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ARQUEOLOGIA DA COMPOSIÇÃO: MANUEL BANDEIRA

Autor: Eduardo dos Santos Coelho

Orientador: Eucanaã de Nazareno Ferraz

Tese de doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernácu-

las da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários

para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

Examinada por:

__________________________________________________________ Presidente, Professor Doutor Eucanaã Ferraz ___________________________________________________________ Professor Doutor Antonio Carlos Secchin – UFRJ ___________________________________________________________ Professor Doutor Eduardo Jardim de Moraes – PUC-RJ ___________________________________________________________ Professor Doutor José Miguel Soares Wisnik – USP ___________________________________________________________ Professora Doutora Marlene de Castro Correia – UFRJ ___________________________________________________________ Professor Doutor Frederico Augusto Liberato de Góes – UFRJ, suplente ___________________________________________________________ Professor Doutor Júlio Cesar Valladão Diniz – UFRJ, suplente

Rio de Janeiro Março de 2009

ARQUEOLOGIA DA COMPOSIÇÃO: MANUEL BANDEIRA

Eduardo dos Santos Coelho

Tese de Doutorado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro co-

mo quesito para a obtenção do Título de

Doutor em Letras Vernáculas (Literatura

Brasileira).

Orientador: Eucanaã de Nazareno Ferraz.

Rio de Janeiro

Março de 2009

AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, ao professor Eucanaã Ferraz, que colaborou

de maneira terna e generosa em toda minha formação acadêmica. Devo a ele não so-

mente a orientação desta pesquisa, mas, especialmente, o modo zeloso de consolidar a

nossa amizade.

Aos professores da Faculdade de Letras da UFRJ que intensificaram, com

saber e companheirismo, o meu interesse pela literatura. A eles também devo o meu

afeto e a minha admiração.

Aos professores Antonio Carlos Secchin e Eduardo Jardim, que participa-

ram do meu Exame de Qualificação e fizeram observações valiosas para o desenvolvi-

mento deste trabalho. Aos demais professores que muito especialmente compõem esta

banca: Marlene de Castro Correia e José Miguel Wisnik.

A Júlio Castañon Guimaraens, a quem devo muitos instrumentos de leitura

usados nesta tese.

A todos que, de alguma maneira, contribuíram atenciosamente para a reali-

zação desta tese: Armando Freitas Filho, Connie Lopes, Eliane Vasconcellos, Fred

Góes, João Camillo Penna, Luiz Ruffato, Patrícia Reis, Sofia de Sousa Silva, Terezinha

Marinho e aos funcionários do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação

Casa de Rui Barbosa, especialmente Laura Regina Xavier, Rosângela Rangel e Glau-

ber Cruz.

Por fim, devo agradecer ao CNPq pela bolsa de pesquisa para a realização

deste estudo.

SINOPSE

A poética de Manuel Bandeira no contexto modernista. O con-

tato do poeta com técnicas tradicionais ou vanguardistas de cri-

ação. O poema de substrato biográfico e o poema “impessoal”.

Construção e inspiração na lírica bandeiriana.

In: COELHO, Eduardo. Arqueologia da composição: Manuel Bandeira. Rio de

Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2009. 219 fl. Tese de Doutorado em Literatu-

ra Brasileira.

ABSTRACT

Manuel Bandeira’s lyricism. The contact of the poet with both

traditional and innovative techniques of writing. The incorpora-

tion of principles from Philology and Linguistics into the pro-

saic language of the modernists. The poem based on a bio-

graphical event and the “impersonal” poem. Construction and

inspiration in Bandeira’s lyricism.

In: COELHO, Eduardo. Arqueologia da composição: Manuel Bandeira. Rio de

Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2009. 222 fl. Tese de Doutorado em Literatura

Brasileira.

SUMÁRIO

1. Introdução, 9

2. Mistura de códigos: “turco com sírio-libanês”, 17

2.1. “O poeta que sabe nadar em todas as águas”, 27

3. O poeta modernista em lingüística, 46

4. O poeta “dentro” e “fora” do modernismo, 69

4.1. O dito e o não-dito, 105

4.1.1. Guillaume Apollinaire, o dito, 105

4.1.2. Blaise Cendrars, o não-dito, 126

5. Dois poemas elástico, 139

5.1. “A realidade e a imagem”, 139

5.1.1. Dois fatos estilísticos, 140

5.1.2. O processo de criação, 152

5.2. “Poema tirado de uma notícia de jornal”, 170

6. Apêndice, 183

7. Bibliografia, 192

Para Regina e Sofia.

Chamo poeta 100% o que é artista também, isto é, artesão também, ― o poeta que sabe nadar em todas as águas: no oceano em completo perpé-tuo movimento do verso-livre e... nos blocos congelados da forma-fixa. Os poetas que não têm o verso medido nas ouças, mesmo quando da for-ça extraordinária de um Schmidt ou de um Murilo, me causam um certo mal-estar nas minhas idéias sobre poesia. Como de resto o poeta-medidor que se perde no verso-livre que nem João mais Maria sem mi-lho para marcar o caminho na floresta.

Trecho de carta de Manuel Bandeira a Alphonsus de Guimaraens Filho.

1. INTRODUÇÃO

Manuel Bandeira considerava um equívoco afirmar que “o modernista não

diz o que sente ou o que pensa do objeto porém faz o objeto viver”. Para ele, também é

“besteira” distinguir o lirismo puro do lirismo objetivo, pois acreditava que todas as

manifestações do poético são subjetivas. O que diferenciaria um lirismo do outro, con-

forme explicou em carta a Mário de Andrade, seria “a maior ou menor complicação de

elementos intelectuais”.1

Tais considerações nos ajudam a compreender que um dos poetas mais líri-

cos da literatura brasileira tenha declarado que “[...] a poesia está nas palavras, se faz

com palavras e não com sentimentos [...]”, acompanhando, ainda segundo ele, a lição de

Stéphane Mallarmé.2 Porém, a continuação de sua análise insere um elemento compli-

cador: “[...] muito embora, bem entendido, seja pela força do sentimento ou pela tensão

do espírito que acodem ao poeta as combinações de palavras onde há carga de poesia.”3

Trata-se de um acréscimo que vai na direção oposta ao programa criativo de Mallarmé,

gerando, conseqüentemente, uma tensão de interesses: Manuel Bandeira recorria, no

processo de composição, ao lado construtivo e também ao emocional-intuitivo. Logo,

suspeitamos que a sua poesia consagradamente simples revela um projeto ambicioso, a

1 Estes dados a respeito do pensamento bandeiriano acerca do lirismo foram extraídos da carta de 10 de outubro de 1927. Cf. ANDRADE, Mário; BANDEIRA, Manuel. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. Introdução e notas de Marco Antonio de Moraes. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000. p. 356. Coleção Correspondência de Mário de Andrade. 2 BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. Rio de Janeiro: Jornal de Letras, 1954. p. 24. 3 Ibid., p. 24.

englobar, acerca da escrita poética, a visão moderna, mais próxima da idéia de constru-

ção, e a tradicional, que, no seu caso, estaria mais ligada sobretudo ao romantismo.

Tendo em vista tais questões, parece-nos necessário desconfiar de um certo

juízo crítico que costumeiramente usa a obra bandeiriana para propor, de modo esque-

mático, as distintas orientações da poesia moderna no Brasil. A 23 de março de 2001,

no seminário “Cabral ― Bandeira ― Drummond”, realizado na Fundação Casa de Rui

Barbosa, Luiz Costa Lima serviu-se da poética de Manuel Bandeira para constatar que

João Cabral de Melo Neto se encontra num “outro agora”, mais construtivo e conscien-

te, onde não há pessoalização e psicologia. Nesta argumentação, em um pólo ficaria

Bandeira, o lírico, que no poema “Meninos carvoeiros”, de O ritmo dissoluto, substituiu

a impessoalização pela afetividade, conforme Costa Lima; no outro, Cabral, o antilírico

responsável, racional, cujo caráter construtivo e a sensibilidade do intelecto receberam

destaque na análise do poema “O vento no canavial”, de Paisagens com figuras. Tal

oposição buscava mostrar, fundamentalmente, que o lirismo bandeiriano põe a afetivi-

dade no lugar da consciência (“ética da fraternidade” de um “mundo sereno”), enquanto

o antilirismo cabralino se relaciona com um senso político (“ética da polis” do alerta

sensível e pensado). Embora o crítico tenha esclarecido que pretendia demonstrar que as

poéticas desses autores “são bastante distintas, sem que sejam antagônicas”, no anda-

mento do estudo há diversas proposições opositivas.4

Já Silviano Santiago, em resenha de Poemas esparsos, de Vinicius de Mora-

es, publicada a 3 de janeiro de 2009, estabelece uma oposição entre Bandeira, o defen-

sor da tradição, e Oswald de Andrade, o vanguardista:

4 A conferência de Luiz Costa Lima, em mesa-redonda com Augusto Massi e Júlio Castañon Guimarães, foi publicada em duas versões: a primeira, na Revista USP, n.o 50, junho-julho-agosto de 2001, São Pau-lo, Universidade de São Paulo, p. 39-45; a segunda, no livro Intervenções (São Paulo: Edusp, 2002. p. 57-68), onde suaviza as oposições devido, provavelmente, às críticas recebidas de Augusto Massi durante o seminário.

Parte da história do modernismo brasileiro descreve uma luta livre entre os defensores

do poema de vanguarda e os desafiantes do poema lírico tradicional. De um lado do ringue,

Oswald de Andrade, o Touro Antropófago, e do outro, Manuel Bandeira, o Alce de Clava-

del. À esquerda, João Cabral de Melo Neto, o Otelo dos Canaviais, e, à direita, Ledo Ivo, o

Cabra do Sertão.5

O breve esquema de Silviano Santiago é mais incisivo do que parece. Não

se trata apenas de um antagonismo formalista, pois a estranha designição “Alce de Cla-

vadel”, como epíteto de Manuel Bandeira, destaca o poeta tísico no ambiente do sanató-

rio suíço e desconsidera, nessa imagem alegórica, a presença marcante de outras geogra-

fias muito mais importantes da lírica bandeiriana, como Recife e Rio de Janeiro, que

sugerem, entre outras características, a naturalidade e a simplicidade de sua poesia. A

limitação geográfica do epíteto representa também uma restrição temporal, pois Clava-

del corresponde a quinze meses na vida de um poeta que viveu oitenta e dois anos. Tal-

vez seria mais apropriado chamá-lo, digamos, “Andorinha da rua da Aurora” ou “Ca-

chorro Vira-Lata da Lapa”. No entanto, o crítico mineiro recusou as inovações de Liber-

tinagem e dos livros seguintes para salientar o que pode ser considerado passadista.

Por fim, atentemos no cenário montado por Silviano: os dois poetas encon-

tram-se num “ringue”, como se houvesse, da parte de Bandeira, interesse de esmurrar as

técnicas vanguardistas de composição. Por meio desse esquema, o poeta do cotidiano e

do trivial mais se assemelha a um purista, que ele mesmo combateu violenta e explici-

tamente em “Poética” e “Evocação do Recife”.

Desse modo, Luiz Costa Lima e Silviano Santiago estão concentrados, em

suas propostas esquemáticas, na primeira fase da obra do poeta, que ocupa uma posição

5 Cf. SANTIAGO, Silviano. Reunião de Eucanaã valoriza “sobras” de Vinicius, Folha de S. Paulo, Folha Ilustrada, São Paulo, 3 de janeiro de 2009.

mais conservadora se comparada com os seus demais títulos, sobretudo Libertinagem.

Bastaria ler, dentre muitos textos, o “Poema tirado de uma notícia de jornal” e “A reali-

dade e a imagem” para comprovar a impossibilidade de uma relação desse tipo.

Podemos deduzir que, em ambos os casos, a poesia bandeiriana foi lida

simploriamente e com inocência? Não, tendo em vista que os críticos em questão ocu-

pam um lugar por demais importante nos estudos da literatura brasileira, com produções

intelectuais vastas e respeitadíssimas, com ensaios determinantes para a compreensão

do contexto modernista. Não queremos afirmar que os itens apontados pelos dois críti-

cos não sejam fundamentais para caracterizar a obra de Bandeira. Entretanto, Costa Li-

ma e Silviano sofrem de um esquematismo didático à disposição de conclusões prede-

terminadas, o que não é suficiente para abordar poéticas tão complexas como a de Ma-

nuel Bandeira. Seria necessário ainda, para tais esquemas, considerar a sua postura inte-

lectual revelada nas cartas, crônicas, entrevistas e no Itinerário de Pasárgada.

Ele não autoriza, portanto, qualquer crítico a enquadrá-lo a esquemas nos

quais se reduzam os elementos de sua poética, marcada por múltiplas formas de escrita

e técnicas de construção: criação consciente e intuitiva; poemas de substrato biográfico

e de caráter “impessoal”; versos metrificados e livres, entre outros. Assim, tais esque-

mas, sugeridos até mesmo por críticos notáveis, levantam uma série de questionamentos

concernentes a visões mais ou menos redutoras da poética bandeiriana, alguns dos quais

pretendemos desenvolver aqui.

É fundamental, nesse sentido, examinar no que consistem os aspectos tradi-

cionais e os modernistas de sua lírica, verificando, além disso, se o primeiro não ofere-

ceria elementos para a consolidação de uma poesia que, à sua maneira, parece bastante

inovadora e singular no contexto das propostas consolidadas na Semana de Arte Mo-

derna. Em razão disso, torna-se necessário investigar não apenas os diálogos que estabe-

leceu com a tradição, mas também com os principais escritores do grupo modernista ―

Mário de Andrade e Oswald de Andrade ―, e levantar os pontos de contato e as diver-

gências entre eles. O mesmo devemos fazer com poetas das vanguardas européias que

tiveram, direta ou indiretamente, uma importância destacada na própria formação das

técnicas de construção bandeirianas e/ou de outros modernistas. Talvez encontremos,

por meio dessas influências, novas possibilidades interpretativas de elementos tradicio-

nais e modernos por Bandeira incorporados.

Porém, não só às técnicas deveremos nos ater. Seria igualmente importante,

para maiores esclarecimentos das orientações criativas seguidas pelo poeta, analisar

como funcionam os procedimentos de escrita ― a construção e a inspiração ― por ele

acionados. Acreditamos ainda que pode ser interessante pensar na apropriação de fatos

biográficos ou de linguagens não-literárias para a elaboração de certos poemas. A partir

daí, será importante averiguar as implições dessa série de aspectos em sua obra.

Para desenvolver nossa proposta, tomaremos, como principal base crítico-

teórica, as correspondências de Manuel Bandeira ― principalmente a destinada a Mário

de Andrade e Ribeiro Couto. Escritas com regularidade, compreendendo os anos de

1919 a 1954, nessas cartas há registros esclarecedores sobre a geração da Semana de

Arte Moderna de 1922; discussões a respeito das vanguardas européias e do modernis-

mo brasileiro, bem como de seus autores; reflexões a respeito da coloquialidade e da

simplicidade; exame de características referentes ao lirismo; análises acerca da natureza

das formas fixas; considerações em torno da filologia e da lingüística da época, além de

observações muito bem engendradas a respeito de sua própria criação. Logo, sua cor-

respondência é mais do que um espaço onde vicejam notícias e assuntos pessoais: ela

teve êxito como suporte ao amadurecimento de muitos poemas e técnicas, o que, por

extensão, contribuiu para formar a sua obra.

Também foi possível chegarmos, por meio delas, aos livros que lera naque-

les anos e, conseqüentemente, ao levantamento de possíveis diálogos com outras orien-

tações criativas, como as de Blaise Cendrars, Guillaume Apollinaire, João Ribeiro e

Oswald de Andrade, os quais avaliaremos. Lembremos ainda das versões de alguns po-

emas bandeirianos transcritos nas cartas, a nos revelar, através do instrumental da crítica

genética, variados processos de construção de que se valeu para elaborar algumas espe-

cificidades de sua lírica.

Referente à aplicação da crítica genética para o desenvolvimento deste tra-

balho, poderemos recorrer às edições críticas de A cinza das horas, Carnaval, O ritmo

dissoluto, Libertinagem e Estrela da Manhã,6 além de um volume anotado de Poesias,

de 1940, em que Bandeira fez, para o biógrafo e crítico Francisco de Assis Barbosa,

observações manuscritas à margem das páginas.7 Por fim, investigaremos, quando ne-

cessário, versões de poemas que foram publicados em jornais e revistas. Julgamos que

desse modo haverá condições de avaliar, com mais profundidade, a elaboração da sua

poética modernista, pois trata-se de um instrumental que nos possibilita assistir à cria-

ção em progresso, desvelando os seus objetivos ao fazer certas mudanças nos textos.

Portanto, assim como a arqueologia examina testemunhos materiais para

constituir o passado de uma comunidade ou nação, nosso objetivo é pesquisar, nessas

correspondências (que seriam o nosso campo arqueológico), elementos que servem à

recomposição de um processo diacrônico de formulação da poética inovadora do poeta.

6 BANDEIRA, Manuel. A cinza das horas; Carnaval; O ritmo dissoluto. Edição crítica preparada por Júlio Castañon Guimarães e Rachel T. Valença. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994; BANDEIRA, Manuel. Libertinagem–Estrela da manhã. Edição crítica preparada por Giulia Lanciani. Madrid; París; México; Buenos Aires, São Paulo; Lima, Guatemala, San José; Santiago de Chile: ALLCA XX, 1998. Coleção Archivos, 33. 7 Cf. O exemplar anotado encontra-se na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. No Anexo, repro-duzimos as observações manuscritas de Manuel Bandeira referentes aos livros Libertinagem e Estrela da Manhã, a que recorremos neste trabalho.

Pensamos que, mediante esse riquíssimo corpus, chegaremos a esclarecimentos funda-

mentais para a compreensão de sua obra e das variadas técnicas de que se valeu o poeta.

Interessa destacar que as cartas são basicamente de duas naturezas, cujas

propriedades, aliás, às vezes se misturam: caracterizam-se pela escrita e reflexão acerca

da poesia ou pelo registro do cotidiano do próprio autor. Dessa maneira, as correspon-

dências serão lidas como um diário biográfico e criativo, a partir do qual tentaremos

comprovar e aprofundar hipóteses que foram suscitadas mediante a leitura da sua poesi-

a, e também como textos (semi)literários, uma vez que elas se tornaram parte integrante

do processo construtivo e da conscientização de certas técnicas. Contudo, não propomos

um estudo das cartas de Manuel Bandeira, mas uma tentativa de abrir novas sendas de

análise, em que talvez se revele necessário, por meio desse método, corrigir idéias já

consagradas pela sua fortuna crítica. De alguma forma, esteve em foco, durante toda a

pesquisa, a seleção do que, nas suas cartas, pudesse nos revelar novas perspectivas em

torno da criação. Por outro lado, é justamente pela manipulação dessas correspondên-

cias como testemunho material e também literário que estabeleceremos uma parte da

originalidade de Arqueologia da composição.

Em seguida, veio a necessidade de aprofundar a pesquisa, estendendo o seu

campo de ação: seria enriquecedor perceber como as questões por ele levantadas nas

cartas eram tratadas em seus artigos, crônicas e entrevistas, além do seu livro autobio-

gráfico, o Itinerário de Pasárgada. Conseqüentemente, a tese buscará não só a investi-

gação de técnicas e procedimentos criativos: também queremos observar o pensamento

de Manuel Bandeira acerca da poesia.

Diante da falibilidade da crítica e de sua insuficiência para tratar da natureza

da criação poética, escolhemos, para estruturar nossa tese, a forma do ensaio, uma via

sempre provisória e de caráter orgânico. Consideramos que o gênero ensaístico possa se

tornar o caminho mais eficiente para atingir nossos objetivos analíticos. Trata-se de uma

escolha metodológica, certamente, embora este conceito não nos seja o mais adequado,

pelo que há nele de premeditação. É que a metodologia busca estabelecer caminhos de

modo a fechar-se para outras possibilidades. Estas, no decorrer do processo de elabora-

ção de uma obra, podem gerar novos meios de exploração do objeto de análise, assim

como ampliar as conclusões do trabalho. Não queremos restringir outras vias que po-

dem surgir ao longo da tese e para esse intento o ensaio promete ser bastante eficaz: ele

permite um tipo móvel de análise e base crítico-teórica, mantendo-se aberto a novas

questões que podem se manifestar a qualquer momento. Tal escolha está ligada a uma

forma antidoutrinária, que vê na transitoriedade um valor e, dessa maneira, parece-nos

um meio adequado para desenvolver uma pesquisa sobre o poeta da liberdade criativa.

2. MISTURA DE CÓDIGOS: “TURCO COM SÍRIO-LIBANÊS”8

Um dos traços fundamentais da escrita de Manuel Bandeira, desde Liberti-

nagem, foi a busca da poesia nos elementos convencionalmente não-poéticos. Ele então

se afastava do olhar costumeiro sobre as coisas, para extrair ― não sem obstáculos ― o

lirismo encoberto pela rotina, por outras linguagens não-literárias e até mesmo pelas

linguagens estritamente literárias. Desse modo, Bandeira distanciava-se da expressão

excessivamente psicologizada, para que seus versos fossem construídos. Não se tratava

portanto de um encontro fortuito com a poesia: havia, ao contrário, um esforço consci-

ente em direção ao poético que estivesse sob as diversas formas tradicionalmente inade-

quadas para estimular a realização criativa.

Dessa arte compreendida como fazer surgiram relações entre as técnicas jor-

nalísticas e a escrita poética, que analisaremos no presente capítulo. As primeiras mar-

cas evidentes desse diálogo emergem, na obra bandeiriana, no “Poema tirado de uma

notícia de jornal”, publicado a 31 de dezembro de 1925, em A Noite.9 Mais tarde, a idéia

de uma poesia que pode ser desentranhada do jornal aparecerá, respectivamente, em

duas crônicas ― “Fragmentos”, de Crônicas da província do Brasil, editado em 1936, e

no “Poema desentranhado”, de Flauta de papel, reunião de crônicas publicada em 1957:

8 Título inspirado na crônica “Poesia pau-brasil”, de Andorinha, andorinha (Seleção e organização de Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966. p. 247). 9 BANDEIRA, op. cit., 1998, p. 28.

Todos os dias a poesia reponta onde menos se espera: numa notícia policial dos jornais,

numa tabuleta de fábrica, num nome de hotel da Rua Marechal Floriano, nos anúncios da

Casa Matias... [...].

[...] num livro de fórmulas de toilette para mulheres.10

E ainda:

O poeta é um abstrator de quinta-essências líricas. É um sujeito que sabe desentranhar a

poesia que há escondida nas coisas, nas palavras, nos gritos, nos sonhos. A poesia que há em

tudo, porque a poesia é o éter em que tudo mergulha, e que tudo penetra.

O poeta muitas vezes se delicia em criar poesia, não tirando-a de si, dos seus sentimen-

tos, dos seus sonhos, das suas experiências, mas “desgangarizando-a”, como disse Couto de

Barros,11 dos minérios em que ela jaz sepultada: uma notícia de jornal, uma frase ouvida

num bonde ou lida numa receita de doce ou numa fórmula de toilette.12

Estas crônicas nos levam, ao menos, a três conclusões:

1.a) São textos que serviram como exercício de análise de sua própria poéti-

ca e, conseqüentemente, à formação de um projeto artístico coerente ou, ao menos, re-

gularmente pensado. Bandeira escrevia poemas nos quais aplicava novas técnicas, de-

pois refletia, por intermédio das crônicas, acerca desses percursos de criação, o que o

levaria, adiante, a um importante volume de reminiscências, o Itinerário de Pasárgada.

A consciência sobre o processo criativo adensava-se com o tempo, uma vez que o poeta

reavaliava permanentemente a própria obra e criava, a partir disso, novas perspectivas

sobre ela.

10 BANDEIRA, Manuel. Manuel Bandeira. Seleção e prefácio de Eduardo Coelho. São Paulo: Global, 2003. Coleção Melhores Crônicas. p. 104. 11 Trata-se aqui de uma referência ao texto “Divagação em torno de Manuel Bandeira”, de Couto de Bar-ros, publicado no livro Homenagem a Manuel Bandeira (Rio de Janeiro: Jornal do Commercio, 1936. p. 75-79). 12 BANDEIRA, op. cit., 2003, p. 150.

Observemos também que o Itinerário de Pasárgada nasceu de um convite

feito por Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. A proposta era que Manuel Ban-

deira escrevesse as suas memórias para serem publicadas em série, feito crônicas, mas a

revista a que se destinavam não teve êxito e as reminiscências surgiram a público, por

fim, no Jornal de Letras, sob o comando de João Condé.13 Manteve-se, ainda assim, o

caráter serial desses textos, um traço que não se revela no livro em função da sua unida-

de interna, do perfeito encadeamento que há entre os registros das experiências biográ-

ficas e literárias. A perfeita coesão entre os textos do Itinerário de Pasárgada parece

surgir do trânsito que há muito ele estabelecera entre o poema e a crônica. Esse trânsito

se evidencia no interesse de Bandeira pela linguagem coloquial e pelos fatos cotidianos,

duas marcas definidoras do gênero crônica e também de sua obra poética.

Em “Camelôs”, “Evocação do Recife”, “Mangue” e “Poema tirado de uma

notícia de jornal”, todos de Libertinagem, reconhecemos o olhar do cronista, que escre-

via ora numa linguagem direta e objetiva, ora num tom emocionado e lírico, às vezes a

coexistirem. Há crônicas e poemas que surgiram assinalados pelo coloquialismo e pela

simplicidade, com registros sobre a urbe e suas transformações, os fait divers, as belezas

e singularidades do cotidiano ― características que pontuam elementos da realidade

brasileira como quem se põe em conversação familiar e íntima. A crônica e o poema

revelam, nesse sentido, um diálogo íntimo, em que um gênero parece ter cedido instru-

mentos formais ao outro.

É um diálogo que se evidencia, mais claramente, quando observamos as

considerações de Bandeira sobre o provincianismo: este, segundo ele, pode ser “do

bom, [...] que está nos hábitos do seu meio, que sente as realidades, as necessidades do

seu meio. Esse sente as excelências da província. Não tem vergonha da província, ―

13 BANDEIRA, op. cit., 1954, p. 23.

tem é orgulho”.14 Refere-se então ao período em que colaborou no jornal A Província,

sob direção de Gilberto Freire, que tencionava dar “feitio e caráter bem provincianos”

ao periódico de Recife. A seu ver foi nessa época, nas páginas d’A Província, que ele

“pegou” o “jeito provinciano de conversar”,15 ou seja, uma forma de escrita mais pró-

xima da oralidade, com aparência coloquial e simples. Além disso, a crônica é marcada

pelo registro do circunstancial, do acontecimento do dia-a-dia, normalmente sem grande

importância mas que, examinado pelo cronista, ganha outra dimensão. Algo semelhante

se dá em poemas como “O cacto”, “Momento num café” (ambos de Libertinagem) e

“Tragédia brasileira” (de Estrela da manhã). A partir de tais similitudes podemos esta-

belecer, com maior fundamento, um contato implícito ― certamente desejado para os

seus intentos modernistas ― entre a linguagem coloquial, enxuta, provinciana e simples

das crônicas, que ele começou a escrever nos anos 1920, e a dos poemas de Libertina-

gem, criados na mesma década.

O provincianismo ganhou tamanha relevância na configuração de sua per-

sonalidade poética que observamos, no “Auto-retrato”, de Mafuá do malungo, duas re-

ferências a esse modo de posicionar-se diante das coisas: “Provinciano que nunca sou-

be/ Escolher bem uma gravata” e “até mesmo escrevendo crônicas/ Ficou cronista de

província”.16

2.a) Em seu processo criativo, a poesia desentranhada da matéria jornalísti-

ca não é uma característica volúvel, visto que entre a primeira crônica (do livro de 1936)

e a segunda (do livro de 1957) se passam mais de vinte anos, tempo suficiente para que

Bandeira cristalizasse seu estilo e sua personalidade artística. Mediante os laços que se

14 Cf. BANDEIRA, op. cit., 1966. p. 4. 15 Ibid., p. 4. 16 BANDEIRA, Manuel. Auto-retrato. Poesia e prosa. Introdução geral de Sérgio Buarque de Holanda e Francisco de Assis Brasil. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1958. v. I, p. 515.

firmam entre os versos e a teorização sobre eles revela-se um processo de construção,

disperso nas muitas etapas que buscaremos compor neste roteiro de leitura.

3.a) Na crônica “Fragmentos” ele conceitua, com simplicidade e coloquia-

lismo, a poesia que “reponta” no dia-a-dia. Exemplifica-a através de notícias de jornal,

tabuleta de fábrica, nome de hotel, anúncios de loja e fórmulas para toilette. Há um foco

especial voltado para o cotidiano, a linguagem impessoal e a concisão discursiva. Como

“instâncias” em que pode surgir a poesia, adiciona-se à lista, na segunda crônica, uma

frase ouvida num bonde ― que se caracteriza por uma urbanidade baudelairiana (a frase

colhida num bonde, na cidade), pela oralidade e, supomos, pela coloquialidade da língua

do povo ― ou lida em uma receita de doce, que revela, como de costume, concisão,

força imagética, feminilidade e prazeres sensoriais.

Embora a poesia esteja onde “menos se espera”, notamos, pela crônica

“Fragmentos”, que ela reponta “todos os dias”. Não está vinculada a um momento espe-

cial, mas à completa banalidade. Na “Crônica de Petrópolis”, do livro Flauta de papel,

Bandeira escreve que não tinha, “como tanta gente, [...] o horror do lugar-comum”. Sus-

tenta, logo depois, a possibilidade de se fazer poesia “da melhor” com uma “seleção

avisada de lugares-comuns”.17 Parece haver, nessa direção, uma tentativa de dessacrali-

zar a criação literária, o que pode ser observado nos próprios elementos que contêm a

poesia (“tudo penetra”) ou que nela estão contidos (“o éter em que tudo mergulha”).

Além disso, Manuel Bandeira tinha absoluta consciência do “inesperado”, expressão

que não se refere a seu modo de percepção desse instante, mas à maneira como a tradi-

ção costumava entendê-lo. Para quem dominava a extração da poesia dos elementos

convencionalmente não-poéticos, o que as referidas crônicas nos mostram com muita

17 Ibid., v. II, p. 278.

propriedade, não havia nada de inesperado: a atenção do poeta parecia estar disponível

para executar tal operação criativa.

Estas “lições” teriam sido recebidas indiretamente, desde garoto (dos seis

aos dez anos de idade, sobretudo), mediante as brincadeiras verbais de seu pai e de todo

o ambiente e seus personagens (o casarão do avô; a preta das bananas com o xale de

pano-da-costa; Rosa, sua ama-seca, entre outros), quando viviam na rua da União. Con-

forme o Itinerário de Pasárgada, foi quando Bandeira descobriu as cantigas de roda,

“as trovas populares, coplas de zarzuelas, couplets de operetas francesas”, “nonsenses

líricos” e as invocações de vocábulos que o atraíam.18 Existia, dessa maneira, uma série

de versos e “jogos” com palavras de toda variedade, a maior parte deles de origem po-

pular, que o livraram de preconceitos artísticos e lingüísticos. Era o início de um reser-

vatório criativo que se fazia arbitrariamente e por um modo bastante aderente ― o lu-

dismo.

Muitos anos mais tarde, Manuel Bandeira veio a considerar que seu pai ti-

nha, já naquela época, um gosto muito semelhante às tendências da literatura vanguar-

dista, especialmente no que concerne ao interesse pela coloquialidade, aos diálogos com

as tradições populares e aos nonsenses líricos. Constatemos o perfil “modernista” de seu

pai ― que veio a servir de base para uma renovação estética no lirismo bandeiriano ―

em trechos do Itinerário de Pasárgada e de cartas destinadas a Mário de Andrade. Des-

tacamos os principais para esta análise:

Se eu tivesse algum gênio poético, certo poderia, partindo dessas brincadeiras que meu

pai chamava “óperas”, ter lançado o “surréalisme” antes de Breton e seus companheiros. [I-

tinerário de Pasárgada.]

18 BANDEIRA, op. cit., 1954. p. 10-11.

O próprio meu pai era um grande improvisador de nonsenses líricos, o seu jeito de dar

expansão ao gosto verbal nos momentos de bom-humor. [Itinerário de Pasárgada.]

Se meu pai fosse vivo você não teria leitor mais gozado para a sua história. Ele era doi-

do por esse lirismo essa graça essa sacanagem esse verbalismo popular. [Referindo-se a

Macunaíma, em carta a Mário de Andrade, a 23 de agosto de 1928.]

[...] o meu lirismo cotidiano (aquelas coisas que herdei de meu pai e que você conhece [...].

[Em carta ra Mário de Andrade, a 29 de julho de 1931.]19

Esta dicção “modernista” seria incorporada e transformada de diversas ma-

neiras para renovar a lírica bandeiriana. As brincadeiras surgiam como referências cir-

cunstanciais, força evocativa capaz de mobilizar o sujeito para criar alguns poemas e

ainda como paradigma da estrutura de composição de versos e estrofes. “Trem de fer-

ro”, de Estrela da manhã, é um exemplo perfeito desse último caso. Avaliemos um

fragmento da carta de 3 de dezembro de 1925, também a Mário de Andrade, que traz

maiores esclarecimentos sobre as motivações que levaram Manuel Bandeira a criar esse

poema:

[Camargo Guarnieri] me pediu uma letra para uma peça de canto e piano sob o título de

Trem-de-ferro [sic]. [...] Me acudiu uma brincadeira que meu pai fazia. Quando o trem sai

da estação, dizia ele, vai dizendo: Ca... fé cumpão ...ca...fé cumpão...ca...fé cumpão... E

quando toma velocidade: Poucagente, poucagente, poucagente... Sobre essas duas células

compus a “bossa”. Introduzi na parte central melódica uma quadrinha popular, e para esti-

cá-la, a pedido do Camargo, inventei mais duas no mesmo estilo.20

A brincadeira, como podemos observar, ultrapassa o nível de citação e firma

a estrutura de versos e estrofes baseada na repetição de expressões que simulam o mo-

19 Os dois primeiros trechos estão na páginas 11 do Itinerário de Pasárgada, edição supracitada, enquanto os últimos foram extraídos das páginas 399 e 512 da Correspondência Mário de Andrade & Manuel Ban-deira. 20 Ibid., p. 619.

vimento do trem, marcado pelas expressões “quando o trem sai da estação”, “quando

toma velocidade”, conforme relata na carta. A mimese desse movimento também se

manifesta, no poema, mediante o andamento rítmico, pois quase todos os versos são

curtos, de intensidade ágil, variando entre três e seis sílabas métricas, exceto um deles

― “Virge Maria que foi isto maquinista”, quando há um distanciamento da cena. Por

fim, a brincadeira da infância ainda sugere o “tipo” de intertextualidade a ser feita: a que

estabelecesse um diálogo com a literatura oral, já que os versinhos do pai pareciam sur-

gir dessa tradição. Quanto a este último acréscimo, à brincadeira paterna foram somadas

três cantigas, “Quando me prendero/ No canaviá/ Cada pé de cana/ Era um oficiá”, que,

segundo anotação do próprio autor, foi ouvida de seu pai,21 dando continuidade à recu-

peração das brincadeiras da infância, num processo em que a natureza dos versinhos

revela-se apta a ser adequada à estrutura do poema e simular, através do ritmo e da mé-

trica, o movimento mais dilatado do trem; “Menina bonita/ Do vestido verde/ Me dá tua

boca/ Pra matá minha sede” e “Não gosto daqui/ Nasci no sertão/ Sou de Ouricuri”, cri-

ados sob ímpetos de absoluto caráter modernista e popular, mantendo igualmente a uni-

dade em relação ao que seu pai lhe “forneceu”, de maneira involuntária, para fazer o

poema.22

As brincadeiras verbais da infância ganharam, desse modo, outros valores à

medida que se formava, no início do século XX, o poeta Manuel Bandeira. Elas eram, a

princípio, somente “jogos” com palavras; depois houve um processo de canalização do

ludismo da tenra idade para a construção de um lirismo modernizante, que identificava

conteúdo artístico tanto nos “amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como

nas disparatadas”.23 Ao tornar-se escritor de linhagem moderna, ele parece ter ligado as

brincadeiras ao princípio de que a escrita poética não está confinada ao domínio dos

21 BANDEIRA, op. cit., 1998, p. 76. 22 Ibid., p. 77-78. 23 BANDEIRA, op. cit., 1954, p. 11.

versos, podendo invadir distintos níveis da linguagem. Esta amplidão vem a ser, aliás,

um dos preceitos das vanguardas européias e também do modernismo brasileiro, que no

poeta de Estrela da vida inteira vem recheado ora com seu cotidiano simples e os fatos

concernentes à sua biografia, ora com os versos impessoais.

Mediante uma breve análise de “Trem de ferro”, observamos que as brinca-

deiras podem ser mais do que meras referências: é através delas e de sua simplicidade

que, em alguns casos, a construção do poema se dá, pois elas estabelecem as orientações

construtivas dos versos. Aparentemente simples, “Trem de ferro” agrupa, pela técnica

de montagem, uma brincadeira, uma cantiga da literatura oral, duas outras cantigas cria-

das pelo autor, tudo composto harmoniosamente em função do que serviu de base para o

poema: uma brincadeira. A simplicidade está revelada à superfície do texto ― oriunda

da brincadeira paterna; da repetição de palavras e versos (“foge”, “passa”, “vou” e “Ca-

fé com pão”, “Muita força”, “Pouca gente”);24 da métrica que tem certa regularidade,

impondo facilmente o ritmo à leitura; das cantigas de cinco e sete sílabas métricas, as

redondilhas menor e maior, que são as mais populares e tradicionais na lírica de língua

portuguesa e na literatura oral. A partir desses “ingredientes” muito simples, Manuel

Bandeira veio a criar um poema, no entanto, elaboradíssimo. Esse tipo de matéria-prima

tornou-se fundamental para que desenvolvesse uma obra modernista, contrária ao artifi-

cialismo dos puristas mas não menos engenhosa e rigorosamente construída.

Analisemos, daqui para a frente, os tempos da formação poética modernista

de Manuel Bandeira, baseando-nos em artigos, cartas (algumas inéditas), crônicas, de-

poimentos, ensaios, entrevistas e poemas do próprio autor. Examinaremos os tempos da

infância, da leitura e da formulação de uma técnica, entre outros. Estes não serão obser-

vados linearmente, mas sob as ordens impostas no exame do percurso biográfico do

24 BANDEIRA, op. cit., 1998, p. 77-78.

autor e do percurso criativo de Libertinagem. Sejamos levados, como Paul Valéry, pela

idéia de que a ação criadora desvela alguns elementos determinantes para a compreen-

são de uma obra artística.25 Tentaremos mostrar, por meio desta análise, como Bandeira

se insere na lírica brasileira entre os mais representativos, experimentais e renovadores

poetas do início do século XX.

2.1. “O POETA QUE SABE NADAR EM TODAS AS ÁGUAS”26

Em “Evocação do Recife” o poeta concentrou algumas brincadeiras de sua

infância e nos revela uma Pasárgada vivida e preservada, como fonte de estímulos, na

memória: “Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros

quatro anos de minha vida de adulto, fico espantado do vazio destes últimos em cotejo

com a densidade daquela quadra distante”, escreveu Manuel Bandeira.27 Essa espessura

da infância relaciona-se com a forma como as brincadeiras, as cantigas de roda, os con-

tos da carochinha, a invocação de palavras velhas, os livros João Felpudo, Simplício 25 VALÉRY, Paul. Primeira aula do curso de poética. Variedades. Organização e introdução de João Alexandre Barbosa. Tradução de Maiza Martins de Siqueira. Posfácio de Aguinaldo Gonçalves. São Pau-lo: Iluminuras, 1999. p. 181. 26 Trecho de uma carta de Manuel Bandeira a Alphonsus de Guimaraens Filho, de 19 de outubro de 1941. Cf. GUIMARAENS FILHO, Alphonsus. Itinerários: cartas a Alphonsus de Guimaraens Filho [de] Mário de Andrade e Manuel Bandeira. São Paulo: Duas Cidades, 1974. p. 81. 27 BANDEIRA, op. cit., 1954, p. 13.

olha pro ar, Viagem à roda do mundo numa casquinha de noz, entre outros, estimula-

vam o seu imaginário em direção a uma realidade mais bela, posteriormente organizada

para servir à renovação de sua lírica.

A infância se contrapõe, aos poucos, às privações de uma existência tempo-

rariamente marcada pela debilidade física e pela impossibilidade de estender o presente

além das rígidas normas que a doença estabelecia. A certeza e a precisão com que narra

fatos da sua infância insinuam, no Itinerário de Pasárgada, um conteúdo memorialísti-

co muito bem manipulado, porém a “naturalidade” do seu discurso é tamanha, num sen-

tido geral, que o leitor mal consegue identificar o caráter construtivo das lembranças.

Aqui devemos entender “naturalidade” como o efeito que parece velar a construção das

memórias, imprimindo espontaneidade à narrativa. Caso avaliemos relatos biográficos

que tem a infância como um dos temas, como eu:seis conferências, de cummings; Poe-

sia e verdade, de Goethe; Um homem sem profissão: memórias e confissões, de Oswald

de Andrade ou As confissões dum poeta, de Paul Verlaine, observaremos que neles o

passado recebe outro tratamento, com muitas sinalizações de dúvidas e referências

“mal-acabadas”, ao contrário dos textos bandeirianos, onde referências desse tipo são

escassas.28

Comparando o Itinerário de Pasárgada e essas obras memorialísticas, foi

possível observar mais facilmente que Manuel Bandeira tem, com a própria infância,

uma finalidade bem definida: construir como um roteiro ― conforme o título, trata-se

de um itinerário, não podemos esquecer ― a importância de certos fatos da meninice,

28 Cf. ANDRADE, Oswald. Obras completas IX. Um homem sem profissão: memórias e confissões. Sob as ordens de mamãe. Prefácio de Antonio Candido. 2.a edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976; CUMMINGS, e.e. eu:seis conferências. Conferências Charles Eliot Norton 1952-1953. Tradução e prefácio Cecília Rego Pinheiro. Lisboa: Assírio & Alvim, 20003; GOETHE. Poesia e verdade. Tradução de Lúcio Cardoso. Estudo de Agripino Greco. Rio de Janeiro: José Olympio, 1948. 2 v.; VERLAINE, Paul. Confissões dum poeta. Tradução, introdução e notas de Cabral do Nascimento. Lisboa: Portugália, s/d.

entre outros, para a formulação de sua poética. Desse modo, o relato da infância de

Bandeira revela uma edição de acontecimentos biográficos que busca mostrar as impli-

cações destes para o desenvolvimento de sua poesia. Contudo, tal questão já tinha sido

analisada por ele, de modo esparso, em crônicas (“Minha mãe”, “Finados”, “Saudades

de Quixeramobim”, “O quintal”, “Cheia! as cheias!”) e poemas (“Evocação de Recife”,

“Profundamente”, “Vou-me embora pra Pasárgada”, “Infância”, “Versos de Natal”,

“Velha chácara”), o que certamente facilitou, no seu Itinerário de Pasárgada, a compo-

sição de um cenário a entrelaçar alguns fatos biográficos com a constituição de sua poé-

tica. Biografar-se significa, para Manuel Bandeira, registrar os acontecimentos ligados à

criação de sua obra, num gesto de quem busca fugir da auto-referência típica desse dis-

curso.

Devemos tomar em consideração que o autor engendrou diversos olhares

sobre uma fase determinada, evidente tanto nos poemas quanto nas crônicas e no Itine-

rário de Pasárgada. Os quatro anos passados em Recife ressurgem então suspensos,

destacados no tempo da obra, como se ele buscasse transformá-los em matéria criativa.

Tudo parece ser motivo para instigar a construção de poemas: uma brincadeira do pai,

uma festa de São João, uma história contada pela ama-seca. É justamente nesse sentido

que podemos conferir à criação um caráter existencial: há uma temporalidade restrita ―

são apenas quatro anos ― que alimenta o discurso bandeiriano.

O poeta já havia notado, desde muito cedo, que nas memórias da infância

estavam os elementos necessários para lançá-lo a uma criação mais ousada e renovado-

ra, em que a construção dos versos se dá a partir dos elementos mais simples e familia-

res. Conforme Beatriz Sarlo, o “[...] retorno ao passado nem sempre é um momento

libertador da lembrança, mas um advento, uma captura do presente”.29 A captura do

29 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. Belo Horizonte; São Paulo: UFMG; Companhia das Letras, 2007. p. 7.

presente mediante um retorno ao passado se dá à medida que Bandeira encontra, na sua

infância, substratos para servirem ao desenvolvimento de técnicas de composição mais

ligadas às necessidades expressivas requeridas pela sua própria subjetividade e pelo

contexto histórico seu contemporâneo. É com o auxílio do passado que ele chegará ao

presente e até mesmo ao futuro de sua obra, uma vez que tal processo estabelece o devir

da poética bandeiriana.

Os anos passados na rua da União tornam-se um manancial de emoções e

sensações ― fonte para a composição de poemas que contrastam com a vida regrada

que passou a ter a partir dos tratamentos de saúde. Para evitar as crises de tuberculose

em 1910 e no início dos anos 1920, fugia dos excessos e resguardava-se em casa; vigia-

va o próprio corpo; dormia disciplinadamente; evitava comidas de pensão (“uma lásti-

ma”, segundo ele);30 medicava-se quando necessário, recorrendo cuidadosamente a A-

calypha indica, substância homeopática freqüentemente receitada nas hemorragias pul-

monares caracterizadas por tosses com expectoração sangüínea, hemoptises etc.; revela-

va-se um conhecedor das reações físicas decorrentes da tuberculose e, logo que se mani-

festavam, consultava o seu médico.31 Frente às limitações, Bandeira tornou-se um leitor

compulsivo do seu passado, examinando-o minuciosamente e destacando, nesse percur-

so, os ensinamentos paternos, algumas experiências e sensações marcantes, que talvez já

começassem a dialogar com os livros que lhe chegavam nessa época. Foi quando estu-

dou os principais autores da poesia moderna, como Arthur Rimbaud, Blaise Cendrars,

Guillaume Apollinaire, Paul Verlaine, entre muitos outros, formando, a partir disso,

uma técnica moderna e rica de procedimentos criativos: “[do] ano de 1904, em que ado-

eci, ao de 1917, quando publiquei o meu primeiro livro de versos – A cinza das horas[,]

30 Carta inédita de Manuel Bandeira a Ribeiro Couto, 20 de agosto de 1925. Cf. ARQUIVO RIBEIRO COUTO, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira – AMLB, Fundação Casa de Rui Barbosa. 31 Estes dados biográficos podem ser encontrados em suas cartas destinadas a Ribeiro Couto, poeta que foi, sem qualquer dúvida, o seu amigo mais íntimo. Cf. ARQUIVO RIBEIRO COUTO, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira – AMLB, Fundação Casa de Rui Barbosa.

[...] tomei consciência de minhas limitações, nesses treze anos que formei a minha téc-

nica”, escreveu no Itinerário de Pasárgada.32 A doença portanto não engendraria logo o

poeta, mas primeiramente um leitor que calibrava com minúcia o artista em potencial

que havia nele, à espera da aquisição de técnicas e processos de composição suficientes

para encorajar aquele leitor em direção à sua própria literatura e à sua própria história,

que avançavam gradativamente a caminho das experimentações dos tempos modernos.

E as memórias da infância parecem ter sido um dos principais componentes para tal

conquista.

Por mais que esse percurso se mostre involuntário, notamos, na reunião de

seus livros, a existência de uma obra desenvolvida com grande paciência e rigor. Por

mais que a doença tenha, a princípio, estimulado a criação que servisse de mera distra-

ção ou como válvula de escape, aos poucos Bandeira encontrou-se efetivamente no ofí-

cio de poeta e começava a desenvolver um projeto literário intenso e profundo, mesmo

que apenas sustentado sobre o cotidiano e as coisas triviais. Mesmo que esse projeto

fosse negado pelo próprio autor, que afirmava deixar a sua obra conduzir-se por si mes-

ma ― por meio de estímulos externos ―, observamos uma coerência de pensamento

muito significativa para definir a sua poética.

Manuel Bandeira chegou a declarar, no Itinerário de Pasárgada, que o mo-

dernismo de Libertinagem, em grande medida, “não era senão o espírito” do grupo ale-

gre de amigos com quem convivia naquele tempo, formado por Dante Milano,33 Dodô,34

32 BANDEIRA, op. cit., 1954, p. 23. 33 Dante Milano (1899-1991), poeta cuja obra esteve inicialmente ligada ao grupo modernista. Posterior-mente, desligou-se do movimento e construiu sua obra à margem das tendências da época: seu estilo tornou-se classicista e notabilizou-se pelos sonetos. Reuniu sua obra no livro Poesias, de 1948. Fez tradu-ções notáveis de poemas de Baudelaire, Dante e Mallarmé. 34 Geraldo Barroso do Amaral, mais conhecido como Dodô, frequentava assiduamente o bar Nacional, onde se encontrava com Dante Milano, Jaime Ovalle, Manuel Bandeira e Germana Almeida, entre outros. Foi um dos principais amigos de Manuel Bandeira durante os anos 1920. “Sinto uma ternura extraordiná-ria por ele [Dodô], sem saber até que ponto vai nisso a espontaneidade do meu sentimento e a retribuição afetiva, pois na vida encontrei 4 pessoas que gostaram de mim diferentemente dos outros e que sem dúvi-da sentiram em mim o mesmo móvel de me quererem bem […]”, escreveu Bandeira, a 24 de julho de

Jaime Ovalle,35 Osvaldo Costa,36 entre outros. Apesar de todo o modernismo de sua

obra, o poeta ainda declarou que graças a esses amigos escrevera versos como os de

“Mangue”, “Na boca”, “Macumba do pai Zuzé” e “Noturno da rua da Lapa”.37 Precisa-

mos observar, contudo, alguma perspicácia nessa declaração: ele busca, de modo propo-

sital, manipular os leitores do Itinerário de Pasárgada, fazendo-os pensar que o seu

processo criativo modernista agia unicamente por meio de forças externas, mas, se fosse

dessa maneira, Bandeira não teria chegado, conceitualmente, à excelência de sua poéti-

ca. Esta declaração mais parecia um modo de inviabilizar qualquer tentativa de fazer

aderir a sua obra a grupos literários e, conseqüentemente, assim manter a liberdade que

tanto defendia para a esfera da criação. Deixar-se levar pela adesão explícita aos grupos

em formação equivaleria, para ele, a abandonar o seu percurso poético, que se fazia com

sobeja consciência.

Acreditamos que esta posição foi assumida facilmente devido ao fato de ele

não ter “nascido” modernista. Seu lado renovador surgiu aos poucos, acrescentando-se

em cada livro alguns novos elementos. Como esta posição bandeiriana ― autônoma,

1926 (Cf. ANDRADE, BANDEIRA, op. cit., p. 301). Ribeiro Couto, a 27 de setembro de 1927, traça um perfil do boêmio: “Do Dodô eu só tenho o sentimento de não podê-lo fazer menos obsceno e de não lhe poder tirar o vício. De resto, tudo que é substância humana, nele, atrai a minha. Nele há essa organização, essa estrutura natural de franqueza e bondade, que nem a cultura, nem as habilidades do engenho conse-guem criar. Quem é bom já nasce feito...” (Cf. ARQUIVO MANUEL BANDEIRA, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira – AMLB, Fundação Casa de Rui Barbosa). A crônica “Golpe do chapéu”, de Crôni-cas da província do Brasil, revela um caso que se passou com Dodô (Cf. BANDEIRA, op. cit., 2006, p. 169). Não há, nas enciclopédias e dicionários de literatura, qualquer referência a Dodô ou Geraldo Barro-so do Amaral. Tudo levaria a crer que se tratasse de um malandro da Lapa, mas, conforme Humberto Werneck, ele era, nessa época, estudante de engenharia e se aposentou como engenheiro da Central do Brasil (WERNECK, Humberto. O anjo sujo: a vida de Jayme Ovalle. São Paulo: Cosac & Naify, 2008. p. 76). 35 Jaime Ovalle (1894-1955), músico popular. Autor de obras para piano e canto. Manuel Bandeira foi seu parceiro em algumas canções, como “Modinha” e “Azulão” (Cf. BANDEIRA, op. cit., 1958, v. I, p. 1154-1158). Relacionados ao músico, Bandeira publicou, em Belo belo, “Poema só para Jaime Ovalle” e “Esparsa triste”; em Estrela da tarde, “Elegia de Londres” (Cf. ibid., v. I, p. 332; 348; 442-443, respecti-vamente). Jaime Ovalle também escreveu versos em inglês; “Três poemas” foi traduzido por Manuel Bandeira (Cf. ibid., v. I, p. 583-584). Em Flauta de papel, foi publicada a crônica “Ovalle”, em que há um perfil desse músico (Cf. BANDEIRA, op. cit., 2003, p. 139-143). 36 Osvaldo Costa (1900-1975) foi jornalista, diretor de A Manhã, em 1926, e poeta. Participou da Revista de Antropofagia. Autor do livro de poemas Asas de borboleta. 37 BANDEIRA, op. cit., 1956, p. 87.

independente ― vem de antes do início das manifestações combativas do grupo moder-

nista, ela podia ser adotada sem parecer falsa, tanto que os próprios autores da Semana

de Arte Moderna o apelidaram de São João Batista do modernismo brasileiro, por ter

sido um precursor das propostas anunciadas no teatro Municipal de São Paulo, em 1922.

Esse processo inicial de inovações, que compreende a publicação dos seus três primei-

ros livros (A cinza das horas, de 1917; Carnaval, de 1919; e O ritmo dissoluto, de

1924), encontra-se muito bem sistematizado no livro Do penumbrismo ao modernismo,

de Norma Goldstein. A autora observa o aumento gradativo, de A cinza das horas a O

ritmo dissoluto, de recursos como o verso livre ou polimétrico, quebras rítmicas, deslo-

camentos do acento tônico, rimas irregulares e/ou toantes, estrofação irregular, presença

do cotidiano ― características que vão se consolidar, posteriormente, em Libertinagem,

de 1930.38

Para assumir e desenvolver sua nova literatura, a dos anos 1920, Manuel

Bandeira agarrou-se às experiências da infância e da doença, os dois núcleos fundamen-

tais de sua biografia que vieram a desencadear o maior número de conseqüências na

formação de uma técnica moderna, especialmente de Libertinagem em diante. Sejamos,

porém, cautelosos: ambos, como “enredos” de sua poética, são menos recorrentes do

que se costuma pensar, ainda que muito marcados. A importância das experiências da

infância e da morte refere-se bem mais à constituição de uma técnica que parece ter se

“disponibilizado” mediante a sua biografia, mas também apoiada em autores profunda-

mente examinados por Bandeira, como Apollinaire, Blaise Cendrars, Mário de Andrade

e Oswald de Andrade, além de todo o romantismo brasileiro. Quanto mais ele escrevia,

mais encontrava elementos e fatos do seu passado a serem aproveitados pelas técnicas

de composição, o que coincidia com as táticas de diferentes vanguardas na busca pela

38 GOLDSTEIN, Norma. Do penumbrismo ao modernismo: o primeiro Bandeira e outros poetas significa-tivos. São Paulo: Ática, 1983. p. 95-185.

simplicidade em oposição ao artificialismo das artes tão predominante na virada do sé-

culo XIX para o XX. Mais importantes que a sua quantificação, as experiências biográ-

ficas e a presença do circunstancial destacam-se por ter se formado, a partir delas, uma

série de estratégias modernas de composição. Nesse sentido, “Evocação do Recife” é

um texto exemplar para o nosso argumento:

Recife

Não a Veneza americana

Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais

Não o Recife dos Mascates

Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois –

Recife das revoluções libertárias

Mas o Recife sem história nem literatura

Recife sem mais nada

Recife da minha infância

A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de

[dona Aninha Viegas

[...]

A gente brincava no meio da rua

Os meninos gritavam:

Coelho sai!

Não sai!

À distância as vozes macias das meninas politonavam:

Roseira dá-me uma rosa

Craveiro dá-me um botão

(Dessas rosas muita rosa

Terá morrido em botão...)

De repente

nos longes da noite

um sino

Uma pessoa grande dizia:

Fogo em Santo Antônio!

Outra contrariava: São José!

[...]

Rua da União...

Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância

[...]

Novenas

Cavalhadas

[...]

Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas

Com o xale vistoso de pano da Costa

E o vendedor de roletes de cana

O de amendoim

que se chamava mindubim e não era torrado era cozido

Me lembro de todos os pregões:

Ovos frescos e baratos

Dez ovos por uma pataca

Foi há muito tempo...

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros

Vinha da boca do povo na língua errada do povo

Língua certa do povo

Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil

Ao passo que nós

O que fazemos

É macaquear

A sintaxe lusíada

A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem

Terras que não sabia onde ficavam

Recife...

Rua da União...

A casa de meu avô...

Nunca pensei que ela acabasse!

Tudo lá parecia impregnado de eternidade

Recife...

Meu avô morto.

Recife morto. Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô

Rio, 192539

O poema concentra muitas das inclinações criativas desenvolvidas ao longo

do percurso de Manuel Bandeira. Podemos afirmar que “Evocação do Recife” é a carta-

coringa da poética bandeiriana, pois seus versos explicam ― “adaptando-se” à combi-

nação de elementos segundo os poemas em jogo ― muitos outros versos do próprio

autor. A sua “evocação” permite-nos criar grupos de poemas que destacam certos prin-

cípios criativos: abrasileiramento da sintaxe, aplicação de brincadeiras da infância como

técnica de construção vérsica, prática do discurso intertextual, recurso biográfico para

concepção do seu lirismo, coloquialidade, entre outros. Podemos considerar, diante dis-

so, que “Evocação do Recife” é uma espécie de manifesto, por seu alcance e por reunir

uma série de formulações sintéticas e explosivas, que tem uma dimensão crítico-teórica.

Assim como os manifestos revelam-se como programas, “Evocação do Recife” estende-

se organicamente pela criação, propondo novas experiências estéticas, o que vem a ser o

caráter mais incisivo desse poema.

É possível observar que os versos de “Evocação do Recife” vão muito além

da temática da infância, tomando-a, antes, como arte poética, e demonstrando-a na prá-

tica. A técnica está em evidência ou, como afirmou Ruy Belo a respeito do “Poema para

Santa Rosa”, “[n]este caso é-nos dado assistir paulatinamente à composição da poesia.

39 BANDEIRA, op. cit., 1998, p. 24-26.

Puro experimentalismo. Construção e destruição da poesia ao longo de um conjunto que

flecte sobre si próprio numa atitude crítica”.40

Quanto à construção e à destruição mencionadas por Ruy Belo dentro do

próprio poema, no caso de “Evocação do Recife” observamos que elas não se fazem

concomitantemente, porém se realizam na macroestrutura, ou seja, no livro, tendo em

vista o diálogo estabelecido com o “Poema tirado de uma notícia de jornal”. Manuel

Bandeira nega primeiramente a linguagem jornalística, em “Evocação do Recife”, para

em seguida fazer o poema a partir de uma notícia da morte de João Gostoso, sob recur-

sos que, no entanto, transgridem as normas do noticiário e formam a escrita poética dos

seus versos. Baseamo-nos, para essa afirmação, não só no título do poema, mas também

na anotação que Bandeira fez num exemplar de Poesias completas, em que escreveu o

seguinte: “Lido em jornal”.41

Por intermédio desse diálogo entre os poemas, compreendemos com maior

nitidez como Manuel Bandeira construiu, na macroestrutura, o conceito de liberdade

criativa, que designa toda a diversidade formal ― rítmica, métrica, vérsica ― que apli-

ca em sua obra. Obviamente que a justaposição dos poemas na ordem do livro intensifi-

ca o conceito nele elaborado, coloca-o em destaque e acentua um projeto literário. O

livro, por fim, traz novos sentidos aos versos, desenvolvendo questões que os poemas

não poderiam revelar (ou revelariam com menor intensidade) se analisados individual-

mente. É inquestionável que os textos têm valores por si mesmos, entretanto, no contex-

to do livro, muitos pontos ganham relevo, principalmente o conceito de liberdade criati-

va. Em Libertinagem, alguns poemas, se comparados entre si, revelam uma série de

40 BELO, Ruy. Manuel Bandeira em verso e prosa. Na senda da poesia. Edição de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002. p. 229. 41 Este exemplar encontra-se na coleção Plínio Doyle da biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa, entre os documentos doados por Francisco de Assis Barbosa. Todas as anotações que Manuel Bandeira fez nesse livro se encontram no Anexo desta tese.

características opositivas, compondo, dessa forma, a diversidade sugerida pelo próprio

título do volume. Esta defesa pela variedade pode ser observada entre os poemas de

fundo biográfico (“O anjo da guarda”, “Porquinho-da-índia”, “Evocação do Recife”,

“Profundamente”, entre outros) e os impessoais (“Poema tirado de uma notícia de jor-

nal”, “O major” e “Cunhatã”); os textos em verso (como “Camelôs”, “O cacto”, “Man-

gue” e “Irene no céu”) e os que foram construídos em prosa (“Lenda brasileira” e “No-

turno da rua da Lapa”); os poemas de tom predominantemente eufórico (como “Não sei

dançar”, “Poética” e “Mangue”) e os que contêm uma tonalidade disfórica (“Pneumotó-

rax”, “O major”, “Poema de finados”, entre outros).

Embora distintos, Bandeira parece estruturar Libertinagem e outros títulos

com um domínio semelhante ao de João Cabral de Melo Neto, o exemplo máximo desse

procedimento na literatura brasileira. A diferença é que João Cabral organizava o livro

para impedir qualquer interferência do acaso durante o processo de realização poética;

criava um projeto a que o livro deveria obedecer, tal como um arquiteto que desenhasse

o edifício antes de construí-lo. Ele buscava portanto restringir a feitura dos poemas aos

seus interesses manifestos conscientemente, e fazer ver que ele, o autor, está no domínio

da criação. Na poética bandeiriana também há um projeto que antecede a construção,

um projeto que no entanto não restringe, que não priva o autor dos variados recursos

poéticos, mas amplia as possibilidades de realização dos poemas. É uma postura seme-

lhante à de quem lavra o campo, limpa a casa, põe a mesa, “com cada coisa em seu lu-

gar”, à espera da “Indesejada das gentes”,42 que já indicia, no processo criativo, uma

relação com o acidental que corresponde à relação que Bandeira terá, posteriormente,

com a própria morte. O poeta deveria aceitá-lo e construir-se a si mesmo e a seus poe-

mas aproveitando-se das interferências do que fugisse ao seu controle. Trata-se de uma

42 BANDEIRA, Consoada, op. cit., 1958, v. I, p. 404.

afirmação que talvez soe, para o leitor, como uma falta de domínio sobre a criação, to-

davia ela demonstra a absoluta consciência de Manuel Bandeira a respeito das variadas

condições e possibilidades de que dispunha para construir os seus poemas. Nesse “cená-

rio”, Libertinagem é o campo lavrado, a casa limpa, a mesa posta, que prepara o devir

de toda a sua obra.

Como os versos de “Evocação do Recife”, o livro parece se fazer paulati-

namente, como puro exercício de experimentalismo, um fazer que também não é arbi-

trário: ele revelará, quando concluído, uma estrutura que tem início, meio e fim, com-

pondo algumas “narrativas” no transcorrer dos textos.43 Em Libertinagem é possível

observar, inicialmente, a predominância da louvação à alegria, à esperança e à própria

liberdade expressiva, com marcas de euforia, humor e ternura (“Não sei dançar”, “Mu-

lheres”, “Pensão familiar” e “Camelôs”). Posteriomente, há maiores oscilações em di-

versos sentidos ― do caráter emocional, formal e temático: reafirma-se então a defesa

pela alegria (“Poética”, “Mangue” e “Oração a Teresinha do Menino Jesus”); o humor

e/ou a ironia revelam-se em muitos poemas (“Comentário musical”, “Teresa”, “Madri-

gal tão engraçadinho”, “Cunhatã”, “Namorados”); a melancolia e/ou a tragédia estão

mais presentes (“Cacto”, “Chambre vide”, “Bonheur lyrique”, “Pneumotórax”, “Poema

tirado de uma notícia de jornal”, “A Virgem Maria”, “Oração do saco de Mangaratiba”,

“O major”, “Andorinha”, “Noturno da parada Amorim”), porém, no que se refere ao

primeiro caso ― a melancolia ―, quase sempre ela se encontra mesclada a lampejos de

prazer e ternura que surgem principalmente de cenas da infância (“Porquinho-da-índia”,

“Evocação do Recife”, “Profundamente”, “Cabedelo”), além de retratar com entusias-

mo, nessa segunda parte do livro, a vida urbana e suas particularidades (“Mangue” e

“Belém do Pará”). No fechamento de Libertinagem, que parece ter início com “Vou-me

43 Cf. Anexo.

embora pra Pasárgada”, o poeta aproxima-se ainda mais dos temas relacionados com a

morte e motivos de fuga, sem abandonar a paixão, a ternura, o tom eufórico e ardente

típicos de Libertinagem.

Por meio da observação de toda a variedade formal, de sentimentos e “te-

mas” desse livro, também constatamos que o conceito de liberdade criativa estava sendo

efetivamente desenvolvido. Logo, esse conceito não é um mero resultado aleatório da

reunião desses poemas, o que observamos pelo andamento construidíssimo e muito bem

enredado de Libertinagem. Bandeira mostrava então absoluta consciência das transfor-

mações engendradas no seu quarto livro e que foram perfeitamente compreendidas por

Rodrigo Melo Franco de Andrade, de quem partiu a sugestão do título Libertinagem ―

certamente o melhor dos três (os outros dois, criações do próprio poeta, eram Verso li-

bertino e Outra coisa) ―, sobretudo por abarcar o conceito do verso livre e a pluralida-

de de técnicas aplicadas nos poemas. Em carta a Mário de Andrade, de 15 de março de

1929, Manuel Bandeira escreveu que o título

[...] Libertinagem serve para a forma e por ironia para o fundo. Nem é tão irônico assim: na

“Oração a Terezinha do Menino Jesus” há uma confusão de oração e cantata, da santa e da

mulher, que tem alguma coisa de sacrílego, de “libertino” no sentido original francês. Li-

bertinagem é dúbio, é triste, é geral, é breve, é bonito...44

Na sua obra a consciência criativa estava presente tanto na organização do

livro quanto acerca das técnicas trabalhadas em cada poema, o que pode ser relaciona-

do, de certo modo, com a posição construtiva de Mallarmé. Em torno da lírica bandeiri-

ana, observamos, entre outros, um rigor muito presente na seleção dos vocábulos; o

modo atento a que se dedicava aos aspectos melódicos dos versos, bem como um inte-

resse, sobretudo a partir de Libertinagem, em construir poemas impessoais, quase sem- 44 ANDRADE, BANDEIRA, op. cit., p. 415.

pre concisos, sem a presença de uma subjetividade mais tipicamente romântica. Con-

forme já vimos, Manuel Bandeira também acredita, conforme a lição de Mallarmé, que

“a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com sentimentos [...]”.45 Além

disso, ele sempre buscou ter consciência do processo de criação, o que se evidencia fa-

cilmente através de algumas crônicas, do Itinerário de Pasárgada e poemas metalin-

güísticos. Contudo, a sua consciência abrangia inclusive o que fugisse do seu controle,

estabelecendo-se, nesse sentido, uma diferença significativa entre esses dois autores no

que diz respeito à compreensão sobre o fazer poético. No caso de Bandeira, o inconsci-

ente e a inspiração agiam depois de uma reflexão, desenvolvida a curto ou longo prazo.

Esta se desdobrava, posteriormente, num impulso criativo, conforme podemos observar,

entre outros exemplos, em outra carta destinada a Mário de Andrade, a 13 de julho de

1929:

[...] Nós preparamos as nossas sinceridades futuras por meio de preocupações existentes se-

jam conscientes ou não. É certo que meus versos são todos impulsivos. É falso que jamais

eu tenha escrito um só verso (mesmo dos que me parecem falsos atualmente) pra provar ou

botar em prática uma teoria minha. Mas estas teorias existiam de antemão. E na verdade foi

pela preocupação interna delas que a maioria dos meus versos saiu, como diz Augusto Me-

yer, exemplos quase didáticos de Poética.46

Esse trecho nos ajuda a compreender melhor o mecanismo criativo de Ma-

nuel Bandeira. O seu impulso de fazer os versos é precedido de teorias referentes à cria-

ção e fica evidente, pela sua carta, que ele se “liberava” da preocupação técnica no mo-

mento exato da escrita. Logo, a construção se dá, a princípio, na fase pré-escrita, em que

havia uma intensa reflexão acerca de questões referentes ao poético, e ainda na etapa

posterior à versão original, quando a técnica voltava a ser acionada para se chegar a um

45 BANDEIRA, op. cit., 1954, p. 24. 46 ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 429.

“acabamento” mais eficiente dos versos, como podemos observar em mais uma carta a

Mário, de 10 de outubro de 1924: “A gente topa com eles [os milagres verbais] no mo-

mento da inspiração. Depois vem o juízo, a inteligência e não sei mais e começam a

soprar coisinhas.”47

Contudo, em se tratando de um poeta tão consciente dos domínios da cria-

ção, seria ingênuo pensar que não hovesse qualquer atuação da inteligência no próprio

momento da escrita. Em torno disso, a carta de 23 de janeiro de 1931, também enviada a

Mário, esclarece-nos melhor o processo bandeiriano de composição: “[...] o subconsci-

ente entra fornecendo coisas bonitas, às vezes só pela sonoridade, você nem sempre

separa o que não é ele e a inteligência se intromete; se intromete não está bem: chega

muito pra perto do poema (ela tem que ficar vigilante pra fiscalizar mas só pra fiscalizar

e bem entendido quando não se trata de poema reflexivo, discursivo [...])”.48Dessa ma-

neira, ele não opunha o lirismo à razão, mas fazia com que, no processo criativo, os dois

estivessem em cena. Tais cartas revelam que existe um pensamento que antecede a es-

crita do poema: é possível deduzir, a partir disso, que as técnicas eram projetadas de

antemão. Portanto, no momento da escrita, o poeta não se preocupava com os elementos

mais adequados a serem desenvolvidos e liberava, conseqüentemente, o inconsciente,

que podia então acrescentar novos ingredientes à receita (“coisas bonitas, às vezes só

pelas sonoridades”), desde que eles não fugissem da estrutura programada. Talvez nesse

sentido que a inteligência ficasse vigilante “pra fiscalizar mas só pra fiscalizar”.

Diante disso, percebemos que o lirismo de Manuel Bandeira não é conven-

cional, não está relacionado apenas com o inconsciente e a intuição, pois há um caráter

construtivo antes, durante e depois da escrita. Porém, a questão é mais ampla. Segundo

a crônica “Poema desentranhado”, de Flauta de papel, o poeta às vezes se “delicia” em

47 Ibid., p. 132. 48 Ibid., p. 484.

criar poesia “não tirando-a de si, dos seus sentimentos, dos seus sonhos, das suas expe-

riências”, mas “dos minérios em que ela jaz sepultada”, conforme já vimos.49 O lirismo

de Bandeira também está ligado, portanto, a uma poesia que não está diretamente ligada

ao sujeito ou que usa elementos externos para expressar a sua subjetividade. Nesse sen-

tido, a sua técnica de composição ― a incorporar cartaz de publicidade, conversas, notí-

cias de jornal, entre outros ― aproxima-se de um lirismo menos pessoal. Trata-se de

uma técnica bastante semelhante ao conceito do “correlativo objetivo” [“objective cor-

relative”], de T.S. Eliot:

O único modo de expressar emoção na forma de arte é descobrindo um “correlativo ob-

jetivo”; por outras palavras, um conjunto de objectos, uma situação, uma cadeia de aconte-

cimentos que será a fórmula dessa emoção específica; de tal maneira que quando os factos

exteriores, que devem resultar em experiência sensorial, são facultados, a emoção é imedia-

tamente evocada.50

Se tomarmos de empréstimo o conceito eliotiano para uma análise da poéti-

ca de Manuel Bandeira, observaremos facilmente que há uma grande proximidade entre

o “correlativo objetivo” e uma série de técnicas criativas freqüentemente usadas em

Libertinagem e também nos seus demais livros. Pelas anotações manuscritas que Ban-

deira fez no exemplar de Poesia reunida oferecido a Francisco de Assis Barbosa,51 iden-

tificamos vários processos de criação relacionados com o conceito do “correlativo obje-

tivo” eliotiana: citação de cantigas (“Evocação de Recife”), lendas (“Cunhatã”), música

popular brasileira (“Na boca”) e versos da tradição da literatura (“Balada das três mu-

49 BANDEIRA, op. cit., 2003, p. 150. 50 ELIOT, T.S. Hamlet. Ensaios escolhidos. Seleção, tradução e notas de Maria Adelaide Ramos. Lisboa: Cotovia, 1992. p. 20. 51 Cf. ARQUIVO MANUEL BANDEIRA, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira – AMLB, Fundação Casa de Rui Barbosa.

lheres do sabonete Araxá”); diálogos inter-semióticos (com um cartaz publicitário, em

“Balada das três mulheres do sabonete Araxá”) e intertextuais (com uma entrevista,

como no poema “Nietzschiana”, e com notícias de periódicos, no “Poema tirado de uma

notícia de jornal” e na “Tragédia brasileira”); frases ouvidas (de um amigo, em “Estrela

da Manhã”; da mãe, em “Contrição”; do pai, em “Conto cruel”); paródias (“Os sapos” e

“Teresa”), entre outros recursos.52 Ele também aproveita valores caros à “poesia pura”,

como a crença na auto-suficiência da poesia, que se faz com palavras; o sentido de fun-

cionalidade das experiências tipográficas; a elaboração cuidadosa em torno da melodia e

do ritmo dos poemas, assim como o domínio sobre os processos criativos, que destacam

a linha de força antilírica. No entanto, tais elementos da “poesia pura” também foram

adequados por Manuel Bandeira às suas necessidades expressivas ao criar a sua poesia

“suja” (“a nódoa no brim”),53 que ganha procedimentos sofisticados para construir mui-

tos poemas a partir de elementos triviais e menores, de “restos” (as frases ouvidas, notí-

cias de jornal) que lhe eram fornecidos no seio da vida urbana, então misturados a ele-

mentos da cultura popular e de clássicos da literatura. Enfim, há uma variedade de téc-

nicas que faz de Manuel Bandeira um conciliador de contrários, reunindo, numa mesma

obra, orientações e processos criativos diversos.

Dessa maneira, precisamos relativizar afirmações como a de Bella Jozef:

“Poeta do verso despojado, da palavra essencial, da simplicidade e do cotidiano, nunca

do banal, poeta das circunstâncias e de desabafos, intuitivo, Bandeira foi poeta lírico por

excelência [...]”.54 Trata-se de uma caracterização romântica do lirismo, que também

seria útil, por exemplo, para classificar a poesia de Casimiro de Abreu. Apesar da corre-

ção dos aspectos levantados por B. Jozef, há certa limitação nesse modo de comprender

52 Cf. novamente o Anexo. 53 Referência ao poema “Nova poética”, de Belo belo. Cf. BANDEIRA, op. cit., 1958, v. II, p. 363. 54 JOZEF, Bela. Manuel Bandeira: lirismo e espaço mítico. Homenagem a Manuel Bandeira, 1986-1988. Organização de Maximiano de Carvalho e Silva. Niterói; Rio de Janeiro: Sociedade Sousa da Silveira; Monteiro Aranha: Presença Edições, 1989. p.

o lirismo bandeiriano. A razão disso parece estar no fato de ela não ter considerado que

também há outro pólo na poesia bandeiriana, mais inovador, cujos traços se interpene-

tram com os mais tradicionais, constituindo, desse modo, uma lírica muito singular.

3. O POETA MODERNISTA EM LINGÜÍSTICA

Voltando à arguta reflexão de Ruy Belo sobre o “Poema para Santa Rosa”,55

observamos que nos versos de “Evocação do Recife” também se dá a construção paula-

tina da poesia. Logo na primeira estrofe evidenciamos o caráter metalingüístico do tex-

to, onde está resumido o que será elaborado no poema: não a Veneza americana, a Mau-

ritsstad dos armadores das Índias Ocidentais, o Recife dos mascates nem o Recife que

Manuel Bandeira aprendeu a amar depois ― o Recife das revoluções libertárias ―, mas

um Recife íntimo e particular, tal como a sua obra. A todo momento é um poema que

busca evidenciar, com naturalidade, a técnica de composição mediante um processo de

correspondência entre o Recife de sua infância e a linguagem poética. Esta naturalidade

resulta dos efeitos do uso da coloquialidade, do verso livre, das referências à infância, a

costumes, a versos da literatura oral, bem como à recorrência do cotidiano mais simples

da cidade, tudo agrupando-se muito bem para explicitar, construtivamente, uma lírica

relacionada com a fala brasileira e sua prosódia, o que era uma das causas de nosso mo-

dernismo.

“Ajustar” a expressão literária às singularidades da língua nacional era uma

busca de Manuel Bandeira, como de todos os modernistas, só que fundamentada nos

inovadores estudos de filólogos seus contemporâneos, como Antenor Nascentes, João

Ribeiro e Sousa da Silveira, com os quais manteve diálogos ricos e produtivos. Tal “a-

55 BELO, op. cit., p. 229.

juste” é percebido, em “Evocação do Recife”, sobretudo na estrofe que destaca o falar

“gostoso” do povo, quando se afirma que a vida não lhe “chegava pelos jornais nem

pelos livros”, ambos com seus textos governados, naquela época, pela norma culta; ela

chegava da “boca do povo”, na língua “errada” e “certa” do povo.

Este falar é avaliado, no começo da estrofe, sob a perspectiva oficial ― dos

gramáticos mais ortodoxos ou, em outras palavras, dos puristas. Trata-se de uma postu-

ra fixada pelo uso do adjetivo “errada”, expressão que qualifica a língua do povo. Con-

tudo, a idéia de “erro” será imediatamente desconstruída por meio dos adjetivos “certa”

e “gostoso”, que se opõem à língua-padrão das gramáticas normativas, que impõem,

segundo o poema, a “sintaxe lusíada” então “macaqueada”, ou seja, copiada ridicula-

mente. Há, nesse direcionamento conceitual, o retorno das propostas crítico-teóricas de

“Poética”, também de Libertinagem. Tal como em “Evocação de Recife”, podemos no-

tar, em “Poética”, formulações sintáticas e explosivas (feito um poema-manifesto) que

lançam novas diretrizes para a criação:

Estou farto do lirismo comedido

Do lirismo bem comportado

Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente

[protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho

[vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas

[...]

Quero antes o lirismo dos loucos

O lirismo dos bêbados

O lirismo difícil e pungente dos bêbados

O lirismo dos clowns de Shakespeare

Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.56

A imagem do lirismo ultrapassado forma-se, nesses versos, a partir de índi-

ces de “policiamento” que são confrontados com índices de libertação. De um lado i-

dentificamos sinais bem-definidos, que se relacionam principalmente com a execução

mecânica do trabalho, enquanto do outro estão as novas propostas, marcadas pela sub-

versão de regras. Por intermédio dos índices de libertação se manifesta a criação reno-

vadora, que deve recorrer a todas as construções, palavras e ritmos. Interessa, para Ban-

deira, o lirismo dos “loucos”, “bêbados” e “clowns”, que sugerem descontrole, desvio

das normas e, no caso dos clowns, o aproveitamento dos erros, já que eles se caracteri-

zam pela técnica de criar a cena a partir de uma falha, estruturando dessa maneira a

complexidade da atuação que, nas obras shakesperianas, destinavam-se a criticar os

costumes vigentes.

Importante salientar que são os “clowns de Shakespeare” ― complemento

talvez, para a maior parte dos leitores, de pouca relevância ―, os quais nos dão indícios

de que a poética bandeiriana não buscava, mesmo quando defendia a transgressão das

normas, distanciar-se da melhor literatura tradicional. Parece que não à toa a menção a

Shakespeare encontra-se no último verso da penúltima estrofe, antecedendo a conclusão

(“― Não quero mais saber do lirismo que não é libertação”): o poeta formulou, a partir

da referência aos “clowns de Shakespeare”, um leve e sutil acerto de contas em relação

à descontrução das orientações criativas passadistas que ele propõe desde o início desse

poema. Foi um modo de revelar que suas investigações criativas compreendiam também

um diálogo positivo com os clássicos da literatura.

56 BANDEIRA, op. cit., 1998, p. 14-15.

Nenhum outro autor do modernismo brasileiro estabeleceu uma aliança se-

melhante com a tradição, o que demonstra mais uma especificidade para a sua lírica

renovadora. Não fazemos tal assertiva apenas em função da referência aos “clowns de

Shakespeare”, mas igualmente motivados por “Teresa”, poema em que Manuel Bandei-

ra traduz “O adeus de Teresa”, de Castro Alves. Tradução, segundo o próprio autor,

distanciada do original, quando retomou um clássico do romantismo brasileiro para sati-

rizar os clichês dos modernistas. Bandeira foi também organizador entusiasta de antolo-

gias sobre o romantismo e o parnasianismo, intituladas, respectivamente, Antologia dos

poetas brasileiros da fase romântica (1937) e Antologia dos poetas brasileiros da fase

parnasiana (1938). Além disso, publicou A autoria das Cartas chilenas (1940) e Gon-

çalves Dias. Esboço biográfico (1952), entre outros. Por fim, não podemos esquecer

que em 1940 tomou posse da cadeira 24 da Academia Brasileira de Letras, instituição

muito combatida pelos autores modernistas.

Nem todo o passado devia, portanto, ser combatido, mas somente o que de-

fendia, inflexível e reacionariamente, a adoção da língua oficial e das formas tradicio-

nais da lírica. É importante salientar que para Manuel Bandeira a melhor tradição literá-

ria podia servir, ao mesmo tempo, como escudo e espada contra o engessamento e a

repetição de procedimentos criativos a que a geração modernista recorria. O combate

destinava-se mais aos puristas que propriamente ao passado num todo, resolução facil-

mente observada nas suas obras posteriores, a estabelecer contatos mais estreitos com a

tradição, chegando a um meio-termo entre a primeira fase de seu percurso criativo, for-

mada por A cinza das horas (1917), Carnaval (1919) e O ritmo dissoluto (1924), e a

fase mais combativa e renovadora, constituída principalmente por Libertinagem (1930).

A partir de Estrela da Manhã (1936) ele voltou a trabalhar com a forma do soneto, além

de lançar-se de maneira livre a outras formas fixas, reinventando-as com o auxílio de

técnicas de composição vanguardistas. Assim Bandeira formava um elo entre a tradição

e o modernismo.

Nesse sentido vale destacar que Manuel Bandeira foi o único poeta do con-

texto modernista a escrever um tratado de versificação, A versificação em língua portu-

guesa. Mesmo o tendo escrito em 1956, portanto numa fase em que já havia passado a

euforia modernista e seu caráter mais combativo, ele foi num caminho oposto ao dos

seus contemporâneos (principalmente de Oswald de Andrade), pois esses tratados eram,

para os autores da Semana de Arte Moderna de 1922, um símbolo de limitação criativa,

purismo e reacionarismo. Na bibliografia de A versificação em língua portuguesa, que

certamente também serviu de base para a construção de versos bandeirianos ou ao me-

nos lhe deu algum tipo de auxílio e orientação ao criar os poemas com formas fixas ou

com versos polimétricos, são listadas as obras de Antônio Feliciano de Castilho (Trata-

do de versificação portuguesa), Olavo Bilac e Guimarães Passos (Tratado de versifica-

ção), Osório Duque Estrada (A arte de fazer versos) e Said Ali (Versificação portugue-

sa), entre outras. Alguns desses autores eram até modelos de academicismo e alvo de

ataques da parte dos autores dos anos 1920.57

Além de Manuel Bandeira, apenas Mário de Andrade revelou, entre os mo-

dernistas, um interesse semelhante pela tradição: basta examinar o “Prefácio interessan-

tíssimo”, de Paulicéia desvairada, de 1921, bem como o livro-manifesto A escrava que

não é Isaura, que reuniu alguns textos publicados na imprensa em 1923 e 1924. Desta-

quemos que 1921 foi um dos anos mais calorosos e polêmicos do combate modernista,

com uma série de artigos de Mário de Andrade, Menotti Del Picchia e Oswald de An-

drade em oposição sobretudo ao parnasianismo. Em “Paulicéia desvairada”, seu autor

escreveu:

57 BANDEIRA, Manuel. Seleta de prosa. Organização de Júlio Castañon Guimarães. 2.ª reimpressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 533-557.

E desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais. Sou passadista,

confesso. Ninguém pode se libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste

livro seria hipócrita si pretendesse representar orientação moderna que ainda não compre-

ende bem.58

O modo como Mário de Andrade se refere aos passadistas é envergonhado,

tímido, ainda sem a convicção que revelará adiante, ao defender a importância da litera-

tura anterior às vanguardas. Ele declara, como um problema, manter um diálogo com a

tradição. Ainda assim, trata-se de uma postura singular, que os seus companheiros de

geração nem sequer cogitavam assumir. Mesmo com adesão ao modernismo, Mário de

Andrade mantém algum passadismo.

Após receber uma série de críticas violentas devido à publicação de Pauli-

céia desvairada, Mário de Andrade escreveu “Mestres do passado”, publicado nos me-

ses de agosto e setembro de 1921, no Jornal do Commercio, em que fez sete análises

sobre o parnasianismo e alguns de seus autores (Francisca Júlia, Raimundo Correia,

Alberto de Oliveira, Olavo Bilac e Vicente de Carvalho, respectivamente). Na introdu-

ção desse estudo ele justifica que os ataques que recebeu de críticos e autores parnasia-

nos lhe despertou “novamente no espírito a idéia de escrever umas linhas sobre os poe-

tas parnasianos do Brasil”. Mário de Andrade afirma: “[...] não me pus a reler essas o-

bras parnasianas com a alma vária, pueril e fantástica, correspondente ao meu tempo,

mas fui buscar, dentre as minhas muitas almas, aquela que construí para entender a ge-

ração parnasiana.”59 Contudo, a sua compreensão é totalmente antipassadista, mostran-

do acidez e ironia na análise dos mestres do passado, como se pretendesse fazer o túmu-

58 ANDRADE, Mário de. Prefácio interessantíssimo. Poesias completas. Edição crítica de Diléa Zanoto Manfio. Belo Horizonte: Vila Rica, 1993. p. 60. 59 ANDRADE, Mário de Andrade. Mestres do passado. Apud BRITO, Mário da Silva Brito. História do modernismo brasileiro: antecedentes da Semana de Arte Moderna. 3.ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. p. 255-256.

lo desses autores. O próprio título do artigo cria, em relação aos escritores parnasianos,

um mausoléu, buscando empurrá-los efetivamente para o passado. Como suas próprias

orientações criativas estavam, na época, muito distantes das obras dos parnasianos que

examina, observamos, nesse sentido, a formulação de um ar irônico mesmo quando lhes

presta homenagens. Obviamente que assim Mário de Andrade conseguia dar uma res-

posta elegante à “leviandade com que as penas geralmente correm sobre o papel”60 ― e

o fazia de modo superior, com alguma vaidade que lhe escapava.

Esta relação com os mestres do passado alterou-se, entretanto, no livro A es-

crava que não é Isaura, em que Mário de Andrade não opõe as tendências do moder-

nismo à literatura tradicional, postura bem semelhante à de Manuel Bandeira, talvez sob

influência de seu principal correspondente epistolar: “Vê minha crônica no número de

agosto da Revista do Brasil [“Convalescença, agosto de 1923]. Vê mais o trecho da Es-

crava que sairá no número de setembro da América Brasileira.61 Verás nelas o que pen-

so sobre o tradicionalismo e sobre o hermetismo”,62 escreveu-lhe Mário de Andrade.

Logo na primeira seção de A escrava que não é Isaura, misto de ensaísmo e

manifesto, trata da poesia moderna do mundo ocidental, descreve suas características,

traçando um panorama das principais motivações criativas dos autores dessa época e

dos resultados mais efetivos que eles conquistaram. Garante que o “assunto-poético”

pode nascer tanto de “uma réstia de cebolas como de um amor perdido”,63 defende a

libertação, a criação em que o inconsciente envia “telegramas e mais telegramas” à inte-

ligência do poeta, telegramas virgens, sintéticos, enérgicos, segundo ele, a despertar

“comoções, exaltações divinatórias, sublimações, poesia”, características que estão mui-

60 Ibid., p. 255. 61 Segundo Marco Antonio de Moraes, organizador da correspondência entre Manuel Bandeira e Mário de Andrade, a publicação inicia-se efetivamente em outubro de 1923, com a série das “Crônicas de Malazar-te”, e vai até outubro de 1924. Cf. ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 101, nota 53. 62 Ibid., p. 101. 63 ANDRADE, Mário. Obra imatura: Há uma gota de sangue em cada poema; Primeiro andar; A escrava que não é Isaura. 3.ª edição. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; Martins, 1980. V. IV, p. 208.

to de acordo com as orientações criativas posteriormente assumidas por Bandeira em

Libertinagem. O “telegrama”, metáfora para a inspiração, podia manifestar-se no “bon-

de, quando o pobre vai para a repartição, para a Faculdade de Filosofia, para o cinema”,

destacando, assim, o cotidiano e a tecnologia como verdadeiros parceiros dos artistas na

realização de suas obras.64 Defendia ainda novas sensações, novas imagens, a queda da

hierarquia das palavras e das formas poéticas. Essa transgressão das regras fazia com

que todos os assuntos se tornassem poéticos, dependendo unicamente dos interesses de

cada escritor. Trata-se de uma liberdade tamanha que, já em 1923 e 1924, portanto logo

após a Semana de Arte Moderna, sua obra revela uma especificidade que, dos autores

dos anos 1920, só mesmo Manuel Bandeira desenvolverá: a relação da literatura de

vanguarda com a tradição da literatura escrita. Citemos agora trechos de A escrava que

não é Isaura que evidenciam facilmente essa interseção entre os dois poetas: “Os Horá-

cios + Otelo = 2 assuntos. Os Horácios + Otelo + Antena radiográfica + Fios eléctricos

= 4 assuntos. Resultado: riqueza, fartura, pletora”;65 “[...] a inspiração surge provocada

por um crepúsculo como por uma chaminé matarazziana, pelo corpo divino de Nize,

como pelo divino corpo de uma Cadillac. Todos os assuntos são vitais”;66 “Também não

me convenço de que se deva apagar o antigo. Não há necessidade disso para continuar

para frente”;67 por fim, destaquemos mais este trecho, certamente o que revela maior

correspondência entre o modo de Manuel Bandeira e Mário de Andrade pensarem a

tradição:

Mas os poetas modernistas não se impuseram esportes, maquinarias, eloquências e e-

xageros como principio de todo lirismo. Oh não! Como os verdadeiros poetas de todos os

64 Ibid., p. 209. Todos os trechos citados encontram-se nessa página. 65 Ibid., p. 209. 66 Ibid., p. 210. 67 Ibid., p. 210.

tempos, como Homero, como Vergílio, como Dante, o que cantam é a época em que vivem.

E é por seguirem os velhos poetas que os poetas modernistas são tão novos.68

A atenção que Mário, em plena euforia modernista, dedica aos clássicos da

literatura tem uma razão bem clara: “NECESSIDADE DE COMUNICAÇÃO”, a que

ele recorria para coagir a individualidade criativa freqüentemente levada ao hermetismo

da obra de arte e, por conseqüência, impedindo que ela recriasse no espectador “uma

comoção análoga a do que a sentiu primeiro”.69 Dessa forma ele manifestava uma preo-

cupação social, a comunicação, relacionada primeiramente com a tradição, depois com

as artes populares e o folclore, o que culminará na conferência lida na biblioteca do Mi-

nistério das Relações Exteriores do Brasil, “O movimento modernista”,70 quando con-

denou sobretudo a individualidade da sua própria obra modernista e as de sua geração.

Se Mário de Andrade mudou seu foco de atenção, transferido da literatura

tradicional escrita para a literatura oral e o folclore, a restrição feita, em A escrava que

não é Isaura, a alguma poesia modernista que condenava o passado influenciou defini-

tiva e profundamente as novas diretrizes da poesia de Manuel Bandeira. Este inclusive

já tinha uma relação intensa com a literatura tradicional, o que percebemos facilmente

nas suas três primeiras obras, A cinza das horas, Carnaval e O ritmo dissoluto, onde se

encontram principalmente características do simbolismo, além de haver referências dire-

tas à poesia de António Nobre, Luís de Camões, Nikolaus Lenau e Ronsard. Mário, con-

tudo, parece tê-lo ajudado bastante a se orientar melhor entre uma coisa (a tradição) e

outra (o modernismo), estimulando-o, indiretamente, a criar uma obra modernista sem

abrir mão de seu diálogo com a melhor tradição. Mário soube perceber com muita sen-

68 Ibid., p. 224. 69 Ibid., p. 203. 70 ANDRADE, Mário. O movimento modernista. Aspectos da literatura brasileira. 5.ª edição. São Paulo: Martins, 1974. p. 231-255.

sibilidade que a formação de Bandeira já era, por si mesma, um bom coagente para o

“cabotinismo”, enfim, para o uso afetado das experimentações. É o que fica bem claro

na carta de 5 de agosto de 1923, em que Mário de Andrade comenta o uso da expressão

“chouteira” no poema “Meninos carvoeiros”:

Agora, para acabar, tua pergunta. “E vão tocando os animais com uma chouteira enor-

me”. [...] Vejo agora que a palavra queria significar o açoite de que os meninos se serviam.

Acho que deves substituir o termo. Ninguém poderá jamais compreender tua intenção, pois,

além de inventares um termo, dás-lhe um sentido que as fontes não autorizam. Sê tradicio-

nal. Hoje estou nisto. [...] Sei muito bem a repugnância que nos dá, a nós ― poetas de nós,

qualquer concessão feita aos outros. E essa concessão é necessária, entretanto. É preciso

acabar com esse individualismo orgulhoso que faz de nós deuses e não homens.71

Tal orientação casa-se muito bem com o interesse de Manuel Bandeira pelos

estudos filológicos que registravam as características do português falado no Brasil e

que ele aplicou tão bem nos seus textos a partir de Libertinagem, assim como autenti-

cam ― os comentários do amigo paulistano ― a relação que Bandeira já tinha com a

tradição. São dois índices, além disso, que muito colaboram para formar a sensação de

naturalidade e simplicidade que sua obra transmite, mesmo no caso dos poemas mais

inovadores, como “Evocação do Recife”. Sob tais aspectos Manuel Bandeira parece ter

dado continuidade ao projeto artístico desenvolvido por Mário de Andrade n’A escrava

que não é Isaura, seguindo uma linhagem criativa de que o seu próprio idealizador gra-

dativamente se afastaria.

A relação que Bandeira começará a estabelecer com a tradição nos anos

1920 não era, entretanto, passiva. Não bastava, para ele, que a tradição aparecesse, nas

obras contemporâneas, como mera repetição. Era necessário escapar do “macaqueamen-

to” dos puristas incorporando as dicções “clássicas” e “arcaicas” à linguagem moderna,

71 ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 101.

sem que resultasse daí qualquer afetação. O que se pretendia era atualizar as formas

antigas com as tendências contemporâneas, enriquecendo o presente com os valores dos

clássicos da literatura, procedimento semelhante ao que Mário de Andrade defende n’ A

escrava que não é Isaura.

Manuel Bandeira assumiu, diante da tradição, uma postura muito semelhan-

te à defendida por T.S. Eliot no seu notável ensaio “Tradição e talento individual”, de

1919. Segundo Eliot, a tradição envolve um sentido histórico, que compreende, ao

mesmo tempo, uma percepção não meramente do passado, mas de sua importância para

o presente. Diante disso, o poeta escreve não apenas com o seu “talento individual” e o

de sua geração: deve existir, junto às novas questões do contemporâneo, um sentimento

de que toda literatura do passado revela “uma existência simultânea e compõe uma or-

dem simultânea” com o presente. O significado completo de uma obra só é alcançado,

segundo ele, se a obra de qualquer artista é avaliada tomando-se em consideração a sua

relação com os artistas mortos. Trata-se de um princípio de “crítica estética e não ape-

nas histórica”, que precisa ser incorporado ao próprio fazer artístico. No caso da poética

bandeiriana, tal princípio de crítica estética pode ser observado no diálogo com os clás-

sicos que, no passado, revelavam um teor modernizante em relação à sua própria época.

Assim como em T.S. Eliot, havia por parte de Bandeira total consciência de que os

[...] monumentos existentes formam uma ordem ideal, a qual é modificada pela introdução

da nova, da verdadeiramente nova, obra de arte. A ordem existente está completa antes da

chegada da nova obra; para que ela persista após o acréscimo da novidade, deve a sua tota-

lidade ser alterada, embora ligeiramente e, assim, se reajustam a esta as relações, as propor-

ções, os valores de cada obra de arte; e isto é a concordância entre o velho e o novo.72

72 Todas as citações de “Tradição e talento individual” foram extraídas da p. 23. Cf. ELIOT, T.S. Ensaios de doutrina crítica. Tradução de Fernando de Mello Moser. Prefácio, seleção e notas de J. Monteiro-Grillo. 2.ª edição. Lisboa: Guimarães Editores, 1997.

Podemos entender, mediante o ideal bandeiriano de criação, que nem todo o

passado cultural devia ser “destruído”, ao contrário do que propunha o modernismo da

fase mais combativa; devia-se antes revalorizá-lo de acordo com a nova ordem históri-

co-social brasileira. Mais do que “destruir” e buscar a criação de algo absolutamente

novo, Manuel Bandeira reorganizava formalmente alguns elementos da literatura brasi-

leira, sempre a destacar o que, em cada geração, demonstrara um interesse modernizante

de acordo com o seu tempo. Daí, em grande medida, provém sua admiração pelos auto-

res do romantismo, que iniciaram um movimento de independência cultural que acom-

panhava as transformações políticas de 1822.

Na crônica “Leiam João Ribeiro”, de Andorinha, andorinha, percebemos

facilmente o tipo de diálogo com a tradição que interessava à sua obra, juntando o anti-

go com o novo:

A minha maneira de escrever se formou em grande parte na lição do mestre primoroso

das Páginas de Estética. Ninguém melhor do que ele soube assimilar tão completamente as

dições clássicas e arcaicas, que podia incorporá-las em sua prosa moderna sem que do seu

procedimento resultasse nenhum ranço de estranheza e pretensão. Esta Floresta de Exem-

plos [livro de ficção de João Ribeiro] está cheia dessas graças admiráveis do seu estilo: é o

idioma no seu presente e no seu passado ― na sua eternidade. Dá vontade de gritar: Meni-

nos, não leiam gramáticas, leiam João Ribeiro e Machado de Assis.73

Seu contato com a tradição revela-se também, entre outros, pelo acompa-

nhamento entusiasmado que fazia sobretudo das crônicas (publicadas com regularidade

no Jornal do Brasil) e dos estudos de João Ribeiro ― um gramático, é bom salientar,

que desenvolvia estudos avançados para a sua época, em comparação com os seus con-

temporâneos, mas que, ainda assim, se posicionava, nas Letras, como um gramático,

73 BANDEIRA, op. cit., 1966, p. 235.

personagem bastante estigmatizado pelos modernistas e, portanto, um improvável inter-

texto para um poeta dessa geração.74

Citemos alguns trechos de A língua nacional, lançado em 1921, onde o filó-

logo se manifesta quanto aos problemas lingüísticos do Brasil. Impressionam as seme-

lhanças entre as suas idéias e a forma como Bandeira defendia o uso da língua do povo,

questão recorrente em sua poesia e também nas suas crônicas. Eis alguns trechos do

livro de João Ribeiro:

Falar diferentemente não é falar errado. A fisionomia dos filhos não é a aberração tera-

tológica da fisionomia paterna.

E ainda:

O brasileiro diz comumente:

– Me diga... me faça o favor...

É esse um modo de dizer de grande suavidade e doçura ao passo que o “diga-me” e o

“faça-me” são duros e imperativos.

O modo brasileiro é um pedido; o modo português é uma ordem.

Em “me diga” pede-se: em “diga-me” ordena-se. Assim, pois, somos inimigos da ênfa-

se e mais inclinados às intimidades.

Eis o suposto erro que, afinal, é apenas a expressão diversa da personalidade.75

A idéia de que “falar diferentemente não é falar errado” e de que há, em

nossas formas de expressão, “grande suavidade e doçura”, “intimidade”, foram muito

bem aproveitadas nos poemas bandeirianos: ela aparece, por exemplo, na defesa do li-

74 As referências às crônicas de João Ribeiro podem ser encontradas nas cartas de 11 de agosto 1925, 14 de setembro de 1926, 7 de outubro de 1927, 4 de fevereiro de 1928, todas enviadas para Ribeiro Couto. Cf. ARQUIVO RIBEIRO COUTO, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira – AMLB, Fundação Casa de Rui Barbosa. 75 RIBEIRO, João. A língua nacional e outros estudos lingüísticos. Seleção e coordenação de Hildon Rocha. Petrópolis; Aracaju: Vozes; Governo do Estado de Sergipe, 1979. p. 51 e 53.

rismo-libertação de “Poética” e no falar “gostoso” de “Evocação de Recife”, entre ou-

tros. A mesma flexibilidade e suavidade que há no português falado no Brasil, Bandeira

veio a adequá-la exemplarmente, sobretudo a partir de Liberinagem, à flexibilidade do

verso livre. Mário destacou, no ensaio “A poesia de 1930”, que o verso livre, no âmbito

da fenomenologia da escrita, “é uma vitória do individualismo”,76 mas na poesia bandei-

riana, assim como nos autores modernistas a partir de 1924, com o impulso do “Mani-

festo da poesia pau-brasil”, parece-nos também o instrumento mais adequado para “re-

produzir” a língua do povo. A liberdade de composição rítmica dos versos torna mais

fácil que o português falado no Brasil seja transposto para a linguagem literária. Isto se

justifica por uma característica do verso livre que certamente auxiliou Bandeira no efi-

caz entrelaçamento deste com o português falado no Brasil: é um verso que não deve

salientar o metro ― ao contrário de todas as outras formas vérsicas ―, sendo portanto o

mais conveniente para se trabalhar com a língua falada.

A similitude maior entre o verso livre e a língua falada talvez provenha exa-

tamente do fato de que nenhum dos dois cria o seu ritmo com o auxílio de fora, isto é, a

partir de uma regra preestabelecida, o que se tornou um dos recursos construtivos de

uma poesia da coloquialidade e da simplicidade. É claro que tanto esse tipo de verso

quanto a língua falada possuem as suas regras, porém, no caso do verso livre, a regra é

mais individual do que coletiva, enquanto na fala há uma certa introjeção da norma,

bem menos evocada se a comparamos à escrita. Bandeira conseguiu manipular a “língua

do povo” através dos versos livres, sem contudo deixar que o leitor sinta a massa teórica

proveniente da filologia e da lingüística, bem como da técnica de composição desenvol-

vida no próprio poema.

76 ANDRADE, op. cit., 1974. p. 28.

Embora pouco referido entre os modernistas, exceto por Manuel Bandeira,

João Ribeiro, no campo da língua e da filologia, revela-se um dos precursores do mo-

dernismo brasileiro e certamente uma das principais influências para o amadurecimento

da linguagem prosaica bandeiriana em contato com a “língua do povo”. Por meio dos

estudos da filologia e da lingüística, Bandeira desviou-se das arbitrariedades que alguns

contemporâneos seus praticavam para engendrar as especificidades da língua nacional

na prosa e na poesia. Nessa direção, é fundamental reproduzir um trecho de carta para

Mário de Andrade, de 7 de agosto de 1933, em que questiona lucidamente a tentativa do

seu companheiro sistematizar as variações lingüísticas:

A língua não é uma criação lógica. Ou por outra, ela tem uma lógica que não é a indivi-

dual e muitas vezes nos escapa. Justamente para não contrariar essa lógica é que é preciso a

gente se conformar com os fatos da linguagem. Os gramáticos e os puristas só querem se

conformar com os fatos da linguagem escrita, da linguagem literária, e muitos da linguagem

literária dos clássicos e alguns de certos clássicos. Os que trabalham sobre os fatos da lin-

guagem falada da classe cultivada é que me parecem no melhor caminho. As criações do

povo em geral são as mais vivas e legítimas. Elas se impõem [à] classe cultivada quando

nelas fala o gênio da língua. A sua lógica individual, como a de qualquer escritor culto só

se exerce legitimamente até o ponto em que sistematiza dentro dos fatos da linguagem ain-

da que só populares. Começar o período com o, a oblíquos não me parecia fato da língua.

[...] continua a me irritar o fato de você só empregar essa construção. A língua é uma coisa

tão bela, tão viva, tão vária nas suas contradições, nos seus repentes, nos seus erros, nas su-

as impurezas! É tudo que permite a ela dar não só o nosso pensamento, como até o trabalho

do pensamento, as reações da sensibilidade nesse trabalho. Por que empobrecê-la por amor

de uma sistematização que aliás indispõe contra você aqueles que você quer influenciar em

pontos mais substanciais que os de simples linguagem. [sic, sem interrogação] A língua a-

final de contas vai se fazendo quer você ou quem quer que seja queira ou não queira. Es-

creva naturalmente, Mário. Adotando o que lhe pareça bom para a sua expressão, mas sem

essa preocupação de exigir muito para obter um poucadinho. [...] Os escritores só podem

influir na língua pelo gosto da expressão, não pela lógica. A lógica é para os gramáticos,

que trabalham sobre a criação do gosto dos bons escritores.77

77 ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 566-567.

Manuel Bandeira, como podemos observar no trecho citado, trabalhava em

sua obra com os fatos de linguagem sem abdicar da naturalidade expressiva. A norma e

sua variação deviam ter, segundo ele, o mesmo valor para a literatura moderna: cada

qual tinha sua razão de existir conforme as orientações que a própria obra em questão

exigisse. É importante notar, porém, que para ele os “fatos de linguagem falada da clas-

se cultivada” pareciam o “melhor caminho”, revelando-nos um processo de absorção de

uma certa variação e não de “todas” as suas ocorrências. Ele buscava os fatos de lin-

guagem do “povo em geral” que tivessem chegado à classe cultivada, ou seja, à classe

de uma formação lingüística predominantemente normativa. Levava então para a sua

obra o que já tinha sido “aprovado” pela classe mais culta, não por uma subserviência

de “casta”, devido contudo à legitimidade que a criação do povo demonstrava quando

ratificada pela classe letrada. Tratava-se nesse caso de uma variação extensamente fala-

da e que, por isso, podia ser absorvida sem afetação ou artificialismo pela escrita poéti-

ca. Nesse sentido havia, sob a perspectiva da lingüística, um forte rigor científico, em

que os fatos isolados eram abandonados e procurava-se, no seu lugar, legitimar as varia-

ções pela recorrência do uso.

Estamos diante de um procedimento criativo que colaborou muito para con-

figurar o tom “natural” e simples de seus poemas e crônicas. Não há, da parte dos leito-

res, estranhamento com essa linguagem: na maior parte das vezes, a língua com que

trabalhava seus poemas modernistas é a que ainda usamos com maior costume e fluên-

cia, dando-nos também, desse modo, uma sensação de familiaridade. É possível inferir,

a partir disso, que a espontaneidade e a simplicidade dos versos bandeirianos restrin-

gem-se à aparência, pois há um processo rigoroso de construção para que elas se dêem

dessa maneira, concebendo-as, por outro lado, como parte até mesmo da estrutura dos

poemas.

Ainda podemos notar como Manuel Bandeira se posicionava em relação ao

desvio e ao respeito das normas numa outra carta para Mário de Andrade, de 16 de maio

de 1925, quando defende a coexistência dos variados registros lingüísticos, de acordo

com as necessidades do escritor ou do falante, o que se estabeleceria pelo contexto e

pelos objetivos estéticos:

Sou contra a sistematização pessoal voluntária. Digo “para” e “prá”. Grafemos “para” e

“pra”. Se houver vitalidade nas duas formas como inegavelmente há, elas co-existirão. Se o

“prá” tiver mais seiva acaba eliminando a outra e então sim, seria pedantismo, arcaísmo

querer guardá-la.78

Bandeira demonstra novamente que sistematizar qualquer variação e em-

pregá-la sem concessões podia soar tão afetado e artificial quanto empregar, com infle-

xibilidade, as orientações das gramáticas normativas. Ele tinha absoluta consciência de

que os estudos filológicos podiam tornar mais adequados o uso das variações lingüísti-

cas e dos aspectos dialetais na obra literária. Chegou a escrever para Mário de Andrade,

numa carta de 3 de agosto de 1925, quando já havia iniciado a criação dos poemas de

Libertinagem (a mais modernista de suas obras), que “seria grande vantagem se o escri-

tor fosse ao mesmo tempo um filólogo baita. Ora isso se adquire, ciência de filólogo.

Você tem que estudar essa m. toda [...] é questão de ser modernista em lingüística”,79 e

lhe aconselhou a procurar informações bibliográficas que o pudessem auxiliar quanto ao

uso da língua falada e de aspectos dialetais.

Em setembro do mesmo ano, por fim, Bandeira enviou-lhe uma lista de o-

bras, elaborada com ajuda de Sousa da Silveira. A partir dessa lista se encerra com Má-

rio de Andrade a fase mais acalorada da peleja sobre o uso do idioma nacional, um dos

78 Ibid., p. 190. 79 Ibid., p. 224.

diálogos em que podemos observar, entre outros, a importância da correspondência en-

tre os dois autores, certamente fundamental para que tanto um quanto o outro adotassem

certos procedimentos criativos e corrigissem algumas soluções inadequadas. A troca

epistolar foi se tornando, em alguns casos, uma etapa sincrônica e/ou diacrônica do pro-

cesso criativo. Exemplo disso é o conselho de Mário de Andrade, para Manuel Bandei-

ra, acerca da substituição do neologismo “chouteira” no poema “Meninos carvoeiros”,

que tem o mesmo fundamento do conselho de Manuel Bandeira, para Mário de Andra-

de, sobre o uso do português falado no Brasil: a tão importante “necessidade de comu-

nicação”, um instrumento de ataque contra as escolhas pela individualização exagerada

e, conseqüentemente, pelo hermetismo das formas expressivas, embora a posição de

cada um deles a respeito desse “quesito” fosse bem distinta. Para Bandeira, a “necessi-

dade de comunicação” tinha um valor construtivo, buscando impôr à sua obra uma poe-

sia da simplicidade, enquanto para Mário de Andrade foi se intensificado a preocupação

com o alcance social da obra de arte.80

Entre os textos mais importantes da lista recomendada por Manuel Bandeira

e Sousa da Silveira, podemos observar um interesse semelhante destes gramáticos quan-

to à chamada “necessidade de comunicação” de Mário de Andrade e também quanto à

tentativa de formular uma identidade nacional, expressa, contudo, de outra maneira: o

conhecimento científico que dava legitimidade ao português falado pela maioria no Bra-

sil, desmarginalizando-o com o efeito de reduzir os preconceitos contra o nosso modo

personalizado de expressão da língua. Dos livros recomendados, são fundamentais, para

se compreender a natureza desses estudos e os seus objetivos, O dialeto caipira, de

Amadeu Amaral; O linguajar carioca, de Antenor Nascentes, e os artigos de Jorge Gui-

80 A preocupação de Mário de Andrade com o alcance social da obra de arte pode ser observada em sua correspondência com Manuel Bandeira; na bem como na conferência “O movimento modernista”, profe-rida em 1942, posteriormente reunida no livro Aspectos da literatura brasileira, e em Mário de Andrade: a morte do poeta, de Eduardo Jardim (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005).

marães Daupiás publicados na Revista de Filologia Portuguesa, de São Paulo, sob o

título “Carta ao exmo. sr. dr. Antenor Nascentes”. Sousa da Silveira também recomen-

dou algumas palavras de José de Alencar, autor de uma “intuição genial” sobre a língua,

embora sua inovação lingüística consistisse basicamente na colocação do pronome oblí-

quo e no uso de expressões herdadas das línguas indígenas.81

Na crônica publicada a 12 de maio de 1929, “Alencar e a linguagem brasi-

leira”, reunida em Crônicas inéditas I, Manuel Bandeira assume postura semelhante em

relação ao autor de Iracema, aproveitando a data comemorativa (o centenário de José de

Alencar) para destacar as qualidades desse romancista tão atacado pelo modernismo e

combater o uso indevido do idioma nacional. Mais uma vez retorna à importância da

naturalidade no uso da língua:

Não foi ele apenas o primeiro a querer escrever nos seus romances o português dos bra-

sileiros. Mas fazendo-o, deu-nos também o verdadeiro senso da adaptação artística da nossa

linguagem. [...]

É preciso frisar bem esse ponto, porque ultimamente tem havido novas e mais arrisca-

das tentativas de aproveitamento literário das formas brasileiras, ensaios que apesar de mui-

to louváveis pela coragem e pelo sabor de muitas páginas, todavia vão ficando prejudicados

pelos excessos de uma sistematização que acaba destruindo toda a naturalidade da dicção.82

Apesar desse contato estreito com os filólogos e gramáticos, entre eles e

Bandeira não tinha uma relação inteiramente concordante, pois de modo geral estes não

81 A lista se encontra numa carta de 1925, de Manuel Bandeira para Mário de Andrade. Cf. ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 235. A respeito dos referidos livros de filologia e lingüística, cf. AMARAL, Amadeu. O dialeto caipira. Gramática – vocabulário. Prefácio de Paulo Duarte. São Paulo: Editora A-nhembi, 1955; NASCENTES, Antenor. O linguajar carioca. 2.ª edição. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1953; DAUPIÁS, Jorge Guimarães. Carta ao exmo. sr. dr. Antenor Nascentes. Revista de Filolo-gia Portuguesa, São Paulo, n.o 6 e 7, v. III, junho-julho 1924, em que trata do livro O linguajar carioca, fazendo considerações significativas sobre o importante estudo de Antenor Nascentes. Os textos de José de Alencar podem ser encontrados em O Português do Brasil: textos críticos e teóricos, I – 1820/1920, fontes para a teoria e a história. Organização de Edith Pimentel Pinto. Rio de Janeiro; São Paulo: Livros Técnicos e Científicos; Edusp, 1978. p. 55-150. 82 BANDEIRA, op. cit., 2008, p. 199.

aceitavam que as características do idioma nacional fossem incorporadas à literatura sob

os “moldes” da poética modernista. Na crônica “Fala brasileira”,83 Bandeira discute ―

fazendo restrições ― o artigo de Sousa da Silveira, publicado no Jornal do Commercio

do Rio de Janeiro, em que o filólogo e gramático trata d’O idioma nacional, de Antenor

Nascentes. Nessa ocasião Manuel Bandeira lança, ironicamente, farpas sobre o reacio-

narismo de Sousa da Silveira quanto ao uso da denominação “idioma nacional” e uma

certa restrição em se tratando da incorporação de procedimentos da língua falada na

escrita:

Um lingüista como ele [Nascentes] o é, não podia absolutamente usar daquela denominação

[idioma nacional] para encobrir a realidade das coisas, nem entrar na corrente delirante dos

que pretendem, pela simples resolução de adotar na língua escrita todas as licenças da lín-

gua falada, criar uma língua nova, uma língua que querem não seja portuguesa, sem se

lembrarem de que, com esse processo, apenas conseguiriam (se veleidades humanas pudes-

sem desviar o curso natural das coisas) escrever uma língua que seria a portuguesa com al-

terações numerosas e talvez profundas, mas sempre e em substância a língua portuguesa.84

Também podemos concluir, por meio de tais contestações, que o idioma na-

cional foi uma das questões modernistas a sofrer maior resistência, pois o lançamento

dessa obra de Antenor Nascentes data de 1938. Enquanto Manuel Bandeira considerava,

em carta para Mário de Andrade, que O idioma nacional era uma “gramática elegantís-

sima”, com “trechos referentes à colocação de pronomes e ao infinitivo pessoal [...] la-

pidares e definitivos”, Sousa da Silveira julgava-a descabida numa série de pontos, entre

os quais se encontram justamente os que, nas correspondências, foram destacados pelo

poeta.85

83 BANDEIRA, op. cit., 2006, p. 45-48. 84 SILVEIRA, Sousa apud BANDEIRA, ibid., p. 45. 85 ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 646.

Por meio do coloquialismo ― da língua, das coisas, do homem comum ― o

poeta foi contrário ao artificialismo do uso inflexível da linguagem oficial para constru-

ir, também dessa maneira, a modernidade de sua literatura, estruturada de modo a sus-

tentar, no todo do poema, uma simplicidade que desconstrói qualquer idéia de artificia-

lismo. Dissolveu ao máximo os contrastes entre o idioma escrito e o falado e, conse-

qüentemente, realçou os seus falantes e uma certa brasilidade. Na crônica “O dicionário

da Academia está em crise”, publicada na Província, a 26 de agosto de 1928, ele deixa

bem claro que “[s]e queremos escrever como brasileiros, teremos que admitir na língua

escrita a mesma sintaxe que as pessoas sem afetação empregam na fala habitual. O mais

é literatura fiada”.86 São dados reveladores de que a sua poesia dita humilde e despre-

tensiosa tinha finalidades bem audaciosas, desenvolvidas com lucidez e rigor.

É o que se percebe nos versos de “Evocação do Recife”, pois eles buscam

fugir das normas estilísticas e gramaticais, tão combatidas pelos autores modernistas,

aproximando-se ainda de uma poesia da simplicidade. Manuel Bandeira se valeu, para

esse fim, não só do uso da língua do povo, mas igualmente das singelezas da vida a par-

tir das memórias da infância e de traços da cultura popular: chicote-queimado, famílias

que depois do jantar largavam-se nas calçadas, mexericos, namoros, risadas, a brinca-

deira do coelho-sai, as meninas e suas cantigas, os fogos da festa de São João, novenas,

cavalhadas, os pregões da feira, a vendedora de bananas, o vendedor de roletes de cana

ou de amendoim. A coloquialidade e a simplicidade da linguagem, a infância e as coisas

brasileiras, provincianas, encontram-se entrelaçadas ― e a partir delas a construção dos

versos se dá, chegando-se assim a um estilo mais propriamente bandeiriano e moderno,

também localizado com facilidade em “Camelôs”, “Mangue” e “Tragédia brasileira”,

entre outros.

86 BANDEIRA, Manuel. Crônicas inéditas I 1920-1931. Organização, posfácio e notas de Júlio Castañon Guimarães. São Paulo: Cosac & Naify, 2008. p. 127.

É importante destacar que o combate ao artificialismo era um intento não só

da poesia de Manuel Bandeira, mas das tendências vanguardistas, tanto na literatura

quanto nas artes plásticas e na arquitetura. Os métodos revelavam diferenças, no entanto

as finalidades eram as mesmas em relação ao que devia ser combatido pelas vanguardas.

Examinemos, para tal constatação, as propostas de alguns manifestos europeus e mo-

dernistas do início do século XX, analisando a importância deles para formar a poesia

modernista de Manuel Bandeira.

4. O POETA “DENTRO” E “FORA” DO MODERNISMO

As primeiras manifestações do cubismo surgiram em 1907, quando Pablo

Picasso pintava o quadro Les Demoiselles d’Avignon e Georges Braque analisava a fun-

do as características da pintura de Paul Cézanne. Este interesse levaria Braque a fazer as

paisagens de L’Estaque, que vieram a público em Paris, no ano de 1908. O cubismo

contrapôs-se então à perspectiva de um modo nunca antes visto, aprofundando as pes-

quisas estéticas de Cézanne e dialogando com as esculturas africanas, de intenso caráter

abstrato e geométrico. Fragmentação, multiperspectivismo e tridimensionalidade davam

às imagens cubistas a ilusão de se movimentarem, desenvolvendo-se, também dessa

maneira, a sensação de simultaneidade. Havia, portanto, uma ruptura com a reprodução

figurativa ― atenta aos detalhes e muitas vezes ornamental, alicerçada no descritivismo

― e no seu lugar se oferecia uma arte repleta de sugestões, fundamentada na estrutura

das formas e no modo de elas se relacionarem.87

Motivado pelo surgimento dos automóveis, aviões e máquinas, Filippo Ma-

rinetti elaborou “O futurismo” e o “Manifesto técnico da literatura futurista”, de 1909 e

1912, respectivamente, para romper a “imobilidade pensativa” e libertar a Itália da

“gangrena de professores, de arqueólogos, de cicerones e de antiquários”, representantes

do artificialismo e do engessamento de idéias. A velocidade era, nessa época, o símbolo

87 Estas observações baseiam-se no livro Estilos, escolas & movimentos. Guia enciclopédico da arte mo-derna, de Amy Dempsey, publicado em 2003 pela Cosac & Naify. Tradução de Carlos Eugênio Marcon-des de Moura.

que estimulava, extraliterariamente, as novas propostas desse grupo. Marinetti defendia

a extinção das normas gramaticais (“É preciso destruir a sintaxe”, “Deve-se abolir o

adjetivo”, “Deve-se abolir o advérbio”, “suprimir o como, o qual, o assim, o semelhante

a”, “Abolir também a pontuação”, entre outras assertivas, todas propostas em busca de

maior dinamicidade discursiva). Devia-se ainda abolir a hierarquia de imagens (“Não

existem categorias de imagens, nobres ou grosseiras”) e palavras, ampliando, conse-

qüentemente, as possibilidades de se criarem analogias e movimentos sucessivos nos

poemas.88

O manifesto-síntese de Guillaume Apollinaire, “A antitradição futurista”, de

1913, influenciado pelo cubismo de Pablo Picasso, intentava a supressão da “dor poéti-

ca”, “da cópia em arte”, “das sintaxes já condenadas pelo uso em todas as línguas”. De-

fendia, no campo construtivo, “técnicas ou ritmos renovados sem cessar”, “palavras em

liberdade”, o “maquinismo”, a “linguagem veloz”, revelados por um intelectualismo

sensorial. Dessa forma era possível, segundo Apollinaire, desintegrar a aparência das

coisas ― fixada pelas normas da lógica e da razão ― para deixar transparecer o que há

nelas de fundamental e determinante.89

Já Le Corbusier90 e Amedée Ozenfant, em Depois do cubismo, de 1918,

questionavam a arquitetura que “engrinalda[va] os palácios ou as mais estritas ‘caixas

para alugar’ com uma flácida excreção dos manuais”. Para eles, a arte estava “em toda

parte menos nos ateliês dos pintores, dos decoradores, em toda parte menos nos escritó-

rios dos arquitetos”; os artistas só se aproximavam “da vida moderna no que ela t[inha]

88 MARINETTI. O futurismo e Manifesto técnico da literatura futurista. In: TELES, Gilberto Mendonça (organizador). Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação dos principais poemas, mani-festos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 a 1972. 11.ª edição. Petrópolis: Vozes, 1992. p.89-103. 89 APOLLINAIRE, Guillaume. A antitradição futurista apud TELES, op. cit., p. 118-121. 90 Le Corbusier ainda não tinha adotado, nesse época, o seu pseudônimo. O livro foi assinado portanto com seu nome de batismo, Charles Édouard Jeanneret.

de artificial”. Eles afirmavam também que a pintura valia pelas suas qualidades plásti-

cas e não pelas possibilidades representativas e/ou “narrativas”, sempre amoldadas pela

aparência das coisas.91

Mediante a escrita automática e a livre associação de idéias, André Breton e

seus companheiros queriam ― estimulados pelas teorias da psicanálise freudiana ―

romper com a predominância absoluta do discurso lógico-racional, repleto de fórmulas

limitadoras. Os surrealistas desobedeciam às normas tradicionais e lançavam-se, pelo

inconsciente, a renovadores modos de expressão. A “palavra liberdade é a única que

ainda me exalta”, escreveu Breton no “Manifesto do surrealismo” de 1924, apoiado na

teoria dos sonhos de Sigmund Freud para fazer frente ao “reinado da Lógica”. Ia-se en-

tão contra as “imagens de catálogo sobrepostas”, artificiais, previsíveis e repetitivas.92

Podemos observar, mediante as orientações básicas dessas vanguardas, que

a defesa da liberdade e da simplicidade surgiam frontalmente contra o discurso lógico-

racional e o artificialismo, aspectos nada condizentes com o pragmatismo exigido pela

vida moderna. Principalmente as obras dos autores parnasianos representavam, no Bra-

sil, as diretrizes ultrapassadas para os novos tempos: respeitavam-se integralmente as

normas gramaticais; não havia qualquer concessão às particularidades do idioma nacio-

nal; existia grande interesse pela visão do real, com intensa aderência às características

representativas dos naturalistas; criavam-se descrições como motivo da criação, “regis-

trando” minuciosamente os objetos decorativos (leques chineses, vasos etc.); escolhiam-

se, para criar os seus poemas, formas tradicionais, com métrica, rima e ritmo previsí-

91 OZENFANT, AMEDÉE; JEANNERET, CHARLES ÉDOUARD. Depois do cubismo: Ozenfant e Jeanneret. Tradução de Célia Euvaldo. Introdução de Carlos A. Ferreira Martins. São Paulo: Cosac & Naify, 2005. 92 BRETON, André. Manifesto do surrealismo (1924). Manifestos do surrealismo. Tradução de Sérgio Pachá. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2001. p. 15-64.

veis, além de o gosto da arte pela arte ser um dos principais leitmotiven dos parnasia-

nos.

No lugar das formas fixas, da sintaxe normativa e dos vocábulos dicionari-

zados, os novos artistas propunham o abrasileiramento do texto literário mediante a in-

ternalização do idioma nacional e o aproveitamento de seus aspectos dialetais. Junto

dessa linguagem de dicção popular, os modernistas adotaram procedimentos criativos

das vanguardas européias para reagir à cópia dos modelos clássicos, como a abundância

de assuntos, desierarquização das palavras, fragmentação, simultaneidade, síntese des-

critiva, uso de ritmos diversos num mesmo poema, versos livres e brancos, entre outros.

Recorrendo ao português falado no Brasil, absorvendo novas técnicas de construção e

eliminando o excesso de ornamentações, os textos literários tornaram-se mais coloqui-

ais, econômicos, enxutos, simples e velozes.

Por outro lado, o ruralismo e algumas de suas atributos que persistiam nas

grandes cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo, serviam perfeitamente à formação de

um cenário primitivo na literatura brasileira dos anos 1920. Isto contribuiu sobremanei-

ra para que se alcançasse ― nos contos, romances e poemas ― o tom simples tão de-

fendido principalmente nos manifestos do futurismo e do surrealismo, que veio a ser um

dos pontos característicos do grupo da Semana de Arte Moderna. Para Sérgio Buarque

de Hollanda, a rigor, a civilização instaurada pelos portugueses não era agrícola, mas a

estrutura da sociedade brasileira formou-se a partir do meio rural, o que veio a se refletir

até mesmo nos centros urbanos.93 Em função disso, conforme Antonio Candido escre-

veu no ensaio “Literatura e sociedade”, o primitivismo fazia até mais sentido no Brasil

do que nos países da Europa vanguardista. Ele era um fundamento de nossa estrutura

93 Cf. HOLLANDA, Sérgio Buarque. Herança rural. Raízes do Brasil. 26.ª edição. 8.ª reimpressão. Apre-sentação de Antonio Candido. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 73-92.

social e suas marcas integravam-se ao cotidiano das áreas mais industrializadas e urba-

nas do Brasil. Para Candido,

[f]inalmente, não se ignora o papel que a arte primitiva, o folclore, a etnografia tiveram na

definição das estéticas modernas, muito atentas aos elementos arcaicos e populares com-

primidos pelo academismo. Ora, no Brasil as culturas primitivas se misturam à vida cotidi-

ana ou são reminiscências ainda vivas de um passado recente. As terríveis ousadias de um

Picasso, um Brancusi, um Max Jacob, um Tristan Tzara, eram, no fundo, mais coerentes

com a nossa herança cultural do que com a deles. O hábito em que estávamos do fetichismo

negro, dos calungas, dos ex-votos, da poesia folclórica, nos predispunha a aceitar e assimi-

lar processos artísticos que na Europa representavam ruptura profunda com o meio social e

as tradições espirituais. Os nossos modernistas se informaram pois rapidamente da arte eu-

ropéia de vanguarda, aprenderam a psicanálise e plasmaram um tipo ao mesmo tempo local

e universal de expressão, reencontrando a influência européia por um megulho no detalhe

brasileiro.94

No que diz respeito ao uso da linguagem coloquial pelos autores modernis-

tas, podemos adotar essa mesma lógica de pertinência a que se refere Antonio Candido

acerca do primitivismo: também defendida pelas vanguardas européias, aqui ela colabo-

rava para reduzir os contrastes entre a língua escrita à moda de Portugal, rigidamente

submetida às normas gramaticais do antigo colonizador, e a língua falada, que era mais

livre, com sua vitalidade “sem arcaísmos, sem erudição”, mais propriamente brasileira,

a contribuir com o arsenal “milionário de todos os erros”, de acordo o “Manifesto da

poesia pau-brasil”, de Oswald de Andrade.95 É importante destacar, nesse sentido, que a

língua falada se tornou uma das peças centrais para a fixação do conceito de nacionali-

dade, bem como para a elaboração de uma literatura independente dos modelos consa-

grados e, conseqüentemente, mais autêntica. Embora as vanguardas da Europa também

94 CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945. Literatura e sociedade. 8.ª edição. São Pau-lo: T.A. Querizo; Publifolha, 2000. Grandes nomes do pensamento brasileiro. p. 111-112. 95 ANDRADE, Oswald. Manifesto da poesia pau-brasil. Do pau-brasil à antropofagia e às utopias. Mani-festos, teses de concursos e ensaios. 2.ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 6.

valorizem a língua falada, que também foi acolhida em seus textos, aqui há uma dife-

rença significativa: a fala, com características próprias do Brasil, opõe-se ao português

escrito, em que as marcas de colonização e importação do idioma eram mais evidentes.

Mais uma vez, a partir das observações de Antonio Candido, as influências

das vanguardas européias na obra de Manuel Bandeira são muito numerosas e ― nova-

mente motivados pelas observações de Antonio Candido acerca do primitivismo ― se

adequaram perfeitamente ao “detalhe brasileiro” de seus poemas onde recorreu à infân-

cia, ao folclore, à Lapa, à região do Mangue no Rio de Janeiro, ao Recife etc., em que

captou a simplicidade igualmente presente em todas as artes avant la lettre. Foi a partir

desses referenciais que ele mergulhou no “detalhe brasileiro” e elaborou suas técnicas

de criação mais renovadoras. Constatamos as influências das vanguardas na reunião dos

poemas bandeirianos, em Estrela da vida inteira; no Itinerário de Pasárgada, quando

menciona a importância de Guillaume Apollinaire; nas crônicas e principalmente nas

cartas a Mário de Andrade e Ribeiro Couto. Estas últimas podem revelar, inclusive,

contatos imprevisíveis, talvez publicamente velados devido ao que Harold Bloom clas-

sificou como “angústia da influência” em um dos seus livros sobre William Shakespea-

re. Acreditamos que esse conceito pode ser adaptado às omissões de influências identi-

ficadas na obra bandeiriana.96

É possível conjeturar sobre o escamoteamento de influências sobretudo no

caso de Blaise Cendrars, cuja importância para a formação literária moderna de Manuel

Bandeira se encontra, não por acaso, somente nas correspondências com Mário de An-

drade e Ribeiro Couto, bem como em “A poesia de Blaise Cendrars e os poetas brasilei-

ros”, artigo tardiamente publicado, a 14 de julho de 1957,97 ao contrário de Mário de

96 BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia. Tradução de Marcos Santarrita. 2.ª edição. Rio de Janeiro: Imago, 2002. 97 BANDEIRA, Manuel. A poesia de Blaise Cendrars e os poetas brasileiros. Journal Français du Brésil, 14 de julho de 1957.

Andrade,98 Martins de Almeida,99 Menotti Del Picchia,100 Oswald de Andrade,101 Sérgio

Buarque de Hollanda102 e Sérgio Milliet,103 que já nos anos 1920 declaravam imensa

admiração pelos livros desse poeta francês.104 Por meio da sua “indiferença”, Manuel

Bandeira talvez buscasse, àquela época, singularizar as influências que recebeu, assim

como manter algum distanciamento dos autores modernistas: as influências anunciadas

diziam respeito a poetas do final do século XIX e sobretudo a Guillaume Apollinaire,

que eram pouco ou nada referidos pelos seus companheiros de geração. Esta omissão

parece um dado estratégico para que ele sustentasse uma liberdade e uma mobilidade

muito defendidas em Libertinagem. Além disso, Manuel Bandeira não participou da

Semana de Arte Moderna, o que está ligado a seu interesse ― ou até mesmo compro-

misso ― pelos recursos técnicos da tradição. Este posicionamento intensificou a mobi-

lidade criativa de sua poética, o que podemos atestar num trecho do Itinerário de Pa-

sárgada:

98 Cf. ANDRADE, Mário de. Blaise Cendrars. Revista do Brasil, n.o 99, São Paulo, março de 1924, p. 214-223; Blaise Cendrars – Feuilles de Route (I. Le Formose) – Desenhos de Tarsila – Paris, 1924. L’Or – Romance – Grasset, Paris, 1925. Estética, n.o 3, Rio de Janeiro, janeiro-março de 1925; Táxi: De – a – pé – III. Diário Nacional, São Paulo, 22 de dezembro de 1929; Táxi: Blaise Cendrars. Diário Nacional, São Paulo, 25 de dezembro de 1929. 99 Cf. ALMEIDA, Martins de. Feuilles de Route – Blaise Cendrars. A Revista, n.o 1, Belo Horizonte, julho de 1925, p. 54. 100 Cf. PICCHIA, Menotti Del. Blaise Cendrars. A conferência de amanhã. Correio Paulistano, São Pau-lo, 11 de junho de 1924. 101 Cf. ANDRADE, Oswald. Blaise Cendrars. Um mestre da sensibilidade contemporênea. Correio Pau-listano, São Paulo, 13 de fevereiro de 1924. 102 Cf. HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Blaise Cendrars – Kodak – Documentaire. Estética, n.o 1, Rio de Janeiro, setembro de 1924; Conversando com Blaise Cendrars – “O futuro do homem branco está sobretudo na América do Sul” – diz o poeta francês ao representante de O Jornal. O Jornal, Rio de Janei-ro, 23 de setembro de 1927. 103 Cf. MILLIET, Sérgio. Crônica parisiense. Revista do Brasil, n.o 111, ano X, São Paulo, março de 1925, p. 231-232; outras terras. terra roxa e outras terras, n.o 2, São Paulo, ano 1, quarta-feira, 3 de feve-reiro de 1926. 104 Os textos referidos das notas 74 a 79 foram reproduzidos do capítulo “Xerox (documentários): Blaise Cendrars e o Brasil”, no livro A aventura brasileira de Blaise Cendrars: ensaio, cronologia, filme, depo-imentos, antologia, desenhos, conferências, correspondência, traduções. Organização de Alexandre Eulá-lio. 2ª edição revista e ampliada por Carlos Augusto Calil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Fapesp, 2001.

Também não quisemos, Ribeiro Couto e eu, ir a São Paulo por ocasião da Semana de

Arte Moderna. Nunca atacamos publicamente os mestres parnasianos e simbolistas, nunca

repudiamos o soneto nem, de um modo geral, os versos metrificados e rimados.105

Manter-se autônomo em relação ao grupo modernista permitia a Manuel

Bandeira abrir diversas frentes criativas. Tratava-se de uma postura que lhe valia um

deslocamento ambivalente, dirigido tanto aos elementos da poesia moderna, quanto ao

acervo de técnicas já consagradas pela tradição.

Esta escolha pode ser associada a outro trecho do Itinerário de Pasárgada,

quando declara que muito do modernismo de Libertinagem não passava do “espírito” de

seu “grupo alegre”, formado por Dante Milano, Jayme Ovalle, entre outros, com quem

convivia.106 Se por um lado ele respeitava as técnicas tradicionais de composição poéti-

ca, por outro o seu vanguardismo era parcialmente fruto dos encontros cotidianos com

alguns amigos. Sem qualquer dúvida, o comportamento desse grupo e os hábitos cultu-

rais do Rio de Janeiro deram matéria para muitos poemas modernistas de Bandeira, cli-

ma que podemos avaliar por algumas de suas crônicas (“Na câmara-ardente de José do

Patrocínio Filho”, “O enterro de Sinhô”, “O místico”, “A trinca do Curvelo”, “Candom-

blé”, entre outras). Também nesse sentido é uma valiosa fonte de pesquisa a biografia O

anjo sujo, de 2008, um rico documento sobre a vida de Jayme Ovalle e o cotidiano no

Rio de Janeiro dos anos 1910 e 1920. Humberto Werneck, autor dessa biografia, relata

fatos que já no início do século XX revelavam mudanças de hábitos da população cario-

ca, os quais estavam em harmonia com os interesses futuramente defendidos pelos mo-

dernistas. É exemplo disso a festa no palácio do Catete, a 26 de outubro de 1914, em

que a primeira-dama, mulher do presidente Hermes da Fonseca, tomou o violão e exe-

cutou a música “Corta-jaca”, de Chiquinha Gonzaga, composta em 1897 para a peça

105 BANDEIRA, op. cit., 1956, p. 67. 106 Ibid., p. 87.

Zizinha Maxixe. A música “proibida” começava a invadir de modo incisivo o gosto ofi-

cial, o que indignou alguns políticos conservadores. Rui Barbosa, num ímpeto de mora-

lismo, declarou na tribuna do Senado da República:

[...] aqueles que deveriam dar ao país o exemplo das maneiras mais distintas e dos costumes

mais reservados elevaram o corta-jaca à altura de uma instituição social. Mas o “Corta-

jaca”, de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem a ser ele, Sr. Presidente? A mais bai-

xa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, irmã gêmea do batuque, do

cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciais o “Corta-jaca” é executado com todas

as honras da música de Wagner, e não se quer que a consciência desse país se revolte

[...].107

Estes ritmos “deploráveis”, plebeus, tornaram-se, segundo Humberto Wer-

neck, “não só palatáveis como rotineiros”,108 e complementa, citando o artigo “Nativis-

mo pitoresco”, de Brito Broca, a respeito daquele tipo de festa: “Eram as primeiras ma-

nifestações de um prurido de supervalorização das coisas nossas, de tudo quanto passa-

va por ser genuinamente brasileiro e que iria acentuar-se em vários terrenos, no teatro,

na poesia, na ficção, sempre através de um prisma pitoresco.”109 Assim como houve, na

sociedade do Rio de Janeiro dos anos 1910, a busca pelas manifestações culturais mais

genuínas, insurgiria, nos anos 1920, uma transformação das artes no Brasil. Novamente

acerca do artigo de Brito Broca, “[n]os mesmos salões remanescentes do ‘1900’, onde

se recitava Rostand e se discutia D’Annunzio ou Anatole France, passaria a ser chique,

agora, ouvir o som de uma canção sertaneja”.110 Eram festas que prenunciavam, de al-

guma forma, o modernismo brasileiro, e iniciavam então a segunda fase maciça de valo-

rização das “coisas nossas”. A cultura brasileira e suas manifestações mais genuínas

107 BARBOSA, Rui Apud WERNECK, op. cit., p. 52. 108 WERNECK, op. cit., p. 52. 109 Ibid., p. 52. 110 BROCA, Brito Apud WERNECK, op. cit., p. 52.

substituíram o papel que, no século XIX, foi representado pelos índios e pela natureza,

símbolos idealizados das riquezas do Brasil. O modernismo empreendeu, dessa maneira,

um ajuste nessa proposta do movimento romântico, em que se tencionou a incorporação

de elementos verdadeiramente adequados à realidade brasileira.

A inclinação pelas “coisas nossas”, solidificada na intelligentsia brasileira

pelo modernismo, tinha na Lapa e arredores um dos seus principais redutos, com diver-

sos bares, mistura de classes, música popular, reunindo artistas de diversas áreas, enfim,

composta de elementos que iam ao encontro dos anseios dos novíssimos artistas. Por-

tanto, é fácil conceber que a zona mais boêmia do Rio de Janeiro e alguns de seus fre-

qüentadores (escritores, músicos, pintores, vagabundos) influenciassem a obra de Ma-

nuel Bandeira. Entretanto, o fato de o poeta omitir os estudos rigorosos e sistemáticos

que vinha fazendo sobre autores das vanguardas européias e desconsiderar a importân-

cia disso para a criação dos seus poemas modernistas nos indicam novamente uma ten-

tativa de escapar de possíveis classificações, embora houvesse alguma coincidência

entre os estímulos do meio que ele freqüentava e as propostas do modernismo. Além

disso, ter e preservar esse grupo de amigos também sugere uma escolha por um certo

tipo de influência a ser recebida: talvez, o que interessasse Bandeira fosse o lado mo-

dernista que os amigos revelavam de modo circunstancial no cotidiano da boemia cario-

ca, sendo conseqüentemente incorporado na criação dos seus poemas à moda da van-

guarda brasileira. Era como se ele não fosse modernista, mas um modernizante sem o

saber, como escreveu a Mário de Andrade na carta de 19 de maio de 1924,111 embora

seu “desconhecimento” revele um contraste se recordarmos a trajetória criativa que ti-

nha formulado desde Carnaval.

111 ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 124.

Com a tentativa de afastar-se do grupo modernista, parece-nos ainda que

Bandeira pretendia evitar, de antemão, um fato semelhante ao que ocorrera com Mário

de Andrade, ao ser definido como um poeta futurista num polêmico artigo de Oswald de

Andrade, “Meu poeta futurista”, publicado no Jornal do Commercio em 1921, além de

reafirmar, indiretamente, seu compromisso com a tradição, que nunca seria abandonado.

Era uma “angústia da influência” relativa, que visava a uma independência específica:

Bandeira não queria ser associado às influências em comum e/ou as temporalmente

mais próximas, aproveitando, dessa maneira, para fugir de qualquer possibilidade de ser

classificado por críticos da literatura, escritores ou grupos de artistas da sua época ― e

assim não ter parte de sua obra (a de caráter tradicional) afetada ou posta em segundo

plano. É um dado estratégico que nos revela a importância que ele dava às duas tendên-

cias criativas na constituição de sua escrita.

Lembramo-nos especialmente de dois índices esclarecedores a respeito da

“angústia da influência” na obra de Manuel Bandeira relacionados com o que dissemos:

o primeiro deles se evidencia na edição crítica de Libertinagem ― Estrela da Manhã,

coordenada por Giulia Lanciani, ao registrar-se uma variação no verso 16 do poema

“Não sei dançar”. Na versão manuscrita, enviada para Mário de Andrade, bem como em

sua primeira publicação, na revista Estética (janeiro-março de 1925), observamos que

no lugar do verso 16, “Tão Brasil”, segundo o texto definitivo, encontravam-se, respec-

tivamente, “Mario de Andrade diria ‘Tão Brasil!’” e “Mario de Andrade diria: ― ‘Tão

brasil!’”.112 Já na primeira edição de Libertinagem, de 1930, houve a supressão do tre-

cho “Mario de Andrade diria: ―”, cuja influência nesse poema já era suficientemente

explícita por si mesma, como escreveu no Itinerário de Pasárgada: “Grande influência,

repito, e de que eu tinha tão clara consciência, que depois de escrever certos poemas ―

112 BANDEIRA, op. cit., 1998, p. 5.

‘Não sei dançar’, por exemplo, ‘Mulheres’, ‘Pensão familiar’ ― estive quase a inutilizá-

los porque me pareciam verdadeiros ‘à la manière de’.”113 Ainda a respeito desse caso,

ele disse, posteriormente, na “Reportagem literária” cedida a Paulo Mendes Campos:

Esta [a influência de Mário de Andrade] me parecia tão visível, tão indiscreta, que não

pensei em aproveitar certos poemas, que no entanto são reconhecidos como mais autenti-

camente meus: “Não sei dançar”, “Pensão familiar”, “Mulheres”. É que então eu ainda ti-

nha vergonha das influências.114

Da primeira versão conhecida do poema “Não sei dançar” ao seu texto defi-

nitivo, reproduzido na edição crítica, a supressão do trecho “Mario de Andrade diria:

―” foi a única mudança de fundo. Todas as outras ligam-se a aspectos formais, como

redução de vírgulas e quebras de estrofes e versos. Ao excluir a referência direta a Má-

rio de Andrade, Manuel Bandeira rasurou a única evidência explícita de um diálogo

intertextual em Libertinagem, enquanto nos livros anteriores (e também nos posteriores,

como Lira dos cinqüent’anos e Belo belo) alguns flertes de sua poesia com as de outros

escritores, clássicos e modernos, eram revelados sem qualquer constrangimento: em O

ritmo dissoluto, existem referências a António Nobre, Luís de Camões, Musset e Ron-

sard; em Carnaval, a José de Alencar e Lenau; em O ritmo dissoluto, a Maeterlinck,

Paul Verlaine e Verhaeren.

Através da crítica genética, podemos observar um fato interessante na série

de mudanças realizadas no verso 16 de “Não sei dançar”. Da primeira para a segunda

versão do poema, intensificou-se a presença de Mário de Andrade: foram acrescentados

dois pontos e travessão ao período que lhe diz respeito. Eles interrompem a fluidez da

113 BANDEIRA, op. cit., 1954, p. 65. 114 BANDEIRA, op. cit., 1958, p. 1166. Destaque nosso.

frase e criam expectativa em torno do que vai ser enunciado, ampliando, conseqüente-

mente, a importância da fala de Mário de Andrade (“Tão Brasil!”). As duas singelas

adições tornam o verso grandiloqüente e põem força na fala que representa um tópos da

obra mário-andradiana. Contudo, na versão seguinte, publicada em Libertinagem, essa

referência veio a ser excluída. As transformações registram, portanto, que Manuel Ban-

deira tinha plena noção dessa influência ao construir o poema “Não sei dançar”. Tam-

bém nos sugerem que a exclusão visava apagar a obviedade do diálogo intertextual,

evitar a declaração direta de uma influência e talvez o poeta ainda investisse, dessa ma-

neira, na idéia de “plágio” que defendia nas correspondências.

Podemos imaginar, a partir dessas observações, que Manuel Bandeira ten-

cionava obliterar as influências em Libertinagem não propriamente devido à causa de-

las, mas em função das conseqüências que podiam trazer para a recepção de sua obra.

Isto corresponde, para Harold Bloom, ao principal motivo da “angústia da influên-

cia”,115 que surgiu na poética bandeiriana justamente num momento de clima acalorado

entre os próprios modernistas e quando dificuldades de compreensão dos novos recursos

técnicos levavam muitos críticos a fazerem classificações redutoras dos artistas avant la

lettre. Inferimos então que sua “angústia da influência” passava pela angústia da classi-

ficação, cujo caráter limitador podia constranger, para os leitores, a defesa pela liberda-

de que há nos poemas de Libertinagem e nas obras subseqüentes. Logo, trata-se de uma

omissão absolutamente adequada à sua nova proposta criativa, num intento de resguar-

dar as orientações de sua poética.

Diante das semelhanças conhecidas entre os dois autores, não seria nada es-

tranho se houvesse referências à obra de ou ao próprio Mário de Andrade. Elas podem

ser observadas nas pinceladas de desvario e exagero, que, conforme o “Prefácio interes-

115 BLOOM, op. cit., p. 23-24.

santíssimo”, é “símbolo sempre novo da vida como do sonho”, um “meio legítimo de

expressão”, dando aos versos um tom de celebração da vida;116 na libertação da dor; na

defesa pela liberdade; no uso do idioma nacional; na incorporação do que os modernis-

tas consideravam definidor para um conceito de brasilidade, como o candomblé, o car-

naval, a mistura de raças, o samba, entre outras referências socioculturais que surgiam

nos poemas; na manipulação dos versos livres misturados a redondilhas e decassílabos.

São características facilmente identificadas sobretudo em Losango cáqui (1926) e Clã

do jabuti (1927), de Mário de Andrade, e Libertinagem (1930), de Manuel Bandeira.

Acreditamos que o motivo dessas linhas de contato esteja também relacio-

nado com o percurso criativo de cada um deles. Se os analisarmos de maneira diacrôni-

ca, perceberemos que a renovação bandeiriana surgiu amiúde, passo a passo, ao contrá-

rio da postura do autor de Paulicéia desvairada, que acelerou o processo de moderniza-

ção da literatura brasileira. Muitos dos recursos criativos mário-andradinos parecem

inclusive ter partido de algumas tentativas mais ousadas de Manuel Bandeira nos poe-

mas de Carnaval. Posteriormente, este apurou, em Libertinagem, procedimentos que

Mário de Andrade testou sem maiores restrições. Existia, portanto, não só uma conver-

gência entre as técnicas que esses dois poetas estavam desenvolvendo, mas uma influ-

ência mútua. Além disso, não desprezemos que os pontos de contato entre suas obras

revelam um notável precursor dos poetas vanguardistas da primeira metade do século

XX: Guillaume Apollinaire, que, adiante, devemos analisar mais detidamente em fun-

ção dos comentários de Manuel Bandeira sobre a importância do autor de Alcools para a

elaboração de Libertinagem.

Um dos interesses compartilhados foi o uso de técnicas criativas e estilos

diversos, ainda que na poesia de Mário se realizasse, por tal meio, a busca não somente

116 ANDRADE, Mário. Poesias completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte: Villa Rica, 1993. p. 63.

de sua identidade (“Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinqüenta/ Mas um dia afinal eu

toparei comigo...”, como no poema “Eu sou trezentos...”),117 mas também da identidade

nacional. Encontrar uma dessas identidades significava encontrar a outra. Havia, contu-

do, um recorrente estado de crise que sufocava os seus ímpetos à procura da diversidade

na poesia ― uma crise que nascia das tensões entre a sinceridade dos meios expressivos

e o “cabonitismo” do criador, entre a individualidade e o resultado social da obra. Em

parte, sua tensão originava-se ainda da responsabilidade que assumia como catalisador

de um processo modernizante das artes e do pensamento no Brasil. Manuel Bandeira, ao

contrário, não era atingido por nenhuma dessas questões: seu estilo é menor, aparente-

mente despretensioso; os recursos construtivos de que se aproveitou não descaracteriza-

ram a simplicidade de sua obra e não revelam qualquer perturbação identitária. Além do

mais, ele se manteve conscientemente autônomo em relação ao grupo de 1922, tanto

que nem ensaiou a imposição de suas propostas criativas a outros escritores da época.

Por fim, conforme a carta de 6 de agosto de 1931 para Mário de Andrade, Bandeira ex-

põe absoluta tranqüilidade quanto ao caráter socializante da arte, que sendo também

comunicação garante um alcance social:

E a respeito das suas dúvidas e perplexidades: se a gente soubesse calcular sempre o al-

cance social do que faz, muito que bem e você teria em parte razão. Digo em parte porque o

meu sentimento é que todo artista genuíno tem ação socializante mesmo quando pensa estar

batendo a punhetinha mais pessoal na famosa Torre. Arte, como você disse na Escrava, é

também comunicação e toda comunicação é socializante. Ora, além disso, ninguém sabe o

alcance do que faz.118

No que diz respeito à semelhança de recursos nas obras desses dois autores,

vale destacar que muitos foram manipulados diferentemente por cada um deles. Pode-

117 Ibid., p. 211. 118 ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 516.

mos lembrar, como exemplo, a maneira como forjavam o idioma nacional, com objeti-

vos equivalentes porém sob métodos distintos. Observamos, nos livros de Mário de An-

drade, uma sistematização das variações: a colocação quase invariável do pronome o-

blíquo (sobretudo o “me”) no início dos períodos; uma série de grafias pessoais do au-

tor, como “si” (geralmente conjunção), “sinão”, “quasi”, “milhor”, “milhorar”; o uso

regular de algumas expressões populares que funcionam como “quantitativos indefini-

dos”, como “imundície” e “poder” para significar “muito”, conforme deixou explicitado

no documento 5-F de sua Gramatiquinha,119 entre outros. Existe, desse modo, um inte-

resse pelas variações lingüísticas que corresponde, conforme carta de Mário a Camargo

Guarnieri, a uma tentativa de o artista sintetizar, em sua obra, “o que na pátria está dis-

perso”.120 Já Manuel Bandeira trabalhava com os fatos de linguagem que estavam difu-

sos e, conseqüentemente, tinham mais chance de coexistir com a língua oficial.

Igualmente importante é analisar algumas diferenças, pois elas podem nos

desvelar, com maior prontidão, algumas singularidades da poética bandeiriana. Vamos

recordar, nesse sentido, que existe na obra de Mário um interesse significativo pelas

sensações simultâneas e pela sua mistura, presentes em muitos poemas da fase mais

combativa, dos anos 1920, enquanto Manuel Bandeira revela, mesmo nos textos reno-

vadores que escreveu, uma unidade mais linear e “clássica”. Esta diferença resulta numa

superposição de idéias na obra mário-andradiana, o que ele denomina, n’ A escrava que

não é Isaura, “POLIFONIA POÉTICA”,121 provocando cortes bruscos de emoção e de

ritmo nos seus versos. Para esclarecermos a sua teoria da “polifonia poética”, vale exa-

minar o que diz a respeito disso no “Prefácio interessantíssimo”. Mário então propõe

que, em vez de se usarem “só palavras soltas”, deve-se também construir frases soltas,

119 PINTO, op. cit., p. 157. 120 ANDRADE, Mário apud PINTO, Edith Pimentel. A gramatiquinha de Mário de Andrade: texto e contexto. São Paulo: Duas Cidades; Secretaria de Estado da Cultura, 1990. p. 38. 121 ANDRADE, op. cit., 1980, p. 267-268.

cuja “sensação de superposição” será a “mesma”, contudo haverá um “acorde arpejado,

harmonia – o verso harmônico”. “Portanto: polifonia poética”, ele conclui.122 Embora a

polifonia esteja presente em obras modernistas de Bandeira, ela se forma por uma con-

catenação de idéias, em que as emoções e os ritmos são bem mais suaves, abrandando

os efeitos da fragmentação sobretudo mediante o trabalho primoroso com a melodia e o

ritmo dos poemas, como em “Mangue”, “Evocação do Recife” e “Trem de ferro”. Por

outro lado, a polifonia bandeiriana quase sempre foi desenvolvida a partir de citações da

cultura popular ou de versos da tradição que podem ser imediatamente reconhecidos

pelos leitores. Logo, a sua reunião de vozes diversas compreendia uma aproximação

com referenciais coletivos, que comumente faziam parte do acervo da cultura popular.

O controle da melodia e do ritmo é um aspecto típico da lírica tradicional,

que, para conquistar um efeito de suavidade nos poemas, Bandeira adaptava criativa-

mente às técnicas de vanguarda. Tal efeito era ainda ampliado quando ele conjugava

elementos formais de ruptura e referências “caseiras” de sua vida ― do que existe de

mais comum e reconhecível para os leitores, seja o diálogo de seus versos com cantigas

e lendas, seja a referência às conversas que se davam à noite, nas calçadas de Recife.

Portanto, o vanguardismo bandeiriano não estava inteiramente a serviço das transforma-

ções dos tempos modernos, mas voltado em grande medida para a preservação dos valo-

res de seu passado (especialmente a infância) e das características consideradas nacio-

nais, com destaque para a cultura popular. Dessa maneira ele mesclava a individualida-

de dos recursos criativos renovadores ao que fazia parte de uma espécie de inconsciente

e da memória coletiva, o que não lhe dava motivos para revelar constrangimento acerca

das referências biográficas e dos poemas mais pessoais. A sua individualidade raramen-

te chegou ao estado de hermetismo e, na maior parte dos casos, sensibiliza os leitores,

122 ANDRADE, op. cit., 1993, p. 69.

que se reconhecem na obra devido principalmente à presença do cotidiano, da cultura

popular e de um modo de expressão coloquial que existe sobretudo a partir de Liberti-

nagem.

Outra questão a ser observada que estabelece uma diferença significativa no

uso das técnicas modernistas desses dois poetas diz respeito ao processo de criação: nos

primeiros livros de Mário de Andrade, como muito bem salientou João Luiz Lafetá em

Figuração da intimidade, predominava o fluxo de inspiração que bloqueava a consciên-

cia.123 O inconsciente livre de policiamento o levava a transições abruptas de assuntos e

analogias inesperadas, o que percebemos em várias de suas obras. Na poesia de Manuel

Bandeira, o fluxo de inspiração não parecia bloquear a consciência e assegurava o traba-

lho formal cuidadoso que ele sempre realizou, ajustando, mediante a construção, as par-

tes mais truculentas. Aí também parece se originar uma parte da brusquidão dos versos

de um e da suavidade que se encontra nos do outro.

Este conjunto de variações é suficiente para garantir a particularidade da o-

bra bandeiriana quando influenciada por Mário de Andrade, tanto que os poemas “à la

manière de”, como “Não sei dançar” e “Mangue”, foram reconhecidos como mais au-

tenticamente seus. O melhor seria até mesmo dizer que tais variações garantem algumas

das singularidades da poética bandeiriana em relação a boa parte do modernismo brasi-

leiro.

O segundo caso de “angústia da influência” pode ser observado na “Repor-

tagem literária”, quando Bandeira comenta um poema escrito à moda de Oswald de An-

drade:

123 LAFETÁ, João Luiz. Figuração da intimidade: imagens na poesia de Mário de Andrade. São Paulo: Martins Fontes, 1986. p. 12.

[...] não publiquei (e valerá publicar agora?) este poeminha, porque me parecia demasiado

“pau-brasil”:

CIDADE DO INTERIOR

O largo

O ribeirão

A matriz

E a poesia dos casarões quadrados

(A luz elétrica é forasteira).124

Em “Cidade do interior”, o trabalho formal resulta do aproveitamento de

técnicas da poesia oswaldiana: é um texto conciso, documental, quase fotográfico; não

existem conectivos, pronomes e vírgulas; o velho e o novo estão em conflito (na cidade

do interior, a “luz elétrica é forasteira”); observamos uma representação geométrica do

espaço (“o largo”, “os casarões quadrados” etc.); os versos são, predominantemente,

muito curtos, entre outros dados. Manuel Bandeira não fez acréscimos estilísticos con-

cernentes à sua própria obra, nem mesmo aperfeiçoou os recursos criativos que foram

tomados de empréstimo para a elaboração desse poema. Não queremos dizer, com isso,

que existe absoluta distância entre as obras de Bandeira e as de Oswald de Andrade.

Queremos apenas esclarecer que a sua “angústia da influência” também nasce quando

não existe possibilidade de assimilar, digerir e reordenar os processos construtivos a-

lheios, em que os próprios elementos absorvidos de outros autores se tornam inerentes a

seu estilo. Aliás, já nesse aspecto podemos traçar uma ligação entre os dois autores, pois

torna-se evidente a defesa, em comum acordo, pela absorção de técnicas criativas de

outrem seguida de sua reelaboração.

124 Ambas as citações da “Reportagem literária” encontram-se na página 1166. Cf. BANDEIRA, op. cit., 1958.

Manuel Bandeira trabalhava com a idéia de “plágio”, termo recorrente nas

anotações que fez no exemplar de Poesias completas oferecido a Francisco de Assis

Barbosa e nas suas correspondências, chegando a referir-se a si mesmo, para Mário de

Andrade, como “o plagiário”.125 Temos, nesse caso, um antecessor da “antropofagia”.

Em carta de 26 de junho de 1925, escreveu: “[acho] mesmo que convém que nos imite-

mos, que nos plagiemos, que nos influenciemos para afirmar cada vez mais essa carac-

terística racial que já é patente e bem definida”, em resposta a Mário de Andrade, que

havia se indisposto com o fato de Guilherme de Almeida tê-lo imitado no poema “Ra-

ça”.126 Comentário parecido encontra-se na carta de 19 de setembro do mesmo ano,

também a Mário de Andrade, analisando brevemente as obras de Oswald de Andrade e

Sérgio Milliet: “A técnica de ambos foi tirada do Cendrars [...]. Sem dúvida isso não

tem importância, pois a técnica é admirável, tem caráter clássico e serviu maravilhosa-

mente às necessidades de expressão do Oswald.”127

Diante disso é possível afirmar que Manuel Bandeira caminhava, muitas ve-

zes, na mesma direção oswaldiana. Porém, ele achava que então cabia, para os moder-

nistas, tornar o “plágio” um exercício entre si ― e não só de fora (Europa) para dentro

(Brasil) ―, de modo a intensificá-lo. Isto representaria a manutenção de uma tendência

histórica, que é um significativo alicerce da cultura brasileira. Conseqüentemente, pode-

ria se suavizar a presença dos modelos europeus e aprofundar as criações mal-

aproveitadas pela literatura brasileira tradicional ou moderna. Era uma forma de ter um

vínculo com o nosso passado, renovando a “cópia” como técnica singular de criação, e

avançar, desse modo, para construir uma literatura mais autêntica. Por isso, devia-se

125 “Recebi o fiau e o ‘Girassol da madrugada’. Fiquei com grande curiosidade de ler na íntegra os versos do Fagundes. Por isso e se não for algum estirão, lhe peço que tire uma cópia para o plagiário.” Cf. ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 517. 126 Ibid., p. 219. 127 Ibid., p. 241.

roubar versos de uma cantiga, roubar a história contada por uma cozinheira, roubar um

verso de Castro Alves, outro de Alberto de Oliveira, mais outro de Mário de Andrade,

um conto de Honório Bicalho, roubar o reclame de um feirante, além de outros “roubos”

facilmente identificados em sua obra, onde evidenciamos, novamente, a estreita relação

dessa técnica com uma brincadeira da infância de Manuel Bandeira, que lhe foi ensina-

da por seu pai e tornou-se muito pertinente para o desenvolvimento de sua poesia mo-

dernista. Foi um ensinamento que, junto de outras aprendizagens, colaborou para que

ele compreendesse o desenvolvimento da cultura como resultado de um processo coleti-

vo e permanente, no qual ele investiu mediante o diálogo entre a tradição e a moderni-

dade, o erudito e o popular.

Contudo, a imitação só era relevante, para ele, se respondesse às “necessi-

dades expressivas” do autor. Este vem a ser o centro da atenção que Manuel Bandeira

dedicou ao “plágio” de técnicas de composição, demonstrando um duplo interesse: ora

voltado para uma questão estritamente literária, do fazer poético, ora levado à busca de

uma lírica mais condizente com a realidade local por meio de acréscimos ou transfor-

mações conduzidas a partir das experiências criativas das vanguardas ou da tradição. Na

crônica “Confidências a Edmundo Lys”, fica bem claro como ele concebia a idéia de

plágio: “O plágio pode e deve admitir-se quando o fazemos para recolher pérolas anô-

nimas ou reforçar o valor de um elemento insuficientemente aproveitado por outro poe-

ta.”128

Vale salientar que o vocábulo “plágio”, que tem sua primeira referência nas

cartas de Manuel Bandeira a 26 de junho e 15 de agosto de 1925, era tomado com um

sentido próximo ao conceito de “antropofagia”, que aparecerá na obra de Oswald de

Andrade três anos depois, em seu segundo manifesto: “Só a antropofagia nos une. Soci-

128 BANDEIRA, op. cit., 1966, p. 43.

almente. Economicamente. Filosoficamente”, diz o “Manifesto antropófago”. Ou, num

viés mais radical, não tão condizente a poética bandeiriana: “Só me interessa o que não

é meu.”129 Desenvolvia-se então um programa criativo com forte aderência a um dos

elementos mais sedimentados da personalidade do brasileiro e que veio a ser um dos

grandes pontos conceituais do modernismo para criar uma literatura efetivamente na-

cional, o que revela um estreito contato entre as obras desses dois autores.

Bandeira talvez já tivesse compreendido, através do “Manifesto da poesia

pau-brasil”, o insight oswaldiano e o embrião do sentido antropofágico, ainda no início

de sua gestação. Um conceito que ganharia formas muito bem definidas em 1928, com a

publicação do “Manifesto antropófago”, que serviu não apenas ao olhar modernista,

porém a quase todo o itinerário da cultura e da contra-cultura brasileira a partir dessa

obra: a poesia concreta, a poesia marginal, a tropicália e muito do mundo globalizado

dialogavam com as propostas oswaldianas.

Existe, no entanto, uma diferença entre o plágio e a antropofagia. Interessa

a Oswald de Andrade o que não lhe pertence, ou seja, o que é estrangeiro, europeu, em

busca da aquisição de uma linguagem mais condizente com as transformações econômi-

cas, sociais e urbanísticas por que sobretudo São Paulo passava, enquanto o plágio de

Manuel Bandeira relaciona-se principalmente com a própria arte brasileira, erudita e

popular, o que fica bem claro pelas intertextualidades firmadas, em Libertinagem, com

outras obras de nossa literatura oral e escrita, embora nesse livro se encontrem muitas

técnicas de composição das vanguardas. Nesse sentido, há um movimento construtivo

diferente entre as obras de Bandeira e Oswald de Andrade: aquele parece incluir técni-

cas de vanguarda na cultura popular e no “detalhe brasileiro” para a atualização e parti-

cularização de nossa literatura, enquanto o outro busca, na cultura popular, técnicas que

129 ANDRADE, Oswald de. Obras completas. 2.ª edição. Introdução de Benedito Nunes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. p. 13. (Coleção Vera Cruz, v. VI – Do Pau-Brasil à Antropofagia e às utopi-as. Manifestos, teses de concursos e ensaios.)

sirvam ao acervo criativo das vanguardas, tendo a mesma finalidade de tornar o “detalhe

brasileiro” singular e ao mesmo tempo universal. O resultado às vezes é distinto, contu-

do os objetivos revelam-se, mesmo nesses casos, com semelhanças representativas, pois

ambos estão fundamentados nos elementos primitivos que faziam parte da cultura na-

cional e do cotidiano para transformar o cenário da literatura brasileira. São estes com-

ponentes locais que, entre outros, extirparam o eruditismo dos puristas e fizeram da arte

popular um motivo recorrente na poesia e na prosa modernistas. Trata-se de um fato a

respeito do qual Manuel Bandeira tinha absoluta consciência, conforme a carta de 6 de

novembro de 1926 a Mário de Andrade:

Não há senão nós, você, Oswald, eu e alguns rapazes que procuramos inspiração brasileira

em certas manifestações de arte popular primitiva. Logo trataram de chamar a isto primiti-

vismo, reação contra a cultura, art nègre e por aí assim. Um homem inteligentíssimo como

o Ronald não tem o direito de desconhecer o verdadeiro sentido que Oswald põe na campa-

nha anti-cultural. No fundo a verdadeira cultura está com Oswald; o que pertence ao Ronald

é a erudição.130

Para Manuel Bandeira era necessário fundir as técnicas européias a uma

forma de concepção artística nacional, popular e provinciana, o que está em perfeita

consonância com as propostas oswaldianas defendidas nos manifestos. Contudo, o olhar

do São João Batista do modernismo era “rasteiro”, atento e interessado especificamente

na realidade próxima, nas suas cores locais e nos fatos cotidianos. Além disso, tal como

a antropofagia oswaldiana, seu plágio assimilava não só aspectos formais ou conteudís-

ticos de outrem: ele também desenvolvia-os, explorando ao máximo o potencial que

essas referências podiam sugerir. Não era, portanto, uma orientação passiva, de mero

recolhimento de elementos alheios, porém uma estratégia criativa em que Bandeira se

130 ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 320.

aproveitava de coisas já feitas para desenvolver novas possibilidades expressivas e atua-

lizar técnicas então consideradas anacrônicas. “Balada das três mulheres do sabonete

Araxá” é um exemplo contundente disso, pois nele se aproveitaram um cartaz publicitá-

rio e uma série de versos ― de Castro Alves, Eugénio de Castro, Luís Delfino, Olavo

Bilac, Oscar Wilde e Shakespeare, misturando o “velho” e “novo” sem qualquer tipo de

desqualificação de um ou de outro, num poema absolutamente vanguardista, que recor-

reu à colagem e ao diálogo inter-semiótico. Além disso, Bandeira realiza um diálogo

intertextual com a canção “Linda morena”, de Lamartine Babo e Mário Reis,131 no ver-

so “Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata”, reunindo portanto muito mais que o

velho e o novo, mas também, num processo de desierarquização, o erudito e o popular,

o alto e o baixo. Há todo um procedimento técnico muito semelhante à técnica do “cor-

relativo objetivo” desenvolvida por T.S. Eliot. Acerca da “Balada das três mulheres do

sabonete Araxá”, Bandeira estabelece essa relação de influência no Itinerário de Pasár-

gada, embora tenha buscado, ao mesmo tempo, um curioso distanciamento dela, talvez

para realçar o quanto existe de ironia na sua balada, em que pôs tanto de si mesmo, num

sentido biográfico:

[...] A mim sempre me agradou, ao lado da poesia de vocabulário gongorinamente seleto, a

que se encontra não raro na linguagem coloquial e até na do baixo calão. [...] É, claro, uma

brincadeira, mas em que, como no caso do anúncio “Rondó de efeito” (Mafuá do malungo)

pus ironicamente muito de mim mesmo. O trabalho de composição está em eu ter adequado

às circunstâncias de minha vida fragmentos de poetas queridos e decorados em minha ado-

lescência – Bilac, Castro Alves, Luís Delfino, Eugênio de Castro, Oscar Wilde. Fiz de brin-

cadeira o que Eliot faz a sério, incorporando aos seus poemas (e convertendo-os imediata-

mente em substância eliotiana) versos de Dante, de Baudelaire, de Spencer, de Shakespea-

re, etc.132

131 Canção de Lamartine Babo e Mário Reis. A primeira gravação é de 1931, por Mário Reis, disco RCA Victor. Com muito sucesso, tornou-se marchinha de carnaval em 1933. Cf. VALENÇA, Suetônio. Trá-lá-lá: Lamartine Babo. Rio de Janeiro: Velha Lapa, 1989. p. 97. 132 BANDEIRA, op. cit., 1954, p. 96-97.

Por sua vez, Oswald de Andrade buscava ser cosmopolita, as técnicas de

vanguarda surgiam em sua obra para refletir e representar adequadamente, na arte, as

revoluções que automóveis, bondes, o cinema, indústrias, máquinas trouxeram aos pri-

meiros anos do século XX. São as invenções do novo século, associadas ao arcaísmo, ao

lado primitivo do Brasil, que vão lhe ajudar a destruir o lado conservador e erudito da

inteligência brasileira, acrescentando a elas o “detalhe brasileiro”, primitivo.

As diferenças se evidenciam com maior facilidade quando analisamos o

modo de eles construírem a economia discursiva, um dado comum, mas revelada de

modo desigual. A economia das obras de Oswald de Andrade revela-se sobretudo por

elipses, fragmentações, redução ou ausência de artigos, conectivos, pontuação e prono-

mes, além dos versos preponderantemente curtos e de uma aspiração criativa que parece

surgir do mecanismo eficiente serial das máquinas: economia que se funda na tentativa

de enxugar o texto escrito, modernizar a nossa maneira de escrever e adequá-la aos

tempos modernos. Seu próprio manifesto de 1925 traz vocábulos como “agilidade”,

“arranha-céus”, “balística”, “elevadores”, “fábricas”, “gasômetros”, “laboratórios”, “lo-

comotivas”, “máquina fotográfica”, “mecânica”, “oficinas técnicas”, “postes”, “ques-

tões cambiais”, “química”, “rails”, “tics de fios” e “turbinas elétricas”, um campo se-

mântico não tão freqüente na obra de Manuel Bandeira. Na poética oswaldiana temos

uma modernidade que lança uma nova maneira de expressão artística e registra, com

rapidez, as novidades dos centros urbanos, tal como a proposta futurista. Já a economia

da poesia de Manuel Bandeira mostra-se especialmente por meio de fatos cotidianos, da

língua do povo, de um verso livre que desenvolve uma linguagem prosaica, com melo-

dia e ritmo muito agradáveis, sem afetação, aspectos que também são identificados nos

poemas de Oswald de Andrade, mas concebidas de forma mais bruta, irônica e seca.

Havia então, no caso de Bandeira, uma obra bem menos “agressiva”, muito mais gene-

rosa com os leitores do que a poética oswaldiana, sem lhes exigir uma total readaptação

para usufruir a literatura modernista, ou seja, sua ruptura é bem menos ríspida que a

empreendida por Oswald de Andrade. Um atualiza o nosso passado, enquanto o outro

rompe com ele, tenta destruí-lo, satirizá-lo, lançá-lo ao ridículo. Um busca atualizar o

Brasil em relação a si mesmo, o outro busca atualizá-lo em relação à Europa. Ainda

assim, não parece ainda a principal diferença entre os dois poetas e torna-se difícil,

mesmo a partir do levantamento que fizemos, defini-la. Talvez a razão dessa dificuldade

esteja no fato de que não se trate de uma diferença de natureza, mas de intensidade dos

recursos que cada um deles desenvolveu em suas obras. Pois a semelhança entre as poé-

ticas de Manuel Bandeira e Oswald de Andrade é justamente o conjunto de elementos

tão característicos da obra oswaldiana que também pode ser encontrado nos versos de

Bandeira, onde também há concisão, ironia, secura.

Agrupados, referências biográficas, cultura popular, diálogos com a tradi-

ção, lirismo e provincianismo disfarçam a presença dos elementos estrangeiros (as téc-

nicas de construção das vanguardas européias) absorvidos por Manuel Bandeira e criam

uma atmosfera de simplicidade, enquanto cosmopolitismo, piadas, referências a tecno-

logias dos tempos modernos acentuavam o estranhamento dos poemas e dificultava a

percepção do lirismo da poética de Oswald de Andrade. É um dado que Bandeira soube

expressar muito bem numa correspondência destinada a Mário de Andrade a 10 de ou-

tubro de 1927, quando tratou do lado documental da poesia pau-brasil: “No documento,

o elemento aparente é comumente o ridículo, o engraçado, o inopinado que não geram

lirismo na comum das inteligências e sensibilidades.”133

Analisado ao lado dos protagonistas do modernismo, podemos observar que

Manuel Bandeira se colocava como uma síntese entre os diálogos da obra mário-

133 ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 356.

andradiana com a arte oral e popular e as idéias de Oswald de Andrade expressas nos

manifestos, sobretudo a apropriação e reelaboração do arsenal criativo de outros auto-

res. Manuel Bandeira revelava, já nos anos 1920, absoluta compreensão da obra de am-

bos e aproveitava-se das duas. Em parte, Libertinagem é, em si mesmo, o aproveitamen-

to das técnicas de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, porém lidas, assimiladas e

recriadas de uma forma muito particular e antropofágica. Nesse sentido Bandeira tem

uma aderência às propostas modernistas mais expansiva do que os seus próprios inven-

tores, espalhando-se com dinamismo por todas as possibilidades construtivas da tradi-

ção e das vanguardas. O seu posicionamento “dentro” e “fora” do modernismo, bem

como “dentro” e “fora” da tradição, permitia que ele ganhasse uma mobilidade sem i-

gual na poesia daquela época.

É interessante observar, nessa direção, a análise que fez em carta de 17 de

abril de 1924, a Mário de Andrade, a respeito do artigo “Poesia pau-brasil”, publicado

no mesmo ano e depois reproduzido no livro Andorinha, andorinha:

O meu artigo era um veneno complicadíssimo em que entrava muita ironia, alguma ta-

quenerie, um pouco de seriedade, um bioco de mistificação, raiva, nojo etc. não o escrevi

com neurastenia. Estava alegre, excitado pelo manifesto do Oswald que não considero hor-

rível e leviano como dizes; achei-o, ao contrário, admirável. Li-o em casa do filólogo Sousa

da Silveira, explicando-o e comentando-o com vivo afeto intelectual. Ataquei-o publica-

mente por reclamismo e mistificação cabotina. E Oswald tinha sido prevenido por mim de

que o faria. Sentados a uma mesa do Bar Nacional, Oswald lamentou os costumes de elogi-

os mútuos e endeusamento dos grupos literários. Disse gracejando que ia fazer ataques, in-

trigas. Dei-lhe razão. Prometi fazer o mesmo.134

Desse modo, o ataque destinava-se, sobretudo, à possível adesão maciça ao

recém-lançado ideário oswaldiano. É principalmente nesse sentido que Bandeira parece

134 ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 116-117.

ter lançado “um pouco de seriedade” no artigo “Poesia pau-brasil”, quando refere-se às

conseqüências daquele manifesto como o “maior medo de Oswald de Andrade”, o que

também era, sem qualquer dúvida, o maior temor de Bandeira.135 Conforme a sua carta

para Mário de Andrade, o manifesto lhe pareceu “admirável”. Portanto, a correspondên-

cia de 17 de abril deixa-nos claro que, tanto no artigo quanto na correspondência, a sua

posição crítica busca defender a individualidade, a criação artística livre de normas e de

grupos literários. Trata-se de uma resposta semelhante às restrições bandeirianas desti-

nadas à tentativa de Mário sistematizar variações lingüísticas do português falado no

Brasil, pois tal inclinação também podia, mesmo sem tais pretensões, criar um padrão a

ser acompanhado por outros autores da época. Esta coerência analítica nos revela a fir-

meza da poética e do senso crítico bandeiriano, cuja agudeza resultava de certo distanci-

amento que mantinha para com o modernismo e as propostas criativas de seus represen-

tantes.

Ainda que “Poesia pau-brasil” seja um antimanifesto bandeiriano, não havia

possibilidades de suspeitar-se do vanguardismo de sua obra. O artigo não apresenta

qualquer reacionarismo, mas, ao contrário, uma declaração supermoderna cujo fim era

proteger a individualidade e a liberdade expressiva. O alvo de sua restrição, em que lar-

gou mais “um pouco de seriedade”, era o caráter programático do manifesto oswaldia-

no:

[...] O programa de Oswald de Andrade é ser brasileiro. Aborreço os poetas que se lembram

da nacionalidade quando fazem versos. Eu quero falar do que me der na cabeça. Quero ser

eventualmente mistura de turco com sírio-libanês. Quero ter o direito de falar ainda na Gré-

cia.136

135 BANDEIRA, op. cit., 1966, p. 248. 136 Ibid., p. 248.

Manuel Bandeira também compartilhava, nesse sentido, da preocupação

mário-andradiana de que a “trabalheira séria e elevada” dos modernistas terminasse

reduzida, por autores medíocres da mesma época, a “pó-de-traque”.137 Trata-se aqui do

mesmo temor que certamente motivara a criação de “Teresa” no “Mês modernista”, em

que Bandera satirizou, em 1924, os clichês modernistas. Depois, em 1928, escreveu os

versos inéditos de “Dindinha-Lua”, onde voltou a atacar os clichês dos “poetinhas mo-

dernistas”. Talvez o poema não tenha sido publicado em função de o ataque ser muito

agressivo e explícito, além de seus versos não serem, do ponto de vista construtivo, dos

melhores:

Os poetinhas modernistas cercaram Dindinha-Lua e começaram a gritar:

[“― A bênção, Dindinha-Lua! A bênção, Dindinha-Lua!”

Dindinha-Lua ficou aporrinhada, mas respondeu sorrindo-se:

[“― Vão pra puta que os pariu, meus netinhos!

[Vão pra puta que os pariu, meus netinhos!”138

Telê Porto Ancona Lopez foi muito precisa ao afirmar, em “Dois poemas

inéditos de Bandeira”, que nos versos de “Dindinha-Lua” a “paródia do discurso ingê-

nuo sustenta a sátira”. Ela prossegue: “‘Dindinha’ ou ‘madrinha’, regionalismo hipoco-

rístico da expressão da criança, ricocheteia sobre os poetas cujo vezo primitivista é aqui

caracterizado por linguagem e comportamento infantis literariamente considerados –

invocando a lua.”139 Enfim, Manuel Bandeira retomou, na criação desse poema, a paró-

dia tal como em “Teresa”, contudo há um discurso intolerante e até mesmo violento em

“Dindinha-Lua”. É o que observamos logo no início do primeiro verso, com a expressão

137 ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 395. 138 Este poema inédito encontra-se na série “Originais de vários autores” do Arquivo Mário de Andrade, no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. “Dindinha-Lua” foi reproduzido no livro Manuel Bandeira: verso e reverso (organização de Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo: T.A. Queiroz, 1987. p. 174. 139 Ibid., p. 173.

“poetinhas modernistas”, o adjetivo popular “aporrinhada”, bem como o insulto de bai-

xo calão “Vão pra puta que os pariu”. Tão comum entre os modernistas para revelar

afetividade, o uso do diminutivo expressa ironicamente, em “Dindinha-Lua”, a desqua-

lificação dos poetas. Além disso, as expressões de baixo calão jogam contra a “adoração

burguesa”, “nobremente sentimental”, que já incomodava Bandeira em 1922, conforme

carta a Mário de Andrade:

Ora eu sou sapo-cururu, adorador da Lua em todas as fases. Mas detesto ver a adoração

burguesa e soi disant poética da Lua e outras coisas nobremente sentimentais: o ideal, as i-

lusões que não voltam mais, as quimeras, etc. [...]É preciso desgostar essa gente dessas coi-

sas. É por aí que a poesia moderna me satisfaz plenamente.140

Em função de alguns fatos levantados (a defesa pela liberdade criativa, o an-

timanifesto “Poesia pau-brasil”, os poemas “Teresa” e “Dindinha-Lua”) poderíamos

afirmar que ele, mesmo nos anos 1920, estava, de certa maneira, para além do moder-

nismo, pois era capaz de criticar, mediante sua maturidade analítica, as deficiências do

próprio movimento artístico de que fazia parte. Melhor dizendo: as deficiências não

eram propriamente do movimento modernista, mas de quem se aproveitava dele inapro-

priadamente, ou seja, fazendo uma mera reprodução das técnicas desenvolvidas por ele

próprio, Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Conforme Eucanaã Ferraz, no ensaio

“Uma certa ‘mistura muito excelente de chás’ na poesia de Manuel Bandeira”,

[a]lém de agir como um iconoclasta prévio, a destruir de antemão as possibilidades de seus

companheiros e de ele próprio se converterem em ídolos, figuras indiferenciadas de um

modernismo digno de culto e adoração, Bandeira defendia ― mantendo-se “dentro” do

140 ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 75.

grupo modernista ― a individualidade, opondo à imagem do artista agregado a violência

perturbadora da solidão, a visão do poeta como aquele que está “fora”.141

A postura bandeiriana de quem esteve “dentro” do grupo, defendendo, po-

rém, a individualidade do artista como aquele que está “fora”, pode ser observada nas

“Duas traduções para moderno acompanhadas de comentários”, publicado em “O mês

modernista”, do jornal A Noite. Nesta seção reuniram-se seis autores ― Carlos Drum-

mond de Andrade, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Martins de Almeida, Prudente

de Morais Neto e Sérgio Milliet ―, convidados então por Viriato Correia para, de de-

zembro de 1925 a janeiro de 1926, escreverem alternadamente artigos em prosa e verso.

Viriato Correia, simpatizante do estilo parnasiano, talvez buscasse, dessa maneira, ridi-

cularizar publicamente as criações dos “futuristas”, como os chamava equivocadamente.

A 18 de novembro de 1925, Mário de Andrade explicou, para Prudente de Morais Neto,

a proposta de “O mês modernista”: “seis modernistas tomam cada um dia da semana pra

si durante um mês. Nesse dia a Noite publicará o artiguete dele que poderá versar sobre

qualquer coisa, um dia crítica, outro uma fantasia, outro versos etc.”142

Homero Senna, organizador da edição O mês modernista, em que reprodu-

ziu todos os artigos daquela série do jornal A Noite, esclarece, na introdução do livro,

que Mário de Andrade e Viriato Correia tinham, a propósito dessa seção, objetivos o-

postos:

Viriato [...] pretendia troçar dos “futuristas” e de suas arrojadas criações na poesia e na pro-

sa; e Mário estaria interessado em divulgar textos de escritores modernistas, para mostrar

como estes pensavam e sentiam, e ir afeiçoando os leitores de A Noite aos princípios da no-

141 FERRAZ, Eucanaã. Uma certa “mistura excelente de chás” na poesia de Manuel Bandeira. Alea: Estu-dos Neolatinos, Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, UFRJ, v.o 3, n.o 1, 2001, p. 89. 142 ANDRADE, Mário; MORAES NETO, Prudente de. Cartas de Mário de Andrade a Prudente de Mo-raes, neto. (1924/36). Organização de Georgina Koifman. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s.d. [1985]. p. 143.

va escola, que recomendava se escrevesse sem as peias e os preciosismos de linguagem dos

seguidores de Rui Barbosa e Coelho Neto.143

Desde que foi convidado para escrever no “Mês modernista”, Bandeira re-

velou-se inseguro quanto às pretensões de Viriato Correia com essa série de artigos. Na

carta de 23 de novembro de 1925, a Mário de Andrade, pergunta: “Não vão apresentar a

gente como bicho ensinado, não? [...] Não farão sacanagem?”144 Parece que, em função

de tal desconfiança, criou as “Duas traduções para moderno acompanhadas de comentá-

rios”, sua primeira colaboração para a coluna, em que se revela, ao mesmo tempo, “den-

tro” e “fora” do movimento artístico contemporâneo. As duas traduções compreendiam

os poemas “Soneto de Bocage” e “O adeus de Teresa”, que são reconstruções de obras

clássicas da lírica de língua portuguesa. Em outra carta para Mário de Andrade, a 26 de

dezembro de 1925, deixa claro os seus objetivos ao fazer o “Soneto de Bocage”:

A tradução do Bocage pra dar uma demonstração prática de técnica modernista a quem não

toma do troço; para ao mesmo tempo satirizar certos processos fáceis que já viraram cliché,

pra sentir que o soneto é bonito mesmo independente da cadência dulcíssima de Bocage,

etc.145

Já no Itinerário de Pasárgada, explica, respectivamente, suas intenções ao

fazer os poemas-traduções “Soneto de Bocage” e “O adeus de Teresa”:

Como se vê, eu estava mas era assinalando maliciosamente certas maneiras de dizer,

certas disposições tipográficas que já se tinham tornado clichês modernistas. [...]

143 SENNA, Homero (organizador). O mês modernista: Carlos Drummond, Sérgio Milliet, Manuel Ban-deira, Martins de Almeida, Mário de Andrade, Prudente de Morais Neto. Estabelecimento de texto, co-mentários e notas de Homero Senna. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1994. p. 8. 144 ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 255. 145 Ibid., p. 267.

A outra “tradução” era do “Adeus de Teresa”. Num comentário, de humour muito sofis-

ticado, dava o meu poema “Teresa” como tradução ‘tão afastada do original, que a espíritos

menos avisados pareceria criação”.146

No caso do soneto, Manuel Bandeira fez uma tradução quase ipsis litteris do

poema bocagiano: aqui, a tradução para o moderno volta-se para a atualização de uma

forma fixa, o soneto, e dos seus modos de expressão. O soneto, tradicionalmente com-

posto de quatorze versos decassílabos, divididos em dois quartetos e dois tercetos, foi

então escrito em versos livres e brancos, aproveitando-se dos modos de expressão típi-

cos dos modernistas. Nos comentários, ele refere-se ao modelo italiano do soneto, às

baladas românticas alemãs e à balada francesa fixada por François Villon, revelando

total conhecimento de causa, num tom professoral, adiante desmontado, ironicamente,

ao esclarecer a proveniência desse aprendizado: “Aprendi isso com uma menina a quem

um dia mandei uns versos.”147 Já o “Adeus de Teresa” dialoga intertextualmente com

um dos clássicos do romantismo brasileiro, “Teresa”, um poema de Castro Alves. Ao

contrário do soneto de Bocage, aqui Manuel Bandeira distanciou-se tanto do original

que “a espíritos menos avisados parecerá criação”, conforme escreveu nos comentá-

rios.148

Em ambos os poemas, interessa observar, contudo, que por meio de suas tra-

duções Bandeira demonstrava, ao mesmo tempo, conhecimento sobre a tradição da poe-

sia (Bocage, Castro Alves e François Villon), atualiza-a como quem está integrado no

projeto modernista, mas também revela-se afastado dele, pois trata-se de duas paródias,

onde imita burlescamente clichês do modernismo brasileiro. Mais uma vez, o poeta se

põe adiante do movimento que surgiu em 1922, porém sob uma técnica absolutamente

146 BANDEIRA, op. cit., 1954, p. 89. 147 SENNA, op. cit., p. 50. 148 Ibid., p. 51.

modernista: a imitação cômica e irônica de procedimentos construtivos que se tornam

previsíveis em um determinado momento. A novidade desses poemas, a qual nos dá a

medida da ousadia bandeiriana, é o fato de estar sinalizando, em 1925, as técnicas mo-

dernistas já consagradas e enrijecidas, que, por isso, deviam ser reformuladas pela valo-

rização da individualidade criativa.

Diante dessas observações acerca do “Mês modernista”, podemos voltar à

questão da “angústia da influência”. Temos agora novos dados para conceber um outro

sentido para isso: ela passa, além do temor da classificação, pelo medo de repetir-se

também frente aos modelos então contemporâneos, criados a partir dos primeiros anos

do modernismo brasileiro. Em função disso, não convinha publicar “Cidade do interior”

ou qualquer tipo de poema que não revelasse uma dicção própria e singular, bem como

não fazia sentido, de acordo com a poética de Libertinagem, ter referências, nos poe-

mas, ao nome de autores cuja obra tinha, por mais admirável que fosse, um caráter pro-

gramático. Logo, a “angústia da influência” na obra de Manuel Bandeira está inteira-

mente ligada à defesa da individualidade do artista, que, mesmo quando integrado num

contexto coletivo, deve preservar as suas particularidades e necessidades de expressão.

4.1. O DITO E O NÃO-DITO

4.1.1. GUILLAUME APOLLINAIRE, O DITO

As influências de Blaise Cendrars e Guillaume Apollinaire nas poéticas mo-

dernistas foram destacadas por Bandeira em carta para Ribeiro Couto, a 11 de agosto de

1925: “Nós derivamos todos de Apollinaire-Cendrars. Pusemos alguma coisa nossa,

tiramos uns dos outros alguma coisa e aí está a melhor poesia que se faz hoje nos Bra-

sis.”149 É interessante observar, nesse trecho, a referência a um processo de criação típi-

co do modernismo, que corresponde, perfeitamente, ao plágio bandeiriano e ainda se

relaciona com a antropofagia de Oswald de Andrade: a apropriação de técnicas alheias

― das vanguardas européias e/ou de escritores brasileiros ―, seguida de acréscimos

ligados ao estilo de quem se valia desse recurso construtivo em sua própria obra.

No Itinerário de Pasárgada, Bandeira escreveu que “La chanson du mal-

aimé” (de Alcools, 1913), lido na revista simbolista Mercure de France de 1.º de maio

de 1909, “fez época” na sua experiência poética nos anos de formação: foi o primeiro

encontro, para ele, da “nova poesia” em versos livres.150 Na “Reportagem literária”,

cedida a Paulo Mendes Campos, afirmou que Apollinaire era um “dos grandes preferi-

dos”.151 Mais adiante, na mesma entrevista, falou que o poeta francês, em Libertinagem,

continuava sendo a “influência preponderante”, “a que se juntou a de Mário de Andra-

de”.152

Provavelmente, sua estima pela obra do amigo paulistano originou-se de

uma motivação semelhante à que, no início dos anos 1910, antes mesmo da publicação

de A cinza das horas, aproximara-o da poesia de Guillaume Apollinaire. É possível le-

vantar pontos de interseção entre os recursos criativos de Apollinaire e Mário de Andra-

de que foram incorporados ao novo lirismo de Libertinagem, como as experimentações

mais radicais com o verso livre; o maior aproveitamento, na construção da linguagem

poética, da coloquialidade e de elementos relacionados ao cotidiano; a presença de um

desvario sugerido nos próprios títulos de seus livros, Alcools e Paulicéia desvairada,

além dos variados graus de diálogos que estabeleceram com a tradição. Contudo, atra-

149 ARQUIVO MANUEL BANDEIRA, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira – AMLB, Fundação Casa de Rui Barbosa. 150 BANDEIRA, op. cit., 1954, p. 30. 151 BANDEIRA, op. cit., 1958, p. 1163. 152 Ibid., p. 166.

vés dos versos de Mário parece ter se apresentado um novo ingrediente: o “detalhe bra-

sileiro” tão em voga entre os autores modernistas, que passa a se manifestar, na poética

bandeiriana, por meio de referenciais das brincadeiras de infância e da cultura popular,

entre outros aspectos. Concluímos também, diante disso, que havia, da parte de Bandei-

ra, um interesse muito bem definido acerca da poesia moderna, facilitando-nos a visua-

lização do quanto ele planejava as orientações criativas a serem desenvolvidas em seus

livros. Deixemos claro ainda que, ao recorrermos ao instrumental da crítica genética, o

nosso objetivo não é simplesmente o de estabelecer relações de influência, mas sobretu-

do encontrar dados para dar forma ao processo de criação que culminou em Libertina-

gem, o qual, sem qualquer dúvida, foi determinante para todo o devir de sua obra.

Outro dado que revela a estima que dedicou ao autor de Alcools é a insistên-

cia em referir-se a uma conferência e a um artigo de A Folha de 13 de fevereiro de

1920,153 de Ronald de Carvalho, que “meteu as botas em Apollinaire”. Isto foi relatado

para Mário nas cartas de 19 de maio e 13 de outubro de 1924, bem como na de 30 de

março de 1925.154 A repetição desse caso evidencia, ao mesmo tempo, uma afeição in-

tensa de Bandeira pela obra apollinaireana, convertida em ressentimento devido a restri-

ções para a elaboração de sua poesia e da poesia modernista como um todo.

Portanto, trata-se de uma influência observada tanto na esfera privada, das

correspondências, quanto no âmbito público, de entrevistas e livros, que começou a ter

efeito na formação de sua obra desde o o fim da primeira década do século XX. Nesse

período ele se informava a respeito dos escritores das vanguardas européias, embora tal

influência seja mais evidente a partir dos anos 1920, com os poemas de O ritmo dissolu-

to e Libertinagem, quando se mobilizou para elaborar processos e técnicas criativas

mais ousadas.

153 Cf. ARQUIVO RIBEIRO COUTO, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira – AMLB, Fundação Casa de Rui Barbosa. 154 ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 124, 138 e 194.

Manuel Bandeira esteve com Paul Éluard no sanatório de Davos, na Suíça,

entre junho de 1913 e outubro de 1914, tentando curar-se da tuberculose. Em 1951, Paul

Éluard foi entrevistado pelo Jornal de Letras, dando-nos indícios do quanto Bandeira

estava, já naquela altura, inteirado da poesia moderna na Europa, quando nem mesmo

Éluard conhecia autores modernos da França. A respeito desse período, o escritor do

surrealismo francês declara:

Esse amigo teve uma influência decisiva na minha poesia. Foi ele quem me abriu os ho-

rizontes do que já se tinha feito na França e no mundo. Esse meu amigo é brasileiro e cha-

ma-se Manuel Bandeira. Ainda me lembro de como Bandeira brigava comigo, achando um

absurdo que eu, sendo francês, não conhecesse Rimbaud. Começou a me emprestar livros e

falar de poesia moderna [...]. Foi então que tomei contato com Rimbaud, Apollinaire e

mesmo Baudelaire, cujo grande valor ainda não me havia tocado. Bandeira não teve apenas

influência sobre mim. A poesia que cheguei a fazer depois saiu das longas conversas que ti-

vemos então. Saiu daquela teimosia em me dar a conhecer os grandes poetas da minha pró-

pria língua. Eu ficava espantado com tamanha cultura do Bandeira e ao mesmo tempo sen-

tia-me envergonhado.

Comprovamos ainda mais, através dessa entrevista, que Bandeira tinha, no

início dos anos 1910, consciência sobre a poesia de ruptura. Além dos nomes de autores

que haviam se tornado clássicos da literatura moderna, como Arthur Rimbaud e Charles

Baudelaire, notemos que Paul Éluard se refere a um escritor contemporâneo, Guillaume

Apollinaire, que então só tinha publicado três livros: O encantador em putrefação, de

1909; O bestiário ou o cortejo de Orfeu, de 1911, além de Alcools e o manifesto “A

antitradição futurista”, os dois de 1913. Isto nos dá a medida do quanto Bandeira acom-

panhava de perto a literatura francesa numa época em que ainda nem escrevia poemas,

mas era apenas um arquiteto frustrado, cujos estudos na escola Politécnica de São Paulo

foram interrompidos por causa da tuberculose.

Porém, o arquiteto frustrado foi cedendo espaço à construção do poeta, con-

forme nos esclarece no Itinerário de Pasárgada: “Foi nesses treze anos [de 1904, quan-

do adoeceu, a 1917, ao publicar A cinza das horas] que tomei consciência de minhas

limitações, nesses treze anos que formei a minha técnica.”155 Também podemos conclu-

ir que, ao escrever os poemas de Libertinagem, Manuel Bandeira já lia as poéticas mo-

dernas como tradição. O conhecimento minucioso e profundo que ele tinha das van-

guardas colaborou, sem qualquer dúvida, para o seu livro mais modernista não apresen-

tar experimentações equivocadas e/ou exageradas, ou seja, as técnicas das vanguardas

estavam sendo incorporadas por Bandeira mediante um critério seletivo rigoroso. Tal

avanço comedido em direção ao modernismo sugere-nos que ele provavelmente recor-

reu às novas técnicas à medida que as sentia como parte do seu acervo criativo. Daí

compreendemos melhor a maturidade de sua obra e a tendência de valorização tanto da

tradição propriamente dita quanto da poesia contemporânea, uma vez que as duas eram

lidas e trabalhadas sob um conhecimento adquirido por intermédio da sua consolidação

no tempo.

Notamos, desde A cinza das horas e Carnaval, o acréscimo de procedimen-

tos inovadores de composição, o que requer uma análise mais distanciada de sua fortuna

crítica posterior ao modernismo e uma aproximação efetiva dos seus poemas daquela

época. É que, de certo modo, as inovações mais contundentes da geração de 1922 relati-

vizaram, com o tempo, os novos aspectos da poética bandeiriana da primeira fase, como

deslocamento do acento tônico, estrofação irregular, quebras rítmicas, rimas toantes,

versos polimétricos, presença do cotidiano, entre outros, embora o fato de ele ser consi-

derado o São João Batista do modernismo brasileiro seja sempre lembrado, bem como a

importância de “Os sapos” para a Semana de Arte Moderna em São Paulo. Com isso

155 BANDEIRA, op. cit., 1954, p. 23.

queremos dizer que as técnicas de vanguarda desenvolvidas inicialmente por Bandeira

perderam, a longo prazo, o seu caráter mais ousado. Os recursos criativos das vanguar-

das foram se tornando de tal modo mais presentes nos anos 1920 que os novos elemen-

tos da poética bandeiriana dos seus dois primeiros livros parecem, hoje, um avanço mui-

to tímido na história do modernismo brasileiro.

Dessa maneira, a fortuna crítica posterior ao modernismo costuma classificá-

los de maneira mais tradicional do que são efetivamente. Um rápido exame nas críticas

que recebeu quando A cinza das horas e Carnaval foram publicados nos leva a compre-

ender melhor o lado significativamente inovador de seus primeiros livros. No Imparcial,

João Ribeiro afirma num artigo sobre A cinza das horas: “Eis aqui um excelente e ver-

dadeiro poeta. Por que verdadeiro e excelente? Eis aqui uma questão de resposta difí-

cil”, revelando-nos o quanto as pequenas inovações bandeirianas podem ter desconcer-

tado os críticos da época, exigindo, conseqüentemente, o desenvolvimento de um novo

instrumental de leitura, uma necessidade que se tornaria ainda mais urgente após 1924,

quando os modernistas começaram a publicar suas obras mais influenciadas pelas van-

guardas da Europa. Mais adiante, ele prossegue: “De tal arte nos havíamos estragado o

bom gosto com o abuso das convenções, dos artifícios e das nigromancias mais esdrú-

xulas, que esta volta à simplicidade e ao natural é uma consolação reparadora e saudá-

vel.”156 É notável que João Ribeiro, logo no primeiro livro de Manuel Bandeira, tenha

percebido dois elementos fundamentais, a simplicidade e a naturalidade de seus versos,

o que então já estava sendo lido como dados inovadores de sua obra em relação à poesia

da época. No Itinerário de Pasárgada, há referência a nota sobre Carnaval publicada

em uma revista: “O sr. Manuel Bandeira inicia o seu livro com o seguinte verso: Quero

beber! Cantar asneiras... Pois conseguiu plenamente o que desejava.”157 Da Revista do

156 RIBEIRO, João apud BANDEIRA, op. cit., 1954, p. 52. 157 BANDEIRA, op. cit., 1954, p. 55.

Brasil, extraímos o seguinte comentário sobre o poema “Debussy”, de Carnaval: “Há

quem goste e tem papa francês em São Paulo.”158 Dessa maneira, considerando tais arti-

gos publicados ao calor do lançamento dos primeiros livros bandeirianos, observamos a

existência de elementos menos tradicionais do que nos parecem hoje, como naturalide e

simplicidade, presença do cotidiano, deslocamento do acento tônico, quebras rítmicas,

rimas toantes e verso livre.

Importa agora analisar diacronicamente o percurso criativo de Guillaume

Apollinaire e Manuel Bandeira, de modo a registrar como a poética bandeiriana se de-

senvolveu, em certo sentido, mediante a incorporação de aspectos definidores da obra

do autor francês. Panoramicamente, é fácil constatar que os dois escritores têm, a prin-

cípio, forte aderência ao simbolismo, que é sucedida pelo interesse de desbaratar o rea-

cionarismo artístico, mas sem estabelecer um rompimento com a tradição. Foi aos pou-

cos que os dois chegaram a uma literatura efetivamente moderna, cujos diálogos com o

passado se firmaram por meio da atualização de técnicas de construção já consagradas,

que pareciam ter como base, em ambos os casos, poetas modernos do fim do século

XIX, como Paul Verlaine e Rimbaud, bem como, no caso da obra de Bandeira, os auto-

res do romantismo brasileiro ― Álvares de Azevedo e Castro Alves, entre outros.

N’O bestiário ou cortejo de Orfeu, verificamos facilmente a tentativa de

Apollinaire voltar à tradição para renová-la. Isto pode ser notado, de imediato, pelo in-

tento de fazer um bestiário, cuja gênese remonta à Idade Média, quando reuniam-se

descrições e histórias de animais reais ou fantásticos, acompanhadas de ilustrações. Jus-

158 Ibid., p. 55.

tamente nessa direção surge outro retorno ao passado: Raoul Dufy159 foi convidado para

fazer as xilogravuras que ilustravam cada um dos poemas desse rol de animais.

Sabemos que a xilogravura é uma das técnicas mais antigas de impressão,

nada usual entre os artistas plásticos do início do século XX,160 provocando algum es-

tranhamento se contextualizarmos todo O bestiário ou cortejo de Orfeu no cenário das

vanguardas européias, que buscavam atacar, frontalmente, o passado cultural e louvar,

com euforia, o futuro e as máquinas. Além do mais, a xilogravura guarda um caráter

artesal (ou pré-industrial), enquanto a pintura absorve facilmente as técnicas modernas,

como a colagem. A marca dos veios da madeira na xilogravura também nos remete a

um universo mais natural. Nesse livro de Guillaume Apollinaire existe, contudo, uma

atualização do bestiário medieval, empreendida, entre outros procedimentos, mediante a

disposição atípica dos versos na página em relação aos textos medievais. Estes eram

escritos em prosa, com tamanho variado, ocupando toda a página, exceto o espaço pre-

enchido com as ilustrações, distribuídas assimetricamente na mancha gráfica, enquanto

no livro de Apollinaire temos só poemas de quatro versos, muito concisos portanto, em

que, em alguns casos, há aproveitamento de elementos biográficos para construir as

descrições, com as xilogravuras posicionadas sempre na parte superior, na mesma posi-

ção. Existem, desse modo, elementos típicos de uma certa poesia vanguardista, como a

concisão dos versos e a ordenação em série dos textos e também das ilustrações. Ainda

podemos lembrar que, em diversos quartetos, ele recorreu ao humor e à ironia, recursos

muito freqüentes entre os poetas das vanguardas, porém nada comuns nos bestiários da

159 Raoul Dufy (1877-1953) foi decorador, gravurista e pintos francês. É um dos mais importantes artistas do fauvismo, movimento pictórico do início do século XX que buscava, entre outros objetivos, desvenci-lhar-se do uso tradicional das cores e distanciar-se da representação realista. 160 Em Estilos, escolas e movimentos, um guia enciclopédico da arte moderna, não há sequer uma referên-cia à técnica de xilogravura. Cf. DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas e movimentos. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

Idade Média. O poema “A tartaruga” é um bom exemplo de algumas transformações

referidas:

Da Trácia mágica, encanto!

Toco sim minha lira enquanto

Bichos passam ao som veloz

De minha tartaruga e voz.161

Guillaume Apollinaire reuniu, numa mesma obra, elementos da tradição e da

modernidade, confluência de interesses que vai se tornar mais complexa e significativa

em seu livro seguinte, Alcools, onde se dá a mistura de poemas absolutamente vanguar-

distas com outros em diálogos com o passado, de modo que podemos verificar uma se-

melhança entre a proposta criativa de Alcools e a posição bandeiriana de quem estava ao

mesmo tempo “dentro” e “fora” do modernismo brasileiro. No livro Pintores cubistas:

meditações estéticas, Apollinaire defende a coexistência da tradição, que deve ser atua-

lizada, e da modernidade, que não deve se entregar à moda, ou seja, havia também, da

parte dele, uma recusa pela formação de grupos, que era uma característica dos movi-

mentos de vanguarda, em torno de editoras, idéias, manifestos e revistas: um projeto 161 APOLLINAIRE, Guillaume. O bestiário ou cortejo de Orfeu. Tradução e apresentação de Álvaro

Faleiros. São Paulo: Iluminuras, 1997. p. 29.

mais uma vez muito em acordo com a orientação posteriormente assumida por Bandeira

nos anos 1920.

A respeito do seu diálogo com a tradição, Guillaume Apollinaire afirma na

livro sobre os pintores cubistas:

Não se pode carregar consigo, por toda a parte, o cadáver do pai. Você o abandona em

companhia dos outros mortos. E recorda-o, lamenta-o, fala dele com admiração. E, ao tor-

nar-se pai, não deve esperar que um de seus filhos queira, pela vida fora, ser o duplo de seu

cadáver.

Mas, nossos pés se elevam debalde do solo que abriga os mortos.

[...]

É necessário [...] abarcar num relance, o passado, o presente e o futuro.

[...]

Não nos exauriremos a apreender o presente demasiado fugaz e que, para o artista, não

é senão a máscara da morte: a moda.162

Obsvervemos, nesse trecho, que há uma compreensão profunda do presente.

Segundo Apollinaire, basta entrarmos no ritmo das coisas, sem maiores esforços, para

apreender a modernidade e integrar-se a ela. As manchetes dos jornais, os cartazes pu-

blicitários, as frases ouvidas, enfim, o próprio cenário urbano disponibiliza inúmeros

elementos que nos lançam na roda dos tempos modernos.

Depois, em carta de 20 de maio de 1915, para Madeleine, então sua amante,

o poeta francês escreveu:

Os cânones só me parecem úteis como canhões... Em arte, são antes entraves ao estilo

como o concebo.

Por isso ponho de lado o estilo dos gramáticos, dos estetas, dos que se julgam com bom

gosto, e peço antes de tudo que nos liberem desse bom gosto, que impõe não disciplinas,

mas modelos e cânones, de que quase sempre o valor e a beleza são duvidosos.163

162 APOLLINAIRE, Guillaume. Pintores cubistas: meditações estéticas. Tradução de Sueli Tomazini Barros Casal. Porto Alegre: LP&M, 1997. p. 11-12.

Esses dois excertos revelam uma orientação criativa ambivalente, que não

recusa a tradição e, concomitantemente, não se rende a ela com passividade. Em torno

da imagem do “clã” (“paternidade” e “fraternidade”), Apollinaire pensa acerca disso no

livro Pintores cubistas, mostrando o intento de tomar a tradição mediante um processo

construtivo que deve lhe acrescentar novos elementos. Dessa maneira, ele contesta tanto

os neoclássicos, que repetiam as velhas fórmulas de construção da poesia, como tam-

bém os vanguardistas, que se opunham inteiramente ao legado cultral deixado pela tra-

dição. Tal contestação fica evidente através desses trechos, em que é possível entender,

com mais fundamento, como a postura de Bandeira estar “dentro” e “fora” do moder-

nismo brasileiro corresponde perfeitamente às linhas mestras do projeto literário apolli-

naireano, o qual também se revela, como proposta teórica e programática, na sua confe-

rência “L’esprit nouveau et les poètes”, de 1918:

O espírito novo é, antes de mais nada, inimigo do estetismo, das fórmulas e de todo es-

nobismo. Não luta contra qualquer escola que seja, porque não quer ser uma escola, mas

uma das grandes correntes da literatura, englobando todas as escolas, desde o simbolismo e

o naturalismo.164

Embora seja possível identificar, na primeira fase da poesia bandeiriana, as-

pectos similares à lírica de Guillaume Apollinaire ― elementos do simbolismo, efeme-

ridade do amor e inexorabilidade do tempo, ubi sunt, destino moldado pela fatalidade,

163 APOLLINAIRE, Guillaume. Escritos de Apollinaire. Tradução, seleção e notas de Paulo Hecker Fi-lho. Porto Alegre: LP&M, 1984. p. 157. 164 Tradução nossa. Cf. APOLLINAIRE, Guillaume. Oeuvres en prose complètes II. Textes établi et an-noté par M. Adema et M. Décaudin. Paris: Gallimard, 1991. p. 953. Bibliothéque de la Pléiade, 121: “L'esprit nouveau est avant tout ennemi de l'esthétisme, des formules et de tout snobisme. Il ne lutte point contre quelque école que ce soit, car il ne veut pas être une école, mais un des grands courants de la litté-rature englobant toutes les écoles, depuis le symbolisme et le naturisme.”

conforme Tatiane Milene Torres destaca em Escritura da perda ―,165 é em Libertina-

gem que observamos, com mais facilidade, um diálogo próximo das técnicas criativas

do poeta do esprit noveau. Através da leitura de Alcools e Libertinagem, comparando-

as, podemos destacar alguns recursos apollinaireanos que foram incorporados por Ma-

nuel Bandeira. Nesse sentido, “Le pont Mirabeau” e “Zone”, de Alcools, nos servem

como protopoemas para analisar o quanto as obras de Apollinaire influenciaram as de

Bandeira.

Em “Le pont Mirabeau”, há uma série de características que nos fazem lem-

brar a poética bandeiriana da primeira fase, mas também presente, em menor escala, nos

livros seguintes. É o caso da sentimentalidade muito à moda de Paul Verlaine, uma refe-

rência freqüente nas obras de Bandeira; a melancolia doce e terna; um lirismo popular,

muito em consonância com os versos mais tipicamente românticos; e o trabalho primo-

roso com assonâncias (“lente” e “Espérance”, “vont” e “restons”) e rimas (“heure” e

“demeure”, “lente” e “violente”):

Sous le pont Mirabeau coule la Seine

Et nos amours

Faut-il qu’il m’en souvienne

La joie venait toujours après la peine

Vienne la nuit sonne l’heure

Les jours s’en vont je demeure

Les mains restons face à face

Tandis que sous

Le pont de nos bras passe

Des éternels regards l’onde si lasse

Vienne la nuit sonne l’heure

165 A respeito da influência de Guillaume Apollinaire sobre as obras da primeira fase da poética bandeiri-ana, sugerimos a leitura de Escritura da perda: um tempo não-reconciliado em Bandeira e Apollinaire, de Tatiane Milene Torres, dissertação de mestrado defendida na USP, em 2007.

Les jours s’en vont je demeure

L’amour s’en va comme cette eau courante

L’amour s’en va

Comme la vie est lente

Et comme l’Espérance est violente

Vienne la nuit sonne l’heure

Les jours s’en vont je demeure

Passent les jours et passent les semaines

Ni temps passé

Ni les amours reviennent

Sous le pont Mirabeau coule la Seine

Vienne la nuit somme l’heure

Les jours s’en vont je demeure.166

Atentemos na “Canção do vento e da minha vida”, publicado em Lira dos

cinqüent’anos,167 em que parecem ressoar, ao fundo, os versos de “Le pont Mirabeau”.

Não queremos sugerir que tenha havido, necessariamente, uma relação intertextual, mas

a repetição do verbo “varrer” na canção bandeiriana contém o mesmo sentido, só que

metafórico, de “aller” e “passer” desse poema apollinaireano. Ambos também revelam a

aliteração com o som do fonema “v”, além de organizarem espacialmente os versos e

estrofes de maneira semelhante. Por fim, não podemos esquecer que “Canção do vento e

da minha vida” e “Le pont Mirabeau” tratam da passagem do tempo.

166 Cf. APOLLINAIRE, Guillaume. Oeuvres poétiques. Préface par André Billy. Texte établi et annoté par Marcel Adéma et Michel Décaudin. Paris: Gallimard, 1965. p. 45. Bibliothéque de la Pléiade. O poe-ma foi traduzido por Jorge Sousa Braga: “Sob a ponte Mirabeau corre o Sena/ E os nossos amores/ Era preciso que me recordasse esta cena/ Que a alegria vem sempre depois da pena// Vem a noite soa a hora/ Tudo passa na minha demora// Face a face fiquemos e de mão na mão/ Enquanto/ Sob a ponte dos nossos braços se vão// Dos eternos olhares a lassa ondulação// Vem a noite soa a hora/ Tudo passa na minha demora// O amor se vai como a água cinzenta/ O amor se vai/ Como a vida é lenta/ E a Esperança violen-ta// Vem a noite soa a hora/ Tudo passa na minha demora// Morrem os dias tudo morre/ Nem o tempo passado/ Volta nem os amores/ Sob a ponte Mirabeau o Sena corre// Vem a noite soa a hora/ Tudo passa na minha demora”. Cf. APOLLINAIRE, Guillaume. O século das nuvens. Tradução de Jorge Sousa Bra-ga. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007. p. 16-17. 167 BANDEIRA, op. cit., v. I, p. 297.

Já em “Zone”, são muitos os elementos típicos da poética mais modernista e

antilírica de Manuel Bandeira, como a presença do cotidiano nos versos, com cenas

triviais que são desveladas sem estrondo; a naturalidade e a simplicidade tão exigidas

por todas as vanguardas; a exaltação da vida independente da forma como ela se mani-

festa (positiva ou negativamente, com saúde ou doença, amor ou desamor etc.), num

esforço contínuo de libertação; a presença de imagens oníricas; o trabalho rigoroso na

construção do verso livre; a técnica de tirar a poesia de todas as coisas, além da recor-

rente composição de “cenários” urbanos. São, entre outros, alguns elementos também

encontrados nas obras bandeirianas a partir sobretudo de Libertinagem. É possível en-

contrá-los dispersos ou reunidos em diversos poemas seus, como “Mangue”, “Evocação

do Recife”, “Poema tirado de uma notícia de jornal”, “Balada das três mulheres do sa-

bonete Araxá”, “O desmemoriado de Vigário Geral” e “Tragédia brasileira”. É válido

citar alguns trechos do poema “Zone” para constatar a existência dessas características

em comum entre os dois autores:

A la fin tu es las de ce monde ancien

[...]

Tu en as assez de vivre dans l’antiquité grecque et romaine

[...]

Tu lis les prospectus les catalogues les affiches qui chantent tout haut

Voilà la poésie ce matin et pour la prose il y a les journaux

Il y a les livraisons à 25 centimes pleines d’aventures policières

Portraits des grands hommes et mille titres divers

[...]

Les inscriptions des enseignes et des murailles

Las plaques les avis à la façon des perroquets criaillent. 168

É fácil notar a grande semelhança entre a poética formulada em “Zone”, de

Apollinaire, e nas crônicas “Fragmentos” e “Poema desentranhado”, de Manuel Bandei-

ra. Nelas, o poeta recifense declara que “a poesia reponta onde menos se espera: numa

notícia policial dos jornais, numa tabuleta de fábrica, num nome de hotel da Rua Mare-

chal Floriano, nos anúncios da Casa Matias”169 ou “numa frase ouvida num bonde ou

lida numa receita de doce ou numa fórmula de toilette”.

Tal influência também pode ser facilmente observada quando comparamos

os poemas de Libertinagem com as propostas do manifesto “A antitradição futurista”,

de Apollinaire, que ataca, como já vimos, a presença da “dor poética”, “da cópia em

arte”, “das sintaxes já condenadas pelo uso em todas as línguas” e defende, entre outros

procedimentos, “técnicas ou ritmos renovados sem cessar” e “palavras em liberdade”,

entre outros. O primeiro poema de Libertinagem, “Não sei dançar”, demonstra uma mu-

dança de postura criativa que corresponde à defesa pela liberdade e à supressão da “dor

poética” do manifesto do poeta francês:

Uns tomam éter, outros cocaína.

Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.

Tenho todos os motivos menos um de ser triste.

Mas o cálculo das probalidades é uma pilhéria...

Abaixo Amiel!

E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff.

168 Ibid., p. 39. Na edição portuguesa, os versos destacados foram assim traduzidos: “Eis-te finalmente farto deste mundo antigo// [...]// Estás cansado de viver na antiguidade grega e romana// [...] /Lês os pros-pectos os catálogos os cartazes em letras garrafais/ Aqui está a poesia esta manhã e para a prosa temos os diários/ Os folhetins a vinte e cinco cêntimos cheios de aventuras policiais/ Retratos de grandes individua-lidades títulos vários// [...] //As inscrições os estandartes e as muralhas/ Os anúncios e as placas gritavam como se fossem papagaios” (2007: 31-32). 169 Cf. notas 3 e 5 da seção 2 desta tese.

Sim, já perdi pai, mãe, irmãos.

Perdi a saúde também.

É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band.170

Nestas duas estrofes de “Não sei dançar”, consolida-se uma tendência dos li-

vros anteriores: a redução de poemas em que prevalece o estado de melancolia, classifi-

cado adequadamente por Norma Goldstein, em Do penumbrismo ao modernismo, como

“melancolia ‘doce’, fruída”.171 A alegria vai se tornando, a cada livro, mais presente,

embora não se tivesse feito dela, na primeira fase, um motivo a ser defendido e até

mesmo um elemento “definidor” de sua poética, ao contrário do que observamos em

Libertinagem, principalmente nos versos de “Não sei dançar” e “Poética”. Trata-se de

uma tentativa já perceptível em Carnaval, em seus poemas iniciais, onde a melancolia

tão marcante em A cinza das horas é combatida, mas, conforme o próprio Itinerário de

Pasárgada, o livro começou ruidosamente e foi “[...] saindo triste e mofino, que em vez

de acabar com uma galharda marcha contra filisteus, terminou chochamente ‘not with a

bang but a whimper’172”,173 citando o último verso de Os homens ocos, de T.S. Eliot.

Nesse poema, os “homens ocos”, quando juntos, sussurram, têm suas vozes “quietas e

inexpressas/ Como o vento na relva seca/ Ou pés de ratos sobre cacos”. Vai se compon-

do, dessa forma, a imagem de homens sem qualquer vigor, tal como o cenário formado,

de acordo com Bandeira, em boa parte do conjunto de poemas de Carnaval. Logo, foi

no início desse livro que o poeta iniciou, de maneira mais evidente, o projeto de afastar-

se dos sentimentos que já lhe pareciam, então, anacrônicos para a sua época, embora

170 BANDEIRA, op. cit., 1998, p. 5. 171 Conferir os anexos do livro de Norma Goldstein, op. cit., p. 176-185. 172 Último verso do poema Os homens ocos, de T.S. Eliot, publicado em 1925. Segundo a tradução de Ivan Junqueira, “Não com uma explosão, mas com um gemido”. Cf. ELIOT, T.S. Poesias; tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. São Paulo: Arx, 2004. p. 183. 173 BANDEIRA, op. cit., 1954, p. 54.

ainda muito cultivados. Contudo, em Carnaval, a sua busca resultou num ensaio malsu-

cedido, em que o estado de euforia é sustentado apenas até o quinto poema (“Vulgíva-

ga”).

A negação da dor artística é uma característica presente sobretudo nas duas

primeiras estrofes de “Não sei dançar”, onde identificamos proposições incisivas, que

revelam um processo de negação da tristeza e de afirmação da alegria, como “Abaixo

Amiel!/ E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff” versus “ritmo do jazz-band”.

Conceitualmente, as oposições de “Não sei dançar” delineiam um programa literário

que se tornará mais claro, adiante, com as tensões de “Poética” entre o lirismo “comedi-

do”, “bem comportado”, “funcionário público” e o lirismo dos “loucos”, “bêbados” e

“clowns de Shakespeare”, em que também observamos uma intensa proximidade com a

obra de Apollinaire, como podemos observar, com maior facilidade, mediante os versos

iniciais de “Zone”: “Eis-te finalmente farto deste mundo antigo// [...]// Estás cansado de

viver na antiguidade grega e romana”. A alegria equivale portanto não só a um modo de

estar no mundo, mas também à renovação criativa, enquanto a tristeza nos faz lembrar

do reacionarismo de certas artes, estabelecendo-se, dessa maneira, um espelhamento

direto do sujeito lírico, em transformação, com o novo estilo de poesia que está sendo

proposto mediante os versos de Libertinagem.

Através da análise dos versos de “Não sei dançar”, constatamos uma apro-

ximação de Bandeira não só em relação às técnicas criativas de Apollinaire, mas sobre-

tudo com o seu pensamento acerca da poesia. No entanto, não é intenção nossa sugerir,

com o panorama de influência aqui desenvolvido, que a poética bandeiriana seja resul-

tado direto da sua relação com a obra apollinaireana. São muitos os pontos em comum,

mas também encontramos uma série de elementos díspares entre os dois autores. É e-

xemplo disso, na obra do poeta francês, a intensa recorrência de fragmentações e a in-

trodução freqüente da irrealidade, o que serviria como uma das pontas-de-lança para os

surrealistas, enquanto na lírica de Manuel Bandeira observamos casos isolados disso,

como o poema “Noturno da rua da Lapa”. O que mais o aproxima da poética de Guil-

laume Apollinaire são o princípio de liberdade criativa, em que até mesmo a tradição

não era relegada, e a busca pela supressão da “dor poética”, mas, do ponto de vista téc-

nico, tais orientações eram desenvolvidas também de maneiras distintas. Isto fica evi-

dente quando observamos o modo mais freqüente de Apollinaire dialogar com a tradi-

ção, quando retoma os mitos antigos misturando-os a mitos contemporâneos da Era das

Máquinas.

Ribeirou Couto escreveu que, em Libertinagem, existe um “esforço desespe-

rado para [se] exprimir de maneira diferente”.174 Na carta de 26 de setembro de 1930, o

poeta recifense fez uma ressalva significativa a respeito dessa observação, que está rela-

cionada com o pensamento de Apollinaire acerca da criação: para Bandeira, o que havi-

a, naquele livro, era um “[e]sforço desesperado para sentir diferentemente, para esque-

cer a velha maneira de sofrer, isso sim pode ser. Um pudor que eu não tinha da minha

tuberculose”.175 O esforço de sentir diferentemente e o pudor acerca dessa doença evi-

denciam-se, no poema “Não sei dançar”, por meio das sentenças contra Henri Frédéric

Amiel176 e Maria Bashkirtseff177, ambos autores de diários em que escreveram, de modo

romântico, triste e profundamente trágico, sobre a tuberculose e o medo da morte. De

alguma forma, a tentativa de reagir a uma personalidade criativa moldada pela tubercu-

lose, que podemos observar nos seus primeiros livros, também lançou a poética bandei-

174 O artigo não foi identificado. O trecho citado foi extraído da própria carta que Manuel Bandeira escre-veu para Ribeiro Couto a 26 de setembro de 1930. Cf. ARQUIVO RIBEIRO COUTO, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira – AMLB, Fundação Casa de Rui Barbosa. 175 Ibid. 176 Henri Frédéric Amiel (1821-1881) foi um escritor suíço. Ele escreveu um diário até às vésperas da sua morte, Fragmentos de um diário íntimo, que foi publicado em 1883. 177 Maria (Marie) Bashkirtseff (1860-1884) foi escritora e pintora russa. Devido à tuberculose, ela aban-donou o canto e passou a se dedicar, com sucesso, à pintura.

riana à busca dos processos criativos das vanguardas: estas impunham resistência à me-

lancolia tipicamente romântica e aos versos que provocavam condescendência e pena

nos leitores. Se a construção da infância colaborou para que Bandeira se aproximasse

com mais facilidade da renovação de sua poesia, a tuberculose colaborou para que ele se

achegasse às duas, como se ambas servissem como “antibiótico” não propriamente à

doença, mas a uma recorrente psicologia motivada pela tuberculose. Aos poucos, contu-

do, observamos que a própria doença vai sendo construída como parte de sua obra, as-

sim como a fase da meninice. É interessante destacar, nessa direção, uma carta de 1923,

destinada a Ribeiro Couto, onde Bandeira revela ter relido os seus próprios originais

que Mário de Andrade deixara com Monteiro Lobato. Estes eram formados por A cinza

das horas, aumentado com alguns poemas da mesma época; Carnaval e uma parte iné-

dita, nomeada Onda solitária (certamente, contendo alguns dos textos que vieram a in-

tegrar o livro O ritmo dissoluto):178

[...] Tive ao relê-los uma sensação curiosa. Os que me agradaram foram os mais pungentes,

mas senti-me incapaz de fazer cousas daquele gênero para o futuro. Absolutamente mais na-

da que possa fazer chorar o sensível Afonso Lopes de Almeida!! Antes de tudo!! Mas então

não farei mais nada porque em mim o poeta é a tuberculose. Eu sou Manuel Bandeira, o Po-

eta Tísico.179

Portanto, depois da primeira tentativa em Carnaval, Bandeira voltava a ma-

nifestar, em 1923, o interesse de resistir à tristeza, mas pensava que, nesse caso, deixaria

de escrever, pois nele “o poeta é a tuberculose”. Entendemos facilmente tal afirmação

quando avaliamos os estados psicológicos revelados nos poemas da primeira fase de sua

178 Acerca do conteúdo desses originais, consultar a carta de 31 de maio de 1923, para Mário de Andrade.

ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 94. 179 Carta escrita no dia 5, mês ilegível. Cf. ARQUIVO MANUEL BANDEIRA, Arquivo-Museu de Lite-

ratura Brasileira – AMLB, Fundação Casa de Rui Barbosa.

obra, em que são marcantes a frustração, a melancolia e o medo da morte, motivados,

sem qualquer dúvida, pela doença que o havia acometido.

A sensação de incapacidade criativa resultava justamente da transição que

sua obra sofria, quando, com a publicação de O ritmo dissoluto, em 1924, deixou mais

claro o intento de lançar-se, conforme o próprio título sugere, a novos modos de expres-

são, mais livres e “desregrados”, aproximando-se também da alegria. Além disso, em se

tratando do aspecto formal, ele buscava desenvolver o verso livre tão bem quanto os

versos metrificados e rimados. Aos poucos, o desejo de liberdade criativa parece se fun-

dir ao de abandonar o comportamento romântico diante da morte, já cristalizado, e im-

pôr, dessa maneira, uma renovação ― na forma e também no conteúdo, pretendendo

iniciar uma relação irônica ou familiar com a Indesejada das Gentes. É importante des-

tacar ainda que, nessa altura, Bandeira já não sofria com a tuberculose, embora certas

reclamações sobre a própria saúde fossem recorrentes. Os cuidados médicos pareciam

resultar, no entanto, mais por força do hábito. Por outro lado, a intensidade de alguns

dos seus poemas (a pujança de que fala na carta a Ribeiro Couto) a respeito da tubercu-

lose consolidou, no poeta, a imagem de tísico. Porém, se levantarmos alguns fatos regis-

trados nas correspondências, fica evidente que ele tinha, nos anos 1920, uma saúde de

“ferro”: morou em Santa Teresa, saindo cotidianamente para o Centro da cidade, mesmo

nos dias de calor;180 fumava, em média, dois maços de cigarro por dia;181 fez, como cor-

respondente da Agência Brasileira, viagens para o Nordeste e o Norte do país, com di-

versas aventuras e contratempos, e ainda assim voltou de Recife com “60 quilos e bem

disposto”. Acerca dessa viagem, destacamos esta narrativa nada típica para um tubercu-

loso, registrada a 26 de setembro de 1927, em mais uma carta a Ribeiro Couto: “Ontem,

180 Cf. As cartas do Arquivo Ribeiro Couto, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira – AMLB, Fundação

Casa de Rui Barbosa. 181 Cf. pasta de recortes do Arquivo Manuel Bandeira, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira – AMLB,

Fundação Casa de Rui Barbosa. O recorte não possui referência bibliográfica.

domingo, gramei 4 léguas a cavalo, fui à 9 e voltei 3 da tarde, 2 de ida e 2 de volta, sen-

do que esta depois do almoço e de andar a pé subindo morros, para acertar uma divisa

de caboclos teimosos.”182 O afastamento da melancolia de tísico correspondia à melhora

de sua saúde e, além disso, a doença não mais era um dos motores para a sua criação, a

não ser pela tentativa de familiarizar-se com a morte, mais em decorrência dos sucessi-

vos falecimentos de entes queridos ― a mãe, em 1916; a irmã, 1918 e seu pai, 1920 ―

do que em função de sua própria doença.

Sejamos claros que não defendemos o biografismo. Defendemos a existência

de algumas conexões entre a vida e a obra. Podemos cogitar o fato de que a obra por

fazer de Manuel Bandeira exigia a vida que ele teve, tornando as duas uma aventura

compartilhada, uníssona e harmônica. Seu projeto de recuperar o devir e a liberdade

realizaram-se literariamente, de modo que a sua existência parece ter sido feita por meio

da obra. De acordo com Maurice Merleau-Ponty, em seu texto sobre Cézanne, “É certo

que a vida não explica a obra, mas é certo também que elas se comunicam. A verdade é

que essa obra por fazer exigia essa vida”.183 Caso semelhante se dá com Manuel Ban-

deira e sua poesia, em que a manipulação do passado e a construção da obra estão con-

troladas pelo mesmo ímpeto criativo.

Esta maneira de ler a biografia como elemento da sua poética encontra-se in-

teiramente de acordo com os procedimentos criativos de Manuel Bandeira, tanto que ele

ofereceu o exemplar anotado de Poesias completas para Francisco de Assis Barbosa,

seu biógrafo. É bastante provável que Assis Barbosa já tivesse revelado, a Bandeira, sua

intenção de fazer uma biografia sobre o autor, ou então o biógrafo sentiu-se impelido ao

182 Cf. ARQUIVO RIBEIRO COUTO, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira – AMLB, Fundação Casa

de Rui Barbosa. 183 MERLEAU-PONTY, Maurice. A dúvida de Cézanne. O olho e o espírito: seguido de A linguagem

indireta e as vozes do silêncio e A dúvida de Cézanne. Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. Prefácio de Claude Lefort. Posfácio de Alberto Tassinari. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. p. 121-142.

trabalho a partir das observações do poeta contidas no volume que lhe foi oferecido. De

qualquer modo, pelas anotações de Bandeira percebemos que ele próprio dava maior

importância ao processo de composição dos seus textos relacionados com a sua vida.

4.1.2. BLAISE CENDRARS, O NÃO-DITO

O poeta e prosador franco-suíço Blaise Cendrars foi, sem qualquer dúvida,

uma das influências mais notáveis entre os modernistas brasileiros. Só no ano de 1924,

Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Oswald de Andrade, Paulo Prado e Sérgio Bu-

arque de Holanda escreveram artigos laudatórios em relação à obra cendrarsiana.

Oswald de Andrade, a 13 de fevereiro, afirma, no Correio Paulistano, que

Blaise Cendrars é “apenas a singular reaparição do gênio da livre poesia na França”,

com uma “percepção acima do comum” e grande “sensibilidade contemporânea”. Des-

taca a capacidade sem igual de ele observar “o mundo” das cidades e viagens, quando

revela, por meio de sua poesia, “a forte e desembaraçada beleza da vida”. Analisa diver-

sas características de sua obra, como o recorte de “quadros modernos”, a agudeza da

prosa telegráfica, cinematográfica e precisa, em que o verbalismo anacrônico foi aban-

donado.184

A Revista do Brasil de março publicou um artigo de Mário de Andrade, on-

de ele enaltece, com o mesmo fervor de Oswald, a obra cendrarsiana. Por meio de uma

crítica fina e sofisticada, Mário observa que na prosa de Blaise Cendrars cada palavra e

frase curta, “de significação exata, essencial”, concorre por “justaposição, em síntese

184 ANDRADE apud EULÁLIO, op. cit., p. 381-382.

sistemática, para uma arquitetura extraordinariamente equilibrada e franca”. Revela a

força cinemática de suas obras, que cria uma “vida intensa” e “dramática”, capaz tam-

bém de ser primitiva ao reunir inovações dos tempos modernos às frases musicais e às

lendas dos negros. Examina, quase sempre de modo positivo, recursos da prosa e da

poesia de Cendrars, como a sua habilidade de compor versos curtos, isentos de retórica;

a naturalidade de seus textos; o processo de associações de imagens, em que o poeta se

liberta das funções cognitivas da inteligência ― “a razão, a consciência, a compreensão

intelectiva (milhor: a apreensão), e principalmente a imaginação que desvirtuam a reali-

dade”. Ainda segundo Mário de Andrade, nas “obras-primas” Prose du Transsibérien e

Le Panama encontra-se a mais “pura e perfeita manifestação [...] da verdadeira liberda-

de”, em que “à correspondência exata entre a expressão formal e o lirismo puro, se liga

[...] o equilíbrio entre a manifestação subconsciente e a consciência”.185 Apesar de Má-

rio fazer pequenas restrições a algumas técnicas de Blaise Cendrars, elas não compro-

metem em nada o seu maravilhamento pela obra desse escritor.

Assim seguia o trem modernista, com diversos autores que compartilhavam

da mesma estima pelas obras de Blaise Cendrars, tornando-o, conseqüentemente, a prin-

cipal influência do grupo a partir de 1924. Contudo, nos dois volumes da edição Poesia

e prosa, de Bandeira, existe apenas uma referência ao seu nome, no poema “Rondó do

Palace Hotel”, de Estrela da Manhã: “Toca [Cícero Dias] um jazz de pandeiros com a

mão/ Que o Blaise Cendrars perdeu na guerra.”186 Os demais registros acerca desse au-

tor estão no livro póstumo Crônicas inéditas I ― em “Mário de Andrade”, de outubro

de 1922, e “As novas concepções do urbanismo”, de 1.º de janeiro de 1930 ―, além do

artigo “A poesia de Blaise Cendrars e os poetas brasileiros”, escrito tardiamente em

relação ao modernismo, a 14 de julho de 1957, para o Journal Français du Brésil, bem

185 ANDRADE apud Ibid., p. 384-394. 186 BANDEIRA, op. cit., 1958, p. 263.

como a crônica “Cendrars daquele tempo”, de 25 de janeiro de 1961, reproduzida em

Andorinha, andorinha.

Eis os trechos de Crônicas inéditas I:

A Paulicéia desvairada é um livro impressionista. O desvairismo é escrever sem pen-

sar tudo o que o inconsciente grita quando explode o acesso lírico. Os românticos escrevi-

am assim. Foi assim também que Rimbaud escreveu as Iluminações. Rimbaud ― avô de

Blaise Cendrars! [“Mário de Andrade”]187

E ainda:

[...] o próprio valor de Le Corbusier como artista renovador justifica plenamente a nossa in-

sistência [a crônica anterior também falava de Le Corbusier]. Le Corbusier é suíço de nas-

cimento. Suíço é o poeta Blaise Cendrars. [“As novas concepções do urbanismo”]188

Já no artigo “A poesia de Blaise Cendrars e os poetas brasileiros”, publicado

fora do contexto modernista, Manuel Bandeira “confessa”:

[...] Ribeiro Couto e eu sabíamos de cor diversas passagens desses poemas [Prose du Trans-

sibérien e Les Pâques à New York], e creio talvez poder confessar ter sido Cendrars quem

levantou em mim o gosto da poesia do cotidiano. E foi sem dúvida de Cendrars também que

veio em grande parte o gosto dos poetas modernistas pela poesia do prosaico cotidiano. E

quem sabe se ainda o gosto pelo poema-piada?189

Mais do que a confissão da influência de Cendrars, surpreende-nos a ex-

pressão “creio talvez poder confessar”. Trata-se de um sintagma-chave para compreen-

der a relação de Bandeira com o poeta franco-suíço. Publicado em 1957, três décadas

187 BANDEIRA, op. cit., 2008, p. 25. 188 Ibid., p. 282. 189 EULÁLIO, op. cit., p. 460.

após a euforia modernista em torno da obra cendrarsiana, Manuel Bandeira ainda têm

muita dúvida se era ou não pertinente revelar a importância do autor de Le Panama para

a formação da sua poética cotidiana e simples. O sintagma-chave mostra que há muito

pudor em tal declaração, chamando-nos novamente atenção para o seu interesse de man-

ter-se desvinculado do grupo modernista, mesmo tanto tempo depois do surgimento do

temor, nos anos 1920.

Depois, em “Cendrars daquele tempo”, revela novamente o interesse que

sentia pelas obras cendrarsianas:

[...] A sua poesia impressionava então violentamente pela mistura do épico e do lírico: ao

mesmo tempo que representava a vida moderna no que ela tinha de mais novo e mais cho-

cante, sabia confidenciar os sentimentos mais íntimos do seu autor. Cendrars era possuído

da vida moderna. [...]

No Brasil foi grande a sua influência sobre os rapazes que em 22 desencadearam o

movimento modernista. Tanto que, alguns anos depois da famosa Semana, indo Paulo Pra-

do à Europa, trouxe de Paris o poeta para lhe mostrar o Rio, São Paulo e Minas. Algumas

das impressões dessa passagem entre nós estão nos poemas curtos do livro Feuilles de Rou-

te, poeminhas que evidentemente influenciaram a maneira em que depois começou a poetar

o “aluno de poesia” Oswald de Andrade.

[...]

Quem me revelou Blaise Cendrars foi Ribeiro Couto, quando éramos vizinhos na Rua

do Curvelo. Ainda hoje conservo preciosamente o exemplar de Du Monde Entier [que reú-

ne os livros Les Pâques à New York, La Prose du Transsibérien e Le Panama] na simpática

edição da Nouvelle Revue Française, emprestado por Couto e que eu jamais restituí. Lem-

bro-me nitidamente do fervor com que líamos e relíamos os versos, tão surpreendentes para

nós, de “Les Pâques à New York”, “Prose du Transsibérien” e “Le Panama”... Versos que

hoje não me satisfazem mais, mas que naquele tempo punham em meu coração um frêmito

novo...190

Diante desse trecho, é no mínimo curioso que Blaise Cendrars tenha apare-

cido, nos textos bandeirianos da fase mais modernista, apenas como “apêndice” de Cí-

190 BANDEIRA, op. cit., 1966, p. 340.

cero Dias, Le Corbusier, Mário de Andrade e Rimbaud. Ainda que seja uma lembrança

fortuita, Cendrars não ocupa uma posição secundária em tais crônicas. Contudo, ela é

pouco representativa tendo, em vista a admiração expressa da geração da Semana de

Arte Moderna, que dedicou uma série de artigos à poesia e à prosa de Blaise Cendrars.

O caso torna-se ainda mais instigante quando tomamos conhecimento das referências

que Bandeira fez a ele em cartas dos anos 1920:

[...] Tu recebestes o J'ai tué de Blaise Cendrars, que te enviei? O poeta é exatamente aquele

que tem o senso das realidades. [Para Ribeiro Couto, em 1923.]191

Está fazendo um calor safado. “Je suis dans ma chambre enfermé comme dans du beur-

re fondu” como diz Cendrars na deliciosa primeira plaquete [“Dimanche”] das Feuilles de

route, cujos primeiros exemplares apareceram ontem nas livrarias daqui. [Para Mário de

Andrade, a 31 de janeiro de 1925.]192

A respeito do seu artigo sobre o livro de Cendrars [sobre Feuilles de Route; o artigo foi

publicado na revista Estética de janeiro-março de 1925]: acho impertinente o seu ataque.

Você tem razão na distinção que faz entre poesia e lirismo. Mas tudo está indicando (título,

assunto, técnica) que o livro é reportagem lírica; impressões, instantâneos como os daquele

outro livro que ele chamou com tanta propriedade Kodak. A menos que você entenda negar

ao poeta o direito de fazer lirismo puro. Você pode no artigo aproveitar a ocasião, muito

oportuna, de apresentar a distinção entre lirismo e poesia, chamando para ela a atenção dos

poetas, mas sem envolver censura ao livro cujo caráter é lírico – reportagem lírica. E deli-

ciosa, hein? “Vivre dans la compagnie d’un gros bananier”, que coisa estupenda! Achei de

uma frescura de impressões! O seu Losango cáqui tem isso também. Não é a maior delícia

do lirismo? [Para Mário, a 16 de abril de 1925.]193

A expressão “frescura de impressões” diz respeito ao registro mental típico

da “reportagem lírica”, em que as cenas se revelam com naturalidade e simplicidade.

191 Todos os trechos citados de cartas de Bandeira para Ribeiro Couto foram extraídas do ARQUIVO RIBEIRO COUTO, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira – AMLB, Fundação Casa de Rui Barbosa. 192 ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 186. 193 Ibid., p. 198.

Trata-se aqui da mesma sensação de frescura dos poemas “Pensão familiar”, “Mangue”

e “Evocação de Recife”, que Manuel Bandeira incorporou muito bem a sua própria líri-

ca.

A 19 de setembro de 1925, Bandeira mostrou uma compreensão madura

tanto da poética de Oswald de Andrade quanto da de Cendrars: “Oswald mandou-me o

Pau-Brasil. Que capa f. da p.! Aquilo sim, é arte brasileira ‘saída dos discursos da câ-

mara, dos comentários dos jornais, etc.’ O que está dentro é o bom Oswald, empregando

a técnica de Kodak de Cendrars.”194 Fica claro que ele gosta justamente do que, no livro

de Oswald de Andrade, provém da poética cendrarsiana.

Por fim, outras declarações de apreço ao escritor franco-suíço:

“[...] A técnica de ambos [Oswald de Andrade e Sérgio Milliet] foi tirada do Cendrars [...].

[Para Mário, a 19 de setembro de 1925.]195

[...] Batuta é o Cendrars na Metaphysique. [Para Ribeiro Couto, em 1926.]

Passei o dia de ontem lendo a edição [do Jornal, outubro de 1927]. Achei excelente a

coisa do Cendrars. [Para Couto, a 17 de outubro de 1927.]

[...] o poeta, o poeta verdadeiro é o homem que possui o senso das realidades (Blaise Cen-

drars, J’ai tué) [...]. [Para Couto, a 19 de outubro de 1927.]

Por meio destes fragmentos, observamos que Bandeira tinha absoluta cons-

ciência do quanto, nos anos 1920, a obra cendrarsiana influenciou os poetas modernis-

tas. Mário, Oswald de Andrade e Sérgio Milliet são mencionados a respeito disso, além

de ele próprio demonstrar, com afirmações entusiasmadas, interesse pelo “senso das

realidades” e pelas “reportagens líricas” dos versos de Cendrars, o que mais parece, nas

194 ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 238. 195 Ibid., p. 241-242.

cartas, uma descrição da poesia bandeiriana. A frase “Nós derivamos todos de Apolli-

naire-Cendrars”, da carta de 11 de agosto de 1925, ainda nos serve como uma prova

material de comprovação dessa tese de influência.196

No entanto, a partir de uma leitura superficial, tal admiração quase não se

reflete em Libertinagem, sua obra que corresponde à fase mais vibrante da recepção

crítica acerca das técnicas criativas de Blaise Cendrars, criando uma dissonância entre o

que declara nas cartas e o que faz no campo da criação poética. Exceto no “Poema tira-

do de uma notícia de jornal”, parece-nos difícil encontrar a presença da obra do escritor

franco-suíço na poesia de Manuel Bandeira. Embora haja menos referências à poética

de Guillaume Apollinaine nos seus textos, observamos que, em se tratando do pensa-

mento apollinaireano a respeito da poesia e de técnicas desenvolvidas sobretudo em

Alcools, são muitas as evidências de uma influência direta nos poemas de Libertinagem,

ao contrário do que acontece em relação a Cendrars, cuja apropriação de procedimentos

construtivos da poesia revela-se, a princípio, muito tímido.

Em A poesia de Manuel Bandeira: humildade, paixão e morte, Davi Arri-

gucci Jr. sinaliza, a partir da crônica “Cendras daquela época”, que Bandeira fez uma

leitura a respeito da obra do poeta franco-suíço. Para Arrigucci, essa crônica apanha

“aspectos fundamentais, pois caracterizam o núcleo da poética que tanta importância

teve para a definição dos rumos da poesia moderna na década de 20: a matéria nova e

chocante, cujo caráter jornalístico e prosaico marcava o deslocamento da noção de poé-

tico”. Ainda segundo Davi Arrigucci, eram “[m]atéria e forma novas” de Blaise Cen-

drars que, “naqueles anos, [...] poderiam muito bem caracterizar o achado do próprio

196 Cf. ARQUIVO RIBEIRO COUTO, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira – AMLB, Fundação Casa de Rui Barbosa.

Bandeira no ‘Poema tirado de uma notícia de jornal’.”197 A análise é correta, formulan-

do brevemente a relação de influência de Cendrars na poética bandeiriana.

Torna-se necessário lembrar, porém, que a obra cendrarsiana revela, se ob-

servada diacronicamente, uma série de técnicas criativas relacionadas com os princípios

das vanguardas. Não houve propriamente qualquer adesão dele a uma escola específica

― futurismo, dadaísmos ou surrealismo ―, mas ele absorveu, em cada livro, aspectos

referentes a tais vanguardas à medida que os conteúdos programáticos delas eram reve-

lados através de manifestos e revistas. Se não se pode enquandrar a poesia de Cendrars

em qualquer um desses movimentos, é possível, no entanto, relacioná-la a todos eles, o

que era uma postura semelhante a de Guillaume Apollinaire e posteriormente assumida,

da mesma maneira, por Manuel Bandeira. De La Prose du Transsibérien a Feuilles de

Route a poética cendrarsiana mostra características diversas, ainda que sempre em busca

de processos criativos inovadores. Desse modo, seria necessário que se fizesse uma ava-

liação dos elementos que representam a influência de Blaise Cendrars nas obras dos

autores modernistas e, em nosso caso, verificar se Bandeira não se apropriou, com mais

freqüência, de elementos abandonados pela geração de 1922. Diante de tantas afirma-

ções entusiasmadas em sua correspondência, suspeitamos que tal influência possa se

revelar de outra maneira, ou seja, mediante a incorporação de elementos cendrarsianos

menos apreciados pelo grupo modernista ou através de acréscimos que modificariam os

componentes “tirados”, por Manuel Bandeira, da obra de Cendrars, dificultando, conse-

qüentemente, o reconhecimento da influência.

A maior parte dos modernistas apropriou-se das técnicas de Cendrars elabo-

radas em Dix-neuf Poémes Élastiques, de 1919; Anthologie Nègre, de 1922; e sobretudo

as que foram trabalhadas nos livros Kodak e Feuilles de Route I, Le Formose, ambos de

197 ARRIGUCCI JR., Davi. Bandeira lê Cendrars. A poesia de Manuel Bandeira: humildade, paixão e morte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 100.

1924. Entre os livros de 1919 e 1924, observamos algumas características recorrentes,

que posteriormente serão absorvidas pelos autores do modernismo brasileiro: a descri-

ção cinematográfica; a livre associação de imagens; a libertação dos “entraves” do pro-

cesso cognitivo na criação, em que se dava margem às interferências do subconsciente;

presença constante da mescla de gêneros ― o lírico e o épico, conforme Manuel Ban-

deira na crônica “Cendrars daquele tempo”; simplificação da matéria poética, extrema-

mente coloquial e prosaica, além da ironia e do poema-piada. Estas caraterísticas, po-

rém, também são comuns em diversas vanguardas, como o futurismo e o surrealismo,

bem como em relação ao esprit noveau de Guillaume Apollinaire. O que parece funda-

mental observar, nesse caso, é que todos os modernistas aproveitaram, à maneira cen-

drarsiana, a técnica da descrição cinematográfica, crua e simples, que abandona a ima-

ginação e a retórica. Como uma máquina Kodak, Blaise Cendrars registrava cenas do

cotidiano, com uma linguagem concisa, econômica, que não mais aciona recorrente-

mente o imaginário e a escrita lógico-racional, tão freqüentes nos processos criativos

mais tradicionais.

Em Libertinagem, existem apenas, entre tais elementos, dois aspectos não

muito freqüentes: a piada e a técnica de escrita cinematográfica, compostas com versos

e poemas curtos. Trata-se justamente dos elementos mais próximos de Oswald de An-

drade, o principal representante dessa tendência na literatura modernista. Já o interesse

de Manuel Bandeira fica concentrado na simplicidade da matéria poética, que também

pode ser encontrada nos poemas-piada e na escrita cinematográfica. Contudo, a desco-

berta da poesia do cotidiano não foi reproduzida da mesma forma por Bandeira: ele pre-

feriu, no lugar da técnica cinematográfica (muito fragmentada) a linguagem prosaica,

com uma sintaxe mais tradicional, mesmo quando absorvia elementos da língua falada.

Dessa maneira, Manuel Bandeira desviou-se da possível identificação da sua obra com a

de Cendrars, o que se deve, como já vimos, a uma “angústia da influência” relacionada

com a idéia da formação de grupos. Em razão disso, mesmo tendo imenso apego à natu-

ralidade e à simplicidade dos poemas cendrarsianos, que desenvolvia cenas realistas do

cotidiano, incorporando, com freqüência, notícias de jornal e trechos de conversas ― o

“senso das realidades” e as “reportagens líricas” ―, foi apenas em 1957 que Bandeira

considerou que podia confessar ter sido Cendrars quem levantou nele o gosto da poesia

do cotidiano.198

Em se tratando das características que não foram muito aproveitadas pelo

grupo de 1922, destaquemos o relevante título de um dos seus livros, Le Panama ou Les

Aventures des Mes Sept Oncles, de 1918. É inevitável não se pensar, logo de imediato,

nas personagens da vida de Manuel Bandeira incorporadas a seus poemas, como Aninha

Viegas, Totônio Rodrigues, seu avô (todos aparecem em “Evocação do Recife”) e Rosa

(“Vou-me embora pra Pasárgada”). Segundo Bandeira, dos seis aos dez anos de idade

ele construiu a sua mitologia, em que os seus tipos – “um Totônio Rodrigues, uma D.

Aninha Viegas, a preta Tomásia”, velha cozinheira da casa de seu avô ― revelavam,

para ele, “a mesma consistência heróica das personagens dos poemas homéricos”,199

assim como em Blaise Cendrars, que ouviu da própria mãe a história dos sete irmãos

dela, a qual ele transpõe para as aventuras do livro Le Panama, sem podermos calcular

o quanto desse poema é biográfico e histórico, bem como o quanto dele é pura criação

ou a mistura das duas coisas.

Nesse sentido, vale a pena destacar o início de Le Panama ou Les Aventures

des Mes Sept Oncles, pois as semelhanças com a primeira estrofe de “Evocação do Re-

cife” são muito representativas. Ambos desprezam a história oficial e buscam, por meio

da construção poética, compor versos a partir de um olhar subjetivo e pessoal:

198 EULÁLIO, op. cit., p. 460. 199 BANDEIRA, op. cit., 1954, p. 12.

Des livres

Il y a des livres qui parlent du Canal de Panama

Je ne sais pas ce que les journaux financiers

Quoique les bulletins de la Bourse soient notre prière quotidienne

Le Canal de Panama est intimement lié à mon enfance...200

A construção do canal do Panamá foi um dos maiores fracassos da III Re-

pública francesa, com escândalos políticos, falências e suicídios. Muitos franceses en-

volvidos no projeto ficaram arruinados, como o pai de Blaise Cendrars, homem de ne-

gócios que levava a família de cidade em cidade à procura de sucesso financeiro.201 De-

vido a tal malogro, deixaram o Panamá. Nessa mesma época, ainda criança, Cendrars

leu a respeito do terremoto de Lisboa de 1755, que muito o impressionou. Posteriormen-

te, concluiu, segundo os próprios versos do poema, “Que le crach du Panama est d’une

importance plus universelle/ Car il a bouleversé mon enfance”.202 E foi durante essa

constatação que a mãe de Blaise Cendrars lhe falou sobre a vida dos sete irmãos dela,

cujas aventuras faziam-nos aparecer com os heróis de Homero, assim como as persona-

gens da infância de Manuel Bandeira em “Evocação de Recife”. Além disso, os dois

poemas são longos, respondendo a uma narratividade que o conteúdo memorialístico

dos versos parece exigir, bem como o lado épico de suas personagens e, no caso de

Bandeira, da própria infância, repleta de aventuras e experiências.

Ainda podemos observar outro dado em comum, de fundamental importân-

cia: os processos e as técnicas de composição são muito semelhantes nesses dois poe-

200 CENDRARS, Blaise. Poesia em viagem. Tradução, seleção e notas de Liberto Cruz. Lisboa: Assírio & Alvim, 2005. p. 102. A tradução desses versos é: “Livros/ Há livros que falam do canal do Panamá/ Não sei o que dizem os catálogos das bibliotecas/ E não ouço os jornais financeiros/ Embora os boletins da Bolsa sejam a nossa oração quotidiana// O canal do Panamá está intimamente ligado à minha infância...” 201 Ibid., p. 105-107. 202 Cf. Ibid., p. 105. Tradução de Liberto Cruz: “Que o ‘Krach’ do Panamá é de uma importância mais universal/ Porque me perturbou a infância.”

mas. Há uma linguagem coloquial, prosaica e simples para narrar fatos do cotidiano;

algumas justaposições de imagens; incorporação de falas; elementos da cultura popular

e da tradição; verso livre tão marcante pela sua perfeição formal, além do equilíbrio

entre as manifestações do consciente e do inconsciente na criação, conforme o artigo de

Mário de Andrade. Em Libertinagem, é possível encontrar facilmente tais aspectos ou

alguns deles em quase todo o livro. Por fim, lembremos que na crônica “Cendrars da-

quele tempo”, Bandeira valoriza a capacidade de Blaise Cendrars confidenciar os senti-

mentos mais íntimos, o que é mais um dado marcante na obra desses dois autores.

Trata-se de uma série de apropriações de técnicas cendrarsianas que, na

maior parte dos casos, passou longe dos olhos da fortuna crítica. As razões disso se re-

lacionam com o fato de a poética de Blaise Cendrars ser comumente lida a partir de al-

gumas obras oswaldianas, como o seu primeiro manifesto e o livro Pau-brasil. Em fun-

ção disso, a única relação de influência já estabelecida do poeta franco-suíço na obra de

Bandeira só diz respeito ao “Poema tirado de uma notícia de jornal”, cujas característi-

cas o aproximam facilmente dos elementos mais típicos da apreciação dos modernistas

acerca da poesia de Cendrars, como demonstrou Davi Arrigucci.

5. LÍRICO E ANTILÍRICO: DUAS FORMAS DE FAZER O DRAMA

No poema “Pneumotórax”, há características que revelam marcas das técni-

cas criativas das vanguardas e do modernismo. A linguagem é econômica e simples, os

versos são livres, favorecendo a representação do diálogo entre o paciente e o médico.

Tudo é asséptico, como qualquer ambiente hospitalar:

PNEUMOTÓRAX

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.

A vida inteira que podia ter sido e que não foi.

Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:

– Diga trinta e três.

– Trinta e três... trinta e três... trinta e três...

– Respire.

– – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – –

– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.

– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?

– Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.203

Busca-se a mimese do estado de saúde do paciência (“Tosse, tosse, tosse”),

bem como da própria consulta (“― Diga trinta e três./ ―Trinta e três... trinta e três...

203 BANDEIRA, op. cit., 1998, p. 12.

trinta e três.../ ― Respire.). As reticências representam a suspensão do diálogo, sugerin-

do uma espera breve, enquanto o pontilhado simula não só a respiração como também a

espera pelo laudo médico. É um poema de intensa carga dramática, que toma uma ques-

tão do romantismo, a doença e a morte, para atualizá-la mediante a técnica de composi-

ção. Apesar de manter-se o tom confessional, a secura da cena e o profissionalismo do

médico, interrompido somente na última estrofe, também colaboram para atualizar um

lugar-comum.

Destaquemos um trecho do Itinerário de Pasárgada que nos mostra como a

consulta de Manuel Bandeira ao médico procedeu. Parece-nos interessante analisar Este

fragmento ao lado do poema, de modo a buscar as semelhanças e diferenças entre eles,

o que talvez lance alguns pontos de esclarecimento:

Quando caí doente em 1904, fiquei certo de morrer dentro de pouco tempo: a tubercu-

lose era ainda a “moléstia que não perdoa”. Mas fui vivendo, morre-não-morre, e em 1914

o dr. Bromer, médico-chefe do sanatório de Clavadel, tendo-lhe eu perguntado quantos a-

nos me restariam de vida, me respondeu assim: “O sr. tem lesões teoricamente incompatí-

veis com a vida; no entanto está sem bacilos, come bem, dorme bem, não apresenta em su-

ma nenhum sintoma alarmante. Pode viver cinco, dez, quinze anos... Quem poderá di-

zer?...”204

O relato da consulta ao doutor Bromer corresponde, parcialmente, ao que

lemos em “Pneumotórax”. O laudo médico revela a delicada saúde de Manuel Bandeira

e uma avaliação imprecisa sobre o seu futuro. O fato biográfico de 1904, passado em

Clavadel, tornou-se literatura em 1925, em Pouso Alto, talvez devido à visita que fez a

Ribeiro Couto.205 Na época, seu amigo e a mulher estavam tuberculosos e buscavam os

ares limpos da pacata cidade mineira. Foi a partir daí que Bandeira se tornou o conse- 204 BANDEIRA, op. cit., 1950, p. 150. 205 Na versão de “Pneumotórax” publicada na revista Terra roxa (São Paulo, v. 1, no 3, janeiro/março de 1925, p. 256), consta, ao fim do poema, “Manuel Bandeira � Janeiro de 1925 � Pouso Alto”.

lheiro do casal, dando-lhes muitas recomendações sobretudo a respeito do pneumotó-

rax.206 Essa situação parece ter remexido o drama que o levou a se internar em um sana-

tório da Suíça.

Ao comparar o relato com o poema, identificamos alguns dados interessan-

tes:

1.º) A primeira estrofe trata dos sintomas: febre, hemoptise, dispnéia (subs-

tituindo a expressão “serrotes asfixiantes” da primeira versão do poema, cujo sentido

metafórico não tinha consistência entre expressões técnicas), suores noturnos e tosse; a

segunda, do exame médico; por fim, na terceira, sabemos do laudo. Os únicos versos

que nos parecem efetivamente inventados, se levarmos em consideração o relato do

Itinerário de Pasárgada, são “A vida inteira que podia ter sido e não foi” e “― Não. A

única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”. Trata-se exatamente dos dois versos

mais marcantes do poema, os versos que saem do imaginário e não propriamente de um

registro factual transposto da sua biografia para a literatura;

2.º) No texto do Itinerário de Pasárgada observamos que o laudo médico

revela um teor positivo: “[...] no entanto está sem bacilos, come bem, dorme bem, não

apresenta em suma nenhum sintoma alarmante”, informação que foi omitida no poema

para dramatizá-lo. Isto quebra a expectativa do paciente, sempre esperançoso por uma

resposta estimulante como “Você sairá desta”, “Você terá uma boa recuperação”, “Você

ainda vai brincar com os seus netos”, entre outras. No lugar de “Pode viver cinco, dez,

quinze anos... Quem poderá dizer?” escreve “A única coisa a fazer é tocar um tango

206 Entre as cartas de Manuel Bandeira para Ribeiro Couto, podemos destacar os seguintes trechos: “Quem sabe mesmo se um pneumotórax parcial não pode ser tentado?” (São Bento, 26 de dezembro de 1923); “Não sei se o Vaccani fará alguma intervenção no preço. Falei por alto nisso e ele disse que bem podia ser feito a 50. Quanto à competência do colega: é a primeira autoridade em pneumotórax.” (Rio de Janeiro, 30 de junho de 1924), entre outras que a partir de 1925. Todas estas correspondências encontram-se no Arquivo Manuel Bandeira, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira – AMLB, Fundação Casa de Rui Barbosa.

argentino”, quebrando também com a expectativa devido à sua nuance. A resposta do

médico sobre a tentativa do pneumotórax corresponde, em certa medida, ao estigma do

anjo torto drummondiano, “Vai, Carlos, ser gauche na vida”207;

3.º) O que torna o poema moderno é a técnica nele aplicada. Nesse sentido,

Manuel Bandeira empreendeu uma ruptura interessante tanto na abordagem que faz

sobre o assunto quanto no que se refere à técnica para concebê-lo. Além disso, a assep-

sia da cena rompe com o lirismo tradicional, bem como a recusa de um tom confessio-

nal.

É significativo ainda que Manuel Bandeira tenha considerado haver um de-

sequilíbrio construtivo em “Pneumotórax”, como escreveu a Mário de Andrade, a 2 de

outubro de 1934. Sua avaliação sobre o referido poema revela-se, de algum modo, mal

elaborada, no sentido de não considerar que parte da qualidade do último verso se rela-

ciona ao conteúdo anterior, pois forma-se uma tensão entre a vida observada piedosa-

mente e a vida sob a perspectiva da ironia que caracteriza, em parte, sua poética moder-

nista. O fato de ele continuar pensando na criação do poema, quase dez anos depois de

sua primeira versão, demonstra que se trata de uma questão importante, bem como reve-

la sua obsessão pelo acabamento dos versos e pela unidade formal. Interessa-nos ainda

observar o uso da expressão “caverna” ― comum na época para designar a escavação

ulcerada de pulmão resultante da tuberculose avançada ― ligada ao que Bandeira acre-

dita ser um problema de construção do poema. Dessa maneira, a doença revela-se, em

sua obra, como uma metáfora para a imperfeição criativa. É mais um dado que nos per-

mite estreitar o gesto criador a uma forma de observar a literatura e concebê-la a partir

dos “conceitos” que envolviam sua doença:

207 ANDRADE, Carlos Drummond de. Poema de sete faces. Reunião (10 livros de poesia). 3.ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. p. 3.

[...] O que me enquizila no poema é que sob o ponto de vista da forma, da expressão, não há

a mesma qualidade do último verso no resto. Acho muita graça em gente que pensa que ver-

so livre é linha de menor resistência. Trabalhei muito nesse “Pneumotórax” e a caverna não

fechou. [...]208

Por outro lado, o fato de considerar que existe no poema uma “caverna” a-

berta mostra a absoluta harmonia entre o que está sendo discutido poeticamente e o mo-

do de fazê-lo. Isto Bandeira parece não ter entendido. Estruturalmente, o poema é mes-

mo desconjuntado, irregular, com brechas e lacunas. Não é, com certeza, um poema

acabado como “Evocação do Recife” ou “Vou-me embora pra Pasárgada”. A “caverna”

surge como metáfora da imperfeição, tal como a debilidade física. Há reentrâncias, cor-

tes, é um poema, de certa maneira, precário ou deficiente. Nesse caso, pode ser exami-

nado como um valor do texto, como a mancha de lama (então estrutural) que suja a vida

do poema, que mancha a sua plenitude. Voltamos portanto ao mesmo caso referente à

infância: a importância da doença, na poética bandeiriana, é maior como princípio cria-

tivo do que como recorrência temática. O elemento biográfico é canalizado novamente

como técnica criativa. A doença e a sujeira parecem, sob esta leitura, termos correlatos,

cavernas na superfície dos seus dias.

208 ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 590-591.

5. DOIS POEMAS ELÁSTICOS

5.1. “A REALIDADE E A IMAGEM”

Manuel Bandeira entrelaça, nos ensaios de De poetas e de poesia, suas apti-

dões crítica e artística. Interligar atividades, numa permutação riquíssima, foi um solo

fértil para quem esteve do lado de dentro da experiência poética e soube dosar astuta-

mente uma das características fundamentais da arte moderna: a reflexão sobre a lingua-

gem no interior da própria obra.

Interessa-nos principalmente, naquela reunião de ensaios, o texto “Poesia e

verso”, em que Bandeira deseja (sabendo de antemão das dificuldades ou impossibili-

dades de fazê-lo) definir a poesia. Sem a menor dúvida, uma tarefa complexa para quem

tinha ciência das múltiplas experimentações vanguardistas. Mas esta intenção disfarça,

na verdade, um percurso de questionamentos sobre a lírica e suas possibilidades criati-

vas. Vamos atentar, nesse sentido, para um breve comentário do autor a respeito do po-

ema “A realidade e a imagem”, de Belo belo, livro que foi publicado em 1948:

Pergunto eu agora: não haverá poesia quando realizo em palavras uma transposição da

realidade sem inventar nada, sem “fingir” nada? Como neste poema:

O arranha-céu sobe no ar puro que foi lavado pela chuva E desce refletido na poça de lama do pátio. Entre a realidade e a imagem, ao chão seco que as separa, Quatro pombas passeiam.

Poema que é uma simples reprodução por imitação, para empregar as velhas palavras de

Aristóteles.209

Bandeira lança dúvidas quanto à predominância de um modo único de “as-

similação” da poesia – o que implica, de maneira determinante, o sujeito na própria o-

bra. Para examinar o caso torna-se conveniente isolar fatos estilísticos em dois aspectos:

criação e escolha.

5.1.1. DOIS FATOS ESTILÍSTICOS

Na estilística de criação, movimentos contínuos de desassossego arrojam o

poeta em busca de elementos da realidade externa – que, na modernidade, muitas vezes

são fragmentados e periféricos. Este modo de expressão resulta de uma consciência he-

terogênea e desajustada, que corresponde ao espírito moderno. Para ficarmos próximos

de Bandeira e seus contemporâneos, Carlos Drummond de Andrade é um exemplo aca-

bado desse estado: revela uma condição humana individualíssima, de um sujeito esti-

lhaçado, estranho e estrangeiro ao mundo e a seus produtos, além de ser incapaz de to-

car a naturalidade das coisas e dos fatos. É um tipo de poesia que se vincula estritamen-

te a um eu conturbado pela dinâmica da vida e pela inaptidão de agir espontaneamente,

como muito bem esclarece Antonio Candido:

209 BANDEIRA, Manuel. Poesia e verso. De poetas e de poesia. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1954. p. 110-111. Coleção Cadernos de Cultura, 54.

A força poética de Drummond vem um pouco dessa falta de naturalida-

de, que distingue a sua obra, por exemplo, da de Manuel Bandeira. O modo

espontâneo com que este fala de si, dos seus hábitos, amores, família, ami-

gos, transformando qualquer assunto em poesia pelo simples fato de tocá-lo,

talvez fosse uma aspiração profunda de Drummond, para quem o eu é uma

espécie de pecado poético inevitável, em que precisa incorrer para criar, mas

que o horroriza à medida que o atrai. O constrangimento (que poderia tê-lo

encurralado no silêncio) só é vencido pela necessidade de tentar a expressão

libertadora, através da matéria indesejada.210

Carlos Drummond e Bandeira reagem diferentemente diante de questões

primordiais para a formação da moderna lírica brasileira, o que amplia e enriquece, de

perspectivas e mecanismos criativos, nossa literatura. O cotidiano é sempre um ponto de

interesse a observar, pois esclarece algumas desigualdades entre os fatos estilísticos

predominantes em cada um mas, sobretudo, por definir uma atitude contemporânea (que

traz uma série de marcas – estéticas, ideológicas, existenciais etc.) diante da realidade.

Drummond não conseguia agir naturalmente mesmo diante de coisas sim-

ples e corriqueiras. Os próprios versos e ritmos de muitos poemas mostram o desconcer-

to típico do gauche, que não compreende o mundo e se vê esmagado por ele. Há uma

tensão freqüente entre o individualismo necessário para a criação e o comprometimento

de olhar criticamente o mundo e a realidade. O intimismo, por isso, é sempre minado e

surpreendido por forças de insatisfação sobretudo no que diz respeito às manifestações

do eu, o pecado incontornável drummondiano segundo Candido.

O lugar bandeiriano já é o de quem comunica, em tom de conversa amisto-

sa, fatos cotidianos geralmente encobertos pelo olhar acostumado – incapaz de perceber

210 CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. Vários escritos. 3.a edição revista e ampli-ada. São Paulo: Duas Cidades, 1995. p. 113.

as mudanças no dia-a-dia por causa dos gestos repetidos e automatizados com a rotina.

Existe, nesse movimento criativo, a naturalidade de um artista que não se constrange

diante dos acontecimentos e do modo como os subjetiva. A individualidade do poeta

não é, para Bandeira, um motivo de culpa, nem de impedimento para tomar a realidade.

Desse modo, ele ainda gera um clima de intimidade e simplicidade em que se revela,

sem qualquer complexo, o eu no seio da própria obra. Para isso, o verso livre colabora

muitíssimo, pois requer uma espontaneidade muito condizente com a fala cotidiana e

terna, que o poeta de Pasárgada soube reconhecer e explorar notavelmente.

Uma outra possibilidade criativa é aquela em que, mediante as palavras, há

“[...] transposição da realidade sem inventar nada, sem ‘fingir’ nada [...]”, como escre-

veu em De poetas e de poesia. O verbo “fingir”, além do mais, talvez esteja se referindo

ao célebre poema “Autopsicografia”,211 de Fernando Pessoa, um fingidor por excelên-

cia. Bandeira então destaca outra modalidade criativa e coloca em evidência a poética

em que a função do artista está principalmente na escolha dos elementos incluídos na

“cena”. Embora o criador opere a seleção dos componentes da obra que concebe, ele

parece servir como reprodutor do que se revela para ele. Subverte, portanto, a norma do

sujeito lírico, que é costumeiramente predominante, inclusive entre os poemas bandeiri-

ano. Contudo, a subversão do lirismo não exclui a subjetividade.

Esse fato de escolha, no caso de Manuel Bandeira, relaciona-se à faculdade

de enquadrar uma cena que não se construiu a partir do sujeito e ainda se revelara aci-

dentalmente. A cena, melhor dizendo, foi parcialmente construída, então assemelha-se

muito ao exercício fotográfico e à sua etapa inicial, em que o campo deve ser limpo,

escrutinado, ciscado, para formar o retrato de acordo com as motivações de quem re-

211 “O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente.// E os que lêem o que escreve,/ Na dor lida sentem bem,/ Não as duas que ele teve,/ Mas só que eles não têm.// E assim nas calhas de roda/ Gira, a entreter a razão,/ Esse comboio de corda/ Que se cha-ma coração.”. Cf. PESSOA, Fernando. Autopsicografia. Obra poética. Seleção, organização e notas de Maria Aliete Galhoz. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. p. 98-99.

produz a imagem. O poema “A realidade e a imagem” restringe-se a uma imitação sem

maiores interferências do eu, que se omite da obra intencionalmente.

O poeta seletor e absconso ganhou fôlego, entre outros, nas Iluminations

(plainted plates) de Arthur Rimbaud, um dos principais condutos bandeirianos de aces-

so à modernidade e às vanguardas, conforme escreve a Mário de Andrade: “Cheguei à

feira modernista pelo expresso Verlaine–Rimbaud–Apollinaire.”212 Não esqueçamos de

que essas iluminações fixam retratos de um sujeito invalidado ou disperso, que estabe-

leceu uma renovação estética mediante sua oclusão ou invisibilidade (parcial ou quase

total). Bandeira soube colher muito bem tal experiência, para depois tecer “relatos” em

função de coisas e acontecimentos, numa fruição impecável de valores formais dos ob-

jetos ou eventos que o despertavam à criação.

É claro que os dois autores se aproximam, sobretudo, devido à pluralidade

criativa, manifesta em Rimbaud, entre outros, através de seu conhecidíssimo “Je est un

autre” (“É que Eu é um outro”).213 Uma interessante possibilidade de leitura dessa ima-

gem foi muito bem expressa por Eduardo Prado Coelho:

É talvez esta a grande marca da modernidade: escrever como exercício

de transformação, como experiência de morte, como aventura na alteridade.

Eu é um outro. Nenhum saber preexiste ao movimento da escrita que lhe dá

forma. Cada texto é um risco, uma forma de presença, um acto, uma partici-

pação, um delírio, um acontecimento. Tudo é único e irrepetível. Só assim

uma obra pode existir na sua alegria, como incêndio, clarão e cinza. Só as-

sim a literatura é para nós conhecimento, memória, destino e paixão.

212 ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 175. 213 COELHO, Eduardo Prado. Sobre o conceito de modernidade. A palavra sobre a palavra. Porto: Portu-calense, 1972. p. 17.

Onnestaldo de Pennafort aproxima, de modo sucinto e eficaz, os dois auto-

res em “Marginália à poética de Manuel Bandeira”:

Para terminar, não me furtarei a uma confissão: o prazer perverso que,

incidentemente, experimentei ao falar dos rigores técnicos, do requintado

formalismo poético daquele que primeiro entre nós desarticulou o verso re-

gular e primeiro gritou o lirismo absoluto, que visa mais ou menos a integrar

o poeta naquele estado de vidência prognosticado por Rimbaud.214

Destacamos, porém, a convergência mais significativa para o fim deste es-

tudo: um tipo de Rimbaud que, apesar de muitas diferenças entre eles, cruza com Mal-

larmé e seu caráter organizador e estruturador. O verbo “cruzar” (passar por) deve-se ao

fato de a lucidez do primeiro nunca estar isolada, pois tem a companhia de um sentido

de indeterminação de alguns elementos poéticos, assim como no poema de Manuel, em

que a precisão da cena coexiste com a indefinição dos termos “realidade” e “imagem”.

Não é demais lembrar que o rigor de ambos, Rimbaud e Bandeira, formou-se inicial-

mente da admiração pelos poetas parnasianos – e, no caso do brasileiro, também pelos

árcades mineiros, principalmente Cláudio Manuel da Costa; pelo romântico Castro Al-

ves, com seu rigor em torno de versos prosódicos ou prosaicos; e por Luís de Camões,

que sabia associar, com excelência, o vigor das imagens poéticas a uma adequada vibra-

ção sonora dos versos. Fique claro, entretanto, que relacionamos tais obras e autores

para destacar elementos modernizantes possivelmente determinantes, na poética bandei-

riana, para a constituição de sua lírica madura e de altíssima qualidade. Não se trata de

estabelecer origens ou fontes, pois estas se dissolvem ao longo do percurso criativo de

todo grande poeta, mas de firmar diálogos cujo produto se volta à elucidação de técnicas

214 PENAFFORT, Onestaldo de. Marginália à poética de Manuel Bandeira. In: BANDEIRA, op. cit.. V. I, p. 1205.

e procedimentos criativos. Interessa-me o “ovo” em si, mas não quem o botou primeiro

na História da Literatura, até mesmo porque o falseamento de uma técnica é um dos

jogos principais da arte moderna. É nesse sentido, aliás, que podemos encontrar uma

das características mais impressionantes do estilo bandeiriano: ele conta, de certo modo,

a trajetória de nossa literatura, pois soube colher, em cada autor, elementos modernizan-

tes da tradição que foram “atualizados” por ele. Para isso ainda contribuiu muitíssimo

seu exercício crítico – e também suas traduções da língua inglesa, francesa, espanhola

etc., pois “tomar” uma técnica emprestada é traduzi-la, interpretá-la à sua medida.

Rigor e construtividade são marcas primordiais da eficiência de “A realida-

de e a imagem”. Assegurado certamente disso, Bandeira o transcreve para João Cabral

de Melo Neto, modelo de organização rigorosa do verso e do livro ao seu paroxismo.

Verifiquemos na correspondência de 30 de julho de 1947, portanto, logo após a criação

do poema:

Desapareceu a euforia posterior ao golpe de outubro. Tanto os comunis-

tas como os reacionários metem nojo. O mesmo nojo que me inspira a lama

do famoso pátio que o Hildebrando de Góis não mandou calçar, apesar do

meu requerimento em verso.215 Mas no outro dia, chegando ao balcãozinho

do meu quarto de dormir, tive o meu momento de poesia e procurei fixá-lo

nestas quatro linhas que talvez agradem ao poeta-engenheiro:

A REALIDADE E A IMAGEM

O arranha-céu sobe no ar puro lavado pela chuva E desce refletido na poça de lama do pátio. Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as espera,216 Quatro pombas passeiam.217

215 Bandeira refere-se ao poema “Carta-poema”, publicado em Mafuá do malungo. Cf. BANDEIRA, op. cit., 1958, v. I, p. 530-531. 216 Nas versões posteriores do poema, substituiu-se “espera” por “separa”. 217 BANDEIRA, op. cit., 1958. p. 1436, carta 78. Grifo nosso.

João Cabral é o poeta-construtor por excelência, que negou interferências

externas em suas obras. Por isso os projetos que antecediam seus livros recebiam tama-

nha importância: delimitavam e esclareciam os elementos a serem empregados na cons-

trução dos poemas. O valor de uma obra de arte estava, para Cabral, nos altos níveis de

organização e controle que seu criador fosse capaz de gerar, bem como na beleza plásti-

ca e desprovida de sentimentalismos. As marcas de domínio sobre a obra revelam-se,

entre outros, por meio de características como simetria e equilíbrio. Daí proveio, aliás,

seu interesse pela arquitetura moderna, em que as formas regulares e geométricas são

realçadas, além de haver certa devoção à racionalidade e à luz a dissolver as faces ocul-

tas do espaço, do pensamento e, logicamente, da criação. Ele escolhe um lugar fixo, de

onde não quer se mover nem gerar mobilidades. Funde uma poética que busca um dos

pólos da criação, que é o construtivo, e deseja fazer de sua arte apenas trabalho e objeti-

vidade. É possível afirmar, diante dessas caracteríscas, que é o poeta mais anti-natural

de nossa literatura, aproximando-se, nesse sentido, de Carlos Drummond, a quem, por

sinal, dedicou A pedra do sono e O engenheiro.218

Diferentemente de João Cabral, Bandeira não buscava mecanismos rigoro-

sos e ordenadores com intuito de suprimir o acaso, o inconsciente, os lados intuitivo e

perceptivo,219 tanto que, na carta a Cabral, se refere à cena como um “momento de poe-

sia”. Casualidades podiam ser, para Bandeira, uma força desencadeadora do processo

criador, caracterizado por irregularidade, involuntarismo e inconstância, que integram a

realização de um vasto e tradicional grupo de poetas, músicos e pintores. O próprio au- 218 Cf. MELO NETO, João Cabral. Poesias completas: 1940-1965. 2.ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. p. 339; 373. 219 São de Cabral algumas destas frases: “Eu gostaria de criar como um matemático, sempre a partir de elementos racionais.”; “Eu impeço tanto quanto possível que o inconsciente governe minha mão.”. Cf. SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: a poesia do menos e outros ensaios cabralinos. 2ª edição, revis-ta e ampliada. Rio de Janeiro; São Paulo: Fundação Biblioteca Nacional; Topbooks; Universidade de Mogi das Cruzes, 1999. p. 328.

tor disse em entrevista: “Faço poema de uma vez, é só ter inspiração. Depois, entro na

fase de narcização do poema. Leio dez, quinze vezes, e quase sempre suprimo muita

coisa. Raramente acrescento alguma palavra.”220. A arte, na verdade, muitas vezes não

passa disto: construções sobre o acaso, que não dispensam, contudo, trabalho e dedica-

ção. Entendam “acaso”, nesse contexto, como “inspiração” (termo especializado, neces-

sário devido à sua importância na história da arte), pois esta não passa de um acaso e/ou

de uma emoção que pode gerar resultados reais. A inspiração deve ser entendida antes

como um estímulo, mas não como elemento nuclear de sustentação dos versos. Seu fun-

cionamento não está habilitado a isso: ela não é um elemento do poema, como verso,

ritmo, rima ou métrica. Não está na estrutura do texto, senão como força que impulsiona

a criação.

Pensamos que Bandeira e Cabral, apesar das diferenças, não devem habitar

os extremos de um globo que tem seu eixo na moderna lírica brasileira e seus pólos

constituído por inspiração e construção, que, inclusive, se opõem historicamente.221 Tra-

ta-se de uma contraposição inadequada devido à mobilidade de Bandeira, que transitava

por todas as regiões criativas conforme muito bem revela seu princípio abrangente de

composição. Mediante ela criou sob todos os valores artísticos, transitando de um pólo a

outro sem qualquer comprometimento fixo. A razão, aliás, de Bandeira ter enviado “A

realidade e a imagem” para Cabral está, entre outros, no fato de ali se afirmar uma outra

dimensão do discurso lírico, que está de acordo com vários princípios da poética cabra-

lina. A contraposição, portanto, tem seu cabimento apenas no que diz respeito a Cabral,

que de fato escolheu para si uma das extremidades e buscou fazer da racionalidade e da

220 BANDEIRA, Manuel. Entender muitos “desses poetas novos”. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 8 de julho de 1951. 221 Se analisadas diacronicamente, as obras de João Cabral não correspondem muitas vezes a seus ensaios e entrevistas, que talvez lhes servissem mais de palco para representação de uma personagem fascinante e polêmica, a assumir um espaço de rigidez e radicalidade. Caso o poeta vestisse, na elaboração dos versos, o mesmo papel inflexível e árido, teríamos, acredito, uma flauta seca, como a de “A fábula de Anfion”.

austeridade marcas de sua poética. Diríamos, além disso, que os fios de contato entre

eles importam tanto quanto as diferenças: ambos têm sentido de rigor e organização,

voltados para construção de versos mas também de livros. Existe, afora a variação de

medidas, um gosto pela escolha e seleção de palavras.

Porém, a omissão do sujeito bandeiriano é, muitas vezes, superficial, con-

forme podemos notar em “Pensão familiar”, de Libertinagem:

Jardim da pensãozinha burguesa.

Gatos espapaçados ao sol.

A tiririca sitia os canteiros chatos.

O sol acaba de crestar os gosmilhos que murcharam.

Os girassóis

amarelo!

resistem.

E as dálias, rechonchudas, plebéias, dominicais.

Um gatinho faz pipi.

Com gestos de garçom de restaurant-Palace

Encobre cuidadosamente a mijadinha.

Sai vibrando com elegância a patinha direita:

– É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.222

O poema revela uma série de elementos modernistas, como ironia, verso li-

vre, espacialização dos versos (conferir sexto, sétimo e oitavo versos), cotidiano e colo-

quialidade. Estas características, além do mais, marcam a intervenção do autor e de seu

olhar muito especial, porém o interesse criativo do poeta está voltado propriamente ao

acontecimento em si, que não tem nada de extraordinário. Por mais que o sujeito não

esteja neutro, o resultado dos versos leva-nos sempre para a cena e não para quem a 222 BANDEIRA, op. cit., 1998, p. 9.

reproduziu ou para sua subjetividade. Trata-se, logo, de um poeta-observador de casua-

lidades ao rés-do-chão, que se torna invisível para dar relevo ao próprio acontecimento.

É um poema, desse modo, que anda na direção de “A realidade e a imagem”, ainda que

a cena pareça, neste último, não depender do sujeito, preocupado em manipular somente

a construção mas não a realidade, ao contrário de “Pensão familiar”, cujo ponto de vista

do criador intervém bastante na cena por meio da ironia.

Já no poema “A realidade e a imagem”, a neutralidade efetiva-se, o que se

revela, entre outros, pela descrição simples e direta da cena. A situação descrita no po-

ema é quase documental, tamanha imparcialidade do eu poético diante da exposição do

fato, e com essa imparcialidade o próprio criador fabrica um tapume onde se esconde

para destacar somente a criação. Ao acobertar as manipulações do artista, essa omissão

do sujeito parece nos colocar em frente do próprio real no instante em que se manifes-

tou, fazendo parecer, a princípio, que não houve qualquer trabalho sobre ele. Os versos

aproximam-se, nesse sentido, do exercício fotográfico:

Das artes – com os gregos, os fazeres – é a fotografia talvez a que mais chame a aten-

ção para esse pólo, como se todo esforço, toda a efetividade do trabalho, pouco valesse face

à sensação do iconizado, da coisa apresentada à nossa vista, da imagem, conquanto aponte

para sua referência identificável. A parte mecânica e física dessa arte procura ocultar o em-

penho do fazer [conseqüentemente, de quem faz] e a aproxima de uma natureza, de uma es-

pécie de liberdade que dissimula o peso e o cansaço. A pintura, nesse sentido, é seu opos-

to.223

Mas o registro da cena não coíbe os ímpetos de produção de sentidos: o i-

maginário do leitor fica estimulado diante do plano de ocultamento do eu, pois os versos

“fingem” que está tudo dito e definido. A indeterminação pelos termos “realidade” e

223 SANTOS, Roberto Corrêa dos. Fotoescritura. Modos de saber, modos de adoecer. Belo Horinzonte: Editora da UFMG, 1999. p. 141.

“imagem” termina, porém, por gerar uma trama conceitual que não sustenta, conseqüen-

temente, esse “fingimento” e logo surgem interpretações sobre os diversos elementos da

cena que fazem parte dos versos. A indefinição dos conceitos “realidade” e “imagem”,

que têm variadas acepções nos dicionários e de acordo com áreas do conhecimento (psi-

cologia, filosofia, artes etc.), colabora então para o cenário de distensão das possibilida-

des interpretativas de quem lê. Com o emprego desses conceitos, mostram-se mais cla-

ramente os dedos e as provocações do criador, que forma uma lucidez indeterminada,

ou seja, a constituição de uma cena real (prédio, poça de lama, pombas) mas cujo fun-

damento está na indefinição dos conceitos “realidade” e “imagem”, que foram engen-

dradas pelo poeta. Tal orientação lúcida e indeterminada de alguma maneira “dirige” o

caráter poético do texto. Parece-nos inadequado, mesmo em um poema desse tipo ―

condensado e seco ―, que revela “complicações de elementos intelectuais”,224 classifi-

cá-lo a partir do conceito de “lirismo objetivo”, expressão usada com insegurança por

Sérgio Buarque de Holanda no artigo “Blaise Cendrars ― Kodak ― Documentaire”,

publicado em setembro de 1924 na revista Estética,225 e repetido por Davi Arrigucci Jr.

no ensaio “A beleza humilde e áspera”, uma análise sobre “O cacto” de Manuel Bandei-

ra226. Acreditamos que a indeterminação do poema (os conceitos “realidade” e “ima-

gem”) recorrem à subjetividade (múltiplas interpretações), tirando as forças da objetivi-

dade, mas não do caráter construtivo dos versos. Cremos que o mais interessante seria

lirismo construído.

Tais vocábulos e seu peso conceitual rompem o caráter imediato que a foto-

grafia ou o registro pode estabelecer, pois eles parecem detonar idéias e proporcionar

interpretações acerca da cena. É justamente nisso que se concentra a “deturpação” da

224 ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 356. 225 Cf. EULÁRIO, op. cit., p. 408: “A nova maneira do sr. Cendrars poderíamos caracterizar por um certo ‘objetivismo lírico’, se fosse permitida essa associação de palavra [...]”. 226 Cf. ARRIGUCCI JR., Davi. O cacto e as ruínas. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. p. 38.

técnica fotográfica e um dos pilares de sustentação dos versos deste poema. Recusamos

a cena como absoluta descrição do real sobretudo pelo fato de o texto ser um poema,

publicado num livro de poemas. Sua poeticidade está além da estilística, uma vez que

não existem deturpações ou transformações da cena, que seriam, aliás, uma característi-

ca determinante na arte moderna. Um dos pontos centrais que faz desse texto um poema

é o elemento conceitual que há nele. Nesse sentido o título revela-se fundamental, pois

não é acessório ou meramente sugestivo, metalingüístico, mas “insemina” a possibilida-

de de uma formulação teórica pela relação estrutural formada entre o título e o poema,

dado aliás bastante comum nas obras de Oswald de Andrade, inclusive em seu romance

Memórias sentimentais de João Miramar.227

Aventuremo-nos, nesta fase do estudo, a uma consideração nuclear: a tessi-

tura dos versos tem um efeito de elasticidade que vem da potencialidade conceitual do

poema. Em outras palavras: existe uma propriedade estrutural que gera uma ação de-

formadora do objeto (artístico), cuja suspensão lhe restitui a forma primitiva. Buscare-

mos, nas próximas linhas, permutar os movimentos de conservação e de alteração da

forma – a elasticidade bandeiriana – para discutir com mais intensidade a construção do

poema. Isso motivará dois tipos distintos de exame crítico: um analítico, que respeita a

conservação da forma, e outro interpretativo, que se lança à sua deformação. Nesse sen-

tido aproveitamos a técnica de composição bandeiriana em “A realidade e a imagem”

para estruturar nosso método de exame crítico. Acreditamos que, a partir disso, haverá

227 A técnica de estabelecer uma relação estrutural entre o título e o texto foi radicalizada em Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, dos quais destamos o primeiro poema (Cf. ANDRADE, Oswald de. Obras completas VII. Poesias reunidas. 4.a edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971, p. 157): amor humor

uma estrada mais segura ao esclarecimento de algumas dobras textuais de grande impor-

tância.

5.1.2. O PROCESSO DE CRIAÇÃO

Ainda que a cena pareça muitíssimo cotidiana, o “stand by” desperta a má-

quina criativa ao captar mudanças de freqüência na paisagem familiar. É como se pree-

xistisse ao estado de ânimo que impele Bandeira a elaborar seus versos alguma repeti-

ção de fatos – pequenos e rotineiros – que é abalada por novos componentes: aparecem

quatro pombas e uma poça de lama a refletir o arranha-céu. Estabelece-se, portanto,

mediante novos elementos, uma interferência na ordem das coisas, até então dominadas

pela sujeira do pátio e, conseqüentemente, pelo desprazer que a imundície cotidiana

gerava no autor.

Paul Valéry, que soube teorizar como poucos a gênese da criação, escreve,

em Variedades, um trecho muito relevante para o desenvolvimento da questão, e de rara

beleza também:

Um poeta é, a meu ver, um homem que, a partir de um incidente, sofre uma transforma-

ção oculta. Ele se afasta de seu estado normal de disponibilidade geral e vejo construir-se

nele um agente, um sistema vivo, produtor de versos. Como nos animais vemos de repente

manifestar-se um caçador hábil, um construtor de ninhos, um de pontes, um perfurador de

túneis e de galerias, vemos manifestar-se no homem esta ou aquela organização composta

que aplica suas funções em alguma obra determinada.228

228 VALÉRY, Paul. Poesia e pensamento abstrato. Variedades. Organização e introdução de João Ale-xandre Barbosa. Tradução de Maiza Martins de Siqueira. Posfácio de Aguinaldo Gonçalves. São Paulo: Iluminuras, 1999. p. 203.

O “stand by” seria correspondente ao faro caçador – ou instinto de caça –

que os animais possuem, mas, no poeta, o mecanismo é criado e desenvolvido artifici-

almente, mesmo quando se aproveita de elementos como instinto e sensibilidade. A “fa-

bricação” do poema reúne mecanismos artificiais visando a manter os mecanismos natu-

rais sob controle (relativo, obviamente), para servir-se deles na criação artística. O po-

tencial inconsciente não se manifesta com freqüência se o autor não dominar os instru-

mentos relativos à sua arte, pois esse controle sobre a criação gera uma naturalidade que

abre as “portas” para a chegada de sentimentos e imagens.

Como “stand by”, os olhos do poeta mobilizam-se, em busca da realização

artística, a partir dos deslocamentos mais tênues. O poema resulta, entre outros, do meio

como Bandeira manipula a cena através do aproveitamento da poça e do arranha-céu, e

da inserção dos termos conceituais “realidade” e “imagem”. Os conceitos ainda repre-

sentam a inserção de várias possibilidades interpretativas da cena: eles permitem o en-

gendramento de uma faceta narrativa, novelística para o leitor (portanto, mais interpre-

tativa). É interessante observar, em relação a isso, um trecho de correspondência de

Bandeira a Vinícius de Morais, datada em 31 de julho de 1947:

[...] O meu pátio continua uma imundície. Mas outro dia cheguei ao balcão-

zinho do meu quarto de dormir e vi esta coisa linda:

A REALIDADE E A IMAGEM

O arranha céu sobe no céu ar puro que foi lavado pela chuva E desce refletido na poça de lama do pátio. Entre a realidade e a imagem, ao chão seco que as separa, Quatro pombas passeiam.

Como em mim um poema nunca vem só, fiz ainda este:

POEMA PARA SANTA ROSA

Pousa na minha a tua mão, protonotária. O alexandrino, ainda que sem a cesura mediana, aborrece-me. Depois, eu mesmo já escrevi: Pousa a mão na minha testa, E Raimundo Correia: “Pousa aqui, etc.” É Pouso demais. Basta Pouso Alto. Tão distante e tão presente. Como uma reminiscência da infância. Pousa na minha a tua mão, protonotária. Gosto de “protonotária”. Me lembra meu pai. E pinta bem a quem eu quero. Sei que ela vai perguntar: – O que é protonotária? Responderei: – Protonotário é o dignitário da Cúria Romana que expede, nas

[grandes causas, os atos que os simples notários apostólicos [expedem nas pequenas.

E ela: – Será o Benedito? – Meu bem, minha ternura é um fato, mas não gosta de se mostrar: É dentuça e dissimulada. Santa Rosa me compreende. Pousa na minha a tua mão, protonotária.229

O poema, desse modo, também resulta do acaso e de sua manipulação, ou seja, é de-

corrente justamente do momento em que Bandeira surge no balcãozinho do apartamento e vislum-

bra as quatro pombas.

O cotidiano está, nestes versos, na dimensão da cena, que é composta por elementos

comuns e triviais (arranha-céu, poça de lama, pombas), num espaço urbano, sem efeitos extraordi-

nários. Acontece que o cotidiano não está no fato em si, pois este foge da normalidade: conforme

Bandeira escreveu para Vinícius de Moraes, “O meu pátio continua uma imundície. Mas outro dia

cheguei ao balcãozinho do meu quarto de dormir e vi esta coisa linda”, ou seja, a cena está na esfera

cotidiana porém ultrapassa a ordem normal das coisas, o que impele o poeta à criação. É uma poe-

sia menor, uma vez que deriva de um acontecimento sem importância e nada provocativo, tanto

que a provocação destes versos não vem da cena em si, mas da manipulação dos termos conceituais

229 Cf. INVENTÁRIO VINÍCIUS DE MORAIS. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1995.

“realidade” e “imagem”. O termo menor não tange o juízo de valor, mas antes a dimensão do que

anima o poeta a desenvolver suas obras. Por outro lado, como escreve Candido230, o poeta menor é

aquele que abandona os poemas de tipo épico, grandiosos pela extensão como pelo assunto – sempre

a destacar feitos extraordinários de um certo herói que representa, na maior parte das vezes, toda a

sua nação e seus valores. Passa-se ainda, com o tom menor, a se compor em formas mais breves,

que muitas vezes não desejam ultrapassar a transmissão genuína de um momento de “puro” liris-

mo. Talvez provenha daí a referência que Bandeira faz a Verlaine, integrante do expresso que o

levou até à feira modernista: o simbolista francês defendia o canto em tom mineur, investindo suas

obras com o maior lirismo possível.

Importante destacar ainda que Bandeira escolheu, na carta a Vinícius, o verbo “ver”

para referir-se ao poema “A realidade e a imagem” (“vi esta coisa linda”). Os verbos, conforme

Roland Barthes, penetram o ato de lado a lado.231 Podemos afirmar seguramente, diante disso, que

o espaço de representação já estava montado: o arranha-céu, a poça de lama e quatro pombas. A

tessitura do poema é antecedida por um gesto de escolha – a visão, que aproxima e enfoca os ele-

mentos provocadores de algum estímulo. Criam-se, posteriormente, relações entre as coisas obser-

vadas, o que se faz sobretudo pela preposição “entre”, bem como pelos termos “realidade” e “ima-

gem”. A cena revela um movimento maquinal – o clic do poeta, o instante de percepção –, assim

como resguarda a visão do autor, sua posição diante do mundo. Entendam a palavra “posição” sob

as diversas acepções que carrega: “arranjo”, “maneira”, “situação”.232 Qualquer cena incorpora

implicitamente uma maneira de ver, seja na fotografia, ou nas artes plásticas, ou mesmo na litera-

tura, que é a do criador escrutinando as coisas dentre uma série de outras possíveis.

Uma vez que os elementos constitutivos do poema foram submetidos a um

rigoroso método seletivo/criativo, é necessário analisá-los minuciosamente. A lente ana-

lítica, porém, deve ter um alcance focal que parte da microestrutura tendo em vista à

macroestrutura. Segundo Ruy Belo, “[...] o trabalho de Bandeira não é exercido tanto

sobre a palavra ou o verso como sobre o poema [...]. O próprio poeta afirmou, aliás den-

230 CANDIDO, Antonio. Notas de crítica literária – Sobre poesia. Textos de intervenção. Seleção, apre-sentações e notas de Vinicius Dantas. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002. p. 130. 231 BARTHES, Roland. O neutro. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 66. 232 Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio eletrônico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Lexikon Informática, 1999.

tro doutro contexto: ‘É que sou, perdoai-me, um poeta que só funciona dentro do poe-

ma’.”233. O trabalho de Bandeira, acreditamos, se exerce tanto num sentido quanto no

outro, mas palavras e versos estão sempre visando à coerência do poema, a formar, em

parte por isso, textos valiosos. Respeitando essa dinâmica, podemos analisar, sem qual-

quer dúvida da validez dos resultados, os verbos, uma vez que o movimento é funda-

mental.

Existem, no poema, quatro verbos, distribuídos cada qual em um dos versos:

“sobe” (v. 1), “desce” (v. 2), “separa” (v. 3), “passeiam” (v. 4). Ainda existe “lavado”

(v. 1), mas esse verbo age em função mais de qualificar e estabelecer um estado do que

de revelar uma ação, além de abrandar o peso do arranha-céu. Os dois primeiros indi-

cam ações opostas e complementares (criam continuidade), enquanto o terceiro mani-

festa-se abstratamente – mais do que indicar um deslocamento, tem função de situar as

“quatro pombas” na cena, uma vez que o verbo “separar” consolida a preposição “en-

tre”, reafirmando a localização das aves. Então o termo recebe um valor espacial subja-

cente. Depois, o último verbo, “passeiam”, carrega, semanticamente, um movimento

muito mais brando do que os dois primeiros – “sobe”, “desce” –, o que está de acordo

com os valores atribuídos de costume à pomba (paz e ingenuidade). A suavidade do

verbo “passear” contribui para equilibrar horizontalmente as pombas na cena, ainda que

de maneira parcial. Isto aumenta a estabilidade da imagem, pois é um verbo que, neste

contexto, colabora para delimitar o espaço e circunscrever o movimento. Mediante a

conjunção da subida do prédio e da descida da imagem é possível observar o equilíbrio

da cena: o arranha-céu “sobe” no “ar puro” e “desce refletido na poça de lama”, as pom-

bas “passeiam” – funcionam como o núcleo de todo o poema e sustêm as energias con-

trárias dos movimentos de verticalidade (subir e descer). As pombas são o “núcleo” do

233 BELO, Ruy. Manuel Bandeira em prosa e verso; Manuel Bandeira ou como um poeta se faz. Sendas da poesia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002. p. 227.

poema, que mantêm a tensão das variadas forças, não à toa, pois, entre a “realidade” e a

“imagem”, são elas quem estão a gerar a sedução do texto. O equilíbrio fica nítido pelo

fato de a preposição “entre’ relacionar-se ao que está ao lado das aves – à esquerda e à

direita – mas também pelo que está descendo e subindo. Certamente devido à essa sime-

tria, que pode ser observada sob outras perspectivas, Bandeira enviou os versos a João

Cabral, o “poeta-engenheiro”, tendo a certeza de sua aceitação: é um poema simétrico,

de imensa concisão, sem que o eu lírico se manifeste explicitamente; há espacialidade e

arquitetura (dois elementos muito desenvolvidos pela poética cabralina), além de uma

questão conceitual, que articula dois movimentos e cria um modo especial de discutir a

linguagem literária.

O caráter mecânico da obra revela-se mais pelos estados de alerta e de âni-

mo do autor. O processo criativo é operado de modo semelhante ao de uma máquina de

captação ou de registro, que, quando em “stand by”, pode ser ativada por algum encon-

tro acidental de coisas. Desse modo, a mecânica está sobretudo na condição pré-

criativa, que antecede o instante mesmo de apreensão da poesia. Ela parece também

com um alarme infra-vermelho, hábil para responder com seu grito às freqüências alte-

radoras do espaço “vigiado”. Importa diante desses fatos buscar a razão de os compo-

nentes de “A realidade e a imagem” ativarem o mecanismo de reação do poeta, o que se

torna viável ao ampliar a lente de exame para um espaço mais heterogêneo, envolvendo

cartas, crônicas, entrevistas, reportagens e outros poemas. Há, nesse procedimento críti-

co, uma tendência à análise da gestação da obra, o que estava em jogo no momento da

criação, enfim, trata-se de elementos acessórios reveladores de uma poética.

Um dos gestos iniciais sempre parte do inconsciente, que está muito inte-

grado mesmo à criação, conforme pudemos observar na carta de Bandeira a Vinicius,

quando afirma: “em mim um poema nunca vem só”. É como se um poema destravasse

as engrenagens do criador, que, neste caso, gera poemas quase sempre diversos: um é

longo, outro curto; um tem o sujeito objetivado, noutro o sujeito se revela explicitamen-

te etc. Bandeira então parece, no instante mesmo criativo, ativar integralmente suas fer-

ramentas, artes e ofícios, que talvez pela força da vontade e do impulso realizador ti-

nham de ser manuseadas, mesmo em função de outro texto. Isto revela um processo de

criação e um processo mental.

No “Poema para Santa Rosa” observamos os versos se fazendo, numa rota de constru-

ção/desconstrução. O primeiro verso (“Pousa na minha a tua mão, protonotária”) gera, de imedia-

to, reflexão sobre sua métrica, conforme podemos notar no segundo verso (“O alexandrino, ainda

que sem a cesura mediana, aborrece-me”), enfim, o primeiro (construção) é negado pelo segundo

(desconstrução). Existe em todo o poema a experimentação do melhor modo de criá-lo. Como es-

creveu Ruy Belo sobre “Poema para Santa Rosa”, “A poesia, num caso como este, é realmente ‘a

linguagem em que se diz o que não se pode dizer’”234. Trata-se de uma articulação de conceitos

literários, mas de maneira muito distinta da de “A realidade e a imagem”, pois neste não existem

interferências do sujeito, é conciso, sintético, equilibrado, não há “mistura” e variedade de elemen-

tos, porém há um ponto de contato fundamental: são metapoemas, que discutem/revelam a criação

poética.

A cena daquela manhã provoca o sentimento de prazer (“vi esta coisa linda”) em ra-

zão do desprazer costumeiro da imundície (“meu pátio continua uma imundície”). Como escreveu

Paul Valéry, a poesia está relacionada, sem dúvida, a qualquer estado anterior à escrita e à críti-

ca,235 que, nesse poema, liga-se ao pátio para onde a residência de Bandeira estava voltada.236 O

local é descrito em dois poemas de Mafuá de malungo, “Carta-poema” e “Petição ao prefeito”; ain-

da temos o conhecidíssimo “O bicho”, de Belo belo, que mostra o desconforto social do autor frente

à condição indigna de um homem em busca de comida. Nele a imundície ultrapassa os problemas

contidos em outros poemas sobre o pátio, uma vez que este se torna, em “O bicho”, o palco de re-

234 BELO, op. cit., p. 230. 235 VALÉRY, Paul. Je disais quelquefois a Stéphane Mallarmé... Variété III. 44.a edição. Paris: Gallimard, 1949. p. 18. 236 Trata-se do edifício São Miguel, na avenida Beira-Mar 406, apartamento 409. Bandeira começou a residir nesse endereço em 1944.

presentação da condição indigna de um mendigo. O pátio ganha uma outra dimensão, mais incô-

moda, certamente.

São, no total, quatro poemas circulando em torno da sujeira e da lama do pátio:

CARTA-POEMA

Excelentíssimo Prefeito

Senhor Hildebrando de Góis,

Permiti que, rendido o preito

A que fazeis jus por quem sois,

Um poeta já sexagenário,

Que não tem outra aspiração

Senão viver de seu salário

Na sua limpa solidão,

Peça vistoria e visita

A este pátio para onde dá

O apartamento que ele habita

No Castelo há dois anos já.

É um pátio, mas é via pública,

E estando ainda por calçar,

Faz a vergonha da República

Junto à Avenida Beira Mar!

Indiferentes ao capricho

Das posturas municipais,

A ele jogam todo o seu lixo

Os moradores sem quintais.

Que imundície! Tripas de peixe,

Cascas de fruta e ovo, papéis...

Não é natural que me queixe?

Meu Prefeito, vinde e vereis!

Quando chove, o chão vira lama:

São atoleiros, lodaçais,

Que disputam a palma à fama

Das velhas maremas letais!

A um distinto amigo europeu

Disse eu: – Não é no Paraguai

Que fica o Grande Chaco, este é o

Grande Chaco! Senão, olhai!

Excelentíssimo Prefeito

Hildebrando Araújo de Góis,

A quem humilde rendo preito,

Por serdes vós, senhor, quem sois:

Mandai calçar a via pública

Que, sendo um vasto lagamar,

Faz vergonha da República

Junto à Avenida Beira Mar! 237

E:

PETIÇÃO AO PREFEITO

Governador desta cidade,

Excelentíssimo Prefeito

General Mendes de Morais,

Ouça o que digo, e tenho que há de

Mover-se-lhe o sensível peito

Dado às coisas municipais!

Há no interior do quarteirão

Formado pelas avenidas

Antônio Carlos, Beira-Mar,

Wilson e Calógeras, tão

Bem traçadas e bem construídas,

Um pântano que é de amargar!

Não suponha que eu exagero,

237 BANDEIRA, op. cit., 1958, p. 530-531.

Excelência: é a verdade pura,

Sem nenhum véu de fantasia.

Já o pintei uma vez: não quero

Fabricar mais literatura

Sobre tamanha porcaria!

Reporters, a quem nada escapa,

Escreveram sueltos diversos

Sobre esse foco de infecção.

Fotógrafos bateram chapa...

Coisas melhores que os meus versos

De velho poeta solteirão!

Fiz, por sanear-se esta marema,

Uma carta desesperada

Ao seu ilustre antecessor.

Uma carta em forma de poema:

O homem saiu sem fazer nada...

Pelo martírio do Senhor,

Ponha o pátio, insigne Prefeito,

Limpo como o olhar de inocência,

Limpo como – feita a ressalva

Da muita atenção e respeito

Devidos a Vossa Excelência –

Sua excelentíssima calva! 238

A imundície, em “O bicho”, tem muito mais força que nos versos de “Carta-poema” e

“Petição ao prefeito”. Nestes últimos são características primordiais o descritivismo, a linguagem

jornalística, informativa, que revelam as coisas de maneira mais superficial, sem muita transgres-

são ou transformação no nível da linguagem. São diferentes de “A realidade e imagem”, em que as

coisas não são propriamente o que parecem, pois forma-se um jogo conceitual bastante elaborado e

sofisticado. Neste sentido podemos dizer que “A realidade e a imagem” é um texto mais literário,

mais criativo, uma vez que não está em jogo uma questão circunstancial (a sujeira do pátio). Nos

poemas de Mafuá do malungo sobre o pátio a imundície é o ponto central juntamente pela tentativa

de solucionar o problema mediante um apelo poético. Além disso, em “O bicho” e “A realidade e a

imagem” os versos foram criados a partir de fatos que ultrapassam em alguma medida o cotidiano

daquele espaço, enquanto em “Carta-poema” e “Petição ao prefeito” revela-se a continuidade de

um estado, de uma situação.

Mediante todos estes poemas sobre o pátio podemos observar a existência de elemen-

tos-surpresa em “A realidade e a imagem” que estimulam o interior do aparelho psíquico. A even-

tualidade então pode catalisar a elaboração dos versos, quando mundo externo (as coisas) e mundo

interno (desprazer, prazer, vontades) parecem fundir-se em torno das mesmas energias. A reunião

dos componentes formadores da cena suspende o incômodo e a negatividade da imundície do pátio,

cuja força centralizadora é momentaneamente interrompida em virtude da beleza, conforme nota-

mos na carta para Vinícius de Morais (“O meu pátio continua uma imundície. Mas outro dia che-

guei ao balcãozinho do meu quarto de dormir e vi esta coisa linda”). Reúne-se então o acaso à luci-

dez e à manipulação dos elementos; o acidental da cena abre espaço para Bandeira realizar seu

poema. Existe, porém, outra questão a ser destacada: o sentimento de prazer relacionado aos versos

talvez venha das leituras que fez dos escritos rimbaudianos, nos quais podemos encontrar imagens

de algo subindo pelo ar e/ou descendo por uma poça. Lançamos uma mera hipótese, uma vez que

não é possível, sob os documentos avaliados, confirmar esta suposição.

À medida em que os versos se mostram simples, igualmente revelam bastante sofisti-

cação. Ainda que se tratem de uma descrição, esta não é explicativa. As pombas, no poema, ofere- 238 Ibid., p. 537-538.

cem um conteúdo simbólico, tornam-se o elemento norteador da produção de sentidos, porém estão

inseridas na própria descrição do real, e coíbem, desse modo, quaisquer ímpetos de interpretação.

Existe portanto um movimento de distensão e retração do imaginário – a elasticidade – ativado por

aquilo que se localiza entre a realidade e a imagem. O fato de a poesia não ser costumeiramente

mera reprodução do real, mas de um estado de ânimo do autor, incute a dúvida. É como se uma

coisa não estabelecesse poeticamente um estado fixo, conforme escreve Goethe: “Não se pode fugir

ao mundo de modo mais seguro do que pela arte; nenhuma forma de prender-se a ele é mais segura

do que ela.”239

O acréscimo bandeiriano à cena a que ele assiste do balcãozinho de seu a-partamento está, principalmente, na inserção de dois termos de significados múltiplos, “realidade” e “imagem”. Eles permitem o desencadeamento de uma série de reflexões sobre o fazer poético e a própria linguagem, lançando algum mistério (ou, melhor, qua-tro pombas de indefinição). O valor de uma obra na modernidade quase sempre parece nascer justamente da tensão exercida entre elementos que esclarecem e outros que obs-curecem as coisas tais como se apresentam diante do homem comum.

Dois substantivos são adjetivados (“ar puro” e “chão seco”), o que não foge do equilí-

brio do poema, pois ambos representam elementos complementares, tal como a realidade e a ima-

gem. O equilíbrio do poema revela-se, entre outros, por essa conjugação: as expressões que se o-

põem espacial ou conceitualmente recebem o mesmo peso lingüístico. De um lado, coloca-se um

verso que está ultra-aderido à realidade pura, fluida (“O arranha céu sobe no ar puro lavado pela

chuva”), assepsia que não é apenas do ar, porém ainda do estilo arquitetônico do prédio, enfim, esse

tipo de edificação sugere abandono de ornamentos, simplicidade, tem componentes simétricos e

geométricos; de outro, a “marca” da lama reflete o real em uma matéria de propriedades muito

distintas das do verso anterior (“E desce refletido na poça de lama do pátio”), pois a lama é suja,

impura. Indispensável ainda lembrar que a lama é retomada nove poemas depois, nos versos de

“Nova poética”, sendo de extrema importância relacioná-los:

Vou lançar a teoria do poeta sórdido.

Poeta sórdido:

Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.

239 GOETHE apud MERQUIOR, José Guilherme. A astúcia da mímese: ensaios sobre lírica. 2.a edição. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 16.

Vai um sujeito.

Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem

[engomada, e na primeira esquina passa um caminhão,

[salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama:

É a vida.

O poema deve ser como a nódoa no brim:

Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.

Sei que a poesia é também orvalho.

Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem

[por cento e as amadas que envelheceram sem maldade.240

Um dos sinais de desconforto, a lama (e com ela a sujeira), torna-se combustível que

impulsiona a criação como idéia de corrupção de um ritmo monótono e filisteu. Aqui a sujeira é

uma coisa desejada, contrária à limpeza estéril do parnasianismo. A poça de lama de “A realidade e

a imagem” imprime uma marca ofensiva e ameaçadora ao arranha-céu, que sobe na pureza do céu

recém-lavado. Não existem somente movimentos opostos, o de subir (ar) e o de descer (chão), mas

também qualidades inversas, a da limpeza e a da sujeira.

Importante nos referirmos ao adjetivo “imundo” na correspondência de Ban-

deira para Vinícius de Morais, termo que também está em “O bicho”. Os versos sobre o

homem-bicho agregam o desconforto da sujeira com o social, numa configuração total

do desagrado. Aqui temos uma outra configuração e resultado provém da sujeira do

pátio. É um outro elemento denunciador do incômodo deste tipo de sujeira:

240 BANDEIRA, op. cit., 1958, v. I, p. 205.

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

A própria estruturação do livro e o conjunto de poemas que o caracteriza nos permi-

tem inter-relacionar alguns signos de sua poesia. É um tipo de exame que não abandona a coerência

ou a lógica da própria obra.

Em torno de “A realidade e a imagem”, a crítica teceu diálogos inter-

semióticos. Aguinaldo José Gonçalves destaca, em seu estudo, relações entre literatura e

cinema, em que observamos uma análise no sentido de revelar o modo como a imagem

foi construída. Recorre-se, porém, à sucessão de elementos que passam pela câmera,

enquanto não conseguimos apreender, mediante o poema, qualquer espécie de pista ca-

paz de sustentar tais conclusões. Fala-se, por exemplo, em “desenrolar da cena”, “técni-

cas cinematográficas”.241 Mas acontece que, em literatura, a simultaneidade torna-se

241 GONÇALVES, Aguinaldo José. Laokoon revisitado. Relações homológicas entre texto e imagem. São Paulo: Edusp, 1994. p. 268; 269. Grifo nosso.

incontornável por mais eficiente que sejam os recursos e a técnica do autor. O que exis-

te, principalmente, é a maior tensão do espaço e o modo como os elementos podem ser

articulados. Mais do que uma cena o que existe é uma imagem (poético-fotográfica),

que está construída principalmente entre a realidade e a imagem.

No que diz respeito ao movimento interpretativo, é sempre possível desen-

volvê-lo desde que o leitor tenha vontade de lançar-se a ele. Nem todo texto, porém,

fornece condições para desenvolvê-lo. O querer interpretativo surge, obviamente, de

uma energia fabricada entre a obra artística e seu expectador, que é uma força de sedu-

ção. Caso contrário, a arte não propiciava o desejo de falar dela, mas apenas o de aban-

doná-la depois de algumas tentativas. É como se os elementos discursivos não assegu-

rassem as hipóteses produzidas, como se as interpretações escorressem das mãos do

leitor. Alguns poemas, desse modo, até aceitam interpretações – e muitas vezes a desen-

cadeiam, como em nosso caso –, mas eles próprios não conseguem ou não querem, pos-

teriormente, sustentá-las. Muitas vezes, inclusive, o próprio movimento de retração e

contração é que estabelece a graça e a sedução de uma obra, como uma parte de um

corpo entrevista pelos cortes da roupa. É um jogo de mostrar-se e esconder-se, em que

não existem ganhadores e perdedores, mas sim o prazer da leitura, o vigor da sedução e

a fome diante do que não se revela de todo. Tais textos suportam e requerem – por se-

rem mais adequados – movimentos analíticos, que desvelam o mecanismo mesmo que

aqui se buscou revelar e que também pretendemos observar no “Poema tirado de uma

notícia de jornal”.

5.2. “POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL”

São os anúncios e as várias que vendem um semanário, não as novidades batidas do noticiário oficial. (...) // As máquinas re-troavam em tempo de três por quatro. Rebate, rebate, rebate. Então, se ele [Cuprani, o impressor] ficasse paralítico e nin-guém soubesse pará-las, elas continuariam a retroar sempre imprimindo mais e mais e para cima e para baixo. Artes do demo tudo aquilo.

Ulisses, James Joyce

Um dos traços fundamentais da obra de Manuel Bandeira, a partir de Liber-

tinagem (1930), é a busca de poesia nos elementos não-poéticos, aparentemente inapro-

veitáveis pelas ferramentas da arte literária. Na formação de um lirismo que quer ser

libertação, parecem-nos fundamentais as relações entre a matéria textual, técnicas jorna-

lísticas e a escrita poética, ou seja, o desentranhar a poesia “dos minérios em que ela jaz

sepultada”,242 sob as formas da realidade torpe e bruta dos noticiários. Nesse caso, o

desentranhar é um processo de penetração na coisa ― buscando dar a ela um conteúdo

e uma forma poética ―, em que a poesia pode ser extraída e deslocada (“O lirismo difí-

cil e pungente dos bêbados” – “Poética”, Libertinagem) das “gangas” da imprensa, um

dos espaços de onde ainda pouco se esperava apreender o entusiasmo requerido pela

criação artística, embora devidamente diverso, inovador e prosaico. Desse modo, o pe-

riodismo mostrava, sob certo ponto de vista, uma antecipação modernizante em relação

às artes, fato explicado pela vinculação dos meios de comunicação impressa aos ele-

mentos da modernidade, como a fotografia – interferindo na parte gráfica e no próprio

texto –, além de o noticiário se interessar pelo cotidiano e pelas classes sociais que até

então uma considerável parcela de intelectuais brasileiros deixava à margem de suas

obras.

As estruturas dos periódicos e dos textos tornaram-se mais dinâmicas com o

surgimento das técnicas de reprodução, refletindo os movimentos socioeconômicos e

culturais de um país que se modernizava e se urbanizava. Diante disso, algumas catego-

rias textuais ganharam espaço enquanto outras o perderam, como foi o caso dos folhe-

242 BANDEIRA, op. cit., 1958, v. II, p. 284.

tins, que se encontravam, estaticamente, no rodapé das páginas e que exigiam uma dis-

ponibilidade do leitor não concebida pela vida moderna243.

A partir daí, a crônica começou a ganhar maior importância na imprensa,

mas também sofreu transformações metodológicas e, conseqüentemente, em sua própria

estrutura. Segundo Brito Broca, a “crônica deixava de se fazer entre quatro paredes de

um gabinete tranqüilo, para ir buscar na rua, na vida agitada da cidade, o seu conteúdo

humano.”244 Tal mudança pode ser associada ao processo de criação de artistas moder-

nos, como Bandeira, que também foi buscar o “conteúdo humano” nas ruas e nos espa-

ços de freqüentação popular, conforme a crônica “O bar”, de Flauta de papel:

No Bar Nacional tiveram início alguns episódios surrealistas que narrei

nas Crônicas da Província do Brasil. No Bar Nacional me relumeou de re-

pente a célula de muito poema de Libertinagem e da Estrela da Manhã.245

Um ponto de divergência entre a poética bandeiriana e a imprensa estaria no

fato desta não ter cedido à linguagem coloquial, uma vez que o texto jornalístico se

manteve impessoal e com certo rigor normativo apesar de todas as inovações. Por isso,

em “Evocação do Recife”, o sujeito poético afirma: “A vida não me chegava pelos jor-

nais nem pelos livros/ Vinha da boca do povo (...)”246.

243 Isso pode ser constatado no prefácio de Sonhos d’ouro, de José de Alencar, já em 1872: “Em um tempo em que não mais se pode ler, pois o ímpeto da vida mal consente folhear o livro, que à noite deixou de ser novidade e caiu em voga; no meio desse turbi-lhão que nos arrasta, que vinha fazer uma obra séria e repetida?// Perca pois a crítica esse costume em que está de exigir, em cada romance que lhe dão, um poema. (...)// Não se prepara um banquete para viajantes de caminho de ferro, que almoçam a minuto, de relógio na mão, entre dois guinchos da locomotiva”. Cf. ALENCAR, José. Obra com-pleta. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1959, v. I, p. 694. Grifo nosso. 244 BROCA, Brito. Uma etapa da imprensa literária no Brasil, Letras e Artes, Rio de Janeiro, 8 de junho de 1954. p. 7. 245 BANDEIRA, op. cit., v. II, p. 612. 246 Ibid., p. 24-26. Grifo nosso.

No entanto, sucedendo essa negação da linguagem jornalística (e também da

literária), encontra-se o “Poema tirado de uma notícia de jornal”, no qual o texto poéti-

co, mais do que criado a partir de um apontamento jornalístico, é “tirado” – extraído,

desentranhado – da notícia. A seqüência de dois poemas tão distintos esteticamente

destaca a liberdade criativa bandeiriana e realça os contrastes de sua poesia, fazendo

valer ainda mais a afirmação encontrada no Itinerário de Pasárgada que sublinha a im-

portância de se observar a ordem em que o poeta dispõe os textos em seus livros.247

O estilo do “Poema tirado de uma notícia de jornal” é singelo, infiltrado de

uma coloquialidade que ao se associar ao movimento existencial dá ao texto seu estatuto

de poesia, acrescendo a isso a disposição dos versos. A ironia estabelecida pela contra-

posição de ações é determinante para a configuração de uma camada espessa de estra-

nhamento, surpresa e espanto: primeiro João Gostoso bebe, canta e dança, praticando

atividades ao menos aparentemente divertidas, para então se atirar na Lagoa Rodrigo de

Freitas e morrer afogado. Nesse momento de espanto, o leitor se encerra em sua atitude

de escuta para o que é mais tocante no texto: a tragicidade da vida:

POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL

João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da

[Babilônia num barracão sem número

Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro

Bebeu

Cantou

Dançou

Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.248

247 “Nunca obedeci à ordem cronológica na publicação de meus versos em livro”. Cf. BANDEIRA, op. cit., v. II, p. 83. 248 BANDEIRA, op. cit., 1998, p. 28.

Vale destacar que o “estilo humilde”249 se revela sutilmente pela apropria-

ção da variação lingüística relacionada com o verbo “chegar”: para complemento do

verbo, o poeta opta pela combinação da preposição “em” com o artigo “o” (“chegou no

bar”) em vez da preposição “a” junta ao artigo “o”, como recomenda a gramática nor-

mativa, fato que nos mostra a adesão momentânea do autor à língua do povo, o mesmo

acontecendo em relação ao verbo “atirar” (na Lagoa/ à Lagoa). São esses desvios míni-

mos, sutis e imprevistos que enriquecem o texto e também lhe dão uma parte de seu

caráter artístico, já que provoca um desvio da língua escrita oficial, embora esse vestí-

gio relacionado a um falar “gostoso” não suprima a gravidade discursiva desse tipo de

notícia.

Em Flauta de papel, de 1957, a crônica “Suicida” só não é um plano piloto

do “Poema tirado de uma notícia de jornal” porque este foi escrito anteriormente, em

1925:

Um homem inteligente e discreto tem que se matar como quem não quer.

Ele tem que organizar uma espécie de sabotage muito bem disfarçada para

que os próprios amigos não percebam nada. (...)

A sabotage é fácil e prática quando o candidato ao suicídio tem uma des-

sas doenças como a tuberculose, a diabetes, a dilatação da aorta, no decurso

das quais uma simples quebra de regime pode trazer uma agravação fatal.

(...) Daí a meses em vez de uma notícia escandalosa de um tiro no peito,

primeira página com clichê, virá na quinta página o aviso fúnebre por onde

os amigos e relações do falecido saberão que “vítima de pertinaz moléstia,

etc.”. Ninguém indaga da vida sentimental de um sujeito que morreu vítima

de pertinaz moléstia.250

249 Expressão de Davi Arrigucci Jr., no livro Humildade, paixão e morte. 250 BANDEIRA, op. cit., 1958, v. II, p. 322. Grifo nosso.

Explica-se aí, parcialmente, o porquê de Manuel Bandeira ter optado por

construir um cenário com imprecisões. Acreditamos que o poeta intentava provocar, no

leitor, indagações referentes não só à morte de João Gostoso, mas também ao próprio

personagem. Assim como em “A realidade e a imagem”, o “Poema tirado de uma notí-

cia de jornal” tem uma elasticidade que movimenta a análise e a interpretação dos seus

versos. Se é possível afirmar que João Gostoso é um malandro, em função da maneira

como está caracterizado, logo no início do poema sabemos que se trata de um “carrega-

dor de feira-livre”, provocando uma tensão com a idéia de malandragem. Por outro lado,

se os leitores concluem que João Gostoso se suicidou num arroubo talvez sentimental, o

verbo “atirar” não consolida tal interpretação, pois ele igualmente podia ter se atirado à

lagoa para divertir-se, assim como bebeu, cantou e dançou. A ambigüidade do poema é

instaurada, por fim, mediante o último verbo do texto, “se atirou”, que pode relativizar

as ações de ter bebido, cantado e dançado. Há uma realização discreta tanto da cena

quanto da estrutura do poema.

Na crônica “Suicidas”, Bandeira ainda fala que o noticiário sentimental de

suicídios se tornou “uma verdadeira epidemia”, havendo o aproveitamento de um cos-

tume que atingia uma considerável parcela da sociedade. Além disso, podemos estabe-

lecer aqui um outro ponto de contato de Bandeira com Blaise Cendrars e Guillaume

Apolinnaire, cujos livros revelam um interesse permanente com a linguagem dos notici-

ários e sua presença na vida moderna, como em “Zone”, de Alcools,251 e vários textos

dos Dix-neuf poèmes élastiques, de Cendrars, como “Journal”, “Contrastes”, “Atelier”,

“Mardi-gras”, “Crépitments”, entre outros, 252 embora a técnica de tais poemas em rela-

251 APOLLINAIRE, op. cit., 1965, p. 40. 252 Cf. CENDRARS, Blaise. Dix-neuf poèmes élastiques. Avec un portrait de l’auteur par Modigliani. Paris: Au Sans Pareil, 1919.

ção ao de Manuel Bandeira é significativamente distinta. A principal semelhança entre

eles se encontra no uso dos versos livres e no tom simples e coloquial da linguagem

poética.

No “Poema tirado de uma notícia de jornal”, a técnica noticiosa já é identi-

ficada pelo tom impessoal do poema, como foi comentado antes, sem que o sujeito poé-

tico interfira, direta e explicitamente, na mensagem. No discurso sequer há indícios da

“presença” de um emissor do fato jornalístico, o que não impossibilita a transmissão de

uma certa sentimentalidade e de um fascínio ao leitor: os elementos “dramáticos” estão

camuflados nas estratégias “narrativas”, e, sobretudo, no próprio fato. Assim, a “cena”

vai sendo construída de um modo que parece tão fascinante quanto a ficção, sem des-

vencilhar-se da verossimilhança em qualquer momento.

Outro poeta, Murilo Mendes, no poema “Panorama” (Poemas, 1930), soube

apreender essa mesma verossimilhança a partir do emprego do verbo “vir”: “Num re-

canto da terra uma mulher loura/ enforca-se e vem no jornal.”253 A linguagem é desvia-

da do caráter realista pela ambigüidade do verbo “vir”, pois nesse caso ele se refere à

notícia que está retratando o suicídio da mulher mas também há a sugestão de que a

própria mulher está, fisicamente – em carne e osso –, nas folhas de jornal. Em ambos os

textos, portanto, interessa a formação de uma verossimilhança capaz de atrair o leitor e

tornar o poema tão sedutor quanto à notícia, embora vazada numa linguagem estranha,

ativada por recursos específicos.

Em busca dessa realidade fascinante, Manuel Bandeira tira um poema da

notícia, preservando parcialmente a técnica que constituía o relato de suicídios, ainda

que faça questão de enunciá-lo como texto literário já no título, pelo uso da palavra “po-

ema”. O título participa fundamentalmente na estruturação deste poema: revela a mistu-

253 MENDES, Mendes. Poesia completa e prosa. Organização, preparação do texto e notas de Luciana Stegagno Picchio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 98. Grifo nosso.

ra de fios desta malha poética. Desse modo, o autor não pretende negar o caráter poético

de sua criação nem eliminar sua referencialidade, que é a notícia jornalística e seus ele-

mentos extratextuais, existindo a convergência das duas possibilidades: o leitor é dire-

cionado para os elementos lingüísticos e poemáticos (a disposição dos versos, a escolha

das palavras, a ordenação de idéias, a liberdade métrica etc.) e também para os elemen-

tos extralingüísticos (a profissão de João Gostoso, o meio em que vivia etc.). Nessa

bipolaridade, está uma parte do que há de mais interessante no texto e que nos revela

uma característica freqüente na poética bandeiriana: sob o estilo singelo esconde-se um

corte sofisticado, um tecido lingüístico de poucos ornamentos mas de um intrincamento

de recursos expressivos que requer atenção e sensibilidade de quem o lê. Além disso, as

lacunas informativas possibilitam a interferência do leitor, livre para fantasiar os moti-

vos da morte de João Gostoso.

Esse poema de teor noticioso também está relacionado com o gosto pelo vi-

és popularesco exigido pelos leitores de jornais, ávidos e cada vez mais numerosos, cuja

formação cultural era insuficiente para a compreensão de mais complexas questões polí-

tico-econômico-administrativas. Voltados para os elementos mais pragmáticos, havia

como “isca”, portanto, o registro de casos referentes à desordem e à perturbação exis-

tencial de indivíduos pertencentes aos cenários do maior prosaísmo. Assim garantia-se a

vendagem de periódicos, fato importantíssimo a ser lembrando, uma vez que a imprensa

se lançou ao mercado na virada do século e tornou-se uma grande empresa254, expan-

dindo seus interesses além dos acontecimentos políticos tão vinculados ao periodismo,

que servia a candidatos e a sistemas de governo. Já em 3 de outubro de 1884, em O Pa-

iz, no terceiro número do novo jornal carioca, Pinheiro Chagas escreveu que “a necessi-

254 Conferir, a respeito da imprensa e suas práticas culturais, o livro Revistas em revista, de Ana Luiza Martins (Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos da República. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Fapesp; Imprensa Oficial do Estado, 2001, p. 16-31). Esta obra analisa os periódicos nos tempos de República (1890-1922), em São Paulo.

dade da leitura de jornais é cada vez maior, e o público ávido de comoções e de escân-

dalos devora todos os jornais que se publicam”,255 o que ainda se mantém. Desse modo,

Bandeira tinha à disposição um grande número de notícias que terá servido como base

para seu poema e que repercute nele, como esta de 1924:

INGERIU LISOL

Por motivos ainda ignorados da polícia o operário Amadeu José de An-

drade, de 22 anos, residente à rua Paula Brito n.o 56, ingeriu uma forte dose

de lisol, vindo a falecer quando recebia socorros no posto central da Assis-

tência.

O cadáver do tresloucado rapaz foi removido para o necrotério, de onde, após o exame

médico legal, foi dado à sepultura no cemitério S. Francisco Xavier.256

Ainda lembramos que essas comoções e o aproveitamento dos escândalos

pela imprensa também estavam relacionados com um psicologismo cuja intenção era

atrair o leitor por meio de sua própria realidade, retratando acontecimentos em que os

“personagens” eram os cidadãos comuns com os quais o leitor pudesse se identificar.

Mas, comparado aos elementos desse tipo de texto jornalístico, falta ao “Po-

ema tirada de uma notícia de jornal” a especificação temporal, pois a morte se dá em

“Uma noite”. Dessa maneira, o texto ganha indeterminação no tempo, exibindo um ca-

ráter mais amplo, menos circunscrito – conseqüentemente, a notícia deixa de ser notícia.

Essa atemporalidade provoca a sobreposição da tragédia humana à tragédia de João

Gostoso, gerando a partir disso uma possível identificação de qualquer leitor com o

“personagem”, uma vez que o elemento (do noticiário) comum a todo ser humano – o

movimento trágico da vida – ganha destaque. Ainda acrescemos a esse processo maior

255 O Paiz, Rio de Janeiro, 3 de outubro de 1884, ano I, n.o 3. 256 O Paiz, Rio de Janeiro, 2 de junho de 1924, ano XL, n.o 14.500, p. 7.

de identificação a igual falta de informação referente à idade do carregador de feira-

livre, dado que seria imprescindível na notícia de jornal.

Outra indeterminação a ser notada relaciona-se com a publicação desse po-

ema em “O mês modernista”,257 quando o primeiro verso apresentava diferenças frente

à sua última versão258: naquele, o trecho “num barracão sem número” estava entre pa-

rênteses, seguido de ponto final. Isso nos mostra que o poeta, posteriormente, decidiu-se

pelo nivelamento das indicativas de localização social e espacial do sujeito com a elimi-

nação da pontuação, que também interrompia o fluxo do verso longo e de todo o poema,

então com vírgulas e pontos finais que encerravam os períodos e as orações. Desse mo-

do, deu-se à oração acessória, à margem das demais informações, o mesmo estatuto das

outras referências (“carregador de feira livre” e “morava no morro da Babilônia”). As-

sim, Bandeira acentuou um elemento importante para a constituição do caráter de João

Gostoso e intensificou a dramatização da cena, visto que o fato de ele morar em um

barracão sem número, sem localização específica, também conota a falta de identidade

própria, o que é reforçado pela igual falta de sobrenome, sendo reconhecido como “Jo-

ão”, seu primeiro nome, associado ao apelido, “Gostoso”. No entanto, o efeito dessa

imprecisão de dados termina sendo a abertura para a configuração de um tipo: o malan-

dro carioca dos morros, figura geralmente amável aos olhos do povo. A essa caracteri-

zação ainda se somam as ações anteriores à morte: “bebeu”, “cantou”, “dançou”.

Identificamos no poema, portanto, três importantes elementos extraídos, ha-

bilmente, de uma fração da cultura e da realidade urbana do Brasil:

257 “Que é, ou antes, que foi ‘O Mês Modernista’? Trata-se de uma série de textos que, sob esse título, seis escritores modernistas (dois de São Paulo, dois do Rio de Janeiro e dois de Belo Horizonte) publicaram alternadamente, de dezembro de 1925 a janeiro de 1926, no jornal A Noite, desta cidade”. Cf. SENNA, op. cit., p. 7. 258 Esta “última” versão pode ser encontrada na edição crítica organizada por Giulia Lanciani. Cf. BANDEIRA, op. cit., 1998, p. 28.

1.o) O “personagem-tipo”, que sugere a figura do malandro, também encon-

trada em outros textos da moderna literatura brasileira, como é o caso de Macunaíma;

2.o) A favela, espaço característico da geografia cultural carioca e de outros

centros urbanos brasileiros, que contribuiu de modo significativo para nossa formação

sociocultural, concentrando valores, costumes e mitos: o samba, o negro, o mulato, a

bandidagem, a cordialidade, a pobreza, a paisagem privilegiada, entre outras caracterís-

ticas;

3.o) A própria notícia sensacionalista de jornal, cuja leitura faz parte de um

hábito comum à nossa sociedade. (Também não podemos deixar de relacionar esse gos-

to por ações e escândalos com o desejo de leitura dos romances folhetinescos do século

XIX, os quais encantavam mais pelas peripécias e aventuras do que pela qualidade lite-

rária.)

Reunindo sinteticamente elementos pertencentes à formação sociocultural

brasileira, e revelando a poesia que existe nos fatos, como propôs Oswald de Andrade

em seu “Manifesto da poesia pau-brasil”,259 Bandeira não fugiu do projeto de formação

de uma arte nacional, baseada na busca por valores e características brasileiros. Apro-

priou-se para isso do jornalismo, tendo elaborado uma linguagem técnica e condensada,

conforme a crônica “Suicidas”, de Flauta de papel:

Uma das cousas que me causam mais horror e mais repugnância na vida

é a exploração sentimental em torno dos suicidas. Um homem obscuro pode

matar-se com relativa discrição: basta que não explique nada. No dia se-

guinte o noticiário policial dos jornais dirá, se se trata de uma infeliz mu-

lherzinha do Mangue (...). Seis linhas no máximo e pronto.260

259 ANDRADE, Oswald. Obras completas VI. Do pau-brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifestos, teses de concursos e ensaios. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970, v. VI, p. 5; 9. 260 BANDEIRA, op. cit., 1998, p. 321. Grifo nosso.

Como no “Poema tirado de uma notícia de jornal”: são seis versos no má-

ximo e pronto.

Além disso, ainda podemos associar esse modo discreto de morrer ao “estilo

humilde” do poeta, uma vez que o silêncio e a relativa discrição desse tipo de suicidas

estão relacionados ao desinteresse por uma “vaidade póstuma”, desejada pelos que es-

crevem “cartas romanceadas”. A simplicidade e a discrição de João Gostoso se diferen-

cia, por exemplo, da atitude dos suicidas que, como em um poema de Carlos Drum-

mond de Andrade, tomam “todas as providências/ para o remorso das amadas” (“Necro-

lógio dos desiludidos do amor”)261 e do descaso do jornal, que pode trazer uma expres-

são como “infeliz mulherzinha do Mangue”, cujo sufixo “-zinha” traz uma marca de-

preciativa.

Na mesma crônica, o autor especifica o tipo de suicida de que se “ocupa”:

Bem sei que há os suicidas cabotinos, os que se matam um pouco por

vaidade póstuma, os que escrevem cartas romanceadas. Não é destes que me

ocupo. Me ocupo daqueles cujo silêncio digno está a pedir o silêncio para

um gesto atrás do qual a sensibilidade mais elementar sente um mundo de

sofrimentos que ninguém poderá medir.262

Desse modo, o poeta não pretendia dar ao poema o tom sensacionalista das

notícias de “suicidas cabotinos”, embora em sua primeira aparição, na seção “O mês

modernista”, o texto tenha sido explorado nesse sentido. Na apresentação da coluna –

“O mês modernista que ia ser futurista” –, escrita pelo próprio diretor do periódico, Vi-

riato Correia, percebemos que não havia a intenção de compreender a arte moderna,

261 ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e prosa. 5.a edição. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979, p. 115. 262 BANDEIRA, op. cit., v. II, 1958, p. 322.

mas de dar ao público um caso “chocantemente sensacional”, bem como desmoralizar o

grupo de poetas modernos que ali escreveriam263:

A falar a verdade, de Futurismo [referência ao Modernismo] não entendemos nada. (...)

Mas isso não tem importância. Não é nosso gosto que deve predominar. Num jornal

como A Noite o que predomina é o gosto público, ou melhor, a sensação.

A verdade é que o Futurismo é hoje um caso chocantemente sensacional. Uns procla-

mam-no, aplaudem-no, veneram-no, outros agridem, o repudiam, o guerreiam e o arrasam.

Outros ainda acham-lhe uma infinita graça...264

O “Poema tirado de uma notícia de jornal” recebe uma carga de sensaciona-

lismo e um tom espalhafatoso também pretendidos pelo poeta, que ainda o publicou no

dia 31 de dezembro de 1925, ou seja, numa data em que se comemora, com esperança e

alegria as novas expectativas para o ano novo e a comemoração por ter se passado mais

uma cumprido mais uma etapa da vida. Nesse sentido, o texto se aproxima da própria

notícia de onde foi desentranhado, o que, posteriormente – quando publicado em livro –

, desfez-se. Além disso, nessa seção, há outro aspecto que aproxima Bandeira da im-

prensa, conforme se lê no Itinerário de Pasárgada: “A uma das minhas quatro ou cinco

crônicas [publicadas em “O mês modernista”] chamei ‘Bife à moda da casa’ (...)”265.

Referindo-se aos seus textos desse modo, Bandeira indica que a poesia se dilui na crôni-

ca devido ao fato de serem “relatos” do dia-a-dia.

Devemos lembrar ainda que “Bife à moda da casa” era um prato em que

“entrava de um tudo: era uma mixórdia, que entupia”. O processo de liberdade criativa

de Bandeira apresentava construções e organizações em que estavam presentes estrutu-

263 Os autores que colaboraram para O mês modernista são: Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Milli-et, Manuel Bandeira, Martins de Almeida, Mário de Andrade e Prudente de Morais Neto. 264 SENNA, op. cit, 1994, p. 29-30. Grifo nosso. 265 BANDEIRA, op. cit., 1958, v. II, p. 76.

ras politemática e poliprodutiva com diversas modalidades textuais misturadas e muitos

enredos distintos (“uma mixórdia”), como em um jornal.

A partir de um diálogo intenso com a imprensa, Manuel Bandeira conseguiu

“desentranhar” poemas que estão relacionados com presente e a realidade nacional, bem

como se apropriou de métodos de composição próprios do jornalismo, dinamizado com

as técnicas de reprodução. Houve, nesse sentido, um notável modo de integração à arte

modernista e vanguardista. O poeta também se aproveitou do espaço de periódicos para

refletir sobre sua poética, nas crônicas, de modo a consolidar o seu projeto literário.

Lembremos ainda que o poeta divulgou seus textos pela imprensa, fez experiências

(como a de “Bife à moda da casa”) e observou a recepção do público, podendo amadu-

recer os seus poemas antes da publicação em livro. Assim, podemos afirmar que a im-

prensa não só teve seus temas e técnicas aproveitados para a criação literária de Bandei-

ra, mas também participou ativamente do seu processo de criação.

6. APÊNDICE

POEMA VERSO ANOTAÇÕES DE

MANUEL

BANDEIRA

OBSERVAÇÕES

Não sei dançar “Influencia de Mario

de Andrade [sic]”.

Escrito próximo ao

título.

Camelôs “O cavalheiro

chega em casa e

diz: Meu filho,

vai buscar um

pedaço de bana-

na para eu acen-

der o charuto.

Naturalmente o

menino pensará:

Pa-pai está ma-

lu...”

“ouvido”.

Pneumotórax “O senhor tem

uma escavação

no pulmão es-

querdo e o pul-

mão direito infil-

trado”.

“ouvido do médico

em Clavadel”.

Mangue “Eh cagira mia

pai/ Eh cagira”.

“ouvido do Ovalle”.

“Gente que vive

porque é tei-

mosa”.

“ouvido não me lem-

bro de quem”.

“Muitas palmei-

ras se suicidaram

porque não vivi-

am num píncaro

azulado”.

“Alberto de Olivei-

ra”.

Manuel Bandeira dia-

loga com um verso do

poema “Aspiração”,

de Alberto de Olivei-

ra: “Ser palmeira!

Existir num paraíso

azulado”.

“O menino Jesus

― Quem sois

tu?/ O preto ―

Eu sou aquele

preto principá do

centro do cafan-

ge do fundo do

rebolo. Quem

sois tu?/ O meni-

no Jesus ― Eu

sou o fio da Vir-

ge Maria./ O

preto ― Enton-

ces como é fio

dessa senhora,

obedeço./ O me-

nino Jesus ―

Entonces cuma

você obedece,

reze aqui um ter-

ceto pr’esse e-

xerço vê”.

“ouvido de meu pai,

que assistiu à repre-

sentação no sertão de

Pernambuco”.

“És mulher/ És

mulher e na-da

mais”.

“samba carioca”. Os versos “És mulher/

És mulher e nada

mais” do samba cari-

oca devem ter se ins-

pirado no poema “À

minha noiva”, de Ar-

tur Azevedo: “Eu sou

homem ― nada me-

nos,/ Tu és mulher ―

nada mais;”.

Belém do Pará “Bembelelém”. “Bão balabão”. Firma-se um diálogo

implícito entre os

significantes “Bão

balabão” e “Bembele-

lém”, que têm a mes-

ma aliteração (o fo-

nema “b” que se repe-

te) e ainda recebem a-

centuação na última

sílaba. Os ver-sos de

“Bão balabão” per-

tencem ao cancioneiro

popular e também

foram aproveitados,

por Manuel Bandeira,

no poema “Rondó do

capitão”, de Lira dos

cinqüent’-anos

(1940).

Evocação do Recife “Ovos frescos e

baratos/ Dez o-

vos por uma pa-

taca”.

“ouvido”. Importante notar que

há outros versos, nes-

te poema, que foram

ti-rados de uma brin-

cadeira (“Coelho sai!/

Não sai!”) e de uma

cantiga (“Roseira dá-

me uma rosa/ Cravei-

ro dá-me um botão”),

embora não tenham

sido marcados pelo

autor, talvez por se-

rem muito populares.

Poema tirado de “Lido em jornal”. Anotado acima do

uma notícia de jor-

nal

título.

Teresa O verso inicial,

“A primeira vez

que vi Tereas”, e

parte do nono,

“Deus voltou a se

mover sobre a

face das águas”.

“Castro Alves e Bi-

blia [sic]”.

O primeiro verso e

parte do nono estão

sublinhados. À mar-

gem direita, abaixo do

título, Bandeira fez

sua anotação, que se

trata provavelmente

de uma referência aos

trechos sublinhados.

“Teresa”, de Manuel

Bandeira, dialoga

com “O adeus de Te-

resa”, de Castro Al-

ves. O diálogo com a

Bíblia surge no último

verso, “E o espírito de

Deus voltou a se mo-

ver sobre a face das

águas”, relacionado a

Gê-nesis 1, 2 (“A

terra era sem forma e

vazia; havia trevas

sobre a face do abis-

mo, e o Espírito de

Deus pairava sobre a

face das águas”).

Lenda brasileira “Balbina, cozinheira

do Couto em Pouso

Alto”.

A anotação encontra-

se na parte inferior da

página. Supomos que

Balbina tenha falado

“Cussaruim”, expres-

são anotada ao lado

do título. Importante

lembrar da “Reporta-

gem literária”, cedida

a Paulo Mendes

Campos: Bandeira diz

então que a lenda foi

encontrada na obra de

algum folclorista,

depois “ajeitada” ao

Bentinho Jararaca,

personagem que ele

próprio inventou.266

O major “O major mor-

reu./ Reformado./

Veterano da

guerra do Para-

guai.”

“Plagiado de um

conto de meu amigo

Honorio [sic] Bica-

lho. Bicalho publi-

cou uma novela inti-

tulada Na Vida, sob

o pseudônimo Rufi-

no Fialho”.

Anotação à margem

direita, do tí-tulo ao

verso três.

Cunhatã (“Com voz detrás

da garganta, a

boquinha tuíra:/

― Minha mãe (a

madrasta) estava

costurando/ Dis-

se vai ver se tem

fogo/ Eu soprei

eu soprei eu so-

prei não vi fogo”.

“ouvido”. Há dois traços, seme-

lhantes a parênteses,

que abrangem os ver-

sos sete e dez. Na

altura do verso oito

está escrito “ouvido”,

fazendo referência aos

versos aqui reprodu-

zidos. A mesma ano-

tação repete-se duas

266 CAMPOS, Paulo Mendes. Reportagem literária. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1959. V. I, p. 1167.

vezes, na altura dos

versos 14 e 15, onde

estão sublinhadas as

expressões “a coisa

que roda” e “Ai Zi-

zus”, respectivamen-

te.

Andorinha “― ‘Passei o dia

à toa, à toa!’”

“ouvido não me lem-

bro de quem”.

Profundamente “O advérbio ‘pro-

fundamente’, que a-

parece no título e

mais duas vezes no

poema [sic] foi pla-

giado de uma poesia

de Edmundo Lys”.

Noturno da parada

Amorim

“Subitamente o

coronel ficou

transportado e

começou a gritar:

― ‘Je vois des

anges! Je vois

des anges!’ ― E

deixou-se escor-

regar sentado

pela escada abai-

xo”.

“As palavras e o

gesto do coronel são

autênticas [sic] e me

foram contados pelo

violoncelista”.

Anotação acima do

título, que se refere,

obviamente, à segun-

da estrofe. O violon-

celista é Emil Simon e

o fato se deu em Bru-

xelas.

Na boca “Dorinha meu

amor...”

“samba de carnaval”. “Dorinha, meu amor”

foi gravada orginal-

mente na Odeon, em

1928, por Mário Reis,

então acompanhado

pela Orquestra Pan

American. Foi a mú-

sica de maior sucesso

no carnaval de 1929:

“Dorinha, meu amor/

Por que me fazes cho-

rar?/ Eu sou um peca-

dor/ E sofro só por te

amar// Não sei qual a

razão/ Que eu sofro

tanto assim/ Castigo

sim, castigo sim/ Im-

ploro a Deus/ Para

vencer o teu amor/ O

teu amor, amor// Do-

rinha juro que/ Só

pensarei em ti/ So-

mente em ti/ Somente

em ti/ Só tu que podes

dar/ Alívio a esta dor/

Ao teu cantor, ao teu

cantor”. A música é

de autoria de Francis-

co Freitas, o Freiti-

nhas.

Noturno da rua da

Lapa

“A cena se passou

com o Ovalle, quan-

do ele morava na rua

Conde Laje”.

Anotado acima do

título. A história cer-

tamente lhe foi conta-

da pelo próprio Jayme

Ovalle.

Cabedelo “Viagem à roda

do mundo/ Numa

casquinha de

noz”.

“título de um livro

de estampas que eu e

minha irmã líamos

quando crianças”.

“O macaco me

ofereceu cocos”.

“uma das estampas

do livro”.

7. BIBLIOGRAFIA

OBRAS DE MANUEL BANDEIRA

Poesia

BANDEIRA, Manuel. A cinza das horas. Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Co-

mércio, 1917.

______. Carnaval. Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Comércio, 1919.

______. Poesias. Rio de Janeiro: Tipografia da Revista de Língua Portuguesa, 1924. [A

cinza das horas e Carnaval aparecem com acréscimos de alguns poemas. Inclui a 1.a

edição de O ritmo dissoluto].

______. Libertinagem. Rio de Janeiro: Pongetti, 1930.

______. Estrela da manhã. Rio de Janeiro: Tipografia do Ministério da Educação e Sa-

úde, 1936.

______. Poesias escolhidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937.

______. Poesias completas. Rio de Janeiro: Cia. Carioca de Artes Gráficas, 1940. [In-

clui a 1.a edição de Lira dos cinqüent’anos].

______. Poesias completas. Rio de Janeiro: Americ Ed., 1944. [Inclui mais 18 poemas

em Lira dos cinqüent’anos].

______. Poesias completas. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1948. [Inclui a

1.a edição de Belo belo].

______. Mafuá do malungo. Barcelona: O Livro Inconsútil, 1948.

______. Poesias escolhidas. Rio de Janeiro: Pongetti, 1948.

______. Tres poetas del Brasil. Bandeira-Drummond-Schmidt. Tradução e prólogo de

Leonidas Sobrino Porto, Pilar Vasquez Cuesta e Vicente Sobrino Porto. Ilustrações de

Robert Degenève. Madrid: Estaees, 1950.

______. Opus 10. Ilustração de Fayga Ostrower. Niterói: Hipocampo, 1952.

______. Mafuá do malungo. 2.a edição aumentada. Rio de Janeiro: São José, 1954.

______. 50 poemas escolhidos pelo autor. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e

Cultura, 1955. Coleção Cadernos de Cultura, 77.

______. Poesias completas. 6.a edição aumentada. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955.

______. O melhor soneto de Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1955.

______. Um poema de Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1956.

______. Obras poéticas. Lisboa: Ed. Minerva, 1956.

______. Poesia e prosa. Introdução geral de Sérgio Buarque de Holanda e Francisco de

Assis Barbosa. 2 volumes. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1958. [Inclui a 1.a edição de

Estrela da tarde].

______. Pasárgada. Ilustrações de Aldemir Martins. Rio de Janeiro: Soc. dos Cem Bi-

bliófilos, 1959.

______. Estrela da tarde. Salvador: Dinamene, 1960.

______. Alumbramentos. Salvador: Dinamene, 1960.

______. Antologia poética. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1961.

______. Manuel Bandeira. Paris: Éditions Pierre Seghers, 1964. Coleção “Poètes d’Au-

jourd’hui”.

______. Estrela da tarde. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963. [Inclui nova seção, inti-

tulada “Preparação para morte”].

______. Preparação para morte. Álbum com poemas e vinhetas de Manuel Bandeira,

além de litogravuras de João Quaglia. Rio de Janeiro: Ed. de André Willième e Antoni

Grosso, 1965.

______. Estrela da vida inteira. Poesia reunida e poemas traduzidos por Manuel Ban-

deira. Introdução de Antonio Candido e Gilda Mello e Souza. Rio de Janeiro: José

Olympio, 1966. [Inclui as versões integrais de Poemas traduzidos e Mafuá do malun-

go].

______. Meus poemas preferidos. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1966.

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COELHO, Eduardo. Arqueologia da composição: Manuel

Bandeira. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2009.

219 fl. Tese de Doutorado em Literatura Brasileira.

RESUMO

O presente estudo aponta que a crítica da literatura brasileira demonstra, freqüentemen-

te, uma concepção redutora da poética de Manuel Bandeira. Trata-se de um problema de

classificação, em que é destacada a importância da tradição como via única de sua obra.

Esta tese parte da hipótese de que a poesia bandeiriana compreende o diálogo com a

tradição não como um retrocesso, mas como uma forma de atualização do que, no pas-

sado da cultura brasileira, já revelava um caráter modernizante. Nesse sentido, a análise

foi conduzida na tentativa de registrar o percurso de Manuel Bandeira em busca da

construção de sua modernidade. Examina-se então a intertextualidade, a incorporação

na sua obra poética de elementos da cultura popular, a naturalidade, a simplicidade, o

aproveitamento, nos poemas, do substrato biográfico e dos fait divers, bem como os

recursos estilísticos por ele desenvolvidos. A tese recorre, para tal exame, do instrumen-

tal da crítica genética e compõe, a partir de cartas e crônicas, o pensamento poética de

Manuel Bandeira.

COELHO, Eduardo. Arqueologia da composição: Manuel

Bandeira. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2009.

219 fl. Tese de Doutorado em Literatura Brasileira.

ABSTRACT:

Oftentimes the critique of Brazilian literature has a reductive conception of Manuel

Bandeira’s poetry. This is a matter of classification, since the importance of tradition is

regarded as the only way of the poet’s work. This thesis examines the hypothesis that

Bandeira’s poetry comprehends the dialogue with tradition not as a retrocession, but as

a way to actualize what was already modern in the past of Brazilian culture. Thus, the

analysis conducted here is an attempt to register Manuel Bandeira’s path towards the

construction of his modernity. Intertextuality, incorporation of elements of popular cul-

ture, naturalness, simplicity, use of biographical components and of fait divers in his

work are examined, as well as the stylistic resources developed by him. For this pur-

pose, the thesis uses the instruments provided by genetic critique and, by resorting to

Bandeira’s letters and chronicles, composes the poetic thought of Manuel Bandeira.

COELHO, Eduardo. Arqueologia da composição: Manuel

Bandeira. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2009.

219 fl. Tese de Doutorado em Literatura Brasileira.

RESUMEN

Este estudio sugiere que la crítica de la literatura brasileña demostra, com frecuencia,

una limitada concepción de la poesía de Manuel Bandeira. Este es un problema de clasi-

ficación, que destaca la tradición como única forma de su trabajo. Esta tesis parti de la

hipótesis de que la poesía bandeiriana incluye el diálogo con la tradición no como un

retroceso, mas como una forma de actualización del pasado de la cultura brasileña que

ya mostró un carácter modernización. En consecuencia, el análisis se llevó a cabo en un

intento de registrar el trayecto de Manuel Bandeira en busca de la construcción de su

modernidad. Examina-se la intertextualidad, la incorporación en su obra poética de los

elementos de la cultura popular, la naturalidad, la sencillez, el uso del sustrato biográfi-

co y del fait divers, el estilo y características que él desarrolló. La tesis recurri a los ins-

trumentos de la crítica genética, desde cartas y crónicas, para componer el pensamiento

poético de Manuel Bandeira.

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