construir-se uma história em fatias (`a pior das histórias, ou, mais grave ainda, como alerta de Certeau, privar os estudantes da possibilidade de simbolizar o seu lugar". Observação ainda mais perti-nente quando lembramos que a consolidação das pós-graduações em história tem redundado, acertadamente, na multiplicação de trabalhos monográficos que não deveriam deixar de estar referenciados na bus-ca de uma história total.

Os quase quarenta anos decorridos entre a reflexão fundadora de Caio Prado e o aparecimento dos modelos alternativos de Ciro Fla-marion Cardoso e Gorender testemunharam o aparecimento de obras que, embora não criassem escolas propriamente ditas, constituíram-se em importantes vertentes da historiografia econômico-social. Seu pano de fundo eram os complexos processos - e, por que não, os impasses - gerados pela acelerada urbanização e pelo crescimento industrial, fenômenos que de um modo ou de outro remetiam às grandes perma-nências de nossa história (estruturas agrárias arcaicas, force desigual-dade na distribuição da riqueza etc.).

A busca, implícita ou explícita, de compreender as derivações des-se movimento traduziu-se na publicação de importantes trabalhos, muitos dos quais feitos por não-historiadores. Neles, a história eco-nômica, mesmo que por vezes marcada por limitados embasamentos empíricos, aparecia dialogando constantemente com uma sociologia de fortes contornos weberianos e/ou marxistas. O resultado revelou-se tão enriquecedor que, não seria ousado afirmá-lo, acabou por desferir um golpe decisivo no factualismo ainda imperante.

A reflexão sobre as conjunturas e estruturas econômicas, porém, não se nutriu somente do contato com a sociologia. Assim é que, a partir da segunda metade dos anos 60 e durante a década seguinte, observa-se um contato cada vez maior dos economistas com a histó-ria. Refletindo muitos dos questionamentos herdados dos anos 50, mas incorporando os impasses do desenvolvimento capitalista surgi-

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dos com os anos 60 (cuja tradução maior foi o golpe de Estado de 64), o foco da reflexão passou a ser constituído pela gênese da industriali-zação e seus desdobramentos.

Em um movimento de certo modo semelhante ao que já ocorria no exterior, a produção dos economistas-historiadores incentivou a espe-cialização da história econômica brasileira. Contudo, ao contrário do que se deu em centros como Londres ou Chicago, aqui não ocorreu a separação institucional entre a história econômica e os departamentos de história. Talvez por isso não tenhamos conhecido o desen-volvimento de algo semelhante à New Economic History. Pelo contrá-rio, os economistas ainda tendem a reconhecer os limites de sua dis-ciplina quando se trata de trabalhar com elementos que remetam à complexidade do processo histórico nacional. Nesses momentos, aler-ta Barros de Castro, eles deveriam "(...) assumir o risco de ir além dos limites que circundam o seu terreno profissional (...) mediante a intro-dução de considerações histórico-contextuais" .

O apogeu dos estudos em história econômica ocorreu contudo, a expansão dos programas de pós-graduação no Brasil. Foi quando (e as figuras que abriram este capítulo o provam) pesquisas neste campo concentravam no mínimo a metade dos trabalhos realizados.

Em meio a este movimento se observou a abertura da reflexão so-bre as conjunturas e estruturas econômicas, tanto a novos eixos temá-ticos quanto a novas metodologias. Procedimentos que buscaram se alicerçar no manejo de técnicas de pesquisa e corpus documentais muitas vezes inéditos. Dentre as áreas que, desde então, ganharam impulso maior destacam-se os estudos acerca do mercado interno, de estruturas agrárias da época da escravidão, comércio exterior e indus-trialização, demografia, história empresarial etc.

A quantidade e a qualidade dos trabalhos surgidos no bojo desta in-flexão certamente nos possibilitam, hoje, reavaliar algumas das ideias centrais dos autores que, desde a década de 1930, se dedicaram a "pensar o Brasil". Mais ainda, tal esforço poderia nutrir-se dos recentes ganhos da historiografia internacional, que redundam em uma cada vez mais intensa vertebralização do conhecimento histórico. Assim, por exemplo, dificilmente se poderia retornar à economia colonial sem levar em conta uma estratégia interdisciplinar que colocasse frente a frente historiadores e antropólogos, contato fundamental para a dis-cussão de pautas como a natureza do mercado, o papel das hierarqui-as e da produção social das desigualdades etc. Do mesmo modo, a chamada "história vinda de baixo" permitiria redimensionar o papel dos cativos e dos "homens livres pobres" na própria consecução da eco-nomia escravista, rompendo com uma visão ainda marcadamente senhorial acerca das formas de reprodução desta última.

Dois exemplos podem ilustrar o que vimos dizendo. Se nos dete-mos nas formas de reprodução da hierarquia socioeconômica do Rio de Janeiro na passagem do século XVIII para o seguinte, nos defron-tamos com um movimento aparentemente paradoxal. Parte expressiva da elite empresarial mercantil, após duas gerações de contínua acu-mulação no mercado, tende a abandonar os seus negócios, passando

a investir em atividades rurais e rentistas, em geral bem menos lucrati-vas do que o comércio. A inteligibilidade de tal passagem somente pode ser apreendida quando consideramos que estes agentes vivem em uma sociedade onde a ascensão social liga-se fundamentalmente à aquisição de cerras e cativos – i.e., de bens que em última instância se referem ao prestígio. Observe-se que este movimento, ao gerar plantations, recria a própria economia escravista colonial.

Um segundo exemplo nos é dado pela comparação dos preços de cativos aparentados com os de escravos não-aparentados nos inven-tários post-mortem do meio rural fluminense entre 1790 e 1830. Ob-serva-se que o simples fato de estar Ligado a redes parentais de pri-meiro grau podia implicar a esterilização, pelo mercado, de parcela substancial do valor de cada um dos parentes escravos. A envergadu-ra de tal esterilização, porém, variava de acordo com a idade e, como tal, uma criança aparentada de 0 a 14 anos podia custar entre menos 1 j3 e menos 2/3 do que escravos solitários de sua faixa etária, ao mesmo tempo em que parentes adultos (de 15 a 40 anos) podiam valer de – 10% a +8% que seus pares etários não-aparentados. Per-cebe-se, assim, que no processo de formação de preços dos cativos e do próprio cálculo econômico senhorial interferiam não apenas as variáveis comumente indicadas pela historiografia (sexo, idade, estado físico, especialização profissional etc.), mas também aquelas relações sociais - no caso, o parentesco de primeiro grau - que contribuíam para o arrefecimento dos graus de tensão no interior da comunidade escrava, reproduzindo e alargando as possibilidades sociais de vida no cativeiro também.

São, em resumo, nestas possibilidades que se deve pensar quando se observa a assustadora retração da história econômica. O que, aliás, nos traz à lembrança certo filósofo, para quem renunciar a um conhe-cimento é permitir sua degradação em opinião.

Quanto a história social desde pelo menos a década de 1950, en-tretanto, a história social é reivindicada por diversos historiadores em sentido mais restrito, como abordagem capaz de recortar um campo específico de problemas a serem formulados à disciplina histórica. Mesmo antes disto, a expressão teve utilizações mais precisas, para além de todas se constituírem em oposição ao paradigma rankiano.

No espectro político oposto, o avanço das ideias socialistas e o crescimento do movimento operário levou, um pouco em toda parte e mais especificamente na Inglaterra, a que se desenvolvesse uma his-tória social do trabalho e do movimento socialista, frequentemente identificada simplesmente como "história social". Aqui é a oposição entre "individual" e "coletivo" que distingue a história social das abor-dagens anteriores. A ação política coletiva se constituiria em seu prin-cipal objeto.

Por último, sob o signo mais forte dos Annales, desenvolvia-se, desde a década de 1930, uma "história econômica e social". Apesar da maior ênfase na história econômica, nos primeiros anos da revista, a "psicologia coletiva" e as hierarquias e diferenciações sociais tam-bém encontravam-se presentes. A oposição à historiografia rankiana e

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a definição do social se construía, assim, a partir de uma prática histo-riográfica que afirmava a prioridade dos fenômenos coletivos sobre os indivíduos e das tendências a longo prazo sobre os eventos na expli-cação histórica, ou seja, que propunha a história como ciência social.

Foi nas décadas de 1950 e 1960, entretanto, que uma história soci-al, enquanto especialidade, tendeu a se constituir no interior desta nova postura historiográfica, que começava a se tornar hegemônica. Foram décadas marcadas, grosso modo, pelo apogeu dos estrutura-lismos (da antropologia estrutural a certas abordagens marxistas), pela euforia do uso da quantificação nas ciências sociais, pelos primeiros avanços da informática e pela explosão de tensões sociais que dificil-mente a comunidade dos historiadores podia continuar a ignorar.

A história econômica, a história demográfica e mesmo a história das mentalidades, que começava a se esboçar como especialidade, tendiam a desenvolver metodologias próprias, a se separar como dife-rentes níveis do real, com temporalidades específicas, porém todas inseridas na chamada "longa duração". Neste nível, concluiria o inven-tor da famosa expressão: "Os homens antes sofriam a história do que a faziam." É neste contexto que, sob a égide de Ernest Labrousse (até então o historiador do econômico, por excelência), se reivindica a história social como uma especialidade, com problemáticas e metodo-logias próprias. Formulavam-se, como problema central, os modos de constituição dos atores históricos coletivos, "as classes, os grupos sociais, as categorias sócio profissionais", e de suas relações que conformavam historicamente as estruturas sociais. As relações entre estrutura (com ênfase na análise das posições e hierarquias sociais), conjuntura e comportamento social definiriam, assim, o campo especí-fico a ser recortado.

Por outro lado, desde pelo menos a década de 1960, as tradições historiográficas anglo-saxônicas, ainda bastante apegadas, no mundo acadêmico, à historiografia tradicional, sofrem mais fortemente o im-pacto dos Annales, em seu sentido amplo, abrindo os muros da disci-plina histórica para as demais ciências sociais, especialmente a socio-logia e a antropologia social. Seja pela tradição inglesa em história social do trabalho, seja pela influência da sociologia funcionalista no mundo acadêmico norte-americano, a história social se constitui no mundo anglo-saxão como campo específico da disciplina histórica, que se definia pelo tipo de problemática que formulava. Os grupos sociais e os processos determinantes e resultantes de suas relações também estão no cerne desses problemas, neste caso com uma ênfase ainda mais explícita no estudo dos comportamentos e da dinâmica social.

A história social em sentido restrito surgiria, assim, como aborda-gem que buscava formular problemas históricos específicos quanto ao comportamento e às relações entro os diversos grupos sociais. Formu-lava, para tanto, primeiramente, problemas relativos à explicitação dos critérios usados pelo historiador na delimitação desses grupos. As discussões sobre a operacionalidade dos conceitos de classe social (numa perspectiva marxista) e de estamentos sociais (numa perspecti-va weberiana) na análise histórica da sociedade francesa do

Antigo Regime, e na Revolução Francesa em particular, tenderam a monopolizar as discussões teóricas em história social na França, na década de 1960.

A história social recolocava como questão nos anos 60, no auge das abordagens estruturalistas, o papel da ação humana na história e, pour cause, o problema das durações. Ao se formular como problema o comportamento humano, no estudo das migrações, da mobilidade social, das estratégias de preservação de fortunas ou status, das gre-ves o ou do protesto popular, o tempo da experiência e do vivido (as conjunturas, na perspectiva francesa) se impunha aos pesquisadores. Esta postura levava o historiador a privilegiar durações mais curtas, em relação às abordagens econômicas, demográficas ou das mentali-dades, sem que estas deixassem de compor-Ihe um campo de refe-rência. Adeline Daumard enfatizava, em 1965, o compromisso da his-tória social, em sentido estrito, com o tempo biológico, de uma vida a três gerações, "pois cada indivíduo se beneficia com a experiência de seus pais e participa da de seus filhos". Este tipo de abordagem crono-lógica prevalecia também na tradição behaviorista norte-americana ou na ênfase processualista das abordagens marxistas inglesas.

Do ponto de vista metodológico, a história social, nas décadas de 1960 e 1970, esteve fortemente marcada, como de resto toda a histo-riografia, por uma crescente sofisticação de métodos quantitativos para a análise das fontes históricas.

A demografia histórica, tomada como método pela história social, daria dimensão até então inusitada à história da família. O método de reconstituição de famílias, de Louis Henry, a partir dos registros paro-quiais na França, e o de análise da composição das unidades domés-ticas (househohls), de Peter Lasletc (grupo de Cambridge), na Inglater-ra, mesmo que posteriormente questionados em seus resultados, abririam questões fundamentais para a posterior evolução da discipli-na. As motivações culturais ou econômicas para o casamento tardio, o acesso a métodos anticoncepcionais nas sociedades pré-industriais, as discussões sobre a importância de se considerar o ciclo da vida familiar e as relações de parentesco no entendimento dos significados das unidades domésticas, as relações entre família e sexualidade e os diferentes enfoques teóricos e metodológicos que se desenvolveram a partir destas questões s indubitavelmente tributários da análise crítica daqueles resultados.

No Brasil, a historiografia rankiana lançou frágeis bases na univer-sidade. Os institutos históricos e geográficos foram o seu campo privi-legiado de atuação. Por volta da década de 1930, fora também dos muros acadêmicos, desenvolver-se-iam as abordagens historiográficas clássicas que, no caso brasileiro, se oporiam à historiografia tradi-cional.

Ao contrário da tradição europeia, aqui as ciências sociais or-ganizaram-se pioneiramente no mundo acadêmico, especialmente na Universidade de São Paulo. Neste processo, pode-se dizer que foram as ciências sociais que se abriram para a história e que a profissionali-zação do historiador, nas universidades brasileiras, se fez fortemente

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marcada pela influência das abordagens econômicas e sociológicas, predominantes na década de 1960 (neste sentido a historiografia uni-versitária no Brasil já nasceria "nova"). É marcante a influência da história econômica e social, à maneira dos Annales, nas abordagens adotadas pelos historiadores das décadas de 1950 e 1960, especial-mente na Universidade de São Paulo.

Temática e teoricamente, a história social em sentido restrito, (qua-se totalmente escrita por sociólogos) nasceria no Brasil, criativamente sintonizada com as discussões que se desenvolviam em nível interna-cional. Em torno de Florestan Fernandes, a chamada Escola Socioló-gica Paulista desenvolveria, entre outros temas, o primeiro conjunto de trabalhos acadêmicos voltado para uma história social do negro e da escravidão.

Já a história da família definiu-se como campo específico no Brasil ~ a partir da década de 1980. Confluíram para tanto as pesquisas em demografia histórica-influenciadas tanto pelas técnicas francesas de reconstituição de família, quanto pelas análises de household, segun-do o grupo de Cambridge - e a exploração do tema por sociólogos e antropólogos, nas décadas de 1960 e 1970. Seguindo de perto as tendências mais gerais da história social pós anos 70, a história da família se constitui no Brasil, tentando responder aos impasses encon-trados por ambas as abordagens. Deste modo, apesar da forte pre-sença da demografia como base metodológica na maioria dos traba-lhos na área, as questões mais gerais, referentes à nupcialidade, fe-cundidade, equilíbrio entre os sexos e estrutura familiar, foram sendo progressivamente substituídas por temas que exigiam um tratamento socialmente diferenciado e que implicavam um nível bem menor de agregação dos dados, ou mesmo questionavam o lugar central das fontes demográficas. A pluralidade social dos arranjos familiares, das concepções de família e das estratégias adotadas pelos grupos famili-ares passou a ser priorizada em relação às generalizações teóricas predominantes nos modelos anteriores. A expansão das temáticas e abordagens já constituíram subcampos, como a família escrava, ou novas áreas de especialização, com perfil autônomo, como a história da mulher ou da sexualidade.

A simples constatação demográfica da família escrava, do ponto de vista biológico ou legal, implicou necessariamente uma reavaliação das repetidas afirmações em relação à inexistência de relações fa-miliares entre os cativos brasileiros, em virtude do padrão de tráfico de escravos e da própria essência da condição cativa. As pesquisas de-mográficas têm avançado ainda na configuração das condições sociais diferenciadas de acesso às relações familiares, pelo menos do ponto de vista legal, que seriam especialmente acessíveis às mulheres, nos grandes plantéis. Têm ainda esclarecido sobre a inter-relação do cál-culo senhorial e da ação dos próprios escravos na configuração de-mográfica da empresa escravista.

Num campo mais vasto ou talvez mais artificialmente construído, poderíamos reunir as pesquisas que se voltam para uma análise das tensões específicas aos processos de modernização da sociedade

brasileira desde o século XIX, especialmente em relação à experiência da vida urbana. Uma tendência revisionista em relação às abordagens sociológicas da década de 1960, referentes ao movimento operário e à noção de marginalidade social, no contexto urbano, pode ser aventada como ponto comum na abordagem conjunta destes trabalhos. Sob este pano de fundo, podem-se reunir desde pesquisas em história social do trabalho e da urbanização, em sentido clássico, até as formu-lações mais recentes relativas à vida cotidiana, às identidades sociais, ao controle social e à cidadania, no espaço urbano. Especialmente na década de 1980, grande parte destes trabalhos tenderam a se concen-trar na Primeira República e na cidade do Rio de Janeiro. Uma redu-ção da escala de análise e uma aproximação com a antropologia é característica comum à grande parte da produção assim agregada.

História e poder são como irmãos siameses - separá-los é difícil; olhar para um sem perceber a presença do outro é quase impossível. A história da humanidade deve neste caso ter presentes estas duas maneiras de ver a questão das relações entre a história e o poder: há um olhar que busca detectar e analisar as muitas formas que revelam ~ a presença do poder na própria história; mas existe um outro olhar que indaga dos inúmeros mecanismos e artimanhas através dos quais o poder se manifesta na produção do conhecimento histórico. Na ver-dade, porém, a historiografia costuma ser muito clara quando se trata do primeiro olhar mas é quase sempre imprecisa ou cega quanto ao segundo.

O tema “poder” admite assim duas leituras opostas mas comple-mentares: o poder visco como objeto da investigação/produção históri-ca e o poder enquanto agente instrumentalizador da própria oficina da história, com o que o conhecimento histórico se converte em seu obje-to. Preliminarmente há que considerar tanto o conceito de história como o de poder. Dada a conhecida polissemia do termo história, convém esclarecer que iremos aqui empregá-lo com o sentido de 5istória-disciplina, salvo indicação em contrário. Já o termo poder não é só mais problemático do ponto de vista conceitual como carrega consigo na historiografia, um outro complicador - a frequência com que os historiadores se referem à política ou ao político como equivalentes (sinônimos) de poder. Temos uma dificuldade adicional cuja análise transcende nossos limites atuais.

A partir de 1945 a história política tradicional foi o alvo predileto de diversas correntes teórico-metodológicas: Annales, marxismo(s), estru-turalismo(s), quantitativismo(s) etc. No entanto, é necessário não es-quecer duas coisas: as novas perspectivas abertas ao estudo histórico da política e do poder e o caráter relativo do declínio da história políti-ca tradicional. Das novas perspectivas em suas relações com as ten-dências teórico-metodológicas trataremos mais adiante; quanto à rela-tivização, necessária, da noção de "declínio", pensamos que é possí-vel entendê-la de duas maneiras: como dado historiográfico e como fato editorial.

O declínio da história política remete basicamente à historiografia dos Annales do pós-guerra, convém então tentar aperceber-lhe os

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traços mais incisivos. A Escola dos Anais, no que toca à questão do político, foi palco de tendências tão diversas como o marxismo, o es-truturalismo, o quantitativismo e, mais recentemente, o weberianismo. Do marxismo os Annales incorporaram alguns termos e conceitos gerais mas se viram em dificuldades cada vez maiores, sobretudo na "era braudeliana", para justificar uma produção histórica hostil ou, no mínimo, omissa em relação ao político - a começar pelo conceito de luta de classes. Decorreu certamente desse problema a posição algo marginal ou excêntrica (em relação aos Anaalrs) de historiadores co-mo Vilar, Soboul e Vovelle, entre outros.

A nouvelle histoire, tal como foi consagrada nos anos 70, relegou a história política a um lugar absolutamente secundário. Com efeito, se a "primeira geração" dos Annales havia estigmatizado a história política como sinônimo de história factual - événementielle -, a "segunda gera-ção", a de 8raudel e seus discípulos, relegou os fatos políticos ao "tempo curto". Definindo-se, em 1971, como "estrutural", a nouvelle histoire acentuou mais ainda suas distâncias quanto à história política. Afinal, uma história centrada na dialética da duração, em contato com a linguística, semiótica, psicanálise e teoria literária, e privilegiando as abordagens estruturais segundo métodos seriais, não poderia senão encarar como não-científica e não-histórica a história política tradi-cional.

A perspectiva marxista do político em geral e da história política, em particular, foi sempre, desde Marx e Engels, oposta aos pressu-postos e características da história política tradicional. As bases teóri-cas J de cal oposição são bem conhecidas, bastando mencionar aqui que a visão marxista foi decisiva, ainda no século XIX, ao denunciar os três ídolos principais daquela história política: uma noção de político/ política desvinculada da totalidade do processo histórico e presa fácil da ideologia; o caráter voluntarista de uma história baseada em ideias e ações de alguns poucos agentes históricos individuais; um discurso histórico-narrativo, cronológico e linear construído em função de uma Lepistemologia empirista.

A teoria marxista da história ficara mais ou menos excluída dos principais centros de produção histórica do Ocidente até 1945, salvo, evidentemente, o caso soviético, e, talvez, o francês. O primeiro é por demais conhecido. Quanto ao segundo, seu território específico foi o da historiografia da Revolução Francesa. Aqui, conforme uma certa tradição que habituou-se a identificar como sinônimos marxismo e interpretações de esquerda, tornou-se corrente rotular de marxistas historiador tão diferentes como Jaurès, Lefebvre e o próprio Labrous-se.

Por outro lado é importante ressaltar a importância que dentro da “oficina da história”, as ideias produzem um efeito de sentido um tanto ambíguo toda vez que tentamos associá-las à história - que vem a ser exatamente a história das ideias? Uma disciplina que tem as ideias como seu objeto? Ou se trata de investigar a existência c trajetória das ideias, de algumas ideias apenas, quem sabe da própria história?

Como disciplina histórica, a história das ideias, apesar de sua im-ponente longevidade e prestígio, teve contra si dois grandes ad-versários: a tradição marxista e a historiografia francesa dos Annales. A má vontade desta, talvez a mais difundida entre nós, foi sintetizada desde sempre por Lucien Febvre ao se referir a uma "história de ideias descarnadas". Além dessas inimizades bastante conhecidas, a história das ideias luta contra a ubiquidade de seu próprio objeto - as ideias - que, em termos acadêmico-disciplinares, é reivindicado também pela história da filosofia e por diversas outras disciplinas das ciências hu-manas.

Na atualidade, a história das ideias constitui apenas uma dentre as várias disciplinas históricas que possuem como objeto comum, mas não necessariamente exclusivo, as ideias. Segundo Chartier, "em França, a história das ideias praticamente não existe, nem como no-ção, nem como disciplina...e a história intelectual parece ter chegado demasiado tarde". Tal situação já fora exposta por Ehrard na década de 1960, e sua evidência mais incisiva está no conteúdo das diversas publicações dedicadas aos temas da nouvelle histoìre - nenhum deles menciona sequer a história das ideias.zA historiografia francesa con-templa coisas parecidas como a história social das ideias, ou a história sociocultural, além, é claro, da história das mentalidades.

Não será portanto na historiografia francesa contemporânea que se poderá encontrar a história das ideias mas, sim, em outras tradições historiográficas, como a germânica ou a italiana e, principalmente, a anglo-saxônia (britânica e norte-americana). O historiador norte--americano Robert Darnton, por exemplo, descreve quatro tipos de disciplinas que de alguma forma estudam as ideias:' (1) a história das ideias propriamente dita-o estudo do pensamento sistemático, ou seja, as ideias geralmente expostas em tratados filosóficos; (2) a história intelectual - o estudo do pensamento informal, climas de opinião, mo-vimentos literários; (3) a história social das ideias - o estudo das ideo-logias e da difusão das ideias; (4) a história cultural - o estudo da cultu-ra no sentido antropológico, inclusive as concepções ou visões de mundo e as mentalidades.

A noção ou conceito tradicional de ideia é essencialmente repre-sentacional, imagético, como o consignam aliás os dicionários: "repre-sentação mental de um objeto ou fato". A perspectiva crítica contem-porânea' empenhou-se em demonstrar a continuidade desse nosso "aprisionamento intelectual às metáforas oculares gregas". De fato, para os gregos, era o "olho da mente" quem (re)apresentava os dados empíricos do

"mundo exterior" ao Jogos ou intelecto (pensamento), única forma racional de passagem do conhecimento particular, na verdade um não-conhecimento, à contemplação dos conceitos universais - teoria - este sim um conhecimento verdadeiro. Prosseguindo nesse itinerário, cons-tata-se que coube aos "modernos", sobretudo a Descartes, instaurar o princípio da desconfiança intelectual quanto à possibilidade de se conhecer o "existente" a partir dos dados sensíveis. Assim, posta em "dúvida" a "realidade do mundo exterior", postulou-se a existência de

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um outro "real", uma espécie de "duplo" daquele real empírico.'' Dessa forma, o "real" percebido sensorialmente seria somente um "indício" ou "signo" daquele segundo "real" que se situa além das "aparências" do primeiro. Mas essa segunda realidade, a única verdadeira, somente é acessível ao olhar do intelecto do sujeito pensante -"o sujeito de todo conhecimento"- a mente ou consciência.

Nos séculos XVII e XVIII cristalizou-se o dualismo essencial entre corpo e espírito, tanto no raciocínio empirista e indutivo, quanto no idealista e dedutivo, pois em ambos é sempre ao "tribunal da mente, visto como espelho da natureza" que cabe proceder ao reconhecimen-to das ideias - dizer de seu caráter verdadeiro, ou não, enquanto re-presentações reais dos fenômenos. Reside aí, portanto, aquele caráter "representacional" implicado às ideias, assim como deriva daí a fun-ção-chave atribuída desde então à epistemologia: a de ser, no dizer de Rorty, uma teoria dos fundamentos de todo conhecimento e de todas as representações.

A historiografia do século XIX desenvolveu-se segundo dois per-cursos metodológicos aos quais Gusdorf' denomina de "duas pers-pectivas de inteligibilidade" das ciências humanas em geral: a perspec-tiva "discursiva e explicativa" e a "compreensiva c hiscoricista". A pri-meira visa a produzir um saber organizado segundo o modelo das "ciências da matéria" - relações explicativas no seio de uma realidade distribuída num espaço e tempo racionais. Seu ideal de "positividade" tem por objetivo chegar a leis de tipo matemático. Logo, é necessário que as ciências do homem sejam objetivas e, se possível, experimen-tais - quer dizer, "ciências de coisas". A segunda, típica das ciências filológicas e históricas, sublinha no homem, para além do organismo e da espécie, o ser pensante, falante e capaz de agir sobre os acon-tecimentos. Logo, é insuficiente a mera "observação objetiva" pois esta não pode captar o sentido de uma fala ou de uma ação. Para que tal sentido se torne manifesto é necessária uma "interpretação compreen-siva" que considere os contextos interno e externo da mentalidade do sujeito. É o que no final do século seria sintetizado por Dilthey (1883): "Explicamos a natureza, mas compreendemos o homem."

Em função desses pressupostos metodológicos mas, em certa medida, harmonizando-os com a tradição da historiografia, dividimos nosso tema, quanto ao século XlX, em dois períodos: o primeiro, de começo do século até mais ou menos 1870; o segundo, daí até o co-meço ~ do século XX.

O primeiro caracteriza-se pela oposição entre o romancismo en-quanto crítica do iluminismo - e o positivismo - como continuação, em novas bases do pensamento iluminista. Segundo Topolslry, as duas "escolas" historiográficas - a romântica e a positivista compartilham, se bem que em graus diversos e de formas variadas, o que ele intitula "modelo de reflexão erudita e genética".

Do ponto de vista historiográfico é inegável que a partir desses, princípios o romantismo produziu desenvolvimentos originais, quer em relação à "história-matéria", quer à "história-disciplina".

A visão romântica da história real consubstanciou-se em sua con-cepção dessa história como "singular coletivo, temporalizado e ima-nente, racional e universal, dotado de uma dinâmica própria e em processo de constante aceleração". O idealismo romântico produziu as filosofias especulativas da história de Herder, Schilling, Fichte e, so-bretudo, Hegel. As ideias possuem agora uma existência real ou obje-tiva e se constituem em princípio constitutivo do devir histórico.

No campo do conhecimento histórico, o romantismo traduz a ' arti-culação, em termos de coexistência e conflito, entre a especulação filosófica e as exigências eruditas da crítica documental, objetivando a verdade histórica. Síntese e tipificação exemplar das ambiguidades dessa historiografia romântica, a escola histórica alemã - de Humboldt, Niebuht e Ranke - condensa e concretiza, no dizer do citado Gusdorf um "paradoxo epistemológico", ou seja, uma "epistemologia, histórica que se desenvolve em oposição à explicação discursiva e redutora".

A historiografia romântica desenvolveu-se em todos os países eu-ropeus e assumiu em cada um deles características específicas. Na França e na Grã-Bretanha, por exemplo, assim como nos países ibéri-cos, essa historiografia teve fortes conotações político-ideológicas, daí o hábito de subdividi-la em duas vertentes: uma conservadora, mais tradicionalista, e outra dita "progressista". No entanto, em relação ao que nos interessa-a história das ideias - essa historiografia romântica apenas realçou o papel de determinadas ideias no acontecer histórico, mas não levou a uma historiografia específica, nem tampouco produ-ziu uma concepção estruturada e coerente sobre as ideias e seu papel na história e no trabalho do historiador, salvo no caso germânico. Na realidade, França e Grã-Bretanha foram cenários privilegiados do desenvolvimento da perspectiva discursiva e explicativa já referida. Surgida ao mesmo tempo que a última fase da historiografia romântica (1830-1850), esta nova perspectiva cresceu até 1870 e a partir de então se tornou hegemônica. Dita "positivista", essa historiografia foi na realidade evolucionista e cientista, e compreendeu de fato três grandes vertentes, em função de suas diferenças quanto à natureza da história e do conhecimento histórico: (1) a que se baseou no positi-vismo propriamente dito - de Comte e Stuart Mill -, com características mais empiristas na Grã-Bretanha e mais cartesianas e algo espiritua-listas na França: (2) o evolucionismo darwinista, exemplificado por Spencer e Buckle; (3) o materialismo histórico de Marx e Engels, no qual a dialética se propõe como superação tanto do positivismo como do idealismo.

O advento de uma historiografia cientista representou também uma ruptura com a situação descrita mais carde por Langlois e Seignobos: "Até por volta de 1850, a história continuou a ser, para os historiadores e para o público, um gênero literário."

No século XX, a historiografia das "ideias" diversificou-se bastante no século atual. Para abrangê-la numa síntese é inevitável a introdu-ção de algum tipo de periodização e classificação. Tentamos delimitar algumas épocas ou etapas mais gerais e, a seguir, definir ou identificar as correntes ou tendências teórico-metodológicas mais importantes

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em cada uma delas: (1) 1890-1929/30; (2) 1929/30-1960/70; (3) 1960/701990/95.

O período que se inicia aproximadamente em 1890 tem sido rotula-do de maneiras as mais variadas: Hughes, de olho no conjunto da vida intelectual de então, denomina-o de época da "revolta antipositivista"; o já mencionado Topolsky, atento exclusivamente às "formas de refle-xão historiográfica", associa-o ao advento do "modelo de reflexão estrutural ou integral".

"Revolta antipositivista". Esta expressão traduz, na opinião de Hughes, o elemento comum presente nas diversas correntes intelec-tuais de então. Outras denominações criadas com o mesmo fim "neo-romantismo", "neo-historicismo", "anti-intelectualismo", "irracionalismo" etc. - seriam menos precisas e abrangentes, já que estão presas às características das tradições histórico-culturais de ambientes intelectu-ais específicos. O caráter "antipositivista", pelo contrário, indica que o alvo comum, acima dessas diferenças, eram sempre as "teorias filosó-ficas e sociais típicas dos séculos XVIII e XIX", quer dizer, em síntese: o "pensamento iluminista".

Todavia, a crítica antipositivista não era necessariamente "irra-cionalista". Para a maioria desses críticos, ela era exatamente o opos-to: a razão é que precisava ser defendida e resgatada, tanto quanto o livre-arbítrio, a vontade, o papel do indivíduo, o valor da consciência etc., em face dos determinismos de todo tipo. Mais uma vez, não era a razão, entidade abstrata, que se rejeitava mas sim um certo tipo ou uma concepção de razão - a razão iluminista.

A "revolta antipositivista", sublinha Hughes, foi levada a cabo por in-telectuais, burgueses em sua grande maioria, que rejeitavam um "posi-tivismo materialista" cuja expressão aberrante e perigosa era com toda a certeza o marxismo - "a última e a mais perigosa de todas as ideolo-gias abstratas e pseudocientíficas que desde princípios do Setecentos fascinaram os intelectuais europeus".

Até 1929/30, ao lado da historiografia "positivista" dedicada à pro-dução de múltiplas "histórias das ideias", setorizadas de acordo com as variadas disciplinas especializadas então existentes, expandiu-se o prestígio do historicismo, quer na sua vertente germânica, quer na italiana, em função da difusão dos textos de Dilthey e Groce, com destaque também para as obras do espanhol Orcega y Gasset.

Já no período de 1929/30; /1960/70, é necessário não perder de vista as continuidades e permanências historiográficas. Prosseguiu, e prosseguiria por muito tempo ainda, do ponto de vista quantitativo da produção e da influência político-institucional, a hegemonia "positivis-ta", fato este que tende a ser escamoteado por algumas visões retros-pectivas triunfalistas. No entanto, mais que essa "sobrevida" do positi-vismo, preocupam-se os círculos intelectuais de então com as rela-ções complexas do historicismo com o marxismo. No fundo, tratava-se ainda do antagonismo entre o idealismo (kantiano ou hegeliano) e o materialismo (marxista).

O historicismo e o marxismo eram já os interlocutores, ou adver-sários, com ou contra os quais as novas propostas historiográficas se sentiam forçadas a assumir suas posições, muitas vezes não isentas de inúmeras ambiguidades. Quanto ao positivismo, bem, este era o "saco de pancada" a respeito do qual todos estavam praticamente de acordo em bater, enquanto se apropriavam dos seus métodos de críti-ca documental.

O historicismo: Como já adiantamos, o historicismo valorizou uma concepção de história das ideias distinta das outras histórias. A ques-tão, hoje, é que os autores que se empenharam nessa tarefa, era quando muito, filósofos-historiadores em sua maioria. Além disso, o destaque por eles concedido às ideias revestiu-se de evidente unilate-ralidade, ou por preconizarem uma história imanente das ideias, isco é, elaborada unicamente a partir da gênese, evolução, irradiação e essência das próprias ideias, ou por assumirem uma perspectiva "cul-turalista" individualizada e idealista a respeito do próprio conceito de cultura.

Tratava-se de apreender, neste caso, a estrutura ou configuração geral e típica de cada realidade/época histórico-cultural e, como é fácil deduzir, caberia às ideias fornecer essa configuração que "faz de cada época algo de único" e constitui ao mesmo tempo o vetor explicativo de sua cultura, quer dizer, sua "visão de mundo" ou Weltanschaung. Em Meinecke, por exemplo, essa concepção "expressiva" é clara: as relações entre as ideias, seus conflitos, refletem e expressam os con-flitos políticos e sociais de cada época histórica. Em Cassirer são as relações entre as ideias que permitem ao historiador conhecer a "fe-nomenologia do espírito de uma época".

O marxismo: Influiu sobre os rumos da história das ideias em sen-tidos geralmente contraditórios e às vezes opostos. Tal fato foi a con-sequência inevitável do percurso histórico das ideias marxistas e da sua progressiva divisão e subdivisão em diversas correntes e tendên-cias, desde o período entre-guerras.

A realidade desse processo de estilhaçamento das concepções marxistas é claramente perceptível nas próprias formas utilizadas pelos historiadores para o seu estudo. Assim, antes de 1914/18 pre-domina o critério geracional na literatura sobre o assunto, como o faz, por exemplo, Anderson, ao analisar a "primeira geração" de políticos e pensadores marxistas (Plekhanov, Kautski, Mehring, Labriola) e a "segunda geração" (Rosa de Luxemburgo, Bauer, Hilferding, Trotski, Lenin e Bukharin). No entender de Fontana, a conjuntura histórica correspondente à primeira geração acentuou o processo de "desnatu-ralização do pensamento histórico marxista", ao passo que a segunda geração tentou ao mesmo tempo "decifrar as leis fundamentais do capitalismo" em seu estágio imperialista e produzir uma teoria política marxista. Percebe-se então que até o término da Primeira Guerra Mundial não houve espaço para uma abordagem específica das ideias ou mesmo da cultura entre os marxistas.

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A partir de 1918 os autores não mais se referem a "gerações" r mas, sim, à diferenciação cada vez maior entre o marxismo soviético ' e o "marxismo ocidental".

A parte final do período – pós 45 – sobretudo as décadas de 1950 e 1960, caracteriza-se pela convivência do "velho" com o "novo" na historiografia das ideias. Persiste a maneira tradicional, "positivisra", de historiar as ideias; há uma certa revivescência historicista em al-guns países; prosseguem seu curso, nos EUA, a New History e a His-tory of Ideas. As novidades ficam por conta do marxismo e da École-des Annaler, a começar pelas relações entre eles, inclusive os pontos de convergência entre o "materialismo histórico e a escola francesa contemporânea" detectadas por Cardoso e Brignolli.

O período de 1960/70 – 1990/95 foi o período no qual a história das ideias renovou-se e consolidou-se em função das novas tendências então presentes na historiografia ocidental. Tal processo de renovação e consolidação fez-se acompanhar também de uma relativa diversifi-cação disciplinar: nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha ela se tradu-ziu no aparecimento da New Intelectual History com suas várias ten-dências metodológicas, enquanto que na França, mas também nos EUA, surgiu a História Social das Ideias ou História Sociocultural. Ain-da na França, as ideias ocupam lugar privilegiado na História das Men-talidades" ou, como propõe Chartier, na "História Cultural".

Todavia, não se deve exagerar o lado positivo deste balanço. Tal como as outras áreas historiográficas, a das ideias também foi atingida por propostas e questionamentos "pós-modernos"- pós-estruturalistas e pós-marxistas oriundos de campos de conhecimento vizinhos: filoso-fia, linguística, teoria literária. No caso da história das ideias o impacto desses novos desafios foi especialmente profundo em virtude da pró-pria natureza de seu objeto.

Reconstituir a história da história das ideias no período em foco I pressupõe, ao nosso ver, duas espécies de abordagem: uma analítica e outra classificatória ou tipológica. Desta última iremos tratar mais à frente, utilizando de forma resumida o esquema elaborado por Krieger. Quanto à primeira, nosso ponto de vista está centrado na identificação dos problemas teórico-metodológicos presentes tanto nas diferen-ciações disciplinares como nas tipologias classificatórias.

Entendemos que tais problemas constituam a substância dos deba-tes que envolvem ainda hoje, predeterminando-as, as próprias condi-ções de possibilidade de uma história das ideias. Temos aí, em primei-ro lugar, as abordagens e/ou tendências historiográficas que trabalham com algum tipo de pressuposto a respeito das relações, entendidas neste caso como reais ou necessárias, entre o universo das ideias - dito intelectual- e o universo do mundo social - a sociedade. Temos, em segundo lugar, as abordagens e/ou tendências que rejeitam expli-citamente, ou ignoram na prática, o pressuposto anterior e trabalham as ideias exclusivamente em função de seu suporte textual, como discurso ou mensagem, a partir de pressupostos linguísticos, herme-nêuticos ou literários.

No primeiro tipo, existe uma diferenciação mais ou menos pro-funda, conforme o caso, entre os historiadores que trabalham com algum conceito de ideologia e aqueles para os quais este conceito deve ser descartado ou, pelo menos, esvaziado de suas conotações (marxistas) tradicionais. A primeira perspectiva, mais antiga, está pre-sente com diversas variantes no estruturalismo genético de Lucien Goldmann, no "filão" gramsciano, no estruturalismo marxista de Al-thusser e Poulantzas, na sociologia histórica de Skocpol (e de Man-nheim, em parte), no "marxismo britânico" de Thompson, Hill, Hobs-bawm e, mais recentemente, nos trabalhos de Jameson, nos Estados Unidos.

Ainda neste mesmo grupo, embora mais discretamente, as ideolo-gias também estão presentes no horizonte de alguns historiadores annalistes como Mandrou, Duby, Vovelle, Ehrard, Starobinski ete, com diferenças, é certo, entre uns e outros e quase sempre sem aquelas marcas mais típicas do marxismo.

Já no caso dos historiadores que se abstêm de empregar o concei-to de ideologia, ou o utilizam apenas episódica e marginalmente, não é tanto a noção de "mentalidade" que preferem, mas sim a de práticas e representações sociais ou coletivas. O conceito-chave é então o de representação (Chartier) e as ideias/ideologias ingressam na ordem dos processos simbólicos (Bourdieu) - a história das ideias cede lugar à história sociocultural, o mesmo ocorrendo com a das mentalidades.

O segundo tipo antes enunciado reveste-se de características bas-tante distintas. No caso específico da história das ideias, seu ponto de partida tem um nome: Michel Foucault. Se é fácil demonstrar o caráter simplista desta visão de que rodo começou com Foucault- e para tanto seria suficiente citar as reflexões de Roland Barthes - parece estar fora de discussão o fato essencial: foi com Foucault que tiveram início muitas das "novidades" que ainda encantam ou irritam os historiadores das ideias.

No início dos anos 70 entrecruzam-se variadas tendências de im-portância para a história das ideias. Ao lado da influência crescente de Foucault agora na sua segunda fase, havia o prestígio do "marxismo estrutural" de L. Althusser e seus epígonos franceses e anglo-saxônios, mas havia também a opção da nouvelle histoire por uma "história estrutural". Enquanto isso, no campo da linguística e da teoria da comunicação buscava-se explicar ou definir as relações entre a história e a linguística, em geral a partir de fundamentos marxistas, como nos casos de R. Robin, fi M. Pêcheux,'t o já citado E. Verón, e vários outros. A redescoberta dos trabalhos de Bakhtini reforçou essas tendências em franca oposição às correntes estruturalistas dominantes na linguística e na teoria literária de raízes saussureanas ou cho-mskyanas.

Aos poucos, no entanto, expandiu-se o prestígio das concepções rendentes a encarar o texto e/ou o discurso como uma realidade pró-pria e autônoma em relação às suas condições não-textuais de produ-ção. A interpretação do texto e a análise das práticas discursivas nele presentes passaram ao primeiro plano em detrimento das indagações

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tradicionalmente endereçadas ao autor, meio social e época histórica. Afirmou-se também a nova fase de prestígio da hermenêutica, segun-do várias modalidades, destacando-se os trabalhos de Gadamer e Ri-coeur.

Krieger, no entanto, tal como todos que abordam o mesmo tema, reconhece a enorme variedade de concepções e tendências que se abrigam sob o rótulo de Nova História Intelectual. Em comum ficariam apenas a certeza de que as ideias desempenham um "papel diferen-te", possuem uma "relevância social" específica e a descontinuidade constitui um pressuposto básico.

Contudo, ao elaborar sua tipologia, o mesmo Krieger oferece-nos um quadro cujos parâmetros são os mesmos por nós adotados ante-riormente: a diferenciação progressiva entre abordagens que baseiam ou reduzem as ideias às suas condições sociais (históricas) de produ-ção e vigência, e as que trabalham segundo o pressuposto da auto-nomia ou até da independência das ideias. A tipologia de Krieger com-preende três grandes grupos: (1) o grupo dos historiadores "sócio intelectuais"; (2) o grupo dos historiadores que acoplam ou justapõem ideias a algum tipo de contextualização; (3) os historiadores "internalis-tas" que recusam ou ignoram a necessidade ou importância de refe-rências "extratextuais" para o estudo das ideias.

O primeiro grupo, segundo Krieger, compreende as novas orien-tações em "história sócio intelectual". Dando prioridade ao "popular", seus historiadores "identificam as ideias e atitudes como produtos de uma função social distinta', reconhecendo uma certa autonomia ao papel histórico das ideias e a necessidade de métodos históricos es-pecíficos para sua compreensão, sem que isto signifique porém abor-dar as ideias somente como ideias. Os principais historiadores deste grupo são os franceses da "terceira geração" dos Anrrales, como Chartier, Revel e Furet. O norte-americano Darnton e o inglês Burke também se incluiriam neste grupo. Talvez se possa aqui incluir, se bem que com algumas ressalvas, a "micro história" de Ginzburg, Levi e outros historiadores italianos e espanhóis.

Teoricamente, as principais referências deste grupo são textos de Foucault, Norbert Elias (e Weber), C. Geertz, M. Sahlins, P. Bourdieu e Michel de Certeau.

O segundo grupo distingue "ideias" e "circunstâncias compor-tamentais" como sendo dois níveis autônomos da realidade histórica, cujas relações constituem, na prática, o problema que o historiador deve resolver. Entre nós o exemplo mais conhecido é o de Peter Gay e suas tentativas de associar psicanálise e história.

O terceiro grupo compreende as tendências que se situam ao mesmo tempo entre as mais antigas e tradicionais e as mais recentes e inovadoras no campo da história das ideias. Apesar de suas incontá-veis diferenças, essas tendências expressam um mesmo e antigo ideal: o de uma história das ideias em si mesmas que só admita como contexto uma vaga noção de "universo intelectual". Tornou-se habitual denominar "internalista" a esse grupo de teorias de essência imanen-

tista. Sua novidade consiste na incorporação da noção de "desconti-nuidade" e do conceito de "texto/discurso" além de um mal contido desprezo tipicamente "pós-moderno" em relação à história.

A "internalização" constitui um pressuposto dos mais complicados para o historiador das ideias, pois é das mais problemáticas a tarefa de se pretender escrever história e ao mesmo tempo omitir o contexto social e as cadeias ou sequências transepocais das próprias ideias. Na verdade, a questão-chave é uma só: as concepções internalistas no campo da história das ideias derivam de teorizações geradas fora do território da história, ou seja, divorciadas do "ofício", por filósofos, linguistas, teóricos da literatura etc., cujas visões acerca da história raramente coincidem com a dos historiadores, principalmente quando se trata de analisar/criticar a "prática da história".

Todavia, apesar dessas diferenças, foram muitos os historiadores que se deixaram encantar e levar pelas novidades "extraterritoriais". Alguns, em consequência, escreveriam histórias das ideias que de "história" só conservam o nome. Outros, no entanto, embora "inter-nalistas", mantiveram e mantêm vivos seus compromissos com a his-toricidade e se preocupam em "construir novas continuidades" e levan-tar novas "pontes para a experiência social humana", atentos às rela-ções temporais sincrônicas e/ou diacrônicas.

A noção de “internalismo" no âmbito da história intelectual e/ou ~ das ideias abrange extenso leque de tendências definidas em função dos métodos que utilizam ou dos tipos de objeto abordados.

Por outro lado, a utilização dos métodos linguísticos (quantitativos, analíticos, estruturais) ou sociolinguísticos poderá funcionar ou não, para o historiador que deles lança mão, como obstáculo epistemológi-co. É o que se percebe claramente em trabalhos tão diferentes como Language and materialism, de Coward e Ellis (1977), Language as social semáotic, de Halliday (1978), Politics, languageand time, de Pocock (197L) e, na França, os livros mais recentes de Todorov (1982, 1991) c Rancière (1992).

New historicism tipicamente anglo-saxônio, desenvolvido sobretudo na esfera dos estudos literários, esta tendência recoloca para a histó-ria literária a problemática do contexto histórico, especialmente na sua dimensão político-ideológica e social. Thomas (1991) e Veeser (1989) oferecem uma interessante visão de conjunto desta tendência na qual se destacam os trabalhos de Greenblat, Montrose e Gallagher, entre vários outros.

História das ideias, história intelectual, história cultural... são muitas e mais variadas ainda as tendências nelas presentes como se com-prova pelas respostas dadas à pergunta: "Que é história intelectual?", em Gardiner. Mas isto pouco importa, pois, hoje mais do que nunca, historiar as ideias é uma atividade em expansão dentro da oficina da história.

Já a definição de historiografia oferece alguns problemas. Tanto. Lapa como Fico e Polito atêm-se apenas às obras de história escritas por "historiadores profissionais", ou seja, com uma formação específi-

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ca em história. Temos muitas dúvidas em relação a este critério de uma maneira geral, mas pensamos que, no caso específico da histori-ografia das ideias, ele é inviável. Preferimos portanto acompanhar Iglésias e assim priorizar "obras de história" e "estudos sobre obras históricas", deixando em plano secundário a questão do "sujeito histo-riador". Tal opção significa então que no lugar da "formação historiado-ra" colocamos a intenção de se escrever um trabalho de história e o seu reconhecimento como tal pela comunidade intelectual em geral, e pela historiadora em particular.

Outra dificuldade a enfrentar é a do nosso próprio objeto, o qual é possível desdobrar em três tópicos: fontes, abordagens e compar-timentalizações disciplinares. No entanto, antes de resumirmos estes tópicos, convém aludir aqui à presença de dois fatores delonga dura-ção que talvez expliquem em parte essas dificuldades. Em primeiro lugar está o fato de não existir entre nós uma verdadeira tradição his-toriográfica na história das ideias e de sermos ainda um tanto pobres no campo da história intelectual. Em segundo lugar, convém lembrar que, ao longo do período que estamos tratando, uma grande parte da pesquisa e da escrita da história teve o marxismo como seu horizonte teórico e, como consequência, tivemos duas gerações de historiadores ' dispostos a refletir e indagar a respeito de "ideologias" e não propria-mente de "ideias".

A primeira dificuldade consiste na escassez de fontes informativas para uma síntese como esta. Mas além de poucas e sobretudo incom-pletas, elas nos informam muito pouco sobre o que queremos.

Com efeito, os levantamentos disponíveis dão prioridade à incidên-cia maior ou menor segundo os três períodos clássicos da história do Brasil, ou de acordo com "áreas temáticas" definidas em termos de história econômica, política, social, regional c cultural. Em ambos os casos, (portanto, é difícil saber por onde andam a história das ideias e a intelectual. Analisando-se os índices de algumas revistas e alguns catálogos de teses e dissertações defendidas, constata-se a dificulda-de enorme que se tem para descobrir as "ideias". No caso dos periódi-cos, por exemplo, as indexações temáticas trabalham quase sempre com uma concepção no mínimo simplista: são trabalhos sobre "ideias" os que ostentam esse termo no título respectivo. Para os catálogos, organizados em referência ora cronológica, ora alfabética, é necessá-rio adivinhar a partir dos títulos ou do conhecimento que se tem dos autores. Deveríamos recensear apenas aquelas dissertações e teses que fazem alguma referência às ideias nos respectivos títulos? Mas, e se apesar de o título ser omisso, o trabalho abordar basicamente idei-as e/ou ideologias?

Assim, tudo o que percebemos por ora é uma certa tendência ao aumento na quantidade de trabalhos (teses, dissertações, artigos) ligados à história social das ideias e à história intelectual, sobretudo na década de 1980, desde que se admitam como cais os textos que tra-tam de ideologia, tomadas de consciência, formas de pensamento, tendências intelectuais etc.

Situam-se neste caso alguns excelentes trabalhos baseados em jornais ou revistas de grande circulação e nos quais o historiador ora analisou o próprio veículo, ora o conjunto da imprensa periódica duran-te determinada fase, ora os editoriais de determinado jornal etc. Mas há também trabalhos sobre "imprensa burguesa", "imprensa operária", "imprensa anarquista". Lembremos ainda o quanto a referência às ideias é constante em obras que tratam de movimentos políticos e sociais, partidos políticos, sindicatos, assembleias políticas, histórias de instituições públicas ou privadas, como institutos, academias, asso-ciações, clubes etc.

Quanto a história das mentalidades, disciplina genuinamente fran-cesa, cem cumprido, pois, uma trajetórìa peculiar. Contestada desde o início, na França e alhures, quer por afastar-se da tradição dos Anna-les, quer por dela herdar os defeitos. Criticada por ser "demasiada-mente antropológica", ao privilegiar a estagnação das estruturas na longa duração, ou condenada, pelo contrário, por ser "insuficientemen-te antropológica", ao julgar o outillage mental de sociedades passadas à luz da racionalidade contemporânea. Acusada de ser pretensiosa-mente "nova", seja ' por instaurar modismos tão atraentes quanto pas-sageiros, seja por reeditar o antigo estilo historizante de fazer história, o factnalismo, a narrativa memorialista etc.

Não resta dúvida de que, ao menos aparentemente, os críticos das mentalidades triunfaram, pois é raríssimo hoje em dia algum historia-dor francês admitir ser um "historiador das mentalidades", sem falar nos que se refugiaram em outros campos (história da cultura, da vida privada etc.) ou conceitos (cultura popular, imaginário etc.), reconhe-cendo a ambiguidade ou fragilidade teórica das mentalidades. No entanto, é notável o contraste entre o desgaste da noção de mentali-dades no vocabulário dos historiadores e o extraordinário vigor dos estudos sobre o mental, ainda que sob novos rótulos e com nova rou-pagens. A bem da verdade, as mentalidades prevaleceram e continu-am a inspirar inúmeros programas de pesquisa em diversos países - e não só na França, não obstante a assimilação das críticas que há mais de 20 anos têm sido feitas a esse campo do saber histórico.

Considerado o estado atual do debate, no qual o declínio da ex-pressão mentalidades convive paradoxalmente com um campo de estudos cada vez mais prolífico a elas dedicado, o presente capítulo deter-se-á na exposição de quatro questões centrais: (1) a contextuali-zação da história das mentalidades no quadro maior da historiografia francesa filiada ao movimento dos Annales; (2) o exame dos pressup-tos conceituais da história das mentalidades, suas potencialidades e insuficiências, com atenção à diversidade de tendências que a história das mentalidades sempre apresentou, desde o começo, apesar da tentativa de muitos de seus críticos em caracterizá-la de forma ho-mogênea, quando não estereotipada; (3) a delimitação dos campos que, em certo sentido, sucederam a história das mentalidades, dela diferindo teoricamente ou simplesmente reeditando seus pressupostos com outras denominações, enfatizando-se especialmente a chamada história cultural, também ela muito diversa em tendências; (4) uma

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avaliação sumária da adoção das mentalidades e da história cultural pela historiografia brasileira a partir dos anos 80, considerando as pos-síveis relações entre a importação das problemáticas da Nova História e certas abordagens da tradição historiográfica nacional.

Deve-se ressaltar que a verdadeira ruptura ocorrida na historiogra-fia francesa e responsável pela irrupção da chamada Nova História, particularmente da história das mentalidades, parece ter ocorrido muito mais em relação à "era Braudel", na qual predominou uma visão totali-zante e socio-econômica da história, do que em relação aos primór-dios dos Anaales, tempo em que as mentalidades eram valorizadas. O livro-chave dos "novos tempos" talvez tenha sido mesmo, como muitos dizem, o Magistrats et sorciers en France au XPII siècle, publicado em 1968 por Robert Mandrou. Colocando em cena o tema da perseguição à feitiçaria na França moderna, Mandrou se afirmaria como historiador emblemático das mentalidades, ele que, discípulo de Lucien Febvre como Braudel, havia sido ligeiramente marginalizado pelo último após a morte de Febvre (1956), deixando o cargo de secretário-executivo da revista Annales em 1962.

Convém não exagerar, no entanto, a importância de Magistrats et sorciers e tomá-lo como um marco a partir do qual a história das men-talidades teria "ressurgido" na historiografia francesa após décadas de ostracismo. O próprio Mandrou havia publicado, em 1964, um estudo hoje clássico sobre a cultura popular na França, e antes dele, em 1960, fora publicado o famoso L’ énfance et la vie familiale sous d áncien régime, obra de Philippe Ariès, historiador diletante que só posteriormente seria incorporado ao meio acadêmico francês.

No plano mais geral, pesou decisivamente a favor das mentali-dades o "impacto dos anos 60", desde a chamada revolução sexual estimulada pela difusão da pílula até o desencantamento progressivo da esquerda ocidental com o modelo soviético de socialismo mormen-te depois da violenta intervenção da ex-URSS na então Tchecoslová-quia (Primavera de Praga), em 1968. Trata-se nesse último caso, de assunto por demais complexo para ser abordado nos limites deste capítulo, mas não resta dúvida de que a crise do "marxismo ocidental", conforme denominou Perry Anderson o marxismo professoral e filosó-fico dos países capitalistas da Europa, desempenhou papel relevante nas "viragens historiográficas"

A história das mentalidades que passou a reinar na historiografia francesa desde fins da década de 1960 tem sido caracterizada um tanto precipitadamente - sobretudo pelos seus críticos -, em função de seus temas e de seu estilo. Quanto aos temas, é costume se destacar a preferência por assuntos ligados ao cotidiano e às representações, na falta de expressões melhores: o amor, a morte, a família, a criança, as bruxas, os loucos, a mulher, os homossexuais, o corpo, a morte, os modos de vestir, de chorar, de comer, de beijar etc. Microtemas, por-tanto, recortes minúsculos do todo social. Quanto ao estilo, costuma-se realçar seu apego à narrativa e à descrição em detrimento da expli-cação globalizante.

Sem negar que muitos estudos ligados às mentalidades por vezes enquadrem no quadro acima exposto, creio ser necessário ir além na caracterização deste campo não tão novo do saber histórico, no míni-mo porque a história das mentalidades abrigou historiadores do porte de Le Goff, Duby, Le Roy Ladurie, Ariès e outros, parte dos quais egressos do marxismo, autores que nem de longe podem ser descritos como memorialistas tolos ou narradores ingênuos. É preciso ir além e buscar a base teórica das mentalidades. Deixar de fazê-lo é um risco que não se deve correr, sob pena de ter-se não a delimitação, senão uma caricatura, desta relevante corrente de investigação histórica.

A história das mentalidades que passou a reinar na historiografia francesa desde fins da década de 1960 tem sido caracterizada um tanto precipitadamente - sobretudo pelos seus críticos - em função de seus temas e de seu estilo. Quanto aos temas, é costume se destacar a preferência por assuntos ligados ao cotidiano e às representações, na falta de expressões melhores: o amor, a morte, a família, a criança, as bruxas, os loucos, a mulher, os homossexuais, o corpo, a morte, os modos de vestir, de chorar, de comer, de beijar etc. Micro temas, por-tanto, recortes minúsculos do todo social. Quanto ao estilo, costuma-se realçar seu apego à narrativa e à descrição em detrimento da expli-cação globalizante.

Sem negar que muitos estudos ligados às mentalidades por vezes enquadrem no quadro acima exposto, creio ser necessário ir além na caracterização deste campo não tão novo do saber histórico, no míni-mo porque a história das mentalidades abrigou historiadores do porte de Le Goff, Duby, Le Roy Ladurie, Aries e outros, parte dos quais egressos do marxismo, autores que nem de longe podem ser descritos como memorialistas tolos ou narradores ingênuos. É preciso ir além e buscar a base teórica das mentalidades. Deixar de fazê-lo é um risco que não se deve correr, sob pena de ter-se não a delimitação, senão uma caricatura, desta relevante corrente de investigação histórica.

Não foram poucos os historiadores que, nos últimos 20 anos, tenta-ram definir ou delimitar o campo teórico e metodológico da história das mentalidades. Numa avaliação de conjunto, e sem desmerecer o es-forço dos que enfrentaram a questão, é preciso reconhecer que quase todos esbarraram em imprecisões e ambiguidades que, de certo mo-do, marcaram a história das mentalidades e contribuíram muito para o desgaste da própria noção, alimentando o arsenal de seus críticos e adversários. Em primeiro lugar, não se pode negar uma certa tendên-cia empirista em muitas definições do que pertence ao domínio das mentalidades, confundindo-se frequentemente os campos de estudo (religiosidades, sexualidades, comportamentos etc.) com a problemati-zação teórica dos objetos. Em segundo lugar, não é rara a delimitação das mentalidades quer por oposição à história econômica -hegemônica na historiografia francesa dos anos 50 e 60-, quer por oposição à história das ideias, disciplina que na verdade nunca teve grande destaque naquela historiografia, abrigando-se, quando muito, nas áreas de letras e filosofia.

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Por outro lado, a compensar aquelas tendências um tanto empi-ricistas e negativas das mentalidades, buscou-se afirmá-las como a história a mais aberta possível à investigação dos fenômenos huma-nos no tempo, sem excluir a dimensão individual e mesmo irracional dos comportamentos sociais, e procurando resgatar os padrões menos cambiantes da vida cotidiana, mormente o universo de crenças ligadas ao nascimento, à morte, aos ritos de passagem, ao corpo, aos espa-ços e ao tempo. Vem daí a afirmação tantas vezes reiterada de que todo e qualquer documento se pode prestar a uma pesquisa de menta-lidades, desde um sermão sobre a vida post-mortem, caso mais óbvio, até um documento administrativo que, dependendo de como esteja elaborado (formas de tratamento, insígnias, vocabulário etc.), pode também iluminar importantes aspectos dos modos de sentir e pensar da sociedade estudada. Vem igualmente daquela perspectiva a con-vicção de que a história das mentalidades é a que mais confirma a vocação interdisciplinar dos Annales, sobretudo quanto ao diálogo com a antropologia, a psicologia e a linguística.

À vocação interdisciplinar e à diversidade a mais abrangente possí-vel do campo documental, acrescente-se a preocupação dos "his-toriadores das mentalidades" com a quantificação, seja a pretensão de medir, com a precisão possível, os padrões de comportamento e sua lenta variação no tempo, seja, quando menos, a tendência a pesquisá-los a partir de fontes em série, de preferência às fontes singulares, o que constitui uma herança da história econômica ou serial de origem braudeliana, para não falar da história social à moda Labrousse. De qualquer modo, o quantitativismo não pode ser considerado um traço universal da historiografia das mentalidades, sendo procedimento muito usado por uns e totalmente descartado por outros historiadores do mental. Michel Vovelle o utilizou com maestria, por exemplo, no seu Piété baroque et déchristianisatian (1973). Philippe Ariès o ignorou por completo em seus estudos sobre a família e sobre a morte, sendo por isso mesmo acusado de intuitivo por diversos críticos.

No tocante ao plano conceitual, creio ser útil reter as principais ideias de um texto que se pode considerar o maìs famoso dos primei-ros tempos das mentalidades na era pós-braudeliana. Trata-se do artigo de Le Goff, "As Mentalidades - Uma História Ambígua"s publica-do no Faire de lïrútoire (1974), verdadeiro manifesto da Nova História, obra que na tradução brasileira de 1976 apareceu simplesmente como História, organizada em três volumes dedicados, respectivamente, às "novas abordagens", aos "novos problemas" e aos "novos objetos".

Do artigo de Le Goff podem ser extraídas três ideias básicas que, de certo modo, procuram delimitar o campo conceitual das mentali-dades. Primeiramente, a questão do recorte social das mentalidades, que o autor diz ser abrangente a ponto de diluir as diferenças ineren-tes à estratificação social da sociedade estudada. "A mentalidade de um indivíduo histórico, sendo esse um grande homem, é justamente o que ele tem em comum com outros homens de seu tempo", afirma o autor logo no início do artigo. E mais adiante: "O nível da história das mentalidades... é o que escapa aos sujeitos particulares da história,

porque revelador do conteúdo impessoal de seu pensamento é o que César e o último soldado de suas legiões, Cristóvão Colombo e o ma-rinheiro de suas caravelas têm em comum." Em segundo lugar, quanto a esse domínio de crenças e atitudes comuns a toda a sociedade, Le Goff diz situar-se, de preferência, no campo do "irracional e do extra-vagante", do que decorrem a noção de inconsciente coletivo e a reco-mendação de uma pesquisa "arque psicológica” para desvendar esse último em investigações concretas. Enfim, a questão do tempo das mentalidades que, conforme já disse, é o tempo braudeliano da longa duração: "A mentalidade", afirma Le Goff, "é aquilo que muda mais lentamente. História das mentalidades. História da lentidão na histó-ria."

Outro aspecto de suma relevância do texto em questão é o diálogo por vezes áspero, outras vezes conciliador, do historiador com o mar-xismo. Criticando esse último, Le Goff afirma que "os historiadores que a ele recorriam, depois de ter valorizado o mecanismo dos modos de produção e da luta de classes, não obtiveram êxito em passar, de maneira convincente, das infraestruturas para as superestruturas". As mentalidades viriam, assim, no mínimo, suprir uma deficiência teórica do marxismo e, no máximo, substituí-lo por um modelo capaz de "dar a esses mecanismos descarnados o contrapeso de outra coisa", "desco-brir na história uma outra parte". No final do artigo, porém, Le Goff já não é tão enfático, dizendo ser “um erro grosseiro” desligar as menta-lidades “das estruturas e da dinâmica social”, e admitindo a existência de “mentalidades de classes ao lado de mentalidades comuns.

Le Goff reveria certos conceitos alguns anos depois ao publicar um artigo intitulado "A História do Cotidiano",`' incluso na coletânea "L'His-toire Aujourd'hui" da Magazine Littéraire, em 1980. As mentalidades aparecem ali, como indica o título do artigo, travestidas de cotidiano, possível sinal de que a noção de mentalidades já começava a dar sinais de desgaste no meio acadêmico francês. A revisão conceitual se pode perceber no esforço do autor em demonstrar que o estudo do cotidiano não se poderia confundir com a recolha de anedotas e extra-vagâncias presente em vários livros da série História da vida cotidiana, coleção francesa criada em 1938 com a pretensão ingênua de "ressus-citar o passado, restituindo-lhe o sabor como se aí estivéssemos". Le Goff descartaria totalmente a pecha de descritiva e superficial que 1 muitos atribuíam à história do cotidiano como, de resto, à história das mentalidades. Alertaria, ainda, contra os riscos do estruturalismo, con-tra a tendência obsessiva de buscar-se "a parte de frialdade que existe no seio de toda sociedade quente", ele que, em 1974, festejara a con-tribuição da antropologia de Lévi-Strauss para a Nova História.

É importante cotejar, a propósito, as ideias de L.e Goff com as de seu colega Michel Vovelle, um e outro historiadores franceses das mentalidades, com a diferença de que o segundo, ao contrário de I.e Goff, se assume como um historiador marxista. Escrevendo no mesmo ano de 1980 um artigo intitulado "Ideologias e Mentalidades: Um Es-clarecimento Necessário", Vovelle foi reticente em relação à noção de inconsciente coletivo associada ao conceito de mentalidades, optando

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pela de "imaginário coletivo", considerada "mais operacionalizável e, sobretudo, menos suscetível a extrapolações temerárias do domínio da psicanálise". Rejeitou igualmente as sugestões em favor da "auto-nomia do mental" e de um conceito de mentalidades construído sobre "camadas de ar", embora também não tenha endossado o reducionis-mo socioeconômico típico do marxismo vulgar. Defendeu as mentali-dades das críticas que as colocavam como o estudo do irrisório, mas recusou-se a vê-las como o essencial da história. Propôs, enfim, uma articulação entre o conceito de mentalidade e o de ideologia, entendi-da à moda marxista em perspectiva de dominação de classe. A histó-ria das mentalidades", afirmou Vovelle, "é o estudo das mediações entre, de um lado, as condições objetivas da vida dos homens e, de outro, a maneira como eles a narram e mesmo como a vivem. A esse nível, as contradições se diluem entre os dois esquemas conceituais: ideologias de uma parte, mentalidades de outra." As mentalidades seriam mesmo, para Vovelle, um "terceiro nível" da estrutura social (ou do modo de produção), afirmando-se "não como um território estran-geiro, exótico, mas como o prolongamento natural e a ponta fina de toda história social".

Divergências e dilemas à parte, o estudo das mentalidades tem si-do extraordinariamente prolífico. Cronologicamente, não seria errôneo dizer que predominam os estudos sobre a história medieval e a mo-derna, sendo tal tendência favorecida pela formação dos historiadores dedicados ao mental, bem como pelo "distanciamento" temporal da-queles períodos, mais passíveis de uma investigação histórico antro-pológica (a busca da alteridade no tempo) do que épocas mais con-temporâneas. No entanto, a Antiguidade greco-romana tem sido pouco frequentada, salvo exceções, a exemplo dos estudos de Paul Veyne - Le pain et le rirgue (1976), entre outros livros do autor - ou de Aline Rousselle e scu Porneia: sexualidade e amor na mundo antigo (1983), título da tradução brasileira.

Cabe considerar, por outro lado, que o estudo das mentalidades soube ultrapassar as fronteiras da França e irrigar a historiografia de outros países europeus, para não falar da América Latina e dos Esta-dos Unidos, onde foi certamente filtrado e repensado de acordo com as tradições culturais e historiográficas daqueles países. Obras como o precoce I Benandanti (1966), livro sobre o imaginário da feitiçaria publicado pelo italiano Carlo Ginzburg, ou o Religion aud the decline of magic (1971), do inglês Keith Thomas, dão bem a medida da irradia-ção das temáticas e dos enfoques da "terceira geração" dos Aunales na historiografia europeia. O mesmo se pode dizer quanto aos Estados Unidos, hoje um centro produtor de estudos sobre as "mentalidades", ainda que com outros nomes e "temperados" pela intelectual history de tradição norte-americana (também conhecida como history of ideas).

As pesquisas no campo das mentalidades ganharam espaço defini-tivo nos centros de produção historiográfica de vários países, o mesmo não se pode dizer da disciplina ou do próprio conceito de mentalida-des, vítimas de um desgaste quase irreversível em face das inúmeras críticas que se lhes moveram. Críticas "de fora", isto é, daqueles que

rejeitam os temas das mentalidades ou apontam a sua debilidade explicativa. Críticas "de dentro", isto é, daqueles que fazem ou fizeram pesquisas neste campo, porém assimilaram as restrições "externas" e/ou acrescentaram, suas próprias reticências quanto à solidez teórica das mentalidades.

Os resultados deste declínio das mentalidades são ainda difíceis de avaliar. Em certos casos levou à radicalização das posições estrutu-ralistas ou neo-estruturalistas, a exemplo do citado Stuart Clark, estu-dioso da feitiçaria na época moderna. Rejeitando a tradição francesa de estudar as antigas crenças em práticas mágicas com base em conceitos como "mentalidade pré-lógica", Clark afirmou que só é pos-sível estudar a feitiçaria a partir dos significados que os próprios atores sociais emprestavam às suas religiosidades. Qualquer problema-tização externa àqueles significados é vista como anacrônica e frágil, do ponto de vista antropológico, de sorte que, segundo Clark, a histó-ria das mentalidades à moda francesa jamais conseguiu ser "verdadei-ramente antropológica". É claro que o autor está adotando, como para-digma, teorias como as de Clifford Geertz, para quem as regras de cada comunidade ou cultura são autoexplicativas, cabendo ao investi-gador tão somente descobri-las e descrevê-las - a famosa tkick des-cription (descrição densa) que tanto tem encantado alguns historiado-res contemporâneos.

Na Segunda parte do livro: “Domínios da História”, o autor enfoca os campos de investigação e linhas de pesquisa.

A história agrária, como é hoje conhecida, nasceu, nas primeiras ~ décadas do século XX, de um encontro feliz com a geografia humana, tendo, de um lado, o historiador - preocupado em explicar as mudan-ças operadas pela ação do homem (os grupos sociais) através dos tempos- e, de outro, o geógrafo - dedicado ao estudo da relação do homem com o seu meio Físico.

Ao primeiro, pela própria natureza do campo de observação que lhe é específico, cabe voltar-se sobre o passado em busca de informações e registros precisos, os mais abundantes possíveis, capazes de con-duzir a uma explicação das sociedades humanas nas suas múltiplas determinações e complexidades. Já ao segundo cabe observar e des-crever o presente a fim de detectar a ação do homem na ordenação do espaço que o envolve (o habitat).

Mas, como se tem ressaltado tantas vezes, a história da gente co-mum que trabalha, come e dorme, gera filhos e saberes variados, e que na sua faina cotidiana transforma a natureza ao criar meios de subsistência e técnicas, custou a entrar nas preocupações do histo-riador como objeto de estudo, já que "são os momentos de agitação intensa e tirania aqueles que perduram na memória humana". No en-tanto, durante a maior parte dessa história - desse longo tempo decor-rido -, foi a agricultura a atividade que congregou homens e mulheres, constituindo-se na principal fonte de vida e de trabalho. Até a Revolu-ção Industrial dos tempos contemporâneos, o meio rural abrangia 75% da humanidade, daí retirando seus proventos, no esforço quase sem-

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pre pausado e lento de inovar nas formas de organização social e de vivência em comum.

Na linguagem corrente, a agricultura, segundo Michel Augé Laribé, designa acima de tudo as técnicas, o trabalho agrícola recompensado pelas colheitas e os agricultores com suas maneiras próprias de viver, o que a distingue da vida urbana e industrial. Mas, como campo de escudo sistematizado, a história da agricultura é uma expressão que reúne três tipos diversos de abordagem, para adotarmos a tipologia de Jean Meuvret, desenvolvida por Ciro Flamarion Cardoso, a saber:

A história da agricultura, stricto sensu, como parte da história das ciências e das técnicas, cuja ênfase recai sobre as forças produtivas (meio ambiente, superfície cultivada, tecnologia agrícola, população).

A história agrária, como uma modalidade de história social da agri-cultura, cujo objeto seria constituído pelas formas de apropriação e uso do solo, pelo estatuto jurídico e social dos trabalhadores rurais (produtores diretos); nessa ótica, caberia ao estudo dos sistemas agrá-rios, objeto central da análise, dar conta das relações de produção e das tipologias agrárias.

Uma terceira instância, privilegiada por Ciro Flamarion Cardoso no bem conhecido artigo sobre a história da agricultura e seu amplo cam-po de estudo, consistiria em combinar as duas primeiras modalidades, tendo como referência a teoria econômica do sistema em questão (escravismo, feudalismo, economia do Antigo Regime, capitalismo, economia camponesa etc.); recairia sobre essa modalidade, a história econômica do mundo rural, fazer o estudo macro e microeconômico da produção e da comercialização do setor agrícola em pauta.

Nas décadas de 1960 e 1970, surgiu uma perspectiva de análise mais ambiciosa, denominada por E. Le Roy Ladurie história da civili-zação rural, exibindo um largo espectro temático: técnicas, população, sistemas de parentesco, sistemas agrários, economia, revoltas agrá-rias, religião, folclore etc. Trata-se de uma proposta extremamente ampla em que qualquer abordagem é válida, o que torna problemático definir lhe o campo teórico e metodológico próprio.

Recentemente, coube ao economista e historiador da Costa Rica, Mario Samper Kutschbach, preocupado com a problemática geral das modalidades de passagem ao capitalismo de base agrária, sobretudo no tocante à dinâmica de inserção das unidades domésticas de produ-ção e consumo nos diferentes mercados em processo de constituição, ampliar o conceito de história agrária, como história econômica e soci-al da agricultura de modo a abranger fundamentalmente a questão agrária na América Latina. Seu objetivo consiste em apreender a lógi-ca da acumulação capitalista e as formas históricas variadas de seu desenvolvimento, através de caminhos bem diversos, no mundo latino-americano, daqueles trilhados pelos clássicos derivados do caso in-glês.

Ora, a agricultura como processo produtivo engloba os três fatores antes citados: a terra (meio ambiente natural), os homens (a popu-lação, o peso da demografia) e as técnicas (as forças produtivas, no

sentido restrito). Esses três componentes apresentam-se de forma mais ou menos abundante ou se combinam em proporções que variam segundo a região e o período histórico analisado, em condições social-mente determinadas. Assim, se a tecnologia aplicada à terra está con-dicionada a um contexto socioeconômico dado, qualquer alteração dos fatores da produção agrícola produzirá efeitos, de maior ou menor importância ou profundidade, dependendo das relações sociais que regem tais alterações. Da mesma forma, uma modificação em um dos fatores pode acarretar resultados imprevisíveis. Por exemplo, a médio prazo, a pressão demográfica leva a uma intensificação do uso da terra ou à incorporação de novas terras, ou seja, a um processo de ocupação extensiva do solo, com o avanço da fronteira agrícola ou, ainda, a uma combinação dos dois processos.

No caso específico do sertão do Nordeste brasileiro, onde a propri-edade fundiária exibe alto índice de concentração, a solução histori-camente cabível, face à pressão demográfica, consistiu na emigração para as áreas de fronteira aberta (do Maranhão à Amazônia) ou para a periferia dos centros urbanos em processo de industrialização, na região Sudeste do país. Tais levas de migrantes internos constituíram-se na grande reserva de mão-de-obra, a baixo custo, para a atividade industriai em fase de expansão, conforme os padrões de acumulação vigentes. Os dois fatores combinados, nas décadas de 1920 a 1950 - a fronteira aberta no Norte e a industrialização no Sul, em fase inicial -, permitiram, de um lado, a preservação do sistema político-social domi-nante na região Nordeste, sem alteração de base na organização fundiária e, de outro, o processo de industrialização sem revolução agrícola, embora com extensão da área cultivada produtora de alimen-tos.

Ainda sobre o Nordeste, é conhecido o peso do fator climático na manutenção das estruturas sociais. O clima em si mesmo não tem efeitos determinantes sobre as sociedades. Ao contrário, o maior ou menor impacto do clima sobre comunidades locais, mesmo com densi-dades demográficas semelhantes, dotadas de áreas cultivadas, de-penderá sempre do sistema social vigente, do estágio de desenvolvi-mento das forças produtivas (conhecimentos técnicos, nível cultural das populações) em suas determinações históricas específicas. Sam-per chama a atenção para o fato de que, quanto às inovações técni-cas, a adoção de uma nova ferramenta, embora já conhecida em outro momento, dependerá de vários fatores, inclusive da existência ou não de ocupações alternativas para a força de trabalho e, sobretudo, "da avaliação que se faça das vantagens e riscos de sua adoção".''

Em resumo, a agricultura combina o trabalho, a terra e a tecnologia segundo condições sociais específicas. A análise histórica deve, pois, contemplar os elementos que se associam a fim de que seja possível uma explicação inteligível do processo histórico na agricultura, colo-cando-se no tocante àqueles fatores questões prévias: o sistema soci-oeconômico em questão, as condições de acesso à terra, as normas jurídicas que regem a propriedade, o meio geográfico e as condições de uso da terra, o perfil demográfico, o universo profissional, as hierar-

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quias sociais. Essa é a história agrária de que falamos: a história eco-nômica e social do mundo rural.

No Brasil somente em final de 1976, colocou-se perante historiado-res, economistas e cientistas sociais do país uma proposta que, uma vez seguida e desenvolvida, seria o ponto de partida para novos enfo-ques no campo da história da agricultura. Tratava-se de seminário, promovido por um grupo da Fundação Getúlio Vargas (RJ), com o apoio de setores do Ministério da Agricultura, intitulado Evolução Re-cente e Situação Atual da Agricultura Brasileira. Nessa ocasião, apre-sentou-se um programa de pesquisa que tinha por objetivo fazer um amplo inventário de fontes nos estados do Norte e do Nordeste do Brasil, na perspectiva de levantar fontes localmente existentes, de modo a serem tratadas nos moldes da história serial, e passíveis pois de serem organizadas em séries homogêneas, extensas e significati-vas. Almejava-se lançar as bases para a elaboração, em etapas su-cessivas, de uma história da agricultura brasileira. Comprovou-se que tais fontes existiam e existem, abundantemente, mesmo para períodos mais recuados. São elas de natureza jurídica, as mais ricas e numero-sas- inventários post-mortem, concas de tutela, testamentos, compra e venda de bens imóveis e semoventes, todos de origem cartorária (Ofí-cios de Notas); de natureza policial judiciária- processos crime; de natureza administrativa - registros paroquiais de terra, censos diversos de população, listas de votantes; de natureza eclesiástica - registros de batismo, casamento, processos diversos; de natureza fiscal, os mais raros (dízimos, registros de óbitos como guias de sepultura, mui-to reveladores). As fontes produzidas e conservadas nos cartórios em cada município têm-se mostrado extremamente ricas, uma vez anali-sadas com precisão. A essa documentação acrescenta-se aquela de cunho oficial, fontes como relatórios, correspondências, legislação, estatísticas oficiais, já tradicionalmente utilizadas pelo historiador. Dependendo do período, há que considerar os depoimentos contem-porâneos de viajantes, bem como correspondência particular, contabi-lidades diversas etc.

Deve-se ressaltar que nos esquemas explicativos os sistemas agrá-rios resultam da combinação histórica dos elementos que constituem o processo produtivo agrícola, já mencionados: terra, trabalho e técni-cas. Trata-se de uma noção abstrata, muito genérica, elaborada pelo pesquisador a partir da reconstrução das articulações internas dos elementos que constituem o seu objeto de estudo.2y Como parte da estratégia de pesquisa, é possível discernir-lhe dois subsistemas: (1) o uso da terra, resultante da relação homem/natureza mediada pelas técnicas; (2) a posse da terra, referida à relação homem/natureza, mediada pelo direito (normas vigentes, socialmente constituídas). Já o modelo, como uma "representação idealizada de uma classe de obje-tos reais", na definição de Witold Kula, cem sido amplamente utilizado para explicitar o fundamento global mais amplo, em seus elementos estruturais, de economias agrícolas do presente ou do passado. Al-guns dos exemplos mais destacados serão dados a seguir.

No Brasil, são conhecidos os três grandes sistemas agrários dos primeiros séculos da Colônia e que influíram nas diferenciações re-gionais: a grande lavoura, o pastoreio e a pequena lavoura. O terceiro, o da pequena lavoura, é o que Waibel chama de "criança problema, o enjeitado da agricultura brasileira", no qual imperam as tradições indí-genas, o sistema da roça itinerante, de pousio longo, com rotação floresta/culturas. Os três se caracterizam pela ausência da prática de refertilização dos solos. Ao contrário da tradição europeia pré-capita-lista, o estrume animal não faz parte das práticas agrícolas - com a notável exceção do tabaco na Colônia - em virtude da separação, aqui, entre cultivos e criação. O meio tropical e colonial está muito distante do meio temperado e camponês do Antigo Regime europeu, em que predominavam os cereais, a vinha e a horticultura. Aqui, imperam o milho, os tubérculos, frutos da tradição indígena. No caso brasileiro, os fatores físicos tornam-se ainda mais decisivos quando são conside-radas as condições de povoamento: disperso e rarefeito, lento desen-volvimento demográfico nos primeiros séculos.

Nos últimos anos, as pesquisas sobre a cidade tomaram um novo rumo, distanciando-se dos primeiros estudos realizados a partir de meados do século passado. Hoje os estudiosos lançam mão de uma massa considerável de dados, recorrendo a registros fiscais, livros paroquiais, livros de registro civil, licenças, censos, listas profissionais e telefônicas. Tal método de pesquisa tornou-se viável com o auxílio de computadores, capazes de agilizar a leitura deste volumoso materi-al. Os estudos urbanos têm promovido o surgimento de equipes inter-disciplinares, encarregadas de desenvolver investigação de grande amplitude. Consequentemente, os objetos de pesquisa ampliaram-se, reconstruindo a complexidade da estrutura social, destacando as rela-ções travadas entre os vários segmentos sociais do espaço urbano. Uma outra característica dessa "nova história urbana" está no empre-go de teorias para poder ordenar a abundância do material empírico, pois os dados raramente se organizam espontaneamente em conjun-tos inteligíveis. A recente historiografia dedicou-se a alguns problemas. David Herlihy apontou três núcleos principais: (1) as funções da cidade e seu vínculo com o fomento da urbanização; (2) os efeitos da vida urbana sobre os ciclos vitais dos indivíduos, sobre o trabalho e a famí-lia; (3) as mudanças espaciais e ecológicas na cidade, provocadas pelo desenvolvimento econômico e social.

Em relação a historiografia sobre cidade na América Latina não é vasta e nem possui uma autonomia absoluta em relação aos trabalhos acima mencionados. Há uma relação estreita entre a história da cidade latino-americana e da cidade europeia. Entre os debates historiográfi-cos, dois se destacam pela grande recorrência e pela importância. O primeiro aborda o problema do planejamento do espaço urbano. A cidade colonial espanhola seria originalmente planejada e peça pri-mordial para manutenção do território conquistado, enquanto a portu-guesa nasceria do acaso, sem método, nem regras, sendo um local entre os engenhos e a Europa. O outro foco de atenção da história urbana latino-americana desloca-se para a modernização da cidade ocorrida a partir do final do século XIX. Na ocasião, a cidade colonial

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tornou-se um encrave à modernidade. Daí a necessidade de destruí-la e construir uma nova urbe ordenada segundo os preceitos e necessi-dades de uma sociedade capitalista.

O primeiro tema encontra-se entre os estudos de José Luís Rome-ro, caracterizando a cidade colonial espanhola como corte, local de encontro e, sobretudo, de preservação da herança cultural ibérica. O espaço urbano era frequentado por homens abastados e por intelec-tuais, onde exibiam os requintes próprios de uma casta enobrecida. Os últimos elegeram o local para realizarem saraus e reuniões destinadas aos debates acadêmicos. Entre 1580 e 1630, havia na América espa-nhola cinco universidades, localizadas nos principais centros urbanos, sobretudo nas cidades do México e Lima. Romero ainda enfatiza a cidade sob o prisma da administração colonial espanhola, ressaltando que o império era concebido como uma rede de cidades. À sociedade urbana, pensada como compacta, homogênea e militante, cabia a defesa do território conquistado. A urbe era conformada pela ideologia da conquista, sendo convidada a defendê-la e a impô-la ao vasto ter-ritório. Angel Rama analisa os mesmos aspectos apontados acima. No entanto, parte de um corpus documental mais rescrito, recorrendo sobretudo à literatura. Para o autor, a cidade colonial espanhola repre-senta a civilização, em contraste com a barbárie que reina nas suas circunvizinhanças. "Ainda que isolada dentro da imensidão espacial e cultural, alheia e hostil, competia às cidades dominar e civilizar seu contorno, o que primeiro chamou `civilizar' depois “educar”.

A historiografia brasileira não percorreu os mesmos caminhos se-guidos por Rama e Romero. Por um longo tempo, a definição de cida-de permaneceu atrelada ao âmbito econômico. Alguns historiadores brasileiros do início deste século tiveram forte influência de Sombart, Weber e Pirenne, e procuraram caracterizar a cidade como um espaço econômico e autônomo em relação ao campo. Capistrano de Abreu considerava a cidade colonial como um mero aparelho administrativo, ou um meio caminho entre os engenhos e os centros europeus de comercialização do açúcar. Sérgio Buarque de Holanda defendia uma posição semelhante, quando ressaltava a presença avassaladora do campo sobre a cidade. Os centros urbanos brasileiros, continuou o historiador, "nunca deixaram de se ressentir fortemente da ditadura dos domínios rurais". Por ser a vila improdutiva e secundária na eco-nomia colonial, os estudiosos relegaram a um segundo plano outras vocações dos primeiros núcleos urbanos, esquecendo as contribui-ções da cidade para o avanço das fronteiras da cristandade. A cidade colonial era guarnecida de edificações religiosas, prédios públicos e fortalezas. Esta arquitetura representava a coerção da cruz e da espa-da, do poder colonizador da Igreja e do Estado. "A força simbólica da cidade colonial era um dos esteios da dominação portuguesa."

Os processos de independência e de inclusão ao mercado inter-nacional promoveram uma série de mudanças nas cidades latino-americanas. Ao longo do século XIX, a América Latina sofreu trans-formações profundas na economia: leis de terra, abolição da escravi-dão e reformas variadas de cunho liberal. Romero considera as altera-

ções em duas perspectivas: a primeira década pelo modelo europeu, denominada "desenvolvimento heterogêneo"; a outra era o resultado de alterações da estrutura interna, do funcionamento da cidade e, sobretudo, da relação entre os diversos grupos sociais e entre a cida-de e a região. O último processo foi nomeado pelo historiador de "de-senvolvimento autônomo". Nas últimas décadas do século XIX, o "de-senvolvimento heterogêneo" explica as principais alterações no perfil urbano das cidades latino-americanas. A segunda fase da Revolução Industrial forçou a inclusão destas sociedades no mundo capitalista. As burguesias aceitaram, então, a ideologia do progresso, realizando o "desenvolvimento heterogêneo" da cidade em detrimento do "desen-volvimento autônomo". Angel Rama remeteu-se igualmente ao assunto e denominou a cidade latino-americana do início deste século de "re-volucionada", enfatizando o espaço urbano como seio das resistências ao imperialismo e às transformações promovidas pela ordem capitalis-ta. Os intelectuais a partir de então constroem um ideário revolucioná-rio que abalou as estruturas da América Latina por longas décadas.

A historiografia brasileira também salientou as reformas urbanas e a politização do espaço público. Sérgio Pechman e Lilian Fritsch es-creveram um artigo procurando relacionar ambas as abordagens. Elegeram para tanto a cidade do Rio de Janeiro e as reformas em-preendidas pelo prefeito Pereira Passos. O planejamento da cidade obedeceu a algumas premissas, de um lado procurava modernizar e "europeizar" a antiga urbe colonial; por outro lado, a reforma pretendia ordenar e disciplinar a população pobre, trazendo as "luzes" para se-res bestializados. José Murilo de Carvalho analisou o fenômeno por intermédio da Revolta da Vacina, momento em que a população do Rio de Janeiro se opôs com vigor às práticas modernizantes dos políti-cos da Primeira República. O incidente revelou a grande irritação po-pular com as práticas públicas na área da saúde, principalmente no que se referiam à vistoria e à desinfecção das casas.

Nos últimos anus, muitos trabalhos abordaram as questões men-cionadas. As análises recorreram, comumente, aos estudos sobre mo-dernidade, comparando as transformações urbanas ocorridas na Eu-ropa ~ e Estados Unidos com as alterações ocorridas nas cidades brasileiras. No entanto, a historiografia caiu, em várias ocasiões, em uma armadilha teórica, repetindo os mesmos resultados obtidos por historiadores preocupados com outras realidades. Enfim, uma boa parte da historiografia está mais preocupada em seguir os caminhos de Benjamin e Marshall Berman do que em fazer pesquisa histórica.

Quanto à história das paisagens embora aparente ser uma discipli-na nova, com uma densidade teórica ainda frágil e poucos exemplos práticos, a história das paisagens é um campo antigo - mais antigo ao menos do que a história social ou a história demográfica - com uma tradição assentada em trabalhos de fôlego. Mesmo antes da maré montante das preocupações ecológicas, de sua politização e idealiza-ção, estudiosos alemães, franceses e ingleses - desde o início do século e, especialmente, na década de 1930 - produziram obras que

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delimitaram, entre a geografia humana ou histórica e a história agrária, um campo novo.

Desde o final do século XVIII há, entretanto, uma sólida tendência de se pensar a natureza em oposição ao homem ou à "cultura". Parti-cularmente o idealismo e o romantismo alemães, no século XIX, força-ram uma distância absoluta entre Natur e Kultur. Tal visão contaminou fortemente a história, como as demais ciências sociais, de forma a estabelecer uma periodização em que ambos os termos aparecessem como pontas opostas de um processo. Especialmente na história eco-nômica a distinção assumiu aspecto absoluto. Aí a paisagem que en-volvia os homens foi percebida como um dado da natureza, anterior e autônoma em relação ao homem. Somente o olhar mais treinado - do agrônomo, do geógrafo ou do historiador - pôde, aos poucos, perceber o continuem existente entre a aldeia (Dorf ou Pillage), seus campos, pastos, e o bosque ao fundo. Mesmo o "olhar treinado" não percebia, de imediato, em paisagens ditas naturais - como na floresta equatorial úmida ou na savana - a decisiva ação do homem.

A distinção entre paisagem física e paisagem cultural, como feita na história, e que ainda prevalece na geografia, deve ceder espaço para uma nova visão, cuja ênfase recaia nos resultados da ação do homem sobre o meio ambiente. Devemos entendera natureza, nesta visão, não mais como um dado externo e imóvel, mas como produto de uma prolongada atividade humana: "... a natureza virgem não é mais do que um mito criado pela ideologia de civilizados sonhadores de um mundo diferente do seu".

Quanto a metodologia, as fontes empresariais no Brasil foram por longo tempo abandonadas. Somente as oficiais eram preservadas nos arquivos públicos. É comum as empresas destruírem os documentos mais antigos ou deixarem-nos sem qualquer critério de classificação, acumulados em depósitos. A regra geral é de criar dificuldades de acesso à documentação. Todos esses empecilhos e o próprio conceito de que a industrialização era tardia e a burguesia empresarial débil desestimulavam a pesquisa da história empresarial. Os arquivos das empresas podem proporcionar informações não só sobre estas unida-des de produção, como também sobre a economia em geral. Na Fran-ça, os acervos estão preservados na seção de história das empresas, no Arquivo Nacional de Paris e nos arquivos departamentais. Os tipos de documentos classificados por Bertrand Gillez são os seguintes: for-mação da empresa, conselhos, direção geral, patrimônio, material de serviço, suprimentos, estoques, produção, serviço financeiro, conta-bilidade, correspondência, jurisprudência, pessoal, serviços de estudos e comerciais.

Nas empresas brasileiras industriais e comerciais, privadas, por ações, as principais séries de documentos são os livros manuscritos de atas das assembleias de acionistas, de atas das reuniões de direto-ria, de atas do Conselho Fiscal, diários e livros de contabilidade, folhas de pagamento, fichas de operários e relatórios anuais das empresas. Também são importantes a correspondência com representantes das

empresas, fornecedores, consumidores, governo, os contratos e reci-bos.

Nas empresas públicas temos os mesmos tipos de séries docu-mentais. No entanto, como geralmente predominam no setor de servi-ços públicos nos quais têm monopólio, a margem de competitividade é mínima e a preocupação com o lucro menos acentuada.

O estudo dessas empresas exige uma visão ampla do Estado, da sociedade e, portanto, o recurso às fontes públicas, legislação, ordens do governo, aos arquivos de bancos estatais de crédito e a jornais. A história da Rio Light, por exemplo, envolve o desenvolvimento da cida-de, a política estatal de energia e o crescimento industrial, dos trans-portes, etc.

Já o período da pré-industrialização podem-se citar trabalhos de conjunto de vários setores da produção secundária como, por exem-plo, a coletânea de ensaios organizada por Frédéric Mauro, visando a dar um panorama geral dessa fase no Brasil, a tese de doutorado de Geraldo de Beauclair Mendes de Oliveira sobre a região fluminense, e o trabalho de Maria Bárbara Levy sobre a cidade do Rio de Janeiro.

A obra de Maria Bárbara I.evy descreve a tradição arraigada da empresa familiar no Rio de Janeiro e as pressões para restringir e dificultar a aplicação das leis sobre sociedades anônimas. Combate a tese de que a indústria nesta cidade tivesse uma relação linear c direta com os negócios cafeeiros e reavalia os fatores da perda da hegemo-nia industrial desta cidade. Lm seguida, estuda os limites do poder de gestão em uma sociedade. Anônima - a Companhia América Fabril -salientando o caráter familiar da direção, a especialização de funções na alta administração da empresa, as divisões que surgem com a incorporação de outras congêneres, os casamentos entre filhos de sócios e a cooperação de genros. Estuda o papel do encilhamento em relação à expansão das sociedades anônimas. Apresenta um levan-tamento das primeiras: Companhia Ponta de Areia de Mauá; Compa-nhia Seropédica e Luz Stearica. Geraldo de Beauclair Mendes de Oliveira estuda estas empresas procurando definir as características da pré-industrialização, tais como a de usar em alguns casos a mão-de-obra escrava. Salienta que empresas como a da Ponta de Areia já produzem bens de capital.

A história da família e a demografia histórica têm, sem dúvida algu-ma, objetos e objetivos definidos. Percebe-se, entretanto, que sua área de interseção é extensa, ainda mais se considerarmos que a história da família, enquanto ramo específico de conhecimento (dife-renciado da história da mulher e da sexualidade, por exemplo), iniciou-se, basicamente, através dos resultados surpreendentes da demogra-fia histórica. Se é certo que a demografia, por um longo tempo, foi criti-cada por um enfoque excessivamente empírico, não se pode negar que a partir dela se pôde fugir das abordagens ensaísticas, tão co-muns em estudos anteriores. Consolidaram-se saberes e novos temas que, mesmo não tendo a demografia como dado central, dela fazem uso como pano de fundo para formar quadros explicativos mais gerais. Por outro lado, não se pode pensar no desenvolvimento de um novo

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objeto de interesse histórico, com instrumentos e métodos próprios sem um referencial mais amplo. Foram os questionamentos sobre a situação da família, hoje, que levaram muitos estudiosos a enveredar por este caminho. A família, como problema, tornou-se tema atual e os questionamentos sobre sua estrutura ou sua crise interessam tanto ao homem comum quanto aos especialistas.

No Brasil, os estudos sobre a família (ou as famílias) acompanham, com passos mais vagarosos, as tendências historiográficas de outras áreas, como Europa, Estados Unidos e Canadá, mas com a especifici-dade de que, aqui, há uma relação ainda mais forte com a demografia histórica. Foram e são os demógrafos historiadores (ou, o que seria mais correto, historiadores demógrafos) a trabalhar com o tema fre-quente e central da família.

Os estudos sobre a família tiveram, de início, como lugar privile-giado de exploração, a Europa, principalmente Inglaterra e França, a partir do século XVI, estendendo-se, posteriormente, para outras áreas da sociedade cristã moderna e contemporânea. Pouco se tem escrito sobre a Antiguidade e a Idade Média, que contam com metodologia e enfoques bastante diferentes. As fontes arqueológicas, iconográficas e literárias ocupam, neste caso, papel fundamental. Destacam-se es-tudos sobre a história da vida privada, o cotidiano material e seus aspectos simbólicos. No período moderno, prevalecem as fontes escri-tas e seriadas, resultado, sem dúvida, de uma nova abordagem no registro dos fatos da vida cotidiana, já que a Igreja tridentina passou a se preocupar insistentemente com as relações familiares e com a uniformização dos registros das alianças matrimoniais que, mesmo estando presentes no IV Concílio de Latrão (ratificadas por Trento), não eram efetivados, na prática, como a realização de banhos e pro-clamas, que deveriam anteceder os casamentos, e de registros escri-tos de batizado, casamento e óbito. Vitoriosa em seus intentos, neste aspecto e em inúmeras regiões, a Igreja católica passou a produzir uma vasta documentação, antes inexistente, que se tornou a base das pesquisas que viriam estabelecer as diretrizes principais do campo da história da família, inclusive com técnicas e metodologias bem delimi-tadas, trazidas pela demografia histórica. Por outro lado, as transfor-mações ocorridas na estruturação do Estado moderno, com o apare-lhamento burocrático e fiscal, possibilitaram a produção de listagens nominais de habitantes, para fins variados (militares, fiscais etc), am-plamente utilizadas como fonte de pesquisa. Os trabalhos que tratam do Ocidente cristão, mesmo levando-se em conta especificidades regionais, analisam fontes semelhantes e, por isso, com ampla possi-bilidade de comparação.

Na década de 1950, apareceram alguns trabalhos sobre a família ocidental, mas foi a partir da década de 1960 que ela se constituiu numa área específica da pesquisa histórica, com inúmeros trabalhos sendo publicados, principalmente a partir de 1970. Sua história é, portanto, relativamente recente, mas alguns balanços historiográficos já puderam ser elaborados, como os de Michael Anderson, André Burguière e Alan Macfarlane, entre outros. Anderson, em especial, foi

o que melhor sintetizou os estudos, estabelecendo uma tipologia com quatro linhas de abordagens: a autodenominada "psico-história" (des-cartada e não comentada pelo autor, pelos seus sérios problemas de método a demográfica, a dos sentimentos e a da economia doméstica. Sintomaticamente, Anderson começa sua síntese pela abordagem de-mográfica, precursora dos questionamentos feitos posteriormente. Tipo de fonte e metodologia diferenciam as três abordagens, mas não se pode negar que, em muitos casos, mesmo com diferença de peso dado a alguns aspectos, elas se complementam. Segundo o autor, para se ter uma compreensão do passado da vida familiar, é necessá-rio levar todas em conta, inclusive porque alguns trabalhos dificilmente podem restringir-se a somente uma. A divisão feita por Anderson não deixa de tender a uma simplificação, já que muitos estudos podem estar inseridos em mais de uma, mas, enquanto tipologia geral e ponto de partida para uma análise historiográfica, considera-se pertinente a divisão estabelecida. Tomemos, portanto, como base de organização deste texto, esta tipologia para caracterizar as principais tendências e pesquisas.

Os estudos da década de 1970, que podem ser vistos como pre-cursores da construção do objetivo específico – a família -, tiveram três referências básicas: a demografia histórica, a análise da economia doméstica (por iniciativa principalmente de brasilianistas) e os debates interdisciplinares em ciências sociais. Foi justamente com a tentativa de reconstituição de famílias que se originaram, aqui, de maneira mais sistemática, os estudos demográficos. Maria Luiza Marcílio, utilizando registros paroquiais de batizado, casamento e óbito, aplicou o método de Louis Henry, com adaptações à realidade brasileira. Poucos se aventuraram por este caminho, não só pelo árduo trabalho que exige pela situação das fontes paroquiais, em particular as coloniais, espa-lhadas pelas paróquias interioranas e com evidentes falhas sequen-ciais, além das próprias características da sociedade brasileira: grande migração, diversidade de sobrenomes de pessoas de uma mesma família consanguínea e presença de uniões não-legalizadas pela Igre-ja, o que dificulta o acompanhamento da trajetória das famílias indivi-dualmente. Para o século XIX as fontes existem, em inúmeras locali-dades, em estado de conservação relativamente bom, seriadas e acessíveis ao pesquisador. Outros trabalhos foram realizados, centra-dos no sudeste e sul do país, com base nas listagens nominativas de habitantes (chamadas de "maços de população", elaboradas por de-terminação do Marquês de Pombal, para fins de arrecadação de im-postos e militares) do final do século XVIII e primeira metade do XIX.

A proliferação de trabalhos sobre a família, em demografia histórica e na abordagem da economia doméstica, é considerável. Percebe-se, entretanto, uma centralização das pesquisas no sudeste e sul do país, mais contemplados com estudos do que, por exemplo, a região nor-destina, indiscutivelmente a principal área econômica do período colo-nial brasileiro. Mesmo considerando-se a rica região cafeeira e escra-vista do século XIX, o Vale do Paraíba, pouco se escreveu sobre ela com metodologia c fontes características da história da família e da demografia histórica. Esta ausência dificulta, por exemplo, a contex-

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tualização de estudos como os da sexualidade e da mulher, na medida em que não existem referenciais mais abrangentes. Na Europa, o desenvolvimento deste tema foi precedido de amplos trabalhos e de-bates acalorados, em diversas áreas do conhecimento, possibilitando a composição de quadros históricos bem mais consistentes e confiá-veis. A razão não está só na ausência de documentos, como muitos sugerem. A explicação pode ser encontrada na história mais recente, em que grandes centros atuais, como São Paulo, tiveram a possibili-dade financeira de guardar e organizar sua memória em arquivos cen-trais, facilitando o trabalho de pesquisa, além de contarem com unida-des acadêmicas de peso que viabilizam trabalhos.

Foi a partir da década de 1980 que as preocupações dos estudio-sos se dirigiram diretamente para a contestação da ideia de família patriarcal, de Freyre. Não é possível deixar de fazer um paralelo com a historiografia europeia, cujo alvo principal de ataque foi, também, no início dos estudos demográficos sobre a família, as afirmativas de Le Play sobre a predominância da família-tronco (ou família-estirpe) na Europa ocidental. O questionamento mais sistemático sobre a pre-dominância da família patriarcal pode ser resumido nas considerações feitas por Mariza Corrêa, antropóloga, num artigo de 1982", que refle-tem preocupações mais abrangentes. Na realidade, suas críticas diri-giam-se mais duramente a Antônio Cândido do que a Freyre, já que teria sido ele a estender este padrão a todo o território brasileiro, inclu-sive denominando outros agrupamentos humanos como "não-fa-miliares", situação esta agravada pela ampla aceitação de suas ideias no meio acadêmico. A autora, partindo da multiplicidade da ocupação social e econômica do território brasileiro, que configurava um universo bastante complexo, conclui que não seria possível reduzir a família ao quadro estático do grande engenho. Se a família patriarcal dominava, em termos ideais, outras formas de organização familiar estavam pre-sentes e não poderiam ser desconsideradas.

Devemos ressaltar ainda que o percurso da história da família, no Brasil, partindo dos primeiros trabalhos ensaístas, passando pela im-portante verticalização do conhecimento empírico dado pela demogra-fia histórica e pelos estudos da economia doméstica e chegando aos atuais enfoques problematizados pelas questões trazidas em particular pela antropologia, nos leva à necessidade de pluralização do conceito de família, com certeza desligado da noção de anomia. Tomar o com-portamento familiar ocidental como modelo representa simplificar a evidente riqueza da realidade brasileira, em que coexistiram (e ainda coexistem) grupos de variadas origens étnicas, o que referenda de maneira absoluta a inclusão de um enfoque diferencial não excludente nos estudos sobre a família.

Por outro lado a evidência mesma de uma "vida cotidiana" constitui um mecanismo magistral de dicotomização da realidade social. De um lado, temos uma esfera onde se produzem bens e uma atividade pro-dutiva, um lugar de acumulação e, por isso mesmo, de transformação. Aí localizado, encontramos o campo onde se articula o futuro de uma formação social, onde se concentra tudo o que faz a História. De outro

lado, temos uma esfera de "reprodução", ou seja, de repetição do existente, um espaço de práticas que regeneram formas, sem, contu-do, modificá-las nem individualizá-las. Um lugar de conservação, de permanências culturais e de rituais: um lugar "privado" da História.

Nesta perspectiva todo o indivíduo que age na primeira esfera, a da acumulação e do poder, vê-se constituído como ator potencial da His-tória; e todo o indivíduo inserido na segunda, a da reprodução, encon-tra-se despossuído de ação, acha-se à margem do controle sobre as mudanças sociais e da participação no movimento da História, salvo quando está associado a um movimento coletivo de revolta. Assim, a oposição entre dois espaços portadores de historicidade e de rotineira cotidianidade recobre, de fato; a oposição entre "detentores" e "ex-cluídos" da História.

É importante salientar que ligações entre a antropologia histórica e o interesse sobre a vida cotidiana dos segmentos carentes iluminaram também a história das epidemias; trabalhos recentes sobre este tema convidam a desconfiar das interpretações puramente biológicas ou socioeconômicas. Pesquisas como as de Pierre Goubert colocaram em evidência uma relação estreita entre a alta dos preços dos grãos e a alta brutal da mortalidade. O calendário mesmo desta mortalidade, que conhece seus primeiros sinais durante os meses que precedem a colheita, sublinha a relação de causa c efeito entre o aumento de pre-ços resultante de uma safra ruim e o rápido esgotamento dos estoques alimentícios que condenava os mais pobres à fome nos últimos meses de colheita e a seguir à mortalidade. Os fenômenos epidêmicos que, na Idade Moderna, parecem integrar-se ao ritmo cíclico das crises só ampliaram as catástrofes socioeconômicas. O meio microbiano, se-gundo André Burguière, só se tornava mortífero e agressivo quando a população, enfraquecida pela subalimentação, não conseguia mais lhe resistir.

Quando falamos de "história", pensamos imediatamente em um ~ processo específico de afirmação através do qual um fenômeno ou uma prática se inscrevem no tempo ou produzem uma natureza pró-pria. Quando falamos de "cotidiano", temos de desvendar o que reco-bre este conceito: o estudo das sociabilidades? A análise de situações e "histórias de vida" com sua bagagem de sociolinguística? A etnogra-fia e a antropologia da vida material? Uma enorme série de campos espaço-temporais e relacionais parece querer estilhaçar esse objeto histórico numa pluralidade de temas problemáticos, bem como de complexos instrumentos de análises.

É certo, também, que a história do cotidiano e da vida privada não é só aquela dos "trabalhos e dos dias", pois pensar exclusivamente essa diferença autoriza a instituir uma divisão entre um mundo quase a-histórico e um mundo da transformação. Nele encontraríamos a divisão clássica entre uma história das massas, que é aquela dos "trabalhos e dos dias", e uma história dos espaços e grupos privile-giados, que são o teatro e os atores das transformações. Ora, este universo só é considerado imóvel por aqueles que o tomam por um

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mundo fechado sobre si mesmo, baseado na economia de subsistên-cia e nos gestos imemoriais.

Por outro lado, o desenvolvimento de novos campos como a histó-ria das mentalidades e a história cultural reforça o avanço na aborda-gem do feminino. Apoiam-se em outras disciplinas - tais como a litera-tura, a linguística, a psicanálise, e, principalmente, a antropologia - com o intuito de desvendar as diversas dimensões desse objeto. As-sim, a interdisciplinaridade, uma prática enfatizada nos últimos tempos pelos profissionais da história, assume importância crescente nos es-tudos sobre as mulheres.

A onda do movimento feminista, ocorrida a partir dos anos 60, con-tribuiu, ainda mais, para o surgimento da história das mulheres. Nos Estados Unidos, onde se desencadeou o referido movimento, bem como em outras partes do mundo nas quais este se apresentou, as reivindicações das mulheres provocaram uma forte demanda de infor-mações, pelos estudantes, sobre as questões que estavam sendo dis-cutidas. Ao mesmo tempo, docentes mobilizaram-se, propondo a ins-tauração de cursos nas universidades dedicados ao estudo das mulhe-res.

Até a década de 1970, muito se discutiu acerca da passividade da mulher, frente à sua opressão, ou da sua reação apenas como respos-ta às restrições de uma sociedade patriarcal. Em oposição à história "miserabilista" - na qual se sucedem "mulheres espancadas, en-ganadas, humilhadas, violentadas, sub-remuneradas, abandonadas, loucas e enfermas..."- emerge a mulher rebelde. Viva e ativa, sempre tramando, imaginando mil astúcias para burlar as proibições, a fim de atingir os seus propósitos.

Um outro ponto a ser salientado é a questão do gênero. O gênero tem sido desde a década de 1970, o termo usado para teorizar a ques-tão da diferença sexual. Foi inicialmente utilizado pela, feministas ame-ricanas que queriam insistir no caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo. A palavra indica uma rejeição ao deter-minismo biológico implícito no uso de termos como "sexo" ou "diferen-ça sexual". O gênero se torna, inclusive, uma maneira de indicar as "construções sociais" - a criação inteiramente social das ideias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. O "gênero" sublinha também o aspecto relacional entre as mulheres e os homens, ou seja, que nenhuma compreensão de qualquer um dos dois pode existir através de um estudo que os considere totalmente em separado. Vale frisar que esse termo foi proposto por aqueles que defendiam que a pesquisa sobre as mulheres transformaria fundamentalmente os para-digmas da disciplina; acrescentaria não só novos temas, como tam-bém iria impor uma reavaliação crítica das premissas e critérios do trabalho científico existente. Tal metodologia implicaria não apenas "uma nova história das mulheres, mas uma nova história"."

A maneira como esta nova história iria incluir e apresentar a experi-ência das mulheres dependeria da maneira como o gênero poderia ser desenvolvido como uma categoria de análise.

Um outro aspecto que se ressalta dos estudos sobre gênero reside na rejeição ao caráter fixo e permanente da oposição binária- mascu-lino versus feminino.

O desenvolvimento da história das mulheres, articulado às ino-vações no próprio terreno da historiografia, tem dado lugar à pesquisa de inúmeros temas. Não mais apenas focalizam-se as mulheres no exercício do trabalho, da política, no terreno da educação, ou dos direitos civis, mas também introduzem-se novos temas na análise, como a família, a maternidade, os gestos os sentimentos, a sexualida-de e o corpo, entre outros. Serão analisadas a seguir as principais contribuições historiográficas relativas a algumas dessas temáticas.

No tocante às pesquisas sobre a ação e luta das mulheres, configu-ram-se duas vertentes. Uma preocupada com os movimentos organi-zados, com vistas à conquista de direitos de cidadania - os movimen-tos feministas - e a outra com manifestações informais que se expres-sam em diferentes formas de intervenção e atuação femininas.

Devemos lembrar que as dificuldades de penetrar no passado fe-minino têm levado os historiadores a lançarem mão da criatividade, na busca de pistas que lhes permitam transpor o silêncio e a invisibilidade que perdurou por tão longo tempo neste terreno. Assim, cópias helio-gráficas arquitetônicas foram utilizadas para interpretar as relações de poder na vida doméstica, tal como relatos de assistentes sociais para investigar relações domésticas ou diários de médicos para conhecer o comportamento das mulheres durante o parto. Enfim, acompanhando a renovação teórica dos estudos históricos, refinaram-se os métodos, as técnicas, desenvolvendo-se a inventividade com relação às fontes, o que tem possibilitado maior intimidade com aqueles segmentos e a ampliação dos horizontes da história.

O autor ressalta ainda em termos da sexualidade que a partir da década de 1980 há um interesse crescente dos historiadores brasilei-ros por temas relacionados ao sexo, ao corpo, ao desejo, ao amor etc. Embora as pesquisas desenvolvidas nessa linha expressem, sem dúvida, uma íntima vinculação com a produção historiográfica da cha-mada Nova História, sobretudo francesa, bem como com as ideias formuladas por Michel Foucault, é importante assinalar que tal produ-ção tem-se caracterizado por uma busca constante no sentido de em-preender abordagens originais e, portanto, mais adequadas às especi-ficidades da sociedade brasileira.

O autor ressalta que o etno-história aponta para uma ruptura cres-cente com as formas autocentradas de entendimento das relações entre os homens. Ela é fruto do desenvolvimento das experiências de contatos culturais aceleradas a partir do século XVI e de necessidades de compreender o fenômeno humano em suas diversas manifesta-ções. A etno-história tornou-se iconoclasta com relação aos valores socialmente aceitáveis pelos diversos grupos étnicos, pois entendeu a sua historicidade e desmistificou a sua singularidade qualitativa. Colo-cando as etnias em evidência, aprofundou o significado da liberdade de ser, ao mesmo tempo que contribuiu decisivamente para a gênese

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de novas formas de relação com a alteridade e com a singularidade, acima de tudo dialéticas.

Nesse sentido, a etno-história certamente pode ampliar em muito as dinâmicas criadoras, internas e externas, das sociedades, e não só das ocidentais, contribuindo para processos de trocas culturais plenos e verdadeiros.

Cabe ainda mencionar a palavra modelo como parte de nossa lin-guagem cotidiana. Ligada, etimologicamente, às ideias de maneira, forma, método e disposição, em seu sentido mais corrente indica "a melhor forma": o modelo fotográfico ou um comportamento modelo.

O modelo é uma operação conceitual visando a representar rela-ções ou funções que ligam as unidades de um sistema. Suas inte-rações entrelaçam os elementos de um conjunto dado. Construir um modelo supõe uma generalização prévia (formulação clara de hipótese ou problema condição para a sua própria elaboração) e, num segundo momento, o de sua aplicação, ele deve permitir uma explicação abran-gente de um fenômeno ou grupo de fenômenos. O trabalho com mo-delos é, pois, uma dupla operação cognitiva: de um lado, os procedi-mentos necessários para a construção do próprio modelo; de outro, as modalidades de sua aplicação.

O modelo jamais é idêntico, por definição, à realidade observada. Ele permite captar a dinâmica- movimento de um conjunto - ou a estru-tura - formas de articulação de um grupo de fenômenos. Mas, em sua elaboração, o modelo remete necessariamente a formas específicas - a priori - de apreensão da realidade.

Quando a história e a análise de textos há historiadores que creem ser a atitude hermenêutica- de que se fala tanto hoje em dia - algo recente. Ledo engano. Já o venerável manual de Langlois e Seig-nobos, que data dos últimos anos do século XIX, criticava os que liam os textos "com a preocupação de neles encontrar informações diretas, sem o cuidado de recriar mental- mente as operações que se deveri-am ter processado no espírito do autor". Como antídoto ao que viam como uma atitude ingênua estaria a chamada crítica interna dos tes-temunhos, cuja fase inicial é exatamente a hermenêutica ou crítica de interpretação - também chamada de crítica positiva: "a análise do con-teúdo do documento e a crítica negativa.

No penúltimo capítulo do livro a história e a imagem, o autor enfoca as diversas imagens e as numerosas formas de trabalhá-las, acessí-veis, hoje, aos historiadores, a fotografia e o cinema; e alguns dos enfoques destes derivados da semiótica. Ao concluí-lo, tendo em vista essas opções limitativas, é importante voltar a lembrar que não foi nossa pretensão esgotar o tema-mesmo porque de tal empresa não seríamos capazes -, mas, sim, somente indicar algumas vias de aces-so possíveis à problemática das imagens abordadas sob o ângulo da história.

Quanto à história e a informática os autor salienta o uso da informá-tica em sala de aula do 1º e 2ª graus e nos cursos universitários de história progride à medida que os programas ficam mais amigáveis.

Tais iniciativas são ainda embrionárias e experimentais. A dimensão lúdica da multimídia, sem dúvida, oferece imensas possibilidades edu-cativas no ensino básico, mas os preços ainda representam sério obs-táculo à sua disseminação, Talvez esse seja o campo em que hoje estejamos mais defasados. As experiências aqui são pontuais e ainda engatinham.

Finalizando o autor conclui: “A história não pode estar condenada a escolher entre teoria determinista da estrutura e teoria voluntarista da consciência”.

5. CERRI, Luis Fernando. Ensino da História e consciência histórica. Rio de Janeiro: Funda-

ção Getúlio Vargas, 2011.

Naquele tempo existiu um homem. Ele existiu e existe, pois narra-mos sua história. Existiu porque nós existimos. Num certo tempo exis-tirá um homem, uma vez que plantamos oliveiras para ele e deseja-mos que usufrua do horto.

Agnes Heller

O trecho acima já foi abusivamente citado, mas devo pedir ao leitor licença e um pouco de paciência para que a tomemos novamente, de modo a introduzir a problemática desse texto. Deixemos claro que a licença é solicitada apenas pela repetição tradicional desse texto – que tornou-se pelo uso e abuso quase que uma epígrafe – e não por causa do seu célebre autor, cuja rejeição acrítica na década passada já está em tempos de ser revista.

Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, ligadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem em-penhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que ja-mais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passa-do, tomando-lhes emprestados os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar a nova cena da história do mundo nesse disfarce tradicional e nessa linguagem emprestada.

Neste trecho, que é dos mais famosos da obra de Marx, estão con-tidos de forma didática alguns pressupostos que ultrapassam a obra marxiana e a tradição marxista e inscrevem-se entre as bases da ciên-cia histórica em construção no século XIX, seja inaugurando, corrobo-rando, seja apenas participando da delimitação desse campo do sa-ber. Temos aí a história como obra humana, entendida laicamente; a história como movimento cuja síntese escapa ao controle dos seus agentes, mesmo que coletivamente organizados, mesmo os dotados de enorme poder sobre os outros homens. Mas o pressuposto que nos

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interessa mais diretamente nesse momento é o de que, no agir sobre o mundo e ser sujeito da história, o passado (e suas projeções de futuro) são tudo o que está a disposição do homem, como matéria-prima para a sua criação. Não se oferece nenhuma contribuição pura – em termos de novidade, de componente inédito – à forja dos novos eventos. A criação, e mesmo a reprodução, só são possíveis como recriação do que já existiu, e o totalmente novo, o que livra-se de to-das as amarras do tempo, permanece como um sonho inatingível. Talvez essa perspectiva tenha sido insuficientemente considerada nas sociedades que ousaram ser outra coisa que não capitalistas, e que foram classificadas pelo pejorativo nome de “socialismo real”. Mas certamente é essa a perspectiva que impulsionou uma grande parte dos estudos de história e que possibilitou um grande desenvolvimento da disciplina.

A citação de Marx nos coloca diante de algumas perguntas que se colocam impacientemente à espera de resposta, seja na porta do ga-binete do pesquisador, seja no corredor das salas de aula em que os historiadores colocam em discussão os conhecimentos que produzi-ram ou que recolheram dos seus colegas. Quanto há de passado em nosso presente, e em nosso futuro? Em que medida o futuro já está comprometido pelas condições dadas pelo passado e pelas soluções que demos no presente? O passado (ou a nossa imagem de passado) é estável, ou modifica-se conforme a utilização que fazemos dele? Qual a relação entre o tempo e a imagem que temos de nós mesmos? Quando mexe-se no passado mexe-se também na identidade coleti-va?

Essas questões sempre se colocam para quem atua na produção e divulgação do conhecimento histórico, mas é nos campos da teoria da história e de sua didática que se colocam com maior premência, pois as respostas colocam na berlinda o próprio significado de produzir história e ensiná-la: por quê, para quem, desde quando, respondendo a que necessidades, contra o quê ou quem, ao lado de quem o faze-mos? Qual o sentido, enfim, do não desprezível investimento social que existe hoje em torno da história, que envolve financiamento de pesquisa, manutenção de departamentos universitários e seus profes-sores, formação e manutenção de um exército de professores de his-tória acolhidos para desempenharem a missão de desenvolver um conhecimento cujo espaço está considerado nos currículos escolares, mobilização de um complexo empresarial de distribuição do conheci-mento histórico, que vai de editoras de livros acadêmicos, de livros de divulgação para o grande público e de livros acadêmicos, de conteú-dos digitais nas mais diversas mídias?

Como explicar a que atendem os vultuosos investimentos em as-sessoria acadêmica e estrutura para séries e programas que ciclica-mente retornam à tela da televisão e do cinema? Sobretudo, como explicar que esse movimento social do conhecimento histórico não faz conta da estrutura tradicional que imaginamos, que vai da produção de textos especializados à sua divulgação no sistema escolar?

Nas últimas décadas, é possível perceber que um esforço assiste-mático, descontínuo e geograficamente descentralizado em enfrentar essas questões por meio do instrumento conceitual intitulado “consci-ência histórica”. O objetivo desse texto não é – nem poderia ser - es-gotar o tema ou fornecer um painel representativo ou exaustivo, mas recompor e procurar alinhavar a contribuição de diferentes autores, provindos de diferentes lugares, tanto físicos quanto epistemológicos, visando uma maior sistematização sobre a “consciência histórica” e suas implicações sobre o fazer atual da História nos múltiplos espaços que ela ocupa.

1) Forjando um diálogo: por tema, a consciência histórica.

O primeiro engano possível a desfazer é que o conceito de consci-ência história seja comum a todos os que se utilizam da expressão. Pelo contrário, às vezes ela é referida a realidades muito diferentes ou mesmo excludentes entre si. É em busca dessas diferenças, especifi-cidades, mas também semelhanças, que nos propomos a criar um diálogo com diferentes autores que tomam em conta o problema ou utilizam-se da expressão ou da noção.

A leitura de Raymond Aron, por exemplo, é uma das que não inclui-remos nesse diálogo. Na confererência “A noção de sentido da histó-ria”, de 1957, Aron toma a consciência histórica predominantemente como consciência política, traçando um painel de como diferentes historiadores, cientistas sociais, filósofos e tendências das ciências humanas buscam a lógica da evolução histórica, perfazendo um en-saio sobre como diferentes sentidos (no sentido “vetorial” do termo) são atribuídos ao processo histórico. Estamos, pelo contrário, buscan-do pensar juntamente com os autores com os quais dialogaremos, uma perspectiva de compreensão do fenômeno da consciência históri-ca, entendida como uma das expressões da existência humana, que não é necessariamente mediada por uma preparação teórica, por uma filosofia ou uma teoria da história complexamente elaboradas. Enfim, buscamos uma interpretação do fenômeno que permita compreendê-lo como perpassando o especialista e o homem comum, ainda que entre estes estabeleça-se uma relação que pode ter muitas características, que vão de uma hierarquia de saber até uma horizontalidade na vivên-cia da consciência da história.

1a) Consciência histórica: ter ou não ter?

Um primeiro aspecto da discussão a considerar é se a consciência histórica é um fenômeno inerente à existência humana ou se é uma característica específica de uma parcela da humanidade, uma meta ou estado a ser alcançado. Ou, em outros termos, se trata-se de um componente da própria consciência, no sentido geral de auto-consciência, de saber-se estando no mundo, e nesse caso algo ine-rente ao existir pensando e sabendo, ou se estamos tratando de um nível específico de saber que não é imediatamente característico de toda a humanidade, e portanto é uma forma de conhecer à qual é preciso chegar, no sentido de tomada de consciência. Nesse segundo

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caso, haveria em contraposição à consciência histórica uma inconsci-ência ou uma alienação histórica.

A segunda opinião é considerada pelo filósofo Hans-Georg Gada-mer no desenvolvimento de sua conferência Problemas epistemológi-cos das ciências humanas, para quem:

O aparecimento de uma tomada de consciência histórica constitui provavelmente a mais importante revolução pela qual passamos desde o início da época moderna. (...) A consciência histórica que caracteriza o homem contemporâneo é um privilégio, talvez mesmo um fardo que jamais se impôs a nenhuma geração anterior. (...) Entendemos por consciência histórica o privilégio do homem moderno de ter plena consciência da historicidade de todo o presente e da relatividade de toda opinião.

Ocorre que o personagem que Gadamer chama ora de homem contemporâneo, ora de homem moderno, é um homem adjetivado, e não se refere ao homem em geral. A circunscrição que o adjetivo es-tabelece exclui todos aqueles que não tenham passado pelo processo histórico chamado de modernização, ou que tenham permanecido refratários a ele. Assim, não desprezíveis camadas sociais dos países centrais e imensas massas nos países periféricos vegetariam num estado de miserável inconsciência da história, sendo ignorantes da historicidade do presente e submetidos ao dogma das opiniões cultu-ralmente consideradas como corretas.

Desse modo, essa parte da humanidade está alijada das “subver-sões espirituais da nossa época” e amarrada à tradição, sem a possi-bilidade de uma postura reflexiva sobre o que ela transmite. Essa perspectiva permite inclusive pensar um papel vanguardista para o conhecimento histórico e seu processo de distribuição pelos setores não – acadêmicos das sociedades - inclusive o ensino - numa obra de “conscientização” histórica. É inevitável que se lembre dos conceitos de “cultura” e de “civilização”, também equacionados como caracterís-ticas restritas a uma parcela da população mundial, a uma parte de suas organizações políticas, que já foram suficientemente questiona-das pelas ciências sociais, como armadilhas do pensamento que aca-bam por justificar uma postura de superioridade de algumas sociedade sobre outras.

Por outro lado, para que não sobrecarreguemos um só aspecto, Gadamer também talha a noção de “senso histórico”, ou seja, “a dis-ponibilidade e o talento do historiador para compreender o passado, talvez mesmo ‘exótico’, a partir do próprio contexto em que ele emer-ge”. De posse do senso histórico, é possível ao indivíduo considerar o passado sem julgá-lo tendo a nossa vida atual como parâmetro. Mas destaque-se que nesse ponto o autor passa a tratar da especialidade acadêmica, e não mais do “homem moderno” ou das subversões espi-rituais de sua época.

Com o “senso histórico”, o pesquisador torna-se capaz de olhar ou-tros tempos – e, inferimos, outras culturas – sem prender-se aos pre-conceitos e limitações da sua origem cultural e histórica, mas nova-

mente estamos diante da ideia de que, para ter acesso a essa forma de conhecer, é preciso ter passado por uma preparação, e nesse caso não se trata de uma vivência coletiva de um processo histórico (a mo-dernização), mas de uma preparação profissional específica para a pesquisa e a produção de conhecimento nas Ciências Humanas.

Em suma, em assumindo o modelo de Gadamer, a permeabilidade entre o conhecimento especializado (ou o científico, ou erudito) e o conhecimento das massas sobre a história é dado por um sistema de sentido único, no qual o saber qualitativamente superior flui das insti-tuições socialmente destinadas à produção do conhecimento histórico (Universidades, Institutos, etc.) para instituições de divulgação ou de ensino que atingem a população não-especialista e permitem-lhe al-cançar – pelo menos de forma razoável - o nível de saber e de estrutu-ras de pensamento que é detido pelos especialistas, ou pelas classes sociais ou mesmo nações “modernizadas”.

Também Phillipe Ariès fala em tomada da consciência da história, no texto A História Marxista e a História Conservadora, no sentido de que o indivíduo passa a aperceber-se da condição de determinado pela história, além de influenciador dela, relativizando a ideia de liber-dade individual, e ao mesmo tempo possibilitando o surgimento de uma “curiosidade da história como de um prolongamento de si mesmo, de uma parte de seu ser”6. Na opinião de Ariès, o que desencadeia esse novo estágio (ideia que permite afirmar que, para ele, essa cons-ciência não existia anteriormente, pelo menos nessa configuração do século XX, e também que essa consciência surge de forma particular, e não generalizada para todo o planeta) é a percepção de que a histó-ria das pequenas comunidades que “protegiam” o indivíduo, fornecen-do-lhe o aconchego identitário, deixam de significar um referencial seguro. Por conta do processo de modernização, os indivíduos são desterrados, movem-se de seus lugares físicos, sociais e culturais originais para uma nova situação, na qual as referências são escassas ou inexistentes. Por outros caminhos, Ariès chega a um ponto pareci-do com o de Gadamer, que é a ideia de que a consciência histórica é um estágio ao qual se chega, principalmente por conta de um proces-so de modernização de todos os âmbitos da vida humana.

Uma outra vertente pode ser encontrada nas teorias da História de dois pensadores razoavelmente distantes em termos de formação e espaço de exercício da atividade intelectual: Agnes Heller e Jörn Rüsen. Para ambos, a consciência histórica não é meta, mas uma das condições da existência do pensamento: não está restrita a um perío-do da história, a regiões do planeta, a classes sociais ou a indivíduos mais ou menos preparados para a reflexão histórica ou social geral. É expressivo o título do terceiro capítulo do livro de Heller que estamos utilizando neste texto: A consciência histórica cotidiana como funda-mento da historiografia e da filosofia da história.

Para Heller, a consciência histórica é inerente ao estar humano no mundo (desde a percepção da historicidade de si mesmo, que se enra-íza na ideia de que alguém estava aqui e não está mais, e que eu estou aqui mas não estarei mais um dia) e é composta de diversos

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estágios, que vão desde o momento em que um dado grupo cria nor-mas de convivência, substituindo com elas os instintos – em que o sistema mítico do grupo legitima-o e significa, para ele, a origem do universo, e em que o grupo é identificado à humanidade – até o mo-mento em que num dado grupo, após se ter tomado consciência de que a humanidade transcende-o, concebe-se o mundo como histórico (no sentido de construção humana, desconectada de quaisquer fatores metafísicos) relativizando a própria cultura a partir de outras, no tempo e no espaço, até a consciência de que a história não marcha indele-velmente para o progresso, que a racionalidade e a ciência não dão conta da evolução humana e de que o futuro é missão de cada um e de todos. Nesse percurso, teríamos chegado à configuração contem-porânea da consciência histórica.

Mobilizar a própria consciência histórica não é uma opção, mas uma necessidade de atribuição de significado a um fluxo sobre o qual não tenho controle: a transformação, através do presente, do que está por vir no que já foi vivido, continuamente. Embora seja teoricamente imaginável estar na corrente temporal sem atribuir sentido a ela, não é possível agir no mundo sem essa atribuição de sentido; como deixar de agir também parte de uma interpretação, na prática também não há opção de atribuir ou não significado ao tempo que passamos ou que passa por nós. Para Rüsen, o homem tem que agir intencionalmente, e só pode agir no mundo se interpretá-lo e a si mesmo de acordo com as intenções de sua ação e de sua paixão; agir (incluindo deixar-se estar e ser objeto da ação de outrem) só ocorre com a existência de objetivos e intenções, para os quais é necessária a interpretação: há um “superávit de intencionalidade” com o qual o homem se coloca para além do que ele e o seu grupo são no presente imediato. Agir, enfim, é um processo em que continuamente o passado é intepretado à luz do presente e na perspectiva do futuro, seja ele distante ou ime-diato. Assim, a diferença entre tempo como intenção e tempo como experiência compõe uma tensão dinâmica que por sua vez movimenta o grupo.

Neste ponto, tanto Heller quanto Rüsen advogam que o pensar his-toricamente é um fenômeno antes de mais nada cotidiano e inerente à condição humana, com o que pode-se inferir que o pensamento histó-rico vinculado a uma prática disciplinar no âmbito do conhecimento acadêmico não é uma forma qualitativamente diferente de enfocar a humanidade no tempo, mas sim uma perspectiva mais complexa e especializada de uma atitude que, na origem, é cotidiana e insepara-velmente ligada ao fato de estar no mundo. A base do pensamento histórico, portanto, antes de ser cultural ou opcional, é natural: nasci-mento, vida, morte, juventude, velhice, são as balizas que oferecem aos seres humanos a noção do tempo e de sua passagem. Essa base é compartilhada pelo reitor da Universidade de Berlim e pela criança aborígene na Austrália. Segundo Rüsen:

A consciência histórica não é algo que os homens podem ter ou não – ela é algo universalmente humano, dada necessariamente junto com a intencionalidade da vida prática dos homens. A consciência

histórica enraiza-se, pois, na historicidade intrínseca à própria vida humana prática. Essa historicidade consiste no fato de que os ho-mens, no diálogo com a natureza, com os demais homens e consigo mesmos, acerca do que sejam eles próprios e seu mundo, têm metas que vão além do que é o caso.

Antes de ser algo ensinado ou pesquisado, a historicidade é a pró-pria condição da existência humana, é algo que nos constitui enquanto espécie. O que varia são as formas de apreensão dessa historicidade, ou, nos termos de Rüsen, as perspectivas de atribuição de sentido à experiência temporal. Na definição desse autor, a consciência história é um fenômeno do mundo vital, imediatamente ligada com a prática, e pode ser entendida como

“(...) a suma das operações mentais com as quais os homens inter-pretam sua experiência da evolução temporal de seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo”. Dessa forma, a operação mental constituinte da consciência histórica é o estabelecimento do sentido da experiência no tempo, ou seja, o conjunto dos pontos de vista que estão na base as decisão sobre os objetivos; para além disso, a consciência histórica precisará também dar respostas aos fenômenos que não são intencio-nais, que não são subjetivos, mas que são naturais e portanto sofridos, sendo a morte o exemplo mais significativo.

1b) Consciência histórica e a problemática da identidade social

A consciência histórica pressupõe o indivíduo existindo em grupo, tomando-se em referência aos demais, de modo que a percepção e a significação do tempo só pode ser coletiva. Heller, para quem a coleti-vidade é que possibilita o surgimento da ideia de passagem do tempo e de finitude do indivíduo diante da continuidade do grupo, traduz esse princípio com as seguintes palavras: “A historicidade de um único homem implica a historicidade de todo o gênero humano. O plural é anterior ao singular (...)”.

Em comunidade, os homens precisam estabelecer a liga que os de-fine como um grupo, cultivar esse fator de modo a permitir uma coesão suficiente para que os conflitos não desemboquem num enfraqueci-mento do grupo e coloque a sua sobrevivência em risco. Uma versão, ou um significado construído sobre a existência do grupo no tempo (integrando as dimensões do passado – de onde viemos – , do presen-te – o que somos – e do futuro – para onde vamos) é o elemento prin-cipal da ligação que se estabelece entre os indivíduos. A essa ligação temos chamado identidade, e podemos defini-la como o conjunto de ideias (já que a Biologia e mais especificamente a Genética, juntamen-te com a Antropologia, têm mostrado que não existe fundamento para pensar uma identidade “sanguínea” entre as pessoas que formam um grupo, seja ele uma pequena comunidade ou uma nação), que tornam possível uma delimitação básica para o pensamento humano: nós e eles, pertencente ou não pertencente ao grupo.

Para Heller, a pergunta identitária não muda, e o que denota o mo-vimento da história da identidade é a variação da resposta a ela. Do

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mito, metafísico ou transcendente à consciência da historicidade de todos os elementos da vida humana, ou ao desencantamento na inter-pretação da história, ou enfim à ideia de responsabilidade pelo plane-ta, as diferentes respostas mostram diferentes situações (Heller chama de estágios) em que se encontram os fundamentos da identidade de cada grupo. Primitivamente (e desde então repetidamente) o estabele-cimento da identidade de um grupo passa pelas imagens, ideias, obje-tos, valores que os participantes julgam serem os seus atributos espe-cíficos (sendo que o primeiro deles é o nome), bem como um (ou mais) mito de origem, que funciona como o legitimador da existência do grupo (e, na maior parte dos casos, de suas relações hierárquicas).

Produzir a identidade coletiva, e dentro dela uma consciência histó-rica específica e com ela sintonizada é um dado essencial a qualquer grupo humano que pretende sua continuidade. Decorre disso que, considerando essa necessidade como universal, as formas de produzir essa liga sejam diferentes e adaptadas às condições do grupo que tenhamos em tela. Assim, se para a comunidade primitiva a sua perpe-tuação estava pautada principalmente na narrativa do mito fundador e na memória de seus bravos, transmitida pela tradição oral, mas tam-bém numa observação e marcação do tempo por gestos e rituais cole-tivos, para as sociedades mais complexas essa tarefa passa a ser exercida por instituições socialmente organizadas para esse fim. Liga-das à tarefa de cimentar a identidade – além de seus fins específicos – é que são estabelecidas as escolas primárias, igrejas, bibliotecas, museus, universidades, institutos ... Mais complexos são os pré-requisitos para herdar a consciência: além de ouvir e dizer, torna-se necessário saber ler e escrever, interpretar uma variada iconografia, memorizar uma plêiade de referenciais, aprender e ensinar várias seqüências de gestos rituais, e assim por diante. Mas um outro efeito dos processos que tornam os grupos de pertencimento mais extensos e mais complexos é a crise de sua homogeneidade: os Estados – nação, por exemplo, geralmente surgem a partir da incorporação (con-sensual ou pela força) de grupos diferentes. Com isso, o trabalho de contínua formação para uma identidade histórica geralmente se esta-belece em torno da educação para generalizar a consciência histórica dominante (seja ela resultado de uma síntese harmônica entre os grupos, seja resultado de um projeto de dominação mais ou menos explícito ou consciente) e de tentativas de sobrevivência de outras articulações de respostas às perguntas identitárias. De modo que a articulação dos elementos da consciência histórica torna-se arma no campo de batalha de definição dos rumos da coletividade.

É dentro dessa perspectiva que podemos traçar uma ponte entre esse assunto e as obras A invenção das tradições e Os usos da histó-ria13, nas quais o pressuposto é o de que a história não decorre ime-diatamente das ações humanas, mas é mediada por uma produção das narrativas, das lembranças, orientadas por intenções. Nos termos de Rüsen, a preocupação é perceber “como dos feitos se faz a histó-ria”. Em ambas as obras, a temática gira em torno dessa produção de significados para o tempo, especialmente o passado; diante do pres-suposto colocado, não cabe uma busca de autenticidade, ou de qual

passado seria mais “verdadeiro” para ser “resgatado” do erro e da voragem destruidora que é tempo, pela história. Ë preciso por um lado reconhecer a crítica que Bann faz do livro organizado por Hobsbawn e Ranger, de que a “tradição” - que aparece aí mexida por interesses datados que a constróem como se elas fossem mais antigas do que realmente são – é entendida como falsa consciência, da qual a história poderia discernir o certo e o errado14. De fato, o termo “invenção” pressupõe uma criação a partir do nada, e corre-se o risco de imaginar o papel do historiador crítico como o de simplesmente desmascarar a invenção por trás da máscara da tradição, mas esses riscos e implíci-tos não podem ser elencados – o próprio Bann o afirma – para ofuscar o brilho e o caráter seminal da coletânea. Por outro lado, a contribui-ção de Hobsbawn na Introdução da obra citada traz vários elementos para pensarmos o conceito de consciência histórica. Talvez o mais expressivo seja o de dimensionar a importância das relações de poder (principalmente político e econômico) no processo de criação de refe-renciais históricos de identificação de grupos nacionais ou regionais.

Pode-se, além desse aspecto da influência das relações de poder (também ou principalmente resultantes da divisão da sociedade em classes) na contínua reelaboração da consciência histórica, considerar a contribuição de Hobsbawn para pensarmos a noção de tradição dentro dela. Para Rüsen, a tradição seria uma espécie de pré-história da consciência histórica, ou seja, um fato elementar e genérico da consciência, anterior à distinção entre experiência e interpretação. Ao agir, o ser humano já se pauta por um passado que se oferece a ser lembrado e considerado sem mediação da narrativa, antes do trabalho interpretativo da consciência histórica, um conjunto de elementos em que “o passado não é consciente como passado, mas vale como pre-sente puro e simples, na atemporalidade do óbvio”. As instituições seriam exemplos de tradição nesse sentido de elementos que se im-põem para o presente por serem a sedimentação de muitas ações passadas, e que aparecem como dados, mesmo que a intenção do agir seja o de superá-los.

A relação interessante a traçar com o texto de Hobsbawn é a ideia de que mesmo esse elemento “pré-histórico” não está a salvo da inter-pretação e mesmo da invenção intencionadas: a diferença é que mui-tos desses elementos oferecem-se como tradição, como elementos anteriores à narrativa, como portadores da força da obviedade. É nes-ta chave de compreensão que se apresentam os objetos de referência à identidade escocesa ou os rituais da monarquia inglesa, analisados por outros autores na coletânea de Hobsbawn e Ranger. Diante dessa consideração, pode-se pensar que fica invalidada a construção de Rüsen, e mesmo o que se oferece como antecedendo e transcenden-do a interpretação pela consciência histórica, a tradição, é apenas falsamente um dado e é na verdade um outro componente do proces-so de significação do tempo por parte do grupo. Ou então pode-se pensar que de fato existe um elemento tradicional e “pré-histórico” na consciência histórica, o que dá força redobrada às invenções interpre-tativas do passado que conseguem passar-se por tradição. Se consi-derarmos essa possibilidade, decorreria daí um campo de estudos

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caracterizado pela diferenciação entre o que autenticamente é tradi-ção, e o que se apresenta falsamente como se o fosse, campo esse que é rejeitado por Stephen Bann. Não é nossa intenção resolver esse impasse, mas tão somente marcar a sua relevância e proficuidade, sem deixar de lembrar a necessidade de superar a ideia de mera indi-cação de falsidade ou verdade nos estudos que abordam os proces-sos de consolidação de conjuntos de imagens e ideias legitimadoras. Trata-se, na verdade, do que antes da década de 90 era chamado, com relativa tranquilidade, da análise das ideologias, que tem estudos bastante interessantes, que superam a perspectiva dicotômica entre consciência e falsa consciência, ao imaginar a ideologia como proces-so de organização e hierarquização de ideias dentro do amplo univer-so em que elas estão disponíveis, para definir as que são úteis e as que não são plausíveis, sem imaginar que o estudioso fala a partir de um lugar imune a esse processo. E também não se anula, diante des-sas considerações (e da areia movediça de um relativismo histórico e cultural), a tarefa crítica da história.

É de consciência histórica que Marc Ferro está falando ao declarar, em seu famoso livro Falsificações da História, que “a imagem que temos de outros povos, e até de nós mesmos, está associada à histó-ria tal como se nos contou quando éramos crianças. Ela deixa sua marca em nós para toda a existência”. Esse autor nos coloca diante de uma outra contribuição importante17 para pensar o tema e deslocá-lo de um possível eixo de univocidade, que é a ideia de multiplicidade de “focos da consciência histórica”, sendo incontornável a consideração da história institucional, ou que chamamos mais correntemente de história oficial, mas também inadiável a atenção aos outros focos, como a “contra-história” que surge em polarização com a história se-cretada como ferramenta de estabelecimento de um projeto vencedor para a sociedade. Além desses focos, existiriam outros, esparsos, muitos deles anacrônicos e desligados de interesses atualmente na luta pelo poder e pela constituição dos significados relativos à existên-cia do grupo.

O conceito de consciência histórica em ação: o projeto Youth andHistory e suas conclusões

Após essas pinceladas gerais, passamos a apresentar o projeto Youth and History e algumas de suas conclusões, que nos servirão de ponte para a terceira parte desse texto.

O projeto Youth and History foi uma extensa pesquisa no formato de survey, organizada inicialmente por pesquisadores do cruzamento entre história e educação da Alemanha e Noruega, tendo por base o conceito de consciência histórica (definida sumariamente como “o grau de consciência da relação entre o passado, o presente e o futuro”) e procurando identificar e avaliar sua aplicação nas opiniões emitidas por jovens de 15 anos e seus professores em 25 países europeus, mais Israel e Palestina, num total de 32.000 entrevistados. A pesquisa constituiu-se da elaboração, aplicação e tabulação de um questionário para alunos e outro para professores, definido após várias reuniões

entre as dezenas de pesquisadores de toda a Europa, liderados por Magne Angvik e Bodo von Borries.

O questionário organizou vários temas que se desdobraram em perguntas organizadas como afirmações às quais os alunos responde-ram assinalando um dos itens de uma escala de valoração que ia de “concordo totalmente” a “discordo totalmente”, passando por “concor-do”, “indeciso” e “discordo”. Os alunos responderam, além de informa-ções para contextualizar cada indivíduo, sobre a sua concepção e a importância da história, credibilidade em fontes de conhecimento histó-rico, descrição e aproveitamento das aulas de história assistidas, con-cepções de futuro, conhecimentos cronológicos, interesse por perío-dos da história, assuntos ou temas históricos, conhecimento e avalia-ção de fatores de mudanças históricas atuais e futuras, avaliação e imagens atribuídas aos períodos e personagens da história, atribuição de causas às mudanças no Leste Europeu, expectativas de futuro pessoal e de futuro da Europa (um dos motivos principais da pesquisa é a produção de conhecimento útil para sobre o processo de unifica-ção da Europa), motivos da divisão das sociedades em classes, per-guntas de reações pessoais se vivendo situações do passado (como casamentos forçados, por exemplo), fatores de composição da nacio-nalidade e da soberania sobre um território, preservação de patrimônio histórico, conceitos de nação, posicionamentos políticos controversos quanto a questões prementes nos países ou na Europa em geral. Os professores responderam a questões de contextualização do indivíduo nos países, de formação acadêmica, experiência docente em anos, particularidades curriculares no ensino da história, avaliação da capa-cidade intelectual dos alunos, significado de religião e de política para a vida cotidiana do professor, seu posicionamento político, períodos da história enfatizados, conceitos mais importantes ensinados, métodos de ensino – aprendizagem, objetivos do ensino da história, interesse dos alunos, principais problemas do ensino de história no país segun-do a visão do professor, fatores de mudança histórica que considera mais relevantes e projeção de futuro quanto a fatores de mudança histórica.

Os resultados da pesquisa são em parte previsíveis, em parte va-gos e impeditivos de maiores generalizações, mas também significati-vos para a reflexão sobre educação, ensino de história e consciência histórica. O primeiro dado é que a influência do professor de história sobre as opiniões históricas do aluno é, no mínimo, limitada, como também é limitada a influência dos currículos oficiais de história sobre o trabalho do professor e seu resultado. A pesquisa permite concluir que os elementos narrativos constantes dos currículos oficiais ou da formação que os professores recebem não passa a salvo para a opini-ão dos alunos. Assim, é comum encontrar opiniões divergentes sobre a história entre o âmbito oficial, incluindo aí a escola, e os alunos que se relacionam com essas esferas, o que nos conduz para a conclusão de que a formação histórica dos alunos depende apenas em parte da escola, e que precisamos considerar com interessa cada vez maior o papel dos meios de comunicação de massa, da família e do meio ime-

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diato em que o aluno vive se quisermos alcançar a relação entre a história ensinada e a consciência histórica dos alunos.

Um outro aspecto considerável refere-se à “modernização” dos processos de ensino e aprendizagem em história, que são muito mais restritos do que o investimento em formação de professores a partir de novas concepções, conteúdos e técnicas podem supor, o mesmo va-lendo para o esforço de especialistas em educação instalados na bu-rocracia estatal e seus projetos de mudança de rumo do ensino em geral, e em particular do ensino da história. Uma hipótese considerável em relação a esse tópico é a de que a função social do ensino da história transcende os projetos contemporâneos e liga-se a uma ne-cessidade de perpetuação do grupo (Estado – nacional) sobre a qual a capacidade de influência do debate contemporâneo é restrita.

Desafios contemporâneos para o ensino de história

A discussão teórica sobre a consciência histórica e as breves pin-celadas sobre alguns resultados do projeto Youth and History colocam elementos importantes para pensarmos a agenda da área de pesquisa sobre o ensino da história.

Saber histórico e sasber histórico escolar.

Em primeiro lugar, a ideia de consciência histórica reforça a tese de que a história na escola é um tipo de conhecimento histórico qualitati-vamente diferente daquele conhecimento produzido pelos especialis-tas acadêmicos, e, mais que isso, são ambos apenas parcelas do grande movimento social que é pensar historicamente, e não a forma de fazê-lo. Reforça-se, em conseqüência, a recusa de um modelo em que o conhecimento histórico produzido academicamente tem na es-cola e nos meios de divulgação científica uma correia de transmissão e simplificação de seus enunciados. Após dois séculos de “combates pela história”, o conhecimento histórico acadêmico logrou tornar-se a principal referência para o pensar historicamente da sociedade, mas o momento exige que se reconheça que não é o único, sob pena de limitar a percepção dos fenômenos que envolvem o surgimento, a circulação e o uso dos significados atribuídos ao grupo no tempo. Isso coloca questões referentes ao método, seleção de conteúdos e os fundamentos da história ensinada na escola. Para Rüsen,

Entre o ensinar e o aprender história na universidade e na escola há uma diferença qualitativa, que logo se evidencia quando se promo-ve a reflexão sobre os fundamentos do ensino escolar de maneira análoga à que se faz com a teoria da história como disciplina especia-lizada.

Finalidades, fontes de informação, procedimentos de trabalho e re-sultados distintos são motivo suficiente para considerar a distinção entre esses saberes históricos, como já vem sendo feito há mais de uma década por estudiosos do ensino da história ao redor do mundo, principalmente porque o conceito de consciência histórica ajuda a perceber a presença de muitos outros saberes históricos além destes dois.

A didática da história.

Novamente citando Rüsen, pode-se dizer que, entre outros moti-vos, por causa da diferença qualitativa entre a história-ciência e a a história escolar é necessária “(...) uma disciplina científica específica que se ocupe do ensino e da aprendizagem da história (...): a didática da história”.

A discussão sobre consciência histórica coloca-nos diante da ne-cessidade de dar continuação à proposição de Klaus Bergmann e de Jörn Rüsen, entre os outros autores, de uma didática da história`, que seria uma disciplina interna à ciência da história, tendo uma série de metas, que podem ser sintetizadas na indagação “sobre o caráter efetivo, possível e necessário de processos de ensino e aprendizagem e de processos formativos da História. Nesse sentido [a Didática da História] se preocupa com a formacão, o conteúdo e os efeitos da consciência histórica".

Consciente do caráter coletivo e identitário do uso do conhecimento histórico, Bergmann propõe que a esse campo da pesquisa histórica seja atribuída a investigação do significado da história no contexto social, tendo no horizonte que esse conhecimento prestar-se-á para base de identidade social e que precisa de estudos que produzam saberes e instrumentos de intervenção no sentido de influenciá-la para valores que sejam consensuais.

Embora esta ideia nos seja estranha num país em que a história tem significado um esforço de libertação em relação a projetos políti-cos e pedagógicos de controle da população por uma elite, faz todo o sentido numa Alemanha com cicatrizes (e algumas feridas abertas) da passagem do nazismo por sua identidade social, e fica mais clara a ideia de alguns valores que sejam consensuais, pelo menos entre os que veem na democracia um valor universal.

Para Bergmann, ainda, a didática da história tem um papel diante da ciência histórica como um todo, que é estudar um dos componen-tes de seu avanço, que é a dinâmica social (o outro é a dinâmica epis-temológica), de modo a investigar o que motiva socialmente a produ-ção e os rumos do conhecimento histórico, colocando em questão os descolamentos que podem ocorrer entre as necessidades sociais (carências de orientação no tempo, para Rüsen) e os interesses de pesquisa dos historiadores, prevenindo para que se evite o caminho que leva a um conhecimento que é uma “especialização esotérica” que só pode circular entre os iniciados nela.

Cabe-nos aqui fazer as devidas ressalvas de que não se pode cen-surar os interesses de pesquisa sob pena de perder os aspectos que potencializam os avanços do conhecimento, mas também não se pode imaginar que uma atividade sustentada pela sociedade não atenda às necessidades de conhecimento dela.

Na proposição de Bergmann, a metodologia do ensino da história torna-se apenas uma das preocupações da didática da história; a pes-quisa Youth and History é um exemplo dessa ampliação do campo de atuação, cujos resultados reforçam, inclusive, a necessidade de pen-

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sar e pesquisar os conhecimentos históricos em todo o tecido social, e as inter-relações que promovem entre si e o conhecimento erudito ou o escolar. Para a própria metodologia do ensino é saudável essa pers-pectiva, de modo a compreender a educação histórica como um pro-cesso que não pode ser encarado como dentro da redoma da sala de aula. Os problemas e as potencialidades do ensino-aprendizagem de história não estão restritos à relação professor – aluno na sala de aula, mas envolvem o meio em que o aluno e o professor vivem, os conhe-cimentos e opiniões que circulam em suas família, na igreja ou outras instituições que freqeuntam e nos meios de comunicação de massa aos quais têm acesso.

Essa abordagem é mais profícua para encarar o dilema que o Youth and History evidenciou, de que a história que o aluno usa é diferente daquela que o professor ensina, que por sua vez é diferente do que funcionários dos Ministérios de Educação e acadêmicos for-madores de professores apregoam. O estabelecimento de uma tensão entre dois pólos – um ensino de história ideal e um ensino de história real ou possível – tem sido o gerador de tensões e angústias que se desdobram na rebeldia ou na apatia entre os professores da disciplina, e não é capaz de equacionar a dinâmica da mudança na educação histórica, de modo que o professor possa colocar-se diante dela com serenidade, firmeza e clareza, e não com a sensação de insegurança perante uma realidade que lhe tira o chão, ou com o desalento de um João Batista que clama no deserto.

3.3) Reflexão sobre o uso social do ensino da história

Coloca-se a urgente necessidade de pensar o ensino da história para além dos pares dicotômicos conservadora/renovada, tradicio-nal/moderna, etc., e começar a pensar o ensino de história institucio-nalizado como um fenômeno social de longa duração, cujas motiva-ções e cuja lógica não estão limitadas às discussões contemporâneas sobre objetivos, conteúdos e métodos para a disciplina. O grau de mudança não pode ser pensado em proporção direta com o esforço de mudança que se faz em termos de programas, melhoria de materiais instrucionais, reformulações na formação inicial e investimento na formação continuada dos professores. É o consenso (legítimo ou não, fabricado ou não) sobre o que somos e o que queremos ser enquanto grupo que condiciona a função social do ensino da história, e a sua mudança não pode ser pensada fora do processo de transformação desse consenso.

6. FONSECA, Selva G. Didática e Prática de Ensino de História. Campinas: Editora Papirus,

2005.

A obra vem abordar um assunto que tem sido muito discutido na atualidade a respeito do livro didático. Será que ele é realmente ne-cessário na sala de aula, ou deve ser abolido? Para abordar o assunto

ela faz uma retrospectiva do papel do livro didático de meados dos anos 60 até a atualidade.

A autora inicia fazendo esse questionamento: abolir, complementar ou diversificar o seu uso. De acordo com ela, o livro didático tem sido o principal meio de conhecimento para o acesso à educação; ele é tão utilizado no país devido à forma como se expandiu, juntamente com a indústria cultural. Quando se iniciou uma mudança no Brasil, em rela-ção ao ensino de história, no final do século XX, essa mudança che-gou às escolas através do livro didático, complementado pela divulga-ção do conhecimento através de outros meios de comunicação como: jornais, revistas, programas de TV, etc.

O papel da escola é repensado sempre pelas autoridades gover-namentais, por isso nos anos 60 e 70, no Brasil, o governo passou a modernizar os produtos educacionais, e com isso houve uma massifi-cação no ensino, ampliando o número de pessoas alfabetizadas.

A autora procura abordar a relação entre a indústria cultural e a mudança do ensino de história, para isso ela analisa os livros didáticos e paradidáticos. O livro didático teve uma íntima relação com os novos programas curriculares elaborados na década de 70. Houve uma grande produção deles, que foram adotados pelas escolas, isso com o apoio da indústria editorial brasileira e do Estado, com isso o principal meio de saber das escolas passou a ser o livro didático.

Outra forma mostrada pela autora para o incentivo do livro didático, foi à isenção de impostos a todas as fases de produção e comerciali-zação de livros, jornais e periódicos, essa isenção também era dada à produção de papel. o governo investiu também na distribuição de livros para o ensino primário e secundário através do Programa Nacional do Livro criado em 1966. A expansão do mercado editorial foi tão grande que foi realizado no Brasil a I Bienal Internacional do Livro.

Apesar do programa de distribuição gratuita do livro ser extinta em 1971, o livro didático continuou sendo uma das mercadorias mais vendidas no campo da indústria editorial. Muitas novidades foram implementados à ele para que houvesse uma aceitação, como por exemplo, os manuais de professores para ajudá-los nos exercícios propostos e planejamento anual e bimestral.

De acordo com a autora, apesar da indústria editorial do Brasil ter se colocado entre as maiores do mundo, devido à grande produção de livros, o país não conseguiu colocar-se numa posição de destaque em relação ao saber, ao contrário ele ficou entre os países mais pobres e atrasados do mundo. Apesar dessa larga difusão, muitos pesquisado-res têm procurado analisar por que o livro didático tem se tornado o principal meio de conhecimento usado no processo de ensino.

Os pesquisadores questionam a aceitação da sociedade por uma mercadoria que apenas busca difundir determinada produção, que de acordo com eles, está alheio ao processo ensino-aprendizagem. Eles vêm mostrar a necessidade da simplificação do conhecimento que servirá para auxiliar nos programas de ensino, nos planejamentos de unidade e na seqüência dos conteúdos. Outra “vantagem” é a visão da

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história da humanidade como um todo, colocando a história dos euro-peus, do descobrimento da América e a história do Brasil. De acordo com a autora, essa simplificação faz com que haja a exclusão. O pre-conceito já se inicia daí, onde os europeus são considerados os “supe-riores” na história das civilizações.

Uma mudança ocorreu no final dos anos 70 e início dos anos 80, onde as instituições educacionais juntaram-se à indústria cultural para a elaboração do livro didático. Essa união foi importante, porque houve uma renovação dos materiais, a ampliação de campos temáticos e documentais nos livros de história, a mudança na forma da linguagem, colocando no livro fotos, escritos, desenhos, fragmentos de textos de outros autores.

Iniciando os anos 90, o número de publicações de livros paradidáti-cos aumentou. Os autores aliaram-se às editoras para dar um suporte aos livros didáticos. Esse meio de diversificar as fontes historiográficas é considerado importante pela autora, que afirma que o livro didático “é uma das fontes de conhecimento histórico e, como toda e qualquer fonte, possui uma historicidade e chama a si inúmeros questionamen-tos”.

A autora mostra a importância de se diversificar as fontes utilizadas na sala de aula e superar o olhar voltado somente para um lugar. Ela coloca o livro como um material importante, contudo, ele deve ser acompanhado por vários saberes, por diferentes visões para criar no aluno uma visão crítica. Ela cita o poder que as empresas editorias têm tido na produção do saber. Ela tem ditado o que é importante estudar, qual concepção de história seguir. Por isso, autora vem colo-car a importância de desenvolver outros saberes para desenvolver “a formação do pensamento crítico e reflexivo, para a construção da cidadania e para a consolidação da democracia entre nós”.

Referência Bibliográfica

http://pt.shvoong.com/books/1620330-did%C3%A1tica-pr%C3%A1tica-ensino-hist%C3%B3ria/

Formação de Professores e Ensino de História: Perspectivas e Desafios

Falar em formação docente e ensino de História na atual conjuntura sócio/histórico brasileira significa refletir sobre a dinâmica social e a sua relação direta com o processo de formação e atuação profissional do professor, pois esta dinâmica, composta pelas questões sociais, políticas, econômicas, culturais, pelos conflitos e contradições, pelas rupturas, pelas lutas de classes, etc. estão diretamente ligadas ao processo de formação do alunado que as escolas recebem e que os professores se relacionam na sua prática pedagógica diária.

Abordar essas questões, compreendendo-as como resultado da di-nâmica social, significa tocar no âmago dos inúmeros problemas que a educação brasileira vem vivenciando cada vez com maior intensidade.

Na atual conjuntura educacional, não é mais possível continuar vendo a escola como um campo de atuação das manifestações cultu-rais dominantes, uma vez que a escola tem como principio básico a formação dos cidadãos nas suas concepções mais amplas e democrá-ticas, pois vivemos numa sociedade em que as manifestações políti-cas e culturais são múltiplas e variadas e, nesse contexto, se faz ne-cessário à construção de uma prática pedagógica que privilegie as diferenças existentes no próprio ambiente de sala de aula.

As diferenças existentes são produto de uma sociedade cultural-mente multifacetada e permeada pelas mais diversas realidades soci-ais, fruto de um contexto histórico construído sobre alicerces sociais discriminatórios e excludentes, onde os valores das camadas domi-nantes sempre estiveram em primeiro plano, impedindo a construção de uma sociedade fundada na diversidade e na democracia.

Para Vasconcelos, a compreensão desse processo histórico nos aponta para a necessidade de alterar a situação até hoje existente, no sentido de colocar-se a serviço dos interesses das camadas e de um projeto de transformação social. (VASCONCELOS, 2005:117).

Nesse processo, o professor de História ocupa posição central na análise dessa conjuntura e na possibilidade de construir situações concretas de superação através da prática pedagógica por ele desen-volvida no interior do espaço escolar. Essa superação não deve ser um trabalho solitário ou anônimo, mas fundamentado na construção de um trabalho que envolva o coletivo escolar, principalmente o corpo docente, através de um trabalho de conscientização dos mesmos sobre a importância e o poder da ação pedagógica por eles desenvol-vida em seu cotidiano. Assim, através de um trabalho coletivo, as pos-sibilidades de avanço e sucesso desse empenho obterão resultados mais consistentes.

Historicamente, a prática educativa esteve condicionada pelo con-texto histórico e a escola como “representante oficial” dos interesses dominantes. A superação dos problemas didáticos e metodológicos deve ser uma preocupação constante do professor de História, pois as mesmas são vitais no processo de ensino e aprendizagem realizada em sala de aula. No entanto, essa superação só ocorrerá através de uma busca constante pela atualização e formação continuada do pro-fessor, aliada a uma análise/reflexão crítica e cotidiana da sua própria prática pedagógica.

Segundo Fonseca, é preciso pensar a disciplina de história como (...) disciplina fundamentalmente educativa, formativa, emancipadora e libertadora. A história tem como papel central a formação da consciên-cia histórica dos homens, possibilitando a construção de identidades, a elucidação do vivido, a intervenção social e praxes individual e coletiva (2003: 89).

O papel de “formadora, emancipadora e libertadora” da disciplina de História, só possuirá eficácia através do trabalho realizado pelo professor em sala de aula e sua interação com os alunos. Por isso a importância do mesmo em buscar uma aproximação com as questões

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ensinadas e a realidade vivida pelo público escolar. Levar em conside-ração a diversidade social e cultural existente em cada realidade esco-lar e adequar as abordagens realizadas em sala de aula a estas reali-dades, não vai resolver todos os problemas, mas é o primeiro e mais importante passo a ser dado por todos aqueles que acreditam na in-clusão e na luta pela democracia social.

Para que isso seja possível, (...) o professor de história, com sua maneira própria de ser, pensar, agir e ensinar, transforma seu conjunto de complexos saberes em conhecimentos efetivamente ensináveis, faz com que o aluno não apenas compreenda, mas assimile, incorpore e reflita sobre esses ensinamentos de variadas formas. É uma reinven-ção permanente (FONSECA, 2003:71).

A atuação pedagógica do educador traz consigo uma gama de sig-nificados e simbolismos produzido na sua trajetória de vida. Essas representações irão atuar de forma significativa na vida e na formação do educando, através da relação deste com o educador e seu traba-lho.

Nesse contexto, a prática pedagógica do professor de história(...) ajuda o aluno a adquirir as ferramentas de trabalho necessárias para aprender a pensar historicamente, o saber-fazer, o saber-fazer-bem, lançando os germes do histórico. Ele é o responsável por ensinar ao aluno como captar e valorizar a diversidade das fontes e dos pontos de vista históricos, levando-o a reconstruir, por adução, o percurso da narrativa histórica. Ao professor cabe ensinar ao aluno como levantar problemas, procurando transformar, em cada aula de história, temas e problemáticas em narrativas históricas (SCHMIDT e CAINELLI, 2004:30).

Assim, a aula de história possibilita a construção do saber histórico através da relação interativa entre educador e educando, transforman-do essa prática em ato político, no sentido de transformação conscien-te do fazer histórico. Nesse contexto, salienta-se a importância do professor ser também um pesquisador e produtor do conhecimento e não apenas um mero executor de saberes já produzidos.

Nesse processo, a didática possui papel relevante no sentido de possibilitar a transformação de um saber histórico em um saber com-preensível e atuante para a compreensão do aluno, tornando-o capaci-tado a não só conhecer o saber histórico, mas também de torná-lo um participante ativo do pensar e do narrar os fatos históricos.

Assim, a didática é elemento fundamental nesse processo de trans-formação daquilo que se ensina e do significado histórico/social do que se ensina. A história possui significados que precisam ser compreen-didos pelos educandos para que haja transformação.

Nesse processo, não podemos esquecer da realidade social, políti-ca, econômica e cultural em que vivemos e da realidade encontrada em cada escola e, conseqeuntemente, em cada sala de aula. Torna-se importante salientar que cada aula é única e que a na realidade da sala de aula, possuímos alunos reais, concretos, afetados pelas in-fluências históricas, sociais, políticas, econômicas, culturais, etc., e

estas influências atuam sobre seu modo de ser, ver, compreender e atuar no mundo.

Nesse sentido, precisamos conhecer a realidade multifacetada e compreender como as mesmas são produzidas para, a partir dessa compreensão, criar mecanismos que possam ser eficazes e condizen-tes com a realidade vivenciada por cada professor em sua atuação profissional, pois, é para esses alunos reais que precisamos direcionar nossa prática pedagógica, vislumbrando o processo de inclusão e de emancipação.

Um educador, que se preocupe com que a sua prática educacional esteja voltada para a transformação, não poderá agir inconsciente e irrefletidamente. Cada passo de sua ação deverá estar marcado por uma decisão clara e explícita do que está fazendo e para onde possi-velmente está encaminhando os resultados de sua ação. A avaliação, neste contexto, terá de ser uma atividade racionalmente definida, den-tro de um encaminhamento político e decisório a favor da competência de todos para a participação democrática da vida social (Luckesi, 1984: 46).

No ambiente educacional ingressam alunos de diferentes origens, culturas, níveis de desenvolvimento intelectual e idades. Essas dife-renças representam as experiências de vida e conhecimentos adquiri-dos num meio sócio-cultural distinto para cada aluno. A construção do conhecimento ocorre através da interação do sujeito com a socieda-de/grupo em que está inserido. Nesta, cada sujeito participa de uma vivência específica, produzindo com isso, um acúmulo de conhecimen-tos/saberes também específicos.

As individualidades representam as diferenças culturais que exis-tem em uma determinada sociedade. Não valorizar essas diferenças que cada aluno traz consigo num processo de ensino e aprendizagem seria, no nosso entendimento, um modo de encaminhar os sujeitos para a exclusão.

Como lembra Sant’Ana: É fundamental ver o aluno como um ser social e político sujeito do seu próprio desenvolvimento. O professor não precisa mudar suas técnicas, seus métodos de trabalho, precisa, isto sim, ver o aluno como alguém capaz de estabelecer uma relação cognitiva e afetiva com o meio circundante, mantendo uma ação inte-rativa capaz de uma transformação libertadora (1995:26).

O ensino de História torna-se fundamental para a compreensão dos fatos históricos e para a sua articulação com a história/realidade presen-te, uma vez que o presente é fruto da dinâmica dos acontecimentos históricos do passado. Nesse sentido, o ensino de História possui papel relevante na superação da exclusão social, na construção da cidadania e na emancipação social e política dos sujeitos históricos. Em suma, ensi-nar história é agir em função de metas e objetivos conscientemente perseguidos no interior de um contexto de atuação educacional, perme-ada pelos desafios cotidianos e pela burocratização do ensino.

por OSVALDO MARIOTTO CEREZER http://www.espacoacademico.com.br/077/77cerezer.htm, disponível em: 03/02/2010.

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7. FREITAS, Marcos Cezar de. Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Editora

Contexto, 2001.

“Aspectos da historiografia da cultura sobre o Brasil Colonial”.

Laura de Mello e Souza

Sem ser obra sobre a cultura brasileira, os Capítulos de História Colonial (1907) de Capistrano de Abreu abrem perspectivas analíticas que até hoje inspiram historiadores. Grande mestre dos seus contem-porâneos, descobridor da autoria de alguns dos documentos básicos de nossa história, o grande erudito cearense foi uma espécie de pro-messa não cumprida. Nos Capítulos, contudo, apresenta perspectiva de análise muito original: ver nossa formação sob o impacto da cultura material, que o meio específico e não raro adverso moldou decisiva-mente mas que acabou se tornando elemento diferenciador, capaz de conferir certa identidade aos elementos sociais.

Cultura material influenciada igualmente pela pluralidade étnica dos habitantes: mestiçagem geograficamente condicionada, variada e cambiante, composta das três raças irredutíveis que a colonização impelira à convivência, na Amazônia prevalecendo o elemento indíge-na; à beira mar e na zona aurífera sobressaindo o negro; ao sul dos trópicos, elevando-se a porcentagem dos brancos.

Mas a cultura dita material dotada de importância a caracterizar todo um período da história da América portuguesa: a época do couro, quan-do do couro se faziam as portas e cabanas, as cordas, o alforje que carregava a comida, as bainhas de faca, as roupas de entrar no mato.

Marcada mais por um anti-ufanismo construtivo do que pelo pessi-mismo que unanimemente se lhe atribuiu quando de sua publicação, em 1928, é Retrato do Brasil, obra do discípulo e mecenas de Capistrano, Paulo Prado. Obra curiosa e um tanto deslocada, mescla de inovação e de conservadorismo, em que se enfoca a história do Brasil sob viés cultural e se busca uma curiosa tipologia qualificativa com base em sen-timentos. Assim, a luxúria impera nos primeiros tempos, de fixação do homem no meio; a cobiça norteia o desenvolvimento da atividade eco-nômica e a expansão do território; a tristeza e o romantismo dão tom aos hábitos desfibradores e decadentes dos luso-brasileiros e, em seguida, dos brasileiros propriamente ditos. O objetivo último é a compreensão de um caráter nacional, como em seu contemporâneo Macunaíma, de Má-rio de Andrade. Curioso, contudo, que o percurso escolhido seja essa tipologia dos sentimentos, e que se atente para o significado mais simbó-lico de certos fenômenos da colonização. Assim, se são datadas as considerações iniciais sobre o degredo e a imagem do Brasil como uma terra de delinqeuntes, é absolutamente atual a preocupação expressa sobre o seu significado: o Brasil sempre foi visto pelos portugueses co-mo um degredo ou como um purgatório.

Entretanto, o marco inaugural das análises da cultura brasileira se-ria Casa Grande e Senzala, de 1933. Fecho de um período do pensa-mento brasileiro e abertura de outro, é também, como Retrato do Bra-

sil, obra híbrida de tradição e inovação, em muitos pontos nostálgica de um Brasil que chegava ao fim – o de antes de 1930, visto por Gil-berto Freyre de forma análoga à da douceur de vivre que coloriu certas análises saudosistas do Antigo Regime francês.

Se do ponto de vista ideológico o autor ainda se filia a um país ar-caico, desejando que o Brasil fosse um vasto engenho de Japarandu-ba, é inegável a inovação documental e temática trazida por sua pri-meira obra e mantida nas que se seguem de perto: Sobrados e mu-cambos (1936) e Nordeste (1937). Freyre dignificou os anúncios de jornais, os diários e a correspondência familiar, os escritos de viajantes estrangeiros, os livros de receitas, as fotografias, as cantigas de roda e toda a tradição oral, multiplicando os “suportes culturais” à disposição do historiador.

De Casa Grande e Senzala caberia ressalvar que não se trata de estudo sistemático sobre o período colonial, mas de miscelânia ilumi-nada sobre a história do Brasil até o final do século XIX. Apesar dessa inegável atemporalidade, o produto final revela aspectos até então nunca abordados da cultura na América portuguesa – razão por que influenciou decisivamente os estudos posteriores sobre esse período.

Raízes do Brasil (1936), de Sergio Buarque de Holanda, marca, na verdade, o início de uma história cultural madura e rigorosa do ponto de vista teórico e metodológico. Se Raízes do Brasil é ainda um ensaio, na boa tradição brasileira de pensar o país – como Freyre, Prado e Capis-trano -, aborda, pela primeira vez, temas ligados à cultura com metodo-logia rigorosamente adequada ao objeto, manejando conceitos com segurança, ancorando-se na sociologia da cultura dos alemães, na teoria sociológica e na etnologia. Gilberto Freyre foi um precursor da moderna história das mentalidades e da nova história cultural; Sérgio Buarque foi um de seus criadores, e o fez simultaneamente aos franceses, mesmo que os autores a guiarem-no tenham sido diferentes.

Ressalte-se que a reflexão sobre aspectos da cultura colonial teve entre nós um brilhante tom ensaístico superado apenas com a obra de Sérgio Buarque de Holanda, com quem nasce, na acepção completa do termo, uma história da cultura em nosso país. Sem igualar nem aproximar-se do brilho daquela obra, a maior que nossa historiografia jamais realizou, os trabalhos recentes vêm apresentando crescente rigor teórico e metodológico, e é sensível a aproximação com um con-ceito de cultura mais abrangente, tal como o formulado por Clifford Geertz e que serviu de baliza inicial a esta reflexão. Sensível, de igual maneira, a aproximação crescente entre estudos que se autodenomi-nam de cultura, os de mentalidade, e mesmo os do imaginário. Proxi-midade que permite, pelo menos no momento, enquadrá-los todos sob a denominação de história da cultura.

“A sociedade brasileira e a historiografia colonial”.

Laima Mesgravis

A pesquisa histórica no Brasil, com metodologia e reflexão científi-cas, é fenômeno recente, nascendo a partir dos anos trinta deste sécu-

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lo. No século XIX, autores como Varnhagen, Capistrano de Abreu e outros ligados ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro pesquisa-ram temas de história do Brasil, utilizando documentos de arquivos nacionais e estrangeiros. Seguiam o exemplo de nossos primeiros “brasilianistas”, como Roberto Southey, John Armitage e Heinrich Handelman, que nas primeiras décadas do século XIX anteciparam os brasileiros com suas Histórias do Brasil.

Sob a égide do Instituto, realizaram obra de grande mérito, divul-gando e procurando manuscritos esquecidos ou esgotados. Devemos a ele a divulgação de inúmeros cronistas e memorialistas que consti-tuem, por assim dizer, a base das informações sobre a vida colonial.

O uso dessas fontes riquíssimas deve, no entanto, ser sempre cau-teloso e precedido de uma crítica realista prévia, o que nem sempre tem acontecido. Testemunhos das mais diversas conjunturas históri-cas e contextos sociais, econômicos e políticos distintos têm sido utili-zados como válidos e verdadeiros para os trezentos anos do período colonial como um todo estático e sem mudanças.

Os relatos do século XVII, por exemplo, com suas descrições de plantas, animais e índios se caracterizam por uma constante repetição de estereótipos e imagens consolidados nos primeiros cronistas-informantes (jesuítas e leigos). Que escreveram de 1550 a 1580. As variações, por vezes, são só de estilo e maior ou menor minúcia ou prolixidade. As deliciosas descrições do mundo natural de Gabriel Soares de Sousa já se encontram em Pero de Magalhães Gandavo e de muitas cartas jesuíticas anteriores.

Há estereótipos incansavelmente repetidos em Simão de Vascon-celos, Brandão, Sousa, Gandavo e jesuítas como é o caso da célebre constatação de que a língua dos índios do litoral não possuía as letras F, L e R, provando, portanto, não terem nem Fé, nem Lei, nem Rei. Essa imagem retórica, à primeira vista engenhosa, é na verdade, um sofisma, pois as línguas indígenas poderiam conter essas expressões com outras letras ou sons. Era um fecho para as longas descrições da organização social, política e religiosa dos índios, procurando demons-trar o perigoso estado de anarquia moral de suas vidas e a necessida-de de impor a autoridade e os valores da civilização europeia que, assim, ocuparia os espaços vazios.

A partir de Gandavo, cuja História da província Santa Cruz teria si-do publicada em 1576, é ponto pacífico para os cronistas que a sub-missão ou o extermínio dos indígenas do litoral ocupado pelos portu-gueses – de Pernambuco até São Vicente – está garantida, com exce-ção das regiões mais escarpadas e de floresta fechada da Mata Atlân-tica, onde os aimorés e os botocudos vão resistir até o século XIX.

Os jesuítas, ainda que adotando posições baseadas em visões con-traditórias da cultura indígena, vão sempre denunciar a violência do processo da conquista com o extermínio e a exploração do índio. Essas posturas dos jesuítas podem ser esquematizadas em três estágios.

No primeiro, o da chegada, dos contatos iniciais, deslumbramento com a aparente pureza, falta de malícia, docilidade e inconsciência do

pecado do índio. É o momento da euforia dos batismos em massa, da crença na possibilidade de um povo cristão perfeito e do conceito de “papel branco”, onde se inscreveria a verdade.

No segundo, quando do retorno às aldeias para a convivência mais prolongada com os índios que não abandonavam por nada sua cultu-ra, principalmente nos aspectos mais repugnantes ao cristianismo, como a poligamia, as festas orgiásticas com bebida e sexo livre e, sobretudo, o canibalismo após a guerra, vinha o horror, a irritação e a defesa da conversão forçada até pela espada. Um fato importante e, com certeza, parcialmente determinante, foi a morte do bispo D. Pero Fernandes Sardinha e seus companheiros de viagem, devorados pe-los caetés da Paraíba.

Mas, mesmo apoiando a repressão aos caetés, contra os quais foi declarada a guerra justa, com morte e a escravização dos capturados, já condenavam os excessos que alcançavam caetés de outras capita-nias e outras tribos distanciadas do caso.

No início do terceiro estágio, que poderíamos chamar de síntese, concluem ser a maioria das revoltas indígenas provocadas pelas injus-tiças dos colonos. Passam a defender o agrupamento dos silvícolas em aldeias permanentes afastadas dos brancos, onde poderiam fisca-lizar o uso de seu trabalho assalariado e se concentrar na catequese das crianças, procurando apenas controlar as práticas mais chocantes.

“Sociabilidades sem História: votantes pobres no Império, 1824-1881”.

Maria Odila Leite da Silva Dias

A historiografia do Império foi durante muito tempo matriz do estudo das instituições políticas e do discurso fundador da nacionalidade. Dentro dessa característica ideológica, só se podia endossar a conso-lidação da hegemonia política das elites que projetaram a nação. Esse projeto homogeneizante consistia numa missão de controle social, disciplinador e civilizador das imensas desigualdades sociais herdadas da sociedade escravista. Era impossível - dentro dessa visão de sis-tema, de equilíbrio maior de uma sociedade que se via do prisma do poder – chegar a documentar a pluralidade, as diferenças, os regiona-lismos, as conjunturas que envolviam modos de sobrevivência de grupos sociais oprimidos.

Um dos primeiros historiadores que se voltou para o estudo da massa de homens livres pobres na sociedade colonial foi Caio Prado Jr., em seu livro Formação do Brasil contemporâneo (1942), em que trata de sua inserção ambígua no sistema produtivo escravista. Mar-xista dado a interpretações concretas e específicas, apontou esse setor dos homens pobres livres como um grupo social que, em princí-pio, estava fora do sistema produtivo dominante. Somente no dia em que estivesse integrado à sociedade é que se poderia considerar con-sumado o processo de formação do país.

Escrevia na década de 1940, quando ainda não se desencadeara o processo de industrialização e de urbanização que transformou drasti-

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camente as perspectivas da sociedade brasileira como um todo. A urbanização trouxe perspectivas novas de redefinição do político em vias de serem exploradas. Ultrapassar certas fronteiras de perspecti-vas metodológicas ainda consistia um desafio para os historiadores e para as ciências humanas em geral.

Era preciso começar a documentar processos sociais não determi-nantes, o que por si só já exigia uma abertura ideológica e metodológi-ca inovadora, difícil para uma intelectualidade formada num sistema centralizador, e inserida na compartimentação do saber universitário.

Nas décadas de 1950 e 1960, olhares ambíguos, ainda forjados pe-las escolas funcionalistas e mesmo estruturalistas, vislumbram a pos-sibilidade de uma pluralidade de sujeitos históricos. Grupos sociais outros apareciam, contudo, ainda inseridos numa perspectiva globali-zante, vistos como desordeiros ou subordinados ao todo da nação, do poder, da ordem dominante. Para descortinar diferenças foi preciso transcender enquadramentos amplos. Aceitar o outro implicava abrir-se para uma pluralidade de possibilidades de participação até então negadas para o conjunto da sociedade.

Até o presente, o que se sabe sobre a existência dos setores mar-ginalizados da população do Império deve-se a estudos de comunida-des, como seria de se esperar em face da massa dos desclassificados sociais do país. Trabalhos de história social e econômica de comuni-dades como Vassouras (Stanley Stein), Bofete (Antonio Candido), Guaratinguetá ( Lucila Herman, Maria Silvia Carvalho Franco), Itu (Eni Mesquita), Parnaíba e Taubaté descortinam dados preciosos sobre as formas de organização da sobrevivência e as mudanças que ocorre-ram na vida desses setores da população.

Estudá-los, na perspectiva mais abrangente de sua integração na história econômica e política do Império, significa aproveitar o conhe-cimento acumulado dos estudos de comunidade, acrescentando a reconstituição de conjunturas específicas de condições de vida, ne-cessariamente fragmentárias e locais que possam iluminar o modo de sua inserção gradativa na força de trabalho (1870-1888). Estudar os homens livres no pano de fundo de suas historicidades regionais, co-mo parte componente do eleitorado pobre das províncias do Centro Sul (1824-1881), significa ainda um esforço de síntese, no sentido de compor um quadro mais amplo, abarcando ao mesmo tempo a recons-tituição de suas experiências de vida local, formas de sobrevivência e nuanças ou conjunturas de inserção na sociedade nacional.

O estudo das condições locais de vida dos diferentes grupos soci-ais que compunham o eleitorado pobre na fase de integração política formal do Império (1824-1881) prefigura o fenômeno de pauperização e de marginalidade, simultâneo ao crescimento econômico e à indus-trialização das décadas finais do século. Formas de sobrevivência, condições de vida, sistemas de dominação e de controle social delimi-tam os parâmetros da história social dos cidadãos pobres do Centro –Sul, ainda por construir. A continuidade de sua resistência e a intensi-ficação da política de dominação persistem como uma ponte entre a

crise da escravidão e as vicissitudes de suas trajetórias durante as primeiras décadas da República Velha.

“O Império da revolução: matrizes interpretativas dos conflitos da sociedade monárquica”.

Izabel Andrade Marson

Os conflitos políticos e sociais que marcaram a história do Brasil durante o Império se exteriorizaram numa multiplicidade de aconteci-mentos que revelam uma sociedade complexa em sua configuração e interesses. Nos recintos parlamentares, afloraram na disputa entre grupos ou partidos políticos; durante o primeiro reinado, enfrentaram-se portugueses e brasileiros, defensores de projetos políticos diversos. Na regência, opuseram-se restauradores e liberais exaltados e mode-rados. No segundo reinado, liberais e conservadores ocuparam a cena política até 1870, quando a emergência dos republicanos veio adensar a disputa partidária.

Todavia, fora dos lugares de luta política oficializada, a agitação se evidenciou mais ampla. Entre 1822 e 1850, os principais centros urba-nos do Império (Rio de Janeiro, Salvador e Recife) assistiram a inúme-ros episódios de confronto físico entre nacionais e portugueses ligados ao comércio, ao retalho e ao artesanato, os mata-marinheiro. Presen-ciou-se, também, particularmente na regência, movimentos de insu-bordinação da tropa de linha ou de participação de militares em even-tos mais significativos como a abdicação de D. Pedro I em 1831 e nos acontecimentos que se seguiram. Notou-se ainda intensa atuação popular nas vilas e cidades, desencadeadas pelas sociedades patrióti-cas de tendência restauradora ou liberal. Entre 1824 e 1848, explodi-ram levantes liberais de diferentes configurações políticas, organiza-ção e composição social: a Confederação do Equador, a Farroupilha, a Sabinada, a Revolução de 1842 em São Paulo e Minas e a Praieira. Por sua vez, os homens livres pobres e escravos aquilombados mar-caram sua presença em insurreições como as Cabanadas do Pará e de Alagoas, a Balaiada, o Ronco da Abelha e o Quebra-Quilos. E, acompanhando esses episódios de maior projeção, é importante lem-brar a atuação escrava, tanto nos enfrentamentos cotidianos e nas pequenas rebeliões quanto na revolta dos Malês na Bahia, e, 1835.

Esse amplo e denso conjunto de conflitos ficou registrado em dois tipos de fontes. Na fragmentária documentação criada pelos próprios acontecimentos (que só passou a ser explorada sistematicamente a partir dos anos 1960): nos relatórios de autoridades civis e militares; processos-crime; jornais contemporâneos e nas Atas das sessões do Parlamento do Império ( Câmara e Senado); e em obras impressas, entre as quais se destacam, por sua presença na historiografia, a His-tória do Brasil, de John Armitage (1836); O libelo do povo, de Francis-co Sales Torres Homem (1849); Ação, reação, transação: duas pala-vras acerca da atualidade, de Justiniano José da Rocha (1855); a Circular dedicada aos senhores eleitores de senadores pela província de Minas Gerais, de Teophilo Ottoni (1860), e Um estadista do Impé-rio, de Joaquim Nabuco (1893).

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Esses textos tornaram-se os mais divulgados relatos dos grandes eventos políticos do Império – a independência, a regência, a maiori-dade, as rebeliões do primeiro e do segundo reinados – e acabaram por estabelecer sua memória. Eles apreenderam e interpretaram, sob o impacto da revolução burguesa, oposições da nação-cidadã típica do Império, aquela integrada pelos proprietários com requisitos para atuar nos escrutínios eleitorais; exceção feita a Joaquim Nabuco que, escre-vendo no final do século, momento de redefinição da cidadania, ampli-ou o quadro de tensões incorporando, com mais clareza, proletários e escravos.

Dessa forma, a historicidade dos textos, juntamente com a opção partidária dos autores, contribuíram significativamente no esclareci-mento da maneira como representaram a sociedade monárquica e a revolução. Justiniano José da Rocha e Nabuco compreenderam essa revolução como um atributo de uma maioria indistinta e imatura, com-portamento instintivo e irracional, negador da política civilizada, sinô-nimo de violência, desordem e anarquia; por isso, um fenômeno inevi-tável que, entre 1822 e 1850, ocorreu repetidas vezes, todas elas contornadas pela habilidade dos estadistas do Império.

Por sua vez, Armitage, Timandro e Ottoni, embora com algumas nuanças, consideraram-na missão exclusiva dos moderados, prática garantidora da ordem (livraria a nação da opressão e da anarquia), da propriedade, dos direitos dos cidadãos, e da democratização política. Tratava-se de uma conquista incontornável do progresso.

Apesar das leituras divergentes sobre a nação e a revolução, uma tese comum a todos os textos: a da singularidade do Brasil ante as demais nações europeias e americanas.

“Escravidão negra em debate”.

Suely Robles Reis de Queiróz

A matriz do dissenso historiográfico está na caracterização do sis-tema escravista, tido por alguns como violento e cruel, por outros co-mo brando, benevolente.

Quem inicialmente obteve grande repercussão ao difundir essa úl-tima concepção foi Gilberto Freyre, cuja influência ultrapassou os limi-tes do Brasil, alcançando também os historiadores estrangeiros.

Preocupado, como os de sua geração com a questão da raça e atento à intensa miscigenação ocorrida no Brasil, Freyre procurou explicar-lhes o significado, concebendo uma sociedade de tipo pater-nalista, onde as relações de caráter pessoal assumiam vital importân-cia. A família patriarcal foi a base do sistema: resultante da transplan-tação e adaptação da família portuguesa ao ambiente colonial brasilei-ro, constituía uma vasta e hierárquica rede de parentesco, uma “ordem privada” impermeável a formas públicas de organização e controle.

Na sociedade assim concebida, predominavam a empatia entre as raças e a amenidade na relação senhor-escravo, características que explicariam a miscigenação e seriam peculiares no quadro geral do escravismo americano. Decorriam elas da plasticidade racial do colo-

nizador português, cujos traços psicológicos diferenciavam-no dos anglo-americanos em valores e personalidade. Uma linha de raciocínio que o levará a considerar o Brasil como uma “democracia racial”, pois a miscigenação largamente praticada corrigia a enorme distância soci-al existente.

Entretanto, a partir dos anos 50, aproximadamente, uma nova con-cepção revitalizou os estudos sobre a escravidão negra, originando uma também nova corrente historiográfica, que se opôs frontalmente às ideias de Gilberto Freyre.

A derrota do nazismo liquidara as pretensões arianistas de uma ra-ça pura; intensificou-se a luta do negro norte-americano pela igualdade racial e a ampliação dos direitos civis; a historiografia avançou com o surgimento de novos enfoques teóricos, maior rigor metodológico e o aporte de subsídios multidisciplinares.

Essas circunstâncias renovaram nos Estados Unidos o interesse pela escravidão negra, surgindo então os trabalhos de David Brion Davis, Charles Wagley, Boxer e Genovese, entre outros, que questio-naram as teses de Tannebaum, Elkins e, conseqeuntemente, de Gil-berto Freyre. Argumentaram que o escravismo anglo-saxônico pouco diferiu daquele constituído por povos de outra origem, inexistindo um sistema mais brando que outro e sendo as variações ao longo do tem-po menos significativas que os padrões subjacentes de unidade.

No Brasil, a repercussão de tais ideias somou-se à progressiva conscientização das condições periféricas a que sempre esteve sub-metido o país no quadro das relações internacionais, à maior visibili-dade das injustiças e tensões sociais, ao crescimento do nacionalismo. Foi um tempo de efervescência política e intelectual em que o interes-se por classes expoliadas e minorias oprimidas também mudou a his-toriografia da escravidão.

Nesta, desde logo, podem ser citados os nomes de Florestan Fer-nandes, Otávio Ianni, Emília Viotti da Costa, Fernando Henrique Car-doso, cujas teses são diametralmente opostas às de Freyre.

Para eles, a escravidão é pedra basilar no processo de acumulação de capital, instituída para sustentar dois grandes ícones do capitalismo comercial, mercado e lucro. A organização e regularidade da produção para exportação em larga escala – de que dependia a lucratividade – impunham a compulsão ao trabalho. Para obtê-la, coerção e repressão seriam as principais formas de controle social do escravo.

A historiografia em análise produziu inúmeras outras obras sobre os mais diversos ângulos, todas divergindo de Gilberto Freyre e con-firmando a face cruel da escravidão. Esmaeceu a visão por ele trans-mitida de um regime em que se moviam iaiás dengosas, senhores severos mas paternais, escravos submissos e fiéis, etc.

A partir dos anos 80, uma nova e polêmica corrente historiográfica aproximou-se da linha de Gilberto Freyre, configurando o que Jacob Gorender chama de “neopatriarcalismo”. Ela repensa o conceito de violência do sistema, admitindo a existência de espaço para o escravo

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negociar um cotidiano mais brando. Nesse cotidiano, ele iria lançando mão de estratégias para sobreviver, ora curvando-se aos ditames do senhor, ora a eles resistindo.

“O diálogo convergente: políticos e historiadores no início da República”.

Maria de Lourdes Mônaco Janotti

Tanto os contemporâneos como a maioria dos historiadores viram o advento da República como uma fatalidade histórica.

A percepção fatalista, utilizada como categoria para a compreensão do passado, baseia-se na inevitabilidade da evolução dos aconteci-mentos. De modo geral e esquemático, esse discurso articula-se em torno de avaliações conjunturais do final do Império, concluindo que as instituições monárquicas haviam a tal ponto se esclerosado que, den-tro dos antigos moldes do poder, não seria possível absorver qualquer mudança proveniente da rearticulação das forças políticas, econômi-cas e sociais. O mundo transformara-se, modernizara-se e o velho regime estava, pelas leis da natureza, ou da ciência – dependendo da formação teórica do autor -, fadado a ser substituído pelo novo, a Re-pública.

Apesar do discurso historiográfico revestir-se de estilo próprio, aca-bou por utilizar os mesmos argumentos levantados pelos homens da época para justificar a inviabilidade de um terceiro Reinado.

E não foram simplistas ou ingênuos os políticos da Monarquia. Re-correram várias vezes à documentação de áreas técnicas e econômi-cas. Mesmo entre os parlamentares mais expressivos, do Partido Conservador, duvidava-se da concretização de um terceiro Reinado no Brasil.

A coexistência e as alianças dos partidos tradicionais com o Partido Republicano, a partir de 1870, vinham envoltas por discursos onde a temática da “evolução dos tempos” era constante. Recorria-se ao exemplo do progresso dos Estados Unidos como uma meta a ser atin-gida. Não foram poucas as vozes que advertiram D. Pedro II do perigo que a abolição seria para a dinastia.

Assim, a explanação fatalista do final do Império e o conseqeunte advento, cedo ou tarde, da República encontra sua origem no próprio momento em que a sociedade se confrontava com seus caminhos. No entanto, enquanto para os contemporâneos a história imediata abria-se em perspectivas e expectativas de um futuro não pré-figurado, para os historiadores os futuro foi visto como passado.

A persistência dessas ideias pode ser rastreada em produções de diferentes matizes, tanto nas que privilegiam os fatos como portadores de verdades absolutas, como também entre os revisionistas da década de 60 e seus seguidores que analisaram as mudanças estruturais do século XIX. Estes viram a República como uma necessária adequação da superestrutura do nível político-administrativo às exigências do modo de produção capitalista, desconsiderando as especificidades contidas nesse processo.

Embora existam diferenças substanciais no percurso explicativo das diferentes interpretações teóricas, o seu discurso acaba por desa-guar no mesmo resultado: a única solução para as “crises” do fim da Monarquia só poderia ser a República cafeicultora, precedida da dita-dura militar, como o foi. Portanto, percebe-se que posições diferentes lidam com os mesmos pontos referenciais, ou seja, os fatos consuma-dos. Seria temerário admitir ou recomendar que a historiografia não o fizesse, mas este não é o único ponto. Entre o momento imprevisível e o futuro já mumificado em passado, situa-se a historicidade.

Desse modo, os discursos historiográficos elaboraram uma narrati-va lógica e contínua na qual os testemunhos contestadores cederam lugar às nuanças dos triunfadores e os acontecimentos se ajustaram em encadeamentos que não possuíam, adquirindo inatacável coerên-cia.

Nos últimos dez anos, a produção historiográfica brasileira vem procurando se libertar das determinações fatalistas mas, muitas vezes, equivocadamente fragmentando, no exame da multiplicidade dos seus objetos, a própria abrangência do seu discurso. Ao lado de inegáveis avanços no conhecimento histórico, nota-se, em parte dessa produ-ção, a tendência a descartar, sem utilizar parâmetros críticos seguros, a valiosa contribuição do revisionismo marxista e da mal denominada “historiografia positivista”. Descer ao particular é uma incursão desejá-vel, assim como perceber historicamente o cotidiano, a memória e as manifestações culturais. Entretanto, esses procedimentos exigem um retorno dialético ao geral. Impõe-se uma volta à história da longa dura-ção com o objetivo de redimensionar as descobertas realizadas e, nesse fazer criativo, a erudição indubitavelmente assumirá um papel primordial.

“A historiografia da classe operária no Brasil: trajetória e tendências”.

Claudio H. M. Batalha

Como no caso de outros países, os primeiros estudos sobre a clas-se operária no Brasil foram produzidos por militantes. E, por militantes, entenda-se tanto sindicalistas e ativistas políticos de esquerda, como também jornalistas e advogados, vinculados de forma militante ao movimento operário.

Os tipos de produção militante têm a função legitimadora da classe, da política sindical, da corrente ideológica ou partido, ou, ainda, do indivíduo militante.

Até os anos 60, quando as sínteses sociológicas tornaram a histó-ria operária sindical um tema para análises acadêmicas, o que existia era a produção militante produzida em sua maioria por comunistas. Entretanto, isto não quer dizer que a produção militante esteja limitada ao período anterior a 1964, ou que ela esteja reduzida à produção de historiadores “amadores”.

Essa produção possui certos traços característicos, tanto no Brasil como em outros países, tais como: estilo hagiográfico; a já apontada

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função legitimadora do papel e das políticas das organizações ou dos indivíduos de que trata; a criação de uma cronologia própria; e a con-cepção teleológica da história.

Ao longo dos anos 60, teve início no Brasil uma tradição de estudos acadêmicos relacionados com a classe operária. Essa tradição abar-cava sociólogos preocupados em elaborar grandes sínteses, que es-tabeleciam teorias explicativas do movimento operário e de suas op-ções ideológicas. Foi com ela que foram introduzidas e cristalizadas noções como: a origem estrangeira da classe operária; o vínculo entre a introdução do anarquismo e essa origem; a hegemonia do anar-quismo no movimento sindical da Primeira República.

Nos anos 1970, a história acadêmica entrou no campo dos estudos operários que até então estava limitado à sociologia e em menor grau à ciência política. Para isso tiveram contribuição decisiva os trabalhos desenvolvidos pelos acadêmicos americanos especializados no Brasil, conhecidos como “brasilianistas”.

É Boris Fausto (1976), que é provavelmente o mais conhecido tra-balho brasileiro nesse campo de estudos desses anos, a ter uma perspectiva historiográfica. Mesmo contendo alguns elementos da produção sociológica anterior, em cuja trilha situa seu próprio trabalho, e uma tendência a julgar negativamente o movimento operário do início do século, o autor recorre às fontes de imprensa e à pesquisa em arquivos e bibliotecas. Desse modo, inaugura entre os estudiosos brasileiros da classe operária, procedimentos de pesquisa que são de praxe entre os historiadores, mas que até então eram pouco seguidos.

O final dos anos 70 e o início da década de 1980 foram marcados por mudança na conjuntura que deu novo alento à história operária, particularmente, a volta à cena do operariado em 1978, com a greve dos metalúrgicos do ABC paulista. Esse momento foi captado com precisão na comunicação apresentada no encontro regional da Asso-ciação Nacional dos Professores Universitários de História (ANPUH) daquele ano, por Kazumi Munakata (1980).

Entretanto, esse processo implicou uma crescente fragmentação do campo de estudo. A teoria cedeu espaço para estudos de caráter mais empírico, em parte, uma reação natural à produção de sociólogos e cientistas políticos nesse campo. Sínteses e histórias gerais foram substituídos por temas bem mais delimitados e circunscritos.

No entanto, o que tinha sido – até então – um campo de estudos relativamente bem definido passa a fundir-se e confundir-se com ou-tros campos (estudos urbanos, cidadania e política, etc.) e chega ao final dos anos 80 em crise. Essa crise tem várias explicações: a frag-mentação do campo de estudo e a aproximação com outras áreas conduzindo a uma crise de identidade, é apenas uma delas. É eviden-te que a crise da esquerda, agravada pelo desmantelamento do socia-lismo real, também exerceu um efeito significativo, afinal boa parte da pesquisa no campo da história de que estamos falando foi realizada por pessoas que em algum grau se identificavam com a esquerda.

Até o presente parece claro que a crise iniciada no final dos anos 80 está longe de ter sido superada. As recentes vitórias de partidos de esquerda e certa reanimação do movimento sindical em países da Europa ocidental não parecem suficientes para alterar o quadro atual nos estudos da classe operária.

“Anos trinta e política: história e historiografia”.

Vavy Pacheco Borges

Em outubro de 1930, iniciou-se um largo período – podemos dizer, um quarto de século – em que Getúlio Vargas foi a figura predominan-te no cenário político nacional; isso parece propiciar uma certa ideia de continuidade para uma história política vista a partir das grandes figu-ras, como a que predominou por muito tempo na historiografia e que permanece até hoje no senso comum. Para muitos, esses são os “anos Vargas”, um período temporal que constituiria uma totalidade marcada por essa forte presença política e que por ela, em última instância, se explicaria. Embora ainda se encontre freqeuntemente essa periodização, a história pelas grandes figuras está há décadas proscrita na universidade; entretanto, com a afirmação crescente do papel do indivíduo na sociedade, os historiadores da política voltam a se preocupar com o papel que os grandes personagens tiveram, têm e provavelmente sempre terão na política; suas ações, se não explicam a história toda, têm nela um peso muito significativo que cabe ao histo-riador aquilatar.

Aos poucos, foi se esgarçando a concentração das análises em torno desse eixo de periodização e interpretação, acabando por perder qualquer importância na produção histórica que se pretende inovado-ra. À crítica aos modelos se agregou a já antiga crítica aos finalismos, ao historiador visto como um profeta do passado, pois ele, colocado no que por vezes é visto como ponto de chegada, procuraria construir corretamente o percurso de um “processo” percorrido, visto como o único possível.

A crítica da problemática da natureza da revolução de 1930 e de um percurso revolucionário posterior foi desenvolvida, ainda nos anos 70, por Edgar De Decca e Carlos Alberto Vesentini; um artigo dos dois surgiu em 1977, com caráter de denúncia da memória desse tema e se tornou mais uma referência obrigatória.

Ao se aproximaremos anos 90, estava jogada uma pá de cal no problema da revolução; se se discutira bastante nessa década sobre as alternativas políticas de reforma ou revolução, passou-se depois a discutir a “questão democrática”, reaberta na segunda metade dos anos 80, Edgar De Decca chamava a atenção para as “representações da revolução elaboradas sobretudo a partir das experiências políticas dos anos sessenta”. E concluía afirmando que “no debate político e no campo historiográfico a questão da revolução se esvanece”, lembran-do as vertentes inglesa e francesa que marcaram esse percurso de denúncia. Assim, passa-se de referências às interpretações da revolu-ção a partir do conceito de ideologia, para um enfoque mais amplo, em torno do conceito de representação.

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“Estado Novo: novas histórias”.

Maria Helena Rolim Capelato

O populismo, fenômeno amplamente analisado por sociólogos, ci-entistas políticos e economistas, mereceu, nos últimos anos, a atenção dos historiadores brasileiros. Especial interesse foi demonstrado pelo estudo do varguismo, sobretudo o denominado “primeiro período” – anos 30 e Estado Novo.

Os estudos sobre o populismo brasileiro elaborados até a década de 70 tendiam a enfocar o processo histórico mais geral, tomando como balizas as décadas de 30 e 60: a “Revolução de 1930” é indica-da como marco inicial e a “Revolução de 1964” como marco final. Nessa perspectiva, vários trabalhos se referem ao populismo como um todo indiferenciado, sem levar em conta as diversas conjunturas que permitem explicar, de forma mais aprofundada, a “Revolução de 1930”, o Governo Provisório de 1930 a 1937, o advento do Estado Novo, a redemocratização de 1945, o segundo período Vargas, a polí-tica desenvolvimentista de JK, os conflitos políticos do início dos anos 60 e o desfecho na “Revolução de 64”. O método explicativo mais amplo não permite a colocação de questões específicas sobre cada momento desse processo, interpretado como um modelo econômico e político particular que tipifica uma etapa do capitalismo brasileiro.

A nova historiografia propõe um caminho inverso: privilegia as par-ticularidades nacionais e os recortes mais específicos. Em lugar das grandes sínteses e das generalizações teóricas – que certamente trouxeram contribuições muito importantes para a compreensão do período -, os pesquisadores na área buscam hoje a “reconstituição histórica concreta” dos vários populismos.

Nesse contexto, o varguismo ganhou espaço na produção historio-gráfica brasileira, mas a atenção se voltou, sobretudo, para a fase de 1930 a 1945; o Estado Novo aí se coloca como um tema de especial interesse, principalmente para os que se dedicaram ao estudo dos aspectos políticos e culturais dessa experiência. Em contrapartida, o segundo governo de Vargas foi relegado a um plano secundário, regis-trando-se poucos trabalhos na área de História referentes a esse mo-mento.

Tomando como exemplo aspectos da propaganda política relacio-nados aos meios de comunicação e cultura, vê-se que, mesmo nesse terreno, onde o influxo externo foi forte, os resultados brasileiros foram particulares, deixando evidentes os limites de controle do Estado. A existência de perspectivas distintas com relação à radiodifusão e inte-resses divergentes na área cinematográfica revelam que não houve um enquadramento total dos veículos de comunicação nos moldes ideológicos do Estado Novo.

A diversidade de projetos indica o caráter multifacetado da política estadonovista; o regime, embora apresentado pela propaganda políti-ca como um organismo homogêneo e harmônico, capaz de pairar acima dos anseios individuais e de grupos, foi palco de interesse con-flitantes. No embate das forças políticas, houve a eliminação de planos

ou de parte deles e a integração de propostas distintas, que resultaram em algo diverso do que fora idealizado inicialmente pelos diferentes grupos em disputa pelo controle dos meios de comunicação.

A política varguista, embora tenha inovado em muitos aspectos, em outros deu continuidade a procedimentos arraigados na tradição políti-ca brasileira, como é o caso da prática de valorização das elites e exclusão das massas, que explica a limitada preocupação em mobili-zá-las para uma atuação mais próxima do poder.

Essas constatações corroboram a ideia de que o conceito de totali-tarismo é inadequado à caracterização do Estado Novo. Cabe ressal-tar, que o governo descartou os projetos mais radicais de uso intenso dos meios de comunicação para fins de propaganda política.

A política cultural do regime, embora tenha se inspirado nas experi-ências nazi-fascistas, distanciou-se delas em muitos aspectos: en-quanto na Alemanha e na Itália houve um grande esforço para organi-zar uma “cultura de consenso”, através da conquista de uma sólida base de apoio envolvendo diferentes setores sociais (populares, espe-cialmente), no Brasil o governo preocupou-se em estruturar uma políti-ca de consenso que envolvia, prioritariamente, os setores de elite, onde foi buscar a legitimação do regime.

Os novos estudos sobre o período mostram que, na esfera da pro-paganda política e da política cultural, são identificáveis traços de concepções totalitárias na construção dos imaginários sociais, traços que, associados a concepções e condutas autoritárias oriundas de um passado mais distante, serviram de referência para a elaboração de novas formas de controle social nos anos 30, que se mostraram tão eficazes naquela conjuntura a ponto de garantir sua continuidade até o presente. A persistência, por sua vez, de componentes da cultura política introduzida pelo varguismo dificulta a consolidação das práti-cas democráticas na sociedade atual.

“História das mulheres: as vozes do silêncio”.

Mary Del Priore

Numa obra clássica, O segundo sexo, publicada em 1949, Simone de Beauvoir fez uma observação fundamental: as mulheres não ti-nham história, não podendo, conseqeuntemente, orgulharem-se de si próprias. Ela dizia ainda que uma mulher não nascia mulher, mas tornava-se mulher. Para que isso acontecesse, ela deveria submeter-se a um complexo processo, no seio de uma construção histórica cujo espírito determinaria seu papel social e seu comportamento perante o mundo. Beauvoir sabia que o território do historiador manteve-se, durante muito tempo, exclusividade de um só sexo. Paisagem marca-da por espaços onde os homens exerciam seu poder e seus conflitos, empurrando para fora desses limites os lugares femininos. Assim, sendo, espaço comum de homens e mulheres, a família, acabou por tornar-se uma região particular, uma espécie de geografia insular. Sobre este solo de história, as mulheres, de forma precária, tornaram-se herdeiras de um presente sem passado, de um passado decompos-to, disperso, confuso.

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O alerta dado pela filósofa francesa serviu como um dos textos fun-damentais para o movimento feminista, movimento nascido de outro, em prol dos direitos civis. Um dos primeiros objetivos do movimento consistia em apreender o passado legítimo das mulheres, introduzin-do-as, definitivamente, na história.

O interesse que a história da mulher recebeu no estrangeiro teve um primeiro reflexo no Brasil no final dos anos 70. Desde 1978, os pesquisadores da Fundação Carlos Chagas de São Paulo começaram a coletar material para a realização de uma bibliografia concernente a trabalhos, na área de ciências humanas voltadas para o tema da “mu-lher”. O papel relevante dessa fundação não parou aí. Uma série de concursos, realizados a cada dois anos, fizeram aflorar pesquisadores e temas bastante interessantes numa paisagem ainda vazia de auto-res.

No Brasil, a produção acadêmica incide não só sobre as mulheres, mas também sobre o vasto território no qual elas se movimentam. A história das mulheres engloba, portanto, a história de suas famílias, de suas crianças, de seu trabalho, de seu cotidiano, de suas representa-ções na literatura, na mídia, na sociedade na qual estão inseridas. Sua história é a história de seu corpo, de sua sexualidade, da violência que sofreu ou praticou, da sua loucura, dos seus amores e outros senti-mentos.

Sua história é, igualmente, a das representações que se fazem so-bre elas. De um lado, a casta, a boa esposa e mãe, a sedutora e, por outro lado, a feiticeira, a lésbica, a rebelde, a prostituta e a louca. As mulheres saltam de uma cronologia ditada pelas fontes documentais, fontes elas mesmas tradutoras de mudanças estruturais no mundo político, econômico, religioso. Elas circulam em documentos de toda a sorte: processos de Inquisição, processos-crime, leis, livros de medici-na, crônicas de viagens, atas de batismo, casamento e óbito, diários, cartas, fotos, relatórios médicos e policiais, etc. O exame e a interpre-tação desses documentos faculta a realização de um história relacio-nal, marcando a produção historiográfica com a complexidade e a diversidade das experiências vividas por nossas mulheres.

Um problema da historiografia brasileira sobre a mulher diz respeito ao fato de que, diferentemente do que ocorreu nos países estrangei-ros, a chamada História Social da Mulher não teve entre nós tanta repercussão a ponto de inundar o mercado editorial de publicações diversas, inspiradas por engajamentos ou convicções éticas, ou ainda por pesquisas acadêmicas que fornecessem sobre o assunto uma bibliografia mais vasta do que a existente. O historiador tem dificulda-de em dialogar com um número significativo de pares, além do grosso da bibliografia publicada encontrar-se no sudeste. Faltam debates sobre a história da mulher, fora do círculo restrito das pioneiras.

A abordagem metodológica utilizada pela maioria dos historiadores, a da história social, encontra-se vincada pela complexidade dos pro-blemas que a cercam e pelas dificuldades de transformar o material histórico em alavanca do próprio trabalho.

“História e historiografia das cidades, um percurso”.

Maria Stella M. Bresciani

As cidades são, antes de tudo, uma experiência visual. Traçado de ruas, essas vias de circulação ladeadas de construções, os vazios de pessoas e a agitação das atividades concentradas num mesmo espa-ço. E mais, um lugar saturado de significações acumuladas ao longo do tempo, uma produção social sempre referida a algumas de suas formas de inserção topográfica ou particularidades arquitetônicas.

Entre as possibilidades de entrar na cidade moderna, temos aquela que se detém na sua materialidade: implantação do terreno, traçado de ruas e praças, as formas arquitetônicas de seus edifícios públicos e particulares.

Reconhecidamente, o tema urbano tem sido, entre os estudiosos das cidades brasileiras, objeto das pesquisas de geógrafos, arquitetos e urbanistas, sociólogos, economistas e, mais recentemente, de antro-pólogos e historiadores. É importante notar que somente na década de 80, uma área temática específica sobre cidades ganha definição preci-sa como linha de pesquisa em programas de pós-graduação na uni-versidade brasileira, dando lugar à formação de grupos de pesquisa-dores e estimulando os estudos urbanos nos domínios da historiogra-fia.

Apropriações de terrenos em áreas periféricas da cidade ocorrem de maneira simultânea, mostrando a outra face da questão da pobreza urbana. As justificativas para as invasões repetem a mesma relação de disparidade entre o preço do aluguel e a remuneração salarial. As pessoas deixam muitas vezes casas de alvenaria para morar em bar-racos autoconstruídos. Os “invasores” não têm garantia nenhuma de permanecerem nos locais ocupados, mostrando enfaticamente que o acesso à moradia encontra-se entre os maiores problemas da metró-pole paulistana.

Evidência irrefutável de que, inserida na cidade formal, uma cidade informal, clandestina e indesejável se faz cada dia mais presente. Falência da cidade? Má formulação ou má aplicação de políticas urba-nas? Incapacidade do mercado de trabalho de oferecer emprego a todos e salários dignos a uma grande parcela da população?

A convivência diária com camelôs, moradores de rua, assaltos, trânsito difícil, poluição, ou seja, uma longa série de problemas, faz do morador da grande cidade uma presa fácil da violência, das condições de vida degradadas. Falar da violência urbana, considerando somente vitimada a parcela formalmente instalada da população, constitui, sem dúvida, um ato violento.

O drama urbano tem duas faces, e com certeza a mais bárbara constitui a da negação de condições humanas mínimas para a popula-ção pobre, desempregada e mesmo para parte da formalmente inseri-da no mercado de trabalho.

Sem dúvida, se a questão habitacional constitui um problema per-sistente em São Paulo e nas outras grandes cidades brasileiras, não é

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contudo o único. A precária manutenção do equipamento urbano – calçamento de ruas, avenidas e demais vias de circulação, cuidado com jardins e praças arborizadas, vistorias em vias elevadas e inúme-ras pontes e viadutos -, a incapacidade das autoridades públicas em resolver as demandas dos meios coletivos de transporte, e mesmo do transporte de cargas que congestiona as avenidas marginais e atra-vessam áreas densamente povoadas da cidade, se pontuam questões básicas não resolvidas no município de São Paulo, reaparecem de maneira pouco diferenciada em outras cidades menores.

As propostas de intervenção no traçado das cidades constitui a di-mensão complementar das preocupações sanitárias das autoridades públicas. Planos de saneamento das várzeas, esforços para hierarqui-zar os espaços da cidade em áreas comerciais, industriais, residenci-ais ricas e operárias, etc. percorrem a documentação oficial de São Paulo desde os primórdios da República. Buscando formação universi-tária em instituições estrangeiras e participando de encontros científi-cos internacionais, médicos sanitaristas e engenheiros civis brasileiros mostraram-se bastante atualizados a respeito das coordenadas da nascente disciplina do urbanismo.

“Sobre História, Braudel e os vaga-lumes. A Escola dos Annales e o Brasil (ou vice-versa)”

Paulo Miceli

As reflexões iniciais de Antonio Candido no prefácio à quinta edição de Raízes do Brasil apontaram para o significado que o livro de Sérgio Buarque de Holanda tivera no processo de constituição das novas formas de se pensar o Brasil, a partir da segunda metade dos anos 30.

A importância de Casa Grande & Senzala, de 1933, vinha de sua composição livre e da franqueza com que o autor tratara de temas pouco usuais nos estudos sobre a história do Brasil, especialmente relacionados à sexualidade; do livro de Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido destacou o fato de que a obra, construída sobre uma admirável “metodologia dos contrários”, investia contra o dogmatismo e abria campo para a meditação de tipo dialético, ao mesmo tempo que punha sob suspeita o saber aparente, cujo fim está em si mesmo e por isso deixa de aplicar-se a um alvo concreto, sendo procurado sobretudo como fator de prestígio para quem sabe. Finalmente, o grande livro de Caio Prado Júnior, de longe o mais competente histori-ador marxista brasileiro, caracterizado por uma exposição de tipo fac-tual, inteiramente afastada do ensaísmo (marcante nos dois anterio-res).

Além de assinalar com precisão um processo de nítida ruptura com o passado de nossa historiografia (Oliveira Viana, especialmente, e Alberto Torres), esses três livros exibem o fato de que a tarefa de pensar os problemas sociais a partir do passado – objetivo comum a seus autores – foi realizada externamente à Universidade, em deso-bediência a quaisquer cadeias de sucessão e mesmo de subordinação às “famílias” que, tradicionalmente, conformam e põem sob limites o saber acadêmico.

Um ano antes da primeira edição de Raízes do Brasil, em fevereiro de 1935, Fernand Paul Achille Braudel chegava ao porto de Santos, a bordo de um luxuoso navio. Nascido no mesmo ano de Sérgio Buar-que de Holanda (1902), Braudel substituíra um professor da Sorbonne, recentemente falecido, integrando a missão francesa encarregada de organizar a Universidade de São Paulo.

A importância que Braudel atribuiu à sua passagem por São Paulo é tema recorrente em todas as entrevistas onde tratou do processo de conformação de seu pensamento. Aqui, ao invés de complexos con-ceitos elaborados a partir das heranças e desdobramentos em que, de hábito, sustentam-se as reflexões sobre os processos formadores do saber, aparecem palavras como amizade, comportamento sentimental, etc.

Assim, em síntese, o Brasil ofereceu a Fernand Braudel uma gran-de lição de história. Na viagem, a presença insistente de traços carac-terísticos e reforçadores de um multissecular passado colonial. Na chegada, um dos pólos conformadores da grande clivagem em que se assenta a sociedade brasileira, representada pela pujança material de São Paulo, pobremente ilustrada pelo seu primeiro arranha-céu, de onde se poderia enxergar à distância os bairros operários e cortiços que a valorização imobiliária afastava cada vez mais da região central da cidade.

Além disso, durante os anos de permanência, a amizade que, no Brasil dos intelectuais, costuma-se dedicar ao estrangeiro. Finalmente, a possibilidade de efetivar seu trabalho, graças a uma espécie de “longa duração” em que se dispõe o trabalho acadêmico.

Por essas razões, mais do que refletir sobre a influência da Escola dos Annales no Brasil, parece mais correto considerar, numa relação dialética, as influências no sentido inverso. Por isso Braudel jamais publicou um livro sobre o Brasil: não estavam aqui os seus problemas e questões, mas apenas e principalmente um vasto laboratório para aferição e desenvolvimento de seus conceitos fundamentais.

Entendem-se as razões pelas quais a universidade jamais conviveu em paz com Braudel e escrever sobre ele e sobre a escola dos Anna-les acabou virando um risco agradável. O risco vem de se viver num país onde autoproclamar-se salvador do mundo, em muitos casos, faz as vezes da competência acadêmica. O prazer vem de repor em cena a indesejável presença de alguém que ainda incomoda a modorrenta paz da universidade, pois, como ele próprio afirmou, os quadros men-tais também são prisões de longa duração. Prisões de limites muito estreitos, seria possível dizer.

“Histórias que os livros didáticos contam, depois que acabou a ditadura no Brasil”.

Kazumi Munakata

Nos anos 70 e 80, um gênero literário fez relativo sucesso no Bra-sil: o que se poderia denominar “As Belas Mentiras”. Tendo talvez como matriz a obra Mentiras que parecem verdades, de Eco e Bonazzi (1980), ou também A manipulação da história no ensino e nos meios

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de comunicação, de Ferro (1983), uma série de pesquisas acadêmicas dedicaram-se a flagrar nos livros didáticos e paradidáticos brasileiros a presença insidiosa da mentira, da manipulação, do preconceito, da mistificação, da legitimação da dominação e da exploração burguesas – em suma, da ideologia. Os títulos e os subtítulos de algumas dessas pesquisas já indicavam-lhes a intenção: “versão fabricada”, história mal contada”, belas mentiras”.

Certamente, esse gênero literário nutriu-se de uma conjuntura polí-tica em que, para muitos setores da sociedade brasileira, era funda-mental a crítica do regime militar e de seus “entulhos autoritários” (co-mo se dizia na época). Livro didático e paradidático era compreensi-velmente objeto de suspeição, do mesmo modo que era suspeita – e não sem razão – toda a organização escolar consolidada pela ditadu-ra.

Em particular não foi desprezível a luta dos educadores, historiado-res e geógrafos contra o expurgo da grade curricular de História e Geografia, que cederam lugar aos Estudos Sociais, incluindo Organi-zação Social e Política do Brasil (OSPB) e Educação Moral e Cívica. Por isso, não surpreende que livros didáticos de História e Estudos Sociais tivessem sido o alvo preferencial do gênero “As Belas Menti-ras”.

Não há dúvida de que muitas belas (e também feias) mentiras fo-ram perpetradas em livros didáticos e paradidáticos. Mas não se pode deixar de constatar que esse tribunal de belas mentiras funcionou também como caça às bruxas, inquisição terrorista. Assim como as agências de informação do Estado descobriam subversão por toda a parte, também se suspeitava da presença insinuante da ideologia ali, a espreitar, por trás das frases aparentemente inocentes dos livros. É óbvio que ela estava lá, nos livros apologéticos do regime militar, mas também nos que, à primeira vista, pareciam “neutros” ou até mesmo “críticos”: a neutralidade, sabe-se, é um engodo e a postura crítica pode, muitas vezes, fazer o “jogo do inimigo”.

Nesse procedimento, tudo o que não correspondesse à ortodoxia (literalmente, opinião correta) era suspeito, e a suspeição já servia como peça de acusação.

Nos anos 90, o gênero “As Belas Mentiras” sobreviveu como folhe-tim nas páginas da imprensa diária. Por exemplo, em abril de 1994, a Folha de São Paulo publicou uma série de artigos sobre os trabalhos de uma comissão de 23 professores universitários de todo o país, constituída para avaliar os livros didáticos de primeiro grau e que con-cluiu que muitos desses livros apresentavam distorções e erros cras-sos de informação.

Em suma, a identificação de erros realmente preocupantes e críti-cas fáceis e subjetivas misturam-se apenas para produzir notícia.

Isso tudo causa uma sensação de estranhamento. É como se os li-vros didáticos, ao menos os de História, não tivessem passado por substanciais alterações desde os tempos em que eram acusados de servir ao regime militar e difundir a ideologia dominante.

Certamente, a crítica dos anos 90 acentua o tema do preconceito e da discriminação, próprio desses tempos do “politicamente correto”, mas essa questão estava quase implícita nas denúncias dos anos 70 e 80, do caráter “alienante”, “acrítico”, “oficialesco”, “atemporal”, “des-contextualizado” – enfim, a-histórico ou anti-histórico – da história praticada nos livros didáticos de História. É como se os livros e sua crítica – ou ambos? – tivessem petrificados no tempo.

Sabe-se, contudo, que ao menos o livro sofreu mudanças não des-prezíveis. Mercadoria, o livro precisa adaptar-se à demanda. Se a ventura sopra a favor das reivindicações democráticas, progressistas e até mesmo de esquerda; e se isso se traduz, na disciplina de História, na valorização de abordagens que presumivelmente propiciem a “re-flexão”, a “crítica”, a “conscientização” e a “promoção da cidadania”, a empresa capitalista que produz livros a esse respeito prefere atender a essa demanda do que permanecer fiel à sua suposta “ideologia”. Ou melhor, o mercado é a própria ideologia dessas empresas.

Essa renovação não contou apenas com a incorporação, nos livros didáticos, de “novos problemas, novas abordagens, novos objetos” propostos pela chamada “Nova História”. Ou melhor, para que isso se tornasse possível, as próprias editoras reorganizaram o processo de trabalho, consolidando-se como verdadeiras indústrias.

A proposta da história temática acarretou, ao menos entre os pro-fessores da rede paulista, uma conseqüência, embora involuntária: a produção em massa da ignorância. Os professores não apenas tinham dificuldade em agrupar por temas os conteúdos históricos, mas quan-do tentavam fazê-lo percebiam que nada sabiam sobre o tema cons-truído. Uma coisa é, por exemplo, falar da caravela em meio à narrati-va sobre a formação dos Estados Nacionais, o mercantilismo, as gran-des navegações, e a chegada dos portugueses às terras que se cha-mariam mais tarde Brasil; outras coisa é falar dela numa eventual história de transportes. O mesmo também aconteceu em relação à história do cotidiano, também insinuada na Proposta Curricular. Como abordar, por exemplo, o cotidiano do engenho colonial, se este era até então apenas um dos tópicos econômicos do “Brasil Colônia”?

A publicação de paradidáticos seguiu prontamente, na década de 90, essa solicitação. Entretanto, no caso dos didáticos propriamente ditos, a esmagadora maioria optou pelo desenvolvimento de conteú-dos já consagrados pela tradição. A seqüência desses conteúdos podia sofrer variações; algumas obras mesclaram a História Geral com a História do Brasil; outras prestaram tributo a “novos objetos”; incluin-do flashes do cotidiano ou mentalidades, mas o fundamental perma-neceu inalterado.

Na mesma época em que muitos pesquisadores universitários de-nunciavam nos livros didáticos as “belas mentiras”, que favoreceriam a classe dominante, autores e editores produziam livros didáticos procu-rando, além de ganhar dinheiro, participar da luta pela consolidação da democracia e da cidadania no Brasil. Para isso valeram-se de uma história consolidada, com seus temas, períodos e personagens bem assentados, mas invertendo-lhes o significado ou reorganizando-os

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mediante certos conceitos como “modo de produção”. Mas sabe-se, desde Vesentini e De Decca (1976), que o vencedor da história é tam-bém aquele que institui a memória da sua vitória como “a” História, cancelando, nesse ato a história do vencido. Em outras palavras, a história do vencedor com sinais trocados (ou com outros conceitos) continua sendo a história do vencedor; inverter-lhe o significado não restitui a história do vencido. Teriam então razão os inquisidores das “belas mentiras”, que souberam flagrar a ideologia que se ocultava por trás das boas intenções?

Seja como for, o que acabou prevalecendo como currículo de Histó-ria no vazio da iniciativa do governo é esse conteúdo consensual dos livros didáticos, complementado pelos paradidáticos. E na medida em que as editoras paulistas têm praticamente o monopólio do mercado dos livros didáticos de todo o país, não é exagero supor que tal “currí-culo” informal tenha alcançado abrangência nacional. Diante desse fato consumado, a Proposta Curricular de 1992 caiu no vazio, mesmo porque a enumeração dos conteúdos – a despeito de sua introdução teórica, que propõe uma abordagem próxima à da história do cotidiano tendo como eixo quatro temas – em quase nada difere dos já consa-grados.

“Regionalismo e História da Literatura: quem é o vilão da História?”.

Marisa Lajolo

Nesta acidentada história do percurso da noção de regionalismo, percebe-se como o conceito – independentemente da nomenclatura que receba -, desenvolvido a partir e a propósito de certo tipo de pro-dução literária brasileira, é requisitado com freqüência na tradição de nossa crítica e história literárias como divisor de águas entre a boa e má literatura.

Desde o Florilégio de Varnhagen, passando pelas sistematizações pioneiras de Sílvio Romero e José Veríssimo, até obras mais contem-porâneas, a identificação de uma literatura “americana”, sertaneja” ou “regionalista” acompanha a diferenciação de um determinado segmen-to da produção literária brasileira.

Marcando-o através do adjetivo que o qualifica, opõe esse segmen-to a outro que, na ausência de uma qualificação específica, deixa su-bentendido seu caráter, senão “urbano”, ao menos “não regional”. Inscreve-se, assim, o binômio regional/urbano em outro, a antinomia universal/particular de tradição antiga nos estudos literários, e trans-forma-se num dos divisores de águas da literatura brasileira.

Mas a inclusão de um texto na categoria “regionalismo” não é neu-tra: no limite, regionalismo e regionalista são designações que reco-brem, desvalorizando, autores e textos que não fazem da cidade mo-derna sua fonte de inspiração, nem da narrativa urbana padrão de linguagem.

Obras e autores regionalistas – salvo exceções como alguns ro-mancistas de 30 e as veredas sertanejas de Guimarães Rosa – cos-

tumam ser vistos pela crítica (e conseqeuntemente pela história literá-ria) como esteticamente inferiores, sendo a superioridade da produção literária não regionalista vinculada à sua universalidade, categoria também responsável pela redenção de escritores como Graciliano Ramos e Guimarães Rosa que em nome da abrangência de sua obra alçam vôo da vala comum do regionalismo.

Distinção homóloga vive no resto da literatura latino-americana e também na africana, contextos dos mais promissores para se estudar a questão do regionalismo. Nesse âmbito maior, o regionalismo pode ser visto de outra maneira: ele talvez constitua uma dissidência da matriz europeia e através de procedimentos literários pouco ortodoxos busque articular-se ao hibridismo mestiço das várias culturas latino-americanas. É nesse sentido que apontam instigantes trabalhos de Angel Rama, Cornejo Polar, Fernandes Retamar e Walter Mignolo.

E é também dessa perspectiva que os preconceitos com que a crí-tica e a história literária brasileiras lidam com o regionalismo podem revelar seus contornos ideológicos e sua dimensão política: seus pro-tocolos de leitura literária são urbanos e ortodoxos e talvez codifiquem, no rótulo “regionalismo/regionalista” sua incapacidade de dar conta do modo de ser mestiço da literatura regionalista que, produto cultural crioulo como a país, é carimbado como estrangeiro pelos olhos urba-nos e europeizados da crítica.

“A configuração da historiografia educacional brasileira”.

Marta Maria Chagas de Carvalho

Nos últimos anos, a historiografia educacional brasileira tem sido amplamente reconfigurada por redefinições temáticas, conceituais e metodológicas que pões em questão a sua forma tradicional. O mape-amento e a crítica dessa produção vêm sendo objeto de vários estu-dos que, sob ângulos diversos, têm posto em evidência os constran-gimentos teóricos e institucionais que marcaram o processo de consti-tuição da História da Educação como disciplina escolar e campo de pesquisas.

Em artigo de 1990, Warde sustenta que na sua gênese e no seu desenvolvimento, a História da Educação brasileira carrega uma mar-ca que lhe é conformadora: a de ter nascido para ser útil e ter sua eficácia medida não pelo que é capaz de explicar e interpretar, mas pelo que oferece de justificativas para o presente.

Essa espécie de pressentimento pragmatista é, segundo Warde, decorrência do processo que instituiu a disciplina e marcou o seu de-senvolvimento no Brasil. Em tal processo, a gênese e o desenvolvi-mento da História da Educação estão no campo da Educação, no qual ela foi convertida em enfoque, em abordagem. O que significou não ter sido instituída como especialização temática da História, mas como ciência da educação ou como ciência auxiliar da educação.

No Brasil, esse processo de subtração da História da Educação do campo da História e de sua inserção entre as ciências da educação subordinou-se aos critérios de hierarquização e composição que co-

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mandaram os investimentos teóricos e institucionais do grupo de inte-lectuais que ficou conhecido como “renovadores da educação”.

Foi assim que a História da Educação teve seu estatuto configura-do: instituiu-se como disciplina escolar, nos cursos de formação de professores, nos anos 30. Nesse processo, foi apartada do campo de investigação histórica e, ao mesmo tempo, secundarizada no campo da educação, no qual a Sociologia, a Psicologia, por extensão, a Bio-logia ganharam, no mesmo processo, o estatuto de ciências matriciais. Subordinada à Filosofia, configurou-se como disciplina escolar de caráter formativo, marcadamente moralizador.

Posteriormente, na década de 50, quando efetivamente começam a surgir estudos de História da Educação, a produção nesse campo é, segundo Warde, hegemonizada pelo que chama de “pressentismo pragmatista”. Essa hegemonização se dá, segundo a autora, a partir do momento em que a memória dos renovadores se apropria dos fatos e é, enfim, erigida à condição de conhecimento histórico.

Esses constrangimentos teóricos e institucionais apontados por Warde são efetivamente determinantes do perfil da História da Educa-ção como campo de pesquisa. O atrelamento inicial da disciplina a objetivos de formação de professores e pedagogos dificultou, até mui-to recentemente, a sua constituição como área de investigação histori-ográfica capaz de se autodelimitar e de definir, com base em sua pró-pria prática, questões, temas e objetos.

Isso tornou a disciplina frágil diante das demandas postas a parir de outros campos de investigação sobre educação que hegemonizaram a produção da pesquisa, a partir da instalação dos Programas de Pós-Graduação, na década de 70; o que reforçou a dificuldade de a disci-plina definir-se a partir de questões postas do seu interior.

Esses constrangimentos teóricos e institucionais são ainda atuan-tes, sobretudo porque reforçados por políticas editoriais muito pouco interessadas em trabalhos historiográficos sobre educação que esca-pem às determinações acima referidas; talvez porque sejam essas mesmas determinações que comandem as expectativas do público-leitor visado.

As concepções desses “renovadores” sobre a natureza do conhe-cimento e dos processos de sua produção e transmissão foram sem dúvida determinantes na configuração das instituições de ensino e pesquisa no Brasil, a partir dos anos 20. Por mais de meio século puderam pô-las em prática, na intensa atividade que tiveram como idealizadores e organizadores dessas instituições.

Mas, além dessa notável participação no processo de institucionali-zação do ensino e da pesquisa no país, eles se firmaram no mercado editorial através de obras próprias ou da organização de coleções. A hegemonia que desse modo conquistaram era objetivo que norteava seus investimentos intelectuais e suas iniciativas como homens públi-cos, na consecução do que entendiam ser um programa de “organiza-ção nacional através da organização da cultura”.

Levar em conta a sociologização do campo de pesquisas educaci-onais e o peso que tiveram os “renovadores da educação” no processo que configurou a historiografia educacional é perspectiva também assentada nos trabalhos de Warde e nas hipóteses que nortearam as pesquisas desenvolvidas no âmbito de projeto por ela coordenado. O papel de Fernando de Azevedo na sociologização da disciplina vem sendo sublinhado por alguns dos resultados desses trabalhos, aliás.

A elaboração sociológica do “entusiasmo pela educação” pode ser um dos elos explicativos da longa permanência de um modo de narrar a História da Educação. A hegemonia da análise sociológica, que se instala no campo da pesquisa educacional a partir dos anos 50, facili-tou a circulação de A cultura brasileira como obra de referência que atendia a demandas de síntese, abrangência e totalização explicativa.

Provavelmente, a sociologização do campo educacional também moldou um padrão de apropriação historiográfica dessa obra de socio-logia que é o livro de Azevedo, constituindo disposições e expectativas de leitura pela sedimentação que promoveu de concepções sobre a sociedade e a função social da educação.

“História dos intelectuais nos anos cinqeunta”.

Leandro Konder

As mudanças que ocorriam na sociedade brasileira, nos costumes, na vida cultural, nas atividades políticas, no cotidiano da população e nas relações com mundo do exterior, não podiam deixar de influir nas modificações da maneira de pensar a história. O processo pelo qual a história era repensada, entretanto, era inevitavelmente contraditório.

Os intelectuais refletiam sobre a história de ângulos diversos e viam nela coisas muito diversas. Os historiadores não se moviam numa mesma direção. As análises e revisões que era empreendidas se fazi-am em torno de questões distintas e a partir de avaliações fundadas sobre critérios não coincidentes. Definiam-se pontos de vista contras-tantes a respeito dos problemas que haviam sido enfrentados nos caminhos que havíamos trilhado. A história era reconsiderada à luz de preocupações que divergiam conforme a interpretação era feita por cada um dos seus intérpretes.

Em alguns aspectos, a divergência se ligava à diversidade de expe-riências particulares de uma história vivida em espaços específicos distintos: era compreensível que a ênfase posta na seleção de tendên-cias e eventos mais importantes não fosse exatamente a mesma aos olhos de um historiador – ou de um intelectual, em geral – situado em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, no Norte, no Centro-Oeste, no Sul ou no Nordeste.

Mas a variação de ótica nunca depende exclusivamente da locali-zação geográfica do observador; de certo modo, na abordagem de certas questões, ela depende das opções filosóficas, das posições teórico-políticas, da escala de valores, da inserção social de quem formula as ideias. Quem reage diante dos movimentos sociais, diante dos conflitos políticos, adota sempre, implícita ou explicitamente, nor-

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mas e princípios que fundamentam a decisão a respeito do que deve ser alterado e do que deve ser conservado.

Os pressupostos ideológicos no trabalho dos intelectuais (e tam-bém, é claro, dos historiadores) nem sempre são assumidos franca-mente por eles, seja porque nem sempre são perceptíveis aos olhos daqueles que os encampam, seja porque não convém serem aberta-mente proclamados.

No âmbito das avaliações da nossa história que eram empreendi-das a partir de perspectivas conservadoras, no começo da década de 50, não se pode deixar de assinalar a influência exercida por Gilberto Freyre. O autor de Casa grande & senzala, que nos anos trinta havia prestado uma contribuição tão relevante para que os brasileiros se debruçassem menos preconceituosamente sobre as diferenças inter-nas da sociedade em que viviam, chegou aos anos 50 imbuído de convicções políticas marcadas pela “guerra fria” e por uma acentuada hostilidade à esquerda em geral.

Do ângulo conservador peculiar adotado pelo ilustre sociólogo per-nambucano, a história que estava se fazendo não era motivo de orgu-lho, mas de apreensão. Forças destrutivas estavam atuando de manei-ra pérfida, sob a influência do comunismo internacional.

Outra linha que pode ser reconhecida nas tentativas de interpreta-ção da história da sociedade brasileira, ao longo dos anos 50, é aquela que tem sido designada como nacional-desenvolvimentista. É uma linha que, sem dúvida, fortaleceu-se ao longo da década de 50. Um de seus precursores e, certamente, Hélio Jaguaribe.

Desde o início da década, o conhecido cientista político se empe-nhava em compreender aspectos importantes da nossa história à luz de um projeto comprometido com a promoção do nosso desenvolvi-mento. O desafio que estava posto no nosso caminho, portanto, era o de penetrarmos na Idade Moderna; para isso deveríamos promover o nosso desenvolvimento.

Coerente com seu ponto de vista, Hélio Jaguaribe fundou o Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política (IBESP), que, mais tarde, transformou-se no ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros).

A discussão do nacional-desenvolvimentismo da década de 50 foi marcada por apaixonados debates a respeito da opção entre a abertu-ra para um mercado mundial hegemonizado por forças estranhas aos interesses nacionais brasileiros ou a proteção das riquezas e da eco-nomia do Brasil contra a cobiça imperialista.

A década de 50 também é marcada pela emergência e consolida-ção de uma tradição marxista no pensamento brasileiro, Florestan Fernandes é, com certeza o principal nome dentre os intelectuais que fundaram tal tradição.

Multiplicavam-se os casos de intelectuais que se dispunham a in-corporar as ideias de Marx (e de autores marxistas) que lhes pareciam interessantes – e até indispensáveis – articulando-as, corrigindo-as ou complementando-as com outras teorias.

Na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, formou-se um grupo de estudos para a leitura de O capital, de Marx, integrado pelo filósofo José Arthur Gianotti, pelos sociólogos Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso (discípulos de Florestan Fernandes), pela antropóloga Ruth Cardoso, pelo economista Paulo Singer e pelo histo-riador Fernando Novais. Outros intelectuais mais jovens também foram envolvidos pelas atividades do grupo, como Bento Prado, Francisco Weffort, Roberto Schwarz, Gabriel Bolaffi e Michael Löwy.

Na disposição de fazer história, de empreender uma ação transfor-madora substantiva e eficaz, fortalecia-se um sentimento de revolta contra uma história que estava sendo feita por outros, que tratavam de mascará-la, fortalecia-se a convicção de que era necessário que os projetos de intervenção do sujeito na realidade objetiva se relativizas-sem para poderem ser reformulados, atualizados e enriquecidos.

“Iracema ou a fundação do Brasil”.

Renato Janine Ribeiro

Iracema, ao que consta, é nome de sonoridade indígena inventado por José de Alencar e que constitui o anagrama de América. Temos assim o nosso mais destacado escritor romântico rodeando a identida-de do continente, até chegar a um termo que teria enorme e fecundo destino: o de marcar – e legitimar – o encontro que deu início à nossa nacionalidade.

O objetivo desse artigo é ressaltar um ponto que parece ter recebi-do atenção menor que a merecida, até hoje: o fato de que o sacrifício de Iracema legitima a ocupação da terra pelo invasor. O romance assim, embora tenha por título o nome da virgem dos lábios de mel, funda, no absoluto de seu amor, a invasão e a conquista da América. Desloca-se, assim, o eixo da história de amor de dois jovens, para um quadro mais amplo: o que Martim Soares Moreno efetua é, possuindo, desvirginando, engravidando e de certa forma levando à morte a mo-ça, possuir, desvirginar, engravidar e conquistar sua outra identidade, o continente da América.

Alencar, perguntando pela fundação da pátria, quer volver os olhos para o momento de seu nascimento, como prenhe de um futuro. Seja o nobre Peri do Guarani, seja a nobilíssima Iracema, sejam os fidalgos portugueses como D. Antonio ou Martim Soares Moreno, o que temos é uma origem destacada, na qual avulta vera nobilitas. Haverá ele-mentos nocivos, mas que se descartam.

Contudo, por nobre que seja o nativo da terra, a aproximação ou o acasalamento com os nativos do Reino não tem futuro, só se admite se tiver, por horizonte imediato, a morte. Não pairam dúvidas de que Ceci e Peri se amam; mas, tratando-se de um caso em que o lado masculino é indígena, e em que, portanto, segundo concepções tão arraigadas que delas ainda não nos desvencilhamos, o encontro sexu-al dos dois implicaria necessariamente a subordinação da branca ao selvagem, no final do romance o que se destacará é a perda dos dois nas águas, seu destino fatal, e não um futuro possível, o desejado

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acordo sexual de seus corpos – ao qual, aliás, nunca passamos de alusões no decorrer da obra. Já em Iracema, a conjunção sexual ocor-re, mas em seu favor milita que o lado indígena esteja ocupado pela mulher.

Resumindo, o amor dos dois povos é fatal; se a mulher é índia, ela pare e morre, enquanto o marido, português, herda a terra; se a mu-lher é branca, o amante índio e ela mesma morrem, sem terra (no meio das águas), e sem querer haverem aludido ao sexo. O ameríndio morre sempre. Noé às avessas, porque sem barco, sem terra a avis-tar, Peri só lega uma lenda. Iracema, com a lenda, lega o Ceará a seu primeiro senhor, a seu fundador.

Iracema é uma lenda inventada. Diz Alencar, na carta ao Dr. Jagua-ribe que publica como posfácio à primeira edição, que pensara escre-ver uma biografia de Poti, ou Camarão, que seria, ao que dá a enten-der, o herói fundador. Tudo encaminhado (com Moreno, Irapuã e todos os mais, aí estava o tema), “faltava-lhes o perfume que derrama sobre as paixões do homem a alma da mulher”.

Faltava, pois, tudo, se o romance se chama Iracema, se é pelo viés dela que se dá a maior parte da narração, se é ela o sujeito e o grande assunto do romance. Daí que, quando Alencar tinha se definido por esse tema, ainda fosse preciso mexer em tanta coisa.

Mas basta notar que fará ele, então, a passagem dos fatos históri-cos que havia elencado para a lenda que criará, dos nomes masculi-nos que a crônica ou o relato verazes atestam, para o nome feminino que inventa. A história, na sua secura, carecia de alma. Para esta será preciso introduzir a mulher. E se a palavra “perfume” pode parecer de pouco alcance, lembremos que em certo momento é o perfume de Iracema que conduz Martim: o odor tem a ver com a sedução, com o que faz docemente seguir o caminho. Se Caubi, o filho de Araquém, é senhor do caminho, é sua irmã, Iracema, quem dá a Martim as rotas que permitem ocupar o país. Sem a mulher, o homem não é nada – é o que entende, romântico, Alencar. Ou sem a lenda que legitime, não haveria como realizar uma história nacional.

8. FUNARI, Pedro Paulo e PIÑON, Ana. A temá-tica indígena na escola. São Paulo: Editora

Contexto, 2011.

Por: Aline Vieira de Carvalho e Victor Henrique da Silva Menezes

Porque seria necessário produzir um livro sobre a temática indíge-na em sala de aula no Brasil dos dias de hoje? Afinal, a partir dos Parâmetros Curriculares Nacionais1 discutimos exaustivamente em nossas escolas (e em nossos projetos pedagógicos) a questão da cidadania, da pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, da luta contra qualquer forma de discriminação baseada em diferenças cultu-rais (e também diferenças de classe social, de crenças, de sexo, de

etnia ou outras características individuais e sociais), da pluralidade das memórias, entre outros temas onde, teoricamente, os grupos indíge-nas que compartilham o território que chamamos de Brasil estariam incluídos nos debates. Ou, mesmo nas Universidades, temas como o multiculturalismo, identidades fluidas e etnicidades estariam em cons-tantes discussões resultando em pesquisas inovadoras sobre a temá-tica indígena no Brasil. Como justificar a relevância de uma obra como essa? Esta é primeira questão que nos colocamos ao nos defrontar com o livro A temática indígena na escola: subsídios para os professo-res, publicado pela Editora Contexto (2011). A resposta, todavia, salta aos nossos olhos logo nas primeiras páginas.

A obra, arquitetada para ser lida e discutida por um amplo público, e, em especial, professores, destaca o papel ativo do Estado Nacional brasileiro no apagamento das memórias relacionados aos nativos americanos. O foco, entretanto, não fica no passado ou na instituição do Estado. Partindo da premissa de que a leitura do tempo passado é sempre realizada sobre o viés do presente, os autores destacam como as memórias sobre os indígenas são vivenciadas nos dias de hoje e são projetadas para o passado. Por mais surpreendente que possa ser, expressiva parcela dos jovens estudantes brasileiros continuam a perceber “o indígena” como o habitante das florestas distantes e per-tencentes aos tempos longínquos (como utopias desencarnadas!). Nessas intuições, os indígenas não existem no presente e, quando existem, estão nas ocas da Amazônia (p. 109).

O completo desconhecimento dos 235 povos indígenas existentes no Brasil atual dialoga com visões unipartidárias da nossa própria história. Dos conflitos e negociações entre esses nativos e os euro-peus que aqui chegaram ao último ano do século XV, a memória que nos resta é sempre do indígena vencido ou desimportante! No geral, as pessoas não se percebem com possíveis antecessores indígenas e nem concebem as contribuições culturais importantíssimas da convi-vência destes diferentes grupos culturais: do universo da alimentação (da mandioca à batata, do tomate ao chocolate, algumas das contri-buições americanas ao mundo), passando pelo universo dos próprios léxicos (Mogi, Caju, Pindamonhangaba, Anhanguera, entre tantos outros!) até a herança cultural do banho diário, os diálogos culturais entre os nativos e europeus são incomensuráveis e, constantemente, silenciados e esquecidos.

O livro, neste contexto, apresenta-se como fundamental ao Brasil dos dias de hoje. E sua inovação está na característica de mostrar, partindo de uma linguagem acessível e de conhecimentos produzidos em diversas ciências, que nenhum desses esquecimentos e memórias são naturais. Ou seja, o livro tem como premissa que os mecanismos de exclusão não são estáticos, atemporais ou simplesmente dados. Por não terem datas e locais de nascimento, essas artimanhas dos silenciamentos e das exclusões podem, portanto, serem alteradas.

Para a transformação, entretanto, é preciso ter conhecimento sobre esses poderes. O livro almeja suprir uma lacuna: oferecer uma visão plural e acessível sobre a constituição da temática indígena no Brasil.

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Para isso, os autores conceberam uma obra que se divide em quatro eixos temáticos (“As identidades”, “Os índios”, “A escola” e “A repúbli-ca”), e, em sua base, trabalha com a proposta de que não existem raças, mas apenas a raça humana.

Criticando, dessa forma, a contraposição entre “índios” e “brancos” como categoria de tipo racial, os autores iniciam o livro com a polêmi-ca discussão acerca de quando se principia a História do Brasil. A história do continente americano tem sido narrada a partir de uma perspectiva europeia, o que pode ser observado, por exemplo, quando é difundida a ideia de que a nossa história teria iniciado em 1500 com a chegada dos portugueses ou até mesmo em 1140 no momento de formação do Estado de Portugal. Tais abordagens na maioria das vezes acabam por excluir o fato de que bem antes de 1500 essas terras já haviam sido povoadas. Partindo desse pressuposto, Funari e Piñón inserem uma crítica quanto à forma que este tema é trabalhado dentro de uma sala de aula, onde alguns professores – ora devido à falta de informações nas escolas, ora às deficiências das políticas de valorização cultural em voga no país – “esquecem” de levar em consi-deração a (pré) e/ou história desses povos que aqui habitavam como um dos agentes que contribuem para a formação da história das terras que deram origem ao Brasil, influenciando indiretamente a ideia – presente em muitas pessoas, como mostra a pesquisa feita pelos autores e exposta no livro – de que a parte do continente que constitui-ria nosso país só passara a ser povoada com a chegada dos euro-peus.

Após essa breve discussão, nos capítulos que se sucedem, os au-tores trabalham com a explicação do significado de algumas denomi-nações de povos indígenas, como por exemplo, Tupinambás (os des-cendestes do ancestral), Tupiniquins (o galho do ancestral), Tupi (an-cestral), Guarani (guerreiro), Inca (senhor), entre outros. Discute-se a partir disso, o que é ser índio, combatendo ao mesmo tempo, a ideia de que todos aqueles que habitavam o continente antes de 1492 for-mavam um único povo. Funari e Piñón salientam que esses povos se autodenominavam “(…) de milhares de maneiras, cada povo a seu modo, com nomes que podiam significar simplesmente “seres huma-nos”, por oposição a outros grupos” (p. 18), o que demonstraria as suas especificidades culturais.

Os autores tiveram também a preocupação em explicar alguns ter-mos técnicos e conceitos que já foram utilizados, ou ainda são, nos estudos que versam sobre os povos indígenas, como “assimilação” (p.22), “aculturação” (p. 24), “modelo normativo” (p. 24), “etnogênese” (p. 26), “transculturação” (p. 26), “olhar antropológico” (p. 30), “desna-turalização” (p. 30), “abordagens culturalistas” (p. 44), “deculturação” (p. 72), “americanismos” (p. 95) e “invisibilidade do indígena” (p. 110). Essa estratégia de explicação de conceitos básicos nos estudos de determinados campos, tão presente nos demais trabalhos de Funari, mostrou-se completamente eficaz também nesta obra para uma me-lhor compreensão por parte do leitor de como o tema em questão deve ser estudado, além de auxiliar no entendimento das diferentes manei-

ras que o índio já foi apresentado a partir de conceitos tão fortes como estes; o que faz com que o leitor acompanhe as críticas relacionadas à abordagem da temática indígena que os autores constroem no decor-rer da narrativa.

Há uma valorização das pesquisas arqueológicas, o que não pode-ria faltar em um livro escrito por arqueólogos que tem uma profunda preocupação em introduzir em seus trabalhos os estudos realizados com comunidades do passado e do presente através de sua cultura material. Pois, como enfatiza Funari e Piñón, “(…) a Arqueologia é outra grande fonte de informações sobre os índios e que, portanto, vale a pena ver o que descobriram e anotaram os arqueólogos” (p. 34), sendo que “(…) os vestígios arqueológicos podem mostrar como eram as aldeias indígenas, as ocas e a estrutura arquitetônica de im-portantes centros como as cidades maias ou as estradas incas, nos Andes, as melhores do mundo no século XV” (p. 37).

A trajetória do homem e povoação da América é trabalhada a partir das teorias difundidas pelas arqueólogas Maria Conceição Beltrão e Niède Guidon, e pelo biólogo Walter Neves. Em relação a visões antes consagradas, como a ideia de que nas sociedades caçadoras e coleto-ras havia necessariamente uma divisão de tarefas por sexo, ou seja, que o homem era o caçador e a mulher a que fazia a coleta e que, por isso, o homem seria hierarquicamente superior à mulher (p. 46) é for-temente criticada pelos autores que trabalham com a ideia de que “(…) nem todas as sociedades indígenas eram (ou são) patriarcais” (p. 48). Partindo desse pressuposto, é sugerido no decorrer do livro que essas discussões sobre as mulheres sejam levadas à sala de aula, pois o tema do protagonismo social das mulheres, na nossa sociedade atual, é de grande importância. Assim, escrevem Funari e Piñón, caberia comentar sobre a diversidade de sexualidades registrada em tribos indígenas, onde pesquisas têm mostrado a existência de sociedades indígenas que reconheciam mais do que dois sexos (p.49).

Complementando a discussão sobre as relações de gênero dos po-vos indígenas que deveriam ser inseridas nas salas de aulas, os auto-res discutem e criticam a forma que a temática indígena foi tratada quando introduzida nos livros didáticos a partir de 1943, em que “(…) os índios eram quase sempre enfocados no passado e apareciam, muitas vezes, como coadjuvantes e não como sujeitos históricos, à sombra da atividade dos colonos europeus” (p. 97), e a “(…) coloniza-ção do continente americano pelos indígenas praticamente não era mencionada e os índios eram descritos por meio da negação de traços culturais considerados significativos, como falta de escrita, de governo e de tecnologia” (p. 98). Situação esta que só mudou a partir da se-gunda metade dos anos 1990 onde buscou-se a universalização da escola fundamental de oito anos e a valorização da diversidade cultu-ral, o que resulta então na produção de novos materiais didáticos no qual passa a ser tratado com maior atenção temas indígenas, apre-sentando “(…) a povoação do continente como um tema em discussão pelos pesquisadores, com a apresentação de diversas teorias, o que

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favorece uma visão crítica sobre o conhecimento histórico por parte de estudantes” (p. 100).

Uma observação por parte dos autores que é importante destacar, é que, apesar da maior atenção dada nos livros didáticos e de novas políticas por parte do Ministério da Educação e das Secretarias Esta-duais de Educação em relação à temática indígena, é perceptível que entre os estudantes ainda há uma profunda ignorância em relação ao tema. Tal afirmação provém a partir de uma pesquisa feita em escolas do Rio de Janeiro, Niterói, Campinas e Natal, dos sextos aos nonos anos do Ensino Fundamental, e que Funari e Piñón apresentam nos momentos finais do livro, no qual observa-se, por exemplo, que cerca de um terço dos entrevistados não souberam mencionar nenhuma tribo, que 73% consideram que os índios estão no Brasil desde 1500 e que quando questionados sobre a proveniência dos índios, que ape-nas 16% responderam que vieram da Ásia, única resposta que corres-ponde aquilo que está nos livros didáticos, que como explicam os autores, “(…) já deveriam ter sido incorporadas pela maioria dos estu-dantes, mas ainda não foi.” (p. 108), o que demonstra avanços e limi-tes das políticas educacionais dos últimos anos (p. 109).

Nos momentos finais do livro, os autores destacam que uma das maiores vitórias que a introdução na escola da temática indígena obte-ve foi fazer com que os estudantes passassem a se ver como descen-dentes de índios, algo que no passado não era visto no país, onde tentava-se apagar a nossa memória indígena, e que agora, “(…) o fato de que muitas crianças reconheçam ter parentes indígena mostra como a valorização do indígena, apesar de todos os problemas, avan-çou no nosso país” (p. 111); concluindo que “(…) a escola, por seu papel de formação da criança, adquire um potencial estratégico capaz de atuar para que os índios passem a ser considerados não apenas um “outro”, a ser observado a distância e com medo, desprezo ou admiração, mas como parte deste nosso maior tesouro: a diversidade.” (p. 116).

Uma obra inovadora, A temática indígena na escola: subsídios para os professores, constitui um riquíssimo trabalho de pesquisa e escrita por parte de Funari e Piñón e que é certo que terá grande aceitação entre os professores das redes públicas e privadas que há muito care-cem de um trabalho como este, que é provável que lhes sirva de inspi-ração e auxílio para que repensem a forma como têm tratado a temáti-ca indígena na sala de aula ou até mesmo como eles têm colocado o índio na história quando está dando uma aula de História do Brasil ou da América. Para a próxima edição, sinaliza-se, todavia, a necessida-de do maior cuidado editorial em relação às imagens: muitas não pos-suem legenda, créditos ou autoria.

Independente do cuidado editorial, podemos concluir que está é uma obra de grande relevância para o Brasil atual. E muito de sua relevância está em seu próprio engajamento. E, neste caso, o engaja-mento não significa apenas o levantar de uma bandeira, mas, de forma complementar, como definiu a arqueóloga Solange Schiavetto, o enga-jamento é um “fazer científico inextricavelmente ligado à sociedade,

agindo com e para ela”. Assim, o engajamento do livro segue no senti-do de contribuir com a construção de meios que permitam a reflexão autônoma, independente e consciente de professores, alunos, pais e interessados na temática. Reflexões que nos permitam compreender como “o Índio” foi se transformando em uma categoria essencializada, discriminada e silenciada ao longo de nossa história.

Fonte: Arqueologia Pública | Campinas | n° 4 | 2011

9. FUNARI, Pedro Paulo; FILHO, Glaydson José da e MARTINS, Adilton Luís. História Antiga: contribuições brasileiras. São Paulo: Anna-

Blume, 2009.

Documentos: análise tradicional e hermenêutica contemporânea

Este livro, busca levar o leitor à fruição da Antiguidade Clássica por meio da apresentação e análise de documentos. Um dos fundamentos da atividade intelectual consiste no prazer derivado do conhecimento. É um livro para difundir o conhecimento da Antiguidade Clássica, verí-dico mas que está no alcance do homem comum para alimentar a cultura geral de forma mais ampla.

Pretende-se, portanto, que o público deste livro seja bastante am-plo e heterogêneo. Isso significa que os níveis de análise e interpreta-ção dos documentos selecionados deverão, necessariamente, ade-quar-se aos diferentes leitores. Os textos elencados podem ser lidos, com facilidade, por todos e os comentários, embora de profundidade variada, permitem aos leitores de campos e interesses vizinhos obser-var como trabalham os diferentes especialistas.

Há uma distinção entre os eventos que ocorreram e nosso relato a seu respeito. De acordo com nossa boa intuição, os eventos passados não podem mudar, mas nossa compreensão destes eventos muda. Não se deve, portanto, confundir passado e relato do passado, acon-tecimentos objetivos intangíveis e a narrativa histórica. História desig-na, a um só tempo, o passado e a ciência que os homens esforçam-se a elaborar a partir desse passado. A memória, por definição, é uma recriação constante no presente, do passado enquanto representação, enquanto imagem impressa na mente. A relação entre a representa-ção na memória e a realidade é mediada, sutil e indireta:

“Como quer que seja, será agradável relatar da melhor maneira possível, o feito do mais importante dos povos... aquilo que se refere ao período anterior da fundação ou do próprio plano de criação da cidade foi transmitido mais pelo encanto da poesia do que por monu-mentos íntegros dos acontecimentos. Não se pretende aqui, nem con-firmar nem negar tais fatos”.

Tito Lívio descreve de forma admirável a subjetividade inevitável do relato histórico. As palavras utilizadas tornam claras as questões cen-trais do discurso histórico: o relato dos acontecimentos (memória re-

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rum gestarum) nada pode confirmar (adfirmare), mostrando firmeza (firmitas), nem demonstrar ser enganoso (refellere), por ter escapado da memória. O relato que convém (decet), de bela aparência, condiz com o decoro da tradição oral (decora fabulis tradundur)

Tito Lívio não pretendia chegar a descrever o passado, tal qual teria ocorrido, pois como os pensadores têm ressaltado, isto é, algo impos-sível e irrelevante. Impossível, na medida em que não se possuem apenas fragmentos mínimos do passado, mas, impossível também porque tudo descrever, ainda que fosse factível, acabaria por nada explicar, esvaziando de sentido o relato. Irrelevante, porque o presente só se interessa pelo passado em função de si próprio e do futuro. Há um apoio crescente para a ideia de que não é possível uma compre-ensão objetiva da história ou do comportamento humanos. (Trigger). A subjetividade subjacente a toda compreensão histórica, explicitada tantas vezes pelos pensadores antigos, tem sido ressaltada pelo mo-derno pensamento histórico. (Fox).

“A própria razão, a maneira de compreender e interpretar a socie-dade e o mundo, seja estatisticamente, seja nas suas transformações, é historicamente determinada.” (Koppenberg). “É muito melhor consi-derar que o passado sempre tem sido alterado do que pretender que sempre foi o mesmo... não podemos evitar a refacção constante do nosso patrimônio, pois cada ato de reconhecimento altera o que so-brevive”. (Lowental). A oposição entre fatos e interpretações, na base do positivismo oitocentista em busca de “evidências” históricas, tem sido, igualmente desmantelada. O uso do termo evidência pelos ingle-ses para referir-se aos fatos, acontecimentos, ou dados objetivos pa-rece particularmente significativo. A evidência, enquanto “aquilo que é visível”, não se confunde com a realidade, sendo, antes, algo a ser decifrado, visto. (Partner).

Evidências, nada evidentes no sentido corriqueiro da palavra, não podem fundar as interpretações, mas ao contrário, são estas que cri-am as evidências e os fatos. Até mesmo a diferença entre história e mito tem sido posta em questão. O presidente da Associação Ameri-cana de historiadores, William h. McNeill, chegou a ponto de pedir aos seus colegas norte-americanos que reconhecessem que não produzi-am “verdades eternas e universais”, mas uma “historia mítica” (mythis-tory). As raízes da explicação histórica encontram-se sempre no pre-sente, nas sociedades e culturas de determinados períodos, nas quais se insere o historiador.

A aceitação da subjetividade da História deve ser ligada a dois pro-cessos da vida intelectual no século XX. Em primeiro lugar, ao influxo da Filosofia ser creditada à difusão da própria noção de subjetividade. Todo conhecimento, não apenas, nem especificamente, o conheci-mento do passado, mas toda a compreensão resulta de sujeitos do conhecimento. As físicas de Newton e Einstein centram-se em torno de sujeitos específicos (Newton e Einstein), cujas teorias explicativas, subjetivas, portanto, propõem explicações a partir de pontos de vista diversos. O filósofo italiano Benedetto Croce pode ser citado como um dos introdutores, no estudo da História, do sujeito. Para R. Collinwood

“cada historiador vê a História desde sua própria perspectiva, sendo que o próprio ponto de vista do historiador não é constante. Georges Duby descreve, de maneira quase poética, a delicada posição do his-toriador:

“Estou convencido da inevitável subjetividade do discurso históri-co... Estou convencido: a História é, no fundo, o sonho de um historia-dor – e este sonho é grandemente condicionado pelo meio no qual se insere este historiador”.

Paralelamente à filosofia, a lingüística e a semiótica viriam influen-ciar, decisivamente, o estudo de todas as ciências, em particular as humanas. A noção de que todo conhecimento expressa-se, necessari-amente, como um discurso implicou o reconhecimento da importância de sua autoria e de seu público, assim como a forma e conteúdo des-se discurso.

A narrativa, o relato como construção discursiva, passa ao centro das reflexões. Os termos empregados para referir-se ao discurso his-tórico conduzem-nos à diegesis dos gregos: detalhamento, descrição. Assim Fraz Goerg Maier afirmava que o texto histórico não é mimesis, mas diegesis: não recria como imitação, a realidade, mas consiste em um trabalho de junção de ações esparsas, por parte do historiador. A importância do caráter narrativo da história ultrapassa a constatação da estruturação lógica da narrativa e atinge a própria definição ontoló-gica da disciplina: “A pesquisa histórica e o texto do historiador ligam-se pela estrutura da narrativa; a narrativa, como forma de organização histórica, é a base, o princípio estruturador e o objetivo da História, adquirindo um valor transcendental”.

A narrativa histórica requer, portanto, habilidades de exposição, ex-plicação e persuasão por meio do uso das palavras.

O discurso científico tem sempre que manter uma relação entre sua criação estética e os documentos (apesar das diferenças entre a ficção - poesia - e a ciência - história). “Contrariamente à ficção, os fatos estão sujeitos à verificação documental e, diversamente do realismo mágico, por exemplo, a História tem de respeitar regras de inferência conformes à lógica”. (Bonifácio). No entanto, o caráter poético, estilís-tico e retórico do discurso científico constitui um elemento central da hermenêutica contemporânea. As palavras escolhidas, a maneira de apresentá-las, a estrutura estética da argumentação formam o núcleo de qualquer discurso.

Na verdade, todos os textos, sejam antigos ou modernos, de histo-riadores, políticos, filósofos ou romancistas, devem ser considerados como discursos, estruturados por autores específicos para públicos determinados, visando objetivos concretos bem delineados. (Rigney). Sua expressão implica, sempre, uma estética persuasiva. Ademais, “o discurso histórico que quer provar que o que diz é verdade apresenta-rá o efeito verdade”. Esse efeito verdade consiste, justamente, na pretensão discursiva de descrever a realidade tal qual é e constitui um dos principais elementos de diferenciação do discurso científico em relação à ficção. Um exemplo permite avaliar o alcance do efeito ver-dade:

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“Fora de Atenas, a luta de classes política, no quarto século a.C., tornou-se, muitas vezes, acutíssima. Ricos e pobres encaravam-se com um ódio amargo e quando a revolução acontecia havia execuções em massa e exílios, confiscos de propriedade, ao menos dos líderes dos partidos opostos”. (de Ste Croix).

O autor “descreve” alguns acontecimentos do século IV a.C. como se apenas relatasse verdades óbvias. De fato, contudo, utiliza-se de um arcabouço interpretativo muito específico, não-compartilhado por inúmeros especialistas. Há quem considere que não havia classes na Antiguidade, outros negam a validade de conceitos como “luta de clas-ses” ou “revolução” para o período; há quem considere o uso de ex-pressões como “ódio amargo” inadequado. De qualquer forma, esse discurso pretende ser uma simples descrição da realidade. A análise do discurso permite, justamente, estudar qualquer documento como construção complexa, estruturada, com autoria, públicos e objetivos específicos. Esta, talvez, a maior aquisição da moderna semiótica para o estudo da História.

O estudo do discurso histórico é, contudo, particularmente comple-xo. A interpenetração entre a interpretação e os acontecimentos obje-tivos impossibilitam a execução de uma descrição dos fatos: retornan-do ao exemplo citado acima, como descrever assassinatos políticos e revoluções sem recorrer a conceitos? Os acontecimentos, as mortes e as alterações políticas, descritos nos documentos, só são inteligíveis em um discurso lógico, com uma seqüência de argumentos. Separar “fatos” de interpretações torna-se uma tarefa inútil. Ao contrário, o estudo dos relatos como construções discursivas permite uma visão crítica dos motivos e objetivos subjacentes a todos os discursos.

Atividades encaminhadas 1. Caracterize o surgimento da ciência histórica no contexto da histó-

ria intelectual do século XIX.

R: O historicismo de Ranke surgiu no contexto de uma reação ao racionalismo francês do Iluminismo, ao considerar falsas as teorias abstratas do conhecimento. Ranke, segundo Draus, considerava que a verdadeira teoria científica procura compreender o sentido profundo e individual dos acontecimentos históricos. Opunha-se, igualmente, à filosofia idealista da história de Hegel, ao considerar a história univer-sal como uma totalidade global composta de inúmeras histórias espe-cíficas, cada uma delas com identidade própria e intransponível. Por excelência, as histórias nacionais constituíam os centros da atenção do historiador. Em termos metodológicos, buscava-se o conhecimento exato e preciso dos acontecimentos, deixando de lado a especulação filosófica. Na medida em que os acontecimentos tenham ocorrido obje-tivamente, na realidade, haveria apenas uma verdade histórica, a ser, simplesmente, descoberta pelo historiador.

2. Caracterize o papel da erudição filológica na crítica documental tradicional.

R: Os documentos escritos devem ser analisados filologicamente em três sentidos: quanto ao vocabulário, à morfologia e à sintaxe. O

estudo de todas a palavras utilizadas, em particular sua etimologia, polissemia e contextos de utilização, constitui a primeira fase da análi-se. Isso permitirá estabelecer, entre outras coisas, o nível de veracida-de do documento e as sutilezas de significação. A morfologia permite observar o sentido exato das frases e, até mesmo, as classes sociais refletidas na linguagem (linguagem culta, vulgar, urbana, camponesa etc) O uso de certas formas verbais, por exemplo, e a coordenação dos tempos constituem etapas da análise morfológica. A análise sintá-tica permite observar o uso articulado das frases e as diversas nuan-ças de sentido.

Análise de documentos e Antiguidade Clássica

A tradição historiográfica considerava como documento histórico textos escritos, em particular, referentes à historia política política stric-to sensu. Ainda hoje, nos cursos de letras clássicas, paralelamente aos cursos de História, costuma-se ignorar toda a produção literária não-clássica. Hallet cita o exemplo de Valério Máximo como paradig-mático. Considerado, no início do século passado, por Niebuhr como importantíssimo, devido ao uso de usa obra Facta e Dicta Memorabilia na Idade Média e no Renascimento, foi relegado, a partir de meados do século XIX, ao esquecimento, seja nos currículos, seja nas cole-ções de autores antigos. O mesmo poderia ser estendido a uma imen-sidão de autores antigos. Desta forma, centrando-se em acontecimen-tos políticos da elite e nos poucos autores considerados “clássicos”, exclui-se a maior parte da história e da cultura antigas das nossas reflexões. No entanto, tendência das ciências humanas tem sido privi-legiar a multiplicação de objetos, de abordagens e, conseqeuntemen-te, de fontes de informação.

Na presente coletânea estão incluídos (entre os vários tipos de do-cumentos) escritos diversos, como poesias, ficção, histórias, inscri-ções, reflexões filosóficas, políticas. Será apresentada, ainda, a cultura material: vasos cerâmicos, pinturas parietais. Todos esses documen-tos são interpretados como discursos a serem lidos como resultados da elaboração humana, evitando falsas oposições entre diferentes tipos de evidências, materiais e textuais: são todos igualmente, produ-tos da cultura. A seleção de documentos procurou evitar a reprodução da noção de “principais” eventos, autores ou monumentos “superio-res”. Este é o principal risco de uma coletânea induzir o leitor a consi-derar que ali está reproduzido “aquilo que é mais importante”. Já foram discutidas, nesta introdução, a subjetividade e parcialidade inevitáveis do trabalho científico e não caberia reforçar uma falsa noção de objeti-vidade e exaustividade induzindo o leitor a crer que aqui estariam os documentos indispensáveis.

Ao contrário, a seleção procurou abranger um grande espectro de temas, de tipos diversos de documentos, analisados a partir das dife-rentes ciências humanas. Sem descuidar do erudito e do grandioso, incluíram-se o corriqueiro e o comezinho. O trivial revela em nível do detalhe, constâncias e permanências dificilmente acessíveis pelo es-tudo exclusivo dos “grandes textos”. Seria, talvez, desnecessário frisar

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que não é possível estudar o corriqueiro sem o grandioso, o popular sem o erudito, pois a interação entre as chamadas “alta” e “baixa” culturas está no cerne mesmo de qualquer produção intelectual. Se-gundo Funari, a valorização do popular e do trivial, surgida como con-traposição à suma concentração exclusiva das elites, embora busque resgatar a especificidade das culturas erudita e popular utilizando-se de um modelo bipolar de análise, não pode ignorar a interação cons-tante entre ambas.

Os documentos podem ser analisados de múltiplas maneiras tendo em vista, em particular, os níveis de profundidade do estudo, as dife-rentes disciplinas e os diferentes paradigmas ou modelos hermenêuti-cos. A profundidade de uma análise varia segundo a especialização do estudioso e a expectativa do público. Este livro, ao voltar-se para um público heterogêneo (professores universitários, estudantes e leigos), apresentará análises, referentes a diferentes documentos, que satisfa-çam estes três níveis de profundidade.

Há muitos modelos de análise documental. Referindo-se a textos escritos e voltando-se para estudantes, alguns procedimentos têm sido ressaltados por diferentes autores. Alguns conselhos práticos e bas-tantes simples são lembrados em manuais de amplo uso e merecem ser citados: leituras sucessivas do texto devem ser seguidas pela constituição de uma bibliografia prática e precisa. Cada parágrafo deve ser resumido no seu conteúdo substancial. O comentário deve incluir detalhes sobre o autor e as circunstâncias históricas. Outros propõem um roteiro mais detalhado:

1. Aspectos externos, com estudo da tipologia de fontes (textos de ficção, legislativo, epistolar etc.), lugar de origem e datação do texto, estilo e características lingüísticas; 2. Resumo, consistindo em uma sinopse do texto; 3. Contexto histórico, inserindo o texto em quadros cronológicos, geográficos e temáticos (por exemplo, economia, cultura, política, guerra) específicos; 4. Explicação detalhada do documento, envolvendo um estudo minucioso dos termos utilizados em seu con-texto; 5. Autoria, inserindo o autor nas circunstâncias e no meio cultu-ral; 6. Conclusão, incluindo o texto no contexto das abordagens histo-riográficas sobre o tema e o período; 7. Bibliografia consultada.

Os especialistas, contudo, levam a cabo um estudo mais aprofun-dado, que inclui, no caso dos documentos clássicos, a chamada crítica textual. Esta visa ao estabelecimento do texto a partir dos manuscritos originais, cabendo localizar os erros dos copistas, as interpolações posteriores, o estabelecimento da genealogia das cópias disponíveis, a crítica da proveniência, fixação da data, identificação da origem, busca das fontes. A esta crítica externa material, do texto, segue-se a crítica interna, a partir da linguagem empregada e dos costumes soci-ais citados. Por fim, a crítica da sinceridade, exatidão e a determina-ção dos fatos específicos citados devem ser feitas.

Até aqui, tratou-se do documento enquanto texto escrito. Na verda-de, também os vestígios materiais e as artes, por exemplo, constituem documentos. Os critérios analíticos descritos acima, portanto, úteis para os textos escritos, não podem ser aplicados, diretamente, a ou-

tras formas não-verbais, de documentação. No entanto, há algumas considerações de caráter geral, aplicáveis a todos os documentos, e que servirão para nortear os comentários tecidos, em diferentes níveis, nesta coletânea. Em primeiro lugar, consideram-se todos os documen-tos, escritos ou não como discursos. E enquanto discursos, possuem, necessariamente, autoria e público, e como todo discurso, tem estrutu-ras superficiais e profundas. A autoria pode ser individual ou coletiva, material ou intelectual. Um edifício pode ter sido construído, material-mente, por diversos operários a partir de uma planta de autoria indivi-dual de certo arquiteto. O público pode ser individual ou coletivo, ho-mogêneo ou heterogêneo. Uma carta de Cícero a um amigo podia ser destinada, originalmente, a um único indivíduo mas, ao ter sido publi-cada, voltou-se para um público amplo e variado.

A estrutura de superfície de um discurso corresponde à sua se-qüência explícita de elementos constitutivos. Parágrafos sucessivos de um texto representam ideias concatenadas, enquanto um edifício apresenta uma planta, funcionalmente ordenada, de seus aposentos. Esses são os aspectos visíveis da organização de um discurso. Sua estrutura profunda, de acesso indireto, mediado pelo raciocínio do próprio observador, liga-se aos interesses e objetivos, do autor e do público. A reconstrução desses interesses, inevitavelmente subjetiva, variará segundo os pontos de vista, interesses e conhecimentos do próprio analista.

Essas observações, de caráter geral, aplicam-se a todo tipo de do-cumento, escrito ou não. Um texto deve ser lido e entendido em sua totalidade. As palavras não- compreendidas devem ser procuradas em dicionários, assim como as informações e os conceitos desconheci-dos. Mesmo os termos “liberdade”, “escravidão” ou “democracia” , em geral, já conhecidos pelo leitor, devem ser estudados no seu contexto para evitar a confusão entre conceitos modernos e antigos. (A liberda-de de ir ao cinema não é a mesma liberdade de não ser escravo!)

Um objeto arqueológico exigirá uma exegese própria. Em particular, o estudo pormenorizado da constituição material do artefato implica a análise da sua composição física: cerâmica, vidro, madeira etc. e a estrutura superficial do artefato impõe uma análise de sua funcionali-dade.

Georges Duby lembrava que “cada época constrói, mentalmente, sua própria representação do passado, sua própria Roma e sua pró-pria Atenas”.

Essa obra tem como pressuposto que: o domínio da cultura clássi-ca tem como principal objetivo “promover uma reflexão constante so-bre as condições humanas e sociais que conduza à crítica social con-temporânea”. Se não é possível encarar o passado e o presente sem engajamento, a superação da História como “instrumento de poder dos vencedores”, nas palavras de Edgar de Decca, depende em primeiro lugar, do conhecimento aprofundado da Antiguidade. Só esse conhe-cimento fundamenta a visão crítica, e nesse sentido, a leitura de Aris-tóteles, assim como de outros autores clássicos, permanece indispen-sável para pensar-se tanto o mundo antigo como o contemporâneo.

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Em segundo lugar, cabe alargar o universo de temas e abordagens da Antiguidade. Devem ser incluídos os camponeses e as mulheres, a família e os rituais, os gestos e os monumentos, a dominação e a resistência. Esses e outros temas devem ser apresentados no contex-to da pluralidade de interpretações e significados.

As periodizações tradicionais (da história) devem ser entendidas como divisões artificiais. O objetivo da apresentação das compartimen-tações usuais resume-se à instrumentalização dos leitores e, de ma-neira alguma, implica na aceitação dos seus pressupostos. O caso paradigmático refere-se ao uso do termo “clássico” para definir perío-dos da história política, literária e artística. Convencionou-se, assim, a referir-se às civilizações grega e romana da Antiguidade como “clássi-cas” e considerá-las como modelo, modelo este que é imitado pelos modernos (principalmente os homens cultos da elite). Nesse ponto, o autor explica que o uso que faz do termo Antiguidade Clássica, nesse livro não implica, contudo, a aceitação dessas conotações e que ele é usado para designar a cultura greco-romana nas suas mais variadas manifestações.

A determinação de períodos “clássicos”, em qualquer periodização histórica, depende de um juízo de valor, da transformação de uma determinada produção intelectual em modelo. A História, nesse ínte-rim, vai descartar ou rechaçar aquela produção que se afaste do mo-delo. É comum que diferentes autores localizem diferentes apogeus (e esses são muito freqeuntemente o seu centro de atenções!)

Assim, é recomendável encarar as periodizações como instrumen-tos analíticos que são úteis para o conhecimento.

A história, desde a Antiguidade Clássica e até o século XX, concen-trou-se nos grandes eventos militares e políticos. Alguns autores pon-deram que isso refletia o domínio da cultura masculina, militar, patriar-cal e autoritária, do discurso do passado.

Erudito e popular, grandioso e corriqueiro são partes de um todo. A busca do trivial, dos grupos subalternos, das culturas excluídas dos registros dominantes liga-se à deontologia da ciência moderna.

Uma série de preconceitos, inconscientemente aceitos, obscurece a compreensão das sociedades antigas. Uma suposta superioridade cultural grega, seja sobre os romanos seja sobre outras civilizações, acaba sendo introduzida como elemento explicativo que dispensa comprovações. “As maneiras gregas são encaradas como algo que outras sociedades irão adquirir por simples contato – como se fosse sarampo!

A principal característica do Mundo Grego na antiguidade era a so-berania das cidades-Estado, independentes entre si e não-subordinadas a outro poder a não ser o seu.

3 - Memórias

Documentos citados:

Arriano, A Batalha de Íssus, 2, 10-11 (333a.C)

Mármore de Paros (264a.C.), batalha de Issus

Salústio, A guerra de Jugurta, capítulo 4

“De todos os outros exercícios de espírito, o mais útil é o de trans-mitir à posteridade os feitos dignos de memória. Da sua excelência; pois que já outros o fizeram, julgo não dever tratar; e também para que se não tenha por vaidade em mim louvar eu mesmo a minha ocupa-ção. Sei que não faltará quem, por isso que assentei em não me in-trometer mais em coisas públicas, a este meu tão grande e útil traba-lho ponha o nome de inércia; mas serão certo aqueles que olham como a principal indústria cortejar a plebe e granjear amigos com ban-quetes. Mas se eles considerarem em que tempos eu obtive as magis-traturas, quão ilustres personagens as não puderam conseguir, e que espécie de gente entrou depois no senado; sem dúvida se convence-ram de que, se mudei de propósito não foi por mandriice, mas por motivo mais digno, e de que deste meu ócio virá mais proveito à repú-blica, do que as fadigas de outros.

Muitas vezes ouvi que Q. Máximo, P. Cipião, e outros preclaros va-rões da nossa república diziam que, ao ver as imagens de seus maio-res, vivamente se lhes acendia o ânimo para a virtude. Certo que nem a cera, nem a figura tinham em si tal poder; mas com a memória dos grandes feitos se ateava aquela chama no peito destes egrégios va-rões, e se não aplacava enquanto a sua virtude lhes não adquirisse igual fama e glória. Mas ao contrário nestes corruptíssimos tempos quem é (mostrem-no) aquele que com seus maiores em probidade e indústria, e não em riqueza e fausto, contende? Até homens novos, que outrora em virtude se avantajavam aos nobres, hoje de furto, e mais como ratoneiros que por meios honestos, procuram os comandos e honras. Como se a pretura, o consulado e outros cargos tais dessem por si mesmos o lustre e esplendor, e não o recebessem da virtude de quem os exerce. Mas enquanto, envergonhado e corrido, choro os costumes da cidade, mui livre e altamente me tenho remontado. Volto agora ao assunto”.

Comentários: Salústio discorre sobre a importância do trabalho do historiador. Segundo ele a memória constitui a mais útil atividade do engenho humano. O relato do passado é, portanto, um trabalho inte-lectual derivado do desejo, da vontade de estudar.

4 - Práticas

O estudo das moedas constitui uma especialidade, a numismática. A moeda na Antiguidade Clássica, não se limitava a servir como medi-da de valor ou como instrumento de toca comercial, mas cumpria igualmente funções políticas. Em Atenas, por exemplo, a unidade de valor era o dracma, dividido em seis óbulos.

Independentemente do valor histórico, Histórias é uma das obras mais interessantes escritas até hoje. Heródoto não se limitou a compi-lar, a exemplo de seus antecessores, simples relatos tradicionais e

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listas genealógicas; ele investigou pessoalmente e até onde lhe foi possível os acontecimentos que o interessavam.

Observe-se o uso que faz da palavra istoriai ("investigações", em grego) no prólogo do livro: "Este é o relato das investigações efetua-das por Heródoto de Halicarnasso, para que os feitos dos homens não se percam com o tempo, e nem as grandes e admiráveis obras dos helenos e dos bárbaros fiquem sem glória (...)".

Embora tenha recorrido também a fontes escritas, como por exem-plo o livro de Hecateu de Mileto (-550/-475) e os arquivos oficiais de algumas cidades gregas, Heródoto utilizou principalmente tradições orais e relatos de pessoas que testemunharam ou conheceram as testemunhas dos acontecimentos.

Os fatos são apresentados com racionalidade, ainda que de forma um tanto parcial. Dotado de curiosidade, capacidade de observação e espírito crítico, Heródoto escolhia sempre a menos fantasiosa das versões; os relatos fabulosos são contados, mas com ceticismo, e com freqüência ele enfatizava que não lhes dava crédito. Além disso, em várias ocasiões, diz sinceramente que não é capaz de explicar este ou aquele fato, ou então que nada pôde descobrir a respeito.

Em outros aspectos, Heródoto acompanhava as crenças de sua época como, por exemplo, quando atribuía importância aos oráculos, prodígios e outras evidências da intervenção direta dos deuses na vida humana.

Histórias têm grande valor literário: a narrativa é simples, precisa e sóbria, apesar de recheada de episódios dramáticos e de curiosida-des. O livro parece a transcrição de uma longa e interessante conver-sa, cheia de digressões, anedotas, diálogos e lendas...

Plutarco, Vidas Paralelas. A Educação do Jovem em Esparta

"O jovem mais inteligente e mais corajoso na luta era considerado o chefe do grupo, e todos tinham os olhos fixados nele; acatavam suas ordens e sujeitavam-se aos seus castigos. Desse modo, a educação era para os espartanos a aprendizagem da disciplina. As pessoas idosas vigiavam os jogos, que na maior parte do tempo proporciona-vam aos jovens motivos para altercações e conflitos. Com isso podiam tomar conhecimento do caráter de cada jovem, da sua coragem e da sua constância nas competições.

Os jovens não aprendiam as letras senão na medida do estritamen-te necessário. Todo o resto da educação visava prepará-los para sa-berem deixar-se conduzir, em combate. À medida que avançavam na idade, eram-lhes atribuídos mais exercícios. Eram rapados por com-pleto, habituados a caminhar descalços e a jogar completamente nus a maior parte do tempo.

Aos doze anos deixavam de usar a túnica e apenas tinham um manto para todo o ano. Andavam sujos, ignorando os banhos e as fricções, salvo em certos dias do ano, em que participavam dessas delícias. Dormiam em conjunto, em grupos e por seções, sobre estei-

ras que eles próprios preparavam, partindo com as mãos, sem ajuda de qualquer instrumento, as extremidades dos juncos que cresciam ao longo do rio Eurotas. No inverno, juntavam cardos - planta que se diz libertar algum calor - aos juncos de seus leitos."

5 – Sentimentos

Plutarco não era propriamente um historiador: faltavam-lhe, por exemplo, a capacidade analítica e a objetividade de Tucídides. Mas tinha um genuíno interesse pelas qualidades e defeitos humanos dos personagens que estudou e sua influência nos importantes eventos de que participaram. Embora exagerasse um pouco o papel desses ho-mens na História, ele é uma de nossas mais importantes fontes da história grega e romana.

Sua filosofia era eclética, a despeito de sua formação platônica; há influências pitagóricas, peripatéticas e até estóicas em diversos textos. Plutarco não era um pensador original, mas tratava a filosofia com grande seriedade e prezava muito a moral prática. Essas característi-cas transparecem tanto nas Vidas como nas (Moralia) Obras Morais. Ele tinha também "marcado temperamento didático" (Lesky), e hoje em dia seria considerado um grande divulgador.

Plutarco utilizou, basicamente, a koiné, mas sem o aticismo e o re-curso exagerado à retórica tão em voga no século II. Assim como Heródoto, ele freqeuntemente recorria a anedotas, digressões e des-crições dramáticas; o resultado final era, porém, despretensioso, es-pontâneo, vivo e agradável.

É difícil avaliar a extensão de sua influência; Plutarco é, certamen-te, um dos autores gregos mais lidos dos últimos 500 anos. Montes-quieu (1689/1755), Rousseau (1712/1778) e Napoleão (1769/1821), entre outros, inspiraram-se nele; o grande Shakespeare (1564/1616) recorreu diretamente às Vidas Paralelas para escrever, por exemplo, Júlio César, Coriolano, Antônio e Cleópatra...

Expressões

A Antiguidade Clássica Romana foi caracterizada pelo predomínio da elite agrária, como os eupátridas em Atenas e patrícios em Roma, classes sociais vinculadas à propriedade da terra. “(...) Graco parecia ter chegado ao ponto em que, ou renunciava completamente ao plano, ou começava uma revolução: escolheu a última hipótese. Rompeu relações com o colega e apresentou-se diante da multidão reunida perguntando-lhe se um tribuno que se opunha à vontade do povo não devia ser destituído de seu cargo. A assembleia do povo, habituada a ceder a todas as propostas que lhe eram apresentadas, e composta na maior parte do proletariado agrícola que emigrara do campo estan-do pessoalmente interessada no voto da lei, deu resposta quase una-nimemente favorável. (...) Para obter esta reeleição inconstitucional, meditava ainda novas reformas. (...) O Senado reuniu-se no templo da Fidelidade. (...) Quando Tibério levou a mão à fronte para indicar ao povo que sua cabeça estava ameaçada, comentou-se que ele pedira ao povo para coroá-lo com o diadema. O cônsul Cévola foi instado a

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deixar que se matasse o traidor. (...) Morreram com ele cerca de tre-zentas pessoas”.

Platão, filósofo grego que viveu antes de Sócrates desconfiava dos sentidos e de suas informações.

Platão já havia percebido que muito do que sabemos não é retirado diretamente do que vemos e ouvimos, porque é necessário que te-nhamos condições de interpretar o que foi visto e ouvido para que esses dados possam fazer sentido. Como veremos no texto a seguir, “A função da visão e da audição”, que é parte da obra “Timeo” (380 a.C.) (in: Funari, 1995: 80), Platão assinala a existência de uma inteli-gência divina, que se manifesta na ordenação do mundo e que deve ser apreendida, não só pelos nossos sentidos, mas, a partir desses, pela nossa mente.

Platão, Timeo, 47 a-e, “A função da visão e da audição”

“A vista é-nos muito útil. Nada do que sabemos sobre o Universo seria possível saber sem ter visto os astros, o sol e o céu. A visão do dia, da noite, dos meses, do curso regular dos anos, dos equinócios, dos solstícios gerou a ciência dos números, deu-nos a noção do tempo e da possibilidade de especular sobre a natureza do todo. Pudemos efetuar especulações cujo valor ultrapassa a importância de todos os bens enviados, ou a enviar, pelos deuses aos homens. Esta é a maior utilidade dos olhos, suas outras, menores qualidades, para que co-mentar? O homem que não é um filósofo pode, privado da vista, re-clamar e lamentar-se em vão. Quanto a nós, diremos que a causa e a finalidade da vista são as seguintes: Deus inventou-a e nos presente-ou com ela para que, vendo os movimentos regulares da inteligência, no céu, pudéssemos aproveitá-los para desenvolver nosso pensamen-to. São do mesmo tipo, mas nebulosos, enquanto os movimentos do céu são límpidos. Tendo estudado esses movimentos profundamente, com o rigor dos cálculos que se observa na natureza, imitando os movimentos de Deus, que não têm erro, poderemos corrigir os nossos. Para a voz e a audição, podemos dizer o mesmo, pois os deuses nos deram esses sentidos com a mesma intenção e pelos mesmos moti-vos. A linguagem foi criada com os mesmos objetivos e contribui, em grande proporção, para isso. O mesmo acontece com a música, no que se refere à harmonia. A harmonia, de fato, apresenta movimentos cuja natureza é a mesma da nossa alma. Quem tem uma comunica-ção inteligente com as Musas não pensa, como se faz hoje, que sua utilidade seja nos dar um prazer irracional, mas a harmonia foi-nos dada pelas Musas como um apoio para que os movimentos periódicos da alma, em nós dissonantes, possam fazer a alma acordar-se consi-go mesma. Quanto ao ritmo, foi por causa da tendência que temos de faltar com a moderação e a graça, que as Musas, com os mesmos objetivos nos ajudaram”.

Poderes Juramento Cívico dos Atenienses

Ao alcançar a maioridade, os atenienses recebem suas armaduras diante do Conselhos dos Quinhentos e, de mão estendida sobre o altar pronunciam estas palavras (a partir do séc IV a.C.):

Não desonrarei estas armas sagradas.

Não abandonarei, na batalha, o meu companheiro.

Combaterei pelos meus deuses e pelo meu lar, sozinho ou em companhia de outros.

Não deixarei a pátria diminuída, porém maior e mais forte do que quando a recebi.

Obedecerei às ordens que a sabedoria e a prudência dos magistra-dos houver por bem me dar.

Sujeitar-me-ei às leis vigentes e às que o povo emitir de comum acordo: se alguém quiser revogar essas leis ou desobedecer-lhes, não o consentirei, mas por elas combaterei, sozinho ou acompanhado de todos.

Respeitarei os cultos de meus pais.

8 – Espaços

1. O Belo dirige-se sobretudo à visão, mas também há uma beleza para a audição, como em certas combinações de palavras e na música de toda espécie, pois a melodia e os ritmos são belos. As mentes que se elevam para além do reino dos sentidos encontram uma beleza na conduta de vida: em atos, caracteres, bem como a encontram nas ciências e nas virtudes. Há uma beleza anterior a essa? A inquirição que se segue o mostrará.

O que faz com que a visão vislumbre a beleza do corpo e a audição seja tocada pela beleza dos sons? Por que tudo o que está relaciona-do à alma é belo? É de um único Princípio que todas as coisas belas tiram sua beleza ou há uma beleza nas coisas corpóreas e outra nas incorpóreas? E o que são essas belezas ou essa beleza? Certas coi-sas, como as formas materiais, são belas não devido à sua própria substância, mas por participação. Outras são belas em si mesmas, como a virtude. Os mesmos corpos mostram-se ora belos, ora despro-vidos de beleza, de modo que o ente do corpo é muito diferente do ente da beleza. Que beleza então é essa que está presente nas for-mas materiais? Eis a primeira coisa a ser respondida em nosso ques-tionamento.

O que é que atrai o olhar do espectador para os objetos belos e faz com que se alegre com a sua contemplação? Se encontrarmos a cau-sa disso, talvez possamos nos servir dela como uma escada para contemplar as outras belezas. Quase todo mundo afirma que a beleza visível resulta da simetria das partes umas em relação às outras e em relação ao conjunto, dotadas, além disso, de certa beleza de cores. Neste caso, a beleza dos seres e de todas as coisas seria devida à sua simetria e sua proporção. Para aqueles que pensam assim, um ser simples não será belo, mas apenas um ser composto. Ademais, cada parte não terá a beleza em si mesma, mas apenas ao combinar-se com as outras para constituir um conjunto belo. No entanto, se o conjunto é belo, é necessário que as partes também sejam belas, pois uma coisa bela não pode ser constituída de partes feias. Tudo o que

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ela contém precisa ser belo. Conforme essa opinião, as cores belas e mesmo a luz do Sol, sendo desprovidas de partes, e portanto, despro-vidas de uma bela simetria, seriam desprovidas de beleza. E por que o ouro é belo? E o relâmpago que vemos na noite, o que faz com que ele seja belo? O mesmo pode ser perguntado dos sons, pois se essa opinião estiver correta, a beleza não poderia estar associada a um som simples. No entanto, freqeuntemente cada um dos sons que faze parte de uma composição é belo em si mesmo. E quando um rosto, cujas proporções permanecem idênticas, mostra-se às vezes belo, às vezes feio, podemos ter alguma dúvida de que a beleza seja algo mais que a simetria dessas proporções, de que seja dessa outra coisa que o rosto bem proporcionado tire a sua beleza?

Se nos voltarmos para as belas condutas e os belos discursos, po-deremos atribuir a causa de sua beleza à simetria. É possível falar de simetria no que diz respeito às condutas nobres, às leis, aos conheci-mentos ou às ciências? As teorias ou especulações podem ser simé-tricas umas em relação às outras? Se é por haver concordância entre elas, também pode haver concordância entre teorias más. A opinião de que a "honestidade é uma espécie de estupidez" harmoniza-se perfeitamente com a opinião de que a "moralidade é uma ingenuida-de". A correspondência e concordância entre ambas são completas.

Plotino – Cartas a Flaco

“Os objetos externos só se apresentam a nós como aparências. Quanto a eles, portanto, podemos dizer que possuímos mais opinião do que um conhecimento. As distinções no verdadeiro mundo de apa-rências só importam aos homens comuns e práticos. Nosso problema se encontra na realidade ideal que existe por trás da aparência. Como a mente percebe essas ideias? Elas existem sem nós, e a razão, como a sensação, está ocupada com objetos externos a ela? Que certeza teríamos então, que segurança de que nossa percepção é infalível? O objeto percebido seria um algo diferente da mente que o percebe. Teríamos então uma imagem, em lugar da realidade. Seria monstruo-so acreditar por um momento que a mente é incapaz de perceber a verdade ideal como ela é, e que não temos certeza e conhecimento real com respeito ao mundo da inteligência. Segue-se, portanto, que esse terreno da verdade não deve ser investigado como uma coisa externa a nós, e por isso conhecida apenas imperfeitamente. Está dentro de nós. Aqui os objetos que contemplamos e aquilo que obser-va são idênticos: ambos são pensamento. O sujeito não pode conhe-cer com segurança um objeto diferente dele mesmo. O mundo das ideias se encontra em nossa inteligência. A verdade, portanto, não é a concordância da nossa apreensão de um objeto externo com o próprio objeto. É a concordância da mente consigo mesma. Por conseguinte, a consciência é única base da certeza. A mente é sua própria teste-munha. A razão vê em si o que está acima dela e de sua origem; e também o que está abaixo dela como, uma vez mais, ela mesma.”

“O conhecimento de três graus: opinião, ciência e iluminação. O meio ou instrumento do primeiro são os sentidos; o do segundo é a

dialética; o do terceiro é a intuição. Subordino a razão a este último. É conhecimento absoluto fundado na identidade da mente cognoscente com o objeto conhecido.”

“Há uma irradiação de todas as ordens de existência, uma emana-ção externa do inefável Um. Há também um impulso de retorno, que leva tudo para cima e para dentro em direção ao centro de onde tudo veio. ...O homem sábio reconhece a ideia do bem dentro de si. Ele a desenvolve aproximando-se do lugar santo de sua própria alma. Aque-le que não compreende como a alma contém a beleza dentro de si, procura descobri-la do lado de fora, através de um trabalho laborioso. Seu propósito deveria ser principalmente concentrar e simplificar, e ampliar desse modo o seu ser; em vez de sair para o múltiplo, aban-doná-lo pelo Um, e ascender para a fonte do ser, cuja corrente flui dentro de si. “Você pergunta: como podemos conhecer o Infinito? Eu respondo: não pela razão. O ofício da razão é distinguir e definir. O infinito, portanto, não pode ser classificado entre os seus objetos. Você só pode apreender o infinito por uma faculdade superior à razão, pas-sando a um estado em que não é mais o seu ser finito, em que a es-sência divina é comunicada a você. Isso é o êxtase. É a liberação da sua mente da consciência finita. O semelhante só pode apreender o semelhante; quando você deixa de ser finito, se torna uno com o infini-to. Na redução da sua alma ao seu eu mais simples, à sua essência divina, você percebe essa união, essa identidade.

“Mas essa condição sublime não tem duração permanente. É só ra-ramente que podemos gozar dessa elevação acima dos limites do corpo e do mundo. Eu próprio só o senti três vezes, se tanto, e Porfí-rio, até hoje, nem uma vez.”

“Tudo que tenda a purificar e elevar a mente o ajudará a conseguir isso, e facilitará a aproximação e a volta desses intervalos felizes. Há pois, diferentes caminhos pelos quais podemos alcançar essa meta. O amor à beleza que exalta o poeta; a devoção ao Um e elevação da ciência, que são a ambição do filósofo, e o amor e as orações pelos quais uma alma devota e ardente ascende, em sua pureza moral, à perfeição, são os grandes caminhos que conduzem à altura que está acima do concreto e particular, onde nos encontramos na presença imediata do Infinito, que brilha como se viesse das profundezas da alma.”

Em outra passagem de suas obras, Plotino define com mais exati-dão o conhecimento extático, apresentando as propriedades dele que nos revelam muito claramente que a ampliação infinita do conhecimen-to subjetivo se encontra aí.

“Quando vemos Deus”, diz Plotino, “não o vemos pela razão, mas por algo que é superior à razão. É impossível, porém, dizer a respeito dele que ele vê o que vê, porque ele não contempla e distingue duas coisas diferentes, o que vê e a coisa vista. Ele muda completamente, deixa de ser ele mesmo, não conserva nada seu. Imerso em Deus, constitui um todo com Ele; como o centro de um círculo que coincide com o centro de outro círculo.”

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9 – Experimentos

Sem razão se queixa o homem de que a sua natureza, débil e pou-co durável, se rege mais pelo acaso que por força própria. Que, ao contrário, refletindo, achará que nada há maior nem mais prestante; e que mais nos falta indústria, que força ou tempo. Guia e soberana do homem é a mente. Quando ela se dirige à glória pelo caminho da vir-tude, vigorosa, potente assaz e ilustre por si mesma, não carece de fortuna; porque esta, a proibição, a indústria, e as mais qualidades boas nem pode dar nem tirar. Mas, se cativa das paixões, se entregou à inércia e aos deleites do corpo: se nestes perniciosos vícios um pouco se deixou inervar, depois de termos, por nossa má cabeça, perdido as forças, o tempo, o engenho, acusamos a debilidade da natureza: sempre os autores do mal tornam a sua culpa às circunstân-cias.

Que, se os homens se dessem às coisas úteis com o mesmo fer-vor, com que se dão às que lhe são impróprias, de nenhum proveito, e até muito perigosas, regeriam mais a fortuna, que ela a eles, e subiri-am a tal grandeza, que de mortais os tornaria eternos a fama. Sendo pois o homem composto d'alma e corpo, todas as suas faculdades e desejos seguem a natureza deste, ou daquela. Assim a formosura, as grandes riquezas, a força física em breve se dissipam; as sublimes produções do espírito são, como ele, imortais. Em suma, os bens do corpo e os da fortuna, como têm princípio, têm fim; quanto nasce, morre, quanto cresce, envelhece: a alma incorruptível, eterna, diretora do homem, move, domina tudo, e não é dominada.

Mais é por isso de estranhar a depravação daqueles que, dados aos prazeres do corpo, consomem a vida no luxo e moleza, e o enge-nho, o melhor e mais sublime dom da natureza deixa entorpecer na incultura e desleixo, quando há tantas e tão diversas ocupações de espírito pelas quais se pode obter clara fama. Entre estas, porém, as magistraturas, as comandâncias, todo o cargo público, enfim, não me parecem nesta época muito de apetecer; porque nem as honras se dão à virtude, nem os que por intrigas as obtêm, vivem por isto mais seguros e benquistos. Porque o reger pela força a pátria ou os súditos, posto que possas e corrijas delitos, é sempre coisa odiosa; muito mais quando se considera que todas as revoluções trazem consigo as mor-tes, os desterros e outras hostilidades. Ora, fazer vãos esforços e não tirar das suas fadigas senão o ódio de todos, é por certo a maior das loucuras: menos para aquele que, possuído de uma vil e perniciosa ambição, não duvida fazer presente de sua honra e liberdade ao poder de poucos.

Xenofonte

Ex-discípulo de Sócrates, soldado, aventureiro, proprietário rural, escritor... Xenofonte é uma das mais fascinantes personalidades da Grécia Clássica.

Xenofonte era um homem de ação e sua concepção de vida, tradi-cionalista, aristocrática e antidemocrática, seguia de perto as ideias espartanas. Como bom ateniense, porém, sentia necessidade de dis-

cutir, argumentar, ponderar, explicar as razões de seus pensamentos e atos. Nada tinha de filósofo, e seus escritos socráticos procuravam apenas defender a memória do amigo e transmitir seus ensinamentos.

As variadas experiências vividas por ele se refletem na diversidade de sua obra; a personalidade marcante do autor e suas ideias apare-cem com nitidez em cada parágrafo. De certa forma, essa é a principal razão de sua deficiência como historiador: as narrativas contêm, prin-cipalmente, as lembranças e a visão pessoal de Xenofonte. A despeito disso, o relato dos eventos ocorridos entre -411 e -362 são inestimá-veis para a reconstituição histórica da época.

Do ponto de vista literário, Xenofonte é um dos modelos mais per-feitos do dialeto ático. Suas narrativas podem parecer um pouco can-sativas ao leitor moderno, porém seu estilo simples, elegante e correto é certamento um marco da literatura grega. Foi também um dos pri-meiros escritores gregos a escrever biografias (Agesilau).

* * *

A aridez o distanciamento das realidades contemporâneas levaram a uma perda de relevância dos estudos clássicos, no seio das Ciên-cias Humanas e na sociedade, em geral. Nas últimas duas décadas, no entanto, tem surgido uma crescente preocupação com abordagens críticas do mundo antigo, buscando mostrar os liames, muitas vezes desconhecidos ou subestimados, entre as realidades contemporâneas e o mundo antigo. Preocupações como essas já estavam presentes em Moses Finley e em Arnaldo Momigliano, dois grandes estudiosos da Antiguidade que, não por acaso, tornaram-se clássicos também no estudo dos percursos epistemológicos nossos contemporâneos, em temas como a escravidão, a democracia e a historiografia.

A dialética entre presente e passado, os debates historiográficos e as múltiplas vias de acesso ao mundo antigo fornecem ao leitor um painel amplo das questões em curso nos diversos campos de estudo sobre o mundo antigo. Este volume terá satisfeito seus objetivos se levar não a respostas, mas a novas indagações, se motivar o leitor a ultrapassar os limites formais das disciplinas tradicionais, em busca de um olhar crítico e transdisciplinar do mundo antigo.

O estudo da Antiguidade, no Brasil, tem sido facilitado, nos últimos anos, pela publicação, de forma cada mais intensa, de documentos antigos, assim como de livros e artigos científicos. Traduzem-se livros de autores estrangeiros e a produção nacional cresce de maneira notável, com compêndios e obras especializadas publicadas tanto em editoras comerciais como acadêmicas. Os alunos de graduação, por-tanto, nunca tiveram acesso a tanta bibliografia em vernáculo, o que atesta o amadurecimento dos estudos sobre o mundo antigo em nosso país. Neste contexto, a História cultural, em geral, e o estudo da Histó-ria da própria ciência sobre o mundo antigo constituem campos de particular interesse e florescimento no âmbito internacional e no Brasil. Não são tão numerosos, contudo, os estudos específicos nesses cam-pos publicados em português, até porque essa é uma produção recen-te. Publicam-se, a seguir, dois textos seminais, traduzidos ao portu-guês e para o uso na Graduação, o primeiro deles um texto, inédito em

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vernáculo, do helenista Jean-Pierre Vernant, sobre um tema importan-te da Histórica cultural. Richard Hingley, estudioso britânico, produziu, especialmente para este volume, um texto sobre a construção histori-ográfica inglesa do mundo romano, em uma análise original e crítica da historiografia sobre a Antiguidade romana. A publicação deste vo-lume permitirá, pois, aos alunos de graduação, um acesso excepcional ao que de mais original se tem produzido sobre a Antiguidade.

Jean-Pierre Vernant procurou, ao longo de mais de cinqeunta anos de pesquisa, compreender a história interior do homem grego. Uma de suas maiores contribuições ao estudo da Grécia Antiga foi seu estudo sobre o mito. Para o autor, o lugar do mito está reservado na história mental e social do homem grego, portanto, o mito, ou em seu conjunto, a mitologia, é compreendida como um traço desta civilização. O que foi considerado absurdo, em Vernant torna-se um desafio. O mito dei-xa de ser interpretado como um pensamento irracional e passa a ser entendido como um modo de expressão ligado a uma forma precisa de civilização, a um tipo de crença religiosa. O distanciamento entre mythos e logos não é mais visto como necessidade inerente da língua, mas como resultado de transformações mentais. As incoerências do mito não são criticadas por Vernant, mas são compreendidas como uma forma particular de explicação dos fatos. Seus argumentos acerca do mito e da cultura grega, em geral, podem ser encontrados nos mais de vinte livros publicados por ele, alguns em parceria com Pierre Vidal-Naquet, Marcel Detienne e com Françoise Frontisi-Ducroix. Dentre eles destacamos. As Origens do Pensamento Grego, Mito e Pensa-mento Entre os Gregos, Mito e Religião na Grécia Antiga, Mito e Soci-edade e Mito e Política, traduzido recentemente. O texto que se segue abaixo é um belo estudo onde expõe as diferentes interpretações a que foi submetido o mito no decorrer da História.

Fronteiras do Mito Jean-Pierre Vernant

“O que sentimos, exatamente, no espírito, quando nos falam hoje de mito grego? A resposta não é simples nem fácil. Certamente a palavra "mito" da qual nos servimos, é de boa cepa helênica. Mas no curso da Antiguidade, o sentido de muthos teria variado muito sem que nenhum dentre eles, em nenhum momento, tenha inteiramente coinci-dido com o que, no uso moderno, se designa correntemente por este termo. Um mito, para nós, é um relato tradicional suficientemente im-portante para ser conservado e transmitido de geração em geração no interior de uma cultura, e que relata as ações de deuses, de heróis ou seres lendários cuja ação situa-se num outro tempo que não nosso no “tempo antigo”, um passado diferente daquele que trata a pesquisa histórica. Teríamos, portanto, relação com um tipo de narração cuja especificidade tenderia para a dimensão mais humana dos persona-gens colocados em cena e ao caráter sempre mais ou menos maravi-lhoso de aventuras que escapam, por definição, às dificuldades da verossimilhança comum.

Pode-se, assim, aproximar o mundo das lendas gregas, de uma parte, aos textos sagrados das grandes civilizações do Oriente-

Próximo antigo e da Índia védica, de outra parte, dos relatos tradicio-nais que os etnólogos recolhem entre os povos sem escrita. Daí a estabelecer a existência de um "pensamento mítico" constituindo, na história da humanidade, um estado primitivo, igualmente distante do espírito dos autênticos religiosos monoteístas e dos meios da razão científica, haveria uma distância: os especialistas do século XIX supe-raram, felizmente, seguindo sobre este ponto pela opinião comum. Este esquema evolucionista relega o mito ao fundo de seu gueto, rea-lizando uma etapa que é necessária superar, para entregar ao religio-so, sua verdadeira face, purificado do mágico, das superstições, da idolatria e para isentar o pensamento da mentalidade pré-lógica na qual ele estaria inicialmente engajado. Esta concepção foi vigorosa-mente atacada por toda uma série de abordagens novas que conduzi-ram a colocar, em outros termos, os problemas do mito. Comecemos pelos historiadores das religiões. Eles mostraram que todo sistema religioso comporta diversos aspectos, por vezes, distintos e interde-pendentes. Primeiramente, o que se faz: os atos, os gestos rituais, o conjunto das práticas constitutivas do culto; em seguida, o que se apresenta à vista: os fatos de figuração que conferem às divindades um lugar, uma categoria, uma figura visível, quer se trate de imagens ou de formas anicônicas; enfim, o que é dito: palavras pronunciadas, invocações, preces, hinos, discursos sagrados relacionados às potên-cias do além e exprimindo a natureza, as funções, as transformações, os relacionamentos mútuos, as relações com os humanos pelos meios de que dispõe a linguagem. O mito delineia-se, não mais como uma etapa completa que deixaria somente aqui ou ali alguns vestígios, mas como uma das facetas da experiência religiosa, suas partes verbais associada às suas dimensões rituais e figuradas. A questão é, não definir por ausência e defeito: irracional, ilógico, irreal e infantil. O pro-blema é, ao contrário, de lhe encontrar um sentido ou antes, de tornar possível reconhecer as significações às quais ele é autenticamente portador. Neste sentido dois tipos de interpretação foram propostas. Primeiramente uma leitura "alegórica" que os Gregos muito cedo prati-caram. Trata-se de substituir tal texto como se apresenta na sua litera-lidade, por uma tradução que faça desaparecer as inverosimilhanças, as anomalias, o fantástico. Decifra-se o relato das aventuras divinas ou heróicas transpondo os acontecimentos relatados do plano lendário onde se situam para um registro de fatos diferentes dos quais seriam a expressão simbólica. Quando coloca em cena Zeus, Hera, Hefaístos, Atena, Afrodite, Apolo, Héracles, Dionísio, o mito falaria da realidade, envolvendo-os de segredo, de forças e da natureza, de noções morais, de asserções filosóficas ou de acontecimentos pertencentes à vida de personagens humanos de antigamente. Para restituir sua verdade, o mito deveria, portanto, parar de ser ele mesmo e manifestar-se, sob seu disfarce fabuloso, conhecimento da natureza, ética, filosofia, saber histórico.

É Schelling que, contrário a esta versão alegórica, o que ele chama o "caráter tautegórigo" do mito, inaugurou uma abordagem nova que os especialistas modernos explicaram. O mito não diz "outra coisa", ele não tem outro sentido que este que ele diz e que não se poderia

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exprimir em outra linguagem que não a sua. Seu silêncio só reside nele mesmo, na sua forma narrativa. É na sua composição interna, no desenvolvimento do relato, na ordem articulada das seqüências, nas suas homologias ou oposições, nas funções dos diversos atuantes, na natureza das ações onde estão os iniciadores ou as vítimas, que é preciso pesquisá-lo.

Historiadores das religiões, antropólogos, linguistas estão hoje de acordo sobre a maneira de compreender os relatos, sobre os procedi-mentos de deciframento a lhe aplicar. Mas, ainda deve-se distinguir duas orientações diferentes segundo a qual segue Georges Dumézil que os trata como mensagens que transmitem senão um ensinamento do meio, o que este autor entende por ideologia - um conjunto articulado de con-ceitos -, ou com Claude Lévi-Strauss que quer decifrar um código, do qual deve-se descobrir as chaves, sem que este código nada nos faça reconhecer de diferente que seu próprio funcionamento, seu modo ope-ratório, os mitos se significando uns e outros, jogando à maneira de uma gramática, de uma lógica do concreto, pois que eles não visam comuni-car qualquer saber sobre o mundo e sobre o homem.

Este consenso, ao menos relativo, sobre os métodos entre os es-pecialistas que, por profissão, tratam este tipo de relato como um obje-to de estudo todo positivo, deixa abertas questões sobre a natureza e sobre as fronteiras do mito. Ao ponto que se pode sustentar que no sentido que lhe foi comumente reconhecido, o mito não existe e que se trata de uma construção em grande parte arbitrária dos antropólogos. Utilizando um termo já cheio de ambiguidades por sua longa história desde a Grécia Antiga, eles fabricaram um domínio de investigação cujos limites são sombrios e cujo objeto, deixa de ser específico, es-capa a toda definição precisa.

Os africanistas assim observaram que, no vasto tesouro de contos orais que eles recolheram, nenhum tipo de relato apresenta os traços distintivos que permitiriam diferenciar o mito de outros gêneros narrati-vos como o conto e a lenda. Não há, de um lado, os relatos 'sagrados', histórias dos deuses, palavras dos ancestrais, gênese do mundo, cuja narração estaria tomada tanto mais ao pé da letra quanto fosse sub-metida a imperativos rituais - prescrições e interditos -, de outros con-tos aos quais ninguém teria tentado, nem desejado acreditar e que constituem, por sua característica claramente fictícia, uma forma de literatura, ou ainda de lendas que remetem a acontecimentos reais. Pierre Smith distingue assim, num corpo de mais de mil contos orais de Ruanda, oito gêneros ou subgêneros diferenciados, todos igual-mente marcados por seus traços literários, donde nenhum poderia ser incluído na categoria do mito se o entende como um gênero específi-co. Aí onde existe ainda viva uma rica tradição oral com, em aparência e essência, uma grande variedade de relatos, o mito, no sentido que nós damos a este termo, não é encontrado. No meio de culturas orais, onde a narrativa não está ainda inserida nos textos escritos, a fronteira afasta-se entre mito e literatura.

De seu lado, os historiadores da religião romana, após ter por mui-to tempo oposto à Grécia dos mitos e lendas uma Roma que os teria

seja ignorado, seja descartado, uma Roma "desmitologizada", mostrou com Georges Dumézil que os grandes quadros da mitologia indo-europeia, seus mecanismos de fabulação, encontravam-se nos anais dos primeiros tempos de Roma e nas tradições citadas por aqueles que consideramos como historiadores. Os especialistas neste domínio deram, hoje, um passo a mais. "Constatamos, escreve Philippe Borge-aud, que se esboça a pertinência de uma oposição teórica que não teria razão de existir entre mito e História. Isto num sentido ligeiramen-te novo em relação à lição duméziliana: antes de uma "aterrissagem" do mito sobre a História (o que supõe a anterioridade do primeiro so-bre o segundo) observamos o jogo de suas interferências". É sem descontinuidade que em certas circunstâncias a fabulação, que se poderia crer própria ao mito, insinua-se na História. Desde que se abandona as categorias, a priori, para interrogar os textos mais de perto, a fronteira entre mito e História deixa de oscilar ao ponto de parecer impossível decidir.

Nos é preciso retornar aos Gregos de onde, à ocasião da palavra mito, teríamos partido. Primeira constatação. Todos os mitos gregos que conhecemos nos foram transmitidos incorporados aos textos lite-rários, históricos, filosóficos. As versões mais antigas apareceram na época - homérica ou de outros ciclos cujos fragmentos nos chegaram -, e nas diversas formas de poesia sapiental, coral, lírica, trágica. Sua ocorrência depende sempre do contexto das obras nas quais estes mitos estão inseridos. E para estes períodos antigos onde a "Literatu-ra" não é feita para ser lida desacompanhadamente, mas musicalmen-te recitada perante tal ou tal auditório, em ocasiões de festas comuns ou privadas, cívicas ou pan-helênicas, a mensagem poética fica sob a dependência das condições que requer sua enunciação em público. Dito de outra forma, a performance destes relatos míticos comporta sempre, ligadas uma à outra, uma dimensão estética e uma dimensão social.

Segunda constatação. Na origem muthos não se opõe a logos. As duas palavras significam igualmente "palavra", "relato", qual seja seu conteúdo. É somente no curso do século V que, entre certos autores, seus campos de aplicação vão se dissociar, muthos passando a de-signar, por razões diversas segundo se é poeta como Píndaro, histori-ador como Heródoto e Tucídides, filósofo como Platão e Aristóteles, o que se quer se definir e que se opõe, por isto fazer, aos domínios do demonstrado, do verificado, do verossímil, do conveniente. Antes, como escreve Marcel Detienne, "muthos e logos são termos permutá-veis sem que um recorte um registro de palavras cujo outro seria ex-cluído ou somente tomado a distância". Mas, mesmo assim, a fronteira estabelece-se e o muthos aplica-se a assertivas que nos recusamos a admitir como verdadeiras, considera-se no campo dessa definição todo um museu dito tradicional, vindo do fundo das idades e transmiti-do de boca à orelha sem que se sonhe submetê-los à critica. Nesta miscelânea veiculada por isto que Platão chama phèmè, o sussurro, encontra-se, ao lado de lendas divinas e heróicas, tais como certos poetas os teriam contado, outras formas de ditos e de relatos: genea-logias, provérbios, ditados, adivinhações, enigmas, máximas, fábulas

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de amas de leite. Este conjunto heteróclito não define um tipo particu-lar de narração, de valor sagrado, colocando em cena potências do além, cuja ação se situaria num tempo primordial. Não há outra unida-de que esta do ostracismo, do qual ele é inteiro atingido. O que apro-xima estas múltiplas "maneiras de dizer" tradicionais é, no espírito destes que exigem de hoje em diante, no estabelecimento da verdade, a administração da prova (quer trate de razão demonstrativa ou de testemunho ocular direto), seu caráter, senão falso, ao menos não fiável, contrário à verossimilhança.

Terceiro ponto. Se Píndaro, em seus poemas, denuncia como mu-thoi, falsos os episódios da façanha divina, que lhe parece indignos dos Imortais, ele não aceita menos, como os logoi válidos, todos os outros, por extraordinários que sejam. Se Heródoto fustiga a creduli-dade dos Gregos consentindo fé aos muthoi absurdos, como estes que fazem do Oceano um rio correndo em círculo em volta da Terra, isto não impede de embelezar seus próprios logoi, quer se trate das Amazonas, dos Citas, Etíopes, de uma história maçante.

Com Tucídides, as coisas mudam. É no interior de seu projeto de escrever a Guerra do Peloponeso, na ideia que se faz de seu trabalho e de seu papel de historiador, que se situa entre mito e História, uma fronteira nitidamente trançada. Para as épocas antigas, para os tem-pos anteriores à Guerra de Tróia, em falta de documentos e testemu-nhos diretos, não se poderia pretender um conhecimento resoluto; o melhor que se pode propor, a partir de indícios, é qualquer verossimi-lhança concernente a certos fatos: "Se crê menos de bom grado, es-creve Tucídides, nos poetas que celebraram estes fatos lhe empres-tando beleza que os engrandecem ou nos logógrafos que os contam, procurando o consentimento do ouvinte, mais que a verdade, pois se trata de fatos incontroláveis e aos quais sua antiguidade há dado um caráter mítico excluindo a crença". Se ao contrário, limita-se aos acon-tecimentos contemporâneos, pode-se fazer um relato seguro, preciso, controlado, onde a sucessão dos fatos, obtidos em uma ordem de razão, permite não somente compreender seu encadeamento mas obter para o futuro uma útil lição. O mito pertence a um passado que seu afastamento consagra, sem recurso, à obscuridade; a História, escrita no presente, comporta regras estritas que delimitam seu campo e rejeitam, sem poder se aplicar, tudo o que reconstrói o passado longínquo, abandonado às fantasias dos poetas e dos logógrafos cujos relatos, estranhos ao verdadeiro, visam à aprovação e o prazer para os ouvintes de um momento, não o saber e a utilidade para todas as gerações por vir.

Desta vez as coisas parecem regradas. Por oposição a um relato histórico, controlado, verídico, útil, o mito foi devolvido ao tempo anti-go. Escapando ao nosso olhar, os acontecimentos deste passado projetam-se sobre a tela que nos apresenta os poetas, magnificados, sublimados, embelezados no reflexo de um canto que visa a encantar o público, não a lhe ensinar a verdade. Antiguidade, poesia, embele-zamento, prazer, inverossímil, tais são as marcas que têm o mito à parte da História. Mas Tucídides, para separar o mito do verdadeiro e

do crédulo, não coloca somente em causa a longa cadeia de fabulação que cada poeta recebe de herança para a trançar de novo à sua ma-neira. Utiliza-se do mesmo movimento e por razões análogas aos logographoi, acusados de não mais preocupar-se com o verdadeiro que os poetas relatam dos fatos extraordinários, passados definitiva-mente ao estado de mito (epi to muthòdes eknenikékota). Dos logo-graphoi: por conseqüência os homens confiam na escrita, como Tucí-dides, no que estão a dizer e não declamando os cantos poéticos. Em que estes logoi declarados nos textos escritos (graphein) podem in-formar dos muthódes, do mítico? Quem são, portanto, estes logógra-fos? Estes são os primeiros "cronistas" que, desde a alvorada do sécu-lo V, empreenderam estabelecer as tradições locais ou regionais das cidades e populações gregas, remontando o mais longe, até às ori-gens, aos primeiros homens, heróis fundadores, nascidos do sol ou descendentes de uniões entre mortais e divindades. Para narrar desde o início até os tempos contemporâneos a implantação dos humanos sobre o seu território, Hecateu de Mileto, Acussilao de Argos, Helani-cos de Mitilene, Ferécide de Atenas e os outros atidógrafos não se contentaram em utilizar os episódios que os poetas teriam já mencio-nado. Eles coletaram e confrontaram as versões diversas; apelaram às tradições locais que a oralidade conservou, àquelas que os exegetas transmitiram em certos santuários ou que ficaram vivas nas grandes descendências nobres reclamando ancestrais lendários. Pois organi-zam seu relato segundo uma ordem genealógica onde cada geração, com as aventuras e as façanhas que lhe são próprias, vem tomar a continuação desta que a precedeu, pois reúnem tudo e esforçam-se em mostrar a continuidade de uma tradição de relatos cujos poetas não utilizaram, ao agrado de suas necessidades, este ou aquele tre-cho, eles conferem aos muthoi um novo status de existência, indepen-dente do uso que faria antes a Literatura. De hoje em diante, o contex-to de um mito não é mais a obra poética na qual ele está inserido mas os outros relatos míticos que formam corpo com ele. Englobando a diversidade dos relatos tradicionais, começa-se a desenhar uma mito-logia. Deste ponto de vista, pode-se dizer que, pelo projeto de ligar o passado, o mais recuado, ao presente, ao fio de um texto escrito em prosa, os logógrafos são, por vezes, os primeiros historiadores e os primeiros mitógrafos.

O que os separa de Tucídides é que, como não compreenderam as regras estritas que exige a narrativa seguida e precisa das grandes linhas dos acontecimentos contemporâneos, como a guerra do Pelo-poneso, não estabeleceram um corte entre o passado "lendário" e o presente; eles não fizeram do mito um objeto sui generis constituinte como tipo de relato e forma de pensamento, uma realidade à parte. Logo, ainda é necessário precisar que, nem Tucídides nem, em geral, os homens da Antiguidade entendiam mais desta maneira. Os mitos pertencem a acontecimentos e a personagens muito antigos para que se possa dispor, sobre este assunto, de um conhecimento resoluto. É seu afastamento que os torna opacos e que nos impede de os abordar com instrumentos de pesquisa válidos. Mas neles mesmos, em sua natureza de acontecimentos e de personagens, não diferem destes do

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presente. Não são nem irreais, nem imaginários; escapam somente, na aproximação que fazemos, à tomada de um saber positivo. Quando Plutarco, na alvorada do I e do II séculos de nossa era, aborda a Vida de Teseu, observa na introdução: "Depois de ter escrito as Vidas Para-lelas, percorrido as épocas acessíveis à verossimilhança e o terreno sólido da história que se apóia sobre os fatos, eu poderia, com razão, falar das idades mais recuadas: o além é o país do prodígio e do trági-co freqeuntado pelos poetas e os mitógrafos, e não se acha uma prova fiável', nem nada de certo". Depois que empreendeu narrar a vida de Teseu, do nascimento à morte, o que faria de todo ser humano que teria conhecido em carne e osso. Teseu não é, a seus olhos, um ser mítico do qual o que narra revelaria a mais pura fabulação. Entre o tempo mítico dos primeiros reis lendários de Atenas ao qual Teseu se prende e o tempo medido, controlado, datado no qual se joga o desti-no das cidades, não haveria para os Antigos esta diferença de plano que enuncia, para nós, sua incompatibilidade. Trata-se sempre, se-gundo eles, do mesmo tempo. O tempo das origens não é pensado como um outro tempo, aquele do mito; ele constitui somente um tempo mais obscuro, cujos contornos estão misturados no longínquo e que tornou-se impossível de investigar com a precisão e a exatidão do olhar histórico.

Estes narradores de um passado fabuloso que Tucídides compara-ria aos poetas e que chamaria logógrafos, Plutarco, quinhentos anos mais tarde, os designa pelo nome de mitógrafos. Neste meio tempo, mesmo se não é posto em causa a ideia de que o mito é a forma to-mada pela história quando é muito ou pouco antiga, resgatando, atra-vés de uma série de obras específicas, o que se pode chamar uma "mitologia grega", cujo aspecto é, de certo modo, mais próximo daque-le que nos é familiar. O esforço que se demanda nos primeiros séculos de nossa era tende a recolher, juntar, ordenar, clarificar o corpus de todas as lendas - sem mais limitar-se, como faziam os logógrafos do século V a.C., aos particularismos locais - e os narrar desde a criação do mundo, a partir de Gaia e Urano, com a legião de deuses que são descendentes, até o fim da guerra de Tróia, com o retorno dos heróis aqueus. Concentrando em um texto único e seguindo deste até espa-lhar em fontes múltiplas, apresentando no conjunto na língua comum, la koinè, sob uma forma acessível a um grande público, substituindo a trama dos relatos freqeuntemente complexos e ramificados de uma cadeia linear de cenários reduzidos ao essencial, um repertório quase exaustivo de nomes de pessoas e de lugares, o desenvolvimento de um texto seguindo uma ordem genealógica estrita (à falta de cronolo-gia), onde cada geração inscreve-se em uma escala vertical depois daquela que a procedeu e se ajusta, sobre um plano horizontal, àquela de outros heróis pertencentes a uma linhagem diferente, a um outro ciclo lendário, mas ligados a um mesmo estrato de geração. A Biblio-teca de Apolodoro, que se pode situar por volta do ano 200 de nossa era, é, certamente, o melhor exemplo de uma tal empresa, cuja ambi-ção é de consagrar, em uma só obra (como uma verdadeira bibliote-ca), a soma erudita de tudo que os Gregos poderiam e deveriam co-nhecer referente aos relatos dos antigos tempos. A mitologia encontra-

se, então, no que diz respeito a isso, circunscrita e objetivada: ela emerge para formar um campo de estudo, um domínio de saber espe-cífico e autônomo, ao lado e dentro de outros setores da produção literária e científica, poesia, filosofia, história, ciências, medicina, curio-sidades da natureza (mirabilia), vida dos homens célebres... Em que o mito, assim delimitado e reduzido a ele mesmo, difere, na sua nature-za e suas funções, daquilo que era na época clássica, quando filósofos e historiadores tomando, a seu respeito, uma certa distância inicial, utilizando-o como distanciador para melhor marcar a pertinência de sua marcha, na busca do verdadeiro. O mito, escreve Christian Jacob, "não está integrado num quadro global de interpretação alegórica (as Alegorias de Heráclito). Não há mais álibi estético e literário que acen-tuaria a dimensão artificial do mito (poesia helenística e imperial, de Apolônio de Rodes à Nonos de Panopolis). O alvo procurado não é mais o maravilhoso, nem o sobrenatural (coleção dos paradoxógrafos ricos em histórias de fantasmas...). O mito perdeu assim sua eficácia política e social: não está mais ao serviço da propaganda das cidades gregas ou das grandes famílias aristocráticas que, no século V, reivin-dicavam os fundadores ou os ancestrais míticos". Um mito desengaja-do portanto: desligado do literário, separado da história, escapando aos jogos ideológicos e locais da Grécia das cidades. Qual lugar então lhe dar, qual papel lhe reconhecer? A resposta mais plausível seria a seguinte: "à organização geopolítica que faz de Roma a metrópole de um Império onde a Grécia está reduzida à condição de província, o mitógrafo substitui um espaço cultural, delimitado e organizado pela língua e a literatura gregas, onde os heróis e os deuses atacam o mundo mediterrâneo (...). Trata-se de um verdadeiro golpe de força simbólico pelo qual "a mitologia grega, na sua forma substancial, é dada como memória cultural a todos os povos do Império". Se poderá juntar, para precisar, que para o estatuto que lhe confere a obra dos mitógrafos o mito não constitui somente "uma prática compensatória e complementar da dominação romana", mas também a procura num passado muito antigo de um vínculo cultural e simbólico tanto mais necessário nas regiões orientais do Império, de helenização recente, estando estabelecidos à parte das tradições e da base social mais solidamente preservada na Grécia continental.

Paradoxo: é quando Roma lhe impõe sua dominação, quando a Grécia das cidades não é mais a mesma dos relatos lendários de suas origens, enraizadas na gênese do mundo, no nascimento dos deuses, nas façanhas de antanho, na sorte e desdita dos heróis, que se forne-ce o saber comum, a memória partilhada suscetível de unir os povos diferentes, de confirmar, por uma igual familiaridade, com um vasto universo de contos tradicionais, a convicção de partilhar uma mesma identidade cultural.

É necessário aqui, na falta de poder responder totalmente, ao me-nos colocar uma última questão. Donde este conjunto de relatos tira seu impacto, sua empresa, sua eficácia? A quem dirigir seu poder de sedução, qual forma de prazer ocasiona, quais necessidades especi-almente tem que satisfazer? Notar-se-á, inicialmente, que o acesso a estes textos, à informação que eles veiculam sobre o passado huma-

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no, que o mais remoto funciona como uma marca de "distinção" no sentido que Pierre Bourdieu dá a este termo. Eles autentificam, de qualquer maneira, o afastamento que isola do comum - popular, rústi-co, bárbaro - uma elite urbanizada que assimila a cultura grega que chegou a um estatuto de "civilidade", ao qual podem apenas pretender aqueles que partilham este privilégio. De fato, a dominação do campo mitológico é uma condição necessária para inteirar-se plenamente à civilização greco-romana do início de nossa era. É preciso conhecer os personagens, os lugares, as aventuras que são o objeto destes relatos para compreender o cenário da vida quotidiana, nas casas, as cida-des, os templos, para ler claramente as imagens figuradas sobre os vasos, as taças, os muros, ou erigidas em alto- relevo nos lugares públicos e privados, na cidade e no campo. Mas ao lado do imaginário cujos lugares com as tradições lendárias são de evidências estritas e recíprocas, as práticas religiosas, os hábitos políticos, as condutas de linguagem, o gestual, as técnicas do corpo e as maneiras de ser, ma-neiras de comer, de vestir-se, as formas de sociabilidade, enfim, todos os traços de comportamento que dão a um grupo humano seu aspecto característico, empregam sempre mais ou menos o mesmo universo simbólico que serve de base à organização narrativa dos relatos. No momento onde o mito tomou sua forma própria de encenação conden-sando, sob uma aparência despojada, uma seqüência de aconteci-mentos relacionados a um passado longínquo, sua pertença a um espaço intelectual mais vasto, que o transborda, mas do qual é um dos elementos constitutivos, afirma-se de maneira brilhante. O mito relato supõe um horizonte mental ao qual ele apóia-se, de onde tira seus planos múltiplos de significação e que reabilita, em razão de seu cará-ter também não narrativo, mas de quadro cognitivo, isto que se pode chamar o "mítico". O mítico não depende como o mito da ordem da narração; ele não é mais, como a mitologia, um conjunto coordenado de relatos. Ele concerne certos objetos que, pela maneira que estão na nossa experiência percebidos e pensados, têm a propriedade de "pôr em movimento a imaginação lendária", para retomar os termos que utilizaria Louis Gernet no seu estudo sobre os Aspectos míticos do valor na Grécia. Estes "objetos" podem ser de toda sorte: sejam reali-dades naturais, vivas ou inanimadas, como pedras, metais, plantas, animais, fenômenos físicos, seja produtos fabricados pela mão do homem, como os agalmata gregos, seja condutas práticas, que se tratasse de operações técnicas, de costumes sociais, de atos rituais, seja mesmo noções "abstratas", como a rivalidade, éris, a amizade, philia, o pudor, aidôs, a justiça, diké. Se estes objetos têm, no sentido de uma cultura, o privilégio de poder, mais que outros, gerar seqüên-cias de relatos, de séries de imagens, de seqüências gestuais, é que neles vem reunir-se, para se concentrar, uma multiplicidade de planos e de domínios que, de um ponto de vista puramente positivo, formam redes de significação distintas e separadas. Eles constituem assim como pontos nodais, os cruzamentos, a partir dos quais desenham-se as grandes articulações de um espaço mental "mítico", com seu jogo de aproximação e de contrastes inesperados. John Scheid e Jesper Svenbro, exploram, num livro recente, os itinerários que os mitos gre-co-latinos de tecitura convidam a percorrer e que desdobram nas dire-

ções mais diversas, são assim apresentados tecitura e tecido como exemplo de uma tal "concatenação de noções" própria para desenca-dear, no papel de aparelho de embrear, assim como símbolos figura-dos e práticas gestuais como performances narrativas.

Um segundo traço desta mitologia grega é sua distância, seu afas-tamento face ao contemporâneo. O mito faz parte da cultura de uma época, porém precisamente como um "anacrônico" cujo deslocamento em relação à existência presente permite jogar com o efeito de reali-dade visado por um relato pseudo-histórico para introduzir os aspectos de estranheza, de insólito, de maravilhoso. Da não-atualidade dos personagens, das ações acabadas, dos acontecimentos inesperados participa o charme da leitura. O recuo a um passado lendário no qual as criaturas humanas são, por vezes, os parentes que nos precederam e seres diferentes de nós, de um outro calibre, maiores, mais fortes, mais próximos dos deuses, opera um deslocamento do verossímil. As regras que se impõem no curso da vida comum não podem mais estri-tamente aplicar-se quando se trata do tempo de antanho.

A adesão do leitor, ao pé da letra, aos relatos oculta também traços particulares. Ela não é mais obrigatória como aquela onde o fiel deve decorar as palavras sagradas pronunciadas nos rituais religiosos, ou as fórmulas de seu credo. Ela não é, entretanto, idêntica à atitude de afastamento que é concernente à verdade de textos literários dos quais sabemos se tratarem de ficções, produtos da imaginação de um poeta ou de um romancista. Ela não se confunde mais com a certeza que provoca a constatação de um fato confirmado nem com a confian-ça que nos inspira uma demonstração rigorosa ou uma relação históri-ca solidamente documentada. Contrariamente à fé religiosa, a crença que suscita o mito é livre de todo constrangimento: contrariamente à fábula, ao conto, à poesia, ela pousa sobre os seres e os fatos que não foram inventados mas que, supostamente, teriam efetivamente existido antigamente; contrariamente aos diversos tipos de saberes, ela não implica verdadeira certeza. Seu estatuto é equívoco, amplo, mal-resolvido. O que narra a mitologia não aparece como falso sem ser reconhecido plenamente como verdadeiro. Crê-se sem se crer. A facilidade da interpretação pessoal, a escolha de certas versões de preferência a outras, a liberdade de tomar e de deixar fazem, portanto, parte da regra do jogo e do prazer que o leitor encontra. Oscilando entre o rigor de uma erudição sábia e a fantasia da criação literária, unem na mesma trama narrativa personagens tomados como reais, acontecimentos fabulosos, presenças sobrenaturais, encobrindo por um jogo de interferências entre a história, a poesia, a religião, as fron-teiras que desenham os traços de sua própria figura, misturando as pistas, a mitologia, mesmo quando forma um domínio distinto, perma-nece sempre aberta. Ela é, desde o início, bastante separada da soci-edade e da cultura da qual é a expressão, para emprestar, em outros tempos, especialmente a partir da Renascença, às retomadas, às transformações e ressemantizações. Ela traz num contexto social diferente do mundo greco-romano, o mesmo sentimento de pertencer a uma elite letrada cujo horizonte intelectual, mais vasto que aquele do vulgar, traz consigo, pelo olhar lançado em direção aos Antigos, até a

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origem longínqua, o fundamento último da vida civilizada, do saber, da filosofia, da arte. A acentuação da distância, o deslocamento acentua-do em relação ao presente, reforça, ainda, o caráter de gratuidade dos relatos. Ao não serem 'sérios', não têm peso social, não levam, nesse caso, a nenhuma conseqüência. Oferecem, assim, a ocasião de ex-primir o que formulado em outras línguas, mais oficiais, seria indecen-te, incongruente, escandaloso, sacrílego. Revisitados em textos ou imagens, os mitos consentem novas metamorfoses; formam um dos terrenos privilegiados para exercer seu estilo, seu trabalho, seu talen-to, para dar forma à experiências propriamente estéticas ou para pôr em causa, sem parecer, as ideias mais comumente aceitas.

Para não concluir, enfim: a transdisciplinaridade num fazer científi-co no qual se insere a Arqueologia traz a marcação contundente do jogo saber/poder que aponta para os seguintes dizeres:

a) o conhecimento científico é uma atividade de bus-ca/investigação, trilhando sempre um jogo de incertezas/certezas, desmontes/refazeres;

b) a ideia da certeza teórica está hoje despojada por completo na “falibilidade” que marca os limites e possibilidades de todo e qualquer trabalhar científico;

c) a ciência é produção de homens, sujeitos em historicidades, em diferenças, em culturas datadas, em aporias ideológicas precípuas do fazer científico;

d) toda a ciência é social, porque atuação e co-produção de ho-mens;

e) trabalhar cientificamente corresponde a um processo “auto-ecoprodutor”, numa circularidade que tem sua real e assumida repre-sentatividade na cooperação e trânsito nos níveis transdisciplinares que caminham por entre um aberto e cristalino querer científico”.

10. HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de Aula: visita à História contemporânea. São

Paulo: Editora Selo Negro, 2010.

A INVENÇÃO DA ÁFICA

Diante do olhar empreendedor, e racional do europeu ocidental civi-lizador equivocou-se ao pensar sobre o continente africano, desconsi-derando fatores primordiais como: espaço geográfico, visão política de cada povo ou grupos étnicos, as aplicações econômicas dos mesmos e os aspectos e relações sociais entre os mesmos.

Pensando como tornar viável, os projetos de cunho ocidental no continente negro a solução encontrada pelo elemento civilizador euro-peu foi, desconstruir a heterogeneidade dos respectivos povos africa-nos, desta maneira poderia sim estimular a reorganização geográfica e influenciar sobremaneira todo o processo de desenvolvimento científi-

co, sócio-político, e econômico em tal continente conforme a necessi-dade de seus empreendimentos comerciais que já tinham ultrapassa-do as fronteiras do velho mundo.

Ao buscar vantagens financeiras em outras terras, o europeu ali-cerçado em seus princípios políticos, éticos e morais teve como fun-damentar a colonização do continente africano. Isto é, lançou mão do saber-poder que teve como resultado o conhecimento científico euro-peu, somente o elemento civilizador europeu em detrimento do africa-no foi aquele que teria apresentado-se como o mais apto, capaz e dotado de um intelecto privilegiado. Foi o saber ocidental que construiu uma nova consciência planetária tendo como norte, o olhar expansio-nista imperialista do homem do velho mundo.

Deste modo as inúmeras obras publicadas abordando o continente africano, embasada ora pelo positivismo, ora pela eugenia ciência devidamente ordenada e sistematizada pelo biólogo inglês Francis Galton na segunda metade do século XIX tinha por objetivo explicitar a superioridade de um determinado grupo étnico em relação às demais, externando erros de interpretações culturais de povos, como também pré-noções e preconceitos.

Com isto, os países europeus criaram políticas públicas visando pa-ra incentivar os empreendimentos comerciais de grandes empresas, e missões em terras do continente que geograficamente fica localizada no antiqüíssimo mundo.

A conseqüência é que o negro termo utilizado para designar o afri-cano, cujo significado será: frouxo, fleumático, indolente e incapaz, e em outras palavras um indivíduo inferior e primitivo. Deliberadamente, esquece-se de falar sobre os grandes impérios surgiram no continente como o Egito, e a Etiópia.

Há dados do primeiro durante o final do neolítico por volta do ano 6.000 a.C, neste momento o homem que anteriormente era nômade fixa-se na terra, geralmente próximo aos grandes rios. Por isso que o território egípcio pertence ao chamado crescente fértil (região seme-lhante com a forma da lua crescente) onde grandes impérios surgiram em torno de rios como: O Nilo, o Tigre e o Eufrates.

É no Egito que temos alguns conceitos que são muitos caros nos dias atuais, os religiosos monoteístas, devidamente transformados em mitos como a ideia de: vida, morte e ressurreição dos mortos, como também o julgamento dos mesmos representados nas figuras dos deuses Osíris, Isís, Hórus e Set. Temos então o surgimento propria-mente dito da agricultura enquanto forma de economia de nações, já a Etiópia durante o governo de Júlio César era um dos mais notáveis impérios da época.

A necessidade de enquadrar todo o continente negro, como inferior dentro da escala evolutiva da humanidade sendo o europeu ocuparia a primeira posição. Sabendo-se que para os civilizadores cristãos não há uma única África, uma África branca aproximando-se aos ociden-tais, mediterrâneas, e a África negra relegada, e ignorada.

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Desta maneira, justificou-se ao mesmo o tráfico negreiro dos sécu-los XIV até a primeira metade do XIX, como também a neocolonização do final do século XIX até os meados da década de 70 do século XX.

Quando a intenção for verdadeiramente estudar o continente afri-cano, poderá lançar mão de textos escritos nos séculos XIV, XV, XVI, XVII, XVIII para poder logo após confrontar os mesmos, com os inú-meros trabalhos arqueológicos utilizados onde não a presença de documentos elaborados através da oralidade. Todo bom historiador em momento algum poderá deixar de não utilizar os documentos ela-borados da oralidade de um povo, uma nação. Isto é, como aquele que possue a técnica metodológica da coleta, transmissão e interpre-tação das informações obtidas, o historiador terá desse modo como interpretar não somente a sociedade de determinado povo, como o mais importante estará assim reconstruindo a história de civilizações predominantes orais. Sem este comprometimento humilde por parte do historiador, estará sim realizando um trabalho de investigação científi-ca totalmente descontextualizada da realidade dentro de uma determi-nada época, em um determinado espaço geográfico.

A oralidade para a história da África ou das Áfricas, contribuem pa-ra identificar, reconhecer as origens das diferentes organizações soci-ais e políticas e a natureza dos movimentos migratórios, como também para a compreensão das mudanças históricas dos séculos XVIII e XIX dos inúmeros povos ágrafos que formam a população continental.

Enquanto uma tradição a oralidade encontra-se, sobretudo nos es-paços rurais, e nos espaços urbanos, e na sociabilidade entre os seus membros explicitando assim a força da reciprocidade comunitária.

A oralidade não somente expressa em palavras, relatos mitológi-cos, épicos e às lendas, as migrações, está ligada ao comportamento do homem considerando um todo integrado em que seus elementos constitutivos que inter-relacionam e interagem entre si. A tradição oral explica a unidade cósmica, apontando a concepção do homem e do seu papel e seu lugar no mundo, seja ele mineral, vegetal, animal, ou mesmo a sociedade humana.

O principal grupo de expressão é os guardiões da palavra falada, responsáveis de transmiti-la de geração em geração, todo aquele que detêm o conhecimento da palavra falada por revelação divina são denominados tradicionalistas, e transmite-na com fidelidade, a palavra tem um caráter sagrado derivada de sua origem divina e na força por elas depositadas. Isto é, a fala (o verbo) tem uma relação direta com a harmonia do homem consigo mesmo, e com o mundo que o cerca. Assim a mentira, é abominável, pois aquele que corrompe a palavra corrompe a si mesmo.

Os tradicionalistas são reconhecidos como possuidores de todo os conhecimentos da origem do universo, das ciências e da vida. Os griots, não são, mas podem vir a se tornar tradicionalistas conhecedo-res, todavia, estão excluídos da tradição maior e mais divina referente, ao mito da criação do universo e do homem.

Os griots são trovadores, menestréis, contadores de histórias e animadores públicos sendo-lhes dada a liberdade da utilização de uma linguagem popular, sem a presença da rigidez da verdade. Mesmo assim, há o compromisso com a verdade, caso contrário sem a pre-sença dela (verdade), perderiam a capacidade de atuar para manter a harmonia e a coesão grupais, embalados por uma melodia musical rítmica e somando-se de coreografia, contam coisas antigas, cantando as grandes realizações, a honra e o heroísmo. Em contrapartida, evo-cam o desprezo pelo medo da morte e denunciam os desonestos e os ladrões, revelando aos nobres os exemplos que devem ser seguidos ou repudiados.

Os missionários e os exploradores

Com a ação dos missionários e exploradores que o continente co-meçou a ser conhecido pelos europeus, o primeiro grupo de missioná-rios era formado por: anglicanos, metodistas, batistas e presbiterianos que estavam a serviço da Grã-Bretanha atuaram em Serra Leoa, na Libéria, na Costa do Ouro e na Nigéria. Já os luteranos alemães, e calvinistas evangélicos a serviço da Sociedade Missionária de Londres atuaram na região em torno das fronteiras do Cabo, onde desenvolve-ram um trabalho de conversão ao cristianismo entre os Khois e o povo twsana ao norte do rio Orange.

Mais tarde quando a colônia do Cabo expandiu-se na direção leste e Natal foi anexada, grupos de missionários de diversas igrejas cristãs, oriundos da Alemanha, Inglaterra, França, Holanda, Suécia, e dos Estados Unidos forma para a África meridional.

As missões na região dos Lagos, entre o período de 1860 a 1880, primeiramente com o objetivo de estabelecer unidades de ensino para instruir a população livre no cultivo dos produtos de exportação, e a atuação dos missionários na África oriental, contrários ao tráfico de escravos, embasados pela propaganda europeia condenando o mes-mo pérfido comércio. Simultaneamente, missionários católicos france-ses na bordadura do Senegal, desde 1848, realizaram inúmeros pro-testos contra o aprisionamento e a escravidão, sob o argumento de que era preciso “salvar as almas dos selvagens” e “pôr termo ao mas-sacre de negros”, camuflava-se a verdadeira intenção da conquista da África pela Europa. O sacerdote Daniel Comboni, fundador da Obra pela Propagação da Fé, mais tarde seria bispo da África central propôs a “regeneração da África pela própria África”, para tal criou institutos de educação e de formação erigidos no próprio continente, com a intenção de evangelizar os africanos, independente de interferências políticas das potências europeias. A evangelização cristã tinha três pontos comuns:

1°) Empreender a conversão dos africanos não apenas ao cristia-nismo, sobretudo a cultura ocidental europeia;

2°) Ensinar a divisão entre o espiritual, e o secular, em oposição ao pensamento africano que fundamentava-se na unidade do espiritual e secular;

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3°) Pregação contrária ao conjunto de ritos sagrados locais, deste modo minando o poder e a autoridade dos chefes locais.

Para que se possa entender as conseqüências da presença cristã em solo africano, não pode-se de deixar analisar a reação africana, presente nas desobediências às condenações dos missionários e à fidelidade aos seus ritos de uma maneira aberta ou clandestina como pelo sincretismo, somando elementos de sua crença a nova fé.

Já os exploradores estimulados pelos relatos sobre monstros, gigan-tes, pigmeus, mulheres-pássaros e homens-macacos que povoaram o imaginário dos mesmos, alimentou sobre maneira o espírito aventureiro próprio de cada um. Como também a ideia da existência de “reinos ri-quíssimos e misteriosos” como o Mossi, o Mali, o Gana, o califado de Sokoto (na Nigéria) e as cidades de Jene, Gaô, Kano e, sobretudo, Tombuctu, carcterizados pela abundância de escravos, ouro e noz-de-cola. Devido à necessidade dos interesses de ingleses e franceses nos séculos XVIII e XIX impulsionou à exploração do continente africano adentro, como conseqüência foi o estimulo a procura pelas nascentes do rio Nilo, e a descoberta dos cursos dos rios Nìger, Zaire e Zambeze.

A conferência de Berlim e a partilha

Quanto aos propósitos da mesma e os resultados das negociações europeias que culminaram, num dos períodos mais violentos da época contemporânea pouco se sabe, foram quatro os motivos da conferência:

1°) A intenção do rei Leopoldo II da Bélgica, em fundar um império ultramarino, mas para acobertá-lo no ano de 1875 promoveu a funda-ção de uma cadeia de pontos comerciais e científicos que se estendi-am pela África Central ao Atlântico, com a preocupação de combater o comércio de escravos promovido pelos mulçumanos e proteger as missões cristãs; 2°) A frustrada corrida de Portugal por seus interesses em torno da partilha do continente; 3°) A política francesa de expansi-onismo expresso na participação conjunta com a Grã-Bretanha no controle do Egito em 1789, e o envio de expedições exploradoras ao Congo área de intensa pesca, e o comércio de escravos, madeiras para tingimento e tráfico regional de mandioca e peixe seco, e estabe-lecer iniciativa colonial na Tunísia e em Madagascar; 4°) A livre nave-gação, e o livre comércio nas bacias do Níger, e do Zaire manifestado de forma explícita pela Inglaterra, que também tinha o sonho de domi-nar a região do Cabo ao Cairo. Cada vez dificultado pelos interesses de outros países europeus na África central e África Austral.

Dentre os tratados destacava-se o que se referia-se ao tráfico de escravos e ao comércio, fontes de inúmeros conflitos propícios a inter-venção política europeia nos assuntos africanos. Os fatos enumerados demonstram os interesses de todos os países europeus presentes na conferência tinham em relação ao continente africano.

As políticas de assimilação e de diferenciação

As políticas coloniais podemos resumi-las em duas ações, assimi-lação e a diferenciação: 1°) Política cultural de assimilação que ocor-

reu nos impérios português, francês e belga, trabalhava os princípios de tradições históricas das nações colonizadoras europeias, cujo obje-tivo era converter aos poucos o africano em europeu, o africano teria que aprender a língua oficial do colonizador; as noções de morais e religiosidade são embasadas na religião cristã, também deveria aprender os costumes, as tradições, e o modo de vida europeia;

2°) A política de diferenciação (ou associação) incorporava os re-presentantes das sociedades africanas (as chefias tradicionais ou designadas) na administração indireta das colônias. Logo após, era introduzida a educação inglesa com o objetivo de tornar os africanos aptos a “entrarem na economia moderna” devido à dinâmica seriam devidamente cooptados, com o objetivo de melhorarem as suas socie-dades. A convicção era que as mudanças econômicas, sociais e políti-cas deveriam estar devidamente atreladas às próprias instituições africanas.

Movimentos de resistência na África

Ao analisarmos o processo de colonização, o sempre foi ora mar-cado pela violência, ora pelo despropósito, e em determinado momen-to pela irracionalidade por parte daqueles que tem o poder em suas mãos. Ações como: confisco de terras, as variadas formas de trabalho, a cobrança abusiva de impostos e a violência simbólica originada pelo racismo dos africanos. Dependendo do ponto de vista tais ações foram ora o alimento, ou ora o motivacional para o surgimento de movimen-tos de resistência que surgiram em todo o continente.

Todavia durante os trabalhos de especialistas verificaram-se três equívocos tendo como base o eurocentrismo dos países colonizado-res:

1°) A pouca importância dada aos movimentos de resistência, pois acreditavam estariam devidamente pacificados; 2°) Aos levantamentos realizados pelos grupos de estudos (espionagem) que identificaram-nos como movimentos sem força, desorganizados, impulsionados por ideologias sem a devida fundamentação, e desprovido de apoio popu-lar;

3°) As sociedades africanas foram classificadas conforme a sua or-ganização social hierarquizada regidamente, com poder centralizado, tidas como belicosas, ou de forma débil. Outras com a sua organiza-ção hierarquizada de maneira débil, tendo o poder descentralizado, caracterizadas como pacifistas.

Historicamente, tais análises não possuem sentido algum, depen-dendo o momento, tais organizações dês sociedades ora procuravam um entendimento direto com as nações europeias, ou ora quando encontravam-se em condições tendo um número considerável de gru-pos de milícias armadas ou exércitos, entravam em confronto com as nações colonizadoras para defenderem os seus interesses, ou valores tidos como fundamentais.

Segundo o historiador Terence Ranger, um dos grandes especialis-tas dos movimentos de resistência na África (a ocidental) afiirma que

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convém conhecer com clareza a necessidade de um esforço para que mediante um grande número de torne-se possível a identificação e classificação dos movimentos de resistência.

Devido à submissão imposta aos povos oriundos de nações domi-nadas pelos colonizadores na África e na Ásia, povos que foram redu-zidos a condição de objetos do capitalismo europeu.

Com isto povos e culturas foram classificados em selvagens, bárba-ros e civilizados; isto é, o mundo foi dividido entre raça superior, e raças inferiores. Deste modo a noção de raça nessa perspectiva foi fruto da ruptura fundamental com a tradição fundamental da condição humana, tão cara ao direito natural.

A África para os africanos! (Kuame NkrumaH)

O movimento teve a sua preocupação para a reabilitação do negro, a partir da segunda metade do século XIX. Assim a imprensa na África ocidental teve um papel importantíssimo, na compreensão do proces-so da trocas de ideias sobre a situação dos negros (em particular em Freetown, Acra e Lagos), pois os jornais tinham uma maior inserção no dia a dia da população do que os livros (estes em número bastante reduzido). Devido às influências das escolas norte-americanas e de organizações inglesas, tanto os donos de jornais como também os seus administradores dos jornais expulseram através dos mesmos veículos de comunicação a precariedade da vida dos negros e a con-dição a qual eram submetidos, desnudando o racismo dos sistemas coloniais.

Para alguns estudiosos de história da África, devido o prolongado intercâmbio entre os negros da África, com os negros dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha foi um divisor de águas a favor dos proto-nacionalismo nas nações colonizadas pelos britânicos.

No ano de 1897, Henry Silvestre Willians e o reverendo Joseph Mason, ambos de origem caribenha fundaram a Associação Africana chegou a contar com cerca de 20 mil negros, destes alguns possuíam o superior completo, outros eram trabalhadores (marinheiros e traba-lhadores das docas) e um grupo menor formado por estudantes (se-cundários, e sendo a maioria de universitários), tal associação decla-rava-se apta de promover e proteger os interesses de todos os africa-nos, como também os de seus descendentes dentro do império britâ-nico como em outras partes do mundo.

A Associação Africana focou toda a sua potência contra os exces-sos da política de ocupação formal (invasão e permanência) da África colocada em prática desde os primeiros tempos. Havia outras duas: advogar a cooperação entre negros e brancos e a de defender a cria-ção de organizações exclusivas de negros.

O pan-africanismo surgiu com mais força nos Estados Unidos, ex-pressando um radicalismo de uma maneira variada, ora em maior ou ora em menor grau, existia um descontentamento com a situação do negro em todo o mundo, devido à falta de um embasamento ideológico o movimento não ultrapassava a fronteira do discurso, como pela falta

de uma organização mínima. O pan-africanismo é um movimento polí-tico-ideológico centrado na ideia de raça que passa a ser, o principal fator de unidade entre todos os negros, sendo isto o motivo de resis-tência à opressão, pensando na liberdade do homem negro.

A ênfase que foi dada ao termo raça, tem a ver com o sentido utili-zado pelo europeu embasado tanto pela justificação teórica como pragmática do racismo biológico,

Devido às circunstâncias históricas reais o termo raça enquanto apresentado como aquele que ordena, passa a conferir uma identida-de para um continente caracterizado pelas heterogeneidades. Que pode ser interpretada a luz da consciência de um determinado grupo de indivíduos que tem como objetivo, chegar ao poder e lá permane-cer, influenciado as ações daquela sociedade, podendo logo após exportar as suas ideias, como também expandido-se militarmente e financeiramente a outros países.

O pan-africanismo passa a apresentar um outro significado a pala-vra raça, isto é, a ordenação e organização das necessidade, espe-rança, e as aspirações para a resolução dos interesses de todos os negros como reação objetiva e contundente frente ao preconceito e à discriminação.

A ação geográfica do pan-africanismo em um primeiro momento li-mitava-se a Europa e a América do Norte, a sua expansão na África ocorreu após a Segunda Grande Guerra Mundial. O movimento apre-sentava as suas ideias através de discursos, congressos, jornais, li-vros, associações e conferências, referente à ideologia que teve várias facetas, ora político-cultural, ora rácico/racista.

O pan-africanismo na África de colonização francesa tinha a preo-cupação de constituir uma identidade dos povos que sofreram as con-seqüências de violência institucional. E foi através de um exercício intelectual e político visando futuras ações dotadas de eficácias na busca da emancipação política, tido no momento como o grande desa-fio dos africanos, cuja gestação do pan-africanismo na África de colo-nização francesa desenvolveu-se entre as duas guerras mundiais.

Enquanto o pan-africanismo teve repercussão a um pequeno grupo de africanos das colônias francesas radicados em Paris, que encontra-ram acolhimento nos meios intelectuais, artísticos e políticos, ao con-trário dos africanos das colônias inglesas, em Londres.

11. HOURANI, Albert. Uma história dos povos Árabes. São Paulo: Editora Companhia das

Letras, 2005.

Islamismo Ásia Pré-islâmica

O texto de Albert Hourani mostra, de início, como era a formação política, geográfica, e principalmente religiosa do continente asiático,

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principalmente no que se refere ao que conhecemos hoje como Orien-te Médio e Ásia Central.

No Império Bizantino, que englobava a Anatólia (porção asiática da Turquia), Grécia, Síria, Egito, Sicília, sul da atual Itália e norte africano, por sinal já tendo um grande poder, com Constantinopla aparecendo como capital imperial, além disso, o grego era importante nesse império, já que haviam diversos funcionários públicos que falavam essa língua, além de cidades como Alexandria e Antióquia serem centros de cultura grega. Além de tudo, a religião cristã ganhava cada vez mais adeptos, com os templos politeístas se transformando em igrejas e bispos ga-nhando prestígio e força política, entre eles o Papa (bispo romano), po-rém com a não acepção do papa, e sim de sacerdotes orientais como chefes, patriarcas, se iniciando por aí o que viria a ser o Cisma. Come-çavam a haver conflitos ideológicos e divisão de ramos da Igreja no Oriente, principalmente em relação a natureza de Cristo, como defendi-am o nestorianismo (total humanidade de Jesus) e o monofisismo (uma natureza composta de duas), se contrapondo ao Concílio de Calcedônia (451), que definiu Cristo com natureza divina e humana. Além do Bizan-tino, o grande Império Sassânida também se destacava naquela época, com cidades com diversos grupos étnicos separadas por estepes e de-sertos (se destacando a capital, Cteisfonte, no Irã Central, perto do Tigre e Eufrates), unidas por fortes dinastias e cultuando, geralmente, a reli-gião zoroastrista, que coloca a Terra como uma batalha entre bem e mal em que o lado bom venceria, além de maniqueístas, cristãos nestorianos (muitos eram funcionários públicos), judeus e filósofos politeístas gregos. Além dos dois impérios, existiam reinos que tinham também uma relativa importância, como o da Etiópia e do Iêmen. Os etíopes do reino conhe-cido como Axum cultuavam o cristianismo copta (egípcio), adotado pos-sivelmente em 330 para se aproximar do Egito e de Bizâncio, se desta-cando pelo comércio (escravos, marfim, rinocerontes). Já o do Iêmen, conhecido como Reino de Himyar, repleto de vales férteis, possuindo idioma próprio e sendo politeísta, recebendo influências judaico-cristãs principalmente no séc. VI.

Entre esses e outros reinos, na Península Arábica existiam diversas tribos falantes de idiomas árabes, lideradas por chefes que exerciam seu poder através dos Oasis e integrando várias famílias que se divi-diam entre atividades como agricultura, comércio e criação de cabras, camelos e carneiros, tendo como religião a crença em vários deuses que se transformavam em pedras, árvores, animais, etc. e que os mesmos habitavam um haram, um local isolado do conflito tribal su-pervisionada por uma família que exercia papel arbitrário, ganhando prestígio com isso.

Entre os séculos VI e VII via-se o continente em guerras constantes entre os Impérios Sassânida e Bizantino, além do Reino de Himyar ter perdido parte de seu território pelos etíopes (525) e pelos sassânidas (575), e, além disso, diversas tribos saíram da Península em direção a outras regiões em busca de melhores condições, com o chefe man-tendo determinada posição social, encarregado para recolher impostos e repelir invasões.

Formação do Islã

Atribui-se o nascimento de Maomé em 570 em Meca, então mem-bro da tribo coraixita, sendo a mesma uma tribo que se destacava no comércio com tribos da península e em Meca. Maomé casou-se com Cadija, viúva comerciante, cuidando dos negócios de sua mulher, lembrando que Maomé permaneceu somente casado com ela (até a sua morte em 619), algo diferente da poligamia existente na Penínsu-la. Por volta de 40 anos recebeu o chamado do anjo Gabriel, que o convidou para ser mensageiro de Deus, e após isso, Maomé passou a propagar a nova fé, agora monoteísta, cultuando somente Alá, conse-guindo seguidores e piorando as relações com os coraixitas, fazendo a hégira para Yathrib (futura Medina) em 622, sendo lá uma espécie de árbitro entre conflitos tribais, com as disputas julgadas por Alá, ga-nhando prestígio popular e poder político, propagando além de suas fronteiras a nova fé, além de formular a doutrina, se separando de judeus e cristãos, tentando ratificar sua ancestralidade junto a Abraão. Os seguidores do profeta cada vez mais aumentavam, na Península e também em Meca, preocupando comerciantes, que não queriam per-der alianças tribais, e em 629 foram a cidade em peregrinação, to-mando no ano seguinte o poder com pouca resistência, embora Medi-na permanecesse como capital. Nessa sociedade inicial não havia exército, apenas o árbitro (Maomé), delegados, recrutamento de cren-tes e um tesouro público feito por doações e impostos sobre outras tribos.

No ano de 632, Maomé falece, mas a religião permanece unida, com peregrinações, jejuns e prece entre os adeptos, utilizando o Co-rão como livro sagrado, influenciado por ideias cristãs, maniqueístas, crenças nativas e judaicas. Abu Bakr foi eleito sucessor de Maomé (Califa) no mesmo ano, que criou um exército, mantendo unidos os povos aliados, já que se havia uma rejeição do profeta entre alguns após a morte do mesmo ou havia a vontade de se controlar Medina. No califado de Abu Bakr e Omar os islâmicos passaram a dominar parte do Império Sassânida e as províncias bizantinas na Síria e Egito, e a expansão se deve, além da organização e experiência militar, com o enfraquecimento dos impérios em guerras ou epidemias, e geral-mente não tinham muita oposição populacional, principalmente na Síria e Iraque, que continham árabes. A autoridade era exercida atra-vés de áreas militares, e daí surgia grandes áreas urbanas, com palá-cio, habitações, mesquita (era também assembleia pública). Uthman foi escolhido por coraixitas após a morte de Omar, trazia consigo a possibilidade de paz entre facções, porém nomeou membros de seu clã para serem governadores, levando ao seu assassinato em 656. Ali, coraixita, o sucedeu no cargo em meio a uma guerra civil, com o mesmo se proclamando califa em Kufa, derrotando opositores em Basra, e guerreando com tropas do governador sírio Mu’awiya, então parente de Uthman, concordando após anos de conflito por uma paz, revoltando aliados e sendo morto em 661, e após o pequeno governo de Hasan Ali (acordo com Mu’awiya), o governador assumiu o califado, e encerrando o período dos rashidun.

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Califado de Damasco

Fundado após a subida de Mu’awiya ao poder, em 661, o califado, agora com capital em Damasco, ficou nas mãos dos omíadas, família descendente de Umayya, sendo a sucessão do califa feita de maneira hereditária. Após a morte de Mu’awiya II, voltou a ter uma guerra civil, passando o trono para outro ramo da família. É bom lembrar que o fato da capital ser em Damasco possibilitava maior controle das terras costeiras, além de ter uma boa zona rural, produzindo excedentes para a manutenção populacional, militar e da corte. A expansão se voltava agora para a região de Magreb e para a Península Ibérica (fim Séc.VII). Com a expansão, começavam a vir problemas, como a falta de originalidade do processo, já que se tinha a intenção de levar a palavra de Alá para os povos de início, mas se viram confrontados em interesses políticos e privados, mudando também a forma governa-mental para uma assemelhada com os grandes impérios. O árabe, como língua administrativa, passou a ser usado a partir de 690, já que antes a língua mais usada era o pálavi (leste) e o grego (oeste), conti-nuando com sucessores de antigos secretários servidores de governos anteriores, lembrando que fora da Península Arábica, a língua árabe não era muito falada. No mesmo ano também se cunhava uma nova moeda, propagando nelas a religião islâmica, misturado também com a criação de novos edifícios e monumentos, como o Domo da Rocha, um haram construído no local do antigo templo judeu, confirmando o Islã na linhagem abraamica, isso no califado de Abd Al-malik (685-705), se construindo mais mesquitas nos anos posteriores em novas localidades. A conversão ocorria em diferentes níveis, mas ela estava se alastrando, e entre eles, os zoroastristas se converteram com mais facilidade, mas outros populares podem ter se convertido para não arcarem com impostos cobrados a não-muçulmanos ou para conseguir vaga no crescente poder, e, por complemento, havia maior sinal de pertencimento ao império no leste do que na Síria.

Começava a haver uma contestação e conflito entre tribos grupos sociais mais fortes, o que é normal em um grande império, principal-mente pela busca de poder, e entre os problemas pode destacar os Kharijitas, que acreditavam que o califa deveria ser eleito e se enfure-ceram com os acordos de Ali para acabar com o conflito, e os Xiitas, ala que defende os descendentes de Ali como chefes legítimos, não reconhecendo a eleição de Abu Bakr. Os omíadas conseguiram forta-lecer militarmente e socialmente seu califado no Sec.VIII, mas em 840 houve uma guerra civil e houve o aparecimento dos descendentes de Abbas (tio de Maomé, rico comerciante e financiador das iniciais ex-pansões religiosas), com organização centrada em Kufa, derrotando militarmente os omíadas, e em 749 os homens de Abu Abbas, muito em nome do comandante Abu Muslim, tomam o poder de Marwan II, assassinado no Egito, proclamando um novo califado.

Califado de Bagdá

Nesse novo período na história islâmica, a capital saiu da Síria em direção a Bagdá, bem próximo do Tigre e Eufrates, se configurando

como o califado da família abácida, que não herdou um califado instá-vel. Para centralizar o poder, se livrou de antigos aliados, como o pró-prio Abu Muslim, revoltando muitas pessoas, e a centralização se acentuou no califado de al-Mansur (754-55) e de Haran al-Rashid (786-809). Bagdá era um local estratégico, pois a agricultura gerava lucros e abastecimento populacional, além de favorecer rotas comerci-ais com outras regiões “iraquianas” e levar o poder ao Egito e a Síria. Um importante cargo na administração do califado era o do vizir, que se tornou um mediador entre o poder do califa e da administração, também havendo diwans (departamentos) para exército, administração financeira e documental. Entre outros impostos, destacam o kharaj (imposto sobre terras ou produtos) e o jizya (sobre não muçulmanos). Após Harun al-Rashid morrer, o poder foi disputado pelos filhos al-Amim e Ma’mun, com o segundo vencendo. No Séc.XIX houve fortale-cimento do exército muito pelos turcos, então estrangeiros e sem liga-ções com o califado, assim al-Mu’tasim transferiu a capital para Sa-marra para manter os soldados distantes do povo de Bagdá, até que depois de 50 anos voltou para a antiga sede. O califado se expandiu e durou até o ano de 1299, com a tomada de poder pelo Império Oto-mano.

(2013, 04). Resumo Do Texto "Uma História Dos Povos Árabes", De Albert Hou-rani. TrabalhosFeitos.com. Retirado 04, 2013, de

http://www.trabalhosfeitos.com/ensaios/Resumo-Do-Texto-Uma-Hist%C3%B3ria-Dos/715458.html

12. JUNIOR, Hilário Franco. A idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Editora

Brasiliense, 1988.

Introdução: O (Pré)Conceito De Idade Média

Falarmos em Idade Antiga ou Média representa uma rotulação a posteriori, uma satisfação da necessidade de se dar nome aos mo-mentos passados, foi o século XVI que elaborou tal conceito, um des-prezo não disfarçado em relação aos séculos localizados entre a Anti-guidade Clássica e o próprio século XVI.

A Idade Média Para Os Renascentistas E Iluminista

O italiano Francesco Petrarca (1304-1374) já se referira ao período anterior como de tenebrae: nascia o mito historiográfico da Idade das Trevas.

A arte medieval, por fugir aos padrões clássicos, também era vista como grosseira daí o grande pintor Rafael Sanzio (1483-1520) chamá-la de “gótico”, termo então sinônimo de “bárbara”.

O sentido básico mantinha-se renascentista: a “Idade Média” teria sido uma interrupção no progresso humano, inaugurado pelos gregos e romanos e retomado pelos homens do século XVI. Ou seja, também

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para o século XVII os tempos “medievais” teriam sido de barbárie, ignorância e superstição.

O século XVIII, antiaristocrático e anticlerical, acentuaram o me-nosprezo à Idade Média, vista como momento áureo da nobreza e do clero. A filosofia da época, chamada de iluminista por se guiar pela luz da Razão, censurava, sobretudo a forte religiosidade medieval, o pou-co apego da Idade Média a um estrito racionalismo e o peso político de que a Igreja então desfrutara.

A Idade Média Para Os Românticos

O Romantismo da primeira metade do século XIX inverteu, contu-do, o preconceito em relação à Idade Média. O ponto de partida foi à questão da identidade nacional, que ganhara forte significado com a Revolução Francesa. A nostalgia romântica pela Idade Média fazia com que ela fosse considerada o momento de origem das nacionali-dades, satisfazendo assim os novos sentimentos do século XIX.

Vista como época de fé, autoridade e tradição, a Idade Média ofe-recia um remédio à insegurança e aos problemas decorrentes de um culto exagerado ao cientificismo.

Essa Idade Média dos escritores e músicos românticos era tão pre-conceituosa quanto à dos renascentistas e dos iluministas. Para estes dois, ela teria sido uma época negra, a ser relegada da memória histó-rica. Para aqueles, um período esplêndido, um dos grandes momentos da trajetória humana, algo a ser imitado, prolongado.

A Idade Média Para O Século XX

Passou-se a tentar ver a Idade Média como os olhos dela própria, não com os daqueles que viveram ou vivem noutro momento. Enten-deu-se que a função do historiador é compreender, não a de julgar o passado. Logo, o único referencial possível para se ver a Idade Média é a própria Idade Média.

Ao examinar qualquer período do passado, o estudioso necessari-amente trabalha com restos, com fragmentos — as fontes primárias, no jargão dos historiadores — desse passado, que portanto jamais poderá ser integralmente reconstituído. Ademais, o olhar que o histori-ador lança sobre o passado não pode deixar de ser um olhar influenci-ado pelo seu presente.

O período que se estendeu de princípios do século IV a meados do século VIII sem dúvida apresenta uma feição própria, não mais “antiga” e ainda não claramente “medieval”. Apesar disso, talvez seja melhor cha-má-la de Primeira Idade Média do que usar o velho rótulo de Antiguidade Tardia, pois nela teve início a convivência e a lenta interpenetração dos três elementos históricos que comporiam todo o período medieval. Ele-mentos que, por isso, chamamos de Fundamentos da Idade Média: herança romana clássica, herança germânica, cristianismo.

Nesse mundo em transformação, a penetração germânica intensifi-cou as tendências estrutural anteriores, mas sem alterá-las. Foi o caso

da pluralidade política substituindo a unidade romana, da concepção de obrigações recíprocas entre chefe e guerreiros, do deslocamento para o norte do eixo de gravidade do Ocidente, que perdia seu caráter mediterrânico. O cristianismo, por sua vez, foi o elemento que possibi-litou a articulação entre romanos e germanos, o elemento que ao fazer a síntese daquelas duas sociedades forjou a unidade espiritual, es-sencial para a civilização medieval.

Europa católica entrou em outra fase, a Alta Idade Média (meados do século VIII - fins do X). Foi então que se atingiu, ilusoriamente, uma nova unidade política com Carlos Magno, mas sem interromper as fortes e profundas tendências centrífugas que levariam posteriormente à fragmentação feudal.

Graças a esse temporário encontro de interesses entre a Igreja e o Império, ocorreu certa recuperação econômica e o início de uma reto-mada demográfica. Iniciou-se então a expansão territorial cristã sobre regiões pagãs — que se estenderia pelos séculos seguintes — refor-mulando o mapa civilizacional da Europa.

A Idade Média Central (séculos XI-XIII) que então começou foi, grosso modo, a época do feudalismo, cuja montagem representou uma resposta à crise geral do século X. A sociedade cristã ocidental conheceu uma forte expansão populacional c uma consequente ex-pansão territorial, da qual as Cruzadas são a faces mais conhecida. Graças à maior procura de mercadorias e à maior disponibilidade de mão-de-obra, a economia ocidental foi revigorada e diversificada. A produção cultural acompanhou essa tendência nas artes, na literatura, no ensino, na filosofia, nas ciências. Aquela foi, portanto, em todos os sentidos, a fase mais rica da Idade Média, daí ter merecido em todos os capítulos deste livro uma maior atenção.

A Baixa Idade Média (século XIV - meados do século XVI) com su-as crises e seus rearranjos, representou exatamente o parto daqueles novos tempos, a Modernidade. A crise do século XIV, orgânica, global, foi uma decorrência da vitalidade e da contínua expansão (demográfi-ca, econômica, territorial) dos séculos XI-XIII, o que levara o sistema aos limites possíveis de seu funcionamento.

Em suma, o ritmo histórico da Idade Média foi se acelerando, e com ele nossos conhecimentos sobre o período. Sua infância e adolescên-cia cobriram boas parte de sua vida (séculos IV-X), no entanto as fon-tes que temos sobre elas são comparativamente poucas.

Sua maturidade (séculos XI-XIII) e senilidade (século XIV-XVI) dei-xaram, pelo contrário, uma abundante documentação.

A Idade Média Para Os Medievais

As primeiras sociedades só registravam o tempo biologicamente, sem transformá-lo em História, portanto sem consciência de sua irre-versibilidade. Isso porque, para elas, viver no real era viver segundo modelos extra-humanos, arquetípicos. Assim, tanto o tempo sagrado (dos rituais) quanto o profano (do cotidiano) só existiam por reproduzir atos ocorridos na origem dos tempos.

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Tal concepção sofreu sua primeira rejeição com o judaísmo, que vê em Iavé não uma divindade criadora de gestos arquetípicos, mas uma personalidade que intervém na História. O cristianismo retornou e desenvolveu essa ideia, enfatizando o caráter linear da História, com seu ponto de partida (Gênese), de inflexão (Natividade) e de chegada (Juízo Final).

Pelo menos até o século XII os medievos não sentiam necessidade de maior precisão no cômputo do tempo, o que expressava e acentua-va a falta de um conceito claro sobre sua própria época. De maneira geral, prevalecia o sentimento de viverem em “tempos modernos”, devido à consciência que tinham do passado, dos “tempos antigos”, pré-cristãos. Estava também presente a ideia de que se caminhava para o Fim dos Tempos, não muito distante.

As Estruturas Demográficas

O surgimento da Demografia Histórica, há menos de cinco déca-das, enriqueceu consideravelmente o arsenal do historiador na sua tarefa de compreensão do passado.

A Idade Média estava na etapa que os especialistas chamam de Antigo Regime Demográfico, típico das sociedades agrárias, pré-industriais: alta taxa de natalidade e alta taxa de mortalidade. Em ra-zão disso, a conjugação de certos fatores (estiagens, enchentes, epi-demias etc.) por poucos anos seguidos alterava o quadro demográfico ao elevar ainda mais a mortalidade. Ou, pelo contrário, a ausência de eventos daquele tipo rapidamente produzia um saldo populacional positivo.

Retratação Da Primeira Idade Media

Do ponto de vista demográfico, a primeira fase medieval foi um pro-longamento da situação do Império Romano, cuja população conhece-ra um claro recuo desde o século II. Com a crescente desorganização do aparelho estatal romano, foram rareando as importações de gêne-ros alimentícios que tinham por séculos permitidos a existência de uma grande população urbana. As cidades começaram a se esvaziar, cada região tentou passar a produzir tudo àquilo de que necessitasse, Tal fenômeno paradoxalmente aumentou a insegurança, pois bastava uma má colheita para que a mortalidade naquele local rapidamente se elevasse, devido às dificuldades em obter alimentos em outras regi-ões.

A Relativa Ocupação Da Alta Idade Média

Por meio de indícios esparsos na documentação — de interpreta-ção problemática — indica certa retomada demográfica na segunda metade do século VIII. Esse fato talvez esteja ligado à reorganização promovida pelos Carolíngios, e talvez ajude mesmo a explicar a ex-pansão territorial realizada por Carlos Magno. Contudo, essa recupe-ração foi desigual no tempo e no espaço. Em muitos locais, em muitos momentos, a fome e a mortalidade continuavam acentuadas.

A Expansão Da Idade Média Central

Apesar da inexistência de uma documentação quantitativa, é in-questionável aquele crescimento na Idade Média Central, como se percebe por cinco claros indícios: um acentuado movimento migrató-rio; o movimento de arroteamentos, que fazia recuar as florestas, os terrenos baldios, as zonas pantanosas; aumento do preço da terra e do trigo; acentuado crescimento da população urbana naquele perío-do; transformações sofridas pela arquitetura religiosa.

Todos esses testemunhos apontam, portanto, para um forte cres-cimento demográfico entre os séculos XI e XIII, mas é extremamente difícil quantificá-lo. De maneira geral, a documentação medieval forne-ce poucos dados populacionais que permitem um tratamento estatísti-co.

Portanto, mesmo sem se poder quantificar com maior rigor e preci-são a expansão demográfica da Idade Média Central, ela é inegável. Naquele período dois fatores que anteriormente elevavam a mortalida-de tiveram seu alcance reduzido. O primeiro deles foi à ausência de epidemias, com o recuo da peste e da malária, continuando apenas a lepra a ter certa intensidade.

O segundo fator a considerar é o tipo de guerra, que não envolvia grandes tropas de combatentes anônimos, como nas legiões romanas ou nos exércitos nacionais modernos: a guerra feudal era feita por pequenos bandos de guerreiros de elite, os cavaleiros.

Guerra feudal não objetivava a morte do adversário, apenas sua captura. Como uma das obrigações vassálicas era pagar o resgate do senhor aprisionado, c como na pirâmide hierárquica feudal quase todo nobre, além de ser vassalo de outros, tinha seus próprios vassalos, capturar um inimigo na guerra era obter um rendimento proporcional à importância do prisioneiro.

Outro fator que contribuiu para a expansão demográfica medieval foi à suavização do clima. Na Europa ocidental o clima tornou-se mais seco e temperado do que atualmente, sobretudo entre 750 e 1215. A viticultura pôde então expandir-se em regiões anteriormente impró-prias, como a Inglaterra. A paisagem de alguns locais foi alterada e humanizada, como a Groenlândia, que fazia jus a seu nome (literal-mente, “terra verde”) e apenas no século XIII, em virtude de novas mudanças climáticas, passou a ter icebergs em sua direção, tornando-se inóspita.

O período mais quente e seco não apenas transformou determina-das áreas em cultiváveis e habitáveis como contribuiu para dificultar a difusão da peste.

Por último, ajuda a explicar o crescimento populacional dos séculos X-XIII o surgimento ou difusão de uma série de inovações nas técnicas agrícolas. Dentre os aperfeiçoamentos técnicos da época, três exerce-ram uma ação direta sobre a elevação da produtividade agrícola: a nova atrelagem dos animais, a charrua pesada e o sistema trienal.

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As inovações tecnológicas não apenas produziram uma maior quantidade de alimentos como, sobretudo, uma melhor qualidade. Até aquela época a dieta era mal balanceada, porque, baseada em cere-ais, fornecia muitas calorias e hidrato de carbono e poucas proteínas e vitaminas. A alteração então ocorrida na dieta talvez explique a mu-dança na proporção entre população masculina e feminina, favorável à primeira na Alta Idade Média e à segunda posteriormente.

Com a introdução de leguminosas na dieta e uma presença mais assídua de carne, peixe, ovos e queijo, a mortalidade feminina diminu-iu. Tal fato teve ampla repercussão, contribuindo até mesmo para a valorização social da mulher.

O Ressurgimento Da Peste Na Baixa Idade Media

O crescimento populacional acabou por se revelar excessivamente elevado para as condições europeias de então. Durante o auge daque-le fenômeno tinham sido ocupadas terras marginais, de menor fertili-dade, que se esgotavam em poucos anos, baixando a produtividade média e desestabilizando o frágil equilíbrio produção-consumo.

O aumento populacional tinha implicado a derrubada de grandes extensões florestais, já que a madeira era o principal combustível e material de construção. Isso ajuda a explicar as chuvas torrenciais que em 1315-1317 atingiram a maior parte da Europa ao norte dos Alpes, exatamente nos locais de grande devastação florestal.

Em Antuérpia, importante centro distribuidor de cereais, o trigo su-biu 320% em sete meses. A fome fazia grande quantidade de vítimas. O canibalismo tornou-se comum. Diferentes epidemias agravavam a situação. Impulsionada pela fome, muita gente vagava em busca do que comer, levando consigo as epidemias e a desordem.

A crise demográfica da Baixa Idade Média, que teve seu ponto cru-cial no ressurgimento da peste, então conhecida por peste negra. Ela apresentava-se de duas formas. A bubônica (assim chamada por pro-vocar um bubão, um inchaço) tinha uma letalidade (relação entre os atingidos pela doença e os que morrem dela) de 60% a 80%, com a maioria falecendo após três ou quatro semanas. A peste pneumônica, transmitida de homem a homem, tinha uma letalidade de 100%, fa-zendo suas vítimas depois de apenas dois ou três dias de contraída a doença.

Democrática e igualitária, a peste atingia indiferentemente a todos. Até 1670, a Europa foi atingida todo ano. No período crítico, o da cha-mada peste negra, em 1348-1350, as perdas humanas variaram, con-forme a região, de dois terços a um oitavo da população.

As Estruturas Econômicas

O prestígio ímpar que a História Econômica desfrutou por longo tempo deixou profundas marcas na produção medievalística. Sobretu-do porque a impossibilidade de realizar estudos quantitativos como os que eram feitos para períodos históricos mais recentes, levou ao de-senvolvimento de metodologias próprias. A historiografia especializada

desenvolveu então trabalhos baseados no qualitativo (indícios, ten-dências, características), que elucidam melhor a economia medieval do ponto de vista da própria época.

Retração E Estagnação Até O Século X

Do ângulo econômico, os séculos IV-X caracterizou por uma pe-quena produtividade agrícola e artesanal, consequentemente uma baixa disponibilidade de bens de consumo e a correspondente retra-ção do comércio e portanto da economia monetária. Paralelamente, existiam pequenas e médias propriedades, ainda que aos poucos elas fossem absorvidas pelas villae. De qualquer forma, estas são mais bem conhecidas e predominavam naquele território que era o centro de gravidade de então, daí porque seja justificável falar em economia agrária dominial.

Esta girava em torno da divisão da área em duas partes. A primei-ra, chamada na época de terra indominicata (ou de reserva senhorial pelos historiadores), era explorada diretamente pelo senhor. Ali estava sua casa, celeiros, estábulos, moinhos, oficinas artesanais, pastos, bosques e terra cultivável. A segunda parte era a terra mansionaria, ou seja, o conjunto de pequenas explorações camponesas, cada uma delas designada pelos textos a partir do século VII por mansus. Cada manso era a menor unidade produtiva e fiscal do domínio. Dele uma família camponesa tirava sua subsistência, e por ter recebido tal con-cessão devia certas prestações ao senhor. Os mansi serviles, ocupa-dos por escravos, deviam encargos mais pesados que os mansi inge-nuiles, possuídos por camponeses livres.

Apesar de o fundamento da economia dominial estar na prestação de serviço na reserva senhorial por parte de camponeses livres mas dependentes, não se pode esquecer da mão-de-obra escrava. Tudo indica que a escravidão ainda era praticada em boa parte do Ocidente cristão, especialmente na Inglaterra, Alemanha, Itália e Catalunha. Mas é inegável que se generalizava então à figura dos servi casati, escravos estabelecidos e fixados num pedaço de terra. Dessa forma a própria palavra servus (escravo) passou a designar outra realidade jurídica, expressando aquela transformação socioeconômica — a do servo.

A produção dos domínios não apresentava grandes novidades em relação à agricultura da Antiguidade. A terra era trabalhada quase sempre no sistema bienal ou trienal.

O setor secundário ressentia-se da fraqueza demográfica e da me-díocre produção agrícola. O primeiro fator roubava-lhe mão-de-obra e especialmente consumidores. O segundo limitava o fornecimento de matérias-primas. O artesanato dos séculos IV-X estava concentrado nos domínios, que com sua tendência à autossuficiência procurava produzir ali mesmo tudo que fosse possível. A mão-de-obra era pre-dominantemente escrava, vivendo na terra indominicata daquilo que o senhor lhe entregava, trabalhando nas oficinas com ferramentas e matérias-primas fornecidas por ele. A partir do século VIII havia tam-

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bém um pequeno grupo de artesãos assalariados, que se deslocavam de domínio em domínio.

O artesanato urbano, por sua vez, estava limitado pelas condições das cidades da época.

O setor terciário limitava-se praticamente ao comércio.

O comércio interno também se viu limitado, mas não paralisado. Se as dificuldades de produção, de um lado, restringiam as trocas por gerar poucos excedentes, de outro lado tornavam necessário que uma região com problemas temporários procurasse determinados produtos básicos em outras. Quando um domínio tinha certo excedente, ele era comercializado, diante da impossibilidade de se estocar.

Das três funções atribuídas à moeda, apenas uma foi importante naquele período. Primeiramente, ela é instrumento de medida de valor, ou seja, um padrão para medir o valor de bens e serviços adquiríveis, simplificando a relação pela qual determinada mercadoria pode ser trocado por outra. Em segundo lugar, a moeda é instrumento de troca, porque, não sendo ela própria consumível, pode, graças à sua aceita-bilidade geral, servir de intermediária entre bens que se quer trocar. Por fim, ela é instrumento de reserva de valor, já que sem perder as funções anteriores pode ser guardada para a qualquer momento satis-fazer certas necessidades. Este papel da moeda foi acentuado nos séculos IV-X devido à pequena disponibilidade de bens.

O Crescimento Dos Séculos XI-XIII

A Idade Média Central conheceu importantes mudanças, a passa-gem da agricultura dominial para a senhorial. Havia dois tipos básicos delas, ambas de concessão pouco onerosa para o camponês, a censi-ve e a champart. Na primeira, mais comum e difundida, em troca do usufruto da terra o camponês devia uma pequena renda fixa, o censo, pago em dinheiro ou em espécie. Na tenência champart (de campi pars, “parte da colheita”), a renda devida pelo camponês ao senhor não era fixa, mas proporcional ao resultado da colheita. De maneira geral, a taxa era de 10% na triticultura, de 16% a 33% na viticultura e na criação.

Não só os lotes camponeses viram sua área diminuir na Idade Mé-dia Central. A reserva senhorial também se viu reduzida em razão de vários fatores. Primeiro, a necessidade de criação de novas tenências camponesas, o que apenas o desmembramento dos mansos não fazia na quantidade desejada. Segundo, o progresso das técnicas agrícolas permitia ao senhor obter maior produção com menos terra. Terceiro, os rendimentos senhoriais vinham então bem mais do exercício dos direitos de bando que da exploração direta do solo (daí as baixas exi-gências feitas aos camponeses em troca de suas tenências). Quarto, na nova ordem social que se implantava desde fins do século X — o feudalismo — para estabelecer relações de vassalagem o senhor cedia terras sob forma de feudo.

Não se deve, portanto, confundir senhorio e feudo. O primeiro era a base econômica do segundo, este a manifestação político-militar da-

quele. O senhorio era um território que dava a seu detentor poderes econômicos (senhorio fundiário) ou jurídico-fiscais (senhorio banal), muitas vezes ambos ao mesmo tempo. O feudo era uma cessão de direitos, geralmente mas não necessariamente sobre um senhorio. Havia regiões senhorializadas e não feudalizadas (como a Sardenha), mas não existiam regiões feudalizadas sem ser senhorializadas.

Em razão disso, o regime de mão-de-obra também se modificou em relação ao da agricultura dominial. A escravidão praticamente desapa-receu no norte europeu, sobrevivendo apenas em algumas regiões mediterrânicas. O segmento de trabalho assalariado expandiu-se, em especial no século XII, graças ao barateamento da mão-de-obra resul-tante do aumento populacional. O servo tornou-se o principal tipo de trabalhador, complementando um processo bem anterior.

Em muitas regiões difundiu-se a prática de transformar a obrigação de serviços em pagamento monetário, com o qual o senhor contratava assalariados, cujo trabalho rendia o dobro do servil.

A produção cresceu em virtude de uma maior quantidade de mão-de-obra (incremento demográfico) trabalhando sobre uma área mais extensa (desbravamento de florestas e terrenos baldios). Mas também graças à difusão de diferentes técnicas: sistema trienal, charrua, força motriz animal, adubo mineral, moinho de água, moinho de vento.

Uma segunda transformação importante ocorrida nos séculos XI-XIII foi possibilitada pela existência de um excedente agrícola, o revi-goramento do comércio. Este passou a desempenhar um papel central na vida do Ocidente, com repercussão muito além da esfera econômi-ca.

Uma terceira transformação econômica da Idade Média Central, podemos chamar de Revolução Industrial medieval. Seu ponto de partida foi o crescimento demográfico e comercial, fomentador do desenvolvimento urbano. Estimuladas pela chegada de camponeses que conseguiam romper os laços servis, as cidades localizadas próxi-mas a rios ou estradas frequentadas por comerciantes logo começa-ram a crescer.

Com presença mais ou menos generalizada, sem dúvida as duas maiores indústrias medievais foram a da construção e a têxtil. A pri-meira delas beneficiou-se não só do crescimento populacional, mas também da prática social ostentatória que levava o clero e a aristocra-cia laica a construir cada vez mais e maiores igrejas, mosteiros, caste-los. Buscando superar sua origem humilde, também a burguesia fre-quentemente erguia construções imponentes.

A produção industrial nas cidades estava organizada em associa-ções profissionais que chamamos de corporações de ofício, conheci-das na Idade Média apenas por “ofícios” (métiers na França, ghilds na Inglaterra, Innungen na Alemanha, arte na Itália). Suas origens são controvertidas, mas as razões para o agrupamento são claras: religio-sa, daí muitas vezes ter derivado de confrarias, isto é, de associações que desde o século X existiam para cultuar o santo patrono de uma determinada categoria profissional e para praticar caridade recíproca

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entre seus membros; econômica, procurando garantir para eles o mo-nopólio de determinada atividade; político-social, com a plebe de arte-sãos tentando se organizar diante do patriciado mercador que detinha o poder na cidade.

Em cada oficina o mestre trabalhava com alguns outros artesãos. Os jornaleiros (ou companheiros) eram assalariados que ganhavam em dinheiro e em espécie, pois viviam na casa do mestre. Os aprendi-zes, apenas um ou dois por oficina, eram adolescentes que procura-vam iniciar-se nos segredos da profissão, vivendo para isso ao lado do mestre e pagando a ele pelo aprendizado, pelo alojamento e pela alimentação.

Outra importante transformação ocorrida na Idade Média Central foi uma acentuada monetarização da economia. Um primeiro problema era a grande diversidade, de moedas senhoriais, cada uma delas cir-culando numa área restrita. Um segundo problema era o baixo valor das espécies, resultado da reforma monetária carolíngia do século VIII, que implantara o monometalismo de prata: o denarius, moeda de pe-queno valor, adequava-se melhor àquela economia pouco produtiva e de lenta circulação.

De um lado, a solução veio do fortalecimento do poder monárquico que então começava a ocorrer. De outro, os metais preciosos que tinham sido entesourados foram aos poucos reentrando em circulação. Graças à expansão mercantil, entre início do século XII e meada do século XIII um afluxo de ouro muçulmano contribuiu para alargar o estoque metálico ocidental. Graças às novas técnicas de mineração, cresceu bastante a produção de prata da Europa central.

O Pré-Capitalismo Medieval

Em suma, a Idade Média Central foi uma época de mudanças, de expansão econômica, o que levou parte da historiografia por muito tempo a falar num “capitalismo medieval”. Contudo, adotando-se uma definição ampla de capitalismo sistema econômico centrado na posse privada de capital (mercadorias, máquinas, terras, dinheiro, conheci-mento técnico) empregado de maneira a se reproduzir continuamente, ficando os desprovidos dele obrigados a vender sua força de trabalho — poderíamos talvez aceitar sua existência nos últimos séculos da Idade Média. Ele coexistia com o sistema doméstico, representado por pequenos artesãos independentes, e com o sistema senhorial, basea-do em mão-de-obra dependente.

A Depressão De Fins Da Idade Média

A Baixa Idade Média, por fim, inaugurou um período de crise gene-ralizada, facilmente perceptível no aspecto econômico. Sem dúvida, podemos afirmar que após uma fase A de crescimento econômico (1200-1316) a Europa ocidental entrou numa fase B depressiva, que se estenderia até fins do século XV no sul e princípios do XVI no cen-tro e no norte.

De qualquer forma, a crise resultou dos próprios princípios da eco-nomia extensiva e predatória da fase A. ela fundamentava-se em N (recursos naturais) e T (força de trabalho) abundantes, e um K (capital) proporcionalmente pequeno. Ou seja, enquanto ainda havia terras férteis disponíveis e mão-de-obra em quantidade para trabalhá-las, o sistema funcionou bem. Mas a riqueza social global pouco crescia por falta de reinvestimento. Logo, como N e T não poderiam crescer inde-finidamente, mais cedo ou mais tarde viria à crise.

No setor primário, a produção era relativamente estática (limites técnicos da agricultura medieval) e o consumo dinâmico (crescimento populacional). No setor secundário, cada indivíduo gastava mais com alimentação e menos no consumo de bens industriais. O setor terciário ressentiu-se disso tudo, ocorrendo uma redução da margem de lucro tanto das atividades comerciais quanto das financeiras.

Uma das maiores fragilidades e fonte de graves problemas econô-micos eram as constantes mutações monetárias empreendidas pelos soberanos. Sempre necessitados de dinheiro, os monarcas diminuíam a proporção de metal precioso das moedas e mantinham seu valor nominal, cunhando assim um maior número de peças com a mesma quantidade de metal nobre.

As causas dessa política monetária eram várias. Uma, as necessi-dades geradas pela guerra, pela própria retração comercial, a escas-sez metálica, a lentidão da circulação monetária, da procura, por fim, o entesouramento.

As estruturas políticas

Por muito tempo a História Política teve seus estudos voltados apenas para a camada dirigente. O primeiro passo na direção dessa Nova História Política foi dado em 1924 por Marc Bloch com uma obra tão pioneira, Os reis taumaturgos. Desde então, nessa sua nova rou-pagem, a História Política não se preocupa mais em descrever dinasti-as, reinados e batalhas. Ela coloca a ênfase em dois principais cam-pos de estudo, o papel do imaginário na política e as relações entre nação e Estado.

Política e imaginário

Seguindo os antropólogos, sociólogos e politicólogos, os historiado-res passaram a ver a política como à forma básica de organização de qualquer grupo humano, como o instrumento minimizador dos conflitos inerentes a toda sociedade.

De fato, nas sociedades arcaicas, com visão monista do universo, sem fazer distinção entre natural e sobrenatural, indivíduo e socieda-de, a realeza desempenhava um papel harmonizador, integrador do homem no cosmos. Na Idade Média o monarca, sem ser deus ou se-quer sacerdote, como nas civilizações da Antiguidade, tinha inquestio-nável caráter sagrado.

Todo rei para ser visto como tal precisava ser submetido ao rito da unção com óleo, sacralizava o monarca, tornava-o um eleito de Deus.

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Outros interessantes exemplos das relações entre política e imagi-nário têm nos reis, históricos ou míticos, que teriam desaparecido sem morrer e que retornariam quando seus povos deles precisassem. A crença nesses monarcas messiânicos e milenaristas tanto podia legi-timar seus sucessores quanto servir de contestação ao governante do momento.

Nação e Estado

Pelo menos até o século X, “nação” tinha conotação apenas étnica: natione vem de “nascimento”. Na Primeira e na Alta Idade Média, pre-valeceu o princípio jurídico germânico da personalidade das leis, quer dizer, cada pessoa era regida pelos costumes de seu povo indepen-dentemente do lugar em que estivesse. O princípio jurídico romano da territorialidade das leis, ou seja, a submissão aos costumes locais, qualquer que fosse a origem da pessoa, reganharia força aos poucos, sobretudo a partir do século XII. Somente então “nação” passou a ter caráter também geográfico e político.

No Império Carolíngio alguns fatores permitiram o desenvolvimento de consciências étnicas: a pretensão a certo centralismo administrati-vo, a conquista de novos territórios, o progresso dos falares locais diante do recuo do latim. A fragmentação do império em 843 expres-sava e reforçava aquela situação, estimulando a formação dos nacio-nalismos nos séculos seguintes.

A evolução do Estado medieval não é menos problemática. Apesar de a palavra existir desde o latim clássico (no qual status significa “modo de ser”, “estado”), apenas a partir de meados do século XIII ela começou a ganhar o sentido atual de corpo político submetido a um governo e a leis comuns, e somente em fins do século XV essa acep-ção tornou-se usual. O Estado-nação progrediria na Baixa Idade Mé-dia, tanto no plano prático (exércitos nacionais, protecionismo econô-mico) quanto no simbólico (surgimento das bandeiras, do conceito de fronteira).

No século IX, restabeleceu-se uma relativa unidade com o Império de Carlos Magno, que absorveu, mas não eliminou outros reinos for-mados no período anterior. Nos séculos X-XIII, o Império tornou-se apenas uma ficção, uma idealização, pois na prática ocorria uma pro-funda fragmentação política substantivada nos feudos, porém limitada pelos laços de vassalagem, que permitiriam às monarquias recuperar aos poucos seus direitos. Nos séculos XIV-XVI, o processo de revigo-ramento das monarquias acelerou-se, estimulado pela crise global que fazia a sociedade depositar suas esperanças de recuperação no Esta-do.

A fragmentação da Primeira Idade Média

A crise do século III já mostrara a fraqueza das instituições políticas romanas. As lutas pelo trono eram frequentes; -, as intervenções mili-tares também. Cada exército provincial pretendia dar o título imperial ao seu comandante para obter maiores vantagens: naquele período de “anarquia militar”.

As reformas políticas de Diocleciano e Constantino repuseram em mãos imperiais um grande poder, porém suas reformas sociais e eco-nômicas indiretamente e em longo prazo anularam aquela recupera-ção. Os latifundiários não só se tornavam mais ricos como passavam aos poucos a ter atribuições estatais dentro de suas propriedades. A cada vez mais constante penetração de germânicos em território ro-mano gerava uma insegurança que reforçava aquela tendência. O Estado ia perdendo as possibilidades de uma atuação efetiva. Ocorria um claro processo de desagregação política.

Os germanos não tinham nem Estado nem cidades, sendo a tribo e a família as células básicas de sua organização política. As relações sociais entre eles não se regiam pelo conceito de cidadania, mas de parentesco. Assim, ao se sedentarizarem, ocupando cada tribo uma parcela do Império Romano, eles vieram a substituir um Estado orga-nizado e relativamente urbanizado. Não tendo instituições próprias para desempenhar tal tarefa, adotaram as que estavam à mão, e que bem ou mal tinham funcionado por longo tempo. O rei ostrogodo Teo-dorico (474-526) pensou numa espécie de confederação germânica sob o domínio de seu reino. A ideia de uma confederação germânica não era absurda, mas precoce, na época de Teodorico.

A renovação imperial carolíngia

As condições para tanto estariam reunidas apenas no reino franco do século VIII, na figura de Carlos Magno. Em primeiro lugar, pelo fato de ele ter a anuência da Igreja para dar aquele passo. Em segundo lugar, as relações do Ocidente com Bizâncio estavam bastante abala-das naquele momento, de forma que não havia a preocupação dos três séculos anteriores em respeitar os direitos bizantinos.

O território estava dividido em centenas de condados, de extensão variável, cada um deles dirigido por um conde, nomeado pelo impera-dor. O conde representava o poder central em tudo, publicando as leis e zelando pela sua execução, estabelecendo impostos, dirigindo traba-lhos públicos, distribuindo justiça, alistando e comandando os contin-gentes militares, recebendo os juramentos de fidelidade dirigidos ao imperador. Em troca recebia uma porcentagem das taxas de justiça e, sobretudo terras entreguem pelo soberano.

Essa prática revelou-se insuficiente para superar a fraqueza estru-tural do Império Carolíngio, o que levou, em 843, à sua fragmentação por meio do Tratado de Verdun, assinado entre três netos de Carlos Magno. Nele aparecia o primeiro esboço do futuro mapa político euro-peu. O tratado estabeleceu dois grandes blocos territoriais, étnicos e linguísticos (dos quais surgiriam às futuras França e Alemanha) e uma longa faixa pluralista, composta de uma zona de personalidade defini-da (Itália do norte), zonas multilinguistas que sofreriam o poder de atração daqueles primeiros blocos (futuras Bélgica, Países Baixos, Luxemburgo, Suíça), zonas intermediárias que seriam objeto de lon-gas disputas (Alsácia, Lorena, Trieste, Tirol).

O fato de o Império não ter unidade orgânica, assentando-se sobre dois princípios contraditórios: o universalismo das tradições romana e

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cristã e o particularismo tribal germânico. A diversidade étnica era insuficientemente soldada pela autoridade real, muito sujeita a flutua-ções conforme a personalidade do soberano. Um segundo fator foi à difusão da vassalagem, por meio da qual Carlos Magno pretendeu unir a si todos os súditos importantes, num vínculo que manteria o predo-mínio imperial. A relação vassálica implicava, porém, a entrega por parte do soberano de terras e privilégios políticos que na verdade o enfraqueciam. Naquela economia essencialmente agrária, ao ceder terras para os nobres o imperador precisava conquistar novas áreas, mas para tanto dependia do serviço militar daqueles mesmos elemen-tos. Surgia um círculo vicioso difícil de ser rompido.

Em terceiro lugar, revelou-se problemática a fusão do poder tempo-ral e do poder espiritual na figura do imperador. No seu papel militar, pela tradição germânica, ele deveria ser um chefe guerreiro e obtentor de pilhagens; no seu papel religioso, pela tradição cristã, ele deveria ser o mantenedor da paz e da justiça. Frágil equilíbrio.

O imperador fez com que a expansão cristã fosse realizada por in-termédio de missões religiosas, e não mais de conquistas militares. O soberano ficou assim privado dos proventos da pilhagem, de forma que precisava remunerar os vassalos com suas próprias terras, esgo-tando a fortuna fundiária carolíngia, base inicial de seu poder.

Por fim, as novas invasões dos séculos IX-X contribuíram para mostrar a debilidade do sistema imperial. A rapidez dos vikings, que descendo da Escandinávia penetravam pelos rios com seus barcos leves e ágeis, não permitia a defesa por parte daquele exército difícil de ser convocado e pesado nas manobras militares. Ficava patente a impotência dos soberanos, e cada região organizava sua própria defe-sa, em torno da nobreza local. Era a região, portanto, que passava a definir seu próprio destino. A Europa cobria-se de castelos. O poder se fragmentava.

A partir de então, estavam presentes os personagens políticos que se manteriam em cena até o fim da Idade Média: o Império, a Igreja, as monarquias, o feudalismo e — um pouco mais tarde — as comu-nas.

Os poderes universalistas

Por causa de problemas dinásticos, tal título deixou de ser utilizado de 924 a 962, quando se deu a chamada “segunda renovação do Im-pério”, com Oto. Depois de ter consolidado seu poder no reino alemão, ele derrotou os magiares e eslavos, pacificando aquela região e ga-nhando um prestígio muito grande em toda a Cristandade*. Intervindo na política italiana, ele casou-se com a herdeira do trono daquele terri-tório e proclamou-se rei também ali. O papa, precisando de ajuda para superar problemas na Itália central, buscou seu apoio. Enfim, Oto I conseguiu reunir todas as condições para ser coroado imperador pelo pontífice. Renascia o Império Franco, que em 1157 passou a se cha-mar Santo Império e a partir de 1254, Santo Império Romano Germâ-nico.

O Império resultava da reunião de três coroas, da Alemanha, da Itá-lia e da Borgonha. E o monarca era fraco em todas. Na Alemanha, feudalizada tardiamente no século XII, a prática feudal não trabalhava a favor do Estado, como ocorria na França: o rei não podia manter os feudos confiscados, sendo obrigado a reenfeudá-los após um ano e um dia. Na Itália, o território era descontínuo, compreendendo o norte peninsular e algumas regiões meridionais, pois o centro era papal e o extremo sul bizantino. Na Borgonha, o poder da nobreza local já era bastante forte quando o reino se tornou em 1033 um Estado autônomo no seio do Império.

Sem poder efetivo nesses reinos, o soberano sempre buscou o títu-lo imperial na esperança de com ele reforçar sua atuação naqueles locais. Apenas o papa poderia coroar um imperador, mas não estava interessado na existência de um que fosse forte, pois ele próprio tinha pretensões universalistas, considerando-se o legítimo herdeiro do Império Romano. Daí os sérios conflitos entre Império e Igreja, que se arrastariam por longo tempo.

A Igreja, por sua vez, tornou-se claramente uma personalidade polí-tica desde que se corporificou com a Doação de Pepino. Isto é, ao receber do chefe franco em 754-756 os territórios que ele conquistara aos lombardos, nascia o Estado Pontifício. Contudo, tal fato trazia em si uma submissão implícita da Igreja ao poder monárquico, de quem recebia aquelas terras. Contra isso é que se forjou o documento co-nhecido por Doação de Constantino. Por este texto apócrifo, o impera-dor romano Constantino teria supostamente transferido para o papado, no século IV, o poder imperial sobre todo o Ocidente. A questão ficava, dessa forma, invertida: Pepino nada estaria doando à Igreja, mas ape-nas restituindo a ela uma parte do que lhe pertencia. A Igreja, deposi-tária do título imperial, entregara-o ao rei franco por serviços presta-dos, podendo, portanto, retoma-lo e atribuí-lo a quem quisesse.

Os poderes nacionalistas

Ao promover a unção de Pepino, em 751, a Igreja justificara o po-der monárquico. Em parte isso ocorrera por circunstâncias, já que o papa necessitava do apoio franco contra os lombardos.

Apesar de aceitar a sacralidade monárquica, a Igreja velava para que tal poder não se tornasse excessivo, daí a farta literatura conheci-da por “espelho dos príncipes”. Literatura de exortação aos monarcas, de quem se exigiam qualidades cristãs e a quem se estabeleciam limites de atuação.

Esse aspecto contratual vinha dos bárbaros germanos, para quem o rei, eleito, estava de certa forma subordinado ao direito costumeiro da tribo. Este determinava os poderes e atribuições do rei, e natural-mente não podia ser alterado por ele sem o consentimento da comuni-dade por intermédio da assembleia dos guerreiros. Com o mesmo espírito, no feudalismo o vassalo que não cumpria suas obrigações podia perder seu feudo, depois de julgado por seus pares no tribunal do senhor. Correspondentemente, o senhor que desrespeitava suas obrigações via o vassalo romper o contrato feudo-vassálico (diffidatio).

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Assim, o rei feudal como suserano mantinha relações contratuais ape-nas com seus vassalos diretos.

Por outro lado, a partir da própria fragmentação política feudal de-senvolvia-se um elemento que acabaria por ter um papel reaglutina-dor. Os bárbaros tinham possuído certa solidariedade de tribo ou de povo, que, contudo não se associara a um território por causa de seu nomadismo. Com a penetração e fixação em terras do antigo Império Romano, aos poucos surgiram vínculos entre os habitantes, seus cos-tumes, suas tradições e o território ocupado. O primeiro resultado disso é constatável séculos depois, quando em 813 o concilio de Tours recomendava ao clero traduzir os sermões em língua vulgar para que fossem mais bem compreendidos.

Os poderes particularistas

O feudalismo, do ponto de vista político, representava uma pulveri-zação do poder que respondia melhor às necessidades de uma socie-dade saída do fracasso de uma tentativa unitária (Império Carolíngio) e pressionada por inimigos externos (vikings, magiares etc). Na verdade, as tendências centrífugas vinham desde o século IV, quando manifes-taram e aceleraram o debilitamento do Império Romano. Naquele momento, com a busca da autossuficiência por parte dos latifúndios, com a insegurança gerada pela penetração dos bárbaros e com as dificuldades nas comunicações, acentuou-se a ruralização da econo-mia e da sociedade, levando os representantes do imperador a se verem limitados nas suas possibilidades de atuação. Os grandes pro-prietários rurais puderam, assim, usurpar atribuições do Estado.

A formação dos reinos germânicos em nada alterou a essência da-quele processo. Naquela economia fundamentalmente agrária, os monarcas remuneravam seus servidores e guerreiros com terras, às quais se concediam muitas vezes imunidades. O detentor da terra desempenhava ali o papel de Estado, taxando, julgando, convocando.

A concessão e recepção de feudos e sua contrapartida (o serviço militar) representavam uma forma de divisão da riqueza (terra e traba-lhadores) sempre dentro da mesma elite. O poder político estava fraci-onado para que pudesse ser mantido.

O surgimento das comunas representou um papel interessante e importante. De um lado, aquele processo negava os princípios feudo-clericais. O tipo mais difundido era a comuna citadina, a comunidade burguesa que se organizava para defender seus interesses comerciais diante dos abusos feudais, como confiscos ou taxações excessivas. No começo do século XI, ela pretendia apenas escapar à arbitrarieda-de senhorial. Cerca de 100 anos depois, ela passou a buscar autono-mia, que se comprava ou arrancava à força, dependendo de cada caso.

Nascia então a verdadeira comuna, ou cidade-estado. Seu modelo acabado estava na Itália, região mais urbanizada do Ocidente, onde as longas lutas entre Império e Igreja tinham criado um vácuo de poder preenchido pelas associações burguesas. As comunas representaram

uma novidade política não apenas na sua relação com os poderes tradicionais, mas também na sua organização interna. No primeiro momento seu regime político foi o consulado, com um grupo de funci-onários (cônsules) eleitos defendo poderes executivos e judiciais. Para controlá-lo, havia uma assembleia inicialmente formada por todos os cidadãos e depois por certo número deles escolhido por eleição ou sorteio. Num segundo momento, diante das crescentes disputas inter-nas da camada dirigente, passou-se a entregar o poder a uma só pes-soa, de fora da cidade e, portanto neutra nos seus conflitos, o podestà (“regedor”).

O grau de autonomia conseguido pelas comunas foi muito variável conforme o tempo, o local e o tipo de associação. E importante lem-brar que nem todas as comunas eram urbanas. As rurais, quase sem-pre muito modestas, nasciam da associação de aldeias contra o seu senhor. O espírito era o mesmo das comunas urbanas, mudavam os objetivos (acesso a áreas fechadas pelo senhor, reação ao desrespei-to por costumes locais etc.) e as condições de alcançá-los (mais pobre que a cidade, o campo dificilmente podia comprar sua liberdade).

O jogo político medieval

Os poderes universalistas (Igreja e Império) estavam em choque constante, porque pela própria natureza do que reivindicavam — a herança do Império Romano — somente um deles poderia ter suces-so. Assim, ambos fracassaram, permitindo a emergência de poderes particularistas (feudos e comunas) e nacionalistas (monarquias). Mais do que isso, quando ficou patente em fins da Idade Média, que o futuro pertencia a estas últimas, duas nacionalidade já tinham perdido sua oportunidade histórica de organizar Estados centralizados. A luta entre os universalistas debilitara as bases territoriais e nacionais da Itália (centro nevrálgico da Igreja) e da Alemanha (base do Sacro Império).

Dessa forma, por muito tempo elas permaneceram apenas realida-des geográficas, não políticas. Perdidas as chances de obter colônias no Novo Mundo dos séculos XVI-XVII, atrasadas na industrialização dos séculos XVIII-XIX, secundarizadas na partilha da África e da Ásia do século XIX, aquelas nacionalidades sentiam cada vez mais a ne-cessidade de se corporificar politicamente.

Apesar das transformações políticas dos séculos XI-XIII, na Baixa Idade Média os vínculos feudais continuavam a tencionar as relações entre vários Estados: o rei da Inglaterra era vassalo francês, o reino português surgira de uma secessão de Castela, a Escócia estava ligada à Inglaterra, e Flandres à França. Todas essas questões pen-dentes, ou mal resolvidas, vieram à tona com o grande conflito nacio-nalista da Idade Média, a Guerra dos Cem Anos (1337-1453). Mas esta também envolveu questões feudais internas, pois cada vez mais se restringia o papel social da nobreza, que era cumprido através de guerras locais, proibidas pelas monarquias, daí a necessidade de guerras mais amplas, entre os Estados.

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As estruturas eclesiásticas

A linha tendencial da Igreja na Idade Média revela-se com clareza. Num primeiro momento, a organização da hierarquia eclesiástica visa-va à consolidação da recente vitória do cristianismo. A seguir, a apro-ximação com os poderes políticos garantiu à Igreja maiores possibili-dades de atuação. Em uma terceira fase, o corpo eclesiástico separou-se completamente da sociedade laica e procurou dirigi-la, buscando desde fins do século XI erigir uma teocracia que esteve em via de se concretizar em princípios do século XIII.

Contudo, por fim, as transformações que a Cristandade conhecera ao longo desse tempo inviabilizaram o projeto papal e preparou sua maior crise, a Reforma Protestante do século XVI.

A formação da hierarquia eclesiástica na Primeira Idade Média

Nos seus primeiros tempos, a Igreja parecia envolvida numa con-tradição, que, no entanto se revelaria a base de seu poder na Idade Média. Ao negar diversos aspectos da civilização romana, ela criava condições de aproximação com os germanos. Ao preservar vários outros elementos da romanidade, consolidava seu papel no seio da massa populacional do Império.

Nascida nos quadros do Império Romano, a Igreja ia aos poucos preenchendo os vazios deixados por ele até, em fins do século IV, identificar-se com o Estado, quando o cristianismo foi reconhecido como religião oficial. A Igreja passava a ser a herdeira natural do Im-pério Romano.

Para tanto, ela precisava ter sua própria hierarquia, realizando e supervisionando os ofícios religiosos, orientando quanto às questões de dogma, executando obras sociais, combatendo o paganismo. A concentração de todas essas atividades nas mãos de apenas alguns cristãos era aceita com naturalidade pelo conjunto dos fiéis, já que tal poder lhes fora atribuído pela própria Divindade: segundo o texto bíbli-co.

Apenas no século IV determinou-se que somente homens livres poderiam ingressar no clero, e proibiu-se a passagem direta do laicato para o episcopado, tornando-se necessário exercer antes uma função inferior. O sustento do clero advinha das esmolas dadas pelos fiéis, de acordo com o princípio de “quem serve ao altar vive do altar”. O celiba-to não era obrigatório, apenas recomendado, tendo surgido à primeira legislação a respeito na Espanha, onde o sínodo de Elvira em 306 proibiu o casamento aos clérigos sob pena de destituição.

Para a formação e organização da hierarquia eclesiástica acabou contribuindo bastante, paradoxalmente, um elemento que punha em risco a própria existência da Igreja: as heresias. Estas eram produto do sincretismo que fazia a força, mas também a fraqueza do cristianismo. Ao reunir e harmonizar componentes de várias crenças da época, a religião cristã tornava-se mais facilmente assimilável, porém passível de interpretações discordantes do pensamento oficial do clero cristão.

Do ponto de vista deste, heresia era, portanto, um desvio dogmático que colocava em perigo a unidade de fé.

Qualquer ideia que parecesse herética era, então, submetida à apreciação do bispo local. Este geralmente colocava a questão peran-te seus pares nas assembleias episcopais, ou sínodos, que se reuni-am desde meados do século II para tratar de tudo que interessasse à Igreja local. Mas as questões de doutrina eram debatidas, sobretudo nos concílios ecumênicos, que congregavam bispos de todas as regi-ões, expressando a universalidade da Igreja.

Paralelamente a esse clero voltado para atividades em sociedade — ministrar sacramentos, orientar espiritualmente, ajudar os necessi-tados — e por isso chamado de clero secular, surgia um de caracterís-ticas diversas. Era constituído por indivíduos que buscavam servir a Deus vivendo em solidão, ascese e contemplação: os monges, do grego monakbos, “solitário”.

A tradicional trilogia monástica — castidade, pobreza e obediência — estava presente de forma concreta e equilibrada no cotidiano dos beneditinos. O abade eleito pelos monges recebe deles total obediên-cia, que representa ao mesmo tempo uma manifestação de pobreza, pois não se pode dispor sequer da própria vontade. A pobreza, por sua vez, não é entendida como falta ou miséria, mas posse do estritamen-te necessário, daí o monge não poder ter nada de seu, apesar de o mosteiro possuir propriedades recebidas em doação. A castidade, sendo negação da posse do próprio corpo, também é uma forma de pobreza. Sendo negação do usufruto do próprio corpo, é uma forma de obediência. A obediência, sendo uma renúncia, é ainda uma forma de castidade.

Desde fins do século III ocorria forte expansão do cristianismo nas cidades, onde a crise do Império Romano era mais sentida e, portanto, as condições para a cristianização mais favoráveis. O campo, sempre mais conservador, mantinha-se preso às suas antigas crenças, mesmo pré-romanas, daí paganus (“camponês”) ter sido identificado ao não-cristão. Com a decadência urbana e o consequente êxodo, o cristia-nismo penetrou no campo.

A submissão ao Estado na Alta Idade Média

Estreitavam-se, portanto, as relações Estado-Igreja, com predomí-nio do primeiro na época de Carlos Magno. Os clérigos participavam então do conselho real, os bispos tinham poderes civis, os cânones ganhavam força de lei. O monarca presidia os sínodos, punia os bis-pos, regulamentava com eles a disciplina eclesiástica e a liturgia, in-tervinha mesmo em questões doutrinais. Os bispos eram nomeados pelo soberano, contrariamente à tradição canônica, mas o fato não era considerado uma usurpação, e sim um serviço prestado pelo monarca à Igreja, quase um dever do cargo. Suas conquistas territoriais abriram caminho para a cristianização dos saxões, frísios, vendes, avaros, morávios e boêmios. Em virtude da crescente extensão do Império, ele instituiu muitas paróquias, criou novas dioceses e arquidioceses.

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Graças a isso, a Igreja enriqueceu ainda mais. No começo do sécu-lo V ela tinha sido a segunda maior proprietária imobiliária do Ociden-te, depois do Estado Romano, e tornou-se a maior desde fins daquele século, com o desaparecimento do Império. De fato, a chegada dos bárbaros não a prejudicou, pelo contrário, muitos indivíduos, diante da insegurança geral de então, entregaram suas terras ao patrocinium da Igreja.

Na terceira fase das relações Carolíngios-papado, completou-se a reforma monástica sob o governo de Luís, o Pio, que encarregou Ben-to de Aniane de realizá-la. Este, em 817, procurou inicialmente comba-ter o relaxamento que tomara conta da vida monástica, impondo certa uniformização na aplicação da regra beneditina. Desde então, os monges entregaram-se especialmente ao culto. O clero secular reto-mava a direção do movimento de cristianização e o episcopado au-mentava seu poder político.

A partir de inícios do século IX, inspirada no Direito Canônico e em Santo

Agostinho, ganhou terreno à teoria do agostinianismo político, que afirmava a superioridade espiritual sobre a temporal, dos bispos sobre os reis. O movimento cultural chamado de Renascimento Carolíngio elevara o nível dos bispos. Tal teoria contribuiu para aumentar a auto-nomia da nobreza, o que teve reflexos negativos sobre a Igreja, com a generalização do sistema de “igreja própria”, já existente no século VII e que se estenderia até o século XII. Por ele, quando um latifundiário levantava uma igreja ou mosteiro em suas terras, mantinha esse bem como plena propriedade, podendo vendê-lo, doá-lo ou transmiti-lo em herança. Podia apropriar-se das esmolas e dízimos recebidos pela igreja ou mosteiro. Podia, sobretudo, nomear quem quisesse como sacerdote, função que desde o século VIII era atribuída como benefici-am ou feudo.

A tentativa de teocracia papal na Idade Média Central

Numa reação contra aquele estado de coisas, na Idade Média Cen-tral a Igreja teve como objetivo alcançar a autonomia e, sobretudo — concretizando o agostinianismo político e impedindo que prosseguisse a sujeição aos leigos — passar a dirigir a sociedade. O primeiro passo em direção àquela dupla meta tinha sido dado em princípios do século X, com a fundação do mosteiro de Cluny, na Borgonha. Adotando a regra beneditina, mas interpretando-a de forma própria, Cluny valori-zava os trabalhos litúrgicos, que absorviam a quase totalidade do tem-po dos monges. O trabalho manual foi abandonado aos camponeses de seus senhorios, o trabalho intelectual relegado a segundo plano. Vivendo sob rígida disciplina, cm ascetismo, silêncio e isolamento, os monges cluniacenses recuperaram o prestígio da vida religiosa.

Buscando restabelecer a paz social (não a igualdade, concepção estranha à época) e tornar-se sua guardiã, a Igreja promoveu em fins do século X o movimento conhecido por Paz de Deus. Ameaçados de excomunhão e de suas decorrentes punições sobrenaturais, os guer-

reiros foram pressionados a jurar sobre relíquias que respeitariam as igrejas, os membros do clero e os bens dos humildes.

Tal movimento estendeu-se até por volta de 1040, sem conseguir pacificar completamente a sociedade cristã ocidental. O clima de vio-lência expressava as necessidades da aristocracia laica, mais nume-rosa devido ao crescimento demográfico, e a consequente disputa entre ela e a aristocracia eclesiástica pela posse das riquezas geradas pelos camponeses. Diante disso, seguindo o mesmo espírito da Paz de Deus, mas buscando criar novos mecanismos de controle sobre o comportamento da elite laica, a Igreja estabeleceu em princípios do século XI a Trégua de Deus.

Como a ideia básica da Paz e da Trégua de Deus era a preserva-ção da ordem religiosa, social e política desejada por Deus, entende-se que a partir de fins do século XI ela tenha derivado para a ideia de Guerra Santa, que procurava impor aquela ordem dentro (Cruzada contra hereges) e fora (Cruzada contra muçulmanos) da Cristandade.

As Cruzadas deveriam funcionar não só como elemento de pacifi-cação interna da Europa católica, levando para fora dela à irrequieta nobreza feudal, mas especialmente como um fenômeno aglutinador da Cristandade sob o comando da Igreja, acenava-se para seus partici-pantes com a remissão dos pecados, a proteção eclesiástica sobre suas famílias e bens, a suspensão do pagamento de juros. Lutando sob a égide da Igreja, os cruzados deveriam agir como guerreiros imbuídos de seus ideais.

No século XIII estavam reunidas todas as condições para o exercí-cio do poder papal sobre a comunidade cristã. Em relação aos cléri-gos, o papado legisla e julga, tributa, cria ou fiscaliza universidades, institui dioceses, nomeia para todas as funções, reconhece novas ordens religiosas. Em relação aos leigos, julga em vários assuntos, cobra o dízimo, determina a vida sexual (casamento, abstinências), regulamenta a atividade profissional (trabalhos lícitos e ilícitos), esta-belece o comportamento social (roupas, palavras, atitudes), estipula os valores culturais.

Um claro sinal do alargamento das atribuições papais estava numa importante novidade, à exclusividade de canonização dos santos. Desde princípios do cristianismo, os mártires vitimados pelas perse-guições romanas tornaram-se objeto de culto, sendo vistos como cris-tãos ideais, que tinham sacrificado suas vidas por fidelidade ao Deus único.

A crise da Baixa Idade Média

A grande questão da Igreja na Baixa Idade Média foi, porém, um prolongamento da antiga disputa entre poder espiritual e poder tempo-ral. Em fins do século XIII, o papa Bonifácio VIII, defensor da monar-quia universal pontifícia, proibiu que os eclesiásticos fizessem doações sem autorização da Santa Sé e que os poderes laicos cobrassem taxas sobre bens da Igreja. Na França, em pleno processo de afirma-ção da monarquia nacional, o rei Filipe IV, em resposta, proibiu a saída

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de metais preciosos do país e baniu os coletores de impostos papais. Pouco depois, o monarca francês prendeu um bispo, levantando fortes protestos do papa. Filipe acusou Bonifácio de ter sido eleito papa ilegi-timamente e em 1303 conseguiu prendê-lo na cidade de Anagni. Ape-sar de solto logo depois, o papa estava claramente desmoralizado, e o sonho da teocracia pontifícia falido.

A crise do pontificado e o desenvolvimento do nacionalismo, fenô-menos, aliás, interligados, desenvolviam o sentimento de autonomia eclesiástica em diversos locais. Mesmo depois de reunificada pelo Concilio de Constança, havendo um só papa residindo na tradicional sede de Roma, a Igreja continuava abalada. Grandes problemas per-maneciam, opondo concilio e papa, Igreja e monarquias, Estado Ponti-fício e Estados italianos, cultura cristã tradicional e nova cultura huma-nista. Assim, em 1517, exatamente 100 anos depois da volta do papa-do a Roma, começava o Protestantismo.

As estruturas sociais

A História Social total deve ser o objetivo último dos estudos histó-ricos, não uma etapa da reconstituição do passado, um campo especí-fico do saber.

A redefinição da Primeira Idade Média

Os primeiros séculos medievais conheceram uma cristalização da hierarquia social, fenômeno que na verdade já se desenvolvia anteri-ormente, mas que se completou apenas no século IV. De fato, a crise geral que sacudiu a civilização romana no século III levara a uma limi-tação dos espaços de atuação individual e ao correspondente alarga-mento das funções do Estado.

As tentativas reformistas criaram uma enorme distância social entre as várias camadas. No topo da pirâmide estava a aristocracia senato-rial, cinco vezes mais rica que a do século I. As camadas médias, rurais e urbanas, encolhiam. As primeiras, devido à generalização do patrocinium, laço de dependência que se criava entre um camponês livre e um grande proprietário. As camadas médias urbanas viam-se esmagadas por dois fatores. O primeiro deles — o processo de rurali-zação da sociedade romana — resultava de sua contradição básica: sendo escravista e imperialista, ela só poderia manter-se graças a novas conquistas que renovassem o estoque de mão-de-obra e trou-xessem mais riquezas por meio de saques e tributos. Contudo, o es-cravismo e o imperialismo marginalizavam grande parte da população, que precisava ser sustentada pelo Estado.

O segundo fator que enfraquecia as camadas médias urbanas era um pesado conjunto de impostos que o Estado cobrava para tentar manter a própria vida citadina. Obrigados a contribuir na promoção de jogos circenses, na distribuição de trigo à população marginalizada e na realização de obras públicas, os curiales (espécie de aristocratas urbanos) procuravam fugir aos seus encargos. O Estado precisou proibir sua migração para o campo e mesmo sua entrada para a ca-mada senatorial ou para o clero.

Na base da sociedade, os trabalhadores livres urbanos tiveram de-cretado a vitaliciedade e hereditariedade de suas funções, sendo reu-nidos em collegiae (corporações) de acordo com a especialização, para facilitar o controle estatal. Os trabalhadores livres rurais tendiam a se tornar dependentes dos latifundiários por meio do patrocinium e, sobretudo, do colonato. A criação dessa instituição era uma tentativa de responder a problemas colocados pela crise: atendia ao interesse dos proprietários em ter mais mão-de-obra, ao interesse do Estado em garantir suas rendas fiscais, ao interesse dos humildes e despossuí-dos por segurança e estabilidade.

Já no século III, precisando de soldados diante do retrocesso popu-lacional, o Estado romano contratara muitos germanos, às vezes tribos inteiras. O pagamento por esse serviço militar era a entrega de lotes fronteiriços (hospitalitas), prática que se estendeu a todo o território romano com as invasões do século V.

A aristocratização da Alta Idade Média

Como a terra era quase a única forma de riqueza da época, não existia uma camada urbana de comerciantes e artesãos que exerces-sem por conta própria e regularmente seu ofício, mas apenas uns poucos indivíduos dedicando-se àquelas atividades. A sociedade esta-va polarizada entre os proprietários fundiários, de um lado, e os cam-poneses despossuídos, de outro.

Dentre os primeiros, havia pequenos e médios proprietários, cam-poneses livres (pagenses) que trabalhavam sua terra com a ajuda de familiares e uns poucos escravos. Como todo homem livre, eles devi-am (além do juramento de fidelidade ao soberano) serviço militar e judicial, encargos muito pesados para seus recursos.

A seguir vinham os colonos, que, apesar de serem juridicamente li-vres, cada vez mais sentiam a fraqueza da autoridade pública que deixava amplos poderes nas mãos dos grandes detentores de terras. Sua situação oscilava, conforme os momentos e os locais, entre a dos pagenses e a dos escravos. Por fim, havia uma mão-de-obra escrava.

A feudo-clericalização dos séculos XI-XII

O que se deve chamar de feudalismo ou termo correlato (modo de produção feudal, sociedade feudal, sistema feudal etc.) é o conjunto da formação social dominante no Ocidente da Idade Média Central, com suas facetas política, econômica, ideológica, institucional, social, cultural, religiosa. Em suma, uma totalidade histórica, da qual o feudo foi apenas um elemento. No entanto — e procurando não perder essa globalidade de vista —, como examinamos cada uma daquelas facetas nos capítulos correspondentes, vamos aqui nos prender apenas à análise das relações sociais do feudalismo.

Ou melhor, do feudo-clericalismo. Realmente, este rótulo parece-nos mais conveniente, na medida em que explicita o papel central da Igreja naquela sociedade. Fato fundamental e geralmente pouco con-siderado.

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Foi por intermédio dela que se deu a conexão entre os vários ele-mentos (já anteriormente presentes) que comporiam aquela formação social. Foi ela a maior detentora de terras naquela sociedade essenci-almente agrária, destacando-se, portanto, no jogo de concessão e recepção de feudos. Foi ela a controlar as manifestações mais íntimas da vida dos indivíduos: a consciência através da confissão; a vida sexual através do casamento; o tempo através do calendário litúrgico; o conhecimento através do controle sobre as artes, as festas, o pen-samento; a própria vida e a própria morte através dos sacramentos (só se nascia verdadeiramente com o batismo, só se tinha o descanso eterno no solo sagrado do cemitério). Foi ela a legitimadora das rela-ções horizontais sacralizando o contrato feudovassálico, e das rela-ções verticais justificando a dependência servil.

Aliás, como produtora de ideologia, traçava a imagem que a socie-dade deveria ter de si mesma.

Tínhamos, portanto, naquela sociedade de ordens, de um lado, du-as camadas identificadas quanto às origens e aos interesses, detento-ras de terra e, assim, de poder econômico, político e judicial (clérigos e guerreiros), de outro lado, uma massa formada principalmente por despossuídos e dependentes, os trabalhadores. Assim, davam-se três formas de relações sociais, uma horizontal na camada dominante, outra horizontal na camada dominada e outra vertical entre os dois grandes grupos.

A primeira forma ocorria pelo contrato feudo-vassálico. A segunda, por acordos para empreendimentos comuns, diante das dificuldades de um trabalhador realizar sozinho certas tarefas, como arar um cam-po ou arrotear uma área. A terceira, fundamental, estava na base da primeira (forma de a aristocracia dividir as terras e o produto do traba-lho camponês) e da segunda (forma de os laboratores poderem con-cretizar seu papel social, de produtores).

O feudo-aburguesamento dos séculos XII-XIII

O crescimento demográfico e econômico, as cidades da Idade Mé-dia Central revigorou, pois para aqueles que fugiam dos laços compul-sórios da servidão a vida urbana oferecia muitos atrativos.

Mais do que isso, tornava-se burguês (habitante do burgo, ou seja, da cidade), o que significava uma situação jurídica própria, bem defini-da, com obrigações limitadas e direitos de participação política, admi-nistrativa e econômica na vida da cidade. E verdade que desde fins do século XII os imigrantes não encontravam nas cidades as oportunida-des com que sonhavam, formando um proletariado que frequentemen-te acabou por se chocar com a burguesia dona das lojas e oficinas. Mas, utopicamente, os centros urbanos continuaram a seduzir os ho-mens do campo.

A grande síntese disso tudo talvez tenha sido o desenvolvimento do individualismo, com a consequente passagem da família patriarcal para a família conjugal e a correspondente valorização da mulher e da criança. Foi nas cidades que despontaram novos valores sociais,

opostos aos coletivistas (interdependência das ordens) e machistas (predominância do clero celibatário e dos guerreiros). Na realidade, esse fenômeno social era reflexo c origem de um conjunto mais amplo de transformações, de uma revalorização do ser humano.

A instabilidade dos séculos XIV-XVI

Na Baixa Idade Média, a passagem da sociedade de ordens para uma sociedade estamental, produto da própria dinâmica feudal, acele-rou-se naquele contexto de crise generalizada. Com a quebra da rígida estratificação anterior, baseada num ordenamento divino da socieda-de, o organismo social tornou-se determinável pelos próprios indiví-duos.

A aristocracia, naturalmente, foi a mais atingida pelas transforma-ções da época. As dificuldades da economia senhorial arruinavam muitas famílias nobres, que perdiam suas terras e se deslocavam para as cidades ou para as cortes principescas ou monárquicas. Dessa forma, a nobreza sofria certa descaracterização ou ao menos perdia alguns dos traços que tinham feito parte de seu poder e prestígio até então.

A burguesia, cujo aparecimento na Idade Média Central tinha ex-pressado as transformações sociais então em gestação, consolidou-se com a crise aristocrática. Foi assim que se deu a penetração burguesa no campo, com a compra de terras, que ocorria pelo menos desde o século XIII acelerando-se na Baixa Idade Média.

Quanto à mão-de-obra urbana, a situação era mais homogênea e mais difícil. A crise não criou uma elite trabalhadora, como fizera no campo, apenas reforçou o poder da alta burguesia. A relativa alta de preços industriais, enquanto os preços agrícolas caíam, atraía muitos camponeses para as cidades. Dessa forma, aumentava a oferta de mão-de-obra urbana, o que permitia ao patriciado burguês pressionar os salários para baixo, rompendo a tendência altista gerada pela peste negra.

As revoltas urbanas, por sua vez, eram pelo controle do Estado, em processo de afirmação, fosse ele comunal, senhorial ou nacional.

As estruturas culturais

Cultura era entendida como uma criação intelectual realizada por “grandes homens”, mais ou menos desvinculados do contexto históri-co. E também como uma criação letrada, pois mesmo as artes, essen-cialmente visuais, pressuporiam certo conhecimento para ser “com-preendidas”. No entanto, as transformações do último meio século nos veículos de divulgação cultural (rádio, televisão, cinema, jornais, revis-tas), e mais recentemente o diálogo da História com a Antropologia, romperam aquela visão estreita.

Para tanto, entenderemos cultura como tudo aquilo que o homem encontra fora da natureza ao nascer. Tudo que foi criado, consciente e inconscientemente, para se relacionar com outros homens (idiomas, instituições, normas), com o meio físico (vestes, moradias, ferramen-

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tas), com o mundo extra-humano (orações, rituais, símbolos). Esse relacionamento tem caráter variado, podendo ser de expressão de sentimentos (literatura, arte), de domínio social (ideologias), de contro-le sobre a natureza (técnicas), de busca de compreensão do universo (filosofia, teologia).

As áreas culturais

De um lado, a cultura erudita, de elite, cultura letrada que pelo me-nos até o século XIII foi eclesiástica do ponto de vista social e latina do ponto de vista linguístico. Conscientemente elaborada (mas sem dei-xar, é claro, de ser tributária da mentalidade), era formalmente trans-mitida (escolas monásticas, escolas catedralícias, universidades). Por isso, tendia a ser conservadora, a se fundamentar em autoridades.

De outro lado, estava a cultura que já foi chamada de popular, laica ou folclórica, e que preferimos denominar “vulgar”, pois para os medie-vais esta palavra rotulava sem ambiguidade tudo que não fosse cleri-cal. A cultura vulgar era oral, transmitida informalmente (nas casas, ruas, praças, tavernas etc.) por meio de idiomas e dialetos vernáculos. Espontaneamente elaborada, ela expressava a mentalidade de forma mais direta, com menos intermediações, com menos regras preestabe-lecidas. Ideologicamente, ela se inclinava a recusar os valores e práti-cas oficiais. Ainda que muito presa às suas próprias tradições — que a Igreja tendia a tachar de superstições —, a cultura vulgar não estava fechada a outras influências.

A cultura erudita procurou apossar-se dos relatos míticos, promo-vendo e legitimando o registro escrito de alguns deles e controlando sua interpretação.

A cultura vulgar, por sua vez, pressionou ao longo da Idade Média para que certos ritos fossem criados ou modificados.

A bipolarização da Primeira Idade Média

Na Primeira Idade Média, as dificuldades da época estabeleceram caracteres culturais que se manteriam, com variações de intensidade, nos séculos seguintes. Primeiro, alargamento do fosso entre a elite culta e a massa inculta. Segundo, este corte cultural não coincidia com a estratificação social: a linha de separação era entre clérigos e leigos, realidade sociocultural que ficou registrada no francês moderno clerc (“letrado”), no inglês clerk (“escrevente”) e no português “leigo” (igno-rante). Terceiro, a cultura clerical era uma sistematização e simplifica-ção da herança greco-romana, adaptada à situação de uma época convulsionada politicamente, enrijecida socialmente, empobrecida economicamente e, síntese disso tudo, limitada pelo seu “absolutismo religioso”. Quarto, a cultura vulgar regredira com as dificuldades mate-riais, a insegurança espiritual e a fusão com elementos bárbaros, daí a ressurgência de técnicas, crenças e mentalidades tradicionais, pré-romanas.

Em virtude desse clima cultural e da finalidade que se atribuía ao conhecimento, às ciências viam-se limitadas no seu desenvolvimento.

Predominava a concepção de que a meta do homem era o Reino de Deus e de que a Revelação estava contida nas Sagradas Escrituras.

A Literatura também foi influenciada por aquela tendência a preser-var e cristianizar obras antigas, mais do que a criar. Não havia preocu-pação com originalidade, apenas com a conservação da literatura clássica por meio de cópias realizadas nos scriptoria monásticos.

A arte ocidental dos séculos IV-VIII realizou uma síntese de ele-mentos de origens diversas. Da arte romana clássica conservou-se algo das técnicas e das características arquitetônicas. Da arte oriental, com a qual se manteve contato mesmo após as invasões germânicas, através de mercadores e missionários, veio certa estilização e hiera-tismo das formas. Da arte germânica, típica de povos nômades, apro-veitou-se o caráter não figurativo e o geometrismo estilizado. Da arte céltica, através das iluminuras dos monges irlandeses, absorveu-se o uso de linhas abstratas, apenas ornamentais. Da arte cristã primitiva veio o essencial, isto é, a temática e o simbolismo. No todo, elementos que se completavam mais do que se negavam, tendo cada um deles peso variável conforme o gênero artístico (arquitetura, escultura, pintu-ra, miniatura, mosaico etc.) e as condições locais (composição étnica, meio físico, época).

A clericalização da Alta Idade Média

Entre as últimas décadas do século VIII e as primeiras do século IX, com a estreita relação entre Estado e Igreja que levou à constituição do Império Carolíngio, as manifestações da cultura vulgar foram de forma geral abafadas. A cultura clerical, mais do que nunca tornada oficial, foi produzida no âmbito do movimento que se convencionou chamar de Renascimento Carolíngio. Segundo o próprio Carlos Mag-no, seu objetivo era fazer com que “a sabedoria necessária à compre-ensão das Sagradas Escrituras não seja muito inferior à que deveria ser”. Melhorar o nível dos clérigos significava para a Igreja oferecer serviços religiosos mais elevados e para o Império servidores adminis-trativos mais eficientes. Daí o alcance daquele movimento ter-se limi-tado a algumas centenas de pessoas, concentradas nas escolas mo-násticas e, novidade, numa escola criada no próprio palácio imperial. Diante de seus objetivos, a tônica não era criar, mas redescobrir, adaptar, copiar, por isso já se disse que “a Renascença Carolíngia, ao invés de semear, entesoura”.

Para acelerar essa atividade copista e minimizar os erros de trans-crição, buscava-se já havia algum tempo desenvolver uma caligrafia menos desenhada, que apresentasse maior regularidade. Uma caligra-fia mais prática, cursiva, que implicasse menor número de movimentos com a mão.

O reequilíbrio da Idade Média Central

Com as acentuadas transformações sociais, políticas e econômicas ocorridas a partir do século XI, foi quebrada a clara predominância desfrutada pela cultura clerical na fase anterior. A cultura vulgar res-surgia com força. Em consequência, a cultura intermediária passou a

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marcar presença em quase todos os campos. A cultura erudita viu, assim, reduzidas suas áreas de exclusividade, mas com isso pôde concentrar forças e em certos setores atingir seu apogeu. O movimen-to conhecido por Renascimento do século XII ilustra bem esse fenô-meno.

A Reação Folclórica

Com efeito, assistiu-se no século XI a um reequilíbrio de forças en-tre os dois polos culturais. Assim como na Alta Idade Média ocorrera a clericalização de muitos elementos folclóricos, agora se dava a folclo-rização de elementos cristãos. O cristianismo, ao dessacralizar a natu-reza (que não se identificava mais com as divindades pagãs), tinha marcado nova etapa no pensamento racionalista, e nesse sentido a oposição folclórica representou a resistência de outro sistema mental, de outra lógica, a do “pensamento selvagem”.

A cultura intermediária e a arte

Mas a emissão e a recepção da mensagem iconográfica não era, obviamente, sempre a mesma. As iluminuras de textos bíblicos e teo-lógicos, consumidas apenas por clérigos, recebiam tratamento mais erudito. As esculturas, as pinturas murais, os mosaicos, os vitrais, colocados em igrejas, mosteiros e catedrais em locais visíveis a todos, transmitiam mensagens ao alcance desse público mais amplo.

A cultura intermediária e a literatura

Na literatura latina, ao lado de uma produção nitidamente clerical (crônicas, poesias de cunho clássico), havia uma de espírito popular (hagiografia) e outra erudita mas ante eclesiástica (goliárdica). Na literatura vernácula, havia gêneros com forte coloração clerical (can-ção de gesta, ciclo do Graal) e outros acentuadamente laicos (lais, fabliaux). Em termos culturais, portanto, e não apenas linguísticos, boa parte da literatura da Idade Média Central estava na zona da cultura intermediária.

A cultura clerical e o ensino

Um setor cultural que a Igreja monopolizava desde princípios da Idade Média continuou nos séculos XI-XIII sob seu controle, apresen-tando, todavia, características novas, que tendiam a escapar de sua alçada — o ensino. De qualquer forma, mesmo com certa laicização o ensino não deixava de estar na área da cultura clerical, entendida cada vez mais, como já dissemos, como cultura de letrados, e não apenas cultura de eclesiásticos.

Nesse processo, surgiram no século XI as escolas urbanas, que se transformariam em universidades no século XIII. Ambas eram produto do crescimento demográfico-econômico-urbano, que tornava a socie-dade mais complexa e mais necessitada de atividades intelectuais. De fato, eram necessários sacerdotes em maior número e mais bem pre-parados para guiar fiéis mais numerosos e com novos problemas;

juristas para uma maior quantidade de tribunais e às voltas com ques-tões novas c mais difíceis; burocratas para os reis e grandes senhores feudais, cujos rendimentos, despesas e interesses se ampliavam; mercadores para atender à crescente procura de bens e que precisa-vam elaborar contratos, escrever cartas, controlar lucros e estoques.

A cultura clerical e a teologia/filosofia

O curso universitário que gozava de maior prestígio, apesar de toda a laicização da sociedade e da cultura que ocorria no século XIII, era sem dúvida o de Teologia, especialmente o de Paris. O conhecimento nessa área mantinha-se virtualmente o mesmo dos séculos anteriores, com o termo então utilizado (sacra doctrina) indicando que ela abarca-va apenas o que tinha sido revelado direta ou indiretamente por Deus: Bíblia, decisões de concílios, comentários há muito aceitos pela Igreja. Na expressão de Santo Anselmo, era “a fé em busca da inteligência”.

O redirecionamento da Baixa Idade Média

O frágil equilíbrio entre cultura clerical e cultura vulgar rompeu-se com a crise do século XIV. A razão disso está ligada ao fato de que na Baixa Idade Média “existia uma falta geral de equilíbrio no tempera-mento religioso, o que tornava tanto as massas como os indivíduos suscetíveis de violentas contradições e de mudanças súbitas” (62: 163). As manifestações culturais oscilavam então do mais estrito raci-onalismo ao mais fervoroso misticismo. A cultura clerical não tinha mais a coerência da Alta Idade Média e a cultura vulgar não possuía o mesmo vigor que na Idade Média Central. Buscava-se uma nova com-posição, da qual sairia à cultura renascentista dos séculos XV-XVI.

As estruturas cotidianas

O caráter factual e descritivo que marcou de forma geral a historio-grafia até princípios deste século levava à desconsideração dos “pe-quenos fatos”, dos eventos do dia-a-dia, repetitivos, sem uma influên-cia clara e direta sobre os “grandes fatos” (batalhas, sagração de reis, criação de instituições, surgimento de importantes obras literárias e artísticas etc). No entanto, a crescente compreensão de que o tecido da História é formado por fios dos mais variados tamanhos e cores permitiu o aparecimento de estudos sobre a vida cotidiana e privada das populações do passado. Ou seja, dos aspectos mais duradouros e presentes no desenrolar da História.

O tempo

A Idade Média não se interessava por uma clara e uniforme quanti-ficação do tempo. Como na Antiguidade, o dia estava dividido em 12 horas e a noite também, independentemente da época do ano. Os intervalos muito pequenos (segundos) eram simplesmente ignorados, os pequenos (minutos) pouco considerados, os médios (horas) conta-bilizados grosseiramente por velas, ampulhetas, relógios d'água, ob-servação do Sol.

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Apenas o clero, por necessidades litúrgicas, estabeleceu um con-trole maior sobre as horas, contando-as precariamente de três em três a partir da meia-noite (matinas, laudes, primas, terça, sexta, nona, vésperas, completas).

Sexo

O surgimento do cristianismo respondia a essa demanda psicológi-ca e comportamental da sociedade romana, daí seu sucesso. Tornado religião oficial em 392 e cada vez mais institucionalizado pela Igreja, já na Primeira Idade Média o cristianismo pôde impor seus valores.

A vida sexual ideal passou a ser a inexistente. A virgindade tornou-se um grande valor, seguindo os modelos de Cristo e sua mãe. Vinha depois a castidade: quem já havia pecado podia em parte compensar essa falta abstendo-se de sexo pelo restante da vida. Os relatos hagi-ográficos de toda a Idade Média, sobretudo de suas duas primeiras fases, abundam em exemplos de santas que morreram para defender sua virgindade e de santos e santas que ao se converter ao cristianis-mo abandonaram a vida conjugal.

Contudo essa interferência eclesiástica na vida íntima dos fiéis não foi aceita com facilidade. Quanto mais recuados no tempo e mais afas-tados dos grandes centros clericais (sedes de bispado, mosteiros), mais os medievos puderam viver de forma “pagã”, no dizer da Igreja.

O matrimônio é uma relação monogâmica. Por um lado, isso aten-dia a um dado da mentalidade medieval, fascinada pela Unidade cos-mológica, talvez como forma compensatória à grande diversidade da realidade concreta do Ocidente, dividido em vários reinos, milhares de feudos, dezenas de línguas e dialetos, diferentes liturgias (apenas com a Reforma Gregoriana tentou-se impor o rito galicano-romano a todas as regiões, o que demoraria a se concretizar). Assim, idealmente, ao Deus único deveria corresponder uma só Igreja, uma só fé, um só governante secular. Por outro lado, a monogamia respondia a uma lenta mas inegável transformação na sensibilidade coletiva — que a Igreja soube reconhecer e tornar lei — pela qual se passava a ver a essência do casamento no consentimento mútuo dos noivos. Isto é, a união deveria ser construída a partir do afeto recíproco, e não apenas de interesses políticos ou patrimoniais.

Alimentação

Apesar das variações regionais de solo e clima, a Europa medieval consumia por toda parte praticamente os mesmos alimentos e bebi-das, preparados quase que da mesma maneira.

Diferenças houve, acima de tudo, entre as categorias sociais. O aristocrata, eclesiástico ou leigo, recebia de seus camponeses, pelo uso da terra, prestações em serviço e produtos agrícolas. Podia, as-sim, consumir de tudo. Detentor de vários senhorios, um aristocrata não se fixava numa certa terra, morando cada parte do ano numa região, onde consumia a parcela da produção local que lhe cabia. Podia, então, ter alimentos todo o ano, independentemente das vicissi-tudes agrícolas de cada senhorio. Apesar disso, por razões culturais, o

cardápio não era muito variado. Os legumes e verduras não estavam muito presentes, porque, sendo considerados produtos pouco nobres e de digestão difícil, ficavam reservados para dias de jejum. Os quei-jos, com exceção das regiões montanhosas, também eram despreza-dos pelas camadas dirigentes, que viam neles aumentos de campone-ses, pela literatura, que os associava aos loucos, e pela medicina, que até o século XVI os considerava pouco saudáveis.

A base da alimentação aristocrática era, portanto, carnívora. Carne de animais domésticos, vaca, vitela, carneiro e sobretudo porco. Carne de caça, especialmente cervo, javali e lebre. Carne de aves, galinha, pato, ganso, cisne, pombo. Carne de peixe de água doce onde possí-vel, pescados em rios e lagos ou criados em tanques (carpa, sável, esturjão). Carne de peixe de mar, consumido fresco nas regiões litorâ-neas (salmão, linguado, pescado) ou seco nas regiões continentais (arenque, bacalhau). A bebida para acompanhar essas refeições era o vinho. A sobremesa nas mesas aristocráticas podia ser alguma fruta fresca (geralmente consumida no início das refeições ou nos intervalos entre elas) ou, mais comumente, frutas secas (figos, passas, amên-doas, nozes etc.) ou, preferencialmente, uma torta ou bolo doce.

A dieta burguesa procurava em linhas gerais imitar a aristocrática, sobretudo no seu fundamento carnívoro.

A alimentação camponesa estava baseada nos cereais, que forne-ciam as calorias necessárias para o esforço físico nas tarefas rurais. Cereais preparados sob a forma de papas e mingaus e especialmente de pão. Na verdade, o pão era essencial desde a Antiguidade.

Moradia

A moradia apresentava grandes variedades regionais, resultantes das necessidades impostas pelo clima e das possibilidades permitidas pelos materiais de construção de cada local.

O norte úmido, frio e florestal definiu um estilo obviamente diferente do sul mediterrâneo seco, quente e pedregoso. As regiões montanho-sas do norte ibérico, da zona pirenaica, do centro francês e da região alpina buscaram soluções próprias, diferenciadas das áreas planas. As cidades apresentavam, naturalmente, condições específicas, com uma grande população concentrada numa superfície pequena, enquanto o campo tinha uma densidade demográfica baixa. Mas, assim como os campos se diferenciavam pelo seu contexto geográfico, as cidades não eram iguais entre si. Uma grande sede feudal (como Troyes), a capital de um reino (caso de Londres), uma importante sé episcopal (Burgos, por exemplo), uma cidade dedicada ao comércio internacio-nal (como Veneza ou Lubeck), uma cidade artesanal (como Ypres), um pequeno burgo rural (os mais comuns) não poderiam, por razões geográficas e profissionais, construir habitações e edifícios públicos da mesma forma.

Vestuário

Por toda Idade Média a base do vestuário foi à túnica de mangas. Seu comprimento mudou várias vezes, mas geralmente ia até os tor-

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nozelos para as mulheres e até os joelhos para os homens. Debaixo dessa túnica usava-se uma camisa, longa no caso feminino, curta no masculino, pois os homens portavam ainda calções, uma espécie de ceroula que ia até os tornozelos. No inverno, quem tinha condições colocava diretamente no corpo, sob a camisa, uma peliça, espécie de colete de pele, sem mangas Por cima de tudo vinha uma capa, às vezes com capuz, de pele no caso dos mais ricos, de lã no dos mais simples. O calçado podia ser bota de couro de cano alto para os ricos ou simples sapatilha de tecido para os mais pobres. O uso de luvas era difundido em todas as categorias sociais.

Lazer

Os medievais levavam uma vida material dura, os clérigos passan-do muitas horas por dia em orações, estudo e tarefas cotidianas de sua diocese ou mosteiro, os senhores laicos em exercícios militares e administração de seu senhorio, os burgueses em difíceis negociações e perigosas viagens, os camponeses num trabalho pesado e de retor-no nem sempre compensador.

Morte

Vivendo num mundo agrícola, em que se percebe cotidianamente como alguns seres precisam morrer para que outros possam viver, convivendo com a constante ameaça da fome, das epidemias e das guerras, os medievais sentiam a onipresença da morte, mas isso não os incomodava. Eles tinham dela uma visão natural, tranquila, diferen-te da de seus descendentes dos séculos seguintes. Como o cristia-nismo ensina que a morte é o começo da vida eterna, e não o fim definitivo, chegado o momento as pessoas procuravam se preparar. A grande tragédia não era morrer, mas morrer inesperadamente, sem ter confessado, recebido os sacramentos, feito doações e esmolas, esta-belecido o testamento. Tinha-se consciência e resignação pelo fato de que o destino das espécies vivas é morrer. A morte nivela os homens e mostra o despropósito de seu orgulho e suas riquezas.

As estruturas mentais

Apenas há pouco tempo foi tornado objeto de estudo o fato óbvio de que o homem, e portanto a História, é formado tanto por seus so-nhos, fantasias, angústias e esperanças quanto por seu trabalho, leis e guerras. Desta forma, é fundamental a compreensão do primeiro con-junto de elementos para que o segundo ganhe sentido. Bem entendi-do, não se trata de adotar uma postura determinista, atribuindo tudo à mentalidade (ou à economia, ou à política etc.)- Mas é preciso consi-derar o pano de fundo mental, “o nível mais estável, mais imóvel das sociedades” (LE GOFF: 69).

A visão hierofânica de mundo

Para o homem medieval, o referencial de todas as coisas era sa-grado, fenômeno psicossocial típico de sociedades agrárias, muito dependentes da natureza e, portanto, à mercê de forças desconheci-das e não controláveis.

O simbolismo

“A função do símbolo é religar o alto e o baixo, criar entre o divino e o humano uma comunicação tal que eles se unam um ao outro” (39: 98). E encontro de duas realidades numa só, ou melhor, expressão da única realidade sob outra forma. O símbolo é inferior à realidade sim-bolizada, mas por intermédio daquele o homem se aproxima desta, restabelecendo a unidade primordial. Por isso ele está presente em todas as religiões, cujo sentido é exatamente esse de religar mundo humano e mundo divino. Entende-se, dessa forma, que a relação do símbolo com a coisa simbolizada seja profunda, de essencialidade.

Todos os elementos da natureza, animais, plantas, pedras, são símbolos, respondendo à necessidade de exprimir o invisível e o ima-terial por meio do visível e do material. Por essa razão, o templo cris-tão não poderia deixar de ter forte carga simbólica, especialmente no período românico. A planta em cruz terminando numa cabeceira com várias capelas expressava a concepção de que a igreja era o próprio corpo de Cristo, daí o portal ser um arco do triunfo para se entrar no Reino de Deus.

O belicismo

Esta característica da mentalidade medieval decorria da presença constante daquelas manifestações sagradas nas suas duas modalida-des, vistas do ponto de vista humano, benéficas e maléficas. Elas prolongavam no palco terreno a luta que envolvia temporariamente todo o universo. Os poderes negativos constituíam-se numa realidade palpável para aquela sociedade de tempo rigidamente dividido entre dia e noite, sem luz artificial eficiente, na qual as trevas eram fortemen-te sentidas. Sua presença cotidiana era indisfarçável e esmagadora. As atividades humanas ficavam limitadas às horas diurnas. A noite era o momento do desconhecido, portanto do assustador. Significativa-mente, ela era circunstância agravante para a justiça medieval

O contratualismo

Por fim, do belicismo derivava o contratualismo, estrutura mental que via o homem ligado, com os correspondentes direitos e deveres, a uma ou outra daquelas forças universais em luta. A opção pelo Mal dava origem ao chamado pacto demoníaco, como na conhecida histó-ria de Teófilo. Querendo ser nomeado vigário, ele recorreu aos servi-ços de um judeu que o levou até a presença do Diabo, de quem se tornou “bom vassalo” após renegar Cristo e Maria. Numa carta entre-gue ao “rei coroado” do Inferno, ele formalizava o acordo, e obteve então as glórias e vantagens que desejava. Depois, arrependido, pediu ajuda à Virgem, “porta do Paraíso”, para recuperar aquela carta, pois “isto foi o pior”, e sem reavê-la não poderia romper seu trato com Sa-tanás. A Virgem o ajudou, o contrato demoníaco foi queimado e ele pôde ter sua alma salva.

O significado da Idade Média

Após os exageros denegridores dos séculos XVI-XVII e os exalta-dores do século XIX, hoje temos uma visão mais equilibrada sobre a

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Idade Média. É verdade que a divulgação que ela conheceu em fins do século XX fora dos meios acadêmicos — inúmeras publicações cientí-ficas e ficcionais, filmes, discos, exposições, turismo etc. — nem sem-pre implicou uma melhor compreensão daquele período. Mas reflete um dado essencial: a percepção que se tem da Idade Média como matriz da civilização ocidental cristã. Diante da crise atual dessa civili-zação, cresce a necessidade de se voltar às origens, de refazer o caminho, de identificar os problemas. Enfim, de conhecer a Idade Média para conhecer melhor os séculos XX-XXI.

A longa Idade Média

Os quatro movimentos que se convencionou considerar inaugura-dores da Modernidade — Renascimento, Protestantismo, Descobri-mentos, Centralização — são em grande parte medievais. O primeiro deles, o Renascimento dos séculos XV-XVI, recorreu a modelos cultu-rais clássicos, que a Idade Média também conhecera e amara. Aliás, foi em grande parte por meio dela que os renascentistas tomaram contato com a Antiguidade. As características básicas do movimento (individualismo, racionalismo, empirismo, neoplatonismo, humanismo) estavam presentes na cultura ocidental pelo menos desde princípios do século XII.

A herança medieval no século XX

O patrimônio linguístico ocidental é quase todo medieval, já que, com exceção do basco, idioma cujas origens continuam desconheci-das para os especialistas, às demais línguas formaram-se na Idade Média. Uma terça parte da população mundial atual, isto é, 2 bilhões de pessoas, pensa e se exprime com instrumentos linguísticos forja-dos na Idade Média. De fato, ao lado do latim legado pela Antiguidade — e durante a Idade Média empregado nos ofícios religiosos, nas atividades intelectuais e na administração, mas língua morta no senti-do de não ser mais língua materna de ninguém —, no século VIII nas-ceram os idiomas chamados de vulgares, falados cotidianamente por todos, mesmo pelos clérigos. Correndo o risco de simplificar em de-masia um processo longo e complexo, podemos dizer que aqueles idiomas se formaram da interpenetração — em proporção diferente a cada caso — do celta, do latim e do germânico.

A herança medieval no Brasil

Mesmo no Brasil, que vivia na Pré-História enquanto a Europa es-tava na chamada Idade Média, muitos elementos medievais continuam presentes. A colonização portuguesa introduziu práticas que, apesar de já então superadas na metrópole, foram aqui aplicadas com vigor, inaugurando o clima de arcaísmo que marca muitos séculos e muitos aspectos da história brasileira. Luís Weckmann detectou com perti-nência a existência de uma herança medieval no Brasil, porém limitou sua presença apenas até o século XVII. E, na realidade, ela continua viva ainda hoje nos nossos traços essenciais.

Conclusão - O nascimento do Ocidente

Homem atual se reconhece mais nas coisas superficiais, de origem recente, do que nas essenciais, que vêm daquela época. Este é um grave problema do mundo atual, no qual os meios de comunicação de massa uniformizam, apagam e constroem fatos incessantemente. Desta forma, há um afastamento da cultura, baseada no indivíduo, na inquietação, na interrogação, não em respostas prontas e rápidas.

A fraqueza do homem medieval era sua força, pois gerava desejos, motivações. A força do homem atual é sua fraqueza, pois gera desilu-sões. Na verdade, foi conseguindo ao longo dos séculos satisfazer aqueles desejos que o homem chegou à situação atual. Satisfação de desejos que se deu mais no plano material do que no espiritual, daí certa sensação de vazio, de falta de sentido das coisas, que a arte e a literatura contemporâneas expressam fartamente. De certa forma, a crise da civilização ocidental deve se ao descompasso entre o externo (contemporâneo) e o interno (medieval). E uma excessiva valorização do primeiro em detrimento do segundo. E uma espécie de esquizofre-nia coletiva e social. Em razão disso, os crescentes prestígio e popula-ridade dos estudos sobre a Idade Média têm algo, inconscientemente, de busca de reintegração dos dois planos.

Por: Gisele Finatti Baraglio

13. MONTEIRO, Ana Maria; GASPARELLO Arle-te Medeiros e MAGALHÃES (Orgs.). Ensino de História: sujeitos, saberes e práticas. Rio de

Janeiro: Editora Mauad X, 2009

Alguns estudos críticos revelam uma nova concepção acerca dos currículos e sobre o ensino. Estes estudos destacam o caráter social de ambos. Eles ainda colocam em evidência a compreensão de que as “diretrizes e práticas envolvidas na educação são intrinsecamente éticas e políticas.”

O questionamento do que acontece ou que pode acontecer nas es-colas orientam a discussão sobre a necessidade de se mudar a cultura escolar. Esta necessidade é baseada na exigência de uma escola que seja ativa na dinâmica do presente histórico.

O trecho seguinte tem em vista a concepção de um currículo que se altera e se constitui na medida em que procura uma harmonia com o seu próprio tempo.

CURRÍCULO E ESCOLA

Ao se analisar a escola hoje em dia, pensa-se imediatamente em sua crise e problemas, como seu anacronismo de conceitos e estrutu-ras. Os estudos recentes apontam para a existência de uma aborda-gem mais crítica dos problemas escolares. De certa forma, a educação e os currículos perderam parte da influência americana e ganharam a europeia. Central nestas teorias críticas é a colocação do currículo no

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seu contexto social e cultural, que deixa de lado a ideia de neutralida-de. Além disso, encara o currículo com algo historicamente construído e, portanto, passível de questionamentos. O currículo ainda é visto como “um lugar de produção e política cultural.” Os elementos que o constituem são princípios de “criação, recriação” e “contestação e transgressão”.

No entanto, a mudança do quadro encontrado nas escolas esbarra na dificuldade de se romper com o passado. Nossas escolas preser-vam ainda uma estrutura hierárquica, onde permanece, por exemplo, a falta de relações entre as disciplinas. Esta característica marcante da estrutura escolar dificulta a criação de um ambiente escolar que cor-responda às exigências de nosso tempo. Ou seja, não facilita a intera-ção entre os saberes e mesmo entre outras instituições sociais.

Para que possa ocorrer qualquer avanço neste sentido, é necessá-rio estabelecer diversos pontos sobre a relação entre a História e o currículo, além do papel social e político de ambos e do ensino, princi-palmente o de História. Para isto, pode se avaliar as reformas curricu-lares já realizadas e a introdução de novos métodos de ensino. Além disso, estabelecer a influência dos conceitos da própria historiografia neste ensino ao longo do tempo.

A QUESTÃO REGIONAL DO CURRÍCULO

Na década de 70 do século XX, sugiram diversos trabalhos acadê-micos sobre História regional. Ao mesmo tempo, diretrizes da educa-ção estimularam a criação de livros que apresentassem um conteúdo de História regional destinados ao primeiro grau. O objetivo era apro-ximar o ensino do aluno, mas nem sempre isto era eficaz e benéfico. Pois distanciava o aluno do processo histórico nacional. Além disso, nesta mesma época era criada a disciplina de Estudos Sociais, que agrupava História e Geografia.

A partir da questão da eficácia e benevolência do enfoque regional no ensino, surgem questões com a necessidade de se relacionar o espaço e o tempo. Preocupados com a questão regional e críticos geógrafos defendem esta relação. De um lado, tanto o espaço e o tempo são passíveis de cortes, seleções e divisões. Ara os geógrafos, o espaço é algo que possui uma temporalidade, ou seja, está sujeito a alterações ao longo do tempo. O espaço está relacionado com o de-senvolvimento das sociedades humanas e se transformam a partir de suas ações.

Por outro lado, há também um aspecto político importante que sur-ge a partir da questão regional: as fronteiras. A política não fica restrita à fronteira espacial. Além disso, os recortes espaciais, temporais e culturais carregam conceitos instituídos que nem sempre são fidedig-nos à realidade. Desta forma, se o regionalismo ficar preso a recortes tradicionais, pode atrapalhar o entendimento global. Mas se for direci-onado para uma visão crítica e comparativa, ele pode ampliar a com-preensão da dinâmica social e política e do processo histórico.

Portanto, a questão regional, embora introduzida de forma estática e autoritária em nossa escola, pode contribuir para uma compreensão dinâmica das relações sociais. Ela pode estimular a inter-relação entre o micro e o macro, entre a região e o país, entre os saberes.

HISTÓRIA E ENSINO DE HISTÓRIA

No Brasil, devido a influência europeia, principalmente francesa, o currículo privilegiava uma História Universal. No entanto, este currículo transformou-se e a História do Brasil ganhou mais espaço. Porém, o ensino continuou concentrado no modelo eurocêntrico, onde os gran-des acontecimentos e a política são privilegiados.

O ensino nas escolas baseava-se em um corte entre o passado e o presente, privilegiando o primeiro. Apesar disso, vários professores procuravam quebrar este quadro, problematizando o presente e o passado. Desta forma, podemos perceber que o tradicional e uma nova proposta curricular conviviam no mesmo espaço, na escola. Ao lado das mudanças, havia a as divisões cronológicas e espaciais de uma visão tradicional da História e do ensino.

As inovações derivadas da historiografia recente dizem respeito ao conceito de tempo, objeto e fontes. Na História tradicional o tempo era visto como algo absoluto e imutável. Com inovações da Física, como as teorias quânticas e da Relatividade, este tempo se torna estritamen-te associado ao espaço e dinâmico. Isto se reflete na História. A inter-relação entre o passado, o presente e o futuro substitui a concepção de tempo linear. Assim, os historiadores assumem uma atitude diferen-te frente aos seus objetos. Os diferentes níveis de tempo, suas rela-ções e seus diferentes ritmos influenciam o dinamismo com que passa a ser percebido nas relações humanas. Isto origina uma trama históri-ca, onde os acontecimentos não tem sua existência isolada. Cabe ao historiador compreendê-los e encontrar a teia que os liga à algo mais geral ou os torna específicos dentro do contexto. Como qualquer acon-tecimento pode ser analisado desta forma, o historiador ganha a liber-dade de ampliar sua concepção de documentos e fontes e sua forma de abordá-los. Busca-se também apoio em outras ciências.

POR UM NOVO CURRÍCULO DE HISTÓRIA

Tais questões e inovações estimulam a transformação dos currícu-los e possibilitam o ensino de uma História temática. Este tipo de abordagem possibilita ainda trabalhar com diferentes visões e grupos sociais. O estudo das experiências de um grupo social implica neces-sariamente o confronto com outros grupos. Desta forma, a abordagem temática contribui para uma visão crítica da sociedade e da História. Neste sentido, a História Local pode ser uma metodologia interessante que parte do particular para questões mais gerais e complexas. Além disso, pode promover relações “interdisciplinares,” através de traba-lhos coletivos na pesquisa local. Mas partir da História local pode con-tribuir, principalmente, para a compreensão do aluno do seu lugar e seu papel na sociedade, propiciando uma visão crítica.

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14. PINSKY, Carla Bassanezi e LUCA, Tania Regina de (Orgs.). O historiador e suas fontes.

São Paulo: Contexto, 2009.

Muitos professores sentem pavor em trabalhar biografias em sala de aula, isso porque quando eles estavam em sala de aula, como alunos, só estudavam biografias, as aulas eram maçantes, isso tornava as aulas de história chatas. Portanto, isso se tornou para eles, professores, um certo trauma, pois se trabalharem esse tipo de material nas aulas de história pode não haver um bom retorno, da parte dos alunos, mas depende da didática e a forma de como o professor irá passar esse conteúdo.

Como sabemos a palavra biografia quer dizer uma história de vida, as-sim vimos na escola que as biografias geralmente são de pessoas que contribuíram para a História, tanto a Antiga quanto a recente, como por exemplo, Alexandre, o Grande, Hércules, Clarice Lispector, Monteiro Loba-to, entre outros.

Hoje, a biografia se tornou um gênero de escrita em que transitam jor-nalistas, historiadores e ficcionistas com seus estilos e objetivos específi-cos.

As Biografias antigamente eram consideradas as “Histórias dos gran-des homens”, depois foi considerada gênero de segunda classe, após o surgimento da História Analítica e estrutural.

Biografias no ensino

A biografia pode ser bem utilizada em sala de aula, partindo da história do biografado é possível perceber as características da sociedade naquela época e em que período se encontrava o personagem.

A biografia é um gênero literário popular, o qual muitas pessoas têm in-teresse na vida particular de outras.

Para que os alunos possam se interessar pela História em geral, princi-palmente por momentos históricos, o professor deve oferecer ferramentas básicas para que eles possam conhecer e fazer relações dos personagens da biografia trabalhada com o momento histórico em que este vive na sociedade.

Sugestões pedagógicas

É importante que o professor saiba o que deve abordar em sala de aula e o quais são os interesses de seus alunos, depende muito da realidade de cada sala, pois nem sempre um tema trabalhado em determinada sala pode dar certo, se trabalhada em outra.

Para iniciar uma aula, pode-se fazer uma abordagem de personagens que participaram de momentos históricos importantes, assim, o professor pode realizar com os alunos uma lista desses personagens e seus mo-mentos históricos, e por semana ou por um tempo indicado pelo professor, eles podem estar levantando pesquisas, fazendo abordagens sobre os acontecimentos, o que contribuíram para a história, quais foram suas lutas, etc., assim, o professor fará com que os alunos tenham autonomia para estudarem aquilo que os agradam. Assim, a aula se tornará mais produtiva e satisfatória para o professor.

Lembrando que, é importante o professor apresentar materiais e ter bi-ografias e histórias sobre os personagens escolhidos e o tempo em que viveram, para se relacionarem melhor com as pesquisas colhidas pelos alunos.

Gênero

Muitas pessoas, exceto historiadores só vêem a palavra gênero como diferenciação de sexo, masculino e feminino, mas o significado não é somente deste para a língua portuguesa, como esta diferenciação, mas sim as “questões de gênero” na História.

Na história utilizamos para marcar uma distinção entre cultura e biolo-gia, social e cultural.

Gênero se trata, portanto, da construção social da diferença sexual. Is-to é, no sentido em que a sociedade entende por “ser homem” e “ser mu-lher”, e também o que consideram por feminino e masculino. Tratamos desse modo, como conceitos históricos.

Afinal, para quê falar em gênero num curso de história? Uma das prin-cipais funções das aulas de história é fazer com que os alunos compreen-dam a historicidade de concepções, mentalidades, práticas e formas de relações sociais.

Os papéis considerados femininos ou masculinos foram se transfor-mando ao longo dos anos, pois, antigamente as mulheres pobres, escra-vas eram consideradas as “menos mulheres” ou até “não mulheres”, já as “mulheres” eram as senhoras burguesas, da alta sociedade, a transforma-ção foi tão brusca que hoje as mulheres estão tendo seu valor em empre-sas, como funcionárias excepcionais, dedicadas, são mais valorizadas. Uma transformação forte também foi a luta contra o preconceito ao ho-mossexualismo, que ainda é bastante discutida. Mas está mais aceitável na sociedade. Embora, há muitos anos atrás, já havia relações entre ho-mens, era comum no contexto em que viviam.

Quando debatemos isso em sala de aula, os alunos têm uma visão mais crítica de suas próprias concepções, bem como das regras sociais e verdades apresentadas como absolutas e definitivas em relação à questão de gênero.

Uma atividade bastante interessante de ser realizada com os alunos é desenvolver uma pesquisa na qual os alunos farão uma entrevista com pessoas que se casaram nos anos 50, de como eram os relacionamentos entre homens e mulheres, diferenciá-los com os de hoje, fazer um debate apontando as características marcantes dessa época, enfim trazer materi-ais, bibliografias, discutir sobre essa questão de gênero, que pode ser entendida de duas formas, na questão da Língua Portuguesa e na História.

Pesquisas têm mostrado que movimentos sociais, rebeldias individuais, transformações econômicas, crises demográficas, entre outras coisas, podem servir para repensar os termos de gênero ou para reforçar concei-tos tradicionais sob novas aparências.

A realidade social define os parâmetros de escolhas possíveis dos su-jeitos históricos que, dentro das determinações de seu tempo (as “condi-ções objetivas”), também participam dos processos de construção, manu-tenção e contestação dos significados e das relações de gênero (e, con-

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seqeuntemente, da distribuição de poderes marcadas por concepções de gênero) em uma certa ordem social.

Sugestão de trabalhos pedagógicos relacionados a gênero

Em cada tema, o professor pode abordar as questões de gênero que considerar mais interessantes e de acordo com o tempo histórico em que estão envolvidos.

Por que não, apresentar aos alunos textos escritos por historiadores? Não existe mais a justificativa de que os textos são difíceis para que eles possam entender, sendo que estes textos são publicados para um público amplo, de linguagem média, sem perder a seriedade do assunto.

Lembrando também que os alunos gostam de desafios, de descobrir, manusear coisas novas, essa é uma boa oportunidade, principalmente se tratando de leitura num mundo tão tecnológico, essa é a oportunidade de conquistar os alunos também para a leitura.

Direitos Humanos

A necessidade da construção de uma História dos direitos humanos não é mais urgente que o imperativo de levar a discussão sobre os direitos humanos para dentro das salas de aula das escolas de nível fundamental, médio e superior, e também, para toda a sociedade.

A educação histórica, principalmente focando os direitos humanos é crucial para a educação, para o estudante, no que se diz respeito aos temas trabalhados em sala de aula, sem o conhecimento dos seus direitos reconhecido legalmente pelo Estado, ou sem a consciência crítica que o estimule à luta por novos direitos legitimamente aceitos pela sociedade.

Em torno dos direitos humanos há uma “batalha de ideias”, uma “luta por hegemonia”, ou seja, uma disputa entre concepções ideológico-culturais diversas, que se enfrentam em nome da afirmação da sua inter-pretação sobre um determinado fato, processo ou fenômeno social em relação às interpretações concorrentes, transformando uma visão de parte, para beneficiar um público geral. Temos então a luta pela igualdade, pelo direito de ir e vir, pelo direito de viver livre, ter condições de sobrevivência, de cidadania, de saúde, educação, respeito.

Direitos humanos, consciência histórica, revoluções burguesas, pen-samento político, direitos humanos e conflito social, história do Brasil con-temporânea, etc., são temas que podem e devem ser abordados nas aulas de história, para que desenvolvam no aluno capacidade de reflexão histó-rica, por intermédio da discussão de determinados assuntos selecionados de acordo com a série em que se encontra o grupo de alunos.

O professor deve trabalhar esses temas não perdendo de vista a exi-gência do ensino de uma História geral integrada.

Ainda, se tratando da ação pedagógica, o professor pode mesclar ensi-no de novos conteúdos, cultivar ética da esperança e incentivá-los à terem um juízo crítico reflexivo, ainda que seja difícil mudar a sociedade pelo modo em que está fundamentada, mas não quer dizer que seja impossí-vel, basta querermos mudar e fazer para que se dê uma mudança.

Cultura

São diversos os temas que envolvem a palavra cultura e o professor de ensino básico vem tomando contato com elas: pluralidade cultural, cultura

da paz, currículo cultural, multiculturalismo, cultura de massa, identidade cultural, entre outros.

Quando ouvimos esse tema na mídia, é comum vir acompanhado a in-clusão social e integração.

A relação que a cultura tem com a escola é mais sublime, a cultura foi incorporada às políticas educacionais, esta, visa três objetivos: o reforço da auto-estima dos alunos; o fortalecimento das identidades sociais; e a ampliação dos repertórios culturais.

De modo tradicional, a cultura está ligada às ideias, as artes e a valores espirituais e formas simbólicas de uma sociedade. Tudo que está relacio-nado a algo simbólico também está à cultura.

Entretanto, a cultura é bem vista e bem debatida no ponto de vista, acadêmico, pois na sociedade ainda há os preconceitos, os contras, diver-sos outros ponto negativos que se relacionam a ela.

A escola é o ambiente em que mais se vê “culturas”, como foi dito, a cultura está relacionada a ações, ideias e valores de um determinado povo, ou de uma região, cada qual com sua cultura. Nosso país é rico em cultura, e são diversas e muito preciosas. Infelizmente na escola, há muito preconceito, exclusão, por mais que seja um ambiente educacional, é também um ambiente em que encontramos preconceito, violência, desres-peito a crianças, desrespeito aos profissionais que nela exercem suas profissões.

Sugestões de trabalhos

Existem propostas de acordo com os PCN’s, que são quatro grandes eixos de discussão, acompanhados de temas correlatos (entre parentes) no ramo acadêmico se tratando de cultura.

Este é um dos temas valorizados nas propostas curriculares mais re-centes.

Esse eixo de debate pode, por exemplo, ser aplicado nos seguintes temas de História:

· O conceito de civilização;

· Os desenvolvimentos das civilizações;

· As tensões entre o mundo cristão e o mulçumano, a partir da Idade Média;

· Reforma e Contra-Reforma;

· Guerras Religiosas;

· Colonização da América e contatos entre europeus e indí-genas;

· O Brasil holandês do século VXII;

· Escravidão africana;

· Imperialismo;

· Racismo e cientificismo;

· Totalitarismo e guerras mundiais.

A cultura de massa e o problema do consumo cultural têm sido grandes desafios para a cultura escolar. A escola tem perdido seu lugar privilegiado

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na reprodução de valores sociais, o que há pouco tempo atrás era funda-mental e havia uma grande valorização para este espaço institucional.

Os valores, símbolos em geral, heranças das gerações passadas, constituem o patrimônio cultural de uma sociedade, ou até mesmo, de acordo com sua ampla quantidade, da própria humanidade, de todos em geral.

Ideologicamente, o patrimônio material ou imaterial pode servir tanto para conservadores quanto para revolucionários.

O importante é que o professor deve tratar o patrimônio como algo vivo e pulsante, que, mesmo quando se apresenta em ruínas, pode nos dizer muita coisa, há uma história ampla por trás de tal objeto.

A reflexão escolar pode se debruçar sobre as relações entre cultura e política, outra importante dimensão da vida humana. Todos esses itens devem ser abordados e bem desenvolvidos na escola, a linguagem em que o tema da cultura é fundamental e patente é a propaganda política.

Entretanto, no que se diz respeito à propaganda política, esta visa obter o consenso em torno de ideias e propostas ou o apoio, pela persuasão e sedução dos sujeitos receptores (nós, eleitores), para grupos partidários e líderes em disputa pelo poder.

Alimentação

Quando observamos os motivos pelos quais se deram muitas guerras, revoluções, conflitos sociais, etc, podemos perceber que podem existir razões diretamente relacionadas a um ato básico cotidiano necessário ao funcionamento biológico do organismo humano: a alimentação.

Podemos compreender a história também pelos seus hábitos e costu-mes alimentares.

A alimentação está ligada a questões culturais e religiosas, a distinções sociais, étnicas, regionais e até de gênero, a problemas ambientais, ao desenvolvimento econômico, às relações de poder e a tantos outros as-suntos que demandam a atenção dos historiadores. Contudo, por isso, o tema da alimentação é tão importante para a História.

A busca pelos recursos alimentares mobilizou nossos ancestrais desde os primórdios do processo de humanização.

A produção de alimentos figurou também no que diz respeito à estrutu-ra feudal.

Atualmente, a alimentação é um tema bem desenvolvido na mídia, sendo debatido em torno de um cenário de fome e miséria reinante na maior parte do planeta.

Por que discutir a alimentação em sala de aula?

Os alunos têm que lidar com assuntos que estão em “ação” na atuali-dade, os acontecimentos ambientais, as tragédias naturais nos levam a esse assunto, se tratando de produção de alimentos, principalmente, pois é a natureza quem nos fornece os alimentos que precisamos para sobrevi-ver, e estes devem ser preservados e valorizados por toda a humanidade.

Corpo

Numa sociedade em que os jovens estão cada vez mais rebeldes em questões que se dizem respeito ao seu próprio corpo, é importante tratar

esse assunto em sala de aula. Os hábitos, linguagens e elementos de consumo juvenil são tantos que surpreendem quem não faz parte do “uni-verso jovem”.

Eles se juntam em grupos que se identificam, aqueles que gostam de tatuagens, piercings, rock, ou aqueles mais “light’s”, que são menos rebel-des, enfim, cada um na sua “tribo”. O professor deve saber lidar com es-ses variados tipos de comportamentos e opiniões diferentes.

Como objeto de investigação, o corpo é plural. Ao mesmo tempo, mate-rial e imaterial.

São tantos os temas que podem ser abordados em aulas que desen-volva o tema “corpo”: medicalização da sociedade; eugenia e genoma; genética; moda, idolatria de marca e consumo; hábitos alimentares; trans-figurações corporais e o corpo nas aulas de história.

História Regional

Até o século XVIII, as regiões do mundo constituíam-se em “países”, eram não somente a unidade apropriada para o estudo das sociedades, mas porque eram também os habitats dos homens e mulheres pré-modernos.

A expansão da modernidade, do capitalismo, do Estado e das filosofias universalistas (típicas do Renascimento e do Iluminismo) tentou pôr fim às singularidades e autonomias das antigas regiões.

A região, podemos dizer que, é uma categoria histórica, a história regi-onal não é simplesmente a história que lida com pequenas porções de um país: uma área determinada pela geografia física, um estado ou bairro, enfim, ela é aquela que toma o espaço como terreno de estudo, que en-xerga as dinâmicas históricas no espaço e através do espaço, isso obriga o historiador a lidar com os processos de diferenciação de áreas. Ela é a que vê o lugar, a região e o território como a natureza da sociedade e da história, e não apenas como o palco imóvel onde a vida reina.

É importantíssimo relatar e ensinar este tema em sala de aula, pois num mundo globalizado, a forma do local e do regional faz face ao global e é através da revalorização de sua cultura e de seu ambiente que este fato será bem compreendido e bem valorizado pelos alunos.

Vejamos algumas sugestões de temas que podem ser abordados em sala de aula se tratando do tema: História regional.

· Análise de corografias, memórias e sites;

· Crítica dos textos da “Macro-História”;

· Observação direta de sobrevivências e permanências;

· Leitura da literatura regional e de relatos de viajantes;

· Análise dos temas e do artesanato, música e arte;

· Exibição comentada de documentos e programas de TV;

· Entre outros que possam ser elaborados pelo professor.

Ciência e Tecnologia

O que seria de todos nós, seres humanos, sem a ciência, sem seus avanços na área medicinal, descobertas sobre nossa existência, dentre outras descobertas e estudos importantes?

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Não podemos viver também sem a tecnologia, cada “minuto” mais avançada, com materiais, ferramentas inovadoras e sensíveis a nossos olhos. O mundo passa a ser dependente destas duas áreas significantes para nossa sobrevivência.

O que podemos estudar que esteja relacionado à ciência e a tecnolo-gia? A história das ciências e das tecnologias; a mudança de enfoque da história das ciências e das tecnologias, o papel da ciência na saúde, o papel da tecnologia no ensino, entre outros.

Temas significativos para abordagem da ciência e tecnologia em sala de aula:

· Ciência e tecnologia no Brasil colonial;

· Cultura religiosa versus pensamento científico;

· O lado desconhecido de José Bonifácio e o iluminismo em Portugal.

Meio Ambiente

O papel do professor relacionado a este tema é imprescindível, pois a consciência da dimensão global da crise ambiental impôs um desafio de vida ou morte para as gerações do século XXI, um desafio que nos obriga a agir de modo radicalmente diferente. Mas nem todos os abalos nos fazem aprender e fazer diferente, muitas pessoas ainda teimam em agir errado, cometer os mesmos erros, sem refletir e compreender que temos muito que fazer para “ressuscitar” a natureza, valorizá-la mais, tratá-la como um bem precioso, sem preço, embora já tenhamos pagado todo mal causado à ela, infelizmente com vidas, e muitas. Se continuarmos sem dar ouvidos a tudo que nos acontece, teremos que pagar novamente, e mais tragicamente.

Portanto, aí está uma boa discussão para professores e alunos em sala de aula, pois é uma matéria riquíssima e muito abrangente, multidiscipli-nar. Basta que ambos queiram desenvolver e produzir trabalhos enrique-cedores.

História Integrada

A história é uma questão de identidade. Tem muito a ver com que os povos dizem sobre seu passado.

Muitas vezes, os professores acabam sendo reprodutores de livros di-dáticos, sem fazer com que os alunos aprendam a gostar da matéria, interajam com ele. Aprender história deve ser considerado uma das mais importantes concepções dentro da escola, os alunos compreendem melhor sua essência, para que ela serve, e o que ela tem a ensinar as pessoas.

A história ensinada pode simplesmente servir a projetos políticos ou não. Ela pode, por outro lado, servir de espelho, para sabermos quem de fatos somos, ou de onde viemos.

A história integrada deve contemplar integrar, totalizar. O Brasil, inte-grado à história da humanidade.

Gabriele Piza de Alexandre

15. REIS, José Carlos. As identidades do Bra-sil: de Varnhagem a FHC. Rio de Janeiro: Fun-

dação Getúlio Vargas, 2002.

VARNHAGEM: O ELOGIO DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA

É a partir dos trabalhos de Francisco Adolfo de Varnhagem, que a história do Brasil passa a ter um aspecto investigativo alicerçado em uma ideologia que concomitantemente defendia e valorizava o grande latifundiário de origem agropecuária como também a mudança de regime de governo na jovem nação que apresentava-se ao mundo. Em seus trabalhos percebe-se a preocupação de apresentar a colonização portuguesa no Brasil como um marco diferencial para o progresso científico, religioso, econômico do país.

Somente o elemento branco com um viés luso seria capaz de for-matar uma grande nação nos trópicos, como também lançar os olha-res para um futuro na qual a população seja em sua totalidade de origem euro descendente, para tal apoia o embranquecimento da po-pulação proposto pelo Estado monárquico que criou políticas públicas de estilo eugênico.

Quanto os trabalhos nas grandes fazendas Varnhagem, em sua época foi um ferrenho crítico da ação comercial do tráfico negreiro, não concordava com a presença do negro-escravo em território nacio-nal, pois o mesmo ao invés de acrescer uma nova metodologia que viesse a incrementar a economia nacional.

Contrariamente provocou sim uma dependência do senhor, como também do jovem Estado brasileiro, entendia que o negro deveria estar no país para ser trabalhador assalariado. Pois, na condição de escravo aceitava tal condição de estar protegido pelo fazendeiro, en-tendia que o serviço deveria estar a cargo dos indígenas ora defendi-dos pelos padres jesuítas, que utilizava dos serviços dos mesmos. Para Varnhagem os bandeirantes não fizeram tanto mal ao país, como os traficantes negreiros.

Já referente ao jovem Estado brasileiro, o historiador era um ideó-logo do regime monárquico, pois o mesmo além de promover a liber-dade sem a perda de vínculos com Portugal, pois era a mesma família real que comandaria os destinos da jovem nação, cristã mantendo todos os privilégios dos grandes senhores de terra em assuntos fundi-ários.

Minimizou os movimentos sociais que surgiram como também o pensamento visando um novo regime de governo que viesse a perda dos laços com Lisboa, e o desapego aos ensinamentos cristãos que tinha a Santa Madre Igreja Católica como educadora.

Varnhagem redescobriu o método crítico da pesquisa arquivística do século XIX, como também aprimorou a mesma. Para J.H. Rodri-gues devido ao tamanho de sua obra, ele foi o maior historiador de sua época, uma obra que teria que ser lida por alguém que quisesse ser historiador.

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Segundo N. Odália, mesmo que Varnhagem estivesse atento e atualizado com toda a produção intelectual e histórica de sua época, foi parcial e apresentou as elites brancas e a família real como promo-toras do progresso nacional. Em outras palavras os seus trabalhos estavam na contra – mão do interesse dos brasileiros de sua época. A crítica de Capistrano, é que Varnhagem foi muito mais um cronista do que um historiador, perdendo-se em acontecimentos irrelevantes para o país.

Varnhagem utilizou-se da ação de olhar para o passado, pois nele encontraria as ideias que continuam a manter a lei e a ordem vigente representada em um poder centralizador e despótico. Deste modo entende-se porque o mesmo é contra um outro regime e forma de governo.

Anos 1930: Gilberto Freire O relógio da colonização portuguesa

O autor de Casa grande e senzala, tido como um neovarmhagenia-no faz um relógio da colonização do Brasil pelo português, e utiliza-se da mesma como base para aceitarmos a ação de ocupação dos portu-gueses, e nunca como uma invasão. Tem o devido reconhecimento dos mais importantes cientistas sociais de sua época, tais como: L. Febvre, F. Braudel, R. Barthes e outros.

Para alguns o mesmo não é tido como evolucionista, e progressis-ta, não utiliza a razão como um dos pressupostos em seus trabalhos, os seus livros possuem uma abordagem histórica.

Ao contrário da obra de Varnhagem, na sua há uma unidade nacio-nal e original, tudo isto graças ao português, como também um novo olhar sobre o país e das elites em crise.

As divergências de opiniões entre Freyre e Varnhagem são várias, dentre elas poderemos destacar:

Negro. Freyre aceitava a presença dos negros, como também valo-rizou os mesmos, para ele o latifúndio e a escravidão forma opções acertadas conseqüências da visão empreendedora do português.

Varnhagem entendia que não havia a necessidade da presença fí-sica do negro em nosso país, pois defendia sim uma raça pura sem muita miscigenação.

Raça – Freyre ao lançar um olhar no país, percebia que o mesmo tem a cultura como um diferencial qualitativo. Para ele a mestiçagem foi um grande feito de português.

Varnhagem pensava no Brasil tendo o racial como uma busca de unidade nacional.

Momento político – Freyre vivia em um país que possuía um parque industrial, e que estava entrando assim na modernidade podendo esboçar um projeto futuro. O mundo ocidental vivia a conseqüência da quebra da bolsa de valores de Nova Yorque, e o período entre guerras e a perda do português como exemplo cultural, familiar, religioso e social.

Varnhagem encontrava-se no período de transição de colônia para um Estado soberano que manteve a monarquia enquanto forma de governo.

Na opinião de alguns analistas Gilberto Freyre e Capistrano de Abreu possuem a mesma opinião na interpretação de assuntos em níveis nacionais, segundo Astrogildo Pereira ambos tomavam por sujeitos da história nacional a massa anônima, rejeitando a história nacional como também os seus personagens que tinham como objeti-vo refletir em suas ações os interesses das elites nacionais.

Tendo a história social, e a dos costumes como norte, Capistrano em relação a Freyre precedeu-o em algumas análises, como o dia a dia dos serviços de escravos na casa grande, pois o mesmo possuía uma crítica a democracia racial. Diferentemente de Freyre o mestiço era colocado à margem da sociedade, o motivo por ser todo como incapaz de executar alguns serviços. Para estes serviços significavam ter sangue puro, mas com o passar do tempo os mulatos romperam algumas fronteiras anteriormente pré-estabelecidas, deste modo pro-vocaram alterações de suas condições sociais.

Freyre manteve a visão de Varnhagem, isto é, um olhar conserva-dor, escravagista, patriarcal, aristocrático, elitista. O outro era oposto,

Já os marxistas foram opositores de Gilberto, sempre em suas aná-lises aparecia o conflito de classes embasado na dialética pensada por Karl Marx, para os mesmos Freyre era um intelectual a serviço das oligarquias que estavam em crise, Freyre contra-argumentavam que os membros da oligarquia foram os sujeitos ativos da civilização em nosso país, isto é, aqueles que não somente estimularam o progresso nacional, e foram os únicos de esboçar um pensamento visando o bem do país.

Em sua obra Casa grande e senzala, a harmonia ocorreu entre os diferentes grupos étnicos de uma maneira democrática e equilibrada.

Quando valorizava a ação empreendedora do branco português, não apresentava de um modo aberto as relações ora de conflito do branco em relação ao índio e ao negro. Como também não valorizava os conhecimentos de ambos para o progresso científico e econômico no período que ia da segunda metade do século XIX até a república velha.

Como Vanhagem devido ao seu conservadorismo não analisou os movimentos sociais que surgiram no Brasil colônia e império, minimi-zou os mesmos e tornou sem efeito as reivindicações sociais apresen-tadas por tais movimentos que estabeleceram um novo paradigma de refletir os acontecimentos presentes em sua época.

Quando Freyre encontrava-se em momento de crise apresentou o seu relógio da colonização do Brasil pelo português, olhando ao pas-sado sem o devido senso crítico ora desconsiderando, ora minimizan-do os erros de ações do poder público, já ao futuro ele lançava um olhar pessimista.

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O mesmo encontrava-se em dois debates, o primeiro era ideológico com os marxistas, o segundo era no campo político-regionalista, isto é, as oligarquias nordestinas de origem fundiária, desde a abolição da escravatura estavam perdendo poder no cenário nacional, já para as oligarquias paulistas tinha a cultura do café como uma moeda de troca visando o poder ou influenciando aqueles que ocupavam o mesmo.

Freyre tido como um polêmico por uns enfrentou os marxista-paulistas, durante o governo Vargas teve a sua residência invadida por policiais por ter defendido negros, durante a ditadura militar por ter estimulado o ódio racial.

Para Reis, a contribuição da obra Casa grande e senzala foi esti-mular um profundo debate em torno do passado, presente e futuro do país. Para o mesmo atualmente nem padres e marxistas remeteriam a obra ao ostracismo político e intelectual brasileiro, afirmando que a historiografia norte-americana quanto à Nacional tomaram por base tal obra quando o assunto é a escravidão.

Durante as décadas de 80 e 90 apresentou-se a ideia de que o es-cravo acomodava-se no sistema em busca de vantagens individuais, isto é, o mesmo é dócil ou maliciosamente resiste subvertendo as regras sociais a seu favor sua obra é considerada uma dentre os três livros produzidos nos anos 30 conjuntamente com Evolução política do Brasil (1933) de Caio Prado Jr., e Raízes do Brasil (1936) de Sérgio Buarque de Holanda.

Segundo Motta Gilberto teve a sensibilidade de expressar em seu trabalho o país de uma maneira diferentemente de sua época, não é um livro de ciências sociais, mas sim de cunho político. Algumas ques-tões deixaram os intelectuais brasileiros devidamente intrigados:

1) A miscigenação poderá influenciar os destinos da raça brasileira, causando assim um irreparável dano ao país?

2) A sexualidade desmedida, e o pecado sem a devida punição não teriam enfraquecido a raça brasileira?

3) O atraso que o Brasil encontra-se é devido à péssima influência débil do negro?

Freyre concorda com o marxismo referente à importância da técni-ca de produção econômica sobre a estrutura das sociedades conjun-tamente com as suas bases de moral, ele simplesmente optou em não fazer uma análise sócio-econômica do Brasil.

Para fundamentar a sua obra o mesmo colocou-se no lugar do se-nhor, isto é, o seu olhar partiu da casa grande em pleno século XX para o mundo em torno, deste modo explica-se o resgate de Varnha-gem que ao mesmo tempo serviu como um elo entre as forças escra-vagista e latifundiárias do período colonial e imperial, com o Brasil republicano do novo século.

Freyre afirma que a miscigenação teve sim na figura do bom portu-guês aquele que através da solidariedade, generosidade, democrático.

Foi um fator preponderante ao país, cujo alicerce poderá impulsio-nar uma consciência de seu passado e espelhando-se na mesma cogitando planos visando o desenvolvimento.

Teve a percepção de como a estrutura social de sua época, que é herdeira direta da do século anterior começava a ser questionada de uma maneira enfática por todos aqueles que apontavam tanto o negro, como o índio poderiam ascender socialmente, o que antes no século XIX a mobilidade social sempre foi dificultada entre os demais grupos sociais.

Gilberto reconhece no português não somente aquele que devido às circunstâncias, mas aquele que conseguiu aqui em terras do trópico constituir uma sociedade multirracial, as elites brasileiras não admitia em nome do embraquecimento a presença da impureza do negro, e do índio na constituição da sociedade nacional.

Capistrano de Abreu O surgimento de um povo novo: o brasileiro

Capistrano será ao mesmo tempo o leitor mais atento e crítico de Varnhagem, o segundo escreve quando a monarquia consolidava-se no poder enquanto forma de governo no Brasil, o primeiro começa a apresentar a sua interpretação do país quando o regime monárquico encontra-se devidamente

Em crise, pois a sociedade brasileira procurava novos parâmetros culturais, sociais, econômicos e políticos.

Após a guerra do Paraguai, o ambiente intelectual brasileiro era muito complexo, isto é um reflexo da sociedade brasileira que deixa-ram-se levar não mais pela cultura francesa, mas admitindo às influên-cias inglesa e alemã.

Contudo os mesmos perceberam a distância entre o que eles pro-duziam, em relação o dia a dia do brasileiro, Silvio Romero criticava o ambiente da intelectualidade brasileira, almejava a travar diálogo com o verdadeiro Brasil.

A geração de Capistrano do pós-guerra do Paraguai, rompeu com a velha interpretação da história nacional privilegiando o povo, e sua devida constituição étnica, divorciando-se do estilo varnhageniano de unicamente analisar o Estado Imperial. A formação intelectual de Ca-pistrano deu-se em um ambiente positivista, determinista, racista. A sociedade poderia ser estudada da mesma maneira com a objetivida-de que se estuda a natureza, pois a mesma submetia-se as leis gerais de desenvolvimento, e a ciência não levaria em conta as verdades trazidas pela tradição, pela religião, pela filosofia.

Euclides da Cunha, O. Vianna, Silvio Romero, Tobias Barreto, entre outros contemporâneos de Abreu discutiam sobre o darwinismo social como também defendiam um conhecimento empírico, histórico e anti-metafísico. Tobias Barreto não concordava com o cientificismo predo-minante em contrapartida prefere o historicismo alemão, segundo ele, há sempre um "resto" que a mecânica não explica; aliás, esse resto

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mecanicamente inexplicável é quase tudo quando se trata do homem. O que há, então, é um "todo inexplicável",

A intelectualidade brasileira encontrava-se dividida em dois grupos:

1°) Tendo a Escola de Recife como base de articulação distinguia a natureza e cultura, lutava ao cientificismo sociológico.

2°) O segundo grupo formado pela: Escola Politécnica do Rio de Janeiro, a Escola de Minas de Ouro Preto, o Colégio Pedro II, a Escola Normal, o Colégio e a

Escola Militares, a Escola Naval, as Faculdades de Medicina e Di-reito que formavam pensadores com os pensamentos de Comte, Spencer e Darwin.

Capistrano externa a divisão e conturbação da intelectualidade bra-sileira no final do século XIX, quando esteve em Recife sofreu a in-fluência do historicismo alemão, ao ir para a cidade do Rio de Janeiro quando esteve no Colégio Pedro II obteve um maior contato com auto-res positivistas franceses e ingleses.

Entre os analistas de Capistrano ora alguns denotam o positivismo do mesmo, como também ora outros denotam a presença da influên-cia alemã através do historicismo. Capistrano foi um dos iniciadores do histórico brasileiro que tem por objetivo redescobrir o país, com isso o ato de recuperar o passado do povo como também os seus costumes e hábitos, em detrimento do Estado imperial, português, e as elites luso-brasileiras que era à base do pensamento de Varnhagen. Capis-trano e Varnhagen aproximam-se quando realizam uma descrição do Brasil, a diferença entre ambos é que:

O primeiro diante da perspectiva da análise dos dados obtidos, os índios não podem ser tidos como exóticos, pois os mesmos moram aqui, o português e os negros é que são os estrangeiros exóticos.

Capistrano antecipa-se a Gilberto Freyre, e a Sérgio Buarque de Holanda referente às descrições ao português, e ao negro, o portu-guês por ter maior resistência física substituiu ao índio no trabalho rude.

Anos 1930: Sérgio Buarque de Holanda A superação das raízes ibéricas

Formado em direito não exerceu a profissão, começou a sua carrei-ra como crítico literário e jornalista. No ano de 1929 quando esteve na Alemanha, atuando como jornalista, entrevistou vários intelectuais, fez leituras de algumas obras de escritores. Segundo seus biógrafos pos-suía enorme conhecimento em Ciências Sociais. Quando esteve na Alemanha pensou em escrever um livro sobre o Brasil, mas escreveu uma obra cujo título de Teoria da América que não publicou.

Durante a década de 30 foi intenso o debate político, na qual per-cebeu-se a distância entre o Brasil legal e o Brasil e o real, todos os intelectuais queriam entender o país como também apresentar as suas propostas para o futuro.

Após a subida de Vargas ao poder no país, verificou-se investimen-tos em educação superior visando à formação de futuros intelectuais cujas atribuições será buscar soluções para os problemas do país. O Brasil estava na transição de uma economia agropecuária, para uma economia dominada pelo capitalismo industrial, a revolução de 30 não rompeu com a estrutura social apresentando outra proposta. O pen-samento alemão foi à base da interpretação de Holanda, que estava interessado em conhecer o país, o povo é tido como personagem principal, como também contrariamente a Freyre, não é aristocrático e muito menos senhorial.

Anos 1950: Nelson Werneck Sodré O sonho da emancipação e da autonomia nacionais

Sodré teve pela frente inúmeros desafios, dentre eles foram teóri-cos, e políticos durante a sua vida intelectual, tido como corajoso e teimoso.

Durante os anos de 1950, era o teórico marxista mais importante dentre um grupo de renomados historiadores marxistas na mesma época, ligado à tradição do redescobrimento do Brasil. Redescobrir o país significa conhecer seu povo tido sem consciência, para alguns teóricos intelectuais, é que devido a sua miscigenação ora forçada, e intencional pelo português, será excluído oficialmente do processo político, social e econômico pelas elites brasileiras a partir da segunda metade do século XVIII.

A partir de 1950 surge à intenção de redescobrir o país, exigindo o rompimento de dominação das elites brancas, permitindo assim aos mestiços a chegada ao poder, concomitantemente com a devida emancipação externa sem a dependência financeira e política, emba-sada pela soberania nacional e do socialismo, tudo o que os podero-sos anteriormente não quiseram fazer ou não sabiam como fazê-lo.

No Brasil, o que prosperou foi o marxismo-leninismo, e não o mar-xismo-alemão, conforme Quartim de Moraes a característica mais notável do pioneirismo intelectual comunista no Brasil é o seu estilo contraditório: alicerçado em uma teoria dogmática sobre a dinâmica do processo histórico brasileiro. Os intelectuais brasileiros refletiram sobre o país com muito mais contundência do que os intelectuais da classe dominante. Moraes esquematiza a história da presença marxista no Brasil em três fases: a) dogmática, b) pré-crítica, c) marxista-leninista.

Essas fases não são necessárias e lineares, ele esclarece, e nem se deduzem uma da outra. Já G.Mantega considera que apesar do dogmatismo Inicial os pensadores econômicos marxistas influenciaram decisivamente no pensamento econômico brasileiro.

Sodré nos anos de 1950 elaborou de uma maneira teórica as insti-tuições e repetições dogmáticas do pensamento marxista-leninista dos membros do PCB.

Para Lênin, a Rússia czarista sustentava no ano de 1905 a inten-ção de uma revolução democrático-burguesa, cuja intenção era im-

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plementar transformações econômico-político de caráter antifeudal, deste modo surgiria o socialismo.

Sodré teria sido mal lido e mal interpretado pelos seus críticos? O objetivo será o de compreender o pensamento de Sodré, como foi feito também com os autores que antecederam-no, sem retirá-lo de sua época e das demais circunstâncias que envolveram-no. Somente após o confronto da leitura de suas obras, com a leitura das obras de outros escritores marxistas poderemos ter uma compreensão crítica constru-tiva do seu pensamento.

Anos 1960: Caio Prado Junior A reconstrução crítica do sonho de emancipação e autonomia nacional

Após o ano de 1930, Caio Prado Jr. vai se tornar o mais influente historiador brasileiro, ocupando o lugar de Capistrano de Abreu, tido o mais influente historiador anterior ao período de 1930. Sua formação foi em direito e em geografia, de origem aristocrática em uma família de cafeicultores paulista para tornar-se um intelectual orgânico do movimento operário brasileiro, segundo alguns de seus biógrafos a ruptura de classe encontra-se em sua vida devidamente quando torna-se um intelectual ligado a revolução socialista brasileira. Devido a sua origem familiar Prado Junior fez uma mutação em sua vida de aristo-crata passou a posicionar-se opostamente ao mundo burguês.

O mesmo deixou uma tradição colonial, caminhando em direção a uma revolução socialista. Concomitantemente foi empresário, intelec-tual do proletariado, e político do mesmo. Atuando como intelectual foi: historiador, economista, geógrafo e filósofo. Publicou quatro livros escreveu várias obras de teor filosófico, ligadas a teorias Marxistas. Tais obras são ignoradas pelos intelectuais brasileiros dentre eles os Marxistas, fundou a revista brasiliense na qual escreveu numerosos artigos históricos e políticos, que estimulou a reflexão e debates sobre a estrutura fundiária nacional.

Caio Prado publicou uma síntese da sua visão do passado brasilei-ro, logo após refletiu sobre a necessidade de mudança visando à transformação social.

Tal obra marcará o pensamento revolucionário brasileiro pós-1964, foi um intelectual militante sua obra servia a luta de classes no Brasil esteve envolvido com o político, e com o partido democrático e com as revoluções de 1930-1932.

Em 1931 aderiu ao PCB dividiu sua vida entre a pesquisa histórica, filosófica e o combate político. Ao escrever, a obra A Revolução Brasi-leira utilizou-se da mesma forma que Sodré, ao redigir a sua obra História da Burguesia Brasileira reviu, e rediscutiu conceitos, como também avaliou as inúmeras dificuldades para se falar do Brasil de uma maneira adequada, com conceitos que foram produzidos em outro contexto. Tanto os revolucionários membros do PCB, quanto os militares utilizavam a expressão Revolução Brasileira, Prado Junior iniciou seu trabalho com uma questão, Afinal, O que quer dizer revolu-ção?

Para o autor, a revolução não possui um caráter violento de ruptu-ra, da conquista do poder por um grupo social. Em sua opinião o signi-ficado deste conceito elimina toda e qualquer ambiguidade, isto é, este movimento tem por finalidade a mudança aplicada depois de sua che-gada ao poder, e nunca anteriormente.

Anos 1960/1970: Florestan Fernandes

Os limites reais, históricos, à emancipação e à autonomia nacio-nais: A dependência sempre renovada e revigorada.

Mesmo com as inúmeras dificuldades que teve em sua vida famili-ar, como também uma precária formação básica chegou a Universida-de aos 21 anos, desde então sempre esteve ligado à vida acadêmica, atuando como professor e pesquisador toda a sua formação foi reali-zada do Brasil, e não comungava com os intelectuais brasileiros que iam estudar no exterior, entendia que o cientista social deveria enten-der, e compreender a problemática nacional buscando soluções ama-durecidas com a sua pesquisa in loco, para somente depois buscar uma especialização no exterior. Durante as décadas de 60 e 70, foi um dos mais importantes alicerces das escolas de explicação histórico-sociológica da América Latina, e um dos mais importantes líderes político-intelectuais da esquerda.

Realizou investigações cientificas, sobre as relações de raça, e classe entre os negros, índios e brancos, e como se deu a participação em uma sociedade de classes, analisou também o modo de produção nacional. Inicialmente foi tido como funcionalista, também foi um autor marxista combativo e combatido.

Os temas de sua análise foram à escravidão, a abolição, a educa-ção e sociedade, as culturas brasileiras, as revoluções burguesa e socialista, os regimes autoritários, as relações de raça e classe. A maneira do seu pensar era dialético, receptivo e dialogava com a rea-lidade. Como Capistrano de Abreu, Sergio Buarque de Holanda, Nel-son Werneck Sodré e Caio Prado Júnior, Fernandes tinha o redesco-brimento como ponto de vista do Brasil nas suas obras a presença dos movimentos sociais, a ação de índios, e negros, imigrantes, trabalha-dores rurais e urbanos. Segundo O.Ianni ele percebeu a sociedade como uma rede de relações sociais, uma estrutura social com seus processos particulares, com suas interações e resistências, com suas tensões e contradições. Devido a tudo isso o pensamento de Florestan Fernandes e eclético: é marxista, com uma sólida formação da socio-logia clássica.

Anos 1960-70: Fernando Henrique Cardoso

Limites e possibilidades históricas de emancipação e autonomia nacional no interior da estrutura capitalista internacional: dependência e desenvolvimento

Licenciou-se em ciências sociais (1952), e defendeu a sua tese de doutorado (1961) na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo; depois tornou-se professor auxiliar, assis-tente, livre-docente e emérito do Departamento de Sociologia da USP. Tendo como mestre Florestan

Fernandes Francisco Weffort definiu FHC como um intelectual das personalidades difíceis ou complexas, como um analista de uma épo-

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ca em que é muito difícil ter ou manter uma identidade social, cultural ou política linear e transparente, tal a velocidade das mudanças.

No período da ditadura militar, não fora preso, torturado ao contrá-rio seus amigos e colegas foram. Preferiu o autoexílio em 1964 no Chile, neste ínterim esteve com familiares e amigos, afirmou que nos 1950-60 a América Latina apreendeu a pensar cientificamente. Em 1967-68, esteve em Paris, onde lecionou na Universidade de Nanterre como também presenciou os acontecimentos daquele ano. Durante a década de 70 destacou-se através de suas análises sofisticadas do regime militar e do milagre brasileiro, ao mesmo tempo para as. Es-querdas brasileiras as mesmas análises, não tinham a capacidade de enxergar a presença de atos fascistas, já o próprio afirmava que havia um regime autoritário que favorecia o crescimento econômico e a mo-dernização.

O mesmo entende que a justiça social, somente será viável quando o país tiver um desenvolvimento tecnológico e capitalista, deste modo haveria a capacidade de acumulação de riquezas e conhecimento, e com o crescimento econômico pode-se vencer a exclusão social. Com as posições políticas concretas a ideia do homem universal e racional poderá programar as soluções para resolver os problemas de injustiça social, como também a desigualdade entre os homens. Quando Car-doso afirma que anteriormente já tinha feito como escolha do futuro, tendo como pano de fundo, liberdade, igualdade e justiça.

Já para seu mestre e amigo Florestan Fernandes, quando uma utopia tornasse possível ela deixar de existir. Para Fernandes a utopia estaria embasada na revolução social, para aos assalariados, e uma autocracia fascista para o capital, o socialismo representaria ainda uma alternativa para uma transformação social e a liberdade com igualdade.

FHC reconhece em ter falhado na busca da construção de um Bra-sil - bem sucedido, só teve alunos e não discípulos. Enquanto presi-dente do Brasil terá somente funcionários, pessoas ligadas ao seu posto devido a uma estrutura burocrática, e uma população desmoti-vada e sem sonhos, para um presidente isto pode ser fatal. FHC é um pensador burguês e paulista, com isto formulou um projeto para o Brasil contendo os anseios da burguesia e logo de imediato apresen-tou-se como um representante da mesma, e também defenderá alian-ça entre a burguesia brasileira com a internacional.

16. RUSEN, Jorn. O livro didático ideal. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel e MARTINS, Estevão de Rezende. Jorn Rusen. O

ensino da História. Curitiba: Editora UFPR, 2011.

A história como disciplina escolar

O ensino da História no Brasil teve início no séc. XIX com o ensino da História da Europa Ocidental.

A história do Brasil surgia como apêndice, baseada em biografia de homens ilustres, datas e batalhas.

Mesmo nos anos de 1931 a 1961 a referência ainda era a História da Europa.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (5692/71) oficia-lizou o ensino de estudos sociais nas escolas brasileiras

O que se percebia é que a concepção e os conteúdos ainda eram tradicionais.

A década de 80 foi marcada pelos debates acerca de questões so-bre a retomada da disciplina História:

· como espaço para um ensino crítico, centrado com o co-tidiano do aluno;

· com o trabalho e sua historicidade versus o ensino tradi-cional, factual, positivista e temporalmente estanque.

Com os anos 1990 chegam a possibilidade de novos paradigmas históricos.

Nos dias atuais, as reformulações curriculares colocam em xeque o que se ensina no ensino fundamental e médio e também nas universi-dades tendo em vista questões concernentes à relação com o “real mundo do trabalho”, bem como a formação para a cidadania.

A Lei Federal 9394/96 Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) estabelece novas diretrizes para a organização dos currículos e seu conteúdo mínimo.

Em 1997 o MEC propõe os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN. Este documento foi escrito em todas as áreas do conhecimento.

Pretendia trabalhar os conteúdos em eixos temáticos.

As principais contribuições dos PCNs foram à ênfase nas inova-ções metodológicas e na avaliação, além de propor um trabalho mais participativo no qual o professor desempenha um papel de mediador.

A aprendizagem passa a ser vista como processo e não produto.

O saber e o fazer históricos em sala de aula

Como já é sabido, o que se coloca como fundamental é a mudança no ensino da História.

Não queremos mais o professor com característica de professor-enciclopédia.

O que se busca é o professor que fornece a matéria para racioci-nar, ensina a raciocinar, mas ensina, acima de tudo, que é possível raciocinar.

Ele é um mediador.

A aula de história é o momento em que, ciente do conhecimento que possui, o professor pode oferecer a seu aluno a apropriação do saber conhecimento histórico por um esforço e uma atividade com a qual ele retome a atividade que edificou esse conhecimento.

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Um dos desafios enfrentados pelo educador na sala de aula é o de realizar a transposição didática. Como trabalhar o conteúdo necessário da melhor forma possível (didática) que faça com que os alunos am-pliem seus conhecimentos.

É fundamental o professor ter clareza:

1. Método: são os meios colocados em prática para obten-ção de um resultado determinado. Os principais métodos são a abordagem magistral, abordagem dialogada, abor-dagem construtivista.

2. Técnica: pode ser chamado de recurso didático: ex.: utili-zação de um filme

3. Estratégias de ensino: todas as formas de organizar o saber, didaticamente, ex.: trabalho em grupo e aulas ex-positivas

4. Explicação contínua: o professor conduz a explicação com o auxílio eventual de documentos; os alunos acom-panham a explicação e copiam a lição

5. Obs.: O aluno não produz, apenas copia. Para evitar es-sa situação, devemos alternar fases de tomar notas, ma-nipular documentos

· Aulas seqeunciais: o professor intercala explicações, ati-vidades e produção de texto escrito.

· Trabalho com dossiês: o professor, após fornecer as re-gras aos alunos, orienta-os em seu trabalho sobre um dossiê, que comportará ou não, produção escrita

A construção do fato histórico e o ensino de história

O objetivo principal do ensino da História é desenvolver a compre-ensão histórica da realidade social.

Ensinar história pressupõe um trabalho constante e sistemático com as experiências do aluno no sentido de resgatá-las, tanto indivi-dual como coletivamente, articulando-as com o conteúdo trabalhado em sala de aula.

A aprendizagem não é o resultado da mera relação entre professor e aluno individualmente, mas realiza-se em um coletivo que possui suas necessidades e vivências culturais peculiares.

· O que significa problematizar o conhecimento histórico? Significa partir do pressuposto de que ensinar história é construir um diálogo entre o presente e o passado, e não reproduzir conhecimentos neutros e acabados sobre fa-tos que ocorreram em outras sociedades e outras épocas

· O que significa partir do cotidiano dos alunos e do pro-fessor?

Significa trabalhar conteúdos que dizem respeito à sua vida pública e privada, individual e coletiva

O fato histórico é também uma construção.

Cabe ao historiador a responsabilidade pela reconstrução do co-nhecimento sobre o passado.

Cabe ao professor permitir ao aluno esse conhecimento.

A construção de conceitos históricos

O objetivo de aprender conceitos históricos é construir uma grade de referência que auxilie o aluno em sua interpretação e compreensão da realidade social, facilitando a leitura do mundo em que vive.

Ensinar conceitos históricos não é impor o uso abusivo de termos técnicos e definições abstratas, nem de memorização de palavras e de seu significado.

Os principais problemas em se lidar com conceitos no ensino de História são:

· Diferentes conceitos apresentam gradações de dificul-dade de aprendizagem, tanto por seu nível de abstração como pelo seu afastamento do vivido ou das representa-ções dos alunos

· Todo conceito tem uma historicidade, isto é, seu signifi-cado deve ser compreendido com base no contexto em que foi produzido.

É possível afirmar que o ensino de conceitos históricos deve obe-decer a uma certa seqüência e sugerem determinada organização em seu trabalho:

1. Identificar os conceitos em fontes primárias e/ou secun-dárias

2. Orientar a organização dos conceitos com base em al-gum critério de classificação

3. Identificar conceitos em fontes diferentes, compará-los observando as semelhanças e as diferenças

4. Comunicar os conceitos em diferentes contextos, como frases, parágrafos, dissertações, temas e narrativas his-tóricas.

Realizar um trabalho sistematizado no ensino de conceitos históri-cos contribui para que o aluno realize uma leitura mais reflexiva e crítica da realidade social.

Não pode ser um trabalho fragmentado e isolado, mas sim integra-do nas outras atividades desenvolvidas no cotidiano de sala de aula.

A construção de noções de tempo

Podemos definir tempo como uma categoria mental que não é natu-ral, nem espontânea, nem universal.

Levar em consideração essas características de tempo significa en-tender suas conseqüências para o trabalho do historiador e para o ensino de história

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As principais noções temporais são:

· sucessão ou ordenação,

· duração,

· simultaneidade,

· semelhanças,

· diferenças e mudanças e

· permanências.

As noções temporais são construções que o ser humano realiza du-rante a própria vida.

As fontes históricas e o ensino da história

No ensino de História, a palavra documento suscita, pelo menos duas interpretações:

a) material usado para fins didáticos, livros, filmes

b) fonte, isto é fragmentos ou indícios de situações já vividas, pas-síveis de ser exploradas pelo historiador.

É correto afirmar que a história se faz com documentos escritos, quando eles existem.

Mas pode ser feita com tudo que a engenhosidade do historiador lhe permitir utilizar.

Para trabalhar com documentos na sala de aula é fundamental:

1. Identificar qual o tipo de fonte é o documento. Temos duas fon-tes de documentos:

· Fonte Primária: são testemunhas do passado, contempo-râneas dos fatos históricos, de primeira-mão ex.:

· Tipologia de fontes primárias

· Materiais: utensílios, ornamentos, armas, ruínas

· Escritas: documentos jurídicos, crônicas, poemas

· Visuais: pinturas, caricaturas, fotografias

· Orais: entrevistas, gravações

· Fonte Secundária: são registros que contêm informações sobre os conteúdos históricos resultantes de uma ou mais elaborações ex.: gráficos, mapas históricos, livros didáticos.

2. Informar o que diz o documento.

3. Identificar a natureza do documento. Existem:

· Documentos Oficiais (leis, decretos)

· Documentos que procuram descrever a realidade (narra-tivas orais, textos)

· Documentos que exprimem opinião, ideia: caricaturas, propagandas

· Documentos religiosos

· Documento que não exprime nada em particular, mas que possuem algum significado: paisagens

4. Datação

5. Autor

O desafio de usar diferentes documentos como fonte de produção para o conhecimento histórico e também como veículo para o ensino da História é amplamente debatido.

O uso de documentos é fundamental no ensino da História. Eles revelam preciosidades.

Pode-se iniciar esse trabalho com os documentos que o aluno tem em sua própria casa.

As novas linguagens e o ensino de história

Os novos recursos tecnológicos apontam a expansão do ensino como suscitam um cuidado necessário.

A fotografia, o cinema, a televisão e a informática trouxeram novos desafios ao historiador e ao professor de História.

Alguns cuidados são necessários, tais como conhecer o sentido produzido pelas imagens canônicas (imagens-padrão ligadas a concei-tos-chaves que identificamos rapidamente), diferenciar o uso das lin-guagens como recurso didático e documento histórico e aprender o significado ou a natureza de cada linguagem.

História local e o ensino da história

A valorização da história local teve reflexos nos Parâmetros Curri-culares Nacionais para o ensino fundamental (1997/98) e para o ensi-no médio (1999).

O estudo da localidade ou da história regional contribui para uma compreensão múltipla da História, pelo menos em dois sentidos: na possibilidade de se ver mais um eixo histórico na história local e na possibilidade da análise de micro-histórias, pertencentes a alguma outra história que as englobe e, ao mesmo tempo, reconheça suas particularidades.

A história local pode e deve ser valorizada pela escola.

Sugestões para o trabalho com história local:

· Edifícios históricos: nome, localização, data de constru-ção e reformas; nome das pessoas e/ou empresas en-volvidas na construção, estilo, detalhes

· Monumentos e/ou estatuária: personagens ou fatos re-presentados no monumento, tipo de monumento, carac-terísticas materiais e simbólicas;localização, data, nome

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do criador, razões da construção. Relação do monumen-to com a história local, nacional, universal

· Toponímia: inventário e classificação dos topônimos, co-mo os relativos ao cotidiano da cidade, a figuras ou per-sonagens da vida da cidade ou da história em geral, re-lacionados a acontecimentos relevantes ou a atividades locais.

A história local é um rico recurso para o ensino da sala de aula.

Cabe ao professor programar visitas e estudos para conhecimentos desses registros históricos.

História oral e o ensino da história

Um dos objetivos do ensino da História é que os alunos se reco-nheçam enquanto fazedores de história.

Por isso mesmo é importante considerar e dar espaço às histórias de vida de cada um e seus familiares, nos espaços que ocupam.

É muito importante que o aluno conheça o significado de história oral para a história de sua gente.

O livro didático e o ensino da história

A clareza acerca das concepções de ensino e aprendizagem pode servir de referência para o livro didático ser visto como parte articulada e articuladora da relação entre professor, aluno e conhecimento histó-rico e não como algo arbitrário e compulsório.

Quanto aos critérios de análise dos livros, podem ser destacadas as sugestões apresentadas nas políticas oficiais de análise dos livros didáticos já implantadas no Brasil.

No entanto cabe destacar a importância de um repertório crítico do professor sobre a produção e a transmissão do conhecimento históri-co, bem como sobre as teorias de aprendizagem contemporâneas.

AVALIAÇÃO EM HISTÓRIA

A primeira questão quando se fala em avaliação é o questionamen-to sobre sua função.

É importante que o professor esclareça ao aluno a finalidade e o porquê de sua avaliação, além de explicitar os critérios que serão utilizados para avaliá-lo.

Seu objetivo deve ser o diagnóstico contínuo e sistemático, o qual procurará analisar a relevância do conhecimento a ser ensinado.

As avaliações podem ser:

· Avaliação inicial: pretende obter informações sobre co-nhecimentos, atitudes, interesses ou outras qualidades do aluno

· Avaliação formativa: feedback ao professor e ao aluno sobre as mudanças relacionadas com o conhecimento, bem como detectar os problemas de ensino-aprendizagem.

· Os aspectos enfatizados na avaliação formativa são os resultados de aprendizagem relativamente aos objetivos, a comparação entre diferentes resultados obtidos pelo mesmo aluno, o processo aprendizagem que permitiu a obtenção dos resultados e as causas dos insucessos na aprendizagem

· Avaliação somativa: realizar um diagnóstico do aluno no final de um período relativamente longo (uma unidade de ensino, um bimestre, um ano).

O ensino da história deve estar longe da memorização de conceitos e fatos históricos.

Existem inúmeras atividades que propiciam uma aprendizagem significativa dessa área:

· Atividades realizadas em sala de aula

· Atividades que indiquem capacidade de síntese e reda-ção

· Atividades que expressem o domínio do conteúdo

· Atividades que expressem a aprendizagem

· Atividades que explicitem procedimentos

17. SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Edito-

ra Companhia das Letras, 1996.

Por: Matheus Blach

“A sociedade europeia praticamente inventou o Oriente.” (SAID, 2007) É assim que Edward W. Said inicia a introdução de seu livro “Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente”. Através deste texto analisaremos a relação histórica existente entre oriente e ociden-te e o conceito de orientalismo explicado pelo autor.

Apesar de parecer algo um tanto polêmica, ou eurocêntrica, a afir-mação com a qual iniciamos o texto somente toma sentido se pensada dentro do contexto apontado pelo autor, o contexto do que ele concei-tua como orientalismo. Porém, antes de continuar é importante ressal-tar que para Said o Oriente existe autonomamente sim.

Dito isso, deve-se passar a indicar algumas observações razoáveis. Em primeiro lugar, seria errado concluir que o Oriente foi essencial-mente uma ideia ou uma criação sem realidade correspondente… Havia – e há – culturas e nações cuja localização a leste, e suas vidas, histórias e costumes têm uma realidade bruta obviamente maior do

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que qualquer coisa que se poderia dizer a respeito no Ocidente. (SAID, 2007 p. 31-32).

O Oriente está para além da simples distinção entre oeste e leste sendo este, muito mais complexo. Ou seja, o Oriente é uma entidade autônoma dotada de múltiplas identidades culturais, sociais, políticas, econômicas, étnicas, religiosas e com suas respectivas localizações geográficas [1] . O que seria então esse Orientalismo cuja definição permitiu ao autor afirmar que o Oriente é uma invenção do Ocidente? Segundo Said esse conceito tem diversos significados, mas que de modo geral reflete a forma específica pela qual o Ocidente europeu pensa o que é o Oriente. Assim, o Orientalismo não necessariamente estabelece uma relação de identificação “real” com o Oriente e sim é a ideia que o Ocidente faz dele.

O Oriente não é apenas adjacente à Europa; é também o lugar das maiores, mais ricas e mais antigas colônias europeias, a fonte de suas civilizações e línguas, seu rival cultural e uma de suas imagens mais profundas e mais recorrentes do Outro. (SAID, 2007 p. 27-28).

No contexto do século XVIII e XIX, diante do imperialismo europeu encontra-se a necessidade de criar uma identidade nacional, um ele-mento aglutinador que trouxesse coesão e legitimidade as ações do Estado e inicia-se então, uma exaltação da cultura greco-romana, tomada como modelo de sociedade ponto de partida, berço da civiliza-ção. No artigo O que é Civilização trabalho a questão do conceito de Civilização e consequentemente do que é considerado o seu oposto: O termo passa a ser utilizado por volta do século XIX. Era usado fre-quentemente para legitimar o poderio da sociedade Europeia. Nova-mente a conceituação se baseia na comparação e no preconceito entre diferentes sociedades, aqueles que não eram Europeus, não eram civilizados.

Segundo Said “o oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) com sua imagem, ideia, personalidade, experiência contrastantes” (SAID, 2007 pg. 28). O Oriente na visão do Orientalismo então é o lugar do exótico, do não civilizado, da barbárie, do oposto, do diferen-te, do inimigo, do Outro. Além de todas essas características que constituem o estereotipo do Oriente criado pelo Ocidente existiu um marco na história das ciências que contribuiu para que o Oriente tam-bém fosse considerado um lugar atrasado, menos evoluído, pré-civilizado.

A definição de civilização baseada na comparação teve origem também no iluminismo, através do empirismo e posteriormente da importação da teoria evolucionista de Charles Darwin pelas ciências humanas que adotaram por muitos anos essa ideia da escala evolutiva da sociedade. Assim como o ser humano evoluiu, em termos biológi-cos, de um ancestral primata até o Homo Sapiens Sapiens, a socieda-de evolui também de forma que uma sociedade anterior a atual é infe-rior, menos evoluída.

Todo um discurso[2] legitimador foi criado então, através do orien-talismo para justificar a ação imperialista colonizadora europeia e para

se auto afirmar como superior através da imagem do oposto, do Outro como inferior. O Ocidente de forma heroica levava aos orientais atra-sados à civilização, o progresso, a evolução. Assim ocorreu durante o Imperialismo europeu e assim também ocorre hoje em dia com o Im-perialismo norte-americano tentando implantar seu modelo de “demo-cracia” no Oriente para justificar suas ações políticas. Essa justificativa baseia-se sempre em um modelo de sociedade que tenta ser imposto aos outros povos como superior, ou melhor, do que o deles. Aconte-ceu nas Cruzadas, na Expansão Marítima, no Holocausto e está acon-tecendo nas invasões dos Estados Unidos aos países do Oriente Mé-dio.

Contudo, após fazer essa contextualização e pensar o Oriente co-mo invenção do Ocidente dentro desta forma de conceber o Oriente, chamada Orientalismo, Edward Said ainda aborda o conceito sobre três diferentes aspectos. O Orientalismo acadêmico, imaginativo e histórico.

O primeiro reflete no século XIX a arrogância colonialista europeia, era uma disciplina acadêmica que fazia o estudo do oriente sob um olhar eurocêntrico visando legitimar superioridade da Europa. Segundo Said ainda que de uma forma mais crítica esse orientalismo acadêmi-co ainda existe hoje, pois para o autor “quem ensina, escreve ou pes-quisa sobre oriente [...] nos seus aspectos específicos ou gerais é um orientalista, e o que ele ou ela faz é Orientalismo” (SAID, 2007 pg. 28). Helder Macedo, citando Manuela Delgado Leão Ramos, comenta em nota de rodapé que a obra de Said aborda o Orientalismo com certo negativismo deixando de considerar os avanços metodológicos das disciplinas que estudam o Oriente.

Manuela Ramos considera a posição de Said como de acepção negativa em relação ao orientalismo, que ela considera não apenas como uma relação de dominação intelectual e política, mas, também, numa intenção de conhecimento e entendimento mútuos. Enfatiza, portanto um orientalismo positivo… (MACEDO, 2006 p. 7).

Já o Orientalismo Imaginativo é uma forma de pensar o Oriente de modo mais geral, – diferente do conceito anterior em que o modo de analisar é pautado em um determinado método e segue certo rigor acadêmico – é a relação da produção acadêmica e o que é transmitido ao senso comum, ao conhecimento geral, ao imaginário de cada épo-ca.

O Intercâmbio entre o significado acadêmico e o sentido mais ou menos imaginativo de Orientalismo é constante, e desde o final do século XVIII há um movimento considerável, totalmente disciplinado – talvez até regulado – entre os dois. (SAID, 2007 p. 29).

Esse orientalismo está ligado a produção cultural de seu tempo como a literatura, a arte, filmes e novelas nos dias atuais. Podemos tomar como exemplo, diversos registros em que o Oriente aparece moldado por esse Orientalismo: os de Heródoto, Marco Pólo e Colom-bo; e mais recentemente telenovelas como O caminho das índias e a famosa produção cinematográfica 300 de Esparta. Vamos lançar nos-

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so olhar sobre este último em que o estereótipo do Oriente exótico aparece de forma no mínimo “gritante”: Os Espartanos (Ocidentais) são nobres guerreiros treinados e caracterizados pela honra, fidelidade e coragem, heróis; já o “inimigo”, os Persas (Orientais) são criaturas monstruosas, metamórficas, lendárias, envolvidas em certo misticismo e que usam de qualquer recurso ao seu alcance para vencer a bata-lha. Segundo Said este “estilo de pensamento é baseado numa distin-ção ontológica e epistemológica feita sobre o Oriente e (na maior parte do tempo) o Ocidente” (SAID, 2007 p. 29), a diferença entre o nós e o outro, o oeste e o leste, a qual os escritores, romancistas, novelistas, roteiristas e diversos outros corroboram para criar.

Concluímos então este texto com o terceiro, o Orientalismo Históri-co. Este busca entender os termos e conceitos históricos em cada tempo, compreender seu contexto específico, em síntese, é o que Edward Said faz em sua obra e o que tentamos explicar aqui, é histori-cizar o conceito de Orientalismo e buscar analisar a sua relação com o Oriente em cada época. Nas palavras do autor:

Orientalismo pode ser discutido e analisado como a instituição au-torizada a lidar com o Oriente – fazendo e corroborando afirmações a seu respeito, descrevendo-o, ensinando-o, colonizando-o, governan-do-o: em suma, o Orientalismo como um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente. (SAID, 2007 p. 29).

Portanto percebemos que por orientalismo podemos entender vá-rios conceitos, mas todos eles se comunicam e são interdependentes. Percebemos que entre Orientalismo e Oriente há uma grande diferen-ça, porém, sem deixar de considerar que o segundo existe como uma entidade autônoma com múltiplas identidades e que o primeiro não se trata de pura de ficção, ou seja, apesar da distinção entre um e outro existe uma relação entre eles. O conceito abarca as relações de poder e dominação estabelecidas entre oriente e ocidente, entretanto ressal-tamos neste ponto, a contribuição de Helder Macedo ao questionar o negativismo de Said demonstrando que através de novos métodos, novos olhares são lançados sobre o Oriente, atualizando o conheci-mento sobre ele, com muito mais propriedade em uma tentativa de se aproximar mais do “real”. É uma “intenção de conhecimento e enten-dimento mútuos.” (MACEDO, 2006 p. 7).

[1] Helder Macedo em seu texto “Oriente, Ocidente e Ocidentaliza-ção: Discutindo Conceitos” aborda a questão geográfica analisando os Mapas culturais do Ocidente cartografados por Jacques Le Goff, de-monstrando que além da demarcação territorial entre o Ocidente e o Oriente existe uma distinção cultural geograficamente localizada, mais complexa do que uma simples linha que divide o globo em duas par-tes.

[2] O conceito de discurso utilizado aqui é o mesmo aplicado por Edward Said tomado de Michel Foucault em Arqueologia do Saber e Vigiar e Punir. Segundo Said “sem examinar o Orientalismo como um discurso, não se pode compreender a disciplina extremamente siste-mática por meio da qual a cultura europeia foi capaz de manejar – e até produzir – o Oriente política, sociológica, militar, ideológica, cientí-

fica e imaginativamente durante o período do pós-Iluminismo” (SAID, 2007 p. 29).

18. SILVIA, Janice Theodoro da. Descobrimen-tos e colonização. São Paulo: Editora Áti-

ca,1998.

O objetivo de Janice é através desta obra esclarecer ao leitor as formas como se deram algumas descobertas, além disso permitir o conhecimento de nossa América através do transplante do projeto cultural ibérico, fornecendo um texto com um linguajar simples e de fácil compreensão.

Ela menciona várias passagens com riquezas de detalhes que permite nosso imaginário visualizar, por exemplo, as grandes navega-ções, o homem medieval se divertindo com o medo e o prazer que o imaginário dele lhe proporcionava, nos permite inclusive ver o primeiro relógio introduzido num edifício público nos anos 1344.

Processos históricos e sua evolução natural é a principal fonte-base para Janice, tendo em vista que a obra é construída em continuidade, ou seja, não há um rompimento entre um fato e outro.

De forma bastante simples e complexa, a autora aborda aspectos importantes para explicar cada transição dos fatos, sem deixar de mencionar a posição da igreja ela explica como o pensamento cristão adaptou-se à política expansionista, onde através da teatralidade e agilidade do cristianismo permitia-se uma rápida penetração da doutri-na entre os povos, conclui-se, portanto que as igrejas foram o suporte básico em que se assentou todo o projeto colonizador, não deixando de mencionar que Portugal e Espanha também impunham sua repre-sentação à sociedade; com isso foram grandes as transformações corridas na economia europeia.

Janice também menciona Marco Pólo, um integrante do “Grande Conselho de Veneza” que ao morrer em 1.324, deixa vários relatos de suas viagens, onde ele reinterpreta a geografia, procurando através dela impor sua narração como verdade plena.

Ela descreve como a população passou a lidar com o tempo após a implantação do relógio, que passou a fazer parte daquela sociedade a partir de 1.344 e até 1.370 somavam 33.

É importante ressaltar, como ela mesma coloca que na idade média ninguém se preocupava em medir matematicamente o tempo porque a Deus cabia o controle do destino de todo ser humano; portanto nin-guém precisava ter pressa, pois não faria nada além do que Deus havia determinado.

Através desta perspectiva, podemos compreender o significado do tempo na história das Américas coloniais portuguesas e espanholas, pois enquanto a Europa enfrentava um processo de racionalização do tempo a América o percebia numa dimensão una como postulava o pensamento cristão.

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Segundo o terceiro parágrafo da página 29, o massacre do Templo Maior em Tenochtilán, nos mostra o tempo do gesto destruidor, e nele, a forma da conquista, entretanto, para manter a supremacia de Deus, era necessário destruir a dignidade do indígena rapidamente e de forma teatral.

Tanto a igreja quanto os europeus emigrados podiam utilizar indis-criminadamente a mão de obra indígena, porém, esta concepção de tempo forjada pela igreja vai definir a natureza das relações de traba-lho do Novo Mundo, pois para a igreja, não se pode dissociar o tempo de trabalho do homem que o produz, esta unidade é indivisível.

A autora relata que o espaço envolvia uma dimensão mítica, onde ele era representado por uma figura capaz de exprimir e hierarquizar o pensamento religioso e a riqueza de cada um dos continentes através de uma imagem.

Em sua obra ela também nos conta que as navegações no atlântico partiram do pressuposto de que a terra era redonda, e nesse sentido o mapeamento do mundo é uma prova de força, de domínio absoluto da Europa sobre os “outros” habitantes do globo.

A invenção da perspectiva na pintura é contemporânea às grandes navegações e corresponde também à representação de uma imagem a partir de um único ponto, este efeito é tão surpreendente quanto imaginar que a terra flutua no espaço.

A reprodução das três dimensões do espaço, permite também a re-construção do mesmo espaço cênico europeu na América, pois nela o colonizador representa o que sonhou, desejou, viu ou viveu, porém tais valores precisavam ser reconstruídos hierarquicamente para man-ter a estrutura de dominação.

Até para a autora é difícil explicar a enorme violência que resultou dos primeiros anos de contato entre Europa e Novo Mundo, pois colo-nizadores destruíram sem cessar e com enorme precisão e perfeição cênica, por outro lado, os indígenas haviam se convertido à essência do pensamento cristão, e as culturas pré-colombianos, por si mesmas questionavam a universalidade dos conceitos europeus ameaçando o eurocentrismo.

Fonte: http://pt.shvoong.com/books/1812780-descobrimentos-coloniza%C3%A7%C3%A3o/#ixzz2hrzY9VHj

19. SOIHET, Rachel; BICALHO, Maria Fernanda Baptista e GOUVÊA, Maria de Fátima Silva

(Orgs.). Culturas políticas. Rio de Janeiro: EDI-TORA Mauad/FAPERJ, 2005.

Por: Diogo da Silva Roiz Revista Brasileira de Educação - ANPEd

Cada vez mais, percebe-se com maior sensibilidade e atenção que as mudanças na política, na sociedade e na educação estão intima-mente relacionadas. Assim como os projetos de escrita da história se alteram para compreender mais adequadamente as transformações da

sociedade, o ensino de história também teria uma predisposição a mudar quando ocorrem novas tomadas de posição nas políticas públi-cas do país. Essa hipótese indica que ao se acompanhar a organiza-ção da "cultura histórica" e da "cultura política" de uma sociedade, pode-se visualizar mais precisamente os contornos que ganham simul-taneamente a "cultura historiográfica" e o "ensino de história". Diante do exposto, é oportuno o questionamento sobre quais leituras a respei-to do passado estariam sendo produzidas, em função das atuais revi-sões dos últimos governos, quanto à necessidade de agrupar os currí-culos escolares de ensino fundamental (e médio) do país, o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira e o ensino da história indígena. Cabe destacar, desde já, que isso se deve, fundamental-mente, ao impacto e à relevância que alcançaram os movimentos sociais, os quais, desde a década de 1980, se têm organizado com o intuito de destacar as desigualdades históricas que foram sendo pro-duzidas no país ao longo do tempo. O que quer dizer que, na medida em que as sociedades e os indivíduos se interrogam sobre sua condi-ção, se abre a possibilidade para uma significativa alteração, quanto à maneira de entender e de interpretar o presente e, por extensão, tam-bém o passado (e o futuro).

Foi justamente percebendo a importância de estudar o movimento complexo e dialético entre a política, a sociedade e a educação que o grupo de pesquisadores reunidos, desde 1992, no Núcleo de Pesqui-sas em História Cultural (NUPEHC), vinculado ao Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), sob a liderança de Rachel Soihet, se tem reunido periodicamente e organizado con-gressos e livros, discorrendo tais questões. O primeiro projeto do gru-po, "História, cultura e educação: relações entre pesquisa e ensino na área de história cultural", foi desenvolvido durante o biênio de 2001-2002, resultando no livro Ensino de história: conceitos, temáticas e metodologia (Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003), organizado pelas professoras Rachel Soihet e Martha Abreu. O segundo projeto, "História e educação: relações de poder e cultura política", foi execu-tado durante os anos de 2003 e 2004, com a mesma preocupação com a pesquisa e o ensino de história, e um de seus principais resul-tados foi o livro Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história (Rio de Janeiro: Mauad, 2005), organizado por Rachel Soihet, Maria Fernanda Baptista Bicalho e Maria de Fátima Silva Gouvêa. Finalmente, durante o biênio de 2005-2006, com o pro-jeto "Cultura política e cultura histórica: pesquisa e ensino", o grupo retomou suas discussões sobre a política, a sociedade e a educação, detendo-se, especificamente, na maneira como a "cultura política" e a "cultura histórica" ao longo do tempo, além de manterem uma relação tensa e articulada, também influenciam diretamente sobre os cami-nhos que são tomados pela "cultura historiográfica" e pelo "ensino de história", de um momento para o outro. E um dos resultados dessa iniciativa foi o livro Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história, com a organização de Rachel Soihet, Martha Abreu e Rebeca Gontijo, lançado em julho de 2007 pela editora Civili-

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zação Brasileira, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

O livro contém 23 ensaios, que foram distribuídos em cinco partes. No conjunto é nítida a utilização dos conceitos de "cultura histórica" e de "cultura política", mesmo se considerarmos que a maneira como foram apropriados entre os textos foi peculiar ao tema, à problemática, às fontes e ao objeto selecionado. Essas categorias vêm sendo traba-lhadas na historiografia, principalmente, pelos historiadores da cultura, "já que implica considerar a cultura de um ponto de vista histórico e político" (p. 15). No caso da "cultura política" sua utilização estaria presente já em certas análises produzidas no século XIX. Contudo, no campo da história, o uso do conceito teria sido distinto, e estaria rela-cionado diretamente à renovação dos estudos da história política e da história cultural. O interesse dos historiadores por esse conceito deve-se ao fato de permitir reconstituir o comportamento político de indiví-duos e grupos, tendo em vista suas próprias representações e visões de mundo, com as quais definiriam suas memórias, vivências e sensi-bilidades. De modo geral, ele permitiria circunscrever o sistema de representações, com os quais, de modo complexo (e às vezes impre-visto), indivíduos e grupos demarcam seus projetos e iniciativas. Mes-mo considerando que uma referência comum entre os textos foi o livro coletivo Para uma história cultural, organizado por Jean-Pierre Rioux e Jean-François Sirinelli, a categoria foi utilizada de uma maneira mais polissêmica do que a de "cultura histórica". Nesse caso, embora o rastreamento da utilização do conceito no campo da história seja mais difícil de ser efetuado, ao tratarem da "cultura histórica" esta "tem ser-vido muito mais para delinear um conjunto de fenômenos histórico-culturais representativos do modo como uma sociedade ou determina-dos grupos lidam com a temporalidade (passado-presente-futuro) ou promovem usos do passado" (p. 15), o que quer dizer que em muitos casos seria possível pensar em culturas históricas concorrentes num mesmo período e/ou local. Ao utilizarem-se dessa categoria, as princi-pais referências dos estudos foram os trabalhos dos historiadores Bernard Guenée, para quem a "cultura histórica" seria a bagagem profissional e os instrumentos utilizados pelos historiadores em suas interpretações e pesquisas, e Jacques Le Goff, que complementa tal abordagem indicando que esta também se refere à relação que uma sociedade, na sua psicologia coletiva, mantém com o passado.

Com base nessas referências, na primeira parte, "Política, história e memória", que também serve como uma introdução aos demais capí-tulos, os textos de Manuel Luiz Salgado Guimarães e de Ângela de Castro Gomes fornecem importantes reflexões teóricas e estudos de caso, ao demonstrarem como utilizaram as noções de cultura histórica, cultura política, memória e usos do passado. No primeiro caso, em "O presente do passado: as artes de Clio em tempos de memória", Sal-gado Guimarães demonstra como ocorreu a falência de um certo pro-jeto escriturário para a história, que, elaborado no século XIX, "acredi-tou poder fazer da escrita do passado uma mímesis dos acontecimen-tos transcorridos" (p. 29), na medida em que operava uma análise crítica dos documentos oficiais, entendendo pesquisá-los de modo

objetivo, com vistas a reconstituir a história política e diplomática de uma nação e de um povo, por intermédio do estudo dos "grandes ho-mens". Ao considerar como as sociedades constroem suas represen-tações sobre o passado, com base no que François Hartog definiu como "regimes de historicidade" em sua obra Regimes d'historicité Présentisme et experiences du temps, o autor sugere que o passado adquiriria efetiva existência "a partir dessa interrogação do presente, ou melhor, a partir de uma relação que as sociedades humanas esta-belecem com o transcurso do tempo e assim com as definições do que seja presente, passado e futuro" (p. 31). Considerando, portanto, que quando as sociedades mudam sua lógica de como compreendem o processo histórico também se alteraram suas formas de pesquisa e de escrita, o autor desenvolve sua hipótese de que no período contempo-râneo haveria uma constante valorização da memória, já que há um retorno eminente do "eu" "e da subjetividade como critério de legitima-ção dos discursos sobre o passado, assim como a sobrevalorização do testemunho como fonte capaz de assegurar a veracidade das falas sobre o passado" (p. 35).

No texto seguinte, "Cultura política e cultura histórica no Estado Novo", detendo-se num estudo sobre as políticas culturais empreendi-das por órgãos governamentais, Gomes demonstra de modo preciso como em determinados momentos se configuram certos projetos para estudar o passado, intimamente relacionados com o projeto político então no poder. Para isso, utiliza-se da revista de estudos brasileiros Cultura Política, que foi dirigida por Almir de Andrade, entre 1941 e 1945, uma publicação do Departamento de Imprensa e Propaganda (o DIP), com periodicidade mensal. De forma mais precisa, a autora de-teve-se na seção intitulada "Brasil social, intelectual e artístico", em que se localizavam debates e artigos que discorriam sobre o passado nacional, seus atores e seus momentos decisivos, segundo o olhar dos articulistas. No entanto, é importante notar que o projeto de escrita da história então apropriado foi aquele desenvolvido no século XIX e que:

A partir de meados dos anos 1940, com a continuidade desse pro-cesso [de criação de Faculdades de Filosofia e de Universidades], sem dúvida quer o perfil do historiador, quer o da produção historiográfica se alteram de forma progressiva, sendo o momento que examinamos o de uma transição entre o modelo que datava ainda do século XIX e um novo modelo de escrita e de profissional da história, cujos contor-nos não eram muito nítidos e/ou consolidados. (p. 61)

Aliás, quanto a esse aspecto, há uma íntima relação entre os dois textos, na discussão que apresentam sobre a forma como a escrita da história se altera, em virtude dos novos contornos da sociedade, da cultura e da política.

A segunda parte, "O Antigo Regime e a colonização em questão", reúne seis ensaios, de autoria de Maria Fernanda Bicalho, de Maria de Fátima Silva Gouvêa e Marília Nogueira dos Santos, de Rodrigo Ben-tes Monteiro e Jorge Miranda Leite, de Mônica da Silva Ribeiro, de Luciana Mendes Gandelman e de Mary Anne Junqueira. Neles são

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revistos os conceitos de Estado, nação, nacionalismo, pátria, colônia e metrópole, contribuindo diretamente para uma reinterpretação do perí-odo, principalmente com a preocupação de que os manuais didáticos utilizados no ensino de história, no ensino fundamental (e médio), se voltem com maior cuidado para essas questões primordiais para o estudo dessa época. Quase todos os ensaios dessa parte, além de se pautarem nos conceitos de "cultura histórica" e de "cultura política", também se utilizaram da definição de "regimes de historicidade" elabo-rada pelo historiador francês François Hartog, comentado anteriormen-te, porque, de acordo com Maria Fernanda Bicalho e de Rodrigo Ben-tes Monteiro e Jorge Miranda Leite:

[...] pode ser entendido de duas formas: numa acepção restrita, como uma sociedade trata o seu passado, e nele se vê; e numa acep-ção mais vasta, de acordo com a qual regimes de historicidade serve para designar a modalidade de consciência de si de uma comunidade humana. A seu ver, essa noção pode fornecer um instrumento de comparação de tipos de história diferentes no sentido de iluminar dis-tintas formas de relacionamento com o tempo ou, em outras palavras, formas específicas de experiência do tempo. (p. 84-5) [...] Segundo o historiador francês, há várias ordens do tempo, segundo lugares e tempos. Um regime de historicidade pode significar o modo como uma sociedade trata seu passado, a consciência de si mesma. A noção nega uma historicidade idêntica a todas as sociedades. Ao comparar tipos de história diferentes, evidencia modos de relação com o tempo: formas de experiência, aqui e ali, hoje e ontem. Portanto, a hipótese do regime de historicidade atua sobre vários tempos, instaurando um vaivém entre presente e passado, ou melhor, passados, eventualmen-te distantes no tempo e no espaço. (p. 124)

A terceira parte, "Identidades em questão: indígenas, negros e mestiços", que é um dos muitos pontos altos do livro, contém cinco ensaios, de autoria de Maria Regina Celestino de Almeida, Hebe Ma-tos, Carolina Vianna Dantas, Renata Figueiredo Moraes e Larissa Viana, nos quais as autoras se preocuparam em repensar as comple-xas relações entre negros, índios e mestiços, no difícil e tenso proces-so histórico, pelo qual cada grupo e etnia passou para construir a sua própria identidade. Nesse caso, vale lembrar a sensibilidade com que os textos indicam as representações que foram elaboradas sobre a figura de Zumbi e de Henrique Dias (no caso do de Hebe Matos), os lugares que encontraram os descendentes africanos na nação após a abolição (no texto de Carolina Vianna Dantas), como também as me-mórias do cativeiro e as visões da liberdade, durante o processo da abolição do regime escravista e depois (no texto de Renata Figueiredo Moraes), ou ainda, os debates produzidos no passado e no presente sobre a mestiçagem (no texto de Larissa Vianna).

Na quarta parte, "Representações do povo, do intelectual e da na-ção", com quatro ensaios, de autoria de Magali Gouveia Engel, Rebe-ca Gontijo, Luigi Bonafé e Martha Abreu, indicam-se as relações aber-tamente tensas entre a "cultura histórica" e a "cultura política", no pro-cesso de elaboração da "historiografia" e do "ensino de história", ao

deterem-se nas representações que intelectuais, como Capistrano de Abreu ou Joaquim Nabuco, elaboraram sobre a nação e o povo, na forma como os livros didáticos expressavam essa relação, ou ainda na maneira como o patrimônio histórico nacional foi e está sendo preser-vado e estudado.

Por fim, na quinta parte, "Participação política", com seis ensaios, de autoria de Andrea Marzano, Marcelo de Souza Magalhães, Rachel Soihet, Sueli Gomes Gosta, Conceição Pires e Flávia Cópio Esteves, houve uma preocupação especial, em três dos seis ensaios, em des-tacar o papel da mulher e do feminismo na construção dos direitos políticos, sociais e civis durante o regime republicano no país. Desta-caram-se ainda as relações entre cinema e história, reforma urbana e organização social, e ainda a participação política e o abolicionismo popular na segunda metade do século XIX.

Desse modo, o livro é um belo convite a todos aqueles leitores, alunos e pesquisadores, que se preocupam, ou querem conhecer melhor, a maneira como a "cultura histórica" e a "cultura política" estão intimamente relacionadas e ao mesmo tempo interferem e influenciam diretamente na produção da "historiografia" e do "ensino de história", no ensino fundamental (e médio). Ao dirimirem os usos e as represen-tações que foram feitas e construídas sobre o passado, tanto por inte-lectuais quanto por órgãos governamentais, principalmente, a respeito do povo e da nação, e das relações entre brancos, negros, índios e mestiços, os autores buscaram repensar o processo, para que "novos" usos e representações sobre o passado possam também ser construí-dos, diante da "cultura histórica" e da "cultura política" vivida contem-poraneamente pela sociedade brasileira. Esse talvez tenha sido o principal objetivo dos autores ao planejarem essa obra. Pode-se, evi-dentemente, questionar um ou outro ponto do argumento e da de-monstração, mas não há como negar o pioneirismo da iniciativa do grupo do NUPEHC do Departamento de História da UFF, que desde 1992 tem feito um trabalho exemplar e digno de nota.

TESTES

1 – O “gênero” “belas mentiras” fez sucesso:

a) na década de 50; b) de 60;

c) de 20; d) de 70 e 80.

2 – Esse “gênero” se refere a:

a) um tipo de contos de fada paradidáticos;

b) uma forma encontrada pelos autores de livros didáticos para enganar os censores do regime militar brasileiro;

c) uma série de pesquisas acadêmicas que dedicaram-se a fla-grar nos livros didáticos e paradidáticos brasileiros a presença insidiosa da mentira, da manipulação, do preconceito, da misti-ficação, da legitimação da dominação e da exploração burgue-sas – em suma, da ideologia;

d) nenhuma das anteriores.

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3 – Segundo Kazumi Munakata,

a) a denúncia das “belas mentiras” foi menos contundente do que deveria ser;

b) esse gênero de pesquisa foi útil, mas contemplou certos exa-geros e torna-se discutível sob alguns pontos de vista;

c) a imprensa da década de 80 teve papel legitimador das “menti-ras”, na medida em que se mantinha de fora de toda a discus-são que se travava na sociedade brasileira a esse respeito;

d) as editoras não se abalaram com as críticas e não admitiram mudar o conteúdo “alienante” de seus livros.

4 – Segundo Marta M. C. Carvalho, a História da Educação:

a) surgiu, no Brasil, como um subcampo da Educação;

b) surgiu como um subcampo da História;

c) surgiu autônoma em relação tanto à Educação como à Histó-ria;

d) originou-se da confluência enriquecedora das duas áreas.

5 – Ainda segundo a autora:

a) os “renovadores da educação” dos anos 60 e 70 contribuíram para que a História da Educação e toda a ciência da educação ficassem subordinadas à Sociologia;

b) contribuíram para o advento de uma visão multidisciplinar e aberta na área educacional,

c) dominaram todo o pensamento e a prática educacional no Brasil até a década de 60;

d) nenhuma das anteriores.

6 – O marco inaugural das análises sobre a cultura brasileira é:

a) Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda;

b) Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre;

c) Capítulos de História do Brasil, de Capistrano de Abreu;

d) Retrato do Brasil, de Paulo Prado.

7 – A primeira análise da cultura brasileira realizada em termos de rigor teórico e metodológico foi:

a) Retrato do Brasil;

b) Capítulos de História do Brasil;

c) Raízes do Brasil;

d) Casa grande & senzala.

8 - A matriz do dissenso historiográfico, no Brasil, está na caracteriza-ção do sistema escravista, tido por alguns como violento e cruel, por outros como brando, benevolente. Pode-se dizer que:

a) Gilberto Freyre é o “pai” dessa segunda corrente;

b) Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Fernando Henrique Car-doso são os primeiros representantes brasileiros da primeira corrente;

c) nos anos 80, a corrente que relativiza a violência da escravi-dão renasce com nova roupagem, mais sofisticada teorica-mente;

d) todas as anteriores.

9 – A historiografia recente sobre o Estado Novo tende a considera-lo:

a) como uma expressão brasileira do nazi-fascismo europeu;

b) como expressão de interesses homogêneos;

c) como um regime que buscou consenso em bases populares;

d) nenhuma das anteriores.

10 – Segundo Maria de Lourdes M. Janotti, a respeito da historiografia sobre a implantação da República no Brasil, pode-se dizer que:

a) nunca houve consenso entre as explicações do por quê dessa implantação;

b) sempre foi fundamentada, nas mais diversas abordagens, na ideia de inevitabilidade da República;

c) teve sempre um aspecto fragmentado e nunca deu conta do todo;

d) só começou a ser produzida de forma realmente produtiva agora, com o advento da “Nova História”.

11. No Brasil os estudos sobre a família (ou as famílias) tem especi-ficidades se compararmos com outras áreas da Europa, Estados Unidos e Canadá:

a) Existe no Brasil uma relação ainda mais forte que outros paí-ses com a democracia histórica;

b) Existe no Brasil uma relação em menor intensidade que outros países com a democracia histórica;

c) Os estudos sobre a família não ocorre em outros países; d) N.d.a

12. No livro “Domínios da História”, o autor tem como objetivo: a) B e c estão corretas; b) Debater as polêmicas que fizeram presentes na história disci-

plina e da pesquisa, com ênfase nas controvérsias atuais. c) Traçar um panorama geral e atualizado dos vários campos de

investigação na área da história; d) N.d.a

13. O termo cultura foi designado pelos alemães e franceses res-pectivamente como:

a) Habitualmente os costumes específicos de sociedade indivi-dualmente tomada em especial os modos de vida da mudança muito lenta que serviam de base à coesão social (francesa); A civilização seriam “altas culturas” caracterizadas pela urbani-zação, a escrita, o desenvolvimento das ciências, a metalurgia e a diferença de status entre indivíduos e grupos (alemão);

b) Habitualmente os costumes específicos de sociedade indivi-dualmente tomada em especial os modos de vida da mudança muito lenta que serviam de base à coesão social (alemão); A civilização seriam “altas culturas” caracterizadas pela urbani-zação, a escrita, o desenvolvimento das ciências, a metalurgia e a diferença de status entre indivíduos e grupos (francesa);

c) Todas as alternativas estão corretas; d) N.d.a

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14. A visão marxista da história foi adequadamente sintetizada por Adam nos pontos seguintes:

a) Que a realidade social é imutável; b) Que as mudanças conduzem a estados periódicos de equilí-

brio relativo cuja característica não é a ausência de qualquer mudança, mas sim a duração relativa de suas formas e rela-ções recíprocas;

c) A e b estão corretas; d) N.d.a

15. A definição de historicidade provoca algumas dificuldades: a) Escassez de fontes informativas para uma síntese; b) Falha nas definições além de poucas são incompletas; c) A e b estão corretas; d) N.d.a

16. O período de 1960/70 – 1990/95 caracteriza-se: a) A história das ideias renovou e consolidou em função das no-

vas tendências que estão presentes na historiografia ocidental; b) Rótulo “revolta antipositivista”; c) A e b estão corretas; d) N.d.a

17. Modelo segundo os autores é: a) Uma dupla operação cognitiva de um lado os procedimentos

para a construção do próprio modelo de outro as modalidades da sua aplicação;

b) A e c estão corretas; c) É uma operação conceitual visando conceituar relações ou

funções que ligam as unidades de seu sistema; d) N.d.a

18. Na relação com a agricultura a análise histórica deve contemplar: a) Os elementos que se associam a fim de que seja possível uma

explicação inteligível do processo histórico na agricultura colo-cando-se no tocante aqueles fatores, questões prévias;

b) Os fatores econômico e social do mundo; c) A e b estão corretas; d) N.d.a

19. A concentração de trabalhos sobre história empresarial de um setor de ponta como o textil decorre da importância que teve quanto o valor de investimentos da produção, do pioneirismo tecnológico sobrepondo a atividade artesanal e manufaturada aconteceu na década de:

a) 1926 b) 1930 c) 1950 d) 1940

20. A história da agricultura é uma expressão que assume três tipos diversos de abordagem. São eles:

a) I- a história da agricultura stricto sensu; II- a história agrárias como uma modalidade de história social; III – combinação das duas primeiras;

b) A história da agricultura sensu, II- a história agrária como uma modalidade da história social; III – combinação das duas pri-meiras;

c) N.d.a; d) Todas estão corretas.

GABARITO

1-D 2-C 3-B 4-A 5-A 6-B 7-C 8-D 9-D 10-B 11-A 12-A 13-B 14-C 15-C 16-A 17-B 18-C 19-B 20-A

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