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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
CURSO DE GRADUAÇÃO DE DIREITO
LORENA CORDEIRO DE OLIVEIRA
A FORMAÇÃO JURÍDICA DOS E DAS ESTUDANTES DE DIREITO A
PARTIR DA EXTENSÃO NO PROGRAMA MOTYRUM: Aprendendo e
ensinando o direito no Leningrado
NATAL
2014
LORENA CORDEIRO DE OLIVEIRA
A FORMAÇÃO JURÍDICA DOS E DAS ESTUDANTES DE DIREITO A
PARTIR DA EXTENSÃO NO PROGRAMA MOTYRUM: Aprendendo e
ensinando o direito no Leningrado
Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Direito
apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte como
exigência parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.
Orientador: Professor Mestre Luciano Athayde Chaves
Coorientador: Professor Mestre José Humberto Góes Junior
Natal
2014
LORENA CORDEIRO DE OLIVEIRA
A FORMAÇÃO JURÍDICA DOS E DAS ESTUDANTES DE DIREITO A PARTIR DA
EXTENSÃO NO PROGRAMA MOTYRUM: Aprendendo e ensinando o direito no
Leningrado
Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do
título de bacharel em Direito.
Aprovação em: ___/___/____.
BANCA EXAMINADORA:
LUCIANO ATHAÍDE CHAVES
JOSÉ HUMBERTO DE GÓES JUNIOR
MARIANA DE SIQUEIRA
ANA LIA VANDERLEI DE ALMEIDA
Dedico este trabalho ao Programa Motyrum de Educação Popular em
Direitos Humanos, ao Conjunto Habitacional Leningrado,
especialmente a Cazuza, Cícero, Tatinha, Renilson, Noêmia e Ruth, e
ao Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha mãe e ao meu pai, que conferiram a mim os primeiros atos de amor de
minha existência, a educação – das palavrinhas mágicas, do “por favor”, “obrigada” e “com
licença” aos valores da solidariedade e do cuidado com o outro e a outra, da honestidade, da
franqueza, da gratidão, do respeito. Que me conferiam a liberdade de voar para onde desejasse
e me apoiaram nas escolhas, boas e ruins.
Agradeço a Deus pelos mágicos momentos de calmaria diante dos desesperos, das
dificuldades que pareciam não ter solução, sobretudo no decorrer deste trabalho. Pelo
atendimento de minhas preces e mesmo quando não atendidas, por guardar algo melhor por
vir.
Agradeço à minha Avó (Anísia) pela generosidade e pelo exemplo de gente e de mulher que
se concretiza em minha vida. Pelas lições de sabedoria que me ensinaram, sobretudo, o valor
do conhecimento popular, de quem vivencia a luta diária, de quem não é letrada, mas sabe da
vida mais do que “doutor”.
Agradeço ao meu companheiro (Denis), pelo amadurecimento enquanto pessoa, pela
paciência no decorrer da nossa caminhada, por se fazer presente nas horas de dor e de alegria,
com ouvidos e braços a me apoiarem.
Agradeço aos companheiros e às companheiras do Programa Motyrum e do Centro
Acadêmico Amaro Cavalcanti, em especial a Natália Bonavides, Hélio, Magnus, e Débora,
referências no meu processo de politização enquanto estudante. Agradeço pelas experiências
que esses espaços proporcionaram na minha construção enquanto mulher negra e enquanto
gente que luta contra as opressões e sonha com um mundo melhor.
Agradeço aos moradores e às moradoras do Leningrado, especialmente à Ruth, Tatinha,
Cícero, Cazuza, Renilson e Noêmia, pela inspiração no meu engajamento político, pelo
aprendizado de quem luta por melhores condições de vida e de mundo, por me fazerem sentir
a “justa-raiva”, por dar sentido à minha graduação no Curso de Direito e à minha vida,
sobretudo enquanto militante de direitos humanos. Enfim, sem vocês, este trabalho não
existiria.
Agradeço aos amigos e às amigas de longas datas pelo apoio, pela amizade e pelo carinho
mesmo com o distanciamento e da indisponibilidade decorrentes de minha participação em
atividades políticas e acadêmicas.
Agradeço aos meus orientadores neste trabalho pela paciência em lidar com as dificuldades
que espelham as falhas de minha formação acadêmica no campo da pesquisa. Em especial ao
professor e amigo Humberto (Betinho) pelas reflexões e pelo aprendizado que me incentivam
desde o nosso primeiro encontro.
Agradeço ainda a quem também participou da construção desta monografia, direta ou
indiretamente. Às pessoas entrevistadas pela disponibilidade, ao Professor Walter Pinheiro
pelas reflexões provocadas nas aulas do Curso de Pedagogia, e a Denis, novamente, pelos
esclarecimentos, discussões e por me acalmar nos momentos tensos, que não foram poucos.
Não é na resignação mas na rebeldia em face das injustiças que nos afirmamos.
(Paulo Freire, Pedagogia da Autonomia, 1996).
RESUMO
O trabalho avalia de que forma o Programa Motyrum de Educação Popular em Direitos
Humanos, através da extensão realizada no Conjunto Habitacional Leningrado, interferiu na
formação jurídica das e dos estudantes do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Realiza-se a avaliação a partir de três aspectos da educação popular, a
interdisciplinariedade, a dialogicidade e a horizontalidade. Para formar uma base teórica para
a pesquisa de campo, estuda a concepção de direito positivista e o ensino jurídico dogmático
consoante vivências da autora no Curso de Direito. Analisa os conceitos da educação popular,
da extensão universitária popular, da educação popular em direitos humanos e da assessoria
jurídica popular e sua relação com o ensino jurídico. Discorre-se sobre o Programa Motyrum
e o trabalho de educação popular no Conjunto Leningrado para compreender o seu papel no
ensino do direito. Realiza entrevistas individuais com extensionistas que participaram do
trabalho de educação popular para investigar se houve interferência na formação jurídica de
cada um e de cada uma e como a interdisciplinariedade, a dialogicidade e horizontalidade
contribuem para essa mudança. Analisa as respostas e conclui que o Programa Motyrum,
quando proporciona o contato de estudantes de direito com realidades de violações de direitos
humanos através da educação popular, provoca reflexões sobre o direito, permite o
desenvolvimento de habilidades no contato com pessoas e mostra a possibilidade da profissão
de jurista exercer uma função social, voltada à transformação da sociedade.
Palavras-chave: Programa Motyrum de Educação Popular em Direitos Humanos. Conjunto
Habitacional Leningrado. Ensino jurídico. Educação popular.
RESUMEN
En este trabajo se evalúa la forma en que el Programa Motyrum de Educación Popular para
los Derechos Humanos, a través de la extensión universitaria lleva a cabo em La Viviendas
Leningrado, interfirió en la formación jurídica de los estudiantes de derecho de la Universidad
Federal de Rio Grande do Norte. Se lleva a cabo la evaluación de tres aspectos de la
educación popular, la interdisciplinariedad, dialogicidad y la horizontalidad. Para formar una
base teórica para la investigación de campo, estudia la concepción positivista del derecho y
las enseñanza dogmática del derecho de conformidad con las experiências del autor en el
Curso de Derecho. Examina los conceptos de la educación popular, la extensión universitaria
popular, la educación popular en derechos humanos y asistencia jurídica popular y su relación
con la educación juridica. Habla sobre el Programa Motyrum y el trabajo de educación
popular en Leningrado para entender su papel en la enseñanza del derecho. Lleva a cabo
entrevistas individuales con los extensionistas que participaron en el trabajo de educación
popular para investigar si hubo injerencia en la formación juridica de todos y cada uno y
cómo la interdisciplinariedad, la horizontalidad y la dialogicidad contribuir a este cambio.
Analiza las respuestas y llega a la conclusión de que el Programa Motyrum cuando
proporciona a los estudiantes de derecho el contato con las realidades de violaciónes de los
derechos humanos mediante la educación popular, hace reflexiones sobre lo derecho, permite
el desarrollo de habilidades en contacto con la gente y muestra la posibilidad de abogacía
ejercer una función social, dirigida a la transformación de la sociedad.
Palabras clave: Programa Motyrum de Educación Popular en Derechos Humanos. Vivienda
Leningrado. La enseñanza del Derecho. La educación popular.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 12
POSITIVISMO E ENSINO JURÍDICO: Um olhar sobre o Curso de Direito da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte....................................................................16
1.1 A CONCEPÇÃO POSITIVISTA DO DIREITO..............................................................16
1.1.1FORMALISMO....................................................................................................16
1.1.2DOGMATISMO E A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE....................................19
1.1.3NEUTRALIDADE............................................................................................... 21
1.1.4COMPLETUDE....................................................................................................23
1.1.5ABSTRAÇÃO...................................................................................................... 25
1.2 ENSINO JURÍDICO DOGMÁTICO E O CURSO DE DIREITO DA UFRN...............26
1.2.1 MUITA REPRODUÇÃO E POUCA REFLEXÃO......................................... 28
1.2.2 APEGO À LEI, O EXCESSO DE TEORIA E O DISTANCIAMENTO DA
REALIDADE....................................................................................................34
1.2.3 A AUSÊNCIA DE DIÁLOGO E A RELAÇÃO
VERTICALIZADA..........................................................................................................45
1.2.4 A AUSÊNCIA DE INTERDISCIPLINARIEDADE.......................................48
1.2.4 O PROBLEMA DA DIDÁTICA......................................................................50
TEORIA E PRÁTICA DO DIREITO CRÍTICO: Traçando conceitos-base da práxis do
Programa Motyrum................................................................................................................54
2.1 A VISÃO DIALÉTICA DO DIREITO..............................................................................54
2.2 OUTRA PROPOSTA DE FORMAÇÃO JURÍDICA........................................................59
2.2.1 EDUCAÇÃO POPULAR ...................................................................................63
2.2.2. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA POPULAR ....................................................70
2.2.3 A EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS....................................................73
2.2.4 ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR ..............................................................76
O MOTYRUM COMO ALTERNATIVA À FORMAÇÃO JURÍDICA...........................81
3.1 O PROGRAMA MOTYRUM DE EDUCAÇÃO POPULAR EM DIREITOS
HUMANOS..............................................................................................................................81
3.1.1 O QUE É E COMO FUNCIONA........................................................................81
3.1.2 LIMITAÇÕES......................................................................................................86
3.1.3 O MOTYRUM NO CURSO DE DIREITO DA UFRN......................................90
3.2 A EXPERIÊNCIA NO LENINGRADO.............................................................................91
3.2.1 NÚCLEO URBANO E LENINGRADO.............................................................92
3.2.2 A CHEGADA DO NÚCLEO URBANO.............................................................93
3.2.3 O TRABALHO DESENVOLVIDO....................................................................95
3.3 A CONTRIBUIÇÃO DA EDUCAÇÃO POPULAR NO LENINGRADO NA
FORMAÇÃO JURÍDICA DOS E DAS EXTENSIONISTAS.................................................98
3.3.1 METODOLOGIA................................................................................................99
3.3.2 ENCHARCANDO DE REALIDADE...............................................................100
3.3.3 DIALOGICIDADE............................................................................................106
3.3.4 INTERDISCIPLINARIEDADE........................................................................119
3.3.5 HORIZONTALIDADE......................................................................................124
CONCLUSÃO.......................................................................................................................131
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................133
ANEXO 01............................................................................................................................ 137
ANEXO 02............................................................................................................................ 138
12
INTRODUÇÃO
A escolha pelo tema da formação jurídica neste trabalho de conclusão de curso
está diretamente relacionada às minhas vivências no Curso de Direito da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) como graduanda e membra do Centro Acadêmico
Amaro Cavalcanti e aos três anos e meio em que fui extensionista do Programa Motyrum de
Educação Popular em Direitos Humanos, o qual representou um divisor de águas na minha
vida acadêmica, pessoal e profissional.
O Programa Motyrum me apresentou um mundo que não conhecia, ou melhor,
que eu não sentia. Uma realidade permeada de violações de direitos humanos, uma sociedade
estruturada em relações de poder que reforçam essas violações, e um Curso de Direito
anestesiado a isso. O Motyrum despertou em mim a “justa-raiva” que fez tornar-me “gente”,
gente que não se adapta nem se resigna, mas que denuncia e anuncia as opressões e faz disso
um compromisso político de vida pessoal e profissional.
O contato com o Conjunto Habitacional Leningrado e o vínculo emocional e
político formado com moradores e moradoras encharcaram o Curso de sentido. Situado em
um contexto de vulnerabilidade social, de negação e descaso estatal, o Leningrado foi o
espaço em que o Núcleo Urbano realizou por dois anos o trabalho de extensão popular através
da educação popular em direitos humanos. Foi o espaço em que o diálogo se fez entre quem
era negado, excluído pela sociedade e quem, embora situado em um espaço privilegiado
socialmente que é a universidade, era negado em sala de aula, submetido a uma educação
bancária, castradora e autoritária.
A extensão no Leningrado me provocou refletir sobre o direito, sobre o ensino
jurídico e sobre a sociedade como um todo, me conduzindo a uma inserção maior dentro do
Motyrum, participando de outro núcleo, o Escritório Popular; a participar do Centro
Acadêmico Amaro Cavalcanti, me engajando nas problemáticas que envolviam o Curso de
Direito; e a buscar estágios em instituições como a Defensoria Pública da União, voltada para
o acesso à justiça da população espoliada.
Mais que isso, no Motyrum pude refletir sobre minha existência, pude me
enxergar também como oprimida enquanto mulher e negra. Foi a partir das reflexões que o
Programa me proporcionou sobre a sociedade e suas faces opressoras que construí minha
identidade como negra, me levando ao ato mais simbólico, e político, que pude realizar até
aqui, que foi assumir o cabelo crespo e me libertar do racismo que me negava o direito de ser
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mais desde criança. Bem como enxergar o motivo das dificuldades que já enfrentei e ainda
enfrento diariamente por ser mulher, o que me levou à minha afirmação enquanto feminista.
Por esse motivo que prezo neste trabalho pela adequação de gênero, me referindo
sempre a mulheres e homens, evitando me guiar pela gramática que discrimina o gênero
feminino ao determinar o masculino como padrão. Segundo a professora e escritora de um
blog da internet, a língua é um reflexo da sociedade, e na nossa, a posição da mulher ainda é
inferior à do homem:
(...) a linguagem que usamos todos os dias é preconceituosa, e como coloca a mulher
como cidadão de segunda classe. Por exemplo, quando usamos a palavra homem
como sinônimo de ser humano, em casos como "a origem do homem", passamos a
impressão que homem é mais ser humano que mulher. Quando escrevemos sobre um
sujeito indeterminado e dizemos ele ao invés de ela, idem. Quando usamos adjetivos
no masculino, também. (ARONOVICH, Lola. Nossa língua machista. Escreva Lola
Escreva, 14/09/09).
Então, é a partir dessa história que escrevi ao longo do Curso de Direito e do
significado que a experiência no Leningrado representou na minha vida, que me coloquei a
fazer uma pesquisa que investigasse, que analisasse objetivamente a influência da extensão na
formação jurídica dos e das extensionistas que realizaram o trabalho comigo no ano de 2011,
quando o núcleo passou a visitar a comunidade todos os sábados realizando os círculos de
cultura. Uma pesquisa que sistematizasse e refletisse sobre o que foi vivenciado e que pudesse
provocar o debate sobre o ensino jurídico no Curso de Direito da UFRN, situando a
metodologia e os princípios do Motyrum como uma proposta inovadora.
Destaco de antemão o caráter desafiador que representa esta monografia frente às
fragilidades de minha formação acadêmica, no viés da pesquisa e da produção intelectual e até
mesmo diante das dificuldades do Programa Motyrum em sistematizar as experiências e
refleti-las. Porém, ouso a construí-lo, ainda que com essas limitações, no intuito de colaborar
com o Curso de Direito da UFRN e com a extensão universitária a partir de minhas tímidas
reflexões sobre formação jurídica.
O presente trabalho tem como objetivo, então, traduzir o que foi vivido, mais
precisamente, a partir da análise de três aspectos da educação popular – da dialogicidade,
interdisciplinariedade e da horizontalidade – traçando um estudo comparativo da forma como
se apresentam no Curso de Direito da UFRN e no Programa Motyrum. É saber se: esses
fatores alteram, e se sim, como alteraram a perspectiva de direito e de ensino jurídico? Eles
provocaram alguma mudança no e na extensionista? Ajudaram a desenvolver alguma
habilidade? Qual ou quais? O ou a extensionista do Motyrum possui algum diferencial em
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relação aos outros e às outras estudantes do Curso de Direito?
Esses questionamentos despertaram a necessidade de um estudo teórico dos temas
relacionados, sobretudo no que tange à concepção de direito, ao ensino jurídico e à educação
popular, a qual traz as variáveis da pesquisa. Assim, estruturei o presente trabalho em três
capítulos, de modo que nos dois primeiros apresento as bases teóricas desses temas para no
terceiro relacioná-las ao que foi vivenciado.
Dessa forma, o primeiro capítulo apresenta a concepção positivista do direito a
partir de cinco elementos caracterizadores que se relacionam com os cinco aspectos do ensino
jurídico dogmático, apresentados na segunda parte do capítulo. Tanto os fatores da concepção
de direito quanto do ensino jurídico foram escolhidos a partir da vivência no Curso de Direito
da UFRN, ou seja, as análises são desenvolvidas a partir da pesquisa participante, da
pesquisadora como observadora e como parte do objeto de estudo. Aqui também realizo uma
pesquisa quantitativa no sentido de expor o perfil do Curso de Direito a partir das disciplinas
oferecidas pela matriz curricular e do quadro docente.
No segundo capítulo analiso outra perspectiva de direito e de ensino jurídico, que
é próxima da adotada pelo Programa Motyrum1. Isto é, uma visão de direito que possibilite
realizar mudanças na sociedade e um ensino jurídico que provoque a reflexão crítica, que seja
próximo da realidade. E para isso aponto algumas práticas orientadas neste sentido, que
constituem justamente a práxis do Programa Motyrum: a educação popular, a extensão
universitária popular, a educação em direitos humanos e a assessoria jurídica popular.
O último capítulo é voltado para a questão mais específica da pesquisa, que é a
experiência do trabalho no Leningrado. Assim, explico no que constitui o Programa Motyrum
de Educação Popular em Direitos Humanos, sua metodologia, sua prática e a sua posição no
Curso de Direito da UFRN; e apresento um relato da atuação do Núcleo urbano na
comunidade, apontando as atividades e alguns resultados alcançados. Num terceiro momento
passo a analisar a formação jurídica dos e das extensionistas que atuaram no projeto em 2011
a partir de dados coletados em entrevistas individuais realizadas durante este trabalho e em
vídeos produzidos pelo núcleo em 2011, na finalização do trabalho. Esses dados são situados
dentro das três variáveis já apresentadas – dialogicidade, interdisciplinaridade e
horizontalidade – de modo que em cada uma apresento o que foi levantado por colegas acerca
da contribuição da experiência no Leningrado em suas vidas acadêmicas e profissionais.
1 O Motyrum não tem uma compreensão homogênea do direito e do ensino jurídico. Porém, a sua práxis permite
apreender ideias gerais como, por exemplo, a noção de que o direito se constrói nas ruas e pode ser instrumento
de transformação social e a noção de que a educação deve ser libertadora do oprimido.
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Portanto, com essa monografia vislumbro a possibilidade de contribuir para a
produção acadêmica no campo da extensão universitária, estando certa de que esta é uma das
poucas pesquisas sistematizadas a partir de uma experiência de extensão no Curso de Direito
da UFRN. Como também compreendo que este estudo pode orientar uma discussão mais
aprofundada no Motyrum quanto à reflexão sobre sua práxis e no Curso quanto ao ensino
jurídico, possibilitando uma reflexão crítica daquilo que tem oferecido ao seu corpo discente,
docente e à sociedade potiguar.
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CAPÍTULO I
POSITIVISMO E ENSINO JURÍDICO:
Um olhar sobre o Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
No presente capítulo busco estudar os reflexos da adoção da teoria positivista nas
faculdades de direito, a relação com o ensino jurídico dogmático e como este cenário se
apresenta no Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Esta análise parte da apresentação da teoria positivista a partir de cinco aspectos
(formalismo, dogmatismo e legitimidade, neutralidade, completude e abstração) definidos em
razão de uma escolha metodológica de se buscar uma relação mais próxima com as variáveis
a serem estudas no presente trabalho – dialogicidade, interdisciplinaridade e horizontalidade.
Assim, tais fatores são abordados no intuito de estabelecer uma relação entre essa
concepção de direito e o ensino jurídico dogmático, fornecendo o embasamento necessário ao
segundo tópico do capítulo, em que se pretende analisar criticamente o ensino do direito a
partir da observação participante na experiência vivida na Graduação do Curso de Direito da
UFRN de 2009 a 2014. Essa análise será realizada também com base no Projeto Político
Pedagógico, na matriz curricular e nos relatórios de autoavaliação do curso.
1.1 A concepção positivista de direito
A teoria positivista apresenta aspectos caracterizadores que buscam denotar o
Direito em seu caráter formalista, como um sistema completo, neutro, composto de normas
incontestáveis, gerais e abstratas. Assim, neste tópico tenho o propósito de analisar algumas
questões que caracterizam essa concepção positivista do direito no intuito de fazer uma ponte
com as deficiências do ensino jurídico que trabalho no tópico seguinte. Saliento que o
objetivo neste momento é apresentar noções do positivismo jurídico para contextualizar o
foco do trabalho, que é a formação jurídica.
Dessa forma, por entender que o trabalho monográfico denota uma menor
complexidade teórica, pela intenção mesma de não aprofundar o estudo sobre concepção de
direito e pelo agravante do tempo para me dedicar a este trabalho, optei por fazer um estudo
mais sintético.
1.1.1 Formalismo
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O discurso positivista identifica o direito apenas no plano da norma. Na definição
de Hans Kelsen (1998, p. 4), o direito “é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja,
um sistema de normas que regulam o comportamento humano” e tem como principal
elemento a sanção, ou seja, a resposta dada pelo Estado para o descumprimento das
disposições estabelecidas como expressão das vontades públicas. A esse conjunto de normas,
Bobbio denomina de ordenamento jurídico:
(...) a teoria do ordenamento jurídico constitui uma integração da teoria da norma
jurídica. (...) digamos que não foi possível dar uma definição do Direito do ponto de
vista da norma jurídica, considerada isoladamente, mas tivemos de alargar nosso
horizonte para a consideração do modo pelo qual determinada norma se torna eficaz
a partir de uma complexa organização que determina a natureza e a entidade das
sanções, as pessoas que devam exercê-las e a sua execução. Essa organização
complexa é o produto de um ordenamento jurídico. Significa, portanto, que uma
definição satisfatória do Direito só é possível se nos colocarmos do ponto de vista do
ordenamento jurídico (BOBBIO, 1995, p. 22).
Segundo a perspectiva positivista, a qualidade jurídica dessas normas é
determinada pela sua natureza institucionalizada, que na sociedade advém do Estado, a quem
é conferido o monopólio da produção jurídica, o poder de dizer o direito.
Essa concepção restringe em demasia a visão do que é e do que pode ser o direito,
pois que sintetiza tudo na vontade do Estado e, portanto da classe dominante2, cujo controle
do processo econômico, dos meios de produção, confere também o domínio sobre o aparelho
estatal. Essa redução implica diretamente numa relação de dominação, como atenta Lyra
Filho (1982, p. 5):
(...) se o Direito é reduzido à pura legalidade, já representa a dominação ilegítima,
por força desta mesma suposta identidade; e este “Direito” passa, então, das normas
estatais, castrado, morto e embalsamado, para o necrotério duma pseudociência, que
os juristas conservadores, não à toa, chamam de “dogmática”. Uma ciência
verdadeira, entretanto, não pode fundar-se em “dogmas”, que divinizam as normas
do Estado, transformam essas práticas pseudocientíficas em tarefa de boys do
imperialismo e da dominação e degradam a procura do saber numa ladainha de
capangas inconscientes ou espertos.
2 Segundo Marx (1998), a classe dominante é representada na sociedade capitalista pela classe burguesa,
detentora dos meios de produção. A partir da posse da produção material, a burguesia explora a força de trabalho
da classe trabalhadora para acumular riquezas, de modo que, com o domínio econômico, passa a ter o domínio
da sociedade e do Estado. Dessa forma, se instalam mecanismos de opressão, de negação da liberdade, que
subjuga a classe trabalhadora, além de outros grupos sociais que não correspondem aos padrões burgueses.
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Ao passo que confere apenas ao Estado o poder de dizer o direito, nega-se a
outros setores da sociedade o direito de também lutar por aquilo que consideram direito, suas
expressões jurídicas. Não reconhece práticas inovadoras de construí-lo, resiste às
necessidades apontadas nas ruas, uniformiza toda a sociedade por meio de uma produção
jurídica exclusiva e tenta anular outras formas jurídicas e criadoras de direito porventura
existentes na sociedade. Esse pensamento sacraliza o Estado e põe obstáculos à transformação
e à sua própria atualização.
Isto quer dizer que se trata de um mecanismo de manutenção do poder, pois é esse
monopólio que “pacifica” os conflitos de ordenamentos e impõe a vontade do Estado como a
única válida, conferindo um leque de privilégios à classe dominante. Ou seja, em nome de
uma suposta “paz social”, por sua vez, reafirmadora do pressuposto contratual da vida em
sociedade estabelecida pela filosofia política moderna3, é preciso centralizar o poder e
submeter as diferenças ao controle de uma única ordem normativa ao tempo em que o conflito
passa a ser visto como ameaça a todo o conjunto homogêneo da sociedade.
É isso que confere força ao legalismo, sob o pretexto de que a lei, expressão
neutra e geral, liberta da tirania e da violência ao registrar antecipadamente os
comportamentos tidos como socialmente desejáveis, bem como a resposta a ser aplicada para
aquelas pessoas que descumpram a norma. Em um duplo efeito, tem-se uma confusão entre
legalidade e legitimidade por um lado e, por outro, que tem relação imediata com o primeiro,
a norma, que submete a todas as pessoas, impõe-se de igual maneira a quem a deve aplicar,
podendo apenas circular dentro de certos moldes interpretativos, sem, contudo, destituir a
superioridade da norma para impor sua própria vontade individual ao caso concreto de
violação.
No esteio da crítica a esse sofisticado mecanismo de justificação, Lyra Filho
(1982, p. 3 e 4) considera o legalismo como um componente do “repertório ideológico do
Estado” na medida em que faz prevalecer a ideia de que o direito estatal é o único apto a
conferir o bem da coletividade, anulando-se os demais direitos socialmente existentes e
alimentando a cultura conformista de aceitar imposições sem questionamentos, como também
o medo de fazê-lo, pois que o Estado também detém o monopólio da força.
3 Rousseau propõe o contrato social como condição da subsistência, da conservação dos seres humanos em
sociedade. É um contrato tacitamente admitido pelas pessoas, que alienam seus direitos, sua liberdade, em prol
da coletividade, da paz social (ROUSSEAU, 1983, p. 30). Assim, justifica o poder sobreano do Estado como
expressão da vontade geral de lhe conferir poderes para decidir por todos e todas, e ainda afirma que o interesse
do sobreano não pode ser contrário ao interesse dos particulares.
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O rigor formal do positivismo transforma o direito em uma estrutura estática, pois
não permite acompanhar a velocidade com a qual se transformam as relações na sociedade.
As respostas para novos problemas sempre dependerão de uma lei ou, com mais força na
atualidade, com a criação, a partir da emenda constitucional n. 45/2004, de um sistema
híbrido entre civil law e common law, de uma decisão judicial, que, na realidade brasileira,
surgem tardiamente.
Denota-se que conceber o direito nesta visão limitada significa uma ausência de
diálogo com a sociedade, quanto a outras maneiras autênticas de expressão do direito. Nesta
concepção, as necessidades da comunidade devem se adequar à lei e não esta àquelas, o que
constitui um mundo abstrato, apartado do mundo concreto. A relação entre esse direito
positivo e a população manifesta-se restrita, gerando então uma crise na satisfação, na crença
e na própria existência da norma, desencadeando uma crise maior, de legitimidade. Esse
direito, portanto, não se mostra capaz de regular satisfatoriamente o comportamento humano.
1.1.2 Dogmatismo e legitimidade
O direito positivista apresenta um enfoque nitidamente dogmático, isto é, pautado
em premissas inatacáveis, em conceitos fixos, em uma decisão imposta, e regido pelo
“princípio da inegabilidade dos pontos de partida” 4.
Na dogmática jurídica, o estudo do direito é restrito à lei, expressão da ordem
vigente a qual demanda o imperativo da obediência, seja justa ou injusta, autoritária ou
democrática, legítima ou ilegítima. Portanto, a lei se constitui em um dogma, cujas premissas
são impostas (FERRAZ JÚNIOR, 2004, p. 62.).
Porém, no intuito de não aparentar arbitrariedade, a dogmática se utiliza de
argumentos razoáveis para justificar essa decisão, os quais devem se constituir em
generalidades, aplicáveis a toda a coletividade, como é o caso dos princípios.
Dito isto, cumpre analisar os argumentos apresentados pelo positivismo para
instituir o ponto de partida inegável da norma, a legitimação do ordenamento positivo.
A característica formal do direito positivo se apresenta como condição de validade
para a existência da norma, que é produto do Estado. Este, por sua vez, possui o monopólio da
produção de leis por ordem de uma norma. Quer dizer, a norma que diz quem a produz e
4 Denominação adotada por Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2003, p.48) em referência a Luhmann (1974), que
caracteriza a ciência dogmática. Quer dizer a impossibilidade de negar as premissas que formam as bases da
teoria ou do pensamento, em outras palavras, significa proibir questionamentos. O exemplo apresentado pelo
autor é o princípio da legalidade, que vincula decisões e interpretações à norma, sem poder contrariá-la.
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como deve ser para ser válida. Logo, na dogmática, tem-se que é na própria norma que está o
fundamento do poder de produzi-la e de todo ordenamento, portanto.
Para Norberto Bobbio (1995, p. 58), esta é a norma fundamental, responsável por
instituir o último poder criador do ordenamento, o poder constituinte originário, a quem
confere a produção da principal norma interna do sistema, a Constituição.
Considerada o eixo do arcabouço normativo, a norma fundamental não possui
fundamento expresso. Sua existência consiste numa suposição, uma criação abstrata para
conferir legitimidade ao poder originário e, assim, ao ordenamento jurídico positivo.
Encontrar esse fundamento, aliás, não é uma tarefa que interessa ao positivismo.
Isso porque não há como buscá-lo dentro do sistema normativo, mas apenas fora dele, o que
confrontaria a sua completude, a sua natureza fechada e até a mesmo sua isenção ideológica
de influências políticas, conforme explica Norberto Bobbio (1995, p. 62-63):
À pergunta “sobre o que ela se funda” deve-se responder que ela não tem
fundamento, porque, se tivesse, não seria mais a norma fundamental, mas haveria
outra norma superior, da qual ela dependeria. Ficaria sempre aberto o problema do
fundamento da nova norma, e esse problema não poderia ser resolvido senão
remontando também a outra norma, ou aceitando a nova norma como postulado.
Perguntar o que estaria atrás desse início é problema estéril. A única resposta que se
pode dar a quem quiser saber qual seria o fundamento do fundamento é que para
sabê-lo seria preciso sair do sistema. Assim, no que diz respeito ao fundamento da
norma fundamental, pode-se dizer que ele se constitui num problema não mais
jurídico, cuja solução deve ser procurada fora do sistema jurídico, ou seja, daquele
sistema que para ser fundado traz a norma fundamental como postulado.
A opção por não se preocupar com esse fundamento é coerente com o enfoque
dogmático, premissa inquestionável, e revela um posicionamento ideológico de, pelo primado
da lei, omitir questionamentos acerca da legitimidade, mantendo o status quo. Na visão ora
analisada a norma é legítima porque tem origem em outra norma. A lei é início e fim. Daí a
confusão entre legalidade e legitimidade como se os significados fossem os mesmos.
Assim, o positivismo jurídico é campo fértil para a manutenção da ordem vigente.
De acordo com Ferraz Junior, o direito positivado é potencialmente
um instrumento manipulável que frustra as aspirações dos menos privilegiados e
permite o uso de técnicas de controle e dominação que, por sua complexidade, é
acessível apenas a uns poucos especialistas (FERRAZ JÚNIOR, 2004, p. 20).
Assim, no contexto da luta de classes, na qual a burguesia é dominante, o direito
positivo, imposto por ela mesma, sobretudo quando estudado dominantemente na ótica
21
dogmática, torna-se um instrumento de manutenção:
a ciência dogmática do direito, na tradição que nos vem do século XIX,
prevalecentemente liberal, em sua ideologia, e encarando, por conseqüência, o
direito como regras dadas (pelo Estado, protetor e repressor), tende a assumir o
papel de conservadora daquelas regras, que, então, são por ela sistematizadas e
interpretadas (FERRAZ JÚNIOR,2004, p. 70).
Portanto, de dominação, como afirma Lyra Filho (1980, p. 22):
(...) como, por outro lado, ao aparelho estatal, e só a ele, é deferido o poder seletivo
do que se insere na preceituação jurídica, o direito, com aquela seleção, passa a ser a
vontade do Estado nua e crua. Aí não se atenta para a consequência fatal: é que a
ótica positivista “desjuridiciza” o Estado, de vez que ele passa a ser metajurídico,
enquanto produtor de todo direito. Mas, se o Estado não é jurídico e, sim, jurígeno
(pois, em tal caso, até as normas jurídicas reguladoras de sua constituição e
funcionamento são estatais), em nome de que direito ele se arroga o poder jurígeno
mesmo? Trata-se, então, dum ato puro e simples de dominação ilimitada.
A produção normativa como monopólio estatal é um mecanismo de garantir as
condições sociais de produção, conforme explica Machado:
Para garantir essa produção, e a correspondente acumulação, o Estado, por meio da
lei, prevê, controla, desarma e reprime quaisquer possibilidades de resistência e
insubmissão das classes trabalhadoras, expropriadas do capital. (...) Esse mecanismo
legal é o mesmo que, na medida do possível, “legaliza” as aspirações e os interesses
econômicos predominantes no interior de uma formação social, próprios da classe
que detém o poder político de editar normas, via Estado liberal, pela composição
majoritária nos parlamentos. Estes, por meio do artifício liberal da representação,
são os responsáveis pela produção legislativa do direito (ius scriptum) que tem no
Estado sua única fonte (MACHADO, 2009, p. 41).
Na dogmática jurídica, a superficialidade se veste de obviedade para naturalizar o
pensamento positivista e manter o que está posto. A imposição de premissas inquestionáveis e
a aceitação da legitimidade por legalidade revelam uma fragilidade teórica quando
confrontada à própria realidade: o distanciamento do mundo concreto, a restrição do estudo
do direito aos códigos, a formação legalista e acrítica do profissional, a cultura jurídica
conservadora e resistente às transformações sociais.
1.1.3 Neutralidade
A bem da verdade, a teoria pura do direito pensada por Hans Kelsen (1985, p. 1)
não nega a relação do direito com aspectos políticos, sociais, econômicos, culturais,
22
religiosos. Porém, na medida em que isola o direito desses elementos que também o compõem
e o condicionam, fecha-se no mundo do império da lei, onde a norma é incontestável,
soberana, absoluta e independe da vontade dos seus “súditos”, da realidade concreta.
O ordenamento positivo, como ciência jurídica, estaria afastado de influências
externas, como política, religião, moral, ética. Atendo-se ao requisito puramente formal de
validade, não considera o conteúdo da norma, pois este pertence ao mundo do dever-ser, que
não é jurídico, mas ideológico (KELSEN, 1985, p. 72).
Na obra “A teoria pura do direito”, Hans Kelsen adota como conceito de ideologia
aquilo que encobre a realidade na intenção de manter e defender seus interesses, bem como
destruir uma outra em prol destes. Assim, apresenta sua teoria como antiideológica por estar
alheia a interesses outros, a interesses políticos, importando-se apenas com a objetividade das
normas, isto é, sua qualidade jurídica.
A neutralidade, nesse discurso positivista, é uma qualidade, no sentido do que é
bom, da norma. É a indicação da sua natureza de Ciência, que não se deixa levar pelos
condicionamentos da sociedade, mas apenas pelo rigor dos métodos científicos, pela
racionalidade e objetividade formal. Logo, a norma é neutra porque está livre de influências
valorativas, porque não se envolve com política, moral ou religião. É neutra porque provém
do Estado, o único legitimado a produzi-la, posto expressar a “vontade geral” e defender os
“interesses da coletividade”, de acordo com a teoria do contrato social (ROUSSEAU, 1983).
Como dito anteriormente, o direito positivo surge da imposição do mais forte
sobre o mais fraco. O mundo jurídico tal como apresenta a referida teoria é criado para
legitimar o poder do Estado5, que é instrumento do mais forte, e assim legitimar seus
privilégios e seus interesses sob o manto da legalidade.
A dogmática, por sua vez, reforça a neutralidade do direito a partir de seus
conceitos abstratos que, revestindo a norma de aparente legitimidade, neutraliza os interesses
impostos pela classe dominante. Consoante explica Machado, é uma estratégia para
universalizar a vontade da classe dirigente como vontade geral:
Numa sociedade capitalista, naturalmente estratificada, a pauta ideológica das classes
que figuram no topo da hierarquia social necessita ao menos de uma aparência de
legalidade para lograr o consenso legitimador. E essa, digamos, aura de legalidade, é
perseguida por intermédio do discurso dogmático que apresenta, retoricamente, a lei
como instância desideologizada, indiferente aos interesses políticos desta ou daquela
classe. Tal estratégia, na verdade, busca universalizar juridicamente os interesses da
5 De acordo com Marx (1998), a evolução da burguesia acompanha um progresso político, de modo que desde o
momento em que conquistou a indústria e o mercado, tem o Estado como verdadeiro “gestor” dos seus próprios
negócios, isto é, subserviente aos seus interesses.
23
classe dirigente, que é aquela que dirige a sociedade de um ponto de vista material e
cultural, procurando difundir a ideia de que a lei resulta de uma vontade geral, cujo
fim é garantir o bem comum por meio de normas, dogmas e princípios tais como o
princípio da isonomia e da legalidade (MACHADO, 2009, p. 41).
Percebe-se então que não há neutralidade. O direito que serve de manutenção da
ordem vigente e que não admite outra paralela revela a disputa ideológica presente na
sociedade. Revela uma opção: conservar os interesses da classe dominante.
A assimilação do direito neutro incorre na resistência àquilo que assumidamente
não o é. Ou seja, num conflito entre classe dominante e classe dominada, por exemplo, a
decisão a favor daquela seria considerada neutra; se em benefício desta, no entanto, haveria
conotação ideológica. É dizer que a neutralidade, servindo à manutenção, resiste às mudanças
como mecanismo de defesa (MACHADO, 2009, p. 41), rotulando os questionamentos como
expressão ideológica em contraste com a suposta neutralidade da ordem vigente.
Portanto, a desconstrução dessa neutralidade se faz essencial na transposição dos
obstáculos à transformação do direito, postos pela dogmática positivista.
1.1.4 Completude
O direito compreendido enquanto conjunto de normas estatais, como assim
caracteriza o positivismo, é concebido como algo acabado, completo, suficiente em si mesmo,
capaz de regular tudo e todos, isto é, não haveria problema que o ordenamento jurídico não
pudesse solucionar.
A autossuficiência do ordenamento jurídico, para o positivismo, está na
generalidade de algumas normas e na existência de mecanismos de interpretação, como uso
da analogia, de princípios, equidade e jurisprudência, que no caso concreto não previsto na
norma, se aplica da forma que o juiz entender pertinente, conforme explica Tércio Sampaio
Ferraz Júnior (2004, p. 67):
Nessa totalidade, que tende a fechar-se em si mesma, as lacunas (aparentes) devem
sofrer uma correção num ato interpretativo, não pela criação de nova lei especial,
mas pela redução de um caso dado à lei superior na hierarquia. Isso significa que as
leis de maior amplitude genérica contêm, logicamente, as outras na totalidade do
sistema. Nesse sentido, toda e qualquer lacuna é efetivamente uma aparência. O
sistema jurídico é necessariamente manifestação de uma unidade imanente, perfeita
e acabada, que a análise sistemática, realizada pela dogmática, faz mister explicitar.
Dessa forma, não haveria lacuna normativa. O próprio ordenamento preveria
24
critérios para problemas que a princípio não teriam sido pensados pelo legislativo, mas que
poderiam ser analisados pelo juiz, a quem caberia escolher a norma adequada e atualizar o seu
sentido no caso concreto, como ocorre, por exemplo, no fenômeno da “mutação
constitucional”, método de interpretação recentemente utilizado pelo Supremo Tribunal
Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277/DF e da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132/RJ6, que reconheceu como entidade
familiar a união de pessoas do mesmo sexo7.
Logo, ainda que se tenha uma norma produzida em um contexto histórico
diferente, a norma teria essa capacidade de se reinventar a partir do trabalho do juiz.
Para os positivistas, a completude é requisito primordial na sustentação do sistema
normativo. Como diz Bobbio (1995, p. 118) “a completude é algo mais que uma exigência, é
uma necessidade, quer dizer, é uma condição necessária para o funcionamento do sistema”.
No entanto, essa própria corrente de pensamento admite a existência da lacuna
ideológica (BOBBIO, 1995). Segundo Bobbio, este tipo de lacuna está relacionada ao
sentimento de justiça, ou seja, seria a falta da “solução satisfatória”, da “norma justa” no
ordenamento. Ele mesmo afirma: “que existem lacunas ideológicas em cada sistema jurídico é
tão óbvio que não precisamos insistir. Nenhum ordenamento jurídico é perfeito, pelo menos
nenhum ordenamento jurídico positivo” (BOBBIO, 1995, p. 140).
Esse tipo de lacuna é, porém, irrelevante para o positivismo, justamente por
compreender o direito como norma no sentido exclusivamente formal. Não importa se as
normas são justas, não importa a quem elas favorecem e a quem elas prejudicam. Afinal,
como revela o referido autor, “as lacunas ideológicas não interessam aos juristas” (BOBBIO,
1995, p. 142).
Diante do exposto, percebe-se que ao direito positivo não importa a aceitação da
sociedade, afinal, nesta concepção, o direito é heterônomo, isto é, sujeita os indivíduos de
uma sociedade às suas normas, independentemente de sua aceitação, de ser justa ou não.
A completude do ordenamento é meramente formal e carece do valor de justiça.
Essa lacuna confere ao direito positivo o poder de legitimar arbitrariedades de quem é
responsável por produzir e aplicar as leis, uma vez que o que têm valor para o positivismo é
6 Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635>. Acesso em
02 de abril de 2014. 7 A mutação constitucional é um método de interpretação que modifica o sentido de normas contidas na
Constituição Federal sem alterar sua redação. Sua finalidade é atualizar e harmonizar a norma maior com a
realidade social, com os valores do momento histórico. No caso em tela, a Constituição brasileira não previa no
seu texto a constituição familiar a partir de laços homoafetivos. Após o julgamento de uma ação originada da
necessidade de casais homossexuais de terem seus direitos familiares e conexos reconhecidos, o STF adotou essa
técnica interpretativa para atender aos anseios desse grupo de pessoas.
25
sua natureza estatal. Nessa concepção “avalorativa” do direito, não há preocupação com o
conteúdo social da norma ou com os efeitos políticos das decisões (MACHADO, 2009, p.
127). Conforme já exposto, a intencionalidade da norma no contexto da sociedade capitalista
é manter interesses da classe dirigente; é vulnerável, portanto, às suas decisões em cada
momento histórico.
A história está repleta de exemplos de formas de dominação desumanas
amparadas pela norma. As atrocidades produzidas pelo nazismo ao legitimar o extermínio de
judeus e a ditadura militar no Brasil, que por duas décadas reprimiu a liberdade de brasileiros
e brasileiras, inclusive através da tortura, ilustram essa deficiência do positivismo em
desconsiderar o valor de justiça, legitimando graves violações de direitos humanos.
1.1.5 Abstração
A dogmática jurídica se constitui a partir de uma dupla abstração (FERRAZ
JURNIOR, 20014, p. 43), uma vez que seu objeto se constitui das normas (dogmas de ação) e
das regras de interpretação (dogmas do comando hermenêutico). Ou seja, “um produto
abstrato, as regras, que tem por objeto outro produto abstrato, as normas” (FERRAZ JUNIOR,
2004, p. 68).
Disto, vislumbram-se duas consequências: o distanciamento da realidade a partir
da abstração da abstração – a regra abstrata que interpreta norma abstrata construída sem
vínculo com a sociedade –, e a liberdade e independência de se instituir no ordenamento
positivo como direito o que bem entender – sem essa vinculação, não há limites para norma, a
não o ser os instituídos por ela mesma.
A abstração do direito leva, por conseguinte, à abstração do indivíduo. Cria-se a
ficção jurídica da igualdade de todos perante a lei, ocultando as diferenças sociais
(MACHADO, 2009, p. 42).
No processo, por exemplo, as figuras do autor e do réu encobrem o contexto dos
sujeitos envolvidos ao passo que transpõem o caso concreto para o mundo jurídico, no qual o
campo de visão é restrito à situação-problema. Esta, por sua vez, não costuma ser
compreendida no processo como fruto dos condicionamentos sociais, políticos, econômicos.
Da mesma forma ocorre com os seus sujeitos – Joana e Maria são apenas autora e ré do
conflito, proprietárias de um nome, de um registro civil e de um endereço, mas sem história,
sem contexto. A decisão sobre o conflito é formulada a partir de papéis, documentos, ritos
formais, ou seja, permanece na abstração, não se comunica com a realidade, com as
26
condicionantes sociais, políticas e econômicas da questão analisada.
A partir das análises apresentadas, observa-se que todos os aspectos convergem
para construção do direito como instrumento de manutenção do status quo. Neutraliza-se,
formaliza-se e se abstrai com o fim de instituir-se legítimo, inquestionável e exclusivo. Os
cinco fatores da teoria positivista do direito apresentados dialogam, portanto, com outros
aspectos da formação jurídica dogmática, como o distanciamento da realidade, a resignação, o
conservadorismo, a formação acrítica, a seguir expostos.
1.2 O ensino jurídico dogmático e o Curso de Direito da UFRN
A concepção do direito enquanto norma é tradicionalmente dominante nas
faculdades de direito, e no Curso de Direito da UFRN não é diferente.
Isto se depreende da relação já analisada entre direito e dominação, revelada pela
história. A burguesia tem se constituído como classe dominante desde o século XVIII, quando
na Revolução Francesa, tomou o poder do Estado, instituindo o império da lei para legitimá-
lo. Neste sentido, é criada a ciência do direito, manipulada pelo enfoque dogmático, no intuito
de fortalecer a teoria positivista e, assim, manter a burguesia no posto de classe dominante.
Desde o Renascimento, as alterações sociais, a complexidade populacional, o
crescimento da atividade mercantil modificam as relações concretas de poder, como
havia na Idade Média (suserano/súdito), que são substituídas por uma outra, da qual
a burguesia se apossará rapidamente. Esse novo tipo de poder, que Foucault
(1982:188) chama de poder disciplinar, não é mais apenas poder sobre o território,
mas sobre o corpo e seus atos, numa palavra, poder sobre o trabalho. Esse poder é
mais racionalizável, pois não é descontínuo, nem ocorre apenas quando necessário,
nem tem instrumentos ocasionais como imposições assistemáticas de impostos, mas
é contínuo, permanente e exige um sistema de delegações. Com isso, uma ideia
central para a teoria das fontes, a noção de soberania, adquire certa flexibilidade
abstrata que esconde as relações de propriedade como poder e cria a impressão de
que tudo tem uma base naturalmente econômica, competindo ao poder político zelar
convenientemente por elas. (...) O exercício do poder, contínuo e permanente, ocorre
agora por meio de instituições, procedimentos, dispositivos de segurança, que fazem
surgir uma série de aparelhos, os aparelhos de Estado, de produção econômica, de
controle social. Nesse contexto, é preciso um saber novo, capaz de definir, a cada
instante, o que deve competir ao Estado, à sociedade privada, ao indivíduo. E aí que
entra a ciência dogmática moderna. E a teoria das fontes é, assim, um de seus
instrumentos primordiais, pois, por meio dela, torna-se possível regular o
aparecimento contínuo e plural de normas de comportamento sem perder de vista a
segurança e a certeza das relações (FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 219-220).
Com a ascensão da classe burguesa ao poder, a sociedade passa a ser regida por
valores por ela concebidos, como a liberdade de mercado, a razão, a legalidade. De acordo
com Edgardo Lander (2005, p. 8), essa sociedade cria o fenômeno da naturalização das
27
relações sociais a partir da construção de um pensamento que omite a existência de outras
forças políticas, então derrotadas; que padroniza esses valores e que apresenta a sociedade
liberal como a única possível, na qual não há ideologias nem outras possibilidades de modo
de vida satisfatório.
Esse pensamento é forjado pelas ciências sociais, utilizadas como instrumento de
naturalização a partir de duas dimensões (LANDER, 2005): das separações do mundo real e
da forma como os saberes se articulam com a organização do poder. Na primeira, tem-se a
separação entre razão e mundo, produzindo-se, daí, um conhecimento descorporizado e
descontextualizado que se pretende ser universal; além da separação entre os ditos
especialistas e a população em geral. Na segunda, pode-se citar a construção do Direito e da
ideia de direitos universais, que apenas o são enquanto coadunarem com o modelo de
sociedade liberal, o que está de fora não é legítimo, portanto.
Dessa forma, excluindo o diferente e impondo uma só verdade e uma só visão de
mundo, se constituíram as disciplinas das ciências sociais (LANDER, 2005, p. 13). Partindo-
se dessa premissa, o Direito, como uma ciência social, portanto, reproduz essa lógica da
naturalização construída a partir do conhecimento distanciado da realidade e voltado para a
manutenção da ordem social, servindo à dominação burguesa.
De acordo com Machado (2009), o direito é um fenômeno ideológico,
condicionado por diversos interesses, políticos, econômicos, sociais. Na sociedade capitalista,
portanto, o direito positivado assimila os interesses de quem detém os meios de produção,
mas tenta ocultar essa absorção como se neutro fosse:
Apesar de tais evidências de que o direito encerra mesmo um conteúdo axiológico, o
fato é que o direito liberal burguês, na modernidade, procurou sempre produzir um
discurso tendente à ocultação dos aspectos valorativos, tanto da produção quanto da
aplicação e também do ensino do direito. No século 20, por exemplo, a ideologia
jurídica prevalecente, o normativismo positivista, logrou um espantoso êxito nessa
tarefa de ocultar as dimensões axiológicas do direito e da sua ciência, impondo-se
como a mais prestigiada maneira de conhecer o fenômeno jurídico, de aplicá-lo e de
transmiti-lo de modo politicamente asséptico. (...) a dogmática jurídica é hoje o
único paradigma aceito para a ciência do direito, como decorrência da visão
normativo-positivista prevalecente no mundo ocidental, sobretudo naqueles
ordenamentos jurídicos influenciados pelo modelo da civil Law (MACHADO, 2009,
p. 36).
No entanto, essa concepção de direito restrita à norma enquanto objeto de estudo
não tem se sustentado frente à velocidade das mudanças sociais, se mostrando ineficaz no
acompanhamento das novas demandas, frente aos questionamentos dessa neutralidade e dessa
produção descontextualizada de conhecimento que apartam o direito da sociedade.
28
Realmente, o normativismo como único objeto da ciência jurídica; o raciocínio
lógico-formal como sua única metodologia; o liberalismo como paradigma
ideológico exclusivo e a mentalidade positivista como base do saber jurídico
tornaram esse saber excessivamente dogmático, inflexível, de cientificidade
duvidosa e alheio às dimensões não normativas do direito. Portanto, um saber e uma
ciência inadequados para a realidade atual, matizada por conflitos coletivos,
mudanças aceleradas, emergência de novos direitos, novos sujeitos, novas demandas
sociais e políticas etc. (MACHADO, 2009, p. 36).
Por conseguinte, o ensino dessa ciência jurídica nas faculdades de direito também
tem vivido uma crise estrutural ao carregar as limitações do positivismo na compreensão do
direito e da técnica jurídica, se mostrando incapaz de oferecer uma formação completa ao e à
estudante e profissional jurista, consoante explica Machado (2009, p. 109):
Essa crise de paradigmas da ciência jurídica atinge, por conseguinte, também a
reprodução do saber e o universo prático do profissional do direito. Atinge o ensino
jurídico porque o mesmo não está mais orientado por padrões didáticos e
pedagógicos que propiciem a formação completa do jurista, capacitando-o para atuar
em meios sociais conflitivos, como mediador de relações que se devem orientar pela
busca da justiça e da democracia, enquanto expressões de igualdade social e
participação política; e atinge também a atuação profissional do jurista, porque essa
atuação há muito se tornou um fazer simplesmente tecnológico, despolitizado e
exercido com total indiferença pelos critérios éticos de justiça, quer distributiva,
quer comutativa (MACHADO, 2009, p. 36).
Portanto, a crise do ensino jurídico tem como pressuposto a crise do paradigma
positivista do direito. Isto é, indica que a reforma da educação jurídica passa pela
reformulação de conceitos ligados ao direito, pela desconstrução da ideia de neutralidade, dos
dogmas positivistas, do formalismo excessivo. Pois o dogmatismo aliena; o formalismo
excessivo e a abstração distanciam da realidade; o conservadorismo se imprime nos métodos
pedagógicos e na ausência de diálogo entre docente e discente; a visão restrita diviniza o
direito; o individualismo direciona estudantes a cargos e empregos, e não ao mundo para
exercerem sua função social.
Dessa forma, os problemas do ensino jurídico são situados, no presente trabalho,
através de elementos definidos a partir da realidade que vivenciei no Curso de Direito da
UFRN, sendo fruto, portanto, de uma vivência. A seguir, esses aspectos são abordados
individualmente a fim de um maior aprofundamento e buscando relacioná-los à realidade
local, através de dados e exemplos.
1.2.1 Muita reprodução e pouca reflexão
29
O direito ensinado na perspectiva positivista e dogmática conduz
hegemonicamente a uma formação jurídica acrítica e acomodada.
Primeiro porque a confusão entre direito e lei é demasiadamente restrita e formal,
ignorando o valor de justiça em detrimento da superestimação da norma, constituindo-se no
dever de obediência à ordem vigente. Segundo porque o enfoque dogmático não permite
questionamentos, mas apenas a aceitação do que está posto. Como dito anteriormente, a
existência da norma é apresentada de forma tão óbvia, que não haveria necessidade de
investigar sua legitimidade.
Isso se expressa por meio do ensino restrito à abordagem de códigos e
jurisprudência, o que torna a formação meramente técnica, capaz de ignorar as implicações do
direito com questões políticas, econômicas e sociais. Afinal, nessa concepção de direito, deve-
se prezar pela neutralidade da norma para assegurar os interesses de quem a produz,
consoante explica Ferraz Junior (2003, p. 74):
Notamos, assim, que o desenvolvimento da dogmática no século XIX em termos de
sua função social, passa a atribuir a seus conceitos um caráter abstrato que lhe
permite uma emancipação das necessidades cotidianas dos interesses em jogo. Com
isso tornou-se possível uma neutralização dos interesses concretos na formação do
próprio direito, neutralização essa já exigida politicamente pela separação dos
poderes e pela autonomia do poder judiciário.
A dogmática impõe padrões de conhecimento, que assim como a norma, devem
ser cumpridos. O direito é acabado, não havendo necessidade de ser transformado. É neutro e
assim deve permanecer. É legítimo e sobre isso não há como existirem dúvidas.
(...) trabalha-se com textos, com leis e documentos, que têm a pretensão de esgotar o
real, de desenvolver uma lógica interna excludente que expele os dados que não
podem ser por ela tratados. O contexto é negado para justificar um abstrato primado
de leis que transitam em um espaço etéreo, no máximo referido pelas malfadadas
“ciências auxiliares” do direito. O ensino jurídico passa a ser um processo de
análises perfunctórias das redundâncias legalistas. As grandes questões da
legitimidade, da justiça, dos conflitos sociais, das dominações políticas e das
desigualdades econômicas, por exemplo, são olimpicamente ignoradas, ocasionando
uma lacuna mutiladora na construção das cabeças dos estudantes de direito
(AGUIAR, 2004, p. 185).
Os dogmas são expostos repetidamente ao longo do curso em cada disciplina, nas
quais se ensina a memorizar e a reproduzir, de modo que pouco se oportuniza a reflexão, a
análise crítica, os debates em sala de aula. Além da estagnação, seus ensinamentos, por não se
preocuparem com fundamentos, mas apenas com a imposição de verdades, tendem a formar
30
estudantes e profissionais reprodutores do senso comum diante da ausência do
aprofundamento teórico e prático e de reflexões críticas, consoante destaca Aguiar (2004, p.
181):
Ora, essa reprodução, essa mesmice do mundo só pode gerar práticas de reprodução
de conhecimentos, nunca de produção, de criatividade, de urdidura de novas
soluções, de emergência de novos modelos de enfrentamento dos desafios que a
sociedade apresenta. (...) mas esses procedimentos são importantes para tornar os
cultores do direito pessoas pacatas dentro da ordem injusta, conservadoras perante as
mudanças, medrosas diante das inovações e pouco atuantes politicamente (...).
No Curso de Direito da UFRN, uma oficina de autoavaliação realizada
recentemente, em 08/04/2014, com estudantes de diversas turmas apontou no relatório essa
mesma realidade nas salas de aula: “alguns professores não contribuem para a produção do
conhecimento pelo aluno, limitando-se a ditar conteúdo para o estudante anotar” (2014, p. 7).
Como participante dessa oficina observei que a maioria dos e das estudantes
presentes se queixam de docentes que se limitam a ler códigos nas aulas, além de exigir nas
avaliações a memorização da letra fria da lei, de súmulas e tratados, castrando a capacidade de
análise crítica dos e das discentes. O referido relatório traz falas de estudantes como: “temos
que decorar as leis para respondermos as provas” e “as provas exigem a prática da decoreba”
(p. 7).
Segundo alguns relatos, a maior parte do corpo docente realiza provas objetivas
para não ter trabalho na correção, sendo essas avaliações semelhantes às provas de concurso
público. Quando discursivas, preservam o caráter objetivo, como em um caso relatado em que
um professor se atém a correções de “datas” de promulgação de leis, ou exigem do e da
discente uma reposta de acordo com o ponto de vista do ou da docente, isto é, que reproduza o
mesmo pensamento. Já quando os e as estudantes se deparam com questões discursivas que
exigem a reflexão e o exercício do pensar, relatou uma estudante que há uma dificuldade
grande para respondê-las, diante do costume de lidar com provas de marcar “x” e que
requerem memorização.
Por outro lado, o que pude observar nessa oficina de autoavaliação no contexto do
Curso de Direito é que as aulas reprodutoras têm despertado um senso crítico no e na
estudante quanto ao modelo de ensino, na verdade, uma negação do ambiente das salas de
aula. A insatisfação generalizada do corpo discente com o ensino legalista, com poucas
oportunidades de debates tem levado estudantes a participarem de atividades extracurriculares
para complementar sua formação jurídica, como é o caso dos projetos de extensão, avaliado
31
pelas pessoas presentes como o ponto forte do Curso8.
Dessa forma, a carência de reflexões nas salas do Curso de Direito acaba
provocando no corpo discente a necessidade de saná-la através de atividades que ofereçam um
aprendizado mais aprofundado, criando um paradoxo no que tange ao ensino legalista.
A carência de reflexões no ensino jurídico também pode ser constatada a partir da
matriz curricular. Os cursos de direito estão repletos de disciplinas meramente técnicas, às
quais sequer há preocupação em dar aplicabilidade e finalidade social, sem haver um
equilíbrio em relação às matérias filosóficas, políticas e sociológicas, o que para Machado
(2009, p. 98), corresponde a uma escolha intencional:
Atualmente é visível que a política de massificação do ensino jurídico consumou
essa tendência de privilegiar matérias e disciplinas tecnológicas nas grades
curriculares das faculdades de direito, em detrimento daquelas que apresentam um
conteúdo mais humanístico e reflexivo. Tais opções curriculares podem ser
entendidas até mesmo com uma estratégia de despolitização do jurista e atrofia do
seu senso crítico, como ingredientes necessários para garantir a inteira subserviência
dos profissionais do direito aos reclamos do mercado (MACHADO, 2009, p. 98).
Essa mesma lógica rege a matriz curricular vigente no Curso de Direito da UFRN.
Além do desequilíbrio entre disciplinas voltadas à formação humanista e as voltadas à
formação profissionalizante, a matriz do Curso apresenta ainda uma distribuição desigual, de
modo que aquelas se concentram nos primeiros períodos, enquanto estas compõem
praticamente toda a extensão do curso, consoante a tabela abaixo:
PERÍODO CARGA HORÁRIA
EIXO FORMAÇÃO
FUNDAMENTAL9
CARGA HORÁRIA
DISCIPLINAS
PROFISSIONALIZANTES10
MANHÃ NOITE MANHÃ NOITE
8 A quem interessa ir além da busca de uma melhoria da formação individual para refletir o direito e o ensino
jurídico, o espaço do Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti e o Programa Motyrum de Educação Popular em
Direitos Humanos, programa de extensão, têm acolhido estudantes indignados e indignadas com a conjuntura do
Curso, nas duas deficiências de ensino e nos problemas relacionados ao quadro docente. 9 De acordo com o Projeto Político Pedagógico (2010) do Curso de Direito da UFRN, o eixo de formação
fundamental consiste nas disciplinas de Antropologia, Ciência Política, Economia, Ética, Filosofia, História,
Psicologia e Sociologia. 10
O Projeto Político Pedagógico faz referência a essa nomenclatura a partir da Resolução nº 09/2o04 da Câmara
de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, do Ministério da Educação, que define no art. 5º, II o
eixo de formação profissional como aquele que abrange “além do enfoque dogmático, o conhecimento e a
aplicação, observadas as peculiaridades dos diversos ramos do Direito, de qualquer natureza, estudados
sistematicamente e contextualizados segundo a evolução da Ciência do Direito e sua aplicação às mudanças
sociais, econômicas, políticas e culturais do Brasil e suas relações internacionais, incluindo-se necessariamente,
dentre outros condizentes com o projeto pedagógico, conteúdos essenciais sobre Direito Constitucional, Direito
Administrativo, Direito Tributário, Direito Penal, Direito Civil, Direito Empresarial, Direito do Trabalho, Direito
Internacional e Direito Processual”.
32
1º 300h 300h 0h 0h
2º 150h 90h 210h 210h
3º 120h 120h 240h 180h
4º 30h 30h 300h 240h
5º 0h 0h 330h 270h
6º 0h 0h 330h 300h
7º 60h 60h 240h 270h
8º 30h 30h 210h 180h
9º 0h 0h 150h 150h
10º 0h 0h 0h 90h
11º X 60h X 120h
TOTAL 690h 690h 2.010h 2.010h
Tabela 01. Distribuição das Cargas horárias obrigatórias mínimas na matriz curricular dos turnos da manhã (dez
períodos) e da noite (onze períodos). Fonte: produção própria a partir de dados do SIGAA11
.
Conforme se vê, a quantidade de carga horária entre os tipos de disciplinas é
dispare. As horas destinadas às disciplinas profissionalizantes representam mais que o dobro
das disciplinas do eixo fundamental, evidenciando o perfil tecnicista do Curso de Direito da
UFRN, isto é, a prevalência da razão tecnológica ou instrumental (MACHADO, 2009). Sobre
isso o relatório aponta a opinião discente:
A proposta de formação humanista, conforme prevê o projeto pedagógico, é
interessante; todavia, o ensino não corresponde ao previsto. É centrado,
essencialmente, na perspectiva legalista. (2014, p. 6).
Interessante observar que o atual Projeto Político Pedagógico do Curso se propôs
a corrigir essa deficiência detectada na matriz curricular anterior, de 2007, consoante afirma
no “diagnóstico do curso”:
Por outro lado, o atual currículo não atende às exigências da resolução n. 9/2004 no
que diz respeito às disciplinas que compõem o eixo de formação fundamental.
Apesar de existir uma preocupação com a formação humanística do profissional do
direito, falta-lhe conhecimento na área da antropologia e da psicologia assim como,
uma melhor distribuição das disciplinas e da carga horária no decorrer dos semestres
de forma a atender, da melhor maneira possível, a compatibilidade entre o conteúdo
e o nível de compreensão (2010, p. 10).
Todavia, tal pretensão não se concretiza na realidade, de modo que o objetivo
traçado de “estimular a formação humanista do aluno para que este entenda a realidade social
e seja um agente transformador” (2010, p. 12) não é percebido também pelo corpo docente
como algo que acontece na prática, de acordo com o relatório da oficina de autoavaliação:
11
Sistema Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas.
33
A formação humanista contemplada nos objetivos e perfil do curso encontra-se
prejudicada porque “existe discrepância entre o que está no Projeto e a prática”; “as
disciplinas humanistas são desprezadas pelos professores e até pelos alunos”. (2014,
p. 9).
Diante do exposto, nas palavras de Lyra Filho (1980, p. 6), é o direito errado,
ensinado de forma errada. O erro está na concepção limitada que reforça o direito como
instrumento de dominação. Está no ensino jurídico dogmático que forma um exército a
serviço da classe dominante, para reproduzir naturalmente seus dogmas e manter seus
privilégios, na medida em que atribui um valor excessivo à norma, ou seja, algo abstrato, sem
discutir a sua legitimidade (MACHADO, 2009).
(...) o processo de conhecimento puramente normativista do fenômeno jurídico, e a
reprodução desse saber pautado por paradigmas epistemológicos também
ideologizados, transforma o ensino e as escolas de direito em verdadeiros “aparelhos
ideológicos” da burguesia, para utilizar a conhecida expressão de Althusser,
realizando automaticamente a difusão dos valores, objetivos e aspirações da classe
detentora do poder econômico, social e político (MACHADO, 2009, P. 58).
O ensino jurídico pautado na reprodução seja de códigos, de ideias ou de opiniões
próprias do ou da docente não estimula o senso crítico do ou da estudante, a não ser nos casos
em que a prática pedagógica provoca tamanha indignação que faz o ou a estudante buscar
espaços como o Centro Acadêmico ou o Programa Motyrum, como ocorre no Curso de
Direito da UFRN, conforme já exposto.
Todavia, o problema do ensino reprodutor está na restrição do debate, da
possibilidade de refletir e questionar sobre o que é dito em sala de aula, de criar
conhecimento. Esta questão também está ligada à prática pedagógica, no sentido da existência
do diálogo em sala de aula que permita a discussão e o aprofundamento do conteúdo.
Quando o ensino é reprodutor, e reprodutor do que está na lei, à qual é associada a
ideia do dever de obediência, ainda que não haja concordância, acaba disseminando uma
concepção de direito inquestionável (pois direito é norma) que atende a apenas uma parcela
da sociedade que não é maioria, mas é quem domina os meios econômicos de produção, os
meios de comunicação, o poder político e, portanto, a produção de leis.
É nesse sentido de não questionar a legitimidade, o conteúdo das normas, o seu
valor de justiça para a sociedade, de perpetuar essa visão classista do direito que mais provoca
exclusão social do que inclusão e mais injustiça do que justiça (MACHADO, 2009), que o
ensino jurídico dogmático se constrói e hegemoniza uma visão única do direito.
34
É dessa forma que a formação humanista e politizada do e da estudante de direito
dá lugar aos interesses de mercado formando juristas cuja figura mais se aproxima de um
operário ou de uma operária industrial do século XX, retratada por Charles Chaplin no filme
Tempos Modernos (1936), do que de um ou uma profissional intelectual. Ou seja, a
reprodução, junto à repetição de uma mesma concepção de direito permite a formação de
juristas que agem mecanicamente seguindo aqueles conceitos depositados em suas mentes,
que passam por um processo de aprendizagem castrador do pensamento e da liberdade
criativa. São profissionais encharcados de conceitos de técnicas, ás vezes até aptos a aplicá-las
repetidamente (e reproduzindo-as repetidamente), mas que não conhecem o sentido delas, a
relação com a sociedade, a sua origem, que não questionam sua existência, sua forma, seu
objetivo.
1.2.2 O apego à lei, o excesso de teoria e o distanciamento da realidade
A adoção do positivismo como compreensão dominante do direito também produz
como consequência a constituição de uma formação jurídica apartada da realidade. Isto
porque, diante da supremacia e do primado da lei, não há espaço para o reconhecimento de
outras formas de expressão do direito que surgem na vivência social; os olhos dos e das
juristas estão voltados para artigos, doutrinas e decisões judiciais, o que seria então o direito, e
não para os acontecimentos concretos. É o que afirma Machado (2009, p. 49):
(...) a questão do método, tal como adotado pelos cursos jurídicos em geral, é talvez
o fato preponderante pelo qual o ensino do direito no Brasil mergulhou
definitivamente num abstratismo estéril, capaz de formar bacharéis versados em
formalidades legais e inteiramente alheios aos problemas políticos. Vale dizer, na
medida em que vai prevalecendo, quase que de forma incontestável, a opção pelo
método lógico-formal, e pelo modelo didático compatível com essa espécie de
metodologia, o ensino do direito vai cada vez mais se distanciando de suas bases
históricas, para assumir um caráter nitidamente retórico, em que a formação do
jurista se resume num discurso sobre as formas ideais de comportamento humanos,
sem qualquer consideração pela realidade ou pelos aspectos valorativos ou
ideológicos desses comportamentos.
No Curso de Direito da UFRN, o problema do distanciamento da realidade é
observado a partir de dois vieses: o excesso de disciplinas teóricas técnicas em detrimento dos
módulos de prática jurídica, voltados à aplicabilidade desse instrumental profissionalizante; e
a forma de ensino dessas disciplinas teóricas e práticas, no sentido de discutir e assimilar o
conteúdo ao que acontece no mundo, às atualidades, novos direitos, problemas sociais,
35
políticos, econômicos etc., como também quanto à função social que o Curso exerce na sua
localidade, isto é, no envolvimento com os problemas locais e no atendimento da população
naquilo que ela demanda, por exemplo.
No primeiro viés, podemos observar que a matriz curricular do Curso de Direito
apresenta uma carga horária discrepante de disciplinas teóricas em relação à exigida nos
módulos de prática jurídica, conforme a tabela abaixo:
PERÍODO CARGA HORÁRIA
DISCIPLINAS
PROFISSIONALIZANTES
CARGA HORÁRIA
MÓDULOS DE
PRÁTICA12
MANHÃ NOITE MANHÃ NOITE
1º 0h 0h 0h 0h
2º 210h 210h 0h 0h
3º 240h 180h 0h 0h
4º 300h 240h 0h 0h
5º 330h 270h 0h 0h
6º 330h 300h 0h 0h
7º 240h 270h 120h 0h
8º 210h 180h 60h 120h
9º 150h 150h 75h 60h
10º 0h 90h 75h 75h
11º X 120h x 75h
TOTAL 2.010h 2.010h 330h 330h
Tabela 02. Distribuição das Cargas horárias obrigatórias mínimas na matriz curricular dos turnos da manhã e da
noite. Fonte: produção própria a partir de dados do SIGAA.
Os dados acima revelam uma deficiência quantitativa e de distribuição. A carga
horária das disciplinas teóricas técnicas chega a ser o sêxtuplo do que é exigido para os
módulos práticos. Além disso, há uma concentração excessiva destes nos últimos períodos, o
que não possibilita uma formação concomitante entre teoria e prática. Assim opinou
estudantes participantes da oficina de avaliação:
Há predominância de aulas teóricas, necessitando de mais exercício da prática como,
por exemplo, estudos de caso. Teoria e prática se completam, mas no curso de
Direito predomina simplesmente a teoria. Os alunos afirmaram haver uma acentuada
deficiência em relação à oferta de disciplinas práticas. Consideram que algumas
disciplinas optativas deveriam ser obrigatórias. As disciplinas são mal distribuídas e
ofertadas em horários impraticáveis para os estudantes (2014, p. 7).
Quanto ao método de ensino, observo que há um distanciamento da realidade
12
Aqui não adotei o critério da Resolução nº 09/2004 da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de
Educação, que abrange o Estágio Curricular Supervisionado, Trabalho de Curso e Atividades Complementares,
mas o da carga horária mínima exigida de módulos de prática oferecidos pelo Curso, divididos em “prática
jurídica I, II, III e IV”. O motivo da escolha é delinear o estudo comparativo no âmbito dos componentes
curriculares com natureza de disciplina.
36
concreta nos dois âmbitos, teórico e prático.
No âmbito teórico, as aulas são em sua maioria expositivas e apresentam um
conteúdo abstrato, no sentido de sua aplicabilidade prática, que comumente não guarda
qualquer relação com atualidades, com vidas concretas, com o que brota a cada dia na
dinâmica social. Os exemplos se resumem aos sujeitos Tício, Caio e Mévio, autores e réus
que litigam apenas em conflitos individuais. Isto é, homens, indicando nas entrelinhas a
predominância masculina, e que não têm cor, classe ou contexto social, omissão que visa
dissimular a desigualdade real (MACHADO, 2004, p. 123). Logo, tal abstração revela uma
intencionalidade, a de mascarar os conflitos sociais para assegurar sua suposta legitimidade.
(...) para conservar aquele mito da “neutralidade”, afirma que o Direito é apenas uma
técnica de organizar a força do poder; mas, desta maneira, deixa o poder sem
justificação, como que nu e pronto a ferrar todo o mundo, mas de calças arriadas,
com perigo para sua dignidade; portanto o mesmo Kelsen acrescenta que a força é
empregada “enquanto monopólio da comunidade” e para realizar “a paz social”.
Desta maneira, opta pela teoria política liberal, que equipara Estado e comunidade,
como se aquele representasse todo o povo (ocultando, deste modo, a dominação
classística e dos grupos associados a tais classes). Chama-se, então, de “paz social” a
ordem estabelecida (em proveito dos dominadores e tentando disfarçar a luta de
classes e grupos) (LYRA FILHO, 1982, p. 23)
De volta às compreensões de estudantes sobre o Curso, na oficina de avaliação,
um estudante relatou que há professores que chegam a adotar como referencial bibliográfico
para acompanhamento das aulas e para provas avaliativas, livros de doutrina ultrapassados,
anteriores à vigência de códigos legislativos. De acordo com o relatório, “o conteúdo é
desconectado da proposta pedagógica do curso e da realidade social” (2014, p. 6).
Assim, a desatualização não é apenas quanto à lei, mas para além dela. A maioria
das aulas não acompanha o que acontece na atualidade. Isso pode ser visto como
consequência do ensino dogmático positivista, que ensina o direito como algo isolado, criando
um mundo à parte, das normas, das súmulas, das técnicas, desvinculado da realidade sócio-
histórica (MACHADO, 2009).
No contexto do Curso de Direito, esse descompasso fica evidente na conduta de
docentes que repetem o mesmo roteiro de aulas e as mesmas avaliações a cada semestre, sem
qualquer atualização, o que, conforme registra o relatório, apresenta uma consequência
preocupante quanto à postura do corpo discente, que acaba limitando o estudo da disciplina
durante todo o semestre às provas avaliativas repetidas, que circulam já acompanhadas das
respostas: “Há disciplinas em que as provas são repetidas durante anos, sem reavaliação, ao
ponto de os alunos se acomodarem e passarem a estudar as provas anteriormente aplicadas,
37
sem nenhuma alteração” (2014, p. 7).
Quer dizer, além de ser um ensino naturalmente desatualizado e
descontextualizado por se ater à da reprodução da norma, ainda há o agravante desse tipo de
conduta, que contribui ainda mais para a ausência de aprofundamento teórico nas aulas, como
também desestimula ainda mais o e a estudante a buscá-lo. Ocorre, por assim dizer, uma
dupla desatualização.
À exceção de temas polemizados e promovidos pela mídia, o ensino do direito
não acompanha o tempo presente e, ainda quando se presta a debater esses temas, o faz de
maneira superficial e acrítica (AGUIAR, 2004, p. 187), vez que o contato com a realidade é
pontual, que o ensino é ainda descontextualizado e restrito à técnica jurídica. Ou seja, diante
de um caso noticiado referente a um homicídio provocado por um adolescente, sobre o qual a
mídia está debatendo a redução da menoridade penal, por exemplo, há uma tendência a
reproduzir o senso comum a favor da redução, sem um debate crítico do sistema carcerário,
das garantias da criança e do adolescente, da ausência de políticas públicas para a juventude,
portanto, sem uma discussão politizada e aprofundada do tema, revelando uma opção política
pelo não envolvimento do ensino jurídico com essas questões, para garantir a “pureza” do
direito.
Esse discurso da neutralidade contribui para esse distanciamento do mundo real na
medida em que situa o direito como aquilo que está livre de influências políticas, culturais,
econômicas, religiosas. A instituição do “dever-ser” como mundo ideal que não se comunica
com o mundo real denota uma separação de duas realidades, uma jurídica e outra não-jurídica,
de modo que esta não interessa à ciência do direito, consoante o positivismo de Kelsen (1960,
p. 12). Desse modo, a formação jurídica proporcionada pelo ensino jurídico dogmático
permite conferir ao e à estudante de direito apenas habilidades técnicas sem uma visão
política do fenômeno jurídico (MACHADO, 2009, p. 125).
Esse plano abstrato que é o mundo jurídico, com seu caráter imperativo, acaba
gerando uma aceitação o que está posto enquanto norma. Esta, produzida por quem tem o
poder político e econômico, traz em seu conteúdo o reforço da dominação socioeconômica,
consoante explica Machado:
Convém lembrar que a norma, na sua gênese, envolve sempre opções valorativas e é
o resultado de uma correlação de forças políticas nos parlamentos. Logo, numa
sociedade capitalista, quando a teoria do direito opta pelo simples conhecimento
descritivo de normas, está optando, automaticamente, também pela reprodução
descritiva dos valores burgueses nela internalizados (2009, p. 114).
38
Esses valores burgueses, impressos na norma, são, então, tidos como neutros. Daí
que, como consequência, aquilo que afronta esses valores passa a ser evitado ou combatido, e
rotulado como “o que tem lado”, como uma orientação política, que contraria a natureza
“neutra” do direito, mascarando o viés político e ideológico por trás dessa concepção.
Assim, o ensino jurídico que se diz neutro, busca se afastar das discussões
políticas, reproduzindo essa aversão nas mentes dos e das estudantes, que tendem a não se
envolver com questões dessa natureza, acreditando que assim não “possuem lado” no jogo das
forças políticas. Explica Machado:
(...) o questionamento das condicionantes socioeconômicas, políticas e culturais do
direito, sobretudo na perspectiva da vulgata kelseniana, não se inscreve no rol de
preocupações do jurista. Este deve permanecer imune àquelas influências como
condição de sua pretensa neutralidade e garantia de “pureza” do seu saber. Essa
formação cultural faz com que o jurista não perceba, de imediato, os interesses
econômicos que já estão internalizados, como expressão do interesse geral, na
estrutura normativa do direito positivo, e passa a operar este último de forma
mecânica e abstrata. Portanto, de forma absolutamente distanciada da realidade
sócio-histórica, como se sua atuação fosse politicamente neutra e indiferente a
valores (2009, p. 125).
Esse discurso de neutralidade é reproduzido no Curso de Direito da UFRN,
quando nas aulas pouco se fala sobre movimentos sociais e partidos políticos, por exemplo. A
título de ilustração, na disciplina de direitos reais, ao falar sobre função social da propriedade,
o professor não menciona a existência do maior movimento social do país que luta pela
reforma agrária, pela efetivação dessa função – o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra.
Da mesma forma, a disciplina de direitos humanos fundamentais não aborda a práxis de
movimentos e grupos voltados a esse tema, nem mesmo pautas relacionadas, como questões
relativas à defesa de minorias como mulheres, índios, negros, movimento LGBT etc..
Dois casos podem ilustrar de forma clara a intencionalidade do discurso de
neutralidade no Curso de Direito. O primeiro ocorreu numa plenária de departamento em que
o Programa Motyrum de Educação Popular em Direitos Humanos propôs o oferecimento de
dois módulos de prática jurídica, um sobre direito agrário e outro sobre direitos humanos,
duas professoras se manifestaram contra: uma comentou que o Curso estava se propondo a
defender “bandidos” e outra perguntou, indignada, se o Curso iria formar advogados para o
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. A esta última, outro professor respondeu
ironicamente com uma pergunta: “já não formamos advogados para a Petrobrás?”.
O professor se referia ao grupo de pesquisa em direito da energia, vinculado e
financiado pelo Programa de Recursos Humanos em Direito do Petróleo, Gás Natural e
39
Biocombustíveis da Agência Nacional do Petróleo (ANP). É o projeto mais estruturado do
Curso, no que tange à realização de atividades e ao financiamento, oferecendo atualmente
dezesseis disciplinas da matriz curricular do Curso exclusivamente para integrantes, além de
envolver três dos poucos professores em regime de dedicação exclusiva13
do Curso de tal
maneira que o único docente titular14
apenas ministra aulas na graduação correspondentes a
essas disciplinas, que já suprem boa parte da sua carga horária.
Quer dizer, há toda uma estrutura voltada à formação de profissionais para uma
área restrita do direito e direcionada à prestação de serviço para a Petrobrás, inclusive
envolvendo um número significativo – considerando o contexto do curso15
- de docentes com
dedicação exclusiva nas suas atividades, gerando um déficit de orientação no Curso de
Graduação. Porém, as professoras preferiram criticar a iniciativa que contemplava um estudo
prático do direito para servir como instrumento jurídico em favor de movimentos sociais que
atuam na defesa de direitos humanos, reagindo com espanto ao que não segue a lógica da
suposta neutralidade.
O outro caso envolve a reprodução desse discurso por uma parte do corpo discente
do Curso. Trata-se da reação de estudantes à composição da mesa da V Aula Magna do Curso
de Direito da UFRN16
, cujo tema era “Os direitos da comunidade LGBT” e os palestrantes
eram o Deputado Federal Jean Willys e o Professor de direito da UFG, José Humberto de
Góes Junior. Questionava-se a ausência de um palestrante que representasse o “outro lado”,
isto é, o posicionamento conservador que oprime a comunidade LGBT, e acusavam o Centro
Acadêmico Amaro Cavalcanti de não proporcionar um debate justo e neutro, com “os dois
lados” na mesa.
As condutas das professoras e dos e das estudantes que reivindicaram a presença
da ideia conflitante na mesa do evento refletem a ausência do debate sobre direitos humanos
no Curso, direitos que diariamente são violados, retratando a diversidade de problemas sociais
existentes no mundo, como a miséria, o trabalho escravo, a violência doméstica, o extermínio
da juventude negra, entre outros assuntos. Docentes e discentes que assumem a postura de
13
De acordo com o art. 159 do Regimento Interno da UFRN, corresponde ao regime de obrigação de 40
(quarenta) horas semanais de trabalho, em que há impedimento do exercício de outra atividade remunerada,
pública ou privada. Esse tipo de regime implica diretamente na orientação de atividades de pesquisa e extensão,
uma vez tendo como único compromisso as atividades universitárias. 14
Trata-se do nível mais elevado da carreira de magistério superior, de modo que além da exigência do título de
doutorado, exige o período de dez anos de experiência como docente. 15
Adiante apresento uma tabela indicando a quantidade de docentes no Curso de acordo com seu regime de
trabalho. 16
Evento organizado pelo Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti que tradicionalmente inaugura o semestre de
aulas do curso.
40
contestar a inserção desses temas no Curso parecem estar alheios à realidade e
despreocupados com que ocorre fora dos muros da universidade.
Refletem ainda uma intencionalidade de manter longe no espaço acadêmico esse
tipo de discussão. É como se essas iniciativas ameaçassem a “neutralidade” do ensino jurídico
e a “paz” nos ambientes da universidade, no sentido de interferir na passividade das aulas
teóricas, expositoras e reprodutoras da letra fria da norma.
Há docentes que demonstram ainda uma preocupação com o cumprimento do
programa da disciplina, algumas vezes extenso para o período de tempo, se mostrando avesso
aos debates para não atrapalhar o planejamento, ou seja, prezando pela quantidade e não pela
qualidade. O que também reflete a mesma intencionalidade, quando se enche as disciplinas de
conteúdos, cujo rol é impossível de ministrar em sua inteireza diante de outras atividades da
universidade como seminários, feiras de ciência e cultura, de feriados e da própria compressão
do tempo do semestre.
Todavia, importante ressaltar que essa postura de ignorar os debates que
envolvam atualidades na sala de aula toma também outra conotação possível no corpo
discente, em alguns casos preocupado estritamente com os conteúdos de provas de concurso
público, a lhe garantir um bom futuro com estabilidade econômica, consoante afirmou o
grupo de docentes que participou da oficina de avaliação: “Segundo os professores, os alunos,
na sua maioria, se preocupam com o Exame da Ordem (OAB) e com os concursos públicos”
(p.10).
Em linhas gerais, há uma intenção política de manter-se distante da realidade, que
é manter a “neutralidade” do direito, isto é, manter a estrutura de dominação socioeconômica.
Isto porque o descompasso com a realidade revela as fragilidades do positivismo frente a sua
incapacidade de regular todas as relações sociais, levanta questionamentos sobre sua
legitimidade, sobre concepções de justiça, ameaça, portanto, o status quo.
Sem a implicação com a realidade concreta, os cursos de direito também se
apresentam deficientes na discussão e no envolvimento com demandas locais, conforme
assinala Roberto A. R. de Aguiar (2004, p. 183):
(...) em regiões com graves problemas ambientais, o direito ambiental não consta no
currículo; nas que apontam problemas minerários, o direito da mineração é
ignorado; nas regiões de grave conflito rural, o direito agrário não é tocado. É como
se o direito existisse independentemente das sociedades que tem de normar.
Na realidade do Curso de Direito da UFRN existe um paradoxo quanto a essa
41
questão. A matriz curricular pouco contempla em sua estrutura disciplinas teóricas ou práticas
que se voltem aos problemas locais. Dentre as teóricas estão previstas as disciplinas de Direito
urbanístico, Direito agrário, Direito ambiental e Direito da criança, do adolescente e do idoso,
todas optativas de acordo com o projeto político pedagógico (2010, p. 16). Porém, das quatro,
apenas as duas últimas têm sido oferecidas nos últimos cinco anos do Curso, período em que
fui estudante.
Aliás, a título de exemplo, é interessante observar a importância do Direito
urbanístico no contexto de produção do espaço urbano hoje em Natal. A expansão do mercado
imobiliário e da construção civil nos últimos anos tem provocado através da valorização de
áreas centrais da cidade, a saída de famílias pobres para lugares distantes dos centros urbanos
e de serviços públicos e comerciais, violando o direito à moradia e à cidade da população de
baixo nível socioeconômico, consoante aponta Silva (apud Moraes, Vivas e Sobrinha, 2008,
p. 39):
(...) a expansão habitacional ocorrida em Natal, notadamente a partir dos anos 1980,
seguiu um modelo de urbanização periférica, primordialmente através da segregação
da população mais pobre em áreas específicas da cidade. A construção de conjuntos
habitacionais por parte do Estado e a abertura de loteamentos, na maioria ilegais,
consolidaram extensas áreas residenciais caracterizadas por: pouca diferenciação de
rendas familiares (a maioria de baixa renda), com baixo padrão construtivo, bairros
com carência no provimento de serviços e infra-estrutura (como escolas,
saneamento, segurança, abastecimento de água, etc) (...).
Por outro lado, um programa de extensão do Curso, o Programa Motyrum, através
do núcleo urbano, tem realizado um trabalho de educação popular nas periferias de Natal,
sobre o qual detalho no capítulo III, provocando discussões no ambiente acadêmico através de
eventos que trazem a realidade desses locais e do próprio contexto da cidade, como foi o caso
do evento organizado em conjunto com o Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti sobre o
direito à moradia, realizado em 28 de outubro de 2010 com a presença de um dos
coordenadores do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), Welington
Bernardo, na mesa de debates (BEZERRA; BONAVIDES, 2010, p. 6). E outro evento com o
tema “(I)mobilidade urbana: precariedade do transporte público”, realizado em 18 de outubro
de 2012, tendo como participantes da mesa uma arquiteta, um advogado, uma estudante de
serviço social e um morador do Conjunto Leningrado, que discutiram a temática sobre seus
diversos aspectos, inclusive de quem vivencia a precarização, no caso do morador.
Assim, além de trabalhar temas relacionados aos problemas sociais, o programa
tem buscado envolver os sujeitos e as sujeitas desses problemas nos debates acadêmicos,
42
buscando aproximar o Curso a essas questões, como também garantir a legitimidade e a
coerência de quem vivencia essa realidade (BEZERRA; BONAVIDES, 2010, p. 6).
Quanto à prática jurídica, na oficina de autoavaliação estudantes relataram que a
prática jurídica é, na verdade, teórica. Os módulos que deveriam ensinar o uso prático acabam
apresentando o conteúdo teórico da matéria, seja por não ter um correspondente teórico na
matriz curricular, seja pela deficiência de aprendizagem nas disciplinas teóricas, ou mesmo
por opção de metodologia docente.
Os módulos de prática jurídica oferecidos na matriz curricular Curso de Direito da
UFRN são em sua maioria optativos, de livre escolha do e da estudante, mas vinculados a
uma carga horária mínima. Desse modo, a estrutura dos componentes práticos é organizada da
seguinte forma:
PRÁTICA I
MÓDULOS DE PRÁTICA TIPO CARGA
HORÁRIA
AUTOCOMPOSIÇÃO DE CONFLITOS:
NEGOCIAÇÃO, CONCILIAÇÃO E MEDIAÇÃO
OBRIGATÓRIA 30h
CARREIRAS JURÍDICAS OBRIGATÓRIA 30h
PEÇAS JURÍDICAS I (EXTRAJUDICIAIS) OBRIGATÓRIA 30h
PEÇAS JURÍDICAS II (JUDICIAIS) OBRIGATÓRIA 30h
PRÁTICA II GRUPO DE 4 MÓDULOS OPTATIVOS OBRIGATÓRIA 60h
PRÁTICA III ATENDIMENTOS - PRÁTICA JURÍDICA III OBRIGATÓRIA 30h
GRUPO DE 3 MÓDULOS OPTATIVOS OBRIGATÓRIA 45h
PRÁTICA IV ATENDIMENTOS – ANDAMENTOS
PROCESSUAIS
OBRIGATÓRIA 75h
Tabela 03: Estrutura da carga horária obrigatória mínima da Prática Jurídica. Fonte: dados do SIGAA
organizados em tabela própria.
Analisando a estrutura, observamos que há apenas dois módulos dedicados ao
atendimento da população – “atendimentos” e “andamentos processuais” – dentre o total de
treze módulos a serem cumpridos obrigatoriamente pelo e pela estudante, o que representa
aproximadamente 15% (quinze por cento) desse universo. Na lista de componentes práticos
optativos, portanto sem considerar os da tabela acima, a matriz curricular oferece atualmente
um total de trinta e quatro módulos, de modo que nenhum realiza atendimento. São práticas
voltadas às simulações, visitas a instituições jurídicas, análise de casos concretos, ou seja, que
não proporcionam o contato direto com a realidade concreta.
A prática jurídica do Curso de Direito acaba refletindo o problema do tecnicismo
e do distanciamento da realidade na medida em apresenta uma práxis voltada à aplicação
abstrata dos instrumentos técnicos, que desconhece os sujeitos e as sujeitas do “caso
concreto”, em geral processos e problemas passados (AGUIAR, 2004, p. 187), como descreve
43
a ementa do módulo “Análise de casos concretos I”: “EMENTA: Análise de casos concretos
que já foram solucionados. Análise das teorias jurídicas que já foram utilizadas. Análise do
resultado obtido e dos resultados juridicamente possíveis”17
.
As simulações, por sua vez, também ocorrem entre quatro paredes e tem como
objeto os ritos do Poder Judiciário como audiências de varas judiciais ou tribunais. Os
módulos de “Práticas simuladas”, “Júri Simulado” e “Audiências simuladas” apresentam a
mesma ementa: “tem como objetivo possibilitar ao aluno o conhecimento prático das
estruturas do poder judiciário e da tramitação dos processos, bem como a prática do
consultivo jurídico”18
. O módulo “Organização e funcionamento do Poder Judiciário”, que
consiste em visitas aos fóruns e sessões, tem o mesmo objetivo da ementa descrita.
Dessa forma, esses tipos de prática reforçam a apatia do direito à vida social, sem
proporcionar ao e à estudante a possibilidade de aplicar a técnica jurídica no que é concreto,
no que respira, no que se move, no mundo mesmo; de se deparar com casos que exigem
criatividade e inovação; de no contato com os conflitos sociais, desenvolver a capacidade de
pensar o problema globalmente, nos aspectos sociais, econômicos e políticos e de, buscando
uma adequação, uma efetividade prática, pensar outras alternativas de solução e mediação. A
abstração reforçada pela prática jurídica incorre no risco da inaplicabilidade social dessas
técnicas jurídicas, afinal, a própria norma, quando confrontada com a realidade, se mostra
ineficaz.
Nos dois únicos módulos que permitem o contato com a população, os temas são
muito limitados, abrangendo direito de família e algumas ações de direito real, obrigações e
sucessório19
. Além disso, são definidos pelo Curso, sem uma consulta, sem um diagnóstico
quanto à necessidade do povo. Essa restrição parece ser uma opção do projeto político-
pedagógico do Curso, que na oportunidade de modificar essa situação, preferiu ampliar as
atividades do Estágio Supervisionado e fazer parcerias com outras instituições ao invés de
corrigir essa deficiência:
No que diz respeito ao Estágio Supervisionado propomos a ampliação das atividades
de Prática tendo em vista que atualmente se resume em atendimento que envolve
apenas Direito de Família, para isto ampliaremos os convênios com instituições
públicas e privadas que possam nos oferecer ambiente adequado e acompanhamento
com profissionais capacitados e comprometidos com a aprendizagem, a ética, a
moral e os bons costumes (2010, p. 8).
17
Dados retirados do SIGAA. 18
Idem. 19
Lista de atendimentos disponível em: <http://praticajuridicaufrn.no.comunidades.net/
index.php?pagina=1879996291>. Acesso em: 07 abril 2014.
44
Esses módulos de prática ainda trabalham na perspectiva individualista do direito,
tendo em vista que não atendem coletivos ou movimentos sociais. O critério para o
atendimento, além da correspondência com a lista fixa de problemas jurídicos, é patrimonial,
de modo que o beneficiado ou a beneficiada deve declarar-se pobre para ter receber o
atendimento da Prática; como também possui caráter nitidamente patrimonial ao passo que
apenas trabalha com temas de direito civil na perspectiva tradicional.
Assim, é reproduzido o modelo convencional de escritório, voltado a casos
individuais e estabelecendo uma relação distante com as pessoas beneficiadas, sem conhecer
seu contexto de vida, social e econômico, sem se envolver com a sua história. Isso interfere,
de certa forma, no aprendizado e até mesmo na construção do senso de responsabilidade.
Nesse modelo, sem envolvimento com a causa, sem saber a importância do seu significado na
vida das pessoas, a dedicação pode não ser a que requer o caso, justamente pela ausência de
compreensão da realidade.
Além disso, os atendimentos permanecem entre as quatro paredes. Os serviços da
Prática são oferecidos dentro da universidade, que já possui difícil acesso tanto pela amplitude
do espaço que confunde quem não a conhece, quanto pela estrutura de transporte público em
torno do campus da UFRN. Agravando a acessibilidade, sobretudo de pessoas idosas e
deficientes, as salas de atendimento funcionam no primeiro andar de um prédio, cujo elevador
nunca funcionou, como aponta o relatório da oficina de autoavaliação: “problema de
acessibilidade, uma vez que o atendimento à população é realizado no 1º andar (Prédio sem
elevador)” (2014, p. 8).
No módulo de “Atendimentos”, a turma é dividida em grupos, que formam
microescritórios. Cada grupo deve comparecer uma vez por semana no prédio da Prática para
realizar atividade de atender a população e, a partir das informações coletadas, construir uma
petição inicial para dar início ao processo. Já na prática de “Andamentos processuais”, a
turma também é dividida em grupos, que devem comparecer duas vezes na semana para
acompanhar nos sistemas virtuais do Poder Judiciário e da Prática Jurídica os processos
iniciados no módulo de “atendimentos” e, esporadicamente, atender quem busca informações
sobre o seu caso.
O contato ainda é pouco expressivo, sobretudo porque dura apenas um semestre e,
no caso desse segundo módulo, é possível cursar toda a disciplina sem ter contato com os
sujeitos e as sujeitas dos casos em acompanhamento.
A opção de não ampliar as áreas de atendimento ou mesmo os módulos de prática
que permitam o contato com a população e o problema da acessibilidade indicam um
45
desinteresse do Curso de Direito quanto à aproximação com a realidade. Retomando o
número da carga horária de módulos de prática jurídica, indica ainda que o ensino prático não
é prioridade, tampouco quando se coloca a se aproximar um pouco mais da sociedade, da
localidade em que está situado. Aliás, pelo o que aponta o projeto político-pedagógico, a
existência de disciplinas práticas se justifica mais para servir ao e à estudante na sua formação
jurídica do que conferir uma função social da técnica jurídica. Assim se refere à formação
prática: “O bacharel deve entender os elementos da prática jurídica, pois só assim poderá
exercer bem a profissão que escolheu” (2010, p. 13).
Em suma, se observa que o apego à lei é um fator do positivismo jurídico e do
ensino dogmático que não induz a inserção social do e da estudante. Não prepara profissionais
para lidar com os desafios que surgem diante da velocidade com que a sociedade de
transforma e se reinventa (MACHADO, 2009).
A valorização da teoria em detrimento da prática e o ensino que não assimila as
mudanças sociais e as realidades locais caracterizam uma educação jurídica restritamente
teórica e técnica, sem uma compreensão de casos consoante seu contexto social, econômico,
político. Como consequência, tem-se na sociedade profissionais com habilidades técnicas,
mas com dificuldade de aplicá-las ou ainda que consiga aplicá-las, com uma visão limitada da
questão analisada.
1.2.3 A ausência de diálogo e a relação verticalizada
O ensino jurídico é marcado fortemente pela educação bancária (FREIRE,
1987)20
. Trata-se de um modelo de ensino no qual seus integrantes, professores (educadores) e
estudantes (educandos), mantém uma relação hierárquica e sem diálogo.
A educação bancária consiste em um modo de educar que considera que o
professor é aquele que detém o conhecimento, enquanto o estudante suporta a ignorância. Nas
palavras de Paulo Freire (1987, p. 33), “na visão bancária da educação, o saber é uma doação
dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber”. Essa relação hierárquica, verticalizada,
na qual docentes mandam, pensam e prescrevem e estudantes obedecem passivamente,
memorizam o pensamento, reproduzem e cumprem as prescrições, não permite uma educação
crítica, mas uma educação que domestica, que acomoda.
20
Termo utilizado por Paulo Freire em Pedagogia do Oprimido como uma crítica ao modelo de ensino
tradicional, hierárquico e domesticador.
46
Não é de estranhar, pois, que nesta visão “bancária” da educação, os homens sejam
vistos como seres da adaptação, do ajustamento. Quanto mais se exercitem os
educando no arquivamento dos depósitos que lhe são feitos, tanto menos
desenvolverão em si a consciência crítica de que resultaria a sua inserção no mundo,
como transformadores dele. Como sujeitos. (FREIRE, p. 34, 1987).
A verticalidade faz confundir autoridade e autoritarismo. O respeito ao professor
se confunde com obediência, com o silêncio e a aceitação do que é dito. O questionamento do
estudante é recebido como enfrentamento, desrespeito, portanto, um desvio de conduta.
Consoante explica Paulo Freire (1996), a autoridade é necessária no processo
dialógico de aprendizado, na medida em que confere ao ou à docente o dever de orientar
atividades, estabelecer tarefas, cobrar a produção individual e coletiva da turma. O exercício
da autoridade, de acordo com o autor, requer o bom senso nas escolhas e nas cobranças, bem
como respeito à autonomia, à dignidade e à identidade do educando ou da educanda.
O autoritarismo, por sua vez, nega a liberdade do educando e da educanda
(FREIRE, 1987), como também seu saber, sua história, sua condição de sujeito e sujeita no
mundo, sua capacidade de ensinar e de criar conhecimento, quando na fala de cima para
baixo, de quem assume uma postura de superioridade e de dono da verdade (FREIRE, 1996),
de quem não escuta o educando ou a educanda.
Na oficina de autoavaliação do Curso de Direito da UFRN, relatos de estudantes
expressaram a insatisfação com a postura antidialógica de alguns docentes, de não permitirem
o debate nem o questionamento durante as aulas, tendo mencionado a conduta de não dar a
fala a um estudante durante uma discussão e de limitar o seu tempo de fala. Nesses relatos,
também disseram que alguns professores, por serem juízes, se comportam como tal em sala,
conduzindo a aula como uma audiência judicial em que têm o poder de controlar os atos e as
palavras de quem está presente.
Interessante essa relação colocada pelo estudante, entre a conduta do ou da
docente e sua profissão fora das salas de aula. Quer dizer, até que ponto prejudica ou até que
ponto contribui a experiência docente em outras profissões do direito? Não tenho respostas
para essa pergunta, nem é minha intenção respondê-la. Porém, a reflexão é necessária para
discutir o ensino jurídico enquanto educação que forma profissionais de índole autoritária e
como isso ocorre.
Vale aqui transcrever as palavras de Machado (2009) sobre a formação jurídica
autoritária, que, no seu entender, guarda relação direta com o ensino estritamente técnico:
(...) a pedagogia técnica e normativista sempre favorece uma formação de cunho
47
autoritário, quer porque o ensino normativo, naturalmente, alimenta nos estudantes
de direito, como diria Marilena Chauí, “o gosto ou a tendência pela autoridade”;
quer porque o tecnicismo supõe a completa ausência de crítica pelo desprezo que
dedica ao ensino das humanidades. Portanto, esse é um modelo que, no fundo,
atende plenamente às exigências de um mercado que se desenvolve dentro de uma
ordem mantida pela autoridade e não tolera nenhuma espécie de razão crítica, muito
menos aquelas críticas humanísticas que pudessem embaraçar a ação e os resultados
dos negócios estabelecidos desse mercado (p. 88).
A rigidez dessas posições, de mandante e mandado ou mandada, não possibilita o
diálogo, posto se pautar em ordens, em imposições, em estritas narrações do conhecimento.
As aulas consistem em monólogos, centradas na figura docente, cabendo ao corpo discente
ouvir, em silêncio, passivamente, “sem maiores questionamentos críticos” (MACHADO,
2009, p. 91). O conteúdo dessas aulas é determinado exclusivamente pelo professor ou pela
professora, sem a participação dos destinatários das suas exposições, portanto, sem coadunar
com as necessidades reais dos educandos e das educandas, suas dúvidas, seus interesses. Na
verdade, como seres “ignorantes”, em “nada” poderiam contribuir.
A verticalidade e a ausência de diálogo no ensino jurídico são marcantes no
processo de acomodação do e da estudante de direito, que incorporam o significado de
“depósito de conhecimento” segundo o tratamento da maioria do corpo docente. Tornam-se
passivos não apenas diante dessa relação hierárquica, obedecendo ao seu superior, mas
também à monotonia da aula, aos problemas de didática do professor e ao que fora por ele
dito em sala de aula.
Nas minhas vivências em salas de aula no Curso de Direito, observei que essa
assimilação enquanto “depósito de conhecimento” é evidenciada, sobretudo, em dois
momentos. Primeiramente, quando nas raras vezes em que o ou a docente se colocou a
discutir questões em conjunto com a turma, como o programa da disciplina, promover debates
em sala de aula ou instituir outras formas de avaliação voltadas à reflexão crítica, a reação de
boa parte das e dos estudantes foi negativa, mostrando preferência por docentes que não
envolvem a turma, mas que apenas prescrevem. Noutra ocasião, discentes que se colocam
durante as aulas problematizando opiniões de professores e professoras, que querem provocar
debates, são muitas vezes “malvistos”, por colegas e rotulados como quem “atrapalha” o
andamento da aula.
Dessa forma, o ensino jurídico, na medida em que assimila a educação bancária,
verticalizada, antidialógica e autoritária, contribui para a reprodução desse modelo de
formação jurídica na academia e nas instituições jurídicas e, portanto, para formação de
profissionais, sejam juiz ou juízas, professores ou professoras, advogados ou advogadas, e
48
pessoas de outras profissões jurídicas que pensam e agem de acordo com essa mesma lógica
da educação bancária.
1.2.4 A ausência de interdisciplinariedade
Da pretensa completude do direito decorre seu isolamento também diante de
outras áreas de conhecimento, acadêmicas e populares. Isto é, na medida em que a concepção
positivista restringe o direito à norma para analisá-lo sem os condicionamentos sociais, o seu
ensino se dá de forma unidisciplinar, “como se o fenômeno jurídico pudesse ser abordado em
compartimentos estanques e separados da realidade social, econômica e cultural”
(MACHADO, 2009, p. 89).
No âmbito da matriz curricular do Curso de Direito da UFRN, conforme exposto
nas tabelas 01 e 02, o eixo fundamental é pouco expressivo frente ao número de disciplinas
profissionalizantes e está concentrado nos períodos iniciais, de modo que as reflexões e
questionamentos debatidos e expostos nas aulas dessas disciplinas se esvaem ao longo do
curso, cujo caráter é majoritariamente tecnicista, ou seja, proporciona uma formação que
valoriza muito mais conhecimento técnico do que o conhecimento humanista.
Nessa estrutura não é observada, portanto, uma comunicação entre esses tipos de
disciplinas. Assim, não basta fazer constar na matriz curricular, mas é necessário que o
conteúdo ministrado possa interagir com demais disciplinas, que o corpo docente responsável
apresente um perfil condizente com o que é previsto no projeto político-pedagógico, assim
como a bibliografia apresentada, que haja uma fiscalização adequada sobre o conteúdo, a
abordagem e a didática de docentes que ministram as disciplinas do eixo fundamental
(MACHADO, 2009, p. 101).
No contexto do Curso de Direito, a ausência dessa fiscalização configura outro
problema. Consoante o relato de um estudante durante a oficina, não há critérios na escolha
do perfil de docentes a ocuparem as disciplinas voltadas à formação humanista. Explicou que,
como são disciplinas vinculadas a outros departamentos, acaba sendo uma escolha aleatória
do setor responsável e o Curso aceita sem o cuidado de conhecer o perfil, a didática, de situar
o ou a docente na proposta do projeto político-pedagógico, enfim, sem a atenção que exige a
importância dessas disciplinas para a formação politizada e humanizada do e da estudante de
direito.
Isso apresenta consequências na formação do e da estudante, quando se deparam
com docentes alheios aos objetivos do Curso, ou que repetem o modelo de ensino reprodutor
49
sem servir ao fim principal dessas disciplinas que é a formação crítica e politizada. Como diz
Lyra Filho (1980, p. 9), “de nada serve acrescentar o estudo da Sociologia Jurídica, da
Antropologia Jurídica ou da Economia ao currículo, se as disciplinas ‘dogmáticas’
permanecem dogmáticas”.
Na opinião do corpo docente, de acordo com o relatório da oficina, “os docentes
que ministram disciplinas do curso vinculadas a outros Departamentos, devem interagir, para
permitir uma discussão dos conteúdos, de modo a torná-los mais proveitosos” (2014, p. 10).
Assim, é possível concluir que no Curso de Direito as disciplinas voltadas à formação
humanista existem, mas ainda são pouco expressivas diante da carga horária das disciplinas
técnicas, além de não receberem a devida atenção do Curso quanto aos cuidados com o perfil,
a didática e com o conteúdo ministrado pelo ou pela docente responsável.
No que tange ao ensino das disciplinas profissionalizantes, pude constatar, assim
como o corpo docente, que há uma deficiência na interação com outras áreas de
conhecimento: “Recomendou-se, então, incluir as questões humanistas e sociais nas
disciplinas técnicas” (2014, p. 9).
A técnica jurídica é ensinada nas salas de aula de forma estritamente objetiva, de
modo que no exercício do raciocínio jurídico diante de questões-problemas não se agrega uma
visão multidisciplinar do mesmo, mas apenas a visão normativa, de memorizar que no caso do
não pagamento de alimentos pelo devedor, por exemplo, deve-se ajuizar uma peça chamada
“execução de alimentos”. Isso incorre numa visão demasiadamente limitada no enfrentamento
de problemas, sem considerar seus condicionamentos sociais, sua origem e as consequências
na vida de quem os vivencia.
Assim, o caso concreto pode se apresentar multifacetado, exigindo uma equipe
multidisciplinar para analisá-lo e conduzi-lo. Nem sempre o mais adequado será a via judicial,
o que não significa dizer que o e a jurista são dispensáveis. O que se pretende é que, ciente de
que o conhecimento jurídico não é suficiente para dar resposta ao problema, o e a profissional
do direito devem ter a sensibilidade de integrar outros saberes.
No decorrer do processo judicial, por exemplo, pode ocorrer a necessidade de
realizar perícias que chamam a participação de profissionais da área de saúde, da psicologia,
da engenharia, dentre outras, para uma compreensão totalizadora do caso concreto, apontando
que, em casos mais complexos, ou que fogem à especialidade de juristas, o conhecimento de
normas não seria por si suficiente à resolução do problema. Da mesma forma exige a
realidade fora do processo. Uma percepção total da realidade, a integrar os diversos saberes
em prol de soluções de conflitos, de efetivação de direitos.
50
Para além da universidade ainda, não se pode ignorar os saberes populares. A
compreensão de realidade e do direito assimilada pelo povo é necessária à construção do
conhecimento jurídico e da formação profissional de juristas.
A participação do povo é essencial para uma visão crítica do direito e condizente
com os valores presentes na sociedade. Essas pessoas vivenciam as deficiências do direito ao
passo que são atingidas por elas, de modo que essas experiências devem servir ao
aprimoramento do funcionamento das instituições jurídicas (Ministério Público, Defensoria
Pública, Tribunais, varas, etc), buscando a efetividade do seu trabalho na sociedade. Dessa
forma, os saberes populares ajudam a construir um direito mais próximo da realidade, bem
como contribuem para uma formação de juristas implicados socialmente em prol de atender as
necessidades do povo.
1.2.5 O problema da didática
O aspecto pedagógico do ensino jurídico é um fator que agrava os demais
problemas do dogmatismo. O modelo de aulas, pautado estritamente na exposição do
professor, pouco incentiva a participação dos e das discentes, pois, como diz Freire, são
“depósitos vazios”:
Narração de conteúdos que, por isto mesmo, tendem a petrificar-se ou a fazer-se
algo quase morto, sejam valores ou dimensões concretas da realidade. Narração ou
dissertação que implica num sujeito – o narrador – e em objetos pacientes, ouvintes
– os educandos. (...) A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos
à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma
em “vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo educador. Quanto mais vá
“enchendo” os recipientes com seus “depósitos”, tanto melhor educador será.
Quanto mais se deixem docilmente “encher”, tanto melhores educandos serão.
(1987, p. 33).
Sem essa participação de estudantes, o conhecimento do professor ou da
professora é transmitido passivamente, sem questionamentos, sem permitir a construção do
conhecimento, mas a sua reprodução. De acordo com Machado:
O professor fala a partir de um lugar privilegiado, que lhe permite manter sob
controle a tônica e os rumos da discussão. O seu saber dogmático aparenta ser auto-
suficiente, encontrando suas soluções apenas nas estruturas normativas onde estão
selecionadas e previstas as variáveis do jurídico. Essa pedagogia atende aos valores
de segurança e certeza do saber científico do direito em todas as suas manifestações
concretas no espaço-tempo social, como era de se esperar no caso de um ensino
realmente superior (2009, p. 92).
51
No Curso de Direito da UFRN, existem claros exemplos de práticas pedagógicas
ainda mais ultrapassadas que as aulas narrativas: um professor que ministra todas as suas
aulas ditando do início ao fim conceitos e palavras para estudantes copiarem e uma professora
cujo recurso mais inovador utilizado durante as aulas foi um retroprojetor, havendo um
aparelho de data show na sala.
As avaliações constituem outro aspecto da questão pedagógica. De acordo com
Paulo Freire (1996), na educação bancária os sistemas de avaliação de estudantes possuem um
caráter vertical, de discurso de cima para baixo. Quer dizer, as avaliações muitas vezes
exigem a memorização dos conceitos transmitidos em sala de aula, sem oportunizar ao ou à
estudante dizer o que pensa e analisar criticamente o conteúdo.
No Curso de Direito da UFRN, ao assimilar a concepção positivista, essa
reprodução ocorre, sobretudo, no âmbito da norma, ou seja, exige do e da discente a
memorização de artigos, incisos, súmulas e decisões judiciais sem reflexão crítica a respeito,
sem conexão com a realidade e sem aplicabilidade, até mesmo em hipóteses abstratas. Como
já exposto em tópico anterior, há professores que exigem datas de leis e tratados nas
avaliações.
Os exemplos já expostos neste capítulo também servem à questão da prática
pedagógica, como o que foi apontado por estudantes na oficina de avaliação do Curso, sobre
docentes que fazem questões objetivas para não perderem tempo em correções de questões
discursivas; a questão da falta de bom senso durante as correções, pautando justificativas de
notas em argumentos de autoridade, como dizer que “não revisa nota de prova a não ser que
seja erro na contagem” ou que “estar certo não é suficiente”; as provas discursivas que exigem
a reprodução de posicionamentos do professor ou da professora da disciplina (provas
subjetivas-objetivas).
Também cabe aqui resgatar o que foi apresentado anteriormente sobre a repetição
de provas e de roteiros de aula. Sem atualização e sem práticas educativas que despertem a
curiosidade no e na estudante, existe uma cultura disseminada entre o corpo discente de
utilizar o máximo de faltas permitidas pelo Regimento Interno da UFRN para não “perder
tempo” nessas aulas e, ainda, estudar apenas provas anteriores para realizar a avaliação,
quando muito, os roteiros de aula, que em alguns casos são os mesmos há cerca de dez anos.
Dessa forma, vem ocorrendo um processo de acomodação, uma vez que,
descrentes de que a didática do professor ou da professora possa melhorar, estudantes pensam
ser melhor garantir uma boa nota para serem aprovados na disciplina, do que estudar
verdadeiramente o conteúdo proposto e ter de frequentar as aulas.
52
Na realidade do Curso de Direito, estuda-se mais por obrigação do que por prazer.
É a cultura do “estudar para passar”. As notas, então, não podem ser retrato fiel da qualidade
do ensino. Elas mascaram a superficialidade do conhecimento sobre a disciplina, pois: o
programa apresentado costuma prezar pela quantidade de assuntos em detrimento do seu
aprofundamento; os métodos de avaliação adotados se apresentam limitados para cumprir sua
finalidade, como provas que exigem do e da estudante apenas memorização ou a bibliografia
indicada pelo professor; e porque a preocupação com notas passa a ocupar prioridade na vida
de estudantes, direcionando seus estudos para uma ocasião pontual e não para sua formação
profissional.
O docente também é causa do problema pedagógico. Nas faculdades de direito, a
grande maioria do corpo docente exerce a função como secundária a uma atividade principal
– juízas e juízes, promotores e promotoras, advogados e advogadas. O problema não está na
dupla jornada, mas na falta de compromisso de uma parcela desses e dessas profissionais com
as atividades acadêmicas, como ocorre em alguns casos no Curso.
No Curso de Direito da UFRN, essa realidade pode ser reproduzida no quadro
abaixo:
Tabela 04: Quadro permanente e substituto de docentes do Departamento de Direito Público (DPU) e do
Departamento de Direito Privado (DPR), sem considerar docentes afastados. Fonte: Produção própria a partir de
dados do SIGAA
A tabela aponta a predominância de docentes em regime de 20h, representando
aproximadamente 56% (cinquenta e seis por cento) do total do quadro permanente, enquanto
o grupo de docentes em regime de 40h e de dedicação exclusiva, que exigem justamente
maior dedicação às atividades acadêmicas, representa cerca de 32% (trinta e dois por cento).
A carência de docentes com tempo integral para a universidade reflete nas deficiências que o
Curso de Direito enfrenta quanto à orientação em pesquisa e em projetos de extensão.
Isto porque aqueles e aquelas que possuem dupla jornada, mesmo quando
comprometidos com a docência, têm o tempo como obstáculo ao exercício de atividades
extraclasse, posto que até mesmo o preparo do plano de aula e de avaliações já constitui
dispêndio de tempo. A tabela abaixo apresenta um panorama das profissões desempenhadas
REGIME NÚMERO DE DOCENTES
20h 38
40h 6
Dedicação Exclusiva 16
Substituto 20h 2
Substituto 40h 5
TOTAL 67
53
pelos e pelas docentes do Curso:
FUNÇÃO NÚMERO DEDOCENTES
Juiz ou juíza 14
Desembargador ou Desembargadora 5
Membro ou membra do Ministério Público (Promotor ou Promotora,
Procurador ou Procuradora).
8
Advogado ou advogada 10
Defensor ou defensora 1
Procurador ou Procuradora da Fazenda (Municipal, estadual e da
União)
5
Professor ou professora em outras instituições 5
Outras atividades (servidor, auditor fiscal, etc) 3
TOTAL 51
Tabela 05: Quadro de profissões exercidas por docentes permanentes e substitutos em regime de 20h e 40h em
2014.1, sem considerar docentes afastados. Fonte: Produção própria a partir de dados do SIGAA
De acordo com os dados apresentados nas duas tabelas acima, observamos que do
total de docentes permanentes e substitutos ativos no Curso de Direito, a maioria tem outra
profissão, que costuma exigir mais tempo que os compromissos acadêmicos, como
audiências, sessões de julgamento nos tribunais, congressos, entre outras.
A esse contexto da docência e seus reflexos nas práticas pedagógicas posso citar
algumas causas como a valorização da profissão, pouco remunerada, e a ausência de cursos de
reciclagem, sobretudo voltados à formação de educador.
Para Aguiar (2004, p. 194), o título de bacharel não deveria habilitar pessoas a
tornarem-se docentes, pois desta forma, na conjuntura das práticas pedagógicas do ensino
jurídico, ocorre a repetição dos problemas didáticos na medida em que esses bacharéis têm
como referência o modelo dogmático e bancário de educação jurídica.
Portanto, a deficiência nos métodos educativos interfere na qualidade do ensino
jurídico e do e da profissional que se forma nesse contexto, sobretudo no que tange ao
aprofundamento e à reflexão crítica dos conteúdos.
Diante de todo o exposto neste capítulo, é possível concluir que o ensino jurídico
do Curso de Direito da UFRN possui deficiências em vários aspectos, da estrutura da matriz
curricular ao quadro docente, da concepção de direito às práticas pedagógicas, que
prejudicam, sobretudo, a formação humanista do e da profissional do direito diante da
educação bancária e do ensino distanciado da realidade.
54
CAPÍTULO II
TEORIA E PRÁTICA DO DIREITO CRÍTICO:
Traçando conceitos-base da práxis do Programa Motyrum
Neste capítulo, busco apresentar um esboço de uma proposta de educação jurídica,
que parte não apenas da concepção dialética do direito, mas da prática pedagógica, de uma
metodologia de ensino jurídico que se dê na prática, na ação e na reflexão, que desperte no
corpo discente uma preocupação com a função social do e da profissional do direito no
sentido de transformar a realidade, de buscar a realização da justiça social21
.
2.1 A visão dialética do direito
A partir das críticas à compreensão positivista do direito e das suas fragilidades
teóricas e práticas, se põe o presente trabalho a analisar uma outra concepção, que permita
uma visão totalizadora da realidade e do próprio direito, reconhecendo a diversidade de
sujeitos e sujeitas a se implicaram na sua construção. Que esteja afinada com a sociedade, nas
suas mudanças e nas suas necessidades. Que tenha um caráter transformador, buscando-se o
combate às injustiças e à dominação.
Trata-se de uma concepção dialética22
, que concebe o direito de forma ampla,
como um processo histórico constante que se realiza a partir das contradições da sociedade.
Neste sentido, nega-se a condição estática conferida pela norma, para afirmar sua
dinamicidade, enquanto produto de uma dialética social.
Explica Lyra Filho (1982) que o modo de produção estabelecido numa sociedade
é que vai definir sua divisão em classes. Assim, no modelo capitalista, a propriedade privada
opõe a classe que detém os meios de produção, a burguesia, e os que não têm, os
trabalhadores e as trabalhadoras, cuja venda da força de trabalho é ao mesmo tempo fonte de
21
Compreendo como justiça social aquilo que torna a sociedade mais igualitária, sem opressões raciais, de
gênero, sociais, econômicas e culturais. Não é um ideal, mas um princípio que orienta a as lutas sociais por
libertação das classes e grupos oprimidos, pela conquista de direitos e de espaços (LYRA FILHO, 1982). 22
A concepção dialética do direito é defendida por Roberto Lyra Filho (1982), numa perspectiva de que o direito
é algo em movimento, que se transforma de acordo com a dialética social. Quer dizer, uma visão ampla do
direito, que considera sua relação com classes e contradições sociais, a pluralidade jurídica, a política, o modelo
econômico, enfim, que o compreende não apenas a partir de uma teoria, mas a partir da contribuição de várias
outras. Por esta razão, por ser uma visão ampla, plural e em movimento, que apresento esta concepção de direito
como uma alternativa ao ensino jurídico, sem impor uma verdade, mas possibilitando conhecer a diversidade de
ideias.
55
sobrevivência própria e fonte de acúmulo do outro, instaurando-se uma relação de dominação.
A compreensão do direito deve, portanto, partir da compreensão dessa sociedade, dividida em
classes e permeada de contradições. Ao contrário do positivismo, que busca convencer que o
direito é fruto do consenso, de um pacto social, omitindo, pois, esse conflito de classe, de
interesses opostos (LYRA FILHO, 1980, p. 33).
O direito, então, assimila as contradições existentes nessa luta de classes,
constituindo-se numa relação constante entre o Direito e o Antidireito – respectivamente, o
justo e o injusto (conjunto de normas que expressam meros interesses de classe para fins de
manutenção do poder, portanto, ilegítimas) (LYRA FILHO, 1982). Como um processo
histórico, não há conceitos estáticos, mas em constantes transformações, pois o que é direito
no presente, poderá não sê-lo no futuro.
A visão dialética permite enxergar várias expressões do direito. Não é apenas norma,
como defende o positivismo, não é apenas direito natural como querem os jusnaturalistas. O
direito abrange a diversidade de normas, bem como a resistência a elas; compreende outros
ordenamentos que não o estatal; assimila novos direitos que brotam das lutas sociais, na conquista
de espaços, na busca por dignidade, em suma, está sempre em construção.
(...) se persiste a cisão de grupos e classes em dominadores e dominados, a dialética
vem a criar, paralelamente à organização social, um processo de desorganização,
que interfere naquela, mostrando a ineficácia relativa e a ilegitimidade das normas
dominantes e propondo outras, efetivamente vividas, em setores mais ou menos
amplos da vida social. No plano político, assim se estabelece o que os cientistas
políticos denominam o “poder dual” (isto é, mais de um poder social na dialética de
conflito) (LYRA FILHO, 1982, p. 29).
É dizer que o direito também é expressão da luta de classes. Recorrendo à história,
percebe-se que a burguesia se contrapõe à dominação da monarquia instituindo uma nova
ordem social, econômica, cultural e jurídica que lhe confere poder e privilégios, a qual busca
manter continuamente. As classes então oprimidas pela monarquia continuam dominadas,
agora pela classe burguesa, portanto, permanecendo na luta pela sua libertação. Conforme
Lyra Filho (1982, p.53), “dentro do processo histórico, o aspecto jurídico representa a articulação
dos princípios básicos da Justiça Social atualizada, segundo padrões de reorganização da
liberdade que se desenvolvem nas lutas sociais do homem”.
Reconhecer a dialética e a historicidade do direito possibilita enxergá-lo como um
processo de libertação permanente (LYRA FILHO, 1982, p. 53), portanto, como algo que é
passível de transformação, bem como que é capaz de transformar.
56
Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e
acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das
classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o
contra-dizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas.
(LYRA FILHO, 1982, p. 56).
Dessa forma, a concepção dialética compreende uma visão totalizadora, crítica e
contextualizada do direito, em permanente relação com a sociedade, de modo que não se limita a
exercer sobre ela o controle social através de sua regulação, mas se apresentando como
instrumento de transformação.
Resta então apresentar algumas faces da dialética do direito.
a) Visão Totalizadora
Trata-se de uma compreensão ampla do direito, no que tange às suas expressões,
isto é, para além da norma estatal, bem como quanto às suas relações com outras
condicionantes sociais, como política, economia, religião, entre outras.
A norma estatal é demasiado limitada para se constituir como expressão única do
direito. Diante do seu rigor formal, é estática, apresentando limites de ordem temporal,
cultural, econômico e social, conforme ensina Aguiar (2004, p. 184-185):
A norma em si, não é nada. Ela não é, mas se constitui na possibilidade de vir a ser.
Ela, apesar de suas características típicas, de sua logicidade e potencialidades
semânticas, nasce em dada sociedade ou cultura, norma determinados destinatários,
traduz valores e ideologias que vão cambiando no decorrer de suas sucessivas
interpretações, apresenta resultados na sociedade, é aceita ou não por esta e tem sua
vida condicionada pela continuidade do sistema político-econômico que a gerou.
O direito está para além da norma institucionalizada. Pois não se pode ignorar que
sua positivação decorre muitas vezes das exigências sociais, bem como sua modificação de
sentido, como assim realiza o juiz, e sua revogação, diante das transformações sociais (LYRA
FILHO, 1982).
A eficácia social da norma estatal também é limitada, sobretudo quando o Estado
é ausente na promoção de políticas públicas, sujeitando indivíduos a violações de direitos
humanos, os quais passam a não reconhecer a legitimidade do direito estatal, perante a
situação de abandono. Essa lacuna é substituída por outro ordenamento, que busca conferir o
bem-estar da comunidade então esquecida, legitimando uma forma de organização paralela.
Nas favelas, por exemplo, ambientes que retratam, sobretudo, a exclusão urbana, social e
57
racial, o Estado é substituído por grupos de tráfico de drogas, exercendo um poder paralelo
que, por um lado, constitui a afirmação de sua existência então ignorada, e por outro, reproduz
aspectos do poder estatal, como a repressão violenta, por exemplo – ou seja, uma organização
que também possui suas contradições, a promoção de justiça e de injustiças.
Assim, o pluralismo jurídico compõe uma das faces do direito e reconhecê-lo
enquanto tal é ampliar os horizontes do universo jurídico, como também situá-lo no meio
social, onde se apresenta passível das mais variadas influências. Ora, essa pluralidade decorre
senão de uma estrutura socioeconômica excludente, insurgindo-se contra a ordem que a
legitima como uma forma de libertação (SANTOS apud LYRA FILHO, 1982, p. 49).
Portanto, a visão totalizadora permite enxergar as contradições e a diversidade de
sujeitos e sujeitas capazes de construir o direito em uma dialética, possibilitando uma visão
crítica da realidade e do direito e se afastando da percepção reprodutora de conceitos, sem
reflexões e restrita à norma.
b) Crítico
A visão crítica do direito possibilita a desconstrução dos dogmas positivistas
como a aparência de neutralidade e de legitimidade, a percepção do caráter reprodutor e
mantenedor da dominação e, por outro lado, a visualizá-lo como instrumento de
transformação.
Perceber como funciona a sociedade e como o direito se insere neste contexto faz
surgir questionamentos e reflexões sobre ele, distanciando-se da acomodada reprodução para
construir um pensamento crítico. Conforme afirma Machado (2009, p. 53):
O pensamento crítico supõe naturalmente, um saber antidogmático em concreto
diálogo com as determinantes sociais do fenômeno jurídico. Portanto, esse
pensamento parte da constatação de que o idealismo pelo conhecimento lógico-
formal e meramente descritivo de normas e instituições, tal como positivadas pelo
legislador racional, jamais responderá às necessidades concretas dos sujeitos sociais.
O questionamento dos dogmas conduz à percepção de que a neutralidade é um
mito, que a legitimidade é forjada e que a segurança jurídica é a manutenção da burguesia.
Assim, perguntando-se para quem serve a norma, é despertada a consciência sobre sua
finalidade mantenedora da dominação econômica, cultural, social (LYRA FILHO, 1982, p. 3).
Ainda que se verifiquem no ordenamento jurídico normas como a Lei Maria da Penha de
combate à violência doméstica, o artigo constitucional que prevê a função social da
58
propriedade e leis de proteção e garantias da classe trabalhadora, “o sistema de controle apenas
‘absorve’ a quota de mudança que não lhe altere a organização posta e imposta” (LYRA FILHO,
1982, p. 44). Isto é, ainda que signifiquem uma conquista na disputa por normas favoráveis
aos grupos e às classes oprimidos, não são suficientes à mudança estrutural da sociedade.
A imposição da norma como única expressão do direito e de sua obediência, a sua
abstração que distancia do contexto social e os dogmas inquestionáveis são obstáculos ao
pensamento crítico, uma vez que exigem a acomodação e a reprodução. Portanto, é a
percepção dialética, totalizadora do direito, que permite o desenvolvimento de reflexões
(LYRA FILHO, 1980).
É preciso pensar criticamente o direito para se libertar das amarras dogmáticas e
então enxergar o seu potencial transformador. É o pensar crítico que ajuda a compreender o
inacabamento do direito, suas lacunas, suas deficiências a cada momento histórico. É o que
move em direção ao processo de libertação.
c) Transformador
A reflexão sobre o direito positivista faz perceber que o direito pode ser
instrumento de dominação, a partir da padronização de uma concepção que nega as demais,
de uma teoria que se legitima a partir de dogmas, enfim, por meio de um sistema voltado
atender interesses classísticos apenas.
Por outro lado, permite descobrir o potencial transformador a partir de sua própria
transformação. Isto é, a partir de uma teoria crítica, enxergando o direito na dialética social,
assumir o compromisso de lutar pela libertação das classes e de grupos oprimidos.
Partindo da premissa de que o direito é um processo constante de libertação, este
não deve servir a quem domina, que tolhe a liberdade do outro, mas a quem a vocação de ser
mais23
é negada, aos oprimidos, desumanizados pela violência das opressões. Aliás, segundo
Paulo Freire, a libertação vem dos espoliados em resposta à dominação e apenas a partir deles
esse processo é possível:
A violência dos opressores que os faz também desumanizados, não instaura uma
outra vocação – a do ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os
oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta tem sentido
23
Em poucas palavras, Ser mais é uma categoria teórica de Paulo Freire que traduz a vocação dos seres humanos
de serem sujeitos de sua própria humanização, de sua própria história, enquanto seres inacabados. É a vocação
de transformar-se e de transformar em contato com o mundo.
59
quando os oprimidos, ao buscar recuperar a sua humanidade, que é uma forma de
criá-la, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores
dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos, e ai está a grande
tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores. Estes,
que oprimem, exploram e violentam, em razão de seu poder, não podem ter, neste
poder, a força de libertação dos oprimidos nem de si mesmos (FREIRE, 1987, p. 16-
17).
Ciente de que o direito transformador serve aos oprimidos, na sua libertação,
necessária a luta por espaço para concretizar mudanças. Ou seja, pulverizar essa ideia nas
faculdades de direito, nas instituições judiciárias, nas pesquisas jurídicas, buscando-se
institucionalizar o pensamento progressista, a favor dos interesses das classes populares, para
dar-lhe hegemonia e suporte no combate ao direito que reproduz a dominação.
d) Contextualizado
Compreender o direito como produto de uma sociedade, seus valores,
contradições, separações, conduz observá-lo dentro do contexto social, sempre associado à
realidade em constante construção.
O direito dialoga com a sociedade, a política, a economia, a cultura. E é nesse
diálogo permanente que vai se constituindo, afinado com as demandas sociais, com as
mudanças dos valores da sociedade, com a conjuntura política. É autoritário nas ditaduras, é
democrático nas democracias. É, sendo, no decorrer da história (LYRA FILHO, 1982).
Perceber as contradições da sociedade e do próprio direito constitui numa visão
ampla, capaz de reconhecer o direito além da norma, reconhecer o direito de resistência a esta,
os direitos por ela não assimilados, os sentidos coadunados ao presente.
Esse direito não corre o risco da estagnação, de tornar-se ultrapassado, como a
norma. É capaz de responder às inovações que surgem e de discuti-las, pois é um sistema
aberto que permite ser moldado quando necessário.
2.2 Outra proposta de formação jurídica
A compreensão do direito como um processo dialético e como um instrumento
transformador passa, necessariamente, pelo ensino jurídico, pela formação de profissionais
sensíveis à realidade, às questões sociais e que busquem aplicar seu saber em prol de
mudanças. Da mesma forma, o rompimento com o ensino tecnicista e dogmático deve partir
desta concepção outra do direito, que reconhece a pluralidade, a manifestação de grupos
60
marginalizados social, econômica e juridicamente.
A compreensão dialética amplia o foco do direito, conforme afirma Lyra Filho.
Não parte de dogmas, mas da observação alinhada ao que ocorre na sociedade, assimilando
diversas formas de construção e expressão do direito.
(...) como notava o líder marxista italiano, Gramsci, a visão dialética precisa alargar
o foco do Direito, abrangendo as pressões coletivas (e até, como veremos, as normas
não-estatais de classe e grupos espoliados e oprimidos) que emergem na sociedade
civil (nas instituições não ligadas ao Estado) e adotam posições vanguardeiras, como
determinados sindicatos, partidos, setores de igrejas, associações profissionais e
culturais e outros veículos de engajamento progressista (LYRA FILHO, 1982, p. 4).
O ensino, por sua vez, é um mecanismo de disseminação da concepção de direito,
é quem orienta a formação de profissionais. Daí a relação íntima entre concepção de direito e
ensino jurídico. Nas palavras de Lyra Filho (1980, p. 6), “não se pode ensinar bem o direito
errado; e o direito, que se entende mal, determina, com essa distorção, os defeitos da
pedagogia”.
Assim, uma alternativa à reforma do ensino jurídico é a educação libertadora,
dialógica, que desperta a reflexão crítica, que se faz em contato com o mundo concreto, na
prática, que busca a construção interdisciplinar e participativa do conhecimento, de teorias
associadas às práticas.
Quanto mais se problematizam os educandos, como seres no mundo e com o mundo,
tanto mais se sentirão desafiados. Tão mais desafiados, quanto mais obrigados a
responder ao desafio. Desafiados, compreendem o desafio na própria ação de captá-
lo. Mas, precisamente porque captam o desafio como um problema em suas
conexões com outros, num plano de totalidade e não como algo petrificado, a
compreensão resultante tende a tornar-se crescentemente crítica, por isto, cada vez
mais desalienada (FREIRE, 1987, p. 40).
Conforme defende Machado (2004, p. 50), é necessária uma reforma do ensino
jurídico, desde sua estrutura metodológica à estrutura curricular, buscando-se uma relação de
afinidade entre direito e sociedade:
A recuperação da dimensão axiológica do direito e de sua ciência, bem como do
conteúdo social da função do jurista, numa sociedade industrial de transformações
rápidas e desenvolvimento sustentado, é tarefa que passa pela revisão de alguns
paradigmas e, necessariamente, pela maneira como se concebe o direito e como se
transmite o saber jurídico. Portanto, está fora de dúvida que essa tarefa supõe uma
profunda reforma do ensino jurídico, com a consequente revisão dos projetos
pedagógicos e dos conteúdos programáticos das disciplinas que compõem as grades
curriculares nas escolas de direito, bem como a adoção de uma didática libertária, de
61
fisionomia dialógica, capaz de ampliar o foco do direito na direção das
manifestações jurígenas até então consideradas à margem do conhecimento
científico, para além, portanto, do universo formal da dogmática jurídica.
Neste tópico irei me restringir, todavia, à perspectiva metodológica, que envolve o
processo educativo do direito, no diálogo entre discente e docente, entre teoria e prática, entre
a diversidade de saberes.
A responsabilidade do ensino jurídico na mudança da concepção do direito, das
estruturas jurídicas e da própria sociedade está na formação de profissionais, que interpretam
e aplicam o direito.
A conotação tradicionalmente elitista do direito por si só distancia os profissionais
das classes desprovidas de recursos e de orientação acerca dos próprios direitos. Enquanto um
curso acessado majoritariamente por estudantes de classes econômicas favorecidas, é nestas
que circulam os e as profissionais, de modo que é pouco ou nenhum o seu contato com as
classes populares. Como consequência, esses e essas profissionais pouco conhecem da
realidade e das necessidades do povo e este, pouco acessa o judiciário, seja por não ter
recursos, por não conhecer seus direitos ou por não conhecer profissionais da área a lhes
fornecer ao menos uma orientação (MACHADO, 2004, p. 217).
Soma-se a isto a questão da sensibilidade, consoante destaca Machado (2004, p.
217):
Vale salientar ainda que a situação socioeconômica das pessoas de baixa renda, com
baixo nível cultural, ainda avulta as dificuldades que encontram na defesa de seus
direitos, especialmente pelos virtuais problemas encontrados no relacionamento com
autoridades em que o juiz se apresenta como alguém inalcançável, o promotor
muitas vezes parece-lhe ainda com o friso do algoz acusador, o advogado surge
como profissional de altos custos e, por fim, as repartições administrativas,
encarregadas da expedição de documentos necessários às demandas (certidões,
laudos, alvarás, etc), nem sempre dispensam a atenção e a solicitude adequadas aos
interesses das pessoas humildes que ali comparecem.
A linguagem do direito, através de seus ritos, suas vestimentas, vocabulário seleto
e a arquitetura imponente de suas instituições também contribuem para a restrição do acesso
das classes populares à justiça. De acordo com o comentário de Campilongo, sobre a figura do
advogado:
Da indumentária ao vocabulário, do local de atendimento à postura na relação
dialógica, do manuseio dos códigos ao diploma pendurado na parede, tudo
cria um ambiente desconhecido e enigmático para a clientela. A gravata, o
palavreado difícil, a sala acarpetada, o problema constrangedor (a separação, o
62
despejo, o crime), os livros e a autoridade técnica do bacharel determinam o lugar de
quem fala e de quem ouve. Ao cliente cabe expor seu problema ao jurista, assinar a
procuração, se for o caso, e retornar para casa. A partir daí, quem age e controla a
situação é o advogado. Os tecnicismos dos procedimentos judiciais, aliados à
demora dos processos, tornam o cliente anestesiado diante da lide (CAMPILONGO,
p. 4).
Essa linguagem, por sua vez, pode e deve ser modificada para possibilitar a
democratização do acesso, para que o conjunto de imagens não afaste, não amedronte, não
intimide, não cause constrangimentos a essas pessoas. Esta também é uma tarefa do ensino
jurídico, o trabalho com a linguagem acessível e comunicável.
O desenvolvimento de habilidades que preparem profissionais do direito para o
contato com a realidade, com as diversas classes e grupos sociais, compreendendo suas
condições e suas necessidades, é essencial ao exercício da função social do e da jurista. Trata-
se de ter a sensibilidade de entender que nem sempre a medida judicial será necessária ou a
mais adequada; de saber utilizar o conhecimento jurídico em diálogo com outros saberes
acadêmicos e populares; de se colocar ao lado e não acima dos sujeitos e das sujeitas, numa
relação horizontal, portanto; de assumir uma postura política e crítica na apreensão da
realidade; de ter audácia e criatividade para inovar nas práticas jurídicas, sem temer o novo.
Para Machado, a função social do e da profissional do direito está no trabalho pela
efetivação do acesso à justiça e dos direitos fundamentais:
Ao jurista, seja ele advogado, juiz ou membro do Ministério Público, consciente do
seu papel na construção da democracia, atuando em meio às relações de poder que
governam a sociedade capitalista, parece não haver alternativa senão funcionar como
canal de acesso à justiça para as camadas populares na defesa de direitos
fundamentais, assumindo assim, como uma de suas funções institucionais, a defesa
jurídico-política dos direitos humanos ou sociais formalmente assegurados pela nova
ordem constitucional (MACHADO, 2004, p. 220).
Os direitos humanos constituem, aliás, um elemento fundamental a ser integrado
ao ensino jurídico na formação de profissionais engajados na realização da justiça social. Pois,
como se mostrará adiante, carregam uma conotação emancipadora e libertária das classes e
grupos oprimidos, levando à sensibilização de profissionais e estudantes, ao
comprometimento com as lutas sociais, de onde emanam as vozes que exigem novas
necessidades.
No intuito de realizar mudanças no ensino jurídico diante de sua crise, Machado
observa o surgimento de uma reação organizada de juristas que compartilham uma visão
crítica do direito, constituindo “movimentos prático-teóricos e jurídico-políticos de
63
contestação da legalidade instituída, portanto, da legalidade burguesa” (2004, p. 51). Tratam-
se de práticas contra-hegemônicas que, numa perspectiva crítica e questionadora, buscam
modificar a estrutura tradicional do ensino jurídico e da ciência jurídica, paralelamente a esta
própria estrutura.
Dentre essas práticas, situa-se o projeto Direito achado na rua, da Universidade
de Brasília, que surge como resposta à
situação de advogados de assessorias jurídicas populares, de comissões de direitos
humanos e de movimentos sociais e suas organizações urbanas e rurais, no sentido
de que a Universidade desenvolvesse um programa capaz de atender às expectativas
de uma reflexão acerca da práxis social constituída na sua experiência comum de
luta por justiça e direitos (SOUSA JUNIOR (org), 1987, p. 5).
Dessa forma, conforme assinala José Geraldo de Souza Júnior, o projeto permite
“conjugar a dupla face da prática jurídica na sua dimensão de orientação política para o
exercício profissional e de formação acadêmica preparatória para esse exercício” (p. 7).
A assessoria jurídica popular, neste contexto, permite uma prática politizada do
direito, utilizando-o enquanto instrumento emancipatório na concretização dos direitos
humanos. Isto porque assimila as práticas pedagógicas da educação popular – o diálogo, a
interdisciplinaridade e a horizontalidade – e realiza uma formação em direitos humanos, tendo
em vista se voltar para a sua realização. É o que desenvolvo a seguir.
2.2.1 Educação popular
O conceito de educação popular aqui adotado parte da concepção desenvolvida
por José Francisco de Melo Neto em diálogo com o que Paulo Freire denomina de educação
para a liberdade.
Para Melo Neto (2004, p. 127) a educação se realiza a partir da capacidade
humana de aprender, o que chama de fato pedagógico. A forma como ele ocorre é
determinada pela técnica adotada no processo educativo, a teoria pedagógica, orientada por
sua vez, pelas políticas de educação. Estas duas últimas categorias apresentadas pelo autor
incorrem numa opção política – silenciar o povo ou despertar sua consciência no mundo, sua
capacidade transformadora. São o meio e o fim, respectivamente.
Assim, a finalidade da prática educativa deve dar sentido à sua metodologia. Pois
uma política educacional que se diz popular, quando se utiliza de técnicas desligadas do seu
objetivo, pode levar à sua domesticação ao invés de sua libertação.
64
A educação popular, portanto, está orientada para o povo. Buscando compreender
o sentido do termo “popular”, Melo Neto (2004, p. 154) analisa a perspectiva de Karl Marx
quanto à necessidade da organização da classe trabalhadora para conquistar o poder político, o
que é assimilado pelos movimentos de esquerda na história recente do Brasil:
Outro movimento marcante na história política da esquerda no Brasil deu-se com a
criação do Partido dos Trabalhadores. Este formulou uma política como “estratégica
democrática e popular, devendo conduzir um programa com as mesmas
características”, ou seja, o socialismo petista. Trata-se de uma perspectiva que
concebe o popular como ampliação das forças possíveis de mudanças para além da
classe trabalhadora, na construção da democracia. “Na verdade, a democracia
interessa, sobretudo, aos trabalhadores e às massas populares” (Resoluções, 1998:
429). O Programa democrático e popular, projeto de sociedade para o país, só se
concretizará através de uma perspectiva de ampliação (aliança) e resistência desses
atores sociais que vislumbram as transformações sociais. Nesse sentido, o popular
tem um nítido componente classista, abrangendo as classes trabalhadoras, os
camponeses, os setores médios da sociedade, além de setores da pequena burguesia
(MELO NETO, 2004, p. 157). (grifei)
Em suma, o que confere a qualidade de popular, segundo Melo Neto, são
elementos que traduzem sua essência, aqueles que sempre estiveram presentes nas suas
variadas concepções ao longo do tempo – a origem no trabalho do povo, a ação comprometida
com o povo, a clareza do papel político de lutar contra as opressões e de defender os
interesses do povo, a metodologia pautada no diálogo e no desenvolvimento da cidadania
crítica, o trabalho guiado por princípios voltados à maioria e pelas utopias de realizar sonhos,
nas buscas incessantes pelas superações.
A educação popular é, portanto, uma ação política, que se faz para o povo e com o
povo, que é sujeito, que é protagonista no processo educativo emancipatório e libertador.
Não basta, pois, alfabetizar, profissionalizar. Como diz Paulo Freire (1991):
Não basta saber ler que Eva viu a uva. É preciso compreender qual a posição que
Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra
com esse trabalho.
Na concepção freireana, a educação popular assume o compromisso humanista de
servir ao oprimido, à sua libertação. E essa opção tem uma razão de ser.
Conforme explica Freire (1987), o opressor nega a liberdade e a condição de
sujeito histórico do oprimido, retirando-lhe a vocação do ser-mais, desumanizando e
silenciando a sua voz. Autoritário, não permite questionamentos, impõe, prende, cala.
Por outro lado, quando o oprimido e a oprimida passam a problematizar a sua
65
existência no mundo e com o mundo, percebem-se sujeito e sujeita de sua própria história e
buscam a sua humanização, a sua vocação transformadora. Conquistam sua liberdade e sua
autonomia e liberta o opressor, que também restaura sua vocação de ser mais, pois deixa de
oprimir, de negar a vocação do outro e da outra.
Por isto é que esta educação, em que educadores e educandos se fazem sujeitos do
seu processo, superando o intelectualismo alienante, superando o autoritarismo do
educador “bancário”, supera também a falsa consciência do mundo. O mundo agora
já não é algo que se fala com falsas palavras, mas o mediatizador dos sujeitos da
educação, a incidência da ação transformadora dos homens, de que resulte a sua
transformação. Esta é a razão por que a concepção problematizadora da educação
não pode servir ao opressor. Nenhuma “ordem” suportaria que os oprimidos todos
passassem a dizer: “Por quê?” (FREIRE, 1987, p. 43).
A problematização, para Freire, apenas se torna possível por meio do diálogo, pois
é neste que a dicotomia entre docente e discente se desfaz para dar lugar ao educador-
educando e ao educando-educador. Ambos são sujeitos do processo de conhecer, de aprender,
de desvelar o mundo.
A superação dessa dicotomia humaniza e liberta sujeitos e sujeitas para pensar,
falar e agir. Aqui não mais existe o depósito de conhecimentos, a verticalidade da relação
entre quem ensina e quem é ensinado, mas a comunhão e a horizontalidade de saberes, o
inacabamento que exige o ensinar-aprender simultâneo e constante.
Dessa forma, delineiam-se os elementos que orientam essa pesquisa no que tange
aos seus impactos na formação jurídica de estudantes que tiveram contato com o povo através
da prática da educação popular.
a) O diálogo
O diálogo permite a problematização ao passo que torna seus sujeitos e sujeitas
livres para agir e refletir, para pensar criticamente sobre si mesmo e sobre o mundo a partir da
relação com este; que desperta neles e nelas sua vocação de conduzir a própria história, de
tomar decisões, de intervir no mundo para transformá-lo. Neste sentido, “não é transferir
conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”
(FREIRE, 1996 p. 47).
A relação construída de forma dialógica permite o exercício de escutar, isto é, de
repeitar a fala e as diferenças do outro, de ouvir em silêncio e não silenciar, de falar com. Não
se trata de reprimir o direito de discordar, pelo contrário, se trata de preparar melhor a sua fala
66
a partir da fala do outro, construindo argumentos e não imposições, respeitando as opiniões
contrárias, no tom democrático e não autoritário.
O silêncio é necessário na postura de quem escuta. Portanto, no diálogo não há
silenciado, mas o silencioso. A voz do educador e da educadora não cala a voz do educando e
da educanda.
Trata-se de um exercício que requer humildade, tolerância (capacidade de aceitar
o diferente), abertura ao novo e respeito às diferenças, pois, como afirma Paulo Freire:
Se discrimino o menino ou a menina pobre, a menina ou o menino negro, o menino
índio, a menina rica; se discrimino a mulher, a camponesa, a operária, não posso
evidentemente escutá-las e se não as escuto, não posso falar com eles, mas a eles, de
cima para baixo. Sobretudo, me proíbo de entendê-los. Se me sinto superior ao
diferente, não importa quem seja, recuso-me escutá-lo ou escutá-la. O diferente não é
o outro a merecer respeito é um isto ou aquilo, destrável ou desprezível (FREIRE,
1996, p. 120-121).
Sem humildade, forma-se uma hierarquia, uma “falsa superioridade de uma
pessoa sobre a outra”, que afronta a “vocação humana de ser mais” (FREIRE, 1996, p. 121).
Freire coloca ainda a necessidade de respeitar a leitura do mundo do educando e
da educanda, fruto de sua experiência de vida, de sua história, das condicionantes culturais e
sociais a que foi exposto, reconhecendo, assim a “historicidade do saber”.
É a maneira correta que tem o educador de, com o educando e não sobre ele, tentar a
superação de uma maneira mais ingênua por outra mais crítica de inteligir o mundo.
Respeitar a leitura de mundo do educando significa tomá-la como ponto de partida
para a compreensão do papel da curiosidade, de modo geral, e da humana, de modo
especial, como um dos impulsos fundantes da produção de conhecimento. (FREIRE,
1996, p. 123).
Ao educador ou à educadora cabe a tarefa de através da sua palavra, incitar o
educando e a educanda a proferir a própria palavra, a produzir a própria inteligência, bem
como a superar as suas dificuldades. Não é transferindo a sua visão de mundo, mas
reconhecendo o educando e a educanda como sujeitos no processo educativo, estimulando-os
a construir a sua própria opinião.
Isto se faz, portanto, recusando-se a oferecer aulas meramente narrativas, que não
integram os e as discentes, pelo contrário, disseminam o tédio, a monotonia e o desinteresse; a
se comportar de forma arrogante e autoritária; e a realizar avaliações que exijam a reprodução
do próprio pensamento sem possibilitar ao outro o exercício do pensar, do refletir, do recriar.
67
Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos
outros, de cima para baixo, sobretudo como se fôssemos portadores da verdade, a
ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que
aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro,
fala com ele, mesmo que, em certas condições precise falar a ele. O que jamais faz
quem aprende a escutar para poder falar com é falar impositivamente. Até quando,
necessariamente, fala contra posições ou concepções do outro, fala com ele como
sujeito da escuta de sua fala crítica e não como objeto de seu discurso. O educador
que escuta aprende a difícil lição de transformar o seu discurso, às vezes necessário,
ao aluno, em uma fala com ele (FREIRE, p. 113).
A memorização, tão comum nos ambientes das faculdades de direito, tolhe a
criatividade e a liberdade do educando e da educanda, domestica, trata-os como seres
adaptados, nega a vocação transformadora, questionadora. A prática de “decorar” leis,
correntes doutrinárias e, em casos como já relatado no Curso de Direito da UFRN, a opinião
do ou da docente, torna insignificante a participação do corpo discente com suas ideias,
pensamentos e críticas, pois sua tarefa é absorver o conteúdo e não refletir sobre ele. No
direito significa, mais especificamente, saber a técnica e a lei, sem conhecer suas limitações
práticas e teóricas e suas implicações políticas, ideológicas e sociais.
Trata-se de um “círculo vicioso”, no qual essa prática pedagógica de “depositar” e
“absorver” conteúdos se sedimenta nos cursos jurídicos, reproduzindo-se e reproduzindo o
direito enquanto lei e a partir de opiniões incontestáveis. A tradição soa como um argumento
de autoridade, como um obstáculo às inovações no método de ensino, à perspectiva de relação
entre docente e discente – horizontal e dialógica.
Ensinar o direito implica, portanto, envolver estudantes, classes populares e
setores diversos da sociedade. É construir o conhecimento jurídico em diálogo com as
demandas sociais e com o pensar crítico dos e das discentes. Como disse Paulo Freire, “não
há docência, sem discência” (FREIRE, 1996, p. 21). Não há teoria sem prática, nem prática
sem teoria. O conhecimento é, portanto, dialético e dialógico.
b) A horizontalidade
O diálogo requer também uma relação horizontal entre educando e educanda e
educador e educadora, na qual ambos compreendem a incompletude, o inacabamento do ser
humano e que, dessa forma, não há quem saiba mais ou quem saiba menos, mas uma
permanente busca pelo conhecimento - “é na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se
funda a educação como processo permanente” (FREIRE, 1996, p.58).
Neste sentido, a consciência da incompletude humana remete ao educador e à
68
educadora sua igual condição de educando e educanda, que ensinando também aprende. Por
isso não haver aqui uma superioridade docente, de quem sabe, de quem manda, mas um
diálogo de sujeitos e sujeitas e de saberes.
Quando saio de casa para trabalhar com os alunos, não tenho dúvida nenhuma de
que, inacabados e conscientes do inacabamento, abertos à procura, curiosos,
“programados, mas, para aprender”, exercitaremos tanto mais e melhor a nossa
capacidade de aprender e de ensinar quanto mais sujeitos e não puros objetos do
processo nos façamos” (FREIRE, 1996, p. 59).
Não existe aqui superioridade nem autoritarismo, mas autoridade docente, uma
“autoridade coerentemente democrática” (FREIRE, 1996, p. 92), que constrói uma disciplina
não castradora da liberdade discente, voltada ao despertar de uma consciência de
responsabilidade das próprias ações e de compromisso ético, de respeito às diferenças e à fala
do outro. Autoridade e liberdade são faces de uma mesma moeda, não se separam, estão
imbricados no processo educativo:
Este é outro saber indispensável à prática docente. O saber da impossibilidade de
desunir o ensino dos conteúdos de formação ética dos educandos. De separar prática
de teoria, autoridade de liberdade, ignorância de saber, respeito ao professor de
respeito aos alunos, ensinar e aprender. Nenhum destes termos pode ser
mecanicistamente separado, um do outro. Como professor, tanto lido com minha
liberdade quanto com a liberdade dos educandos, que devo respeitar, e com a criação
da autoridade dos educandos (FREIRE, 1996, p. 95).
A horizontalidade requer ainda o respeito à autonomia do educando e da
educanda, o que para Freire constitui um imperativo ético. A construção dessa autonomia
ocorre no processo de aprendizagem, com respeito à sua curiosidade, à sua linguagem, às suas
opiniões e enxergando-os enquanto sujeitos e não como objetos.
Cabe ainda ao educador e à educadora apresentar-se disponível ao diálogo. É
reconhecer sua incompletude, de que não sabe de tudo, mas pode estar sempre buscando
saber. É abrir-se ao mundo, diminuindo a distância com a realidade e com os discentes.
Assim, fazendo-se o diálogo por meio do mundo em que habita, necessário conhecê-lo para
comunicar-se. Isto é, conhecer o contexto dos educandos e das educandas para compreender
seu comportamento, sua linguagem.
A formação dos professores e das professoras devia insistir na constituição deste
saber necessário que me faz certo dessa coisa óbvia, que é a importância inegável
que tem sobre nós o contorno ecológico, social e econômico em que vivemos. (...)
Preciso, agora, saber ou abrir-me à realidade desses alunos com quem partilho a
69
minha atividade pedagógica. Preciso tornar-me, se não absolutamente íntimo de sua
forma de estar sendo, no mínimo, menos estranho e distante dela (FREIRE, 1996, p.
137).
No mesmo sentido, Aguiar (2004) diz que “não há direito sem a capacidade de
nos conhecer e conhecer os outros e suas circunstâncias”. Para o autor, é necessário
compreender o contexto, a condição do oprimido, para que se realize uma prática jurídica
efetivamente comprometida com a justiça.
O direito não só precisa desse conhecimento, como também de criar pontes de
linguagens e conhecimentos diferenciados. A mania dos operadores de se cingir à
comunicação conforme a norma culta impede que eles se façam entender em várias
situações e possam entender o discurso dos outros; isso significa a perda da
possibilidade de alteridade operante, fundamento de qualquer direito. A alienação e
inconsciência perante o mundo e suas relações atingem a prática jurídica justamente
no que ela tem de essencial que é a busca de uma justiça na concretude da sociedade.
Quem não sabe do mundo que o cerca também está impossibilitado ou, no mínimo,
limitado em fazer justiça perante os problemas que lhe são trazidos. A habilidade de
pensar e sentir o mundo, de vislumbrar caminhos e tendências, é fundamental para
contextualizar utopias que mobilizam nossas existências. Não existe jurista sem
sonho, sem vislumbre de um mundo melhor; sem isso, serão mecânicos aéticos de
normas (AGUIAR, 2004, p. 62).
No direito, essa percepção abrangente do contexto e das condições dos sujeitos se
faz necessária posto o contato constante com situações de conflito. É necessário, portanto,
conhecer o outro, evitando-se cair no risco do senso comum, em pré-conceitos, que afastam
ao invés de dialogar.
c) A interdisciplinariedade
A interdisciplinariedade é o diálogo entre saberes, que permite uma visão total da
realidade, a partir dos diversos ângulos possíveis.
A educação popular assimila a diversidade de saberes e respeita-os, sem
estabelecer hierarquia. A necessidade do diálogo entre as áreas de conhecimento também
decorre do reconhecimento da sua incompletude, das limitações em permitir a compreensão
totalizada do mundo.
A interdisciplinaridade é o oposto da repartição do conhecimento. Este
conhecimento fragmentado, à medida que vai se especializando, restringe ainda mais a
percepção da realidade. Nas palavras de Paulo Freire (1987, p. 33), “são retalhos da realidade
desconectados da totalidade”.
70
É no plano da totalidade que se constrói uma percepção “desalienada”,
desapegada às “visões focalistas”.
Por isto é que a investigação se fará tão mais pedagógica quanto mais crítica e tão
mais crítica quanto, deixando de perder-se nos esquemas estreitos das visões parciais
da realidade, das visões “focalistas” da realidade, se fixe na compreensão da
totalidade (FREIRE, 1987, p. 57).
Na formação jurídica, conforme ressalta Aguiar (2004), a percepção do todo é
essencial na identificação de problemas, isto é, situar o problema jurídico em um contexto
maior, de variáveis econômicas, sociais, culturais e políticas, descobrindo-se, a partir de suas
causas, a melhor forma para resolvê-los.
A função da interdisciplinaridade no direito também está relacionada a uma
formação jurídica aberta ao novo, às influências externas, capaz de analisar a complexidade
que envolve o direito diante de sua diversidade, de suas pontes com as mais variadas áreas de
conhecimento.
2.2.2 Extensão popular
A extensão é elemento indissociável do ensino e da pesquisa na educação
universitária, consoante a Carta Constitucional de 1988. Já a lei que institui as diretrizes e
bases da educação nacional24
, a institui como uma finalidade da Universidade: “promover a
extensão, aberta à participação da população, visando à difusão das conquistas e benefícios
resultantes da criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição”.
A Política Nacional de Extensão Universitária25
vai além, apresentando a seguinte
definição:
A Extensão Universitária, sob o princípio constitucional da indissociabilidade entre
ensino, pesquisa e extensão, é um processo interdisciplinar, educativo, cultural,
científico e político que promove a interação transformadora entre Universidade e
outros setores da sociedade (2012, p. 15).
O referido documento ainda estabelece como diretrizes para a extensão
universitária a interação dialógica, a interdisciplinariedade e a interprofissionalidade, a
indissociabilidade entre Ensino-Pesquisa-Extensão, o impacto na formação do estudante e o
24
Lei nº 9.394/1996, art. 43, VII. 25
Disponível em: < http://www.renex.org.br/documentos/2012-07-13-Politica-Nacional-de-Extensao.pdf>.
Acesso em: 12 de abril de 2014.
71
impacto e transformação Social.
Dessa forma, a extensão corresponde a um aspecto da formação acadêmica e, ao
mesmo tempo, a uma função social institucionalizada da universidade, orientada a promover
intervenção na realidade.
Porém, Melo Neto (2002) questiona o conceito de extensão que se limita a
descrevê-la como função social da universidade, pois que isto não traduz por si só um
compromisso com as classes oprimidas. Aliás, como aponta Santos, a universidade é uma
instituição historicamente ocupada pelas elites:
A centralidade da universidade enquanto lugar privilegiado de produção de alta
cultura e conhecimento avançado é um fenômeno do Século XIX, do período do
capitalismo liberal, e o modelo de universidade que melhor traduz é o modelo
alemão, a universidade de Humboldt. A exigência posta no trabalho universitário, a
excelência dos seus produtos culturais e científicos, a criatividade da actividade
intelectual, a liberdade de discussão, o espírito crítico, a autonomia e o
universalismo dos objectivos fizeram da universidade uma instituição única,
relativamente isolada das restantes instituições sociais, dotada de grande prestígio
social e considerada imprescindível para a formação das elites. (SANTOS, p. 168).
Além disso, problematiza a extensão enquanto processo que se faz pela via de
mão-dupla. É certo que essa compreensão possibilita a participação popular na construção do
conhecimento, democratizando-o. Porém, esse canal em que a universidade leva e traz
conhecimento pode resultar numa compreensão de que apenas nesta instituição ocorre a
reflexão teórica, a produção do conhecimento, decorrendo, pois, numa separação do processo
e da produção:
A concepção de extensão como via de mão dupla separa o processo educativo da
própria educação, o processo cultural da produção da cultura, bem como o processo
científico da própria ciência. Pode-se questionar: quais os interesses que se
manifestam nessa realização? Será a extensão algo ideal, capaz de viabilizar uma
relação transformadora, como propõe aquele conceito? (MELO NETO, ano, p. 17-
18).
Da mesma forma que Darcy Ribeiro (1985, p. 7) questiona universidade para
quem e para quê, se pergunta para quem e para quê serve a extensão universitária. Logo, para
Melo Neto (2002), a extensão deve ser definida de forma a construir uma hegemonia de
classe. E isto, segundo o autor, se faz por meio da produção de conhecimento útil às classes
populares, de modo que essa utilidade não parte de uma intuição acadêmica, mas da
compreensão do povo, igualmente sujeito na construção do saber. Esse conhecimento traduz,
portanto, uma nova cultura para a classe trabalhadora.
72
Portanto, não basta dizer que a extensão busca uma interação com a sociedade, ou
mesmo com as classes populares, pois existe um leque de possibilidades para isto acontecer,
podendo servir às empresas privadas, às classes privilegiadas econômica e socialmente, ou
mesmo à população carente de recursos através de práticas assistencialistas.
Essas práticas revelam, por sua vez, um viés autoritário e vertical, pois situam
quem assiste numa condição superior em relação àquele que é assistido. É uma relação de
doação, que parte de uma suposta “generosidade” de quem doa, como se constituísse um
favor, uma “esmola” a quem precisa. Não é uma ação transformadora, portanto, eis que o
necessitado, o assistido não é sujeito ativo, mas passivo nessa relação, redundando numa
prática que não respeita a autonomia do outro.
A definição proposta por Melo Neto busca superar os problemas conceituais da
extensão no sentido de deixar clara a intencionalidade – o para quem e o para quê da
extensão.
Portanto, o diferencial da extensão popular está na sua qualidade de “trabalho
socialmente útil”. A categoria trabalho está relacionada àquilo que transforma a natureza e
que cria um produto. Ou seja, a extensão é, então, o trabalho que transforma a realidade e que
produz conhecimento pertencente aos sujeitos e às sujeitas que se envolveram na sua
realização:
Sendo trabalho social e útil, a efetivação da extensão gera um produto que
transforma a natureza, na medida em que cria cultura. É um trabalho imbuído da sua
dimensão educativa. O produto desse trabalho, todavia, passa a pertencer tanto às
equipes dos projetos de extensão, na universidade, quanto à própria comunidade ou
aos grupos comunitários, para aplicação na organização de seus movimentos. Esta
tem sido uma busca constante de apropriação do produto gerado nas atividades de
extensão. Essa dimensão da extensão possibilita a superação da alienação gerada
pela não posse do produto do trabalho por parte de seus produtores, no modo de
produção capitalista. Todos os produtores devem apropriar-se desse produto do
trabalho, que é o saber (MELO NETO, 2004, p. 36-37).
Neste sentido, partindo da concepção marxista do trabalho como “resgate da
dimensão humana”, isto é, que liberta o indivíduo enquanto agente transformador na
apreensão daquilo que produz, o papel da extensão é de humanizar, portanto, de contribuir
para superar a negação, a opressão que proíbe condição humana de ser livre.
A extensão popular apresenta, portanto, uma finalidade essencialmente política,
de comprometimento com as classes populares, com os grupos oprimidos, na sua libertação,
na construção de sua autonomia. Daí seu caráter transformador, eis que a mudança, para
acontecer, demanda dos próprios oprimidos que assumam sua libertação, pois:
73
Estes, que oprimem, exploram e violentam, em razão de seu poder, não podem ter,
neste poder, a força de libertação dos oprimidos nem a si mesmos. (...) Os
opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para que a sua “generosidade”
continue tendo a oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça (FREIRE,
1987, p. 17).
A transformação social oportunizada pela extensão popular ocorre em duas
dimensões: no trabalho específico desenvolvido, realizando mudanças em determinado
contexto, numa fábrica, numa comunidade rural ou urbana, onde seus sujeitos e sujeitas vão
construindo e se apropriando do conhecimento produzido ao tempo em que constroem sua
autonomia e sua liberdade; e na formação acadêmica de estudantes, professores e
funcionários, na medida em que a experiência vivida possibilita a tomada de posição, a
formação de um compromisso com as classes populares, conferindo um sentido transformador
aos seus papéis na sociedade e dando continuidade à práxis libertadora.
No que tange à formação de estudantes, a experiência com a extensão popular
desperta a apreensão crítica da realidade e a consciência de seu papel transformador, ensina a
relacionar teoria e prática, a perceber a importância do saber popular na elaboração do
conhecimento, da participação dos diversos setores da sociedade na construção da democracia
e da justiça social. Enfim, a extensão apresenta uma aprendizagem crítica e comprometida
com a realidade, orientando a formação de profissionais conscientes de que seu conhecimento
pode servir de instrumento à mudança.
Na formação jurídica, a extensão popular denota uma prática ainda mais
desafiadora e contra-hegemônica, tendo em vista que o contexto das faculdades de direito,
conforme já apresentado, é permeado de uma visão distanciada da realidade, pouco reflexiva e
que preza pela acomodação, além da verticalidade, que é avessa a práticas inspiradas na
educação popular, com a horizontalidade, a dialogicidade e a interdisciplinaridade.
É justamente a partir dessas contradições que a extensão confronta esse contexto
conservador, possibilitando aos e às estudantes o desenvolvimento de uma concepção crítica
do direito e do ensino jurídico, da sensibilidade perante as demandas sociais e da consciência
transformadora.
Diante das especificidades técnicas e próprias do direito, a extensão popular se
desenvolve de uma maneira diferenciada, isto é, através da assessoria jurídica popular, que
assimila a intencionalidade do trabalho social e o método pedagógico da educação popular,
conforme análise a seguir.
2.2.3 A educação em Direitos humanos
74
Necessário, nessas primeiras linhas, esclarecer qual a concepção de direitos
humanos aqui adotada. Trata-se do sentido emancipador, ligado às conquistas das lutas sociais
no decorrer da história e voltado para o que Paulo Freire denomina de humanização.
Aliás, consoante dissertação de mestrado de José Humberto de Góes Júnior, Paulo
Freire defende a construção de uma sociedade livre de opressão não apenas a partir da práxis
pedagógica, mas também do respeito aos direitos humanos:
A leitura de escritos de Paulo Freire, todavia, é capaz de informar que seu
pensamento não está adstrito ao campo da pedagogia. Não obstante seja esta sua
temática central, o autor imprime ao seu estudo a necessidade de analisar o mundo,
de submeter as relações sociais, sobretudo, aquelas de opressão, ao crivo de um
olhar atento, crítico, com vistas à sua eliminação. E, fundado no respeito aos
Direitos Humanos à dignidade, à igualdade e à liberdade, Paulo Freire nega qualquer
possibilidade de haver mudanças sociais aparentes, das quais resulte apenas a troca
de papéis entre opressores e oprimidos. Seu propósito é, decerto, a construção de
mecanismos capazes de fortalecer a democracia e a cultura de respeito aos Direitos
Humanos, de modo que já não subsistam formas de exploração, econômica e/ou
cultural (GÓES JÚNIOR, 2008, p. 21).
Os direitos humanos concebidos não como um conjunto de artigos e incisos que
confiram uma segurança abstrata de sua efetivação, mas como uma constante evolução
humana, uma permanente luta por transformação social, como aquilo que realiza a vocação
humana de ser mais.
Não se quer negar a relevância da positivação dos direitos humanos, pois que seu
papel também é importante na efetivação desses direitos, ao passo que imprime deveres ao
Estado, que coloca a lei ao lado dessa luta. Porém, restringi-los a esta condição pode incorrer
na negação de outros direitos humanos, insurgentes no seio da dinâmica social, ainda marcada
por desigualdades. Por isso a necessidade de compreender os direitos humanos no seu sentido
histórico:
Os direitos humanos representam a conquista, que não poderia dissimular toda luta
social e histórica para estabelecê-los, seja como princípio e parâmetro de avaliação
jurídica, seja como elenco de garantias a que se terá de oferecer efetiva substância e
eficiência, em toda legislação e aplicação de leis, ou até mesmo contra elas, se
preciso for. (...) Quero dizer, com isto, que os direitos humanos propriamente ditos
só nascem ou vigem, na medida em que a sua legitimidade constitutiva e eficácia
funcional se polariza no sentido da evolução histórica, em condições propícias das
correlações de forças internacionais. E estas só podem ser a situação, em cada etapa,
do processo de eliminação das dominações minoritárias e classistas, internamente, e
dos imperialismos de nações ou blocos de nações, no plano externo. Daí a constante
reformulação daqueles direitos, à medida que novas e mais amplas quotas de
libertação conscientizam-se, lutam pelo reconhecimento e se estabelecem,
historicamente (LYRA FILHO, 1980, p. 7-8)
75
Assim, enquanto vivermos em uma sociedade marcada pelas opressões, culturais,
sociais, de gênero, de etnia ou econômica, pela negação da liberdade, pela ausência de
dignidade, os direitos humanos, ainda que positivados, necessitam ser conquistados a cada dia
por meio da luta, de ações transformadoras que busquem dignificar e libertar os oprimidos e
as oprimidas. Pois que libertação “traduz-se no fortalecimento da democracia e no respeito
aos direitos humanos” (GÓES JÚNIOR, 2008, p. 23).
Aqui se assimila ainda a noção de Santos (1997) acerca da concepção
multicultural de direitos humanos, isto é, que compreende suas variantes culturais
questionando seu caráter supostamente universalista, conferido pelo conceito ocidental.
Entender o contexto dos grupos vulneráveis é assumir uma postura dialógica e não autoritária,
de impor conceitos prontos e acabados:
Na área de direitos humanos e da dignidade humana, a mobilização de apoio social
para as possibilidades e exigências emancipatórias que ele contém só será
concretizável na medida em que tais exigências tiverem sido apropriadas e
absorvidas pelo contexto cultural local. Apropriação e absorção, neste sentido, não
podem ser obtidas através da canibalização cultural (SANTOS, 1997, p. 23).
Esta visão ocidental e legalista dos direitos humanos a que Santos (1997) critica,
além do autoritarismo, limita-se a pensar direitos a partir de deveres, contradizendo o sentido
histórico, que confere a constante criação e recriação dos direitos humanos.
(...) a concepção ocidental dos direitos humanos está contaminada por uma simetria
muito simplista e mecanicista entre direitos e deveres. Apenas garante direitos
àqueles a quem pode exigir deveres. Isto explica por que razão, na concepção
ocidental dos direitos humanos, a natureza não possui direitos: porque não lhe
podem ser impostos deveres. Pelo mesmo motivo, é impossível garantir direitos às
gerações futuras: não possuem direitos porque não possuem deveres (SANTOS,
1997, p. 24).
Dessa forma, a educação em direitos humanos busca pensá-los a partir de uma
concepção emancipadora e não a partir de deveres ou de normas. A necessidade não
pressupõe obrigação, mas existência digna – dignidade de ser livre, a liberdade contra
opressões.
De acordo com Lyra Filho (1982, p. 6) em referência a Ernst Bloch, “não há
verdadeiro estabelecimento dos Direitos Humanos, sem o fim da exploração; não há fim
verdadeiro da exploração, sem o estabelecimento dos Direitos Humanos”.
Eis o porquê da escolha pela educação em direitos humanos. Eles trazem a conotação
76
de libertação do oprimido e da oprimida para viver com dignidade, para viver enquanto ser
humano, conscientes de sua vocação de ser mais. Traduzem a realização da justiça social, da luta
contra opressões, da transformação, da humanização.
A educação em direitos humanos humaniza educandos e educandas, educadores e
educadoras, ao passo que se constrói no diálogo, em respeito ao outro; quando se volta a pensar o
mundo de forma crítica; quando busca despertar a condição de sujeitos e sujeitas de direitos por
sua condição humana e não pela existência de deveres. Enfim, nas palavras de Paulo Freire (1987,
p. 31), quando promove não apenas a “liberdade para comer, mas liberdade para criar e construir,
para admirar e aventurar-se”.
O ensino jurídico pautado nos direitos humanos permite, por conseguinte, a criação
de uma cultura voltada à emancipação de sujeitos e sujeitas vulneráveis à ordem social desigual.
Isso significa dizer o potencial que apresenta na superação da visão legalista do direito e das suas
contradições perante a realidade na medida em que aproxima estudantes e profissionais das lutas
sociais, dos movimentos, grupos e organizações engajados na promoção da justiça social.
A educação jurídica promovida a partir dos direitos humanos implica sentir-se
afetado pela dor do outro, no exercício da alteridade (WARAT apud SENA, In NALINI;
CARLINI, 2010), implica sentir-se responsável pelo mundo em que vive e pela condição do
outro, implica sensibilidade.
2.2.4 Assessoria jurídica popular universitária
A assessoria jurídica popular universitária absorve todos os pontos anteriores,
constituindo numa alternativa à formação jurídica, pautada na práxis emancipatória dos
direitos humanos por meio da extensão popular universitária. Todavia, antes de delinear a
relação entre este tópico e os anteriores, vale destacar o contexto do surgimento da assessoria
jurídica popular (Ajup).
Com efeito, as assessorias jurídicas dos movimentos sociais surgiram, no Brasil, a
partir dos anos 1960, em parte como decorrência dos limites políticos contidos num
sistema político autoritário e, em parte, como reação a uma formação jurídica,
centrada num positivismo estiolante, que impedia a percepção do direito como
estratégia de superação de uma realidade injusta e de exclusão social fazendo do
formalismo legal um obstáculo à emergência de novos direitos. Em todo caso, elas
foram ajustando o seu perfil de atuação para concretizar objetivos emancipatórios e
de concretização de Direitos Humanos (SOUSA JUNIOR, p. 7).
77
As causas do surgimento das AJUP’S no Brasil são capazes de informar por si só
a intencionalidade de seus objetivos, dentre os quais se situa a instrumentalização do direito
em favor de grupos oprimidos como uma forma de transformar a realidade.
A concepção atual de AJUP no meio universitário surgiu na da década de 1990, a
partir de atividades ligadas a projetos da universidade apresentando um diferencial – o
protagonismo estudantil (RIBAS, 2008).
Em uma concepção ampla, que contemple as peculiaridades das atividades
desenvolvidas no âmbito universitário, a assessoria jurídica popular
(...) consiste no trabalho desenvolvido por advogados populares, estudantes,
educadores, militantes dos direitos humanos em geral, entre outros; de assistência,
orientação jurídica e/ou educação popular com movimentos sociais; com o objetivo
de viabilizar um diálogo sobre os principais problemas enfrentados pelo povo para a
realização de direitos fundamentais para uma vida com dignidade, e a sua
efetivação; seja por meio dos mecanismos oficiais, institucionais, jurídicos,
extrajurídicos, políticos, ou por meio da conscientização (RIBAS, 2008, p. 249).
Partindo das definições de Campilongo (2005), a assessoria jurídica popular seria
um serviço legal inovador, caracterizado pela coletivização, participação e organização, em
contraponto ao serviço legal tradicional, de caráter individualista, paternalista e apático.
O autor desenvolve sua ideia explicando que no serviço legal tradicional, o
atendimento costuma ser individualizado, configurando como uma decorrência da cultura
individualista liberal; as práticas possuem um caráter assistencialista, voltadas apenas para
quem se declara pobre, transmitindo uma ideia de caridade, de favor; além de constituir uma
relação hierárquica e formalista entre advogado e cliente, sem possibilitar envolvimento do
profissional nem do cliente, que sai da posição de sujeito do próprio problema, ocorrendo uma
“subordinação do cliente ao conhecimento do profissional” (CAMPILONGO, 2005, p. 6).
Por outro lado, a inovação do serviço legal está na atenção aos direitos coletivos,
valorizando princípios como o da solidariedade; na superação da restrição do caráter
econômico para atender à diversidade de grupos vulneráveis; no trabalho com entidades
coletivas; na relação horizontal entre advogado e cliente, com a participação e envolvimento
de ambos na causa, possibilitando a resolução coletiva e consciente do problema a partir de
estratégias definidas para além das vias judiais, como a pressão política, por exemplo.
Desse modo, a assessoria jurídica popular, enquanto prática inovadora, constitui
numa ação contra-hegemônica que desafia a concepção de direito e de ensino jurídico
dominantes e que se revelam nos serviços legais tradicionais.
78
A AJUP é uma ação política que busca a emancipação da classe trabalhadora, dos
grupos indígenas, das mulheres, dos grupos étnicos, enfim, dos espoliados e oprimidos. Aqui,
o problema não é compreendido apenas numa análise legal e jurisprudencial, mas como parte
de um todo, que envolve um contexto político, social, cultural e econômico.
Por isso, a via judicial nem sempre é o canal principal de solução, valendo-se
muitas vezes de estratégias que envolvam conhecimentos de várias outras áreas do saber,
inclusive do próprio movimento ou grupo sujeito do problema, a partir de suas experiências.
Aliás, complementando a definição teórica da AJUP com a experiência pessoal de assessora
estudantil, o Judiciário não se mostra apto a receber demandas de movimentos sociais. Vale
abrir um parêntese para explicar por que.
Nas ações judiciais que têm como polo passivo o Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra, o escritório popular26
, se depara com constantes desafios para garantir uma defesa
ao movimento condizente com os princípios constitucionais do processo, como o
contraditório e a ampla defesa. Dentre as violações de direito ao devido processo legal
visualizadas na existência do projeto estão: a falta de citação justificada pela impossibilidade
de encontrar o acampamento, embora sempre seja possível ao oficial de justiça cumprir a
decisão judicial que determina a saída imediata do movimento do local; e decisões judiciais
fundamentadas em provas frágeis, geralmente em meras alegações do proprietário
latifundiário e que muitas vezes transparecem o pensamento preconceituoso diante das
práticas políticas do MST, como tachar de “público e notório” que o movimento possui
práticas violentas; dentre tantas outras.
Assim, é ter a sensibilidade de escolher o meio que melhor atende às exigências
do assessorado, consciente das limitações do Poder Judiciário. Daí a necessidade de uma
equipe interdisciplinar, que ofereça outros caminhos a trilhar. Por outro lado, a iniciativa de
permitir o acesso de movimentos como o MST ao Judiciário denota uma ação ousada, uma
provocação ao individualismo e aos preconceitos disseminados nos tribunais e nas varas
judiciais. É desafiar o direito a pensar mecanismos de garantir a efetivação de direitos
coletivos.
Além disso, a coletivização da demanda também possibilita outro alcance,
conforme salienta Campilongo:
26
Um dos projetos que compõe o Programa Motyrum de Educação Popular em direitos humanos. É composto
por extensionistas, advogados e advogados e tem como atividade a assessoria jurídica popular de movimentos
sociais do Rio Grande do Norte, dentre eles acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra e
movimentos estudantis locais como o Fora Micarla e a Revolta do Busão.
79
Mais do que lidar com interesses difusos ou coletivos, o objetivo político desses
grupos também é contribuir para a afirmação daquele espírito comunitário já
apontado. A busca por essa “justiça alternativa” desdobra-se em dois lances: no
plano processual e no terreno substancial. No primeiro, a adjudicação institucional-
formal passa a concorrer com outros tipos de processos: juizados informais; ênfase
a critérios de eqüidade; participação popular na administração da justiça;
encorajamento à negociação, transação e barganha, etc. No segundo, a restauração
de equilíbrio individual cede lugar a uma justiça preocupada com o
encurtamento das desigualdades sociais - uma racionalidade regulada segundo as
exigências das “maiorias desprivilegiadas” (CAMPILONGO, 2005, p. 9).
Neste sentido, de promover uma sociedade justa e igualitária, a AJUP é
responsável também pela criação de uma cultura jurídica em direitos humanos. Sua finalidade
é tanto a efetivação desses direitos – dos direitos à saúde, educação, moradia ao acesso à
justiça – quanto permitir o processo de conscientização dos sujeitos e sujeitas envolvidos, no
sentido de estimular sua organização e sua autonomia, pois que a luta é diária. Dessa forma,
constroem-se profissionais e organizações comprometidas com a transformação social a partir
dos direitos humanos.
O pensar sobre a própria condição pode levar o homem à reflexão de que casos
extremos de necessidade o levarão obrigatoriamente, à ação. Não se pode se
surpreender que dia-a-dia se repitam atos violentos daqueles que nada têm. Haverá
algo mais violento do que a fome? O caminho da ação pode ser acompanhado por
aqueles que têm o compromisso político, como estudantes que podem analisar a
sociedade a partir do olhar daqueles que nela convivem, na experiência de encontrar
o sentido de sua luta (RIBAS, 2008, p. 26).
A partir das definições das atividades realizadas no âmbito das AJUP’s é possível
identificar a prática pedagógica da educação popular. Primeiramente porque tem como
finalidade a libertação dos oprimidos, do que sofrem com a sociedade injusta e desigual,
procurando estimular a construção de sua autonomia enquanto sujeitos de direito. Segundo
porque constrói uma relação horizontal, pautada no diálogo entre os movimentos e os e as
estudantes e profissionais envolvidos, em que os assessorados têm voz para dizer suas
necessidades, bem como participam da reflexão sobre caminhos e estratégias. Terceiro porque
se verifica a troca de saberes e a sua utilização em prol de um bem comum. No mais, a
educação popular se faz presente pela proposta pedagógica que busca formar seres humanos
conscientes de seu papel transformador no mundo.
No contexto específico da AJUP universitária, além de todos os elementos
abordados, se apresenta o protagonismo estudantil. Nas palavras de Ribas (2008, p. 89), “o
estudante não lê o mundo enquanto não toma a decisão de vivê-lo nos espaços onde se
esconde a realidade”.
80
De acordo com o autor, o envolvimento estudantil decorre da indignação:
A assessoria jurídica popular universitária nasce da “indignação ética”. Primeiro,
com um ensino do direito de estudantes cansados de tanta repetição, de tanta
“dogmática ruim” e de tanta doutrinação. Segundo, indignação com a prática
jurídica, com o atendimento nos escritórios “modelos” muito longe dos ideais de
acesso à justiça. Por fim, com a realidade brasileira, em que a igualdade formal não
corresponde aos anseios da utopia estudantil (RIBAS, 2008, p. 90).
Outra questão relacionada ao protagonismo estudantil é a baixa participação de
professores (RIBAS, 2008) nestes projetos, o que se conclui pela ausência ou precária
orientação. No entanto, apesar de algumas dificuldades que esta deficiência traz, é possível
identificar as consequências positivas deste engajamento, como a dedicação, a politização, a
postura crítica e dialógica, o senso de coletividade no trabalho em grupo e de democracia na
organização do grupo.
Por fim, é por constituir numa educação popular em direitos humanos a partir de
projetos de extensão de universidades, entendendo aí todas as suas implicações já abordadas,
que a assessoria jurídica popular universitária se constitui em uma alternativa à formação
jurídica em um sentido inovador e transformador.
81
CAPÍTULO III
O MOTYRUM COMO UMA ALTERNATIVA PARA O ENSINO JURÍDICO
No presente capítulo busco situar o Programa Motyrum de Educação Popular em
Direitos Humanos no contexto do Curso de Direito da UFRN no que concerne à formação
jurídica. Dessa forma, explicarei no que constitui este programa de extensão e farei um relato
do trabalho desenvolvido no Leningrado para, depois, analisar as respostas das entrevistas
realizadas com a maioria dos e das estudantes que desenvolveram a atividade no ano de 2011,
a partir das variáveis dialogicidade, interdisciplinaridade e horizontalidade.
3.1 O Programa Motyrum de Educação Popular em Direitos Humanos
A seguir, apresento o Programa Motyrum a partir de algumas noções de
organização, orientação política e metodologia de trabalho, além de suas limitações e de sua
relação com o Curso de Direito da UFRN. Trata-se de melhor compreender o Programa e,
portanto, o núcleo Urbano, para realizar a análise que me disponho a fazer no último tópico
deste capítulo sobre a formação jurídica.
3.3.1 O que é e como funciona
O Motyrum é um programa de assessoria jurídica popular que tem como proposta
central o desenvolvimento da educação popular em cinco eixos de atuação: a) comunidades
urbanas (Núcleo Urbano); b) rurais (Núcleo Rural); c) indígenas (Núcleo Indígena); d)
ambientes de privação de liberdade para adultos (Núcleo Penitenciário) e e) ambientes de
privação de liberdade de jovens em conflito com a lei (Núcleo Infanto-Juvenil). Além de
atividades ligadas à advocacia popular em apoio aos movimentos sociais do Estado do Rio
Grande do Norte, desempenhadas pelo Escritório Popular.
Assim, a práxis do Programa se realiza na discussão das violações de direitos
humanos verificadas nesses contextos através de círculos de cultura27
, na mediação
institucional e na articulação política para defender interesses do grupo com o qual se
27
Os círculos de cultura são rodas de conversa que seguem a ideia freireana de organizar o espaço de forma que
não traduza hierarquia, isto é, no sentido de estudantes de frente para o professor. A roda expressa
horizontalidade, em que todos e todas podem se olhar e falar. Constitui um espaço de mobilização de sujeitos e
sujeitas para pensar a realidade da qual fazem parte.
82
trabalha, como também no assessoramento jurídico das demandas que exigem uma
intervenção do Judiciário, situação que passa a envolver também o Escritório Popular. De
forma mais direta, o núcleo prepara os fatos e as provas da ação, enquanto o Escritório
trabalha os fundamentos e atua no acompanhamento processual.
A palavra “motyrum” possui origem Tupi-Guarany e quer dizer “união de pessoas
em torno de algo”. A escolha por este nome se deu por sua capacidade de expressar a essência
do Programa, que constitui numa opção política de construir com várias mãos um mundo
diferente, sem opressões, mais humano. É uma palavra “popular, feminista, negra, indígena,
da juventude, dos oprimidos, dos condenados da terra, condenados do mundo e da história”,
que indica a “nossa opção lúcida e consciente pelos explorados e exploradas, pela libertação
das correntes opressoras”, conforme dissemos na carta de esclarecimento sobre a mudança do
nome do Programa28
, antes chamado “Lições de Cidadania”29
.
A prática de extensão do Programa tem como objetivo promover, através do
diálogo com sujeitos e grupos oprimidos, a democratização do conhecimento através da
participação ativa da Universidade nas demandas sociais; a emancipação dos sujeitos e
sujeitas dos ambientes de atuação por meio da educação popular em direitos humanos; a
intervenção na realidade local; o acesso à justiça30
de movimentos sociais e das classes
populares; e a instrumentalização do Direito na transformação social31
.
Além da extensão, o Motyrum apresenta ainda o viés do ensino, ao passo que
permite aprender o Direito e outras disciplinas de forma prática, em relação com a sociedade e
estimulando o raciocínio jurídico; e da pesquisa, quando, na partilha de saberes, constrói um
conhecimento novo, surgindo a necessidade de sua teorização.
28
O Programa surgiu com o nome Lições de Cidadania, porém, ao longo dos anos, o crescimento e o
amadurecimento político provocou uma reflexão crítica sobre este nome, entendendo ter uma conotação
tradicional de educação, de educação bancária, de quem ensina lições a alguém de como ser um cidadão ou uma
cidadã. Assim, o nome Motyrum representa agora aquilo que somos e o que fazemos, representa a língua
indígena oprimida e o nosso compromisso com as classes populares, oprimidas e excluídas da sociedade. 29
Embora a presente pesquisa se refira a trabalho realizado na época em que o Programa se chamava Lições de
Cidadania, optei por adotar o nome atual por se tratar de uma análise posterior dos efeitos visualizados hoje após
a extensão no Leningrado. 30
Neste trabalho adoto a concepção mais abrangente de acesso à justiça, mencionada por Sousa Junior (2008), a
partir de referências à Boaventura de Souza Santos, na sua tese de doutorado. Isto é, o acesso almejado não é
apenas ao sistema judicial de solução de conflitos ou da efetivação de direitos positivados. É o acesso que
reconhece o pluralismo jurídico e os saberes da população agregando essas experiências na construção do direito
e de práticas alternativas, que visa à emancipação de sujeitos e sujeitas e a participação popular também nas
instituições jurídicas. 31
Entendo que a utilização do direito como instrumento de transformação social significa colocá-lo ao favor das
classes e grupos oprimidos para que possam combater as situações de dominação aos quais estejam submetidos,
emancipando-se, libertando-se de suas condições de exploração da força de trabalho, de discriminação racial, de
gênero, e cultural. Dessa forma, a partir dessa emancipação, vislumbro a ocorrência de mudanças estruturais e
culturais na sociedade com a eliminação das diversas formas de opressão.
83
Há duas frentes de atuação: fora dos limites físicos da Universidade, através da
prática da educação popular numa perspectiva de desenvolvimento social das comunidades e
sujeitos em diálogo com o Programa; e voltada à comunidade acadêmica, na “extensão às
avessas”32
, isto é, buscando conferir um espaço a estes sujeitos e sujeitas dentro da
Universidade para falarem e serem ouvidos pela instituição.
Dessa forma, provocamos o corpo docente e discente a despertar para as causas
sociais, a perceberem o quão afastados estão do mundo não acadêmico, a se sensibilizarem.
Certa vez, em um evento sobre direito à moradia, promovido pelo Núcleo Urbano, um
representante do Movimento de Luta em Bairros, Vilas e Favelas (MLB), que compunha a
mesa, iniciou sua fala da seguinte maneira: “Só assim para a gente entrar na Universidade...”.
Quer dizer, uma crítica a este espaço ainda marcado pela ausência ou tímida presença das
classes populares e dos movimentos sociais, e pelo distanciamento, pela separação de dois
mundos, o acadêmico e o social, quando na verdade, constituem um só.
A principal base teórica do Motyrum está nas obras de Paulo Freire, leituras
obrigatórias para todo e toda extensionista para compreender a metodologia do Programa,
pautada na educação popular e, por tanto, a importância do diálogo nas relações com o outro
ou a outra, da relação entre a diversidade de saberes e da horizontalidade.
Assim, a partir das experiências vivenciadas e de conversas com extensionistas,
percebo que, orientado por uma educação libertadora, o Motyrum tem como objetivo
proporcionar uma formação humanista ao e à estudante de direito, que permite o
desenvolvimento de habilidades como pensar criticamente, ter humildade diante das relações
sociais, enxergar o direito na totalidade, saber aplicar o conhecimento jurídico na prática,
perceber as limitações das instituições jurídicas, dentre outras que permitem a construção de
um profissional ou de uma profissional ciente de sua função social enquanto agente
transformador.
Além de estudantes de direito, do Programa também participam e participaram
estudantes de História, Ciências Sociais, Serviço Social, Nutrição, Pedagogia, Gestão de
Políticas Públicas, Psicologia, Letras, Contabilidade, Publicidade e Propaganda e Biologia.
32
A extensão às avessas, ou “ao contrário”, de acordo com Boaventura de Souza Santos (2004), consiste em um
mecanismo de aproximação entre universidade e comunidade. Importa não no movimento de ir até a
comunidade (como é comum na extensão em si), mas esta ocupar o espaço universitário para fazer parte da
construção do conhecimento, para participar das discussões e dialogar a partir do seu saber, da sua experiência.
Nas palavras de Santos (2014, p.57), é converter a universidade “num espaço público de interconhecimento onde
os cidadãos e grupos sociais podem intervir sem ser exclusivamente na posição de aprendizes.”. Ou seja, na
extensão a universidade vai até a comunidade e na extensão às avessas, esta vai até aquela, de modo que em
ambos os espaços ocorre o diálogo e a construção de conhecimento. É dizer que a universidade não é um espaço
privilegiado para isso, é, na verdade, mais um lugar para fazê-los.
84
Essa busca pela interdisciplinaridade se funda na possibilidade de uma percepção ampla da
realidade e de uma intervenção mais qualificada, a olhar para os vários aspectos dos
problemas enfrentados em cada ambiente de atuação de forma conjunta. Ela parte, assim, da
compreensão da incompletude do direito, da necessidade de “beber” de outras fontes de
conhecimento e de relacionar esses saberes e experiências no fazer e no refazer da extensão.
O Programa Motyrum é conduzido predominantemente por estudantes, contando
com raras participações de docentes nas atuações e em orientações33
. A orientação se faz por
meio de gerações: os e as extencionistas mais experientes no Programa vão se tornando
referências para as pessoas recém-chegadas. Além disso, as gerações mais experientes
também conduzem a formação política para atrair novos e novas extensionistas. É que, frente
a dificuldade de encontrar no Curso de Direito docentes com mesma intencionalidade política
e que tenha experiência com educação popular, o protagonismo estudantil se reafirma como
uma forma de sobreviver a essa conjuntura, de viabilizar o trabalho proposto pelo Motyrum,
até mesmo como uma forma de defesa, evitando interferências que venham a prejudicar o
andamento das atividades.
Interessante perceber que, por um lado, esse protagonismo estudantil exige a
busca de uma autoformação a partir de outros espaços (cursos de formação, encontros
regionais e nacionais de estudantes de direito – ERED E ENED, por exemplo), a busca de
docentes de outras áreas de conhecimento para orientar34
atividades (atuação em comunidade,
produção de artigos, planejamento do núcleo) e de leituras sobre educação popular,
movimentos sociais, dentre outros temas, no intuito de qualificar as ações do programa e as
formações de novos e novas extensionistas. E isso possibilita um engajamento de estudantes
na condução do Programa, fortalecendo-o e conferindo maior qualidade ao nosso fazer,
contrapondo, aliás, a posição em que são colocados e colocadas nas salas de aula, como
simples ouvintes, aguardando passivamente as ordens do seu “superior hierárquico” – o
professor. O engajar-se é algo que vai se desenvolvendo aos poucos nos e nas extensionistas,
de modo que verifico que isto ocorre em maior grau sempre naqueles e naquelas mais
33
Geralmente, salvo alguns raros momentos, as atividades do Motyrum são realizadas apenas por estudantes: a
organização do calendário semestral, a pauta de formações internas, a organização de eventos, o preenchimento
de editais de financiamento, as ações a serem realizadas nas comunidades. Nas ações que exigem assinatura de
orientadores, eles são contatados para realizar as diligências necessárias após ser explicado o motivo da tarefa.
Apesar de algumas tentativas em buscar a ajuda de orientadores, há dificuldades tanto por parte dos e das
extensionistas em buscar orientação, por diversos motivos como encontrar nesses professores uma orientação
política próxima do Programa e/ou que tenha experiência em extensão popular, não compreender da importância
da orientação docente, dentre outras; quanto por parte de professores em lidar com o protagonismo estudantil,
em compreender a metodologia do Programa e acompanhar a quantidade de atividades, dentre outras questões
que necessitam de uma avaliação coletiva do Programa para serem percebidas e melhor avaliadas. 34
O Programa já possuiu como orientadores docentes da Psicologia, Serviço Social e Antropologia.
85
experientes, que já carregam um acúmulo de formações e de vivência no Programa. Ou seja,
espontaneamente essas pessoas mais antigas se tornam referências, sobretudo diante da
expressividade desse protagonismo estudantil.
Por outro lado, a centralidade das atividades nos e nas estudantes possui limites na
formação mesma, ainda superficial, e na reflexão sobre as ações do Programa, instalando
entre extensionistas uma reprodução das ideias defendidas, dos discursos críticos, sem um
aprofundamento teórico. As ações do Motyrum apresentam, assim, um traço de ativismo
(FREIRE, 1987) como reflexo dessa limitação teórica35
, limitações que serão abordadas no
tópico seguinte.
A formação de novos e novas extensionistas ocorre anualmente e constitui
requisito para a entrada no Programa. São cerca de dez encontros, em que são apresentadas as
realidades dos ambientes de atuação dos núcleos no contexto local e nacional, ou seja, a
situação do Conjunto Leningrado, por exemplo, dentro de um contexto maior, do direito à
cidade, do direito à moradia, da intervenção do mercado imobiliário, da exclusão social, etc.
Nos encontros são discutidos textos relativos às temáticas e à educação popular, além de ter
sempre a preocupação de utilizar formas lúdicas, como dinâmica, teatro, música, material
visual (cartazes, fotografias e vídeos), no intuito de provocar o interesse, a participação e o
envolvimento36
do público com as causas apresentadas.
Assim, este é o primeiro momento de formação política do Motyrum, que tem
como objetivo apresentar o trabalho do Programa (atuações, organização interna,
metodologia), mas principalmente provocar um choque de realidade abordando temas que ou
não são tratados em sala de aula, ou o são sob a ótica opressora. Ou seja, discutindo questões
a partir da exposição das contradições sociais, da realidade enfrentada por oprimidos e
oprimidas, que não são apresentadas nas aulas abstratas do Curso de Direito. E a partir desse
choque, despertar a vontade de agir para transformar a realidade, seja participando no
35
Entendo que as ações do Motyrum não são meramente ativistas, elas são refletidas, partem de leituras, de
estudos teóricos que são realizados, dentro das possibilidades, antes e durante o trabalho de extensão nas
comunidades, por exemplo. No entanto, esse aprofundamento ainda é pouco expressivo no Programa, o que
confere esse traço, esse limite que denota uma ação com pouca reflexão. Interpreto isso não como uma opção do
Programa em sacrificar a reflexão (e por isso não ser meramente ativista), mas como uma consequência da
conjuntura em que está inserido, em que há dificuldades de realizar um trabalho que não é hegemônico no Curso
de Direito nem na Universidade, em que há fragilidades na formação de estudantes no âmbito da pesquisa. 36
A prática da educação popular pressupõe esse envolvimento de sujeitos e sujeitas nas discussões, na reflexão e
na descoberta do mundo. Essa prática educativa participativa é coerente com uma opção política progressista,
democrática (FREIRE, 1993), que reconhece educando e educador enquanto sujeitos inacabados, aptos a ensinar
e a aprender. É nesse sentido que esse curso de formação política busca envolver os e as participantes, de
provocar o despertar para sua condição de sujeitos e sujeitas históricas no mundo, de seres potencialmente
transformadores da realidade. Ou seja, é uma prática educativa que manifesta claramente sua intencionalidade
política, contrapondo o discurso da neutralidade no Curso de Direito.
86
programa ou não37
.
O Programa é auto-gestionado38
, de modo que todas as decisões são tomadas de
forma coletiva e democrática, aplicando também nesses espaços a pedagogia freireana de
respeito à fala do outro, de horizontalidade, de exercício da escuta. Estas atividades de gestão,
juntamente com o trabalho de extensão no contato com sujeitos oprimidos, com contextos
sociais até então desconhecidos para a maioria dos e das extensionistas, constituem, no meu
entender, o segundo momento de formação política do Motyrum, permitindo um
amadurecimento pessoal, profissional e político, conforme será exposto no último tópico deste
capítulo.
3.2.2 Limitações
O Motyrum apresenta alguns limites na execução daquilo que pretende ser e
realizar. Dentre essas limitações está o desafio da interdisciplinaridade, da pesquisa e da
continuidade do trabalho.
O Programa ainda é formado majoritariamente por estudantes de direito (cerca de
quarenta e nove pessoas), com poucas participações de estudantes de outros cursos, que,
quando presentes, não permanecem até a finalização do trabalho por motivos diversos, como a
falta de orientação na área do curso a que está vinculado e, por consequência, a dificuldade de
instrumentalizar o trabalho de extensão com seus conhecimentos; a incompatibilidade de
horários (o Curso de direito funciona pela manhã e a noite, enquanto outros apenas a tarde); a
dificuldade de estudantes de direito, considerando o ensino monodisciplinar do Curso, em
37
O número de inscritos nessas formações sempre é superior ao número de vagas estabelecido pelos núcleos, o
que impossibilita a entrada de todos e todas. Porém, o curso de formação constitui em si uma atividade
diferenciada oferecida pelo Motyrum no âmbito do Curso de Direito, de modo que possibilita, de maneira geral,
colocar estudantes de direito em contato com essas discussões, ainda que não venham a integrar o Programa, e,
talvez, mudar um pouco a concepção do direito e a forma de enxergar os problemas sociais. Dessa forma, o
curso de formação política também é um instrumento de disputa da concepção do direito dentro do Curso, uma
vez que permite sensibilizar um maior número de pessoas, para além do que irá efetivamente integrar o
Programa. Os frutos colhidos da formação, portanto, não são apenas novos e novas extensionistas, mas também
estudantes de direito que possam compartilhar posicionamentos políticos semelhantes, ocupando outros espaços
dentro e fora da universidade (e disputando-os também), como o Centro Acadêmico do Curso, por exemplo. 38
A autogestão do Motyrum está ligada à existência de docentes que compreendam a metodologia e a
intencionalidade política do Programa e que se dediquem às atividades relacionadas, tendo em vista o contexto
do Curso de Direito da UFRN, com quadro docente formado majoritariamente por docentes em regime de 20h e
ainda com a forma de compreender o direito e a sociedade distinta do Programa. Diante disso, os e as
extensionistas vêm adotando esse modelo de administração autogestionada para conduzir o Motyrum, garantindo
que as atividades de extensão sejam realizadas de acordo com os princípios e métodos da educação popular sem
a interferência de professores com orientação política distinta. Funciona, sobretudo, como uma forma de defesa
perante o contexto do Curso, no sentido de evitar que possíveis confrontos com professores na condução do
Programa atrapalhem suas atividades.
87
inserir conhecimentos dessas outras áreas nas ações de extensão, ainda que se tente; a
limitação de estudantes de outros cursos que chegam ao Programa quando nos primeiros
períodos da graduação, sem ter um acúmulo em sua área de atuação que ajude a realizar a
interação disciplinar39
.
A pesquisa também é deficiente quanto à sistematização das experiências e à
produção de textos e artigos científicos. A importância dessas atividades está justamente na
produção científica de algo que ainda é pouco estudado nas universidades, de publicizar
experiências, positivas ou negativas, que possam orientar ações de extensão semelhantes. A
sistematização, por sua vez, contribui principalmente na orientação do próprio Programa,
quando nos momentos de renovação, com a saída de extensionistas experientes e entrada de
novas pessoas, no sentido de permitir uma continuidade, de apresentar um material que
exponha o trabalho já realizado pelo núcleo até então sem a necessidade de parar o trabalho
para fazer isto, de não repetir os mesmos erros diante dos mesmos problemas.
Isto porque sistematizar as experiências vividas na educação e extensão popular
significa ordená-las e reconstruí-las a partir da interpretação crítica desse processo, do
exercício da reflexão sobre a prática teorizando-a, repensando-a e criando conhecimento
(HOLLIDAY, 2006). É pensar os limites, as intervenções necessárias para melhorar as ações.
Assim, a sistematização é necessária à continuidade das ações do Programa, como também à
reflexão teórica e à compreensão aprofundada da nossa prática (HOLLYDAY, 2006).
A produção científica também é importante para a questão da disputa no espaço
acadêmico, isto é, de confrontar um espaço que ainda impera o mito da neutralidade
científica. Consoante defende Bourdieu (1976), o campo científico é também um espaço de
“luta política pela dominação científica”, uma vez que os métodos e estratégias científicas
também correspondem a escolhas políticas, não há como dissociar uma da outra. Assim
sendo, ocupar o campo científico com produções acerca de experiências de extensão e
educação popular no direito é disputar um espaço cuja produção está voltada para análises da
lei, de discussões doutrinárias, de posicionamentos jurisprudenciais, ou seja, uma pesquisa
abstrata.
A ausência de orientação e participação docente interfere no trabalho dos e das
extensionistas, que têm que realizar todas as atividades administrativas e burocráticas do
39
Há uma gama de questões que envolvem a interdisciplinariedade no Motyrum que demanda uma avaliação
coletiva do grupo, envolvendo inclusive os sujeitos e as sujeitas de outros Cursos que vivenciam essas
dificuldades talvez mais que extensionistas do Curso de Direito. Assim, em razão dessa limitação de avaliar
individualmente algo que diz respeito a uma coletividade, me restringi a apontar alguns motivos que envolvem
os desafios da concretização da interdisciplinariedade do Motyrum, sem uma análise profunda do que isso
representa.
88
Programa, como gestão de recursos, preenchimento de editais de financiamento, cadastro de
bolsistas e reserva de transportes, pensar o Motyrum em sua organização, na participação de
outros espaços, na organização das formações para extensionistas atuais e futuros (seleção); e
ainda pensar o Núcleo do qual participa, a organização, as atuações, as formações, as
atividades administrativas, a realização de eventos. Quer dizer, há uma sobrecarga sobre os e
as extensionistas, de modo que pouco lhes sobra tempo para refletir sobre as ações e
sistematizá-las em produção científica.
Em alguns momentos em que núcleos contaram com a orientação e a participação
docente, observo que existiu uma produção científica de artigos para apresentações em
congressos e eventos, até mesmo fora do país. Por outro lado, quem se coloca a produzir, com
ou sem orientação, sente na construção do trabalho, as dificuldades provenientes de uma
formação pouco voltada à pesquisa, de desenvolver, por exemplo, as técnicas necessárias, a
sensibilidade de pesquisador, a organização das ideias. É o que tenho sentido no decorrer da
elaboração deste trabalho, por exemplo.
Todavia, o próprio Motyrum não possui um planejamento e uma organização que
preze pela pesquisa, pela formação teórica, pela elaboração de artigos científicos. Há um
espontaneísmo neste aspecto, no sentido de que escreve quem sente vontade ou necessidade –
é uma questão mais individual que coletiva. As ações realizadas nas comunidades são
avaliadas pelo grupo em reuniões ordinárias (núcleo) e assembleias gerais (Programa) e se
perdem em atas de registro, sem uma sistematização e sem uma teorização do que foi e será
feito. As leituras são deficientes, de modo que pouco se conhece sobre obras, autores, textos
que abordam conceito de direito, ensino jurídico, extensão universitária, direitos humanos,
educação e temas específicos ao âmbito de atuação dos núcleos (moradia, questão agrária,
sistema penitenciário, dentre outros). Muitas vezes ocorre de serem priorizadas apenas em
alguns momentos específicos, como preparação para escolha ou entrada na comunidade ou
com o surgimento de uma demanda que exija um estudo aprofundado, mas pontual. Mais uma
vez, a questão aqui é mais individual do que coletiva, de modo que um ou outro ou outra
estudante que busca por si só, uma formação teórica no assunto.
Dessa forma, o Motyrum acaba vivendo um paradoxo ao pretender realizar uma
educação pautada na ação e reflexão que indica Freire (1987), ao mesmo tempo em que pouco
reflete sobre sua práxis interna e externa. No âmbito interno há falhas evidentes, sobretudo
quando observo a repetição dos mesmos erros em termos de organização e planejamento. No
âmbito externo, também existem outros obstáculos a essa prioridade, como as urgências que
as comunidades demandam na realização de tarefas. Essas são geralmente tidas como a
89
prioridade dos núcleos, colocando em um segundo plano uma análise aprofundada do que se
pretende fazer.
O próprio formato do ensino no Curso de Direito, no que tange aos e às
extensionistas deste Curso, por um lado prioriza a sala de aula, exigindo a presença nas aulas
sob pena de reprovação, o estudo para provas e trabalhos avaliativos e a realização de artigos
científicos, prejudicando a dedicação às atividades do Programa, que já são numerosas40
. Por
outro, uma vez que é um ensino que pouco exercita a reflexão, sendo essencialmente de
natureza reprodutora, os reflexos dessa formação acadêmica incidem no Motyrum, que apesar
de representar um avanço no sentido de discutir criticamente o direito, o ensino jurídico e a
universidade, como um espaço do Curso de Direito da UFRN, apresenta as mesmas
fragilidades.
Contudo, apesar das limitações, posso afirmar que o Motyrum é capaz de realizar
seu propósito, ainda que timidamente, no que tange à formação jurídica. A possibilidade de
ler ao menos Paulo Freire (leitura obrigatória) para entender a importância da escolha de um
lado, o lado dos oprimidos e das oprimidas; de enxergar a relação do direito com poder, com a
sociedade e suas injustiças; de conhecer a fundo a vida de pessoas que vivenciam outra
realidade socioeconômica, já despertam nos e nas estudantes de direito um novo olhar sobre o
mundo, conforme pude apreender das entrevistas realizadas nesta pesquisa e será exposto
adiante.
É válido ressaltar ainda que o problema da orientação docente é ainda mais crucial
para o Programa no âmbito do Curso do Direito, pois há poucos professores e professoras em
regime de dedicação exclusiva e, desse universo, poucos e poucas possuem uma linha de
pensamento próxima a do Motyrum, de pensar o direito como instrumento de transformação,
de se apropriar da educação popular, de saber como funciona a assessoria jurídica popular.
Quer dizer, são docentes que não possuem experiência naquilo que o Motyrum se propõe a
fazer, a estar em comunidades continuamente, a realizar uma educação dialógica, a pensar
criticamente, fugindo, nestes aspectos, ao que é hegemônico no Curso de Direito – a extensão
distanciada da realidade ou de cunho assistencialista e a educação bancária e reprodutora de
leis.
Neste sentido, o Motyrum possui limitações que, além de existirem por questões
internas, também estão diretamente ligadas ao contexto de ensino jurídico no Curso de Direito
40
O Motyrum requer a participação de estudantes em reuniões ordinárias dos núcleos e em suas atuações em
comunidade, o cumprimento de demandas do núcleo e do Programa, a participação em assembleia geral e em
reuniões operativas, ambas envolvendo todos os núcleos.
90
da UFRN, refletindo suas deficiências na formação jurídica, sobretudo nos aspectos da
interdisciplinaridade, da pesquisa e da orientação docente.
3.1.3 O Motyrum no Curso de Direito da UFRN
O Motyrum é hoje o maior Programa de Extensão do Curso de Direito. Conta com
cerca de sessenta e nove estudantes dos cursos de Direito, Serviço Social, Psicologia, Ciências
Sociais, Letras, Contabilidade, Pedagogia, Publicidade e Propaganda e Biologia, além de duas
advogadas e dois advogados populares.
Dentre os outros projetos de extensão, é o único que conta com a participação de
estudantes de outros cursos da UFRN e de universidades privadas. Também é o único a atuar
em comunidades de baixo nível socioeconômico de forma contínua41
. Há um outro projeto
que faz atendimentos pontuais e esporádicos em diferentes comunidades da cidade,
envolvendo estudantes que organizam a ação de extensão, ou seja, que compõem o projeto, e
estudantes que participam apenas da ação pontual, no local específico. Logo, não há um
contato permanente com os sujeitos e sujeitas do atendimento42
, como ocorre nas atuações do
Motyrum, que buscam estabelecer vínculos com essas pessoas.
O Motyrum também apresenta exclusividade quanto ao referencial teórico
pautado na pedagogia de Paulo Freire e que discute a perspectiva do direito crítico através de
pensadores como Roberto Lyra Filho, Boaventura de Sousa Santos e José Geraldo de Souza
Junior. Em razão dessas leituras, geralmente realizadas individualmente43
, os e as
extensionistas passam por um processo de politização que tem levado a outros espaços de
atuação, como movimentos sociais, partidos políticos, centros acadêmicos e diretórios
estudantis, e ao envolvimento nas manifestações estudantis da cidade, como o Fora Micarla44
41
A continuidade é uma característica da extensão popular, podendo ser definida como um “trabalho
permanente, continuado” (MELO NETO, 2004). A prática da extensão requer o movimento dialético da ação e
reflexão, da teoria e prática na produção do conhecimento socialmente útil. Assim, é um fazer que vai se
refazendo a partir da crítica, da reflexão, que produz transformação social. Por este motivo, não poderia ser uma
ação pontual, uma visita única a uma comunidade. É necessário esse contato permanente para viabilizar as
discussões, o processo educativo e criação do produto social. 42
Diferentemente do trabalho permanente, esse projeto que atua pontualmente não viabiliza o processo
educativo. É uma ação assistencial, que “resolve” o problema, sem uma discussão sobre sua origem e suas
implicações, que resolve unilateralmente, sem partir de uma construção coletiva e participativa de sujeitos e
sujeitas envolvidas. 43
Conforme já exposto, o Motyrum possui deficiências na formação teórica, mas formações pontuais apresentam
algumas possibilidades de leituras que acabam despertando a necessidade em cada extensionista,
individualmente, fazendo-o buscar esse empoderamento teórico. 44
Movimento que surgiu nas redes sociais a partir de uma indignação generalizada da sociedade natalense diante
da gestão da prefeitura, à época gerida por Micarla de Souza – as pesquisas apontavam um índice de 90% de
rejeição. Dessa forma, sindicatos, movimentos sociais, partidos políticos e estudantes secundaristas e
91
e a Revolta do Busão45
.
Aliás, a participação do Programa nesses movimentos a partir do assessoramento
jurídico prestado pelo Escritório Popular tem proporcionado uma prática jurídica diferenciada
do que é proporcionado pelo Curso de Direito. Voltada para a instrumentalização do direito a
favor de grupos oprimidos, para uma perspectiva coletiva do direito, esta formação tem
proporcionado ao Motyrum uma maior visibilidade tanto na universidade quando na cidade.
Os movimentos têm reconhecido o Motyrum como um aliado nas reivindicações sociais,
sobretudo a partir da vitória judicial que marcou o Movimento Fora Micarla – um habeas
corpus impetrado em favor da liberdade das pessoas que estavam acampadas diante de uma
decisão judicial que ordenava a desocupação com o uso da força policial. A decisão favorável
foi proferida pelo Superior Tribunal de Justiça a poucos minutos da chegada da polícia ao
local, evitando que a repressão se concretizasse.
Assim, o Motyrum se apresenta como um projeto contra-hegemônico no contexto
do Curso em vários aspectos: o método da educação popular; a aproximação de vários
contextos sociais (privação de liberdade, periferias, assentamentos rurais, grupos indígenas); a
reflexão crítica sobre o direito; o desenvolvimento de uma postura dialógica e comprometida
com as classes populares; a possibilidade de intervir na realidade; o diálogo entre os diversos
saberes acadêmicos e populares com o direito; a “extensão às avessas” com a promoção de
eventos que dão voz ao oprimido e à oprimida, dentre outras peculiaridades que diferenciam o
Programa das demais ações de extensão hegemônicas no Curso e da educação jurídica
verticalizada, abstrata, acrítica e despolitizada que caracteriza o ensino nas salas de aula.
3.2 A experiência no Leningrado
Aqui me proponho apenas a relatar o trabalho desenvolvido no Leningrado – pois
que a reflexão sobre implicaria numa outra pesquisa – no intuito de melhor compreender o
tópico seguinte, em que analiso os efeitos deste na formação jurídica dos e das extensionistas
universitários, com apoio de instituições como a OAB/RN e o Conselho Estadual de Direitos Humanos e de
mandatos de vereadores e deputados, ocuparam a Câmara Municipal dos Vereadores de Natal (CMN) para
requerer a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CEI) com o intuito de investigar irregularidades
nos contratos de aluguéis da Prefeitura. A ocupação durou onze dias e terminou com um acordo assinado entre a
Câmara, ocupantes, Ministério Público Estadual, OAB e Conselho Estadual de Direitos Humanos para que os
manifestantes desocupassem a CMN, para a realização de uma audiência pública e para a instalação da CEI. 45
Movimento que também surge das redes sociais, composto essencialmente por estudantes, com a participação
de movimentos sociais e partidos políticos. Tem provocado a discussão sobre o transporte público em Natal em
razão da precarização do serviço e do trabalho de motoristas e cobradores em contraponto ao aumento
progressivo da passagem. Tem como reivindicação principal a melhoria do serviço público de transporte e a
transparência na sua gestão.
92
participantes.
3.2.1 Núcleo Urbano e Leningrado
O núcleo urbano é um projeto pertencente ao Programa Motyrum que tem como
alvo de atuação comunidades urbanas, periferias e favelas de Natal.
São contextos marcados pela violação do direito à cidade pelo mercado
imobiliário, pela ausência de políticas públicas, pela exclusão social, o que leva à construção
de estereótipos como “lugar perigoso”, “de gente favelada”, “que só tem bandido”.
O Conjunto Leningrado vive esse contexto. Localizado na Zona Oeste de Natal,
entre os Bairros Guarapes e Planalto, o Conjunto se construiu a partir de um dos maiores
assentamentos de sem-tetos do país, organizado pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e
Favelas (MLB) para a efetivação do direito à moradia.
Seguindo essa lógica, o dia 09 de abril de 2004 datou o início da ocupação de 200
famílias em uma área pertencente a essa zona, mais especificamente no bairro do
Guarapes, que mais tarde se tornaria o Conjunto Habitacional Leningrado,
considerado um dos maiores assentamentos de sem-tetos do país, que, a partir da
organização popular e da ação efetiva do MLB – Movimento de Luta nos Bairros,
Vilas e Favelas – se torna referência na luta e mobilização pelo direito à moradia no
país, se caracterizando como espaço de convergência de várias famílias oriundas de
favelas e bairros periféricos de Natal que moravam na rua, em barracos ou que
dependiam de aluguel, representando uma alternativa popular para cidadãos que
necessitam de uma moradia digna e se mobilizam diante dessa finalidade. (LIMA,
2011).
O projeto de construção de casas populares no Leningrado previa, além das casas
(cerca de quatrocentos e setenta), uma lagoa de captação, um posto policial, uma creche, uma
escola e um posto e saúde. Além de abrigar os e as ocupantes, o projeto buscava realizar um
“processo de desfavelização” de pessoas que moravam em outras localidades “caracterizadas
pela mesma espoliação socioeconômica, como bairros afastados, favelas, assentamentos e
demais ocupações natalenses” (MELO, 2013).
Porém, a conquista do direito à moradia não foi plena. Em monografia escrita
por Lucas Sidrim Gomes de Melo (2013), também integrante do Programa Motyrum, é
possível observar uma reportagem publicada pelo Jornal Tribuna do Norte, em que o
professor Ademir Araújo (UFRN) fala sobre o processo de desfavelização em Natal. Aqui
reproduzo um trecho citado pelo autor:
93
Para o professor da UFRN, Ademir Araújo, doutor em Geografia Urbana, as favelas
não serão erradicadas de Natal com a simples remoção. Segundo Ademir, desde o
fim da década de 80 que o bairro Planalto recebe loteamentos com casas para
moradores de favelas, que sempre voltam ou para o local de origem ou para novas
favelas. “As favelas sempre voltam porque o problema real não é resolvido.
Primeiro não se dá condições para essas pessoas sobreviverem e depois não se dá
um novo uso para o terreno que antes abrigava a favela”, explica. (MELO apud
LIRA, Isaac. Planalto: desfavelização incompleta. Tribuna do Norte. Rio Grande do
Norte, 06/11/2009).
Em outra reportagem, o jornal Tribuna do Norte retrata a realidade de um casal de
moradores:
Os dois ganharam uma casa no Conjunto Leningrado, no Planalto, mas assim como
as outras famílias que moram na área, sofrem com a falta de oportunidade de
emprego e de acesso a serviços básicos, como saúde, educação e transporte. Só para
ir e voltar à região de Candelária, onde sempre cataram do lixo o produto reciclável
que vendiam para se sustentar, eles perdem cinco horas por dia em cima da
carroça.“Lá era tudo mais perto e o pessoal passava de carro e ajudava a gente, aqui
isso não acontece e tudo é mais difícil”, compara José Osvaldo. As duas filhas do
casal, de quatro e dois anos de idade, acompanham os pais na longa viagem da zona
Oeste à zona Sul de Natal, diariamente. “Nem tem onde deixar elas, nem vou deixar
sozinhas em casa. Então para onde a gente vai tem de levar”, explica a mãe.
(LOPES, Wagner. Ex-favelados fazem críticas ao Leningrado. Tribuna do Norte,
23/07/2010).
A casa, portanto, não é o que define o direito à moradia. Esse direito é efetivado
quando há condições de permanência, se vida digna, com acesso aos serviços públicos de
saúde, educação, segurança, transporte, além de condições de trabalho e lazer.
É neste contexto de ausência, de abandono estatal, nessa “ilha”, como se referiu
certa vez uma moradora46
, que o Núcleo Urbano se insere para discutir essa realidade e
intervir através da educação popular em direitos humanos.
3.2.2 A chegada do Núcleo Urbano
A partir de uma indicação do MLB, o núcleo optou, em 2010, por realizar o
trabalho de educação popular no Leningrado.
Para conhecer a comunidade, o grupo aplicou cem questionários47
em cem casas
46
A fala foi extraída de um vídeo encontrado no acervo do Programa que registrou a aplicação de questionários
no Leningrado, no intuito de conhecer os problemas sociais vividos pelos moradores e pelas moradoras. 47
O questionário foi estruturado em dez eixos: informações gerais (sexo, idade, estado civil, escolaridade,
ocupação, membros por família e idade e ocupação desses membros), moradia, organização (participação em
algum movimento, associação), transporte, saúde, segurança, educação, lazer e cultura, direito e disponibilidade
para o curso. O objetivo principal era investigar quais eram as necessidades da comunidade e a partir dos dados,
organizar um quadro de temas geradores para realizar o trabalho de educação popular.
94
para traçar um diagnóstico e conhecer as dificuldades e as necessidades dos e das moradoras.
Durante cerca de cinco meses, estudantes de direito e uma estudante de serviço social
realizaram formações e estudaram para construir o questionário. Por mais três meses
realizaram visitas para aplicá-los, o que era feito por meio de conversas informais, de casa em
casa. Ao fim das visitas, mais três meses ocuparam os e as extensionistas na tarefa de
interpretar os dados.
Os dados revelaram quatro problemas principais. O primeiro era o transporte.
Nenhum ônibus circulava próximo ao Conjunto, de modo que era necessário andar dois
quilômetros e quinhentos metros para chegar à parada mais próxima. Somava-se a isso a
questão do acesso ao Conjunto: estradas de barro, esburacadas, que facilmente alagavam com
nas chuvas, e morros com vegetação fechada, ambos sem iluminação, propiciando a
incidência de ações criminosas, como assaltos, estupros e homicídios.
O problema se tornava ainda maior quando se tratava de jovens, crianças,
mulheres e idosos a transitar por esses acessos. Muitas crianças e adolescentes deixavam de ir
para escola em razão disso. As mulheres, vulneráveis ao estupro. Moradores e moradoras,
vítimas do rótulo “bandido”, confundidos com ladrões.
Percebemos, então, que a violação do direito ao transporte público estava
diretamente relacionada às dificuldades no acesso à educação, à saúde, à segurança, ao lazer,
à própria cidade.
O segundo problema estava na questão da saúde. A indeterminação sobre a qual
bairro o Leningrado pertencia ocasionava na recusa dos postos do Planalto e do Guarapes em
atender a comunidade do Leningrado. Somado a isso, o Serviço de Atendimento Móvel de
Urgência (SAMU) também se recusava a atender os chamados da comunidade, ora em razão
do acesso ora sob a suspeita de trotes.
A educação era outro problema enfrentado por todas as faixas etárias. As crianças
de até cinco anos aguardavam a abertura da creche localizada no Conjunto – Centro
Municipal de Educação Infantil (CMEI) Arnaldo Arsênio –, pronta e inaugurada, mas que não
funcionava por falta de autorização do Corpo de Bombeiros. As crianças e adolescentes do
ensino fundamental e médio não eram, em sua maioria, beneficiados pelo transporte escolar.
As condições para chegar à escola não eram as melhores: ir a pé até a escola ou até a parada
de ônibus, sujeitando-se aos perigos das estradas e morros ou, ainda, para terem acesso ao
direito à educação, passar a semana na casa de familiares em outros locais da cidade. No
entanto, eram comuns os relatos de que famílias perdiam o benefício Bolsa Família em razão
de a criança não frequentar a escola, justamente por essas dificuldades, por não ter o dinheiro
95
da passagem.
A segurança também foi um problema bastante ressaltado. A construção de que a
comunidade era perigosa abria margem para diversas arbitrariedades da polícia. Troca de
tiros, confundir moradores com ladrões, chantagear familiares de presos, eram ocorrências
presentes.
É nesse contexto, para muitos dos e das extensionistas, inimaginável, que o núcleo
urbano passa a interferir.
3.2.3 O trabalho desenvolvido
Ao fim do ano de 2010, finalizado o diagnóstico, iniciaram os círculos de cultura,
chamados “encontros de cidadania”. Da constatação dos problemas expostos, o grupo
sintetizou quatro eixos temáticos principais, sem excluir outros mencionados no diagnóstico,
para desenvolver o trabalho: transporte, saúde, educação e segurança.
A ausência de organização na comunidade exigia do grupo o empenho na
mobilização de moradores e moradoras. Dessa forma, pendurou-se uma faixa próximo ao
local das atividades, um galpão utilizado para celebrações religiosas, reuniões e outros
eventos do Conjunto, indicando a realização dos encontros semanais nas tardes dos sábados,
dia e horário indicados pela própria comunidade. Além disso, pagávamos uma taxa para um
morador passar um carro de som anunciando a reunião e chamando a presença de todos e
todas. Em alguns dias era necessário passar de casa em casa.
Cada encontro precedia uma preparação, estabelecida em reunião semanal do
núcleo. Decidia-se o tema a ser abordado no encontro seguinte, a forma (dinâmica, conversa,
entre outras coisas), o mediador ou a mediadora responsável, o relator ou a relatora para
registrar as falas e, algumas vezes, quem reservaria o transporte e levaria o lanche. O grupo
era, portanto, autogestionado, decidindo democrática e coletivamente, e sem orientação
docente, sobre os encontros de cidadania, os rumos do núcleo, a necessidade de formações e
tudo mais que se fizesse necessário. Nessa mesma reunião, havia uma partilha de demandas
surgidas no encontro anterior, como enviar ofícios para Secretarias Municipais, Ministério
Público e demais órgãos públicos.
Os encontros, apesar de planejados, nem sempre ocorriam conforme o script. Uma
certa vez, em que o tema pensado para ser debatido era “cultura”, duas mortes haviam
marcado a semana da comunidade, de modo que se fez necessário abordar o tema da
segurança. A formação política realizada pelo Programa para selecionar novos e novas
96
extensionistas, atrelada à observação da condução dos encontros pelos e pelas extensionistas
mais experientes, conferiam a sensibilidade de compreender aquele momento da comunidade
e respeitar sua autonomia. Dessa forma, o não cumprimento do planejamento era até mesmo
comentado com entusiasmo por extensionistas, pois acreditava-se que a autonomia estava
sendo resgatada dos tempos de ocupação, em que eram sujeitos e sujeitas de suas vidas.
A abordagem do tema saúde ocorreu durante vários encontros. Acompanhava-se a
necessidade da comunidade de expor suas dificuldades. Muitas vezes os e as extensionistas
que mediavam o encontro se limitavam a ouvir apenas. Compreendíamos aqueles momentos
como um desabafo de vozes sufocadas e a importância de nos dedicarmos a ouvi-las e mostrar
interesse. Eram muitos os relatos de negligência, recusa de atendimento, descriminação, falta
de medicamentos, profissionais, estrutura.
Dessas reuniões, surgiram algumas demandas: primeiramente, mediar um diálogo
com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) para buscar atender a uma questão mais urgente,
que era definir um posto de saúde para atendimento. Enviamos ofícios solicitando
esclarecimentos sobre a situação instalada e agendamento de reuniões. E então, lhe dando
com o Poder Público, passamos a entender melhor o que era o descaso relatado por moradores
e moradoras do Leningrado. Sem resposta, apresentamos à comunidade a possibilidade de
acionar o Ministério Público (MP). Aceita a sugestão, noticiamos formalmente o caso ao MP,
que abriu um inquérito civil para apurar as afirmações.
No entanto, a denúncia legítima deveria vir de quem conhece bem a própria
realidade. Dessa forma, o núcleo e a comunidade solicitou a presença da Promotora de Saúde
em uma reunião a ser realizada no próprio conjunto para que ela se deparasse diretamente
com moradores e moradoras relatando os absurdos do descaso com a saúde, sobretudo de
idosos, crianças e pessoas com deficiência, que legalmente possuem prioridade no
atendimento médico48
. Uma das frases mais marcantes nesses encontros veio de uma
moradora e integrante do MPB: “Aqui nós não temos plano de saúde, temos plano de morte”.
A intervenção do MP fez a Secretaria Municipal de Saúde adotar uma medida que
garantisse o atendimento médico no Conjunto Leningrado. Dessa forma, um acordo foi
estabelecido para que a cada quinze dias um carro da Prefeitura levasse quarenta pessoas nos
turnos da manhã e da tarde para atendimento no posto de saúde mais próximo, para
atendimento ginecológico, pediátrico, clínico geral. Além disso, a SMS deveria buscar
terrenos para construir o posto de saúde previsto no projeto de construção do Conjunto.
48
A prioridade no atendimentos desses grupos são estabelecidos pelo Estatuto do Idoso, pelo Estatuto da Criança
e do Adolescente e pela Lei nº 10.048/00, respectivamente.
97
A temática da educação se processou de maneira similar. Os contatos com a
Secretaria Municipal de Educação (SME) foram infrutíferos, de modo que recorremos
novamente ao Ministério Público, instaurando-se outro inquérito para apurar o não
funcionamento do CMEI, o não oferecimento de transporte escolar e a ausência de escola no
Conjunto. O inquérito, por sua vez, surtiu efeito já na primeira intimação da SME, que de
pronto pôs o CMEI em funcionamento.
Os encontros com a Promotora de Educação ocorreram tanto na comunidade
quanto na sede do MP. Um Termo de Ajustamento de Conduta foi assinado pela SME para
garantir o transporte escolar de crianças e adolescentes, o que ocorreria mediante ao auxílio da
comunidade para mapear as escolas que concentram maior número de estudantes do
Leningrado. Quanto à questão da construção de uma escola no conjunto, ficou a promessa da
construção de um anexo no local do Galpão, onde crianças seriam ensinadas durante o dia e
jovens e adultos à noite.
O problema do transporte foi o mais difícil de resolver e ao mesmo tempo o mais
envolvente. Nos encontros para discutir a mobilidade das pessoas do Leningrado, também
estavam presentes moradores e moradoras de conjuntos vizinhos, que também eram afetados
pelo mesmo problema. O convite era feito pela própria comunidade. Além disso, a discussão
não necessitava da nossa mediação, os atingidos e as atingidas discutiam, conduzindo a
reunião, os melhores caminhos para trafegar o transporte público. Foram os encontros de
maior participação da comunidade.
Também encontramos alguns obstáculos no diálogo com os setores relacionados –
a Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana (SEMURB) e a Secretaria Municipal de Obras
Públicas (SEMOPI) – e na indefinição, no próprio Ministério Público, sobre a competência da
Promotoria adequada a atuar no caso, se do Consumidor ou do Meio ambiente. Sem a
intervenção do MP, as referidas Secretarias estavam sempre jogando a responsabilidade uma
para outra. A SEMURB alegava a condição das estradas de acesso, dizendo que deveria se
esperar a conclusão das obras para asfaltar uma das vias para então tomar uma providência. A
SEMOPI estava sempre fornecendo prazos para conclusão, que nunca eram cumpridos.
Após a finalização das obras que asfaltaram e iluminaram uma das vias de acesso
ao Leningrado, foram mais seis meses para entrar o primeiro ônibus circular no Conjunto. Foi
a conquista mais saboreada pelos moradores e pelas moradoras, como também por
extensionistas. Sabíamos, naquele momento, o quão significativo era entrar, sentar e percorrer
alguns metros dentro do ônibus, ver o Leningrado de suas janelas, pedir parada e lá descer.
Alguns meses depois, com a finalização do trabalho, tivemos a notícia de que mais três ônibus
98
passaram a incluir o Leningrado na rota e mais, quando uma das linhas estava sendo
ameaçada de ser retirada, a comunidade organizou um protesto, bloqueando ruas, para evitar
que a ameaça se concretizasse.
O tema da segurança não foi encaminhado em razão da dificuldade e do
despreparo dos e das extensionistas em abordá-lo. Apesar de ter sido discutido em alguns
encontros, não soubemos como mediar este problema dentro da comunidade, sobretudo diante
da vulnerabilidade a que a comunidade estava submetida às práticas de corrupções de alguns
grupos policiais.
Com o encaminhamento das demandas, a frequência dos encontros foi reduzida,
realizando-se a cada quinze dias para acompanhar o andamento. A metodologia do encontro
foi modificada nessa ocasião, de modo que se resumiam a repasses das comissões e
encaminhamentos para o que ainda estava pendente. As comissões eram divididas nos três
eixos principais de atuação – saúde, educação e transporte –, sendo formadas por
extensionistas e pessoas do Leningrado. Nesta ocasião, apenas participavam os moradores e
as moradoras que se envolveram efetivamente com o trabalho ao longo do ano.
A finalização do trabalho em dezembro de 2011 ocorreu em função do entender
do núcleo que havíamos esgotado nossas contribuições para com a comunidade. A saída foi
marcada por uma grande festa, em que extensionistas expuseram homenagens com vídeos de
depoimentos dos e das estudantes que participaram do trabalho falando sobre a importância da
relação com a comunidade, uma poesia e um cordel, além de uma mística em que construímos
uma bandeira (anexo 2) em que estava escrita a palavra “luta” com nossas mãos,
simbolizando o vínculo e o compromisso firmado a partir do trabalho desenvolvido. A
comunidade preparou um lanche para nós e falou um pouco da importância do trabalho nas
suas vidas e para o Leningrado.
Assim, fechamos o ciclo da extensão no Conjunto Leningrado, do qual tanto
comunidade quanto extensionistas puderam colher frutos. Algumas transformações visíveis
podem ser percebidas diante das melhoras dos serviços públicos reivindicados, agora,
passamos a analisar quais as transformações realizadas na formação jurídica dos e das
estudantes de direito a partir do processo educativo de intervenção na realidade do
Leningrado.
3.3 A contribuição da extensão popular no Leningrado na formação jurídica dos e das
extensionistas
99
Conforme venho defendendo ao longo do presente trabalho, a extensão popular
oferece contribuições à formação jurídica, sobretudo nos aspectos delineados nesta pesquisa –
na formação dialógica, interdisciplinar e horizontal. Desse modo, a partir do relato acima,
analiso a seguir como as atividades realizadas no trabalho de extensão desenvolvido no
Leningrado interferiu na formação jurídica dos e das extensionistas participantes – as
habilidades desenvolvidas, a visão do direito, as mudanças, entre outras, que têm relação
imediata com a interdisciplinaridade, a horizontalidade e a dialogicidade.
3.3.1 Metodologia
Para investigar como a experiência com a extensão popular no Leningrado
interferiu na formação jurídica dos e das estudantes de direito, realizei uma entrevista
individual com nove das quatorze pessoas que à época eram estudantes de direito e que
participaram do projeto no ano de 2011.
O recorte do ano de 2011 se justifica primeiramente por opção própria de realizar
esta pesquisa a partir das vivências pessoais, isto é, analisar o diferencial da formação jurídica
do Motyrum partindo também da minha experiência na Graduação do Curso e no Programa,
uma vez que passei a integrá-lo em 2011. O segundo motivo é limitar também o período no
qual se realizaram os círculos de cultura, pois, como já exposto, em 2010, as atividades do
núcleo se concentraram no diagnóstico, formulando, aplicando e interpretando questionários.
Logo, a análise tem como objeto a atuação do Núcleo Urbano apenas em 2011 e as atividades
realizadas neste espaço de tempo.
As entrevistas para o presente trabalho se deram a partir de um questionário
(anexo 1) com seis perguntas abertas sobre a experiência e os seus efeitos na formação de
cada entrevistado e entrevistada, mas com foco nas variáveis desta pesquisa – o diálogo, a
interdisciplinaridade e a horizontalidade.
Procurei as quatorze pessoas que participaram do trabalho à época e que eram
estudantes de direito, pois duas eram de outros cursos, e entrevistei nove, uma vez que as
demais estavam fora da cidade no período das entrevistas. Dentre as pessoas entrevistadas,
sete são estudantes da graduação, uma é estudante do mestrado e uma é advogado popular.
Além desta ferramenta, também busquei analisar vídeos produzidos pelo núcleo
ao fim do trabalho, em 2011, em que cada extensionista fala para o Leningrado como esse
contato afetou suas vidas, pessoal e profissionalmente.
Neste sentido, apresento a seguir as análises realizadas a partir das minhas
100
reflexões e das respostas de colegas acerca das vivências experimentadas no Leningrado e
proporcionadas pelo Motyrum, em que juntos pudemos descobrir a “boniteza de ser gente”,
como diz Paulo Freire (1996, p. 60), isto é, de lutar com os oprimidos e as oprimidas por um
mundo mais justo e sem opressões.
3.3.2 Encharcando de realidade
Expus anteriormente, em linhas gerais, como o Motyrum se situava no contexto
do Curso de Direito da UFRN enquanto único projeto de extensão pautado na educação
popular, que tem em sua práxis o contato com grupos oprimidos do nosso Estado, contato
contínuo, que forma vínculo e que envolve o e a extensionista neste processo que busca a
emancipação desses grupos, desses sujeitos.
Nas entrevistas realizadas, este foi o ponto central apontado pelos e pelas colegas:
a oportunidade que o Motyrum confere aos e às estudantes de direito de conhecer a fundo o
contexto de vida de pessoas que são submetidas diariamente às violações de direitos humanos.
Eu acho que o principal é o contato da realidade, que é muito diferente. Se você
passou toda a faculdade só estudando para prova sem participar de nenhum projeto
de extensão... de extensão mesmo, de ir pra comunidade. Sem querer citar nomes,
mas tem projeto que você só vai uma vez numa comunidade, e depois de dois meses,
você vai em outra comunidade. Então você não consegue em um dia ter esse contato
para se apropriar daquele problema, para ver que aquilo ali não tá certo, se sentir
mexido com aquela realidade. Em um dia você não vai sentir da mesma maneira
como você sente num programa que você passa um ano atuando todos os sábados,
vendo as mesmas pessoas, vendo uma evolução ou não daqueles problemas que são
colocados todos os sábados ali. Eu acho que o principal é esse choque de realidade
que a pessoa tem, pelo menos que eu tive quando eu comecei a participar do
programa e comecei a visitar a comunidade. (T. S. C., estudante de direito, 2014).
Na fala acima, é possível perceber uma avaliação crítica do ensino e de projetos
de extensão no Curso de Direito, ambos por não possibilitar conhecer realidades sociais
diferentes, o mundo concreto. O conhecimento mencionado se refere tanto ao contato
constante, de acompanhar com frequência os problemas trabalhados quanto à formação de
vínculo, que permite o processo de sensibilização, como diz, de “se sentir mexido”. Já é
possível aqui perceber uma diferença do Motyrum para as demais atividades realizadas no
âmbito do Curso de Direito.
A partir desse contato, foi possível vivenciar o quotidiano das pessoas, em suas
dificuldades de acessar direitos básicos. Além de ouvir os relatos, pudemos enxergar na
prática, o dissabor que os moradores e as moradoras experimentavam na busca de
101
atendimento em políticas públicas, ou seja, na realização de direitos, aquilo que um curso de
direito dificilmente é capaz de fazer. É como se falasse de algo que não se conhecesse ou que
existisse plenamente, portanto, sem levar em conta como o direito se realiza no contexto de
desigualdades.
Tinha sido um sábado que eu e outras pessoas estávamos desde manhã (...) Aí M.,
uma das crianças mais quietas, deu de cair com a cabeça no banco e machucou,
cortou na testa. E aí foi mais uma experiência de aprender como o Leningrado, como
as pessoas têm seus direitos violados no Leningrado. Porque a gente saiu com M. e
de carro, que já é uma facilidade muito maior do que se fosse de ônibus e tudo mais,
e a gente foi bater em cinco hospitais para ver onde é que M. ia ser atendido para
fazer os pontos na testa (...). Sem brincadeira, foram uns cinco hospitais até chegar
lá na Zona Norte, onde ele foi ser atendido. (...) Isso foi muito simbólico, né?,
porque tudo que a gente vinha discutindo todo sábado, naquele momento a gente
viu, né?, quais as dificuldades que vocês passavam. (N. B. B., advogada popular,
2011).
Conforme apontado, é a oportunidade de sentir a justa-raiva que líamos nas obras
de Paulo Freire, de se indignar, de vivenciar junto com os moradores e moradoras do
Leningrado as dificuldades do acesso aos serviços públicos de saúde, educação e transporte,
de perceber o descaso do Poder Público, como dito por um morador em uma visita do núcleo
à sua casa: “só tomara que um dia eles (gestores municipais) lembrem que aqui mora gente”.
Quer dizer, perceber como era desumana aquela situação.
A indignação diante de situações como essa era importante no desenvolvimento
do trabalho. Era como um combustível, era o que reforçava nos e nas extensionistas a sua
responsabilidade perante a comunidade e o núcleo, o seu papel na sociedade, de buscar uma
mudança que não permita violações como essas. A partir dessa experiência de se indignar, foi
possível o envolvimento com a realidade do Leningrado, envolvimento que garantia o
comprometimento individual e coletivo com as atividades que eram realizadas e com os
compromissos assumidos. Pois, como exposto no tópico anterior, haviam demandas,
distribuídas coletivamente entre extensionistas e pessoas do Conjunto, que implicavam numa
responsabilidade perante a comunidade.
Na pesquisa, foi possível identificar em todas as falas a lacuna do Curso quanto à
formação humanista e próxima da realidade concreta. A crítica à formação estritamente
formal e tecnicista, que parte de hipóteses, de casos abstratos para ensinar o direito, foi
unânime. Logo, o papel do Motyrum, nesse contexto, é de suprir esta lacuna, oferecendo a
possibilidade de conhecer a vida fora dos muros da universidade, como foi possível verificar
nos seguintes trechos de entrevistas:
102
Quando eu digo encharcar de realidade, para o ensino jurídico, eu acho que tenta
corrigir uma deformação, porque através da extensão universitária, você tenta
construir um diagnóstico junto com aquela comunidade, um diagnóstico de alguma
violação naquela comunidade e você vai buscar resolver em cima de medidas
possíveis e não de coisas imaginárias, fictícias, e realmente vai atender às
necessidades. (G.. B. S., estudante de direito, 2014).
Acho que a experiência no Motyrum principalmente me serviu assim para perceber
que o ensino do direito unicamente em sala de aula é insuficiente. O direito trabalha
muito com hipóteses, com situações que você tem que adequar à norma, à lei... mas
a sociedade tem vários tipos de situações. E assim, a gente vive um tipo de situação,
as pessoas com que a gente teve contato na comunidade teve outras completamente
diferentes. Então é abrir o leque de interpretação do direito, diferente daquilo que
você vê unicamente na sala de aula. E você consegue notar que aquilo que é
ensinado em sala de aula é ínfimo em relação à grande violação que ocorre fora
daquele mundo que você tá ali, de universidade, de classe média. (T. L. V. B.,
estudante de direito, 2014).
Ao passo que criticam o ensino jurídico do Curso, essas pessoas reconhecem a
importância do aprendizado junto com a comunidade, no mundo real; de aprender a partir do
diálogo com outras pessoas e com outra realidade social. Percebem a limitação da
universidade e também de sua visão de mundo na posição socioeconômica que ocupa na
sociedade e, portanto, a necessidade de transpor esses limites, essas separações do mundo
universitário e o mundo do restante da sociedade, do mundo da classe média e do mundo do
povo pobre, para compreender o direito e conhecer as relações sociais.
Esse conhecer gerou, por sua vez, um rompimento, que foi além das barreiras
físicas de ir para uma periferia da cidade numa ação de extensão. O rompimento é também do
mundo aos quais muitos do núcleo estavam habituados, em que as desigualdades sociais e
seus efeitos eram, para a maioria desses e dessas estudantes, realidades distantes. No
Leningrado, elas tinham nome, cor, classe social, endereço, história, o que permitiu um
processo de sensibilização, de humanização e de reflexão crítica sobre o mundo e sobre o
direito, que gerou nos e nas estudantes de direito a vontade de mudar aquela realidade, que
permitiu sonhar junto com a comunidade um Leningrado onde habite a dignidade. Era o que
nos movia e nos envolvia na busca por mudança.
O contato com a comunidade muda completamente o seu mundo. Tipo, você chega
completamente ao extremo do seu mundo e rompe aquelas paredes, tá ligado?
Rompe e é um mundo completamente diferente. O contato com a comunidade,
principalmente com movimentos sociais, que o Motyrum tentou fazer por um bom
tempo e acho que ainda tenta, muda o mundo de uma pessoa que tem origem de
classe média, de uma pessoa que vem de escolas particulares, muda o mundo, a
concepção do direito. Esse extravazar de mundo, você chegar no extremo do seu
mundo e mudar completamente sua visão da realidade faz necessariamente que sua
concepção de direito se transforme, o que você quer fazer com o seu curso, com o
seu conhecimento, transforma também, né? (M. H. S. M., estudante de direito,
103
2014).
Sentir a comunidade levou consequentemente a sentir o mundo. Isso se tornou um
acontecimento ainda maior na vida dos e das estudantes em razão de sua origem de classe e
em condições socioeconômicas que lhes permitem acesso aos direitos humanos da saúde,
educação, segurança, lazer, transporte; como também em razão do processo educativo nas
escolas particulares, como aponta o entrevistado, que não se dava em diálogo com um mundo
concreto, mas puramente abstrato e restrito à realidade de classe média, aos seus problemas,
às suas visões de mundo.
Ter esse contato, ver que existem pessoas, não são dados estatísticos, são pessoas
que não têm coisas básicas que graças a Deus eu tenho... isso me ajudou a tentar
mudar o mundo, a tentar deixar um pouco mais igualitário. Talvez, se eu não tivesse
vivenciado o que eu vivenciei, ter estudado os textos que a gente compartilhava,
talvez eu não via a importância disso, que isso tem para a sociedade. A gente acha
que tem ideia, mas não vê a importância disso. Eu me sinto privilegiada por ter
passado pelo Lições. (I. A. F., mestranda, 2014).
Diante disso, observo que este processo da sensibilização permite o abandono de
algumas concepções de mundo que faziam parte de nossas vidas até então, como a vaidade de
ser estudante de direito de uma universidade pública e prestigiada, por exemplo, como o
individualismo de se preocupar apenas com os próprios problemas, como os estereótipos
construídos em nossa roda de convívio social com relação às pessoas e aos bairros da cidade.
Quer dizer, o nosso olhar é modificado para enxergar aquelas pessoas da comunidade como
pessoas iguais a nós, merecedoras de respeito e atenção; como pessoas com histórias de vida
que denotam um aprendizado; com conhecimento da realidade até maior do que nós tínhamos
e com sabedoria para enfrentá-la no dia-a-dia.
O método de aprendizagem a que a maioria dos e das extensionistas foi submetido
na maior parte de suas vidas não permitia essa sensibilização, essa humanização e esse
aprendizado fora dos livros didáticos e das aulas expositivas. Chegamos à universidade
pública estudando assuntos orientados para uma prova de vestibular, para conseguir nossa
vaga e cursar a nossa graduação. A experiência do Motyrum foi um “choque de realidade”
também nesse sentido, de vivenciar uma outra forma de se educar, em diálogo com pessoas e
com o mundo, descobrindo e não repetindo algo que fora dito, exercendo a liberdade de criar
e de pensar criticamente. Como também de superar o excesso de abstração do ensino restrito
às salas de aula – como costuma ser todo o caminho de formação educativa desde criança e da
mesma forma com que se apresenta o ensino do direito – pisando no chão, visitando postos de
104
saúde, indo de casa em casa para conversar com as pessoas e ouvi-las, vivenciando o
tratamento hostil ou desinteressado das autoridades públicas, percebendo o funcionamento e
as limitações das instituições jurídicas. Enfim, compreendendo a vida das pessoas.
As contradições saltavam aos olhos do e da extensionista ao ouvir e ver as
violações de direitos. Surgiu então uma gama de questionamentos sobre o direito ensinado em
sala de aula, a sua aplicabilidade. Por que o que está na lei não se concretiza? Por que não se
concretiza apenas para aquelas pessoas e outras em semelhante condição social? Por que
diante das violações de direitos os órgãos judiciários não são capazes sozinhos de saná-las?
Era necessário aprender com a comunidade o que fazer na prática, entender o sistema de
serviços públicos com quem era estudante de serviço social, ler textos e livros que não
estavam nas indicações bibliográficas dos professores, mas buscar na pedagogia, na
sociologia, na gestão de políticas públicas, as respostas para essas perguntas.
Os alunos que se propõem a participar do programa com certeza têm um choque
quando chegam na comunidade, mesmo quando começam as leituras e depois
quando chegam na comunidade pra atuar, eu acho que é desconstruído tudo aquilo
que você viu em sala de aula. Porque você estuda uma coisa e na realidade você vê
que aquilo que você tá estudando não tem aplicabilidade, pelo menos não pra todo
mundo, pra determinadas camadas sociais. Você vai ver que aquilo ali não vale
nada, claro que é importante você estudar doutrina, a lei, mas só isso não é
suficiente. (T. S. C, estudante de direito, 2014).
O contato com a realidade levou, portanto, à percepção da discrepância entre
teoria e prática, entre a lei e sua viabilidade e eficácia na realidade social, no sentido de que
ambas devem caminhar juntas, são necessárias ao conhecimento.
Segundo Pedro Demo (1984, p. 106), enquanto a teoria é abstrata e generalizante,
a prática particulariza a partir dos casos concretos do mundo real; enquanto a teoria busca
objetividade e pureza, encobrindo sua ideologia ao distanciar-se do concreto, a prática é em si
claramente uma opção política, de “sujar as mãos” para fazer história. Porém, como pontua o
referido autor, ambos se relacionam numa dialética, na qual uma necessita da outra, pois a
teoria sem prática é mera abstração e a prática sem teoria é mero ativismo, isto é, a
incapacidade de fazer autocríticas, de rever as próprias práticas.
Neste sentido, é despertada a importância do fazer prático no processo de
aprendizagem, seja do saber acadêmico, seja do conhecimento de mundo. É o que dá sentido à
teoria, ao direito. É o que dialoga com a realidade, que permite construir refazer a teoria e
construir conhecimento novo (DEMO, 1984, p. 111).
Importante também perceber que essa relação entre teoria e prática no trabalho se
105
dava em duas situações:
a) partir da prática para buscar a teoria, isto é, a partir das discussões em
comunidade qualificarem a formação em certos assuntos ou mesmo analisar as ações
desenvolvidas, e b) reformular a teoria já estudada, por vezes em sala de aula, após a
experiência em comunidade. (OLIVEIRA; TORRES, 2013).
Esse movimento dialético foi essencial para repensar o direito, numa perspectiva
que não é algo que está posto, pronto e acabado, tampouco pode ser tido como expressão da
lei e como produto apenas estatal, consoante era apresentado em sala de aula. A vivência na
comunidade fez com que enxergássemos o direito como instrumento de transformação social,
construído socialmente por uma diversidade de pessoas a partir das lutas por direitos, de
saberes e experiências diferentes que somam nesse processo.
É certo que a teorização da prática consistiu numa fragilidade do trabalho
desenvolvido, como analisado anteriormente. Porém, ainda que sem o devido aprofundamento
teórico, sem as devidas reflexões e sistematizações, o movimento de buscar a prática e, a
partir dela, questionar teorias do direito e repensá-las construiu um conhecimento novo, que
dentro das limitações da formação jurídica e do Programa mesmo, aos poucos tem se
transformado em trabalhos acadêmicos, como é o caso desta monografia, desenvolvida a
partir das minhas reflexões e de entrevistados e entrevistadas sobre a experiência vivida no
Leningrado.
Outro dado sobre a relação entre teoria e prática espantou e marcou, como dito por
uma estudante entrevistada:
Quando a gente foi analisar a resposta do questionário, pouquíssimas pessoas tinham
ouvido falar em Constituição, e as poucas que conheciam não sabiam dizer o que
era. Um grupo de pessoas que é totalmente prejudicado pelo não conhecimento da
Constituição. E outra coisa que me chamou atenção na época foi o conhecimento da
defensoria pública, por exemplo. O público alvo da defensoria tava ali, mas não
sabia que existia a defensoria nem que tinha o direito de procurá-la. Então é uma
realidade totalmente paralela ao que você vê em sala de aula. (T. S. C, estudante de
direito, 2014).
A estudante se refere a dados coletados no processo de diagnóstico social do
Leningrado, realizado pelo núcleo em 2010, que aponta que apenas 17% (dezessete por cento)
do universo de moradores e moradoras entrevistadas conheciam a Constituição Federal, e que
62% (sessenta e dois por cento) não conheciam a Defensoria Pública49
.
49
Dados não publicados, encontrados no acervo do Núcleo.
106
Dessa forma, esse descompasso entre o direito ensinado em sala de aula e o direito
vivenciado no Leningrado conduziu o e a estudante para uma mudança na percepção do
direito e de ensino jurídico, permitindo também situar essas contradições dentro de um
sistema maior, de um jogo de interesses políticos e econômicos que contribuem para a
existência daquele contexto de opressão, de negação em que vive a comunidade. Ou seja, o
contato permitiu uma visão total – nas suas incoerências e incompatibilidades e não apenas de
um ponto de vista – da sociedade e do direito; e enxergar a possibilidade de utilizar o direito
como instrumento de transformação social e não apenas como manutenção do que está posto.
Porém, essa mudança na forma de perceber o mundo e o direito e essa necessidade
de transformação social, que serão abordados adiante, foram possibilitadas pela forma como
se construiu essa relação entre Motyrum, extensionistas e Leningrado, isto é, a partir de uma
relação dialógica, horizontal e interdisciplinar, que permitiram o envolvimento dos sujeitos
deste processo, o empoderamento do direito pela comunidade e por estudantes, conforme será
analisado a seguir.
3.3.3 A dialogicidade
“Educador é quem ouve o educando. Já o
professor é quem dá sua opinião sem querer
escutar.” (Morador do Leningrado, 2011).
As entrevistas apontaram que na experiência de extensionista do Motyrum, o
diálogo se fazia tanto na relação com a comunidade quanto nas relações dentro do núcleo e do
Programa, entre estudantes.
Primeiramente, na organização e autogestão do núcleo e do Programa, havia uma
preocupação em ouvir em silêncio a fala do outro e da outra e respeitá-la, discordasse ou não.
Assim, sempre buscávamos aplicar a pedagogia freireana também na nossa convivência
enquanto grupo como uma forma de exercitar essa prática da escuta e do diálogo para atuar
nas comunidades, sobretudo por não ser essa a conduta pela qual fomos educados nas escolas.
No projeto a gente discutia muito e era muito importante. Toda discussão que a
gente tinha, sobre textos, sobre as questões mesmo da comunidade... eu achava
muito importante, porque era um momento que a gente se resolvia como grupo, né?.
A gente discutia, cada um dava a sua opinião, crítica e tudo, e no fim das contas a
107
gente chegava a um consenso, não era que uma opinião se sobrepusesse a outra, mas
no final todo mundo tinha se acrescentado alguma coisa. (R. T. P., estudante de
direito, 2014).
Essa maneira horizontal de conduzir as tarefas do núcleo, de discutir de forma
dialógica, provoca mudanças no processo de aprendizagem, quando o ou a estudante se
percebe sujeito ou sujeita da ação, do trabalho, podendo desenvolver sua criatividade e seu
pensamento crítico. As discussões realizadas em grupo ocorriam a partir da liberdade de falar
e do respeito ao ouvir, sem interromper, por exemplo. Como aponta a entrevistada, todas as
opiniões eram consideradas e o grupo determinava a partir dos debates o que fazer e como
fazer.
As demandas eram distribuídas de maneira horizontal, na maior parte das vezes,
por iniciativa individual de cada extensionista, ciente de seu compromisso e responsabilidade
com o grupo e com a comunidade. Buscávamos ainda a igualdade, prezando por não
sobrecarregar uma ou outra pessoa. Direitos e deveres se apresentavam de forma equilibrada
na organização do núcleo. Dessa forma, pudemos desenvolver a capacidade de trabalhar
coletivamente, sem tomar as coisas para si ou as deixando pesar sobre o ou a colega.
É interessante observar que é totalmente o oposto do que vivenciamos em sala de
aula, em que estudantes não possuem autonomia nem liberdade para falar. São poucos os
direitos, e muitos os deveres – de ouvir, não contestar, reproduzir opiniões alheias,
memorizar, não faltar, ser pontual, dentre outras.
No Curso de Direito, por exemplo, há casos notoriamente conhecidos pela
comunidade estudantil de docentes que frequentemente não comparecem às aulas. Embora
estudantes possam denunciar pelo sistema SIGAA, tamanha é complacência instalada que,
ainda que diante de denúncias, não são tomadas providências cabíveis. Enquanto isso, as
faltas são cobradas com rigor aos e às estudantes, que correm o risco de reprovar em
disciplinas, caso supere o limite estabelecido.
O ambiente da sala de aula é protagonizado pela figura docente, que utiliza todo o
tempo do encontro narrando, expondo, depositando conteúdos, falando de cima para baixo. É
quem determina o conteúdo da disciplina, a quem faculta dar voz ao ou à estudante ou não,
quem muitas vezes impõe o próprio pensamento como padrão de resposta em atividades
avaliativas.
Além disso, a sala de aula apresenta uma perspectiva individualista, perceptível no
modelo preponderante de avaliação (individualizado) e na própria organização do espaço –
cadeiras individuais, separadas e dispostas para a posição ocupada pelo ou pela docente, sem
108
a possibilidade de contato entre si.
No ambiente do Leningrado, a relação dialógica permitia um processo de
aprendizagem efetivo, diferente do que estávamos habituados em sala de aula, da
memorização, do absorver, dos casos abstratos. Efetivo porque, para nós, estudantes, o direito
era aprendido na prática, a partir de problemas concretos, que exigiam de nós um raciocínio
jurídico para apresentar soluções para além do universo restrito ao que se tem
tradicionalmente como jurídico propriamente dito (elementos isolados em uma realidade
própria, cuja interpretação simplificada os permite caber nas disposições estritas da lei). E não
era qualquer prática. Era uma prática realizada no diálogo de saberes, de experiências, de
realidades distintas, que em comunhão permitia a capacidade de compreender a complexidade
social.
Acho que é muito mais útil a forma como a gente aprende na prática. Porque, assim,
aqui a gente tem a formação técnica, né? E então, a gente aprende uma coisa em
abstrato e imagina como deve ser. Decora aquilo ali e pronto. Um dia, a gente acha
que vai utilizar ou não. Mas lá, a gente vivencia, lida com problemas reais, a gente
aprende a improvisar, a pensar, porque aqui a gente não pensa, né? A gente só
absorve, decora alguns conceitos, regras... e lá não. Quando a gente se deparava com
algum problema a gente tinha que raciocinar uma solução prática, e que fosse útil
para a comunidade. (R. T. P., estudante de direito).
Porque nestes momentos também nos era possível perceber as limitações das
normas jurídicas, da litigância e das instituições do direito, como o Ministério Público e a
Defensoria Pública, para atender às necessidades da comunidade; e como isso se relaciona
com o modelo de sociedade em que vivemos. Quer dizer, a prática extensionista colocava em
cheque a perspectiva positivista e estatal do direito ensinada em sala de aula ao passo que
questionávamos sua aplicabilidade no mundo real e que percebíamos o direito sendo
construído nas lutas sociais. Pudemos desconstruir a crença de que as soluções para os
problemas são exclusividade das instituições jurídicas e que, em demandas que envolviam
políticas públicas, como as do Leningrado, estas se mostravam pouco eficientes e pouco
preparadas para lidar com pessoas, dado o apego à posição de cargo superior e de poder.
A norma existia, mas não se concretizava. O processo judicial não poderia dar as
respostas imediatas que as necessidades da comunidade exigiam. A Defensoria não tinha
estrutura para acolher as demandas. O Ministério Público, por sua vez, apesar de ter sido um
aliado no decorrer do trabalho desenvolvido no Leningrado, se deparava com uma gestão
municipal desorganizada e negligente, o que tornava os Termos de Ajustamento de Conduta
(TAC) um papel sem a efetividade esperada, de modo que ainda hoje os problemas persistem
109
de alguma forma.
Além disso, apesar de o núcleo ter buscado realizar o processo inverso do que é
comum, levando promotores e promotoras à comunidade, em contato direto com as pessoas e
com o ambiente repleto de violações no intuito de sensibilizar e como uma tática mesma de
pressão política, as ações da instituição eram movidas a pedido do núcleo através de ofícios.
No caso da educação, por exemplo, foi necessário dizer que tínhamos elaborado uma peça
judicial para reivindicar o transporte escolar para a comunidade para então a Promotoria
tomar providências junto à Administração Pública em tempo hábil ao início do semestre
letivo.
A partir disso, observo que as instituições jurídicas são distanciadas da realidade
social, assim como seus profissionais, refletindo da mesma forma os problemas da abstração
da educação jurídica. Julgam as prioridades e decidem sobre ações sem ouvir sujeitos e
sujeitas implicadas no caso sob o qual têm responsabilidade. Acionar o Ministério Público e a
elaboração da referida peça judicial foram decisões coletivas, do núcleo e da comunidade,
mas o TAC não. Este foi uma proposta e uma decisão unilateral da instituição para dar
resposta à provocação do Leningrado e do Motyrum, de modo que, mesmo com a ida de
profissionais ao Conjunto e com o recebimento de moradores e moradoras em salas de
reunião, o diálogo não era efetivo a ponto de permitir sugestões dessas pessoas.
Os trechos de entrevistas a seguir demonstram como os e as extensionistas
passaram a enxergar o direito a partir da experiência no Leningrado.
O Lições de Cidadania foi importante na formação jurídica para perceber os dilemas
que as normas jurídicas por si só não conseguem resolver. Que os direitos que estão
assegurados na Constituição em um rol extenso por si só não bastam para serem
efetivados. (P. G. F., estudante de direito, 2014).
O cara percebe que o direito positivado está longe de formalizar tudo o que a
sociedade vive e vem cada vez mais mudando. Isso é muito difícil... Eu vejo o
direito como o que, através da norma, faz com que o pobre continue pobre e o rico
continue rico. (G. B. S., estudante de direito, 2014)
O que a gente vê na sala de aula é que o direito é uma manutenção, é instrumento de
manutenção. As regras do jogo funcionam para manter... Defensoria Pública mais
fraca que o Ministério Público, né? Uma das instituições mais sucateadas é a
Defensoria Pública. Você vê que isso no jogo político é para manter, né? Um
instrumento que poderia ser usado... enfim, não há paridade de armas. A gente viu
muito isso. No Motyrum a gente queria ter apoio da Defensoria, mas tinha essas
limitações... de ainda estar se estruturando no Rio Grande do Norte. (...) A
Promotoria, pode ser a pessoa mais bem intencionada do mundo, né?, como a gente
teve... sendo que a gente vê as limitações. Assina TAC, assina não sei o quê... e viu
que muitas soluções até hoje eles percorrem... eles estão lutando por muitas coisas
110
ainda. (H. M. S. B., advogado popular, 2014).
Nesta última fala, interessante observar que o advogado confronta a “boa
intenção” da promotora com suas limitações. Entendo que estas refletem justamente a
deficiência da formação jurídica, da formação de profissionais do direito sem a percepção
total e real do mundo e da sociedade, sem uma postura dialógica que busque pensar as ações a
partir da escuta de pessoas, grupos e instituições envolvidas no caso trabalhado, limitados às
soluções com previsão legal e sem capacidade criativa e ousadia para inovar, para desafiar os
problemas a partir outros meios de pensar, de fazer, de mediar conflitos.
Estávamos em diálogo com pessoas que tinham uma caminhada de luta por
direitos. O teto em que moram carrega uma história de resistência, de perseverança e de
ousadia. Não foi uma doação do governo, tampouco foi construído em razão de uma norma
constitucional. Foi uma conquista à custa de muita batalha, de muito suor. Daí o aprendizado
de que o direito se faz na luta diária, a partir de movimentos sociais, se faz na rua. O direito
que envolve a participação de diversas pessoas, não apenas de legisladores e juízes; que se
constrói a partir das necessidades que brotam no cotidiano.
A concepção de direito deixa de ser o idealismo do positivismo ou do
jusnaturalismo, para chegar mais junto de algo mais concreto, mais real, mais
pautado nas relações concretas da sociedade, dos homens e mulheres construindo,
lutando por direitos, que foi isso que aconteceu no Leningrado. A gente tava junto
com a galera que tava lutando por direitos. O direito não era a lei, o operador do
direito que concretizava o direito, não é, porque na realidade não é isso, é a própria
relação social, as movimentações sociais na produção cotidiana de sua subsistência,
cada um vai conseguindo, concretizando o direito, o direito e outras coisas, e toda a
realidade, e daí o Motyrum permite que a gente tenha essa percepção, assim, que a
gente se aproxima de gente que tá em luta (M. H. S. M., estudante de direito, 2014).
Essa concepção de direito foi construída a partir de uma relação pautada no
diálogo, em que extensionistas se colocavam à disposição para compreender as necessidades
dos moradores e das moradoras, a forma como se percebiam no mundo e como lutavam para
nele sobreviver, suas indignações. Era se colocando ao lado, ombro a ombro, horizontalmente,
que a compreensão do direito se modificava, enxergando a contribuição da comunidade na
concretização de direitos. Penso que se não tivéssemos abandonado a verticalidade do ensino
tradicional e das práticas de extensão assistencialistas, não teria sido possível reconhecer o
valor do saber popular.
A percepção das limitações das instituições jurídicas, junto ao conhecimento da
história de vida das pessoas do Leningrado permitiu compreender tanto o direito ensinado em
111
sala de aula quanto o direito que tínhamos contato na rua, com as pessoas e as situações de
violação. Isto é, o Motyrum deu a oportunidade de refletir sobre o direito, de compreendê-lo
numa dialética, nas contradições, percebê-lo como instrumento que pode servir à manutenção
e à transformação, influenciando estudantes a buscarem aprofundar essa análise, como diz um
entrevistado:
O Motyrum foi esse aspecto centralizador talvez assim... foi o imã para eu buscar
essas coisas. Se não fosse o Motyrum eu jamais teria conhecido aquelas pessoas,
jamais teria lido o que eu li, eu jamais teria encontrado a realidade que eu
encontrei... e jamais teria tido as formações que eu tive. (...) Eu pude perceber que
não necessariamente os polos são o certo e o errado, os polos são o que são por
causa da construção histórica, pessoal, interpessoal que eles tiveram. Então eu pude
perceber a relação mais próxima do direito com a ideologia, perceber que o que eu
via em sala de aula não necessariamente era uma teoria da verdade. (...) Esse contato
que eu tive com o Leningrado me ajudou a aprofundar essas relações por trás da
concepção de direito. (...) Em sala de aula, mesmo que o professor não pense o
direito enquanto lei, enquanto norma, o professor nunca pensa o direito a partir da
sua raiz ou mesmo faz uma discussão de por que ele tá ensinando aquilo, qual a sua
visão de direito para estar ensinando aquilo... No Leningrado é mais fácil
compreender o que fundamenta a visão do professor, qual a diferença entre a visão
do professor e a minha visão e... é mais fácil compreender na verdade a minha visão.
E ajuda a formular questões que move a gente a “tá” estudando, a ver o direito
enquanto instrumento desafiador para a gente manusear. (D. F. M. T., estudante de
direito, 2014).
O contato com o Leningrado a partir de uma relação dialógica e interdisciplinar
despertou a noção de que a verdade é produto de uma construção histórica e social, que varia
de acordo com o contexto e com as pessoas que nele estão inseridas. É produto das
contradições também, das antíteses que compõem a dialética social. Assim, superou o caráter
abstrato e absoluto como é apresentada na sala de aula, como se apenas um determinado
grupo de pessoas fosse legítimo para dizer a verdade, dizer o direito. A forma de enxergar o
direito muda nesse sentido, de democratizar sua construção, de ampliar o foco, de conservar
aspectos válidos das diferentes visões, de estudá-lo na totalidade, portanto, sem hierarquia
entre direito estatal e o direito produzido nas ruas, mas assimilando a diversidade de formas
de conceber o seu processo de construção – processo posto ser algo mutável, que vai sendo,
se transformando (LYRA FILHO, 1982).
Diante dessa nova forma de enxergar o direito, que não é apresentada em sala de
aula, o núcleo sentia a necessidade de buscar outras maneiras de compreendê-lo, como
realizando formações sobre o direito do Leningrado, e de utilizar a técnica jurídica nesse viés
de atender às demandas da comunidade:
112
Quando se trata de problemas da realidade, como a gente encontrou no Leningrado,
questões de saúde, de educação, de direitos fundamentais... aí acaba a gente tendo
que se empoderar, né?... da técnica jurídica para responder aquilo. E a gente acaba
vendo que, que acaba não casando o que a gente vê em sala de aula com isso. Então
a gente tem que fazer um paralelo, a gente tem que fazer uma outra formação nossa,
buscar, né? Buscar nos códigos de outras formas, nas experiências das instituições,
Ministério Público, Defensoria Pública. Buscar outras formas de atuação que não é
da sala de aula. (H. M. S. B., advogado popular, 2014).
A teoria da sala de aula também era confrontada diante do enfrentamento dos
problemas concretos. Enquanto no Curso aprendemos que o Judiciário tem o poder conferido
pela sociedade para mediar e resolver conflitos, no Leningrado, esta via não era encarada
dessa forma – a morosidade, a falta de representatividade, a dificuldade de acessá-lo, dentre
outras questões que opto por não aprofundar para não sair do foco, conduziram a escolha da
mediação direta com o Poder Público, por extensionistas e pela comunidade mesma. Após o
insucesso desta via, é que o Ministério Público foi acionado.
A partir dessas escolhas, tínhamos que nos empoderar dessas formas alternativas
de atuação, buscando conhecer melhor as competências e o funcionamento do Ministério
Público, saber como pressionar autoridades do Poder Público, enfim, métodos de mediação
que não eram trabalhados em sala de aula, mas tivemos que nos apropriar a partir da prática,
percebendo que o litígio não é a única alternativa, tampouco a mais eficaz.
O conhecimento jurídico passou a ser assimilado pelos e pelas extensionistas para
servir a uma função social. O curso de direito ganhava um sentido em nossas vidas, que não
era apenas se formar profissionalmente, mas aplicar o saber jurídico para transformar a
realidade. A realidade do Leningrado sensibilizou extensionistas, fomentando-lhes a vontade
de querer aplicar o conhecimento jurídico, de contribuir com o aprendizado no Curso de
Direito para mudá-la.
A gente entra no curso com uma ideia assim, muito ainda... da pouca utilização do
direito com objetivos sociais, né? A gente entra com uma visão muito privatista do
direito, eu entrei pelo menos, achei que o direito era apenas uma função profissional,
assim como qualquer outra profissão e não uma função social. Foi no projeto que
comecei a mudar meu pensamento, a entender a importância do curso, de tudo o que
estava aprendendo aqui para utilizar no meio social, né?... saber que o curso não é só
para mim, né?, que eu tenho que saber utilizar certo. (R. T. P., estudante de direito,
2014).
Esse aprendizado foi possível pelo exercício da escuta que exige o diálogo. Em
muitos encontros nos limitávamos a ouvir. Escutar suas histórias, seus relatos, suas decepções
com o governo e com a vida injusta, suas indignações. Esse exercício nos permitiu
113
compreender melhor aquele contexto de negação humana, de violações, nos encharcava de
realidade, nos fazia nos apropriar da vida e dos problemas da comunidade.
Eu poderia chegar no Leningrado e ver o que eu vi, por exemplo, a superfície da
situação, de ver pessoas que têm suas casas, suas ruas pavimentadas, mas poderia
talvez não ter conversado ou compreendido as pessoas da forma como eu
compreendi, inseridos num contexto maior, numa realidade que não é estática, que
as pessoas se relacionam com essa realidade. Talvez eu pudesse ter conversado com
aquelas pessoas num outro projeto, no Justiça Intinerante e nunca ter compreendido
da forma como compreendi a partir do Motyrum. (D. F. M. T., estudante de direito,
2014).
(...) eu tava conversando com R., e ai ela disse: “menina, tem dias que eu acordo
com uma revolta tão grande, uma indignação tão grande dentro de mim, e eu não sei
o que é isso. Eu fico pensando assim... meu Deus, por que as coisas são tão fáceis
para algumas pessoas e tão difíceis para mim? Porque eu vejo tanta gente que
consegue tudo tão fácil, tão tranquilo e para mim é tudo tão difícil assim?”. Então eu
vendo aquilo, as emoções com que R. falou aquilo, né?... falou chega ficou vermelha
de tanta revolta, ela tentando entender porque fica tão revoltada. Aí eu lembrei da
justa-raiva, de Paulo Freire, que a gente fala tanto, debate tanto, mas talvez a gente
não sinta com tanta intensidade quanto ela falou ali. (E. L. M., advogada popular,
2014).
Conhecendo o contexto, pudemos desconstruir o estereótipo, o rótulo imposto a
quem mora nas favelas, nas periferias da cidade. Para quem tinha conhecimento da existência
do Leningrado, a referência era de um conjunto violento, onde habitavam apenas criminosos.
Para nós, morava gente, gente oprimida, vítima da violência do descaso estatal.
O diálogo com sujeitos oprimidos nos proporcionou superar esses rótulos.
Aprender o direito a partir de quem participa da sociedade, de quem tem acesso a direitos, é
completamente diferente de aprender em diálogo com quem vive à margem, quem é invisível
ao Poder Público e cuja sobrevivência é uma luta diária, para conquistar direitos humanos
básicos como saúde, educação e transporte. É outra perspectiva de mundo e de direito.
Enquanto a primeira forma de aprender reforça o processo educativo abstrato, a segunda
rompe; enquanto a primeira ocorre de maneira vertical, cima para baixo, a segunda se dá
horizontalmente, sem a dicotomia entre quem ensina e quem aprende e reconhecendo a
importância da diversidade de saberes na construção do conhecimento.
Por isso, a opção por uma educação que se dê no diálogo com e para oprimidos e
oprimidas é condição necessária para a luta por transformação social (FREIRE, 1987). Sem se
encharcar de realidade, o mundo provavelmente não passará de uma rotina individual, com
algumas ilustrações em noticiários que nada mudam a forma de estar nele, sem fazer história.
É sentindo a justa-raiva, superando o estado de resignação com a situação opressora que os
114
sujeitos e as sujeitas se libertam – uns com os outros, horizontalmente, pensando criticamente
e agindo no mundo, participando da construção da história.
Além disso, desenvolvemos a sensibilidade para lidar com essas pessoas, saber da
necessidade que tinham de serem ouvidas, da importância que esse gesto de respeito tinha em
suas vidas. Sensibilidade para tratá-las como gente, já que não era dessa forma que o Poder
Público as tratava, pois que habituadas ora à ausência, na prestação de serviços de saúde,
educação e transporte, ora à presença violenta da polícia.
Essa sensibilidade com as pessoas era exigida de nós em um contexto no qual nem
mesmo professores e professoras do Curso nos tratavam dessa forma, mas muitas vezes com
arrogância e como “donos e donas da verdade”, sem a humildade de escutar nossa voz, nossas
necessidades. Então ocorre uma ruptura com essa forma de se relacionar, de ensinar, educar e
se educar. A partir daquela experiência vivida, escutar as pessoas e saber enxergar o seu
contexto passaram a constituir habilidades intrínsecas ao fazer da prática jurídica.
Conversar com essas pessoas, conhecê-las, permitiu o desenvolvimento da
habilidade de ser dialógico, como afirmado por alguns entrevistados. Isto é, de enxergar o
outro, a outra enquanto sujeito, enquanto gente, sem impor conceitos, ideias ou soluções; de
ouvir em silêncio, com respeito e humildade.
Para os entrevistados, é uma habilidade que o Curso de Direito não ajuda a
desenvolver diante de seu caráter tecnicista e vertical, pois que nas salas de aula os e as
estudantes de direito em contato apenas com normas e com um ambiente onde inexiste o
diálogo entre docente e discente e entre discentes. O Motyrum apresenta, então, um
diferencial nesse sentido.
O professor diz daquela maneira extremamente hierárquica, uma pessoa que te olha
lá de cima, e a gente só escutando, e quando a gente fala, contesta ou quando a gente
quer criar, os próprios amigos de sala já lhe olham diferente... então o direito acaba
reproduzindo o próprio modelo de educação bancária. Se você repete o que o
professor diz você tira dez na prova, se você contestar, tiver um questionamento, um
posicionamento ideologicamente diferente... isso acaba gerando conflitos dentro da
sala de aula. (G. B. S., estudante de direito, 2014).
Como aponta o entrevistado, há inclusive uma aversão de parte do corpo discente
à participação e às indagações de colegas durante as aulas, pois representam uma ameaça ao
que é naturalizado como padrão de comportamento – o silêncio do ou da estudante. Essa
condição de depósito de conteúdos, de uma posição hierarquicamente inferior, é internalizada
de tal modo que creem ser este seu dever: apenas ouvir e absorver o conteúdo das aulas para
no momento da prova saber reproduzi-las nas respostas.
115
O diálogo supera esta condição de depósito do ou da estudante, permitindo que
possa desenvolver o senso crítico, que possa se posicionar, além de desenvolver habilidades
nas relações sociais, conforme diz uma entrevistada:
O diálogo é o principal instrumento do aluno de direito, porque é o nosso
instrumento de trabalho, tem que saber utilizar e na universidade a gente é privado
de diálogo com o professor, né? Não é privado, mas é bem restrito o diálogo. A
gente não pratica, a gente só recebe informações e deposita, né?... mas a gente não
exerce esse diálogo. Tanto que eu conheço várias pessoas que quando chegam na
Prática [jurídica] não conseguem ter o mínimo de diálogo, não evoluem, não
conseguem, não conseguem. E eu acho que o diálogo poderia desenvolver um lado
crítico do aluno, mas não acontece, né? A gente não reflete, só recebe... e, na Prática,
como a gente não tem uma preparação, a gente também tem dificuldades. Por isso
que no Motyrum foi importante lidar com as pessoas, que a gente passa a ter noção
de como que a gente deve dialogar, utilizar o diálogo para resolver o problema deles.
(R. T. P., estudante de direito, 2014).
A fala indica o diálogo também como instrumento de trabalho, aquilo que vai
permitir entender o problema do outro ou da outra e nessa compreensão – inclusive de sua
realidade, de seu contexto, de sua condição social – saber buscar soluções adequadas. E o
Motyrum, ao permitir o exercício dessa conduta dialógica, supre uma deficiência na formação
jurídica proporcionada pelo Curso de Direito da UFRN, que se dá preponderantemente de
forma verticalizada, o que é visível no despreparo de estudantes no atendimento à população
na Prática Jurídica, consoante ilustrado pela entrevistada, apresentando dificuldades em se
comunicar, em se fazer entender e entender o outro ou a outra.
A importância dessa habilidade na vida do e da profissional do direito está no
tratamento, no acolhimento sem distinção de classe, no relacionamento com pessoas de forma
respeitosa, seja no ambiente de trabalho seja em contato com clientes, partes, assistidos, como
diz uma entrevistada:
O profissional que desde a faculdade já aprendeu a lidar com a interdisciplinaridade,
a ser aberto ao diálogo, a falar sua opinião de forma respeitosa, dialógica só tem a
ganhar, a própria pessoa e outras no ambiente de trabalho, os clientes, os assistidos
certamente vão sair mais satisfeitos se forem tratados de forma dialógica e não
impositiva. (T. S. C., estudante de direito, 2014).
Ter o contato, manter aquele elo... porque eu fico imaginando assim, na prática
jurídica, por exemplo, que atende num escritório... como você vai atender o seu
cliente? Você tendo que acolher, tratar bem, tudo isso. E eu acho que essa também
foi uma tratativa que a gente aprendeu, né?... então, sem distinção de classe. (H. M.
S. B., advogado popular, 2014).
Esse tratamento, esse cuidado com o outro e a outra também gera um laço de
116
confiança, que foi justamente o que se construiu entre o Motyrum e o Leningrado até mesmo
após o término do trabalho50
. A responsabilidade assumida por nós de estarmos na
comunidade todos os sábados foi importante para a formação do vínculo, sobretudo quando
retornamos após um assalto ao final de um dos encontros, o que teve um significado
simbólico na nossa atuação, pois rompeu com o esperado, que seria nosso afastamento. Além
do que, éramos um grupo da universidade diferente dos demais, que chegavam, colhiam
dados e voltavam para a universidade sem dar qualquer retorno para o Conjunto.
Na prática jurídica do Curso, por sua vez, observo o contrário. No módulo de
“acompanhamento processual”, no qual devemos estar sempre a par do que está acontecendo
nos processos pelos quais cada grupo fica responsável, se manifestando quando necessário e
em contato com o “assistido” ou a “assistida” para dar retorno das atividades realizadas ou
tirar dúvidas, percebo que não há uma confiança no grupo. As limitações da prática jurídica
ficam evidenciadas de tal forma para essas pessoas, que estamos sempre recebendo
reclamações sobre demora, organização e comunicação. São críticas válidas, pois de fato a
rotatividade de pessoas em um mesmo processo é frequente – é um grupo diferente a cada
semestre, que tem que levantar todo o histórico do caso e, pela ausência e desorganização de
registros, precisa perguntar tudo ao “assistido” ou à “assistida”. Ou seja, não é possível o
envolvimento que gera o senso de responsabilidade e o comprometimento, ainda que haja
esforço do ou da estudante.
A intencionalidade da práxis do Motyrum é provocar a formação de laços, de
vínculos, pois é dessa forma que é despertada a sensibilidade, a noção da importância de cada
tarefa pela qual se fica responsável. A busca da confiança das pessoas não é para ter o poder
de fazer tudo sozinho, mas para fazê-las perceber que estamos lado a lado na luta pelo mesmo
objetivo, que podemos trabalhar em conjunto contribuindo com nossos conhecimentos.
Estar em contato com a comunidade também proporcionou aos e às extensionistas
uma compreensão coletiva e social do direito, pautada nos direitos humanos, mais uma vez
confrontando ao que era estudado em sala de aula e aplicado na prática jurídica do Curso, isto
50
Os moradores e as moradoras ainda projetam em nós uma referência para ajudá-los ou orientá-los naquilo que
precisam, como quando da ocasião em que uma criança da comunidade faleceu em razão da falta de leito em
Unidade de Terapia Intensiva (UTI) nos hospitais da cidade: ajudamos as pessoas do Leningrado a construir um
ato pela saúde pública do Estado mobilizando estudantes da UFRN para participarem, mediamos uma reunião
junto à Promotoria de Saúde, ao Conselho Estadual de Direitos Humanos e à Comissão de Saúde da OAB com a
Secretaria Estadual de Saúde Pública (SESAP) para que medidas fossem tomadas pelo Estado na garantia de
mais leitos de UTI para crianças, além de ajuizarmos uma ação de indenização contra o Estado do RN em favor
do pai da criança falecida, morador do Leningrado. Isto ocorreu em 2012, quando já tínhamos concluído o
trabalho na comunidade.
117
é, um direito individualista e patrimonialista. O Leningrado exigia de nós esse pensamento
coletivo, estudar medidas que contemplassem toda a comunidade, não no sentido de ganho
financeiro, mas de atender às necessidades de direitos básicos, de ganho social.
Eu acho que emancipa o estudante, na formação jurídica você se emancipa para
atuar nos problemas sociais das periferias da cidade. (...) A gente teve que se
empoderar de problemas coletivos que o direito não trata... coletivamente os
problemas, é tudo individualmente e, na maioria das vezes, patrimonialista, que
envolve o patrimônio. Você analisa meu currículo na época, era muito mais
patrimonialista, tem muito mais civil do que constitucional. Então você vê que o
direito é muito individualista e patrimonial. (...) Diferente da nossa proposta, que é a
instrumentalização do direito para a justiça social, a favor dos oprimidos, a favor dos
excluídos. No Motyrum a gente se colocou a favor das parcelas mais pobres da
cidade, né?... Leningrado ali sem saúde, sem transporte, sem trabalho... a gente foi
para uma parte da cidade espoliada. (H. M. S. B., advogado popular, 2014).
A educação popular desenvolvida no Leningrado iniciou um processo de
libertação, de emancipação e conquista da autonomia dos e das estudantes de direito. Primeiro
porque naquela relação pedagógica eram sujeitos e sujeitas, diferentemente da posição de
objeto que são colocados na sala de aula, implicando numa mudança de postura, agora mais
ativa e participativa. Segundo porque nessa condição de agente participante e buscando
intervir na realidade da comunidade de forma transformadora, havia a necessidade de estudar
como fazer essa intervenção a partir do direito também, emancipando o e a estudante a pensá-
lo a partir daqueles problemas concretos e não mais reproduzindo fórmulas já concebidas para
hipóteses abstratas. E terceiro, porque em diálogo com oprimidas e oprimidos ocorre uma
libertação das ideias conservadoras, dos pré-conceitos e estereótipos que restringiam a forma
de conceber o direito. Ocorre uma ruptura com a forma com que a classe social a que
pertencem enxerga o mundo e, em alguns casos, a identificação com a classe do povo
oprimido, assumindo, portanto, um lado.
Para os moradores e as moradoras do Leningrado penso que houve uma libertação
do estado de resignação, considerando que a luta praticamente parou após a entrega das casas.
E a contribuição dos e das extensionistas nesse processo foi apresentar instrumentos a serem
utilizados na continuação da luta por direitos e, talvez, fazer essas pessoas se perceberem
como oprimidas. Todavia, a análise dos efeitos do trabalho de extensão para a comunidade é
tarefa que penso ser tema de outro trabalho científico, motivo pelo qual me atenho a focar nas
consequências para a formação jurídica de estudantes de direito.
O diálogo foi, portanto, um instrumento essencial na formação jurídica dos e das
extensionistas do Motyrum no sentido de se permitir conhecer e ser conhecido; de abrir novos
118
horizontes, superando a ideia do direito que mantém, do direito estático, para compreender o
direito na dialética social, podendo ser utilizado a serviço das classes populares. Foi no
diálogo com as gentes do Leningrado que nos tornamos mais críticos e mais sensíveis ao
outro e à outra.
Para alguns, foi o momento em que se construiu o compromisso político de vida
de escolher um lado, o lado dos oprimidos e das oprimidas. Enquanto o curso direciona a
formação para a profissionalização individual, o Motyrum direciona para a realização de
justiça social, para a instrumentalização do direito em prol dos movimentos sociais, dos
grupos marginalizados. Esse compromisso provocou a necessidade de se organizar em outros
espaços, de se engajar na vida política, de levantar bandeiras, como se observa hoje, na
participação dos e das extensionistas em partidos políticos, movimento estudantil, centro
acadêmico, coletivos e outros.
O contato com a comunidade me fez me organizar em um movimento social, o
Levante Popular da Juventude, e em um partido, a Consulta Popular. O contato com
a comunidade me fez compreender a totalidade da conjuntura política do país, assim.
(M. H. S. M., estudante de direito, 2014).
O envolvimento de estudantes de direito em organizações, movimentos e coletivos
sociais implica numa formação politizada e, portanto, um diferencial na formação jurídica em
um contexto de educação jurídica apartada da sociedade. Quando a educação popular desperta
a necessidade de se organizar, penso que cumpre o seu papel na assimilação da ideia de
construção coletiva, de que a libertação e a mudança ocorrem em comunhão, em diálogo entre
pessoas e de pessoas com o mundo. Esse engajamento, então, permite uma formação
continuada de estudo da sociedade, de desenvolvimento de habilidades como a de articulação
e de reflexão, de trabalhar e construir coletivamente. É uma formação que complementa o
aprendizado do direito, encarando-o na complexidade social e histórica.
Dessa forma, o Motyrum possibilitou aos e às estudantes de direito ter contato
com a realidade de quem vive, ou melhor, de quem sobrevive às violações de direitos
humanos e, por meio do diálogo com essas pessoas, de ouvi-las, enxergar esse contexto não
com olhos de piedade, mas com olhos de indignação, de justa-raiva, de quem não dá a mão
para oferecer uma esmola, mas de quem dá a mão para segurar a do outro e lutar juntos pela
superação das opressões. Permitiu aprender na prática como o direito se relaciona com e se
expressa na sociedade, permitiu “aprender de verdade”, como dito por alguns entrevistados,
ou seja, refletindo, agindo, criando, exercendo a liberdade humana de se educar e de se
119
comunicar com o outro e com a outra.
.
3.3.4 A interdisciplinariedade
“Se esse dedo fizesse uma lei, você acha que
ela vai servir para os outros quatro?”
(Morador do Leningrado, 2010).
O contato com a realidade, com uma cultura diferente, bem como com estudantes
de outros cursos permitiram, sobretudo, compreender o direito em sua totalidade, isto é,
compreendendo dentro de um contexto de influências políticas, econômicas, culturais e que se
faz não apenas no judiciário, mas na articulação política, na formação de uma rede
multidisciplinar que ajude a compreender o problema nos seus diversos aspectos.
Assim, foi rompendo com o isolamento dos saberes preconizado na academia e na
sociedade que chegamos à percepção do todo e de forma crítica. Foi relacionando as várias e
diferentes “dimensões significativas de realidade” (FREIRE, 1987, 55), ou seja, o modo de
percebê-la, que a captação e a compreensão do mundo e do direito foram se fazendo e
refazendo. Pois, utilizando a metáfora de Lyra Filho (1982, p. 6), a realidade é como um
organismo e cada dimensão significativa é um órgão que compõe esse complexo. Dessa
forma, apenas relacionando o máximo de saberes é que é possível chegar a essa
complexidade; isoladas desse organismo, elas carecem de sentido.
O direito não pode ser aplicado, estudado, interpretado dissociado da realidade
social e das demais ciências, porque o direito não é um fim em si mesmo, mas um
meio para a promoção do desenvolvimento social. O direito como um instrumento
de intervenção na sociedade, ele deve se aliar, se complementar com outras áreas de
conhecimento que estudam diretamente as relações humanas... para que de um modo
mais adequado e efetivo ele seja aplicado, concebido, estudado e criado... quer dizer,
a partir de uma visão multidisciplinar, o direito possa alcançar de um modo mais
efetivo a sua finalidade. (P. G. F., estudante de direito, 2014).
Eu achei superimportante o contato que a gente teve com o pessoal de outros cursos,
porque eu acho que... o curso de direito, assim, querendo ou não, apesar de ser da
área de humanas, a gente ainda é muito fechado à formação técnica, às regras, às
regras do direito, a gente não tem disciplinas que influenciem no contato com as
pessoas e eu acho que o pessoal de sociologia, de psicologia com certeza eles tem
outra visão, totalmente diferente da nossa, e no projeto eles acrescentaram muito.
(...) Eles estudam a sociedade sob outra perspectiva e isso foi essencial para o
projeto... para a gente, que tem uma visão mais fechada, é como se tivesse aberto
novos horizontes. (R. T. P., estudante de direito, 2014).
120
A associação do direito às outras modalidades de conhecimento fez perceber a
limitação do ensino jurídico positivista no seu tecnicismo e abstracionismo redutores da
compreensão do direito e da realidade. O contato com a política e com estudantes de outros
cursos no processo de inserção na realidade apresentou outra perspectiva das coisas, ampliou
nossa visão, o que dificilmente seria possível se o Programa fosse composto apenas de
estudantes de direito. Pudemos, dessa forma, reconhecer o valor desses conhecimentos seja na
aplicação e no estudo do direito, seja na percepção do mundo, superando a hierarquia de
saberes da educação bancária (FREIRE, 1987) e o mito da pureza do direito.
A interação entre saber popular e saberes acadêmicos diversos possibilitou
enxergar que o direito não se realiza sozinho, tampouco é capaz por si só de resolver os
problemas, os conflitos.
No Leningrado, precisamos beber da pedagogia, do teatro, do conhecimento do
serviço social para fazer o que fizemos. Foi se apropriando do método freireano – da
educação emancipadora e humanizante – que dialogávamos com moradores e moradoras com
respeito à sua alteridade, foi buscando no teatro do oprimido que tentamos expor de uma
maneira mais comunicativa situações de opressão para provocar debates, foi com a
participação de uma estudante de Serviço Social que pudemos compreender melhor o sistema
de serviços públicos para propor soluções à comunidade.
Então no programa a gente sempre procurava fazer esse link entre a pedagogia de
Paulo Freire, por exemplo, e o direito constitucional. Como você ia fazer para explicar
para a população, através de uma dinâmica, de uma peça, o teatro do oprimido
também, uma coisa que você nunca imaginava que poderia utilizar para explicar
alguma coisa de direito se você tivesse só na sala de aula? Porque você não vê um
professor utilizar o teatro do oprimido para passar algum conceito de direito. Ai se
utilizou no Leningrado uma peça para demonstrar alguma coisa que a gente queria
passar pra comunidade do direito. (T. S. C., estudante de direito, 2014).
O reconhecimento da necessidade dessa articulação de saberes permitiu que
desenvolvêssemos a habilidade da construção coletiva. Enquanto nós tínhamos o
conhecimento de instituições jurídicas que poderiam auxiliar nas demandas, por exemplo, a
comunidade sabia do funcionamento da administração municipal, das secretarias e suas
competências. Aliando ambos, sem impor um ou outro, foi se desconstruindo a ideia de que
sabíamos mais porque éramos estudantes da universidade e se construindo a ideia de que todo
mundo tem algo a aprender, do nosso inacabamento enquanto gente.
Essa construção era possibilitada pela forma como estava organizado o coletivo,
de forma horizontal, os saberes de todos e todas eram respeitados e contribuíam para as
121
discussões e para a produção do conhecimento novo, permitindo o fazer interdisciplinar. O
trabalhar coletivamente tinha essa questão de não haver uma centralização de demandas e de
decisões em uma pessoa; de produzir conhecimento a partir do diálogo entre os
conhecimentos acadêmicos e os conhecimentos populares, da ecologia de saberes (SANTOS,
2004), se desvencilhando da ótica que apresenta como válido apenas o conhecimento da
academia e valorizando, pois, a diversidade.
Foi a partir desses saberes em conjunto, que os problemas do Leningrado foram
encaminhados: tentávamos a via do poder público para então buscar instituições jurídicas.
Esses encaminhamentos eram discutidos e rediscutidos pelo grupo, entre extensionistas e
comunidade; bem como as estratégias, como agendar uma reunião com a Promotora ou com o
Secretário Municipal na comunidade e não no próprio gabinete. Quer dizer, a comunidade nos
ensinou também a importância da pressão política, de constranger autoridades diante de toda a
comunidade, tendo que explicar o motivo daqueles problemas, tendo que se comprometer a
cumprir suas promessas assinando a ata da reunião redigida por um morador.
Você vê que a técnica jurídica é importante, mas você vê que é um trabalho político,
né? Você saber como é o problema do direito à saúde, quando é o direito
fundamental à educação, as tratativas são questões políticas, de chamar o secretário
para assinar um TAC... a promotora, vai se sentir mais sensibilizada como? A gente
indo até ela ou levando ela para a comunidade? A gente aprendeu tudo isso... como
colocar um secretário constrangido... a fazer ele assinar uma ata dizendo que se
compromete com questões... (...) Se eles por uma época foram sem-teto e
conseguiram uma casa, água, luz... com certeza eles sabem muitos caminhos de
conquistar direitos. Então, já sabiam, muitos ali já sabiam como era as secretarias,
como se dirigir a um secretário. Nessa tratativa eu aprendi muita coisa, né?... eles já
tinha essa experiência de sentar com o secretário, de fazer atas, de fazer pressão
política... então disso aí eu pude perceber como se conquista direitos, né? Que
muitas vezes nos acordos de escritório, foi o que a gente viu que não dava. Uma
reunião com a Promotoria, o secretário de educação e uma comissão de moradores...
a gente via que o negócio pegava mesmo quando os moradores iam para cima, né?
Quando os moradores faziam atos, foi assim que aconteceu a entrada de ônibus lá,
até em uns dias recentes quando o posto de saúde teve problema, foi através de
atos... quando teve mais gente na reunião, não era acordo de gabinete, uma reunião
com o estudante de direito, o promotor e o secretário e o representante. Não. Era
quando tinha aquelas audiências. Enchia aquela sala da promotoria, com o promotor,
a população e o secretário, que tinha que explicar aquela situação, porque ele não
tava tendo, né? Então tudo isso, esse tensionamento da vivência deles contribuiu
para a minha formação jurídica. (H. M. S. B., advogado popular, 2014).
As táticas de articular instituições, de causar constrangimentos, de colocar
autoridades diante da realidade de violação de direitos foram alternativas de atuação
realizadas a partir do saber popular, da experiência de luta das pessoas do Leningrado. A
partir disso, pudemos perceber que o direito não se faz apenas por meio da técnica jurídica,
mas das habilidades políticas também, evidenciando que direito e política estão intimamente
122
relacionados, a começar pelas escolhas por uma teoria de sua concepção (se positivista ou
dialética) e pela forma do seu ensino (se bancário ou emancipador, abstrato ou próximo da
realidade). Quer dizer, são escolhas políticas, que determinam uma posição na dialética social
– de dominação ou de transformação.
A compreensão da política é necessária à compreensão e à aplicabilidade do
direito. É nesse sentido que penso ser mais uma vertente a participar dessa relação de saberes
que conduz à captação da totalidade. Dessa forma, o ensino pretensamente neutro da sala de
aula, passa a ser visto como uma ficção jurídica, como aponta um entrevistado:
Me intrigava desde o início do meu curso essa relação entre o político e o jurídico.
Na sala de aula, a gente ouvia “a gente não pode confundir político com jurídico”,
“tem que criar o jurídico à parte”, e vai criando um negócio castrador, assim, que a
gente não consegue compreender a realidade como totalidade, que esses campos se
interferem entre si, é claro cada campo tem seus próprios adereços. Mas rola uma
interação profunda, se a gente pensar o jurídico enquanto lei, numa perspectiva
positivista, a lei é prática da ação política. Até na concepção positivista eu acho
esquisito até essa separação, porque a lei tem essa interação. E se você compreender
o direito inserido numa totalidade mesmo, no contato com a comunidade, com
movimentos sociais, faz você compreender a realidade material, a economia, o
direito, a política, cada um é, mas são juntos, são coisas distintas, mas são coisas
juntas. (M. H. S. M., estudante de direito, 2014).
De acordo com algumas falas de entrevistados e de entrevistadas, o diálogo com a
comunidade e o engajamento na luta dela pela conquista de direitos proporcionou uma
formação política aos e às estudantes, constituindo um diferencial na formação jurídica, no
sentido de perceber como funciona o sistema, a favor de quem ele se constrói e se mantém e,
nesse contexto, entender o papel do e da jurista:
A gente se coloca para jogar o jogo, as regras estão ai e a gente se coloca nessa
disputa, claro que existem várias outras... politicamente eles irem para o piquete,
irem fechar a entrada do Leningrado, tem esse caminho, mas a gente não vai se
mudar para o Leningrado para fazer o que eles fazem, nossa opção não foi essa... e
eles requerem isso da gente, eles querem alguém que bote um terno e uma gravata
para falar com o promotor, requerer um ofício... a gente não instrumentaliza o direito
para virar a mesa, nós trabalhamos nas contradições do sistema, para tencionar, para
servir a essas pessoas e isso é o quê? É tentar jogar o jogo a favor delas, mas a gente
vê que o jogo é desigual. A gente percebeu isso no Motyrum. Mas é algo que eles
demandam da gente, faz parte da luta deles. E a gente pode fazer parte da
transformação e o direito não é central nisso. (H. M. S. B., advogado popular, 2014).
A percepção da importância da formação política na educação jurídica é percebida
mais claramente quanto analisado o modelo de ensino do direito nas salas de aula, sob o
discurso da neutralidade política, do isolamento do direito dos fenômenos sociais. Como já
123
exposto em análises anteriores neste trabalho, esse processo de politização, de beber da práxis
política, permitiu mudar a forma de se relacionar, de utilizar o direito, de pensar o mundo
(MACHADO, 2009). E é interessante frisar que esta veio da práxis popular, de fazer o direito
através de instrumentos políticos.
A convivência dessa pluralidade de saberes ao longo do trabalho nos transmitiu
também a ideia de que não há hierarquia de saberes, todos têm sua utilidade dentro do seu
contexto; a consciência do nosso inacabamento, enquanto seres históricos em permanente
processo de aprender e ensinar (FREIRE, 1987). E ter isso em mente permitia uma abertura ao
aprendizado, em que a descoberta era, muitas vezes, acompanhada de surpresa, fosse dos e
das moradoras ou dos e das estudantes.
A gente foi dar uma andada lá no Conjunto, foi a primeira vez que eu tava indo lá,
não tinha ideia de como era. E ai a gente foi numa casa de uma moradora lá do
Lenin e entrou lá, aí ficou ouvindo várias histórias, do pessoal falando como tinha
sido o começo do conjunto. (...) Uma mulher falou que foi com um menino de colo
atravessando o morro, numa mão o menino e na outra uma peixeira, abrindo o
caminho pelo morro. Ali naquele momento já senti qual ia ser o tom, o tamanho da
riqueza dessa experiência lá no Lenin pra gente. Logo depois eu vi como a gente
tinha realmente a aprender, porque um de nós, quando entrou na casa... tinha uma
senhora debulhando feijão (..). Aí um de nós ficou fascinado por aquilo, olhou assim
para a bacia de feijão... e “mas caramba, feijão, feijão verde!”, acho que ele ficou
com vergonha de continuar: “é daí que vem? Não vem já no saquinho?” E ai ele,
muito feliz: “posso ajudar?” Ai a mulher olhou assim para ele tão surpresa quanto
ele, ela fascinada com alguém se surpreender com aquilo (...). E eu achei massa,
achei sensacional, uma coisa que era tão simples, eu pensei... caramba, como a gente
tem a aprender, né?... (E. L. M., advogada popular, 2011).
Quer dizer, enquanto nos surpreendíamos com o fato de que a comunidade
desconhecia a Constituição Federal, aquela que para nós, no plano abstrato, deveria ser
conhecida por todos e todas; uma moradora se impressionava com a surpresa de um estudante
ao descobrir de onde vinha o feijão. Assim, o trivial para nós era um mundo desconhecido
pela comunidade, e o trivial para a comunidade, era um mundo desconhecido por nós. Então
era nesse diálogo de saberes que cada vez mais era é reforçada a nossa incompletude enquanto
gente no mundo e enquanto estudante de direito ao perceber que só a lei, a doutrina e as
jurisprudências não bastam para captar a essência do direito, que apenas na prática, em
contato com o povo, descobrimos o seu sentido.
A interdisciplinaridade em que se pauta o método do Motyrum também desafia o
que encontramos no Curso de Direito, em que a matriz curricular não possibilita essa
interação entre as próprias disciplinas oferecidas, bem como com outras áreas de
conhecimento não contempladas no currículo.
124
A interdisciplinaridade a gente vê dentro da sala entre os ramos do direito, mas fora
do direito a gente só paga no inicio do curso sociologia, filosofia, antropologia, um
semestre e pronto e depois durante o curso essas disciplinas que a gente viu
geralmente não são associadas com as matérias do direito. (T. S. C., estudante de
direito, 2014).
Assim, a interdisciplinaridade, dentro da perspectiva dialógica, permitiu
desenvolver a habilidade de construir coletivamente e democraticamente, incluindo a
diversidade de saberes e respeitando a sua capacidade de contribuição, caminhos que levem à
transformação social. Saber que o que se aprendeu no Leningrado, o que se construiu de
conhecimento, o que conquistamos, apenas foi possível porque várias experiências
dialogaram e ajudaram a buscar soluções que atendiam às necessidades daquele momento,
que talvez se tivéssemos partido apenas do aprendizado da sala de aula os resultados não
fossem tão efetivos quanto os que tivemos na atuação interdisciplinar.
3.3.5 A horizontalidade
“Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si
mesmo, os homens se educam entre si,
mediatizados pelo mundo”. (FREIRE, 1987, p.
39)
Na relação que construímos com o Conjunto Leningrado sempre buscamos agir
com respeito, ouvir em silêncio51
, intervir quando necessário, chamar cada um e cada uma
pelo nome, assumir uma postura humilde e “sair do pedestal” que a sociedade nos coloca e
que alguns e algumas estudantes se colocam em razão do prestígio social que é estudar
direito. Isto é, nós tentávamos desconstruir a ideia de que sabíamos mais porque éramos
estudantes de direito, como disse um entrevistado: “de descer do pedestal, de saber tratar as
pessoas de forma digna e tudo, sem nenhuma pretensão de ensinar e de dizer que é mais que
alguém ali” (H. M. S. B., advogado popular, 2014).
Nós buscávamos desconstruir essa superioridade do status de universitário e de
estudante de direito incutida na sociedade, ou seja, a ideia de Universidade como espaço
51
Respeitávamos a fala dos moradores e das moradoras em silêncio, mas não deixávamos de, na oportunidade de
nos expressar, colocar nossas opiniões e reflexões, sempre com cuidado na linguagem e na forma de falar. Nos
círculos de cultura a gente prezava pelo ato de ouvir, uma vez que uma percepção que tivemos da Comunidade
era a sua necessidade de falar, de expressar sua voz, suas indignações. É nesse contexto que essa habilidade vai
sendo desenvolvida ao longo do trabalho, porém, sem se limitar a esse exercício.
125
exclusivo de produção de conhecimento, de direito como algo distante do povo e de juristas
arrogantes. Tínhamos um cuidado especial, por exemplo, de ter uma atenção maior no modo
de falar, evitando termos técnicos e próprios do jurídico, e de se vestir, evitando as roupas
comuns às instituições jurídicas para usar roupas mais simples nos encontros na comunidade.
Dessa forma, rompíamos com a ideia cultuada no próprio Curso de Direito, em que
professores exigem que estudantes compareçam às aulas com roupas elegantes, em que
estudantes buscam os termos mais rebuscados na elaboração de uma redação ou na
apresentação de trabalhos, em que ser estudante de direito corresponde a status de
superioridade social.
As pessoas da comunidade não eram nossos objetos de estudo, mas sujeitos e
sujeitas, que junto conosco pensavam a realidade em que estava inseridos e inseridas para
intervir, para transformar. Nesse tratamento horizontal, pudemos desenvolver a habilidade de
lidar com pessoas, tal como já abordado no ponto sobre a dialogicidade, ou seja, de tratar o
outro ou a outra com respeito, sem impor ideias, soluções, de não olhar de cima para baixo,
como se fosse mais que alguém em razão de um cargo, de uma profissão ou de uma classe
social.
A presença de estudantes de direito todos os sábados na comunidade já era por si
só uma quebra de expectativas de moradores e moradoras, que comentavam algumas vezes
conosco a surpresa de ver estudantes da universidade assumindo esse compromisso, se
colocando a discutir os problemas do Leningrado, um lugar a princípio esquecido pelo Poder
Público, mas protagonista das páginas policiais dos jornais. Ou seja, superando também a
forma como se sentiam vistos pela sociedade, como um “lugar de marginais”.
O comportamento na comunidade também provocava esse rompimento – a
simpatia, o interesse, a humildade, a linguagem acessível. Além disso, a simplicidade das
roupas utilizadas nos encontros era uma escolha fundamentada na ideia de que as veste
formais dificultariam a quebra do paradigma construído sobre a figura de quem é da área do
direito (estudante ou profissional). Por uma questão de identificação, usávamos com
frequência a camisa do Programa também.
No entanto, essa presença repleta de cuidados e esforços de extensionistas para
estabelecer essa horizontalidade e desconstruir a ideia de que seríamos mais inteligentes por
estudar numa universidade, ainda se deparava com algumas falas de pessoas da comunidade
que traduziam esse pensamento, ainda que a percepção que tivessem de nós fosse de pessoas
humildes e comprometidas com a população. Penso que isso pode ser visto como uma
limitação da relação horizontal ou mesmo como a forma que a comunidade optou por nos
126
enxergar, como oportunidade, como pessoas cujo conhecimento jurídico poderia ajudar a
mudar a realidade do Conjunto. Saber como essas pessoas nos enxergavam, porém, é uma
pergunta que acredito que deva ser analisada em outro trabalho.
Essa perspectiva de educação, que se dá horizontalmente entre sujeitos e saberes
diferentes, na ação e na reflexão, muda também o comportamento dos e das estudantes com
colegas e docentes do Curso de Direito quando assumem uma postura mais participativa e
crítica durante as aulas, dentro dos limites, é claro, que o contexto de uma pedagogia
opressora oferece. Os e as extenionistas do Motyrum passam a ter uma visibilidade no Curso
como “rebeldes” e “radicais”, o que evidencia esse destaque em relação à maioria de
estudantes do Curso, de participação e senso crítico e questionador da ordem vigente.
É diferente estar lá, ouvir, conhecer, ouvir o que eles têm para falar, o que eles estão
precisando. A gente se colocava no lugar do outro (...) a gente não chegava lá para
dar aula, a gente chegava para ouvir, e ser ouvido também, né?... a gente tentava se
colocar como igual, apesar de muitas vezes eles não verem isso. A gente se colocava
todo mundo igual, porque todo mundo tem o que aprender e o que ensinar. (I. A. F.,
mestranda em direito, 2014).
Aprender numa relação horizontal é bem diferente de quando se aprende no
modelo tradicional de ensino. Rompe com a ideia de supremacia do saber acadêmico, do
saber jurídico, e da figura docente. Então, no processo de aprendizado do direito durante a
extensão, vai se construindo essa perspectiva da igualdade de pessoas e de conhecimentos e
desconstruindo o fetiche da superioridade das instituições jurídicas, para tentar aproximá-las
da realidade social.
Estabelecer essa relação de horizontalidade era desafiante para nós, habituados à
verticalidade das salas de aula e ao assistencialismo da prática jurídica.
Os professores olham para gente não como professores, mas como juízes,
promotores, advogados, que estão ali apenas para reforçar seus anos de experiência,
nós somos esponjas, né? Ninguém tem humildade de ter a noção de que tem muita
coisa pra aprender ainda, que nós, reles estudantes, podemos ensinar alguma coisa
para eles. (I. A. F., mestranda em direito, 2014).
O trecho apresenta a noção do inacabamento, de saber que ninguém sabe de tudo,
que sempre é possível aprender algo novo. É a partir dessa incompletude que se constitui a
horizontalidade, quando cai por terra a noção de superioridade pautada no critério de “quem
sabe mais”. No Curso de Direito, porém, não é essa a compreensão da maioria do corpo
docente, que comumente se vale de suas profissões fora da universidade para reforçar seu
127
nível acima de estudantes, que estão na sala, no curso apenas para aprender. Esse
entendimento pode ser traduzido a partir das aulas meramente expositivas, da reação
autoritária de docentes aos questionamentos de estudantes sobre suas opiniões, dos métodos
avaliativos e de correção, enfim, das práticas pedagógicas já discutidas no primeiro capítulo
que denotam essa relação vertical.
Diante de alguns problemas, por exemplo, nosso desejo era de ajuizar de imediato
uma ação, mas logo tínhamos que controlar os impulsos e perceber que a comunidade é
sujeita daquele trabalho, que daquela forma poderíamos ferir sua autonomia de decidir o que
melhor lhe atende, se uma ação judicial ou se uma mediação de conflitos por meio do
Ministério Público.
Uma das coisas mais difíceis era a gente não aplicar a educação bancária que a vida
toda a gente recebeu. Meu amigo, todo dia você querer se humanizar assim... Não,
peraí, eu não posso chegar lá e dizer... mas naquela urgência, você queria fazer
alguma coisa urgente, um provimento jurisdicional adequado àquele problema. Mas
daí a gente tentava segurar os instintos e... vamos pensar numa formação aqui. (G.
B. S., estudante de direito, 2014).
Era desafiador, portanto, não reproduzir a lógica da sala de aula, da verticalidade e
da imposição de conceitos, ideias e soluções. Quando o entrevistado fala em “instintos”,
penso na naturalidade com que a pedagogia opressora se faz em nossas vidas, tendo em vista a
imersão no modelo bancário de ensino ao longo de nossa existência.
Havia o esforço de transformar a simples “boa intenção” de ajudar em
envolvimento de moradores e moradoras nas demandas, pois que essas pessoas eram as
verdadeiras e legítimas protagonistas da realidade do Leningrado. Como diz Paulo Freire
(1987, p. 18), “a liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente
busca”, exige o exercício de assumir responsabilidade, exige ter a própria voz, exige ser
sujeito de suas próprias decisões. É nesse sentido de que “ninguém é sujeito da autonomia de
ninguém” (FREIRE, 1996, p. 107), que fomos construindo a horizontalidade na relação com o
Leningrado.
Ou seja, respeitando a alteridade, a autonomia do outro, reforçamos o que
líamos na teoria de Paulo Freire que a educação deve se fazer não para, mas com o povo, com
homens e mulheres.
Teve uma época que a gente pensou: será que isso tem efetividade na vida deles?
Será que eles queriam coisas mais práticas? Mas também não bastava a via mais
rápida, tem que ter uma educação também, então a gente tinha que repensar muita
128
coisa. (T. L. V. B., estudante de direito, 2014).
Na verdade, tudo o que foi colocado sobre o aspecto da dialogicidade pode ser
considerado neste tópico sobre a relação horizontal, pois como também já expus, é no agir
com, é na co-vivência, que o diálogo se realiza, a partir de uma relação de sujeitos e sujeitas,
não de sujeito-objeto, como na educação bancária. É a horizontalidade, o respeito à alteridade,
a humildade que constroem a base desse aprendizado livre, simultâneo, crítico, voltado à
construção do conhecimento a partir da diversidade de saberes e de experiências. É a noção de
que inacabados que somos, sempre teremos algo a aprender na relação com o outro, com a
outra (FREIRE, 1996, p. 50).
A horizontalidade valorizada pelos e pelas extensionistas no contato com o povo
oprimido do Leningrado permitiu a abertura ao diálogo, a aprender com as histórias de vida
daquelas pessoas.
Isso teve um significado na formação jurídica dos e das extensionistas, que
unanimemente reconheceram uma inversão das suas expectativas diante do trabalho no
Leningrado: se logo no início achávamos que íamos mudar a vida daquelas pessoas, no
sentido de melhorar as suas condições de moradia, após aquela experiência, a revolução que
imaginávamos para o Conjunto aconteceu em nós, que “aprendemos a ser gente”, que nos
“identificamos enquanto povo”, como disseram alguns entrevistados.
Essa mudança foi atribuída aos moradores e às moradoras do Leningrado, ao que
essas pessoas ensinaram, o que gerou um reconhecimento coletivo de que ali estavam seus
verdadeiros professores, educadores do direito:
(...) eu preciso dizer uma coisa muito importante para vocês, que eu até sinto
vontade de chorar, que é dizer que de todos os professores que eu tive no meu curso,
vocês foram os meus maiores professores... de tudo o que eu aprendi em sala de
aula, nada se compara ao que eu aprendi aí no Leningrado, sentada numa roda, por
muitos sábados com vocês... que foram vocês que me ensinaram na verdade o que é
que é direito, esse curso que eu fiz... e como é que o direito acontece ou deixa de
acontecer na vida real, como é que tudo o que meus professores da sala de aula
falaram, muitas vezes, são só um pedaço de papel... que não é só estudando os livros
que eles vão sair do papel, é com muita luta, com muita união. E é por isso que eu
dedico a vocês esse momento, esse meu fim de curso, essa graduação. E dizer que
agora atuando como advogada, com certeza vocês serão inspiração sempre. (N. B.
B., advogada popular, 2011).
Vocês são esse exemplo de conquista de direito. (...) Vocês que sofriam as violações
de direitos é que tinham maior responsabilidade sobre isso, maior conhecimento...
são, na verdade, professores de direito para gente. Dedico a vocês também o meu
curso, a profissão que eu exerço hoje, de saber que hoje a gente pode lutar fazendo
essa assessoria. Agradeço por me formar mais militante, mais homem que eu sou,
129
muito obrigado. (H. M. S. B., advogado popular, 2011).
Quando eu cheguei no Leningrado eu tinha uma determinada expectativa de que eu
ia contribuir muito mais com vocês do que vocês contribuíssem comigo. Mas eu
acho que a comunidade proporcionou a mim foi impagável assim, me garantiu gosto
pela universidade, me deu um norte... me deu um sul, me deu um objetivo que é
mais de tá lutando junto com vocês. (M. H. S. M., estudante de direito, 2011).
Nós pensamos em muito no que a gente aprendeu... que vocês foram nossos
professores, que nos surpreendeu bastante com a quantidade de coisas que a gente
viu na prática que superava livros e livros. (...) (L. S. G. M., advogado, 2011).
As falas acima traduzem não apenas os reflexos da experiência de extensão no
Leningrado, mas de certa forma, também o modo como estudantes se envolveram, se
implicaram nesse processo educativo. Afinal, chegaram na comunidade ainda com um
perspectiva vertical de aprendizagem, de pensar que iriam mudar o contexto de vida daquelas
pessoas. Mas, ao longo dessa vivência na educação popular, foi sendo construída a ideia do
inacabamento, foi sendo questionada a educação jurídica no Curso de Direito e a percepção de
que onde mais se aprende é na prática, em contato com o mundo, de modo que, após isso
tudo, se perceberam como sujeitos e sujeitas completamente diferentes do que eram.
Isso porque também se permitiram abrir para o novo, se aventurar nessa
pedagogia que sequer era vivenciada na escola e na universidade, ter humildade para ouvir e
para fazer a autocrítica, ter ousadia para fazer os enfrentamentos perante autoridades do Poder
Público. Porque no diálogo reconheceram a si e o outro ou a outra como sujeitos e sujeitas,
diferentemente de como a educação bancária trata estudantes e como a sociedade trata
oprimidos e oprimidas.
Reconhecer moradores e moradoras do Leningrado como verdadeiros docentes da
graduação no Curso de Direito revelam a mudança de paradigmas quanto à concepção de
direito e ao ensino jurídico. Mostra o convencimento de que o direito que se faz e se aprende
na rua, que se construiu no Leningrado, é autêntico, é legítimo, talvez até mais que o direito
estatal. Revela uma mudança dos rumos apontados pelo Curso – individualistas, como
concursos, conquista de estabilidade financeira. A extensão orientou esses e essas
extensionistas para uma prática transformadora, para tomada de decisões que implicam
diretamente com o uso do direito a favor dos oprimidos e das oprimidas, como a escolha pela
Defensoria Pública (que não tem representatividade expressiva no curso, seja na divulgação
do trabalho, seja na existência de docentes defensores ou defensoras), pela advocacia popular,
pela militância política em movimentos sociais e partidos políticos, pela ocupação de espaços
130
conservadores como o Judiciário, no intuito de disputar outra concepção de direito. Enfim,
passam a tomar rumos orientados para a concretização da justiça social.
Portanto, a experiência de extensão no Leningrado afetou de forma significativa a
formação jurídica dos e das estudantes de direito do Curso da UFRN, desde o
desenvolvimento de habilidades como ouvir, falar em público, fazer o trabalho de articulação
política, trabalhar em grupo, lidar com pessoas e com diferenças à mudança na forma de
enxergar o mundo e o direito, orientando para uma visão transformadora. São e serão
profissionais que carregam consigo a inquietação diante das violações de direitos humanos,
que organizados ou não em um movimento, partido, rede, assumiram uma postura crítica
perante o direito e o compromisso de buscar diminuir as desigualdades sociais, de lutar por
um mundo mais justo.
131
CONCLUSÃO
Ao final desta pesquisa, posso afirmar que o Programa Motyrum de Educação
Popular em Direitos Humanos cumpre um papel importante na formação jurídica do e da
estudante do Curso de Direito da UFRN.
As deficiências apontadas nas entrevistas, a análise da matriz curricular e o
relatório das oficinas de autoavaliação do Curso convergem para uma necessidade de
mudanças no fazer do ensino jurídico e, consequentemente, na adoção de uma outra
percepção de direito, ou melhor, na abertura de possibilidades, de trabalhar a diversidade de
concepções do direito, permitindo ao e à estudante conhecê-las e refleti-las.
O elemento principal, que situa o Motyrum como um programa diferenciado no
contexto do Curso de Direito, é a aproximação dos e das extensionistas da realidade local, se
propondo a discutir nas comunidades e na academia os problemas encontrados nas periferias
urbanas, nos assentamentos rurais, nas comunidades indígenas, nos ambientes de privação de
liberdade.
É a partir desse contato com a vida fora dos muros da universidade que a e o
estudante de direito passa a refletir sobre o conteúdo dos livros, das leis, das salas de aula,
quando se depara com as limitações das instituições jurídicas, com as violações de direitos
humanos, com as histórias de luta do povo oprimido.
O conhecer do Motyrum passa por um método pedagógico específico, diferente
do que é comumente adotado em escolas e universidades, que é a educação libertadora, que
valoriza os sujeitos e as sujeitas, suas experiências, seus saberes por meio do diálogo; que
permite compreender o mundo, o outro e a outra e o direito numa totalidade a partir da
interdisciplinaridade; que respeita a autonomia, a voz, a alteridade através da horizontalidade.
Dessa forma, a pesquisa apontou que a experiência da extensão universitária
popular no Leningrado e a participação na gestão do Programa contribuíram para a formação
jurídica dos e das extensionistas em diversos vieses. Sobre o aspecto da dialogicidade, o e a
estudante de direito desenvolveram as habilidades de lidar com pessoas, de se comunicar
ouvindo o outro e a outra; de ter um raciocínio jurídico coletivo e social; e de saber vias
alternativas de soluções de conflitos, como através da articulação política. Além disso, foi a
partir dessa experiência dialógica que se construiu nessas pessoas a ideia do direito enquanto
instrumento de transformação e da profissão de jurista como uma função social.
No que tange à interdisciplinariedade, os e as extensionistas passaram a
132
compreender a necessidade de um estudo e de uma ação multidisciplinar, tanto para entender
o direito em sua totalidade quanto para entender o problema posto, o caso prático e, portanto,
saber construir coletivamente, a partir da diversidade de saberes. Também possibilitou uma
formação politizada, de perceber a relação entre direito e política e a necessidade das
habilidades desta na mediação de conflitos; e ainda, de influenciar o engajamento de
extensionistas em manifestações populares, em movimentos sociais, partidos políticos, centro
acadêmico e diretório estudantil.
No plano da horizontalidade a principal contribuição foi a desconstrução da ideia
de hierarquia do e da jurista ou estudante de direito perante a sociedade. A experiência
possibilitou ao e à extensionista exercitar sua capacidade de lidar com as pessoas com
humildade, respeitando sua autonomia, sua história e seu saber, sem se colocar acima, sem
impor nada a ninguém.
A partir das entrevistas e dos vídeos analisados, foi possível identificar um
elemento comum que exprime o significado dessa experiência para os e as extensionistas, que
é a possibilidade de aprender o direito na rua. Para muitos e muitas que participaram, o direito
foi de fato encontrado no Leningrado, suas contradições, suas deficiências, sua capacidade
transformadora.
Talvez, a maior contribuição do Motyrum para a formação jurídica constitua no
que diz a frase de Paulo Freire que estampa as camisas do Motyrum: “Não é na resignação,
mas na rebeldia em face das injustiças que nos afirmamos” (FREIRE, 1996, p. 78). Isto é, na
formação de mulheres e homens que constatam não para se adaptar, mas para mudar.
133
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137
ANEXO 01
Roteiro de entrevistas para a pesquisa de campo
01 – Como o Motyrum contribui para a formação jurídica?
02 – Como a relação como a comunidade interferiu no aprendizado?
03 – Quais as diferenças entre a sala de aula e as atividades vivenciadas no Motyrum?
04 – Qual o diferencial do/da estudante e do/da profissional que participou do Motyrum?
05 – Qual o papel que o Motyrum cumpre no curso?
06 – Como a interdisciplinaridade, o diálogo e a horizontalidade interferem na formação
jurídica?
138
ANEXO 02
Registro fotográfico do último encontro do Motyrum Urbano no Conjunto Habitacional
Leningrado
12