lucio nicoletto yhwh está em litígio com o seu povo: um ... · bacharel em teologia (faculdade...
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Lucio Nicoletto
YHWH est em litgio com o seu povo: um estudo exegtico de Os 4,1-3
Dissertao de Mestrado Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre pelo programa de Ps-graduao em Teologia da PUC-Rio.
Orientador: Prof. Leonardo Agostini Fernandes
Rio de Janeiro
Maro de 2016
DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1413547/CA
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Lucio Nicoletto
YHWH est em litgio com o seu povo: um estudo exegtico de Os 4,1-3
Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre pelo Programa de Ps-graduao em Teologia do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Aprovada pela Comisso Examinadora abaixo assinada
Prof. Leonardo Agostini Fernandes Orientador
Departamento de Teologia PUC-Rio
Prof. Waldecir Gonzaga Departamento de Teologia PUC-Rio
Prof. Matthias Grenzer PUC/SP
Prof. Denise Berruezo Portinari Coordenadora Setorial de Ps-Graduao
e Pesquisa do Centro de Teologia e Cincias Humanas PUC-Rio
Rio de Janeiro, 14 de maro de 2016
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Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total
ou parcial do trabalho sem autorizao da universidade, do
autor e do orientador.
Lucio Nicoletto
Bacharel em Teologia (Faculdade Teolgica da Itlia
Setentrional Pdua -Itlia) em 1997. Cursou a Escola de
Formao para Formadores ISSR Istituto Superiore di
Scienze Religiose Mogliano Veneto (VE) Itlia e
Transcender So Paulo, de 2009 a 2012. Desde 2005 e
missionrio fidei donum da diocese de Padova Itlia,
no Brasil. Trabalhou na diocese de Duque de Caxias (RJ)
e atualmente vive seu ministrio junto diocese de
Roraima.
Ficha Catalogrfica
CDD: 200
Nicoletto, Lucio YHWH est em litgio com o seu povo: um estudo exegtico de OS 4,1-3 / Lucio Nicoletto; orientador: Leonardo Agostini Fernandes. 2016. v., 106 f.; 29,7cm
1. Dissertao (mestrado) Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Departamento de Teologia, 2016.
Inclui bibliografia 1. Teologia Teses. 2. Antigo Testamento. 3. Literatura proftica. 4. Livro de Oseias. 5. Litgio. 6. Fidelidade I. Fernandes, Leonardo Agostini. II. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Ttulo.
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Aos meus irmos e irms de caminhada
que j se foram
deixando um vazio
que s a F no abrao eterno de YHWH
enche de luz e de esperana.
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Agradecimentos
Agradeo primeiramente a Deus, Trindade Santa, o dom da vida e do ministrio
presbiteral mediante o qual me chamou para servir o seu povo nesta terra
maravilhosa que o Brasil, neste tempo de misso, verdadeira epifania da sua
misericrdia e fidelidade.
Aos meus pais, Dino e Paola, os primeiros instrumentos nas mos de Deus, que
me transmitiram o dom da vida.
minha irm Elisabetta e ao meu irmo Rossano com sua esposa Laura e filhos,
meus sobrinhos Anna e Lorenzo, pelo carinho com que me acompanharam nesses
anos de misso.
Aos meus amigos e irmos Andrea e Geraldine, como aos seus filhos, meus
afilhados, Chiara, Francesco e Matteo, pelo apoio moral e tcnico nos
momentos de pesquisas e de contato com as bibliotecas da Pontifcia
Universidade Gregoriana e do Pontifcio Instituto Bblico em Roma.
Agradeo minha Igreja Me de Pdua, que me ofereceu a oportunidade de
caminhar e de contemplar, nesses anos de minha vida, as manifestaes do
Esprito de YHWH na Igreja irm de Duque de Caxias e permitiu-me enriquecer a
experincia missionria com a aventura do Mestrado.
Agradeo ao meu orientador, Pe. Leonardo Agostini Fernandes, que, com percia
e esmero, me ajudou a sondar as profundas riquezas das Sagradas Escrituras e me
acompanhou com pacincia e grande demonstrao de verdadeira fraternidade
presbiteral nesse tempo do trabalho de pesquisa na dissertao.
Aos professores e ao pessoal do Departamento de Teologia da PUC-Rio, pelo
carinho, pela competncia e pela dedicao com que nos acompanharam por
caminhos inigualveis e de alto nvel, sem medir tempo e esforo. De maneira
especial, agradeo aos professores Abimar Oliveira de Moraes, Maria de Lourdes,
Isidoro Mazzarolo, Waldecir Gonzaga, Jos Otcio Oliveira Guedes e Ludovico
Garmus.
CAPES e PUC-Rio, pelos auxlios concedidos, sem os quais este trabalho
seria impossvel.
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Ir. Marlene Leite Mendona e a toda a comunidade das Irms Calvarianas do
INOSEL Gvea, pelo carinho e pela amizade que me demonstraram no tempo
em que me acolheram em sua casa, todas as vezes em que precisei de hospedagem
e descanso ao longo desses anos de frequentao da PUC-Rio.
Aos meus colegas e amigos de estudo que encontrei ao longo do curso de
Mestrado, pela unio, pela amizade e pelo companheirismo recprocos que nunca
esquecerei.
Aos amigos Carlos Alberto, Gilson Freire e Camila Maciel Pires, pelo carinho e
profissionalismo com que me ajudaram na estruturao e na correo da minha
dissertao.
Ao meu diretor espiritual e amigo, Pe. Geraldo Dndici Vieira, que com a
pacincia e o carinho de um pai me acompanhou e me incentivou a trilhar o
caminho do estudo das Sagradas Escrituras para alcanar a plena maturidade na
F e para ajudar sempre mais, com maior competncia, o povo de Deus no
aprofundamento do seu .
famlia do Seminrio diocesano Santa Maria, em Duque de Caxias, aos
seminaristas, esperana e futuro dessa Igreja local, que me possibilitaram a
oportunidade de cursar o Mestrado, e a todos os colaboradores e colaboradoras
com que caminhei ao longo dos ltimos nove anos da minha vida.
Aos amigos padres Matteo, Luigi, Orazio, Benedetto, Marcos Bejarano, Renato
Gentile, Alcindo Milena, Vanildo Cregi, Jorge Vasconcellos, bem como a todos
os padres da diocese de Duque de Caxias e de Pdua, que lutam incansavelmente
pela realizao do reino de Deus nos lugares onde a Providncia os colocou.
A dom Jos Francisco Rezende Dias, que me acolheu como pai e amigo na
diocese de Duque de Caxias, no incio da minha caminhada aqui no Brasil, e a
dom Tarcsio Nascentes, atual bispo da diocese caxiense.
s parquias de Nossa Senhora de Ftima em Vilar dos Teles e de Nossa Senhora
das Graas em Xerm, com que convivi ao longo desses dez anos, bebendo das
fontes da f simples e concreta desse povo maravilhoso, rosto de YHWH
misericordioso e compassivo, obrigado pelas oraes e pelo carinho com que
sempre me apoiaram e me acompanharam.
A todo o povo de Deus de Duque de Caxias e da Baixada Fluminense, to sofrido
e to querido, por ser imagem viva do povo de Deus que caminha com dignidade
e com f, pelos desertos das injustias e das violncias, mas com a fora da
mesma f e da comunho em YHWH, Deus da Histria, rumo a um novo
amanhecer de esperana e vida.
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Resumo
Nicoletto, Lucio; Fernandes, Leonardo Agostini. YHWH est em litgio
com Israel: um estudo exegtico de Os 4,1-3. Rio de Janeiro: 2016, 106 p.
Dissertao de Mestrado Departamento de Teologia, Pontifcia
Universidade Catlica do Rio de Janeiro.
Na primeira parte do livro de Oseias (Os 13), so descritos a experincia
matrimonial do profeta Oseias e o significado que essa experincia (casamento,
traio, afastamento e reconciliao) tem enquanto revelao do amor de YHWH
por Israel. Na segunda parte do livro (cf. Os 411), foram coletados todos os
diferentes orculos atribudos ao profeta Osias, que giram em torno do tema do
julgamento sobre Israel e da promessa de salvao e perdo. Pode-se considerar
Os 4,1-3 como um portal de ingresso da segunda parte do livro: deixa-se a
linguagem alegrica (casamento, prostituio e adultrio) e diretamente se
apresenta a queixa sobre a violao do pacto com YHWH. As acusaes so
dirigidas contra o povo e, mais adiante, contra a classe sacerdotal, os lderes, a
famlia governante e o rei. As palavras de Os 4,1-3 convocam os filhos de Israel a
um , litgio, no qual o profeta, em nome de YHWH, denuncia a ruptura da
Aliana. No meio do processo judicirio, emerge uma acusao fundamental: a
falta de , e (cf. Os 4,1c). Essa falta impede os imputados de
reconhecer as obras de YHWH, Deus de Israel, (criao e libertao) com a
consequente adeso a um estilo de vida em que esto envolvidas tanto as relaes
comunitrias quanto as relaes com a criao.
Palavras-chave
Antigo Testamento; Literatura Proftica; Livro de Oseias; Litgio;
Fidelidade; Lealdade; Conhecimento de Deus.
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Abstract
Nicoletto, Lucio; Fernandes, Leonardo Agostini (Advisor).
YHWH is in wrangle with Israel: an Exegetical Study in Hos 4:1-3.
Rio de Janeiro: 2016, 106 p. MSc. Dissertation Departamento de
Teologia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.
The first part of the book of Hosea (Hos 13) describes the conjugal
experience of the prophet Hosea and the meaning that this experience (marriage,
betrayal, separation and reconciliation) has as revelation of YHWHs love for
Israel. The second part of the book (cf. Hos 411) collects all the different oracles
attributed to the prophet Hosea that revolve around the theme of judgment on
Israel and the promise of salvation and forgiveness. It is possible to consider Hos
4:1-3 as a portal of entry of the second part of the book: it leaves the allegorical
language (marriage, prostitution and adultery) and presents directly the complaint
about the violation of the Covenant with YHWH. The charges presented in Hos
4:1-3 are directed against the people and, later, against the priestly class, the
ruling family and the king. The words of Hos 4:1-3 summon the children of Israel,
to a wrangle, in which the prophet, in the name of YHWH, denounces the ,
breaking of the Covenant. Right in the middle of the investigation of the case,
there is a fundamental accusation: the lack of , and (cf. Hos
4:1c). Such lack does not allow the imputed to recognize the works of YHWH,
God of Israel, (creation and liberation) with the consequent acceptance of a
lifestyle where are involved relations both with the community and with the
creation.
Keywords
Old Testament; Prophetic Literature; Book of Hosea; Wrangle;
Faithfulness; Loyalty; Knowledge of God.
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Sumrio
1. Introduo 13
2. O livro do profeta Oseias................................................................16
2.1 O livro do profeta Oseias e o seu contexto histrico......16
2.2 Origem e redao do livro..............................................22
2.2.1 Consideraes literrias.................................................................22
2.2.2 As tradies do ambiente do Reino do Norte.................................25
2.2.3 Hipteses redacionais....................................................................29
2.3 Estruturas do livro...........................................................................35
3. Os 4,1-3: Texto e crtica.................................................................45
3.1 Traduo.........................................................................................45
3.2 Notas de crtica textual ..........................................................45
3.3 Notas filolgicas..............................................................................48
3.4 Delimitao do texto e unidade............................................55
3.4.1 Proposta de delimitao.................................................................55
3.4.2 Organizao do texto......................................................................59
3.5 Gnero literrio de Os 4,1-3...........................................................62
4. Os 4,1-3: Comentrio exegtico-teolgico.....................................65
4.1 O contexto exegtico de Os 4,1-3..................................................65
4.1.1 Intimao escuta (Os 4,1a)..........................................................66
4.1.2 O anncio da acusao e apresentao das partes (Os 4,1b).....68
4.1.3 A motivao da acusao (Os 4,1c)...............................................70
4.1.4 As provas que fundamentam a acusao (Os 4,2)........................75
4.1.5 As consequncias do agir contrrio Aliana e
quebra da harmonia da natureza (Os 4,3)................................................77
4.2 Viso de conjunto................................................................................81
4.2.1 O em Os 4,1-3...............................................................82
4.2.2 O e a falta de 84............................................................
4.2.3 O trinmio , e no livro de Oseias.......................86
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5. Concluso e sntese da pesquisa...................................................91
6. Referncias bibliogrficas...............................................................95
6.1 Bblias, Gramticas e Manuais.......................................................95
6.2 Dicionrios......................................................................................95
6.3 Concordncias e Lxicos .........................................................97
6.4 Documentos da Igreja ..............................................................98
6.5 Artigos e Revistas...........................................................................98
6.6 Obras............................................................................................103
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Lista de siglas e abreviaes
a.C. Antes de Cristo
ABD The Anchor Bible Dictionary
Am Ams
AnBib Analecta Biblica
AncB The Anchor Bible
AOAT Alter Orient und Altes Testament
AOP Antigo Oriente Proximo
AT Antigo Testamento
ATeo Atualidade Teologica, Revista do Departamento de Teologia da
Puc-Rio
BAT Die Botschaft des Alten Testaments
BBB Bonner biblische Beitrge
BDB The Brown-Driver-Briggs Hebrew and English Lexicon
BHQApp
Biblia Hebraica Quinta Aparato crtico
BHS Biblia Hebraica Stuttgartensia
Bib Biblica
BZAW Beiheft zur Zeitschrift fr die alttestamentliche Wissenschaft
CBQ The Catholic Biblical Quarterly
CCS The Communicators Commentary Series
DBHP Dicionrio Bblico Hebraico-Portugus
DITAT Dicionrio Internacional de Teologia do Antigo Testamento
DTMAT Diccionrio Teolgico Manual del Antiguo Testamento
EB Estudos Bblicos
EncJud Encyclopedia Judaica
EvTh Evangelische Theologie
Ex xodo
Ez Ezequiel
FRLANT Forschungen zur Religion und Literatur des Alten und Neuen
Testament.
Ges. Stud. Gesammelte Studien (zum Alten Testament)
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HALAT Hebrisches und Aramisches Lexikon zum Alten Testament. I-IV.
BAUMGARTNER, W., HARTMANN, B., KUTSCHER, Y. (eds.). Leiden:
Brill Academic Pub, 1990.
IJPT International Journal in Philosophy and Theology
Interpr. Interpretation
JBL Journal of Biblical Literature
JCS Journal of Cuneiform Studies
JHS Journal of Hebrew Scriptures
JSOT Journal for the Study of the Old Testament
JSOTSup Journal for the Study of the Old Testament. Supplement series
JTS Journal of Theological Study
KAT Kommentar zum Alten Testament
Mq Miqueias
NDITEAT Novo Dicionrio Internacional de Teologia e Exegese do Antigo
Testamento
Os Oseias
OTL Old Testament Library
OTWSA Ou Testamentiese Werkgemeenskap van Suid-Afrika
(Trad. do Afrikaans: Old Testament Society in South Africa)
PSV Parola, Spirito e Vita
RE Review and Expositor
SBLDS Society of Biblical Literature Dissertation Series
SEA Svensk Exegetisks rsbok
Sem Semeia
TDOT Theological Dictionary of the Old Testament
TLZ Theologische Literaturzeitung
TM texto massortico
Vol. volume
VT Vetus Testamentum
ZAW Zeitschrift zr die Alttestamentliche Wissenschaft
ZTK Zeitschrift fr Theologie und Kirche.
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1. Introduo
O encontro com o livro do profeta Oseias sempre apaixonante e abre
novos horizontes para a compreenso da mensagem da Palavra de YHWH. A
concretude da linguagem tpica desse profeta, que pertence ao corpus do
Dodekapropheton, ajuda a deixar de lado certa imagem racionalista de YHWH,
fruto de vrios fatores sociais, culturais e religiosos, e introduz a uma intimidade
profunda com esse Deus maravilhoso que se revela como apaixonado, um Deus
pelo qual j possvel entrever o rosto de Cristo, um rosto sofrido por causa do
seu amor para com a pessoa amada, a humanidade. Esse Deus que no deixa de
chamar converso o seu povo, o qual no se d conta de que est se afastando
gradativamente dele, fonte da sua vida e seiva que alimenta um futuro de paz.
So pginas de alta poesia com tenses profundas que retratam o esforo
diuturno de YHWH para reconquistar o seu povo, Israel, depois de todas as
traies e infidelidades, de modo a constituir uma estupenda e dramtica
parbola do amor conjugal, segundo a lgica de YHWH, o qual d vazo de
amor verdadeiro ao homem de ontem e de hoje, at as ltimas consequncias, para
fazer brotar sempre de novo o sim do corao de sua esposa, Israel, um sim
livre e total para um amor que resgata o valor da prpria humanidade imbuda da
divindade do seu Criador.
Para Oseias no suficiente ter um sentimento vago da divindade de
YHWH, visto que preciso aprender a conhecer esse Deus para am-lo e
reconhec-lo como o nico e verdadeiro Deus. Tal conhecimento passa
inevitavelmente pela experincia do deserto, uma experincia na qual Israel
toma conscincia do prprio pecado no meio de uma terra de abandono e
desolao. nessa terra que a voz de YHWH, leal e fiel s suas promessas, se faz
sentir para confirmar as palavras do primeiro encontro amoroso, mesmo que seja
com palavras duras e acertadas para provocar um benfico choque no povo em
vista da to esperada volta ao primeiro amor.
Por sua vez, Os 4,1-3, objeto de estudo deste trabalho, apresenta-se como
uma introduo programtica que provavelmente nunca existiu em forma oral,
como palavra em si, tendo sido estruturada como uma espcie de portal de
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acesso para Os 411 pelos discpulos do mesmo profeta Oseias, tendo em vista o
carter de resumo que tal percope possui.
Dessa forma, o presente trabalho de pesquisa, cujo tema YHWH est em
litgio com Israel: um estudo exegtico de Os 4,1-3, apresenta-se dividido em
trs partes.
Na primeira parte, busca-se perceber o contexto histrico do livro do profeta
Oseias, sua origem e sua estrutura, promovendo uma reflexo sobre tal contexto,
tendo em vista a compreenso de Os 4,1-3 num mbito mais amplo (captulo 2).
Na segunda parte, desenvolve-se o estudo de Os 4,1-3 que compreender a
traduo, as notas de crtica textual e a filologia, o que se seguir da delimitao
de texto e unidade, examinando a organizao textual e o gnero literrio (captulo
3).
Na terceira parte, prope-se uma exegese de Os 4,1-3, debruando-se
especialmente sobre o tpico de maior destaque da percope, o e as trs
motivaes que o fundamentam, a saber: , e (captulo 4).
Para o trabalho de pesquisa, fez-se uso dos principais comentrios do livro
de Oseias, no s para a apresentao das tendncias interpretativas de Os 4,1-3,
como tambm para a anlise especfica do significado do e da trade
em Os 4,1-3. Empreendeu-se a anlise dessa unidade e ,
textual seguindo os passos do Mtodo Histrico Crtico, considerando e
analisando o texto na perspectiva do seu estado final e cannico1.
O conjunto dos procedimentos adotados permitiu o acesso mais direto ao
objetivo da pesquisa, considerando o elemento histrico que implica o
reconhecimento de que os textos bblicos foram concebidos em determinado
perodo do passado e se desenvolveram num processo histrico. Portanto, o
estudo histrico tem muito a dizer sobre o sentido dos textos. Por outro lado,
pode-se dizer que se trata tambm de um estudo crtico porque estabelece as
distines que do base para julgar os diversos aspectos do texto ligados histria
quanto ao tempo de composio, relao com textos contemporneos e
realidade extratextual, como a histria poltica, religiosa e social2. Nessa
1 Cf. H. SIMIAN-YOFRE, Metodologia do Antigo Testamento. So Paulo: Loyola, 2000, p. 73.
2 Cf. H. SIMIAN-YOFRE, Metodologia do Antigo Testamento. p. 74-75.
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abordagem diacrnica, operou-se com a ajuda de critrios cientficos to objetivos
quanto possveis, de maneira a tornar acessvel o sentido do texto analisado3. J a
abordagem sincrnica, reconhecida como legtima, permitiu tratar o texto em seu
estado final, e no baseado em uma redao anterior, tornando-se fundamento de
uma leitura cannica4.
Esta pesquisa no pretende esgotar os inmeros elementos lingusticos,
histricos e teolgicos que envolvem as abordagens diacrnica e sincrnica
aplicadas ao texto, pois tal tarefa vai alm dos limites deste estudo. Este pretende
elencar alguns elementos que permitem aprofundar o estudo de Os 4,1-3, podendo
servir de referncia para futuras pesquisas relacionadas.
3 Cf. PONTIFCIA COMISSO BBLICA, A interpretao da Bblia na Igreja. So Paulo: Paulinas,
2004, p. 37.41. 4 Cf. PONTIFCIA COMISSO BBLICA, A interpretao da Bblia na Igreja, p. 45.
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2. O livro do profeta Oseias
2.1 O livro do profeta Oseias e o seu contexto histrico
As primeiras e parcas informaes sobre a origem e a identidade do profeta
encontram-se logo no incio do texto. Seu nome cf. Os 1,1) cujo)
significado remete maioria dos nomes que tm como raiz , salvar5, da o
significado YHWH salva ou YHWH socorreu.
Dentro do corpus do Dodekapropheton, Oseias relacionado ao pai, da
mesma forma como acontece com Joel, Jonas, Sofonias e Zacarias, e no cidade
de origem, tal como ocorre com Ams, Miqueias e Naum. Talvez seja possvel
considerar esse dado como uma indicao que o autor quis deixar para melhor
entender a identidade do profeta como um homem no meio dos homens6.
Pouco se sabe sobre Oseias alm do nome de seu pai, nem se conhece ,
algo em relao a sua casa, sua formao ou como foi educado. Contudo,
notvel a familiaridade com as tradies presentes nos livros do Pentateuco, Josu
e Juzes, o que sugere ter sido a sua formao cultural e religiosa slida e
fecunda7. provvel que ele se tenha tornado um profeta antes do casamento,
pois em Os 1,2 se escreve que foi por ordem de YHWH que Oseias escolheu a
mulher adltera com a qual se casou. A experincia conjugal de Oseias com
Gomer, provavelmente uma sacerdotisa que praticava a prostituio sagrada,
segundo os rituais da religio cananeia, foi determinante para ele viver na prpria
pele o que YHWH estava vivendo com o seu povo, Israel: a experincia de um
amor no correspondido, mas fiel at os limites da compreenso humana, de modo
a ser o nico remdio que permitiria pessoa amada se libertar daquela que por
muitos anos tinha sido a sua vida de prostituta8.
Pode-se levantar uma srie de indcios histricos ocorridos no Reino do
Norte para melhor situar o contexto histrico do livro de Oseias: (a) vingarei
5 Cf. L. ALONSO SCHKEL, , DBHP, p. 300.
6 Cf. J. LIMBURG, I dodici profeti. Parte prima: Osea, Gioele, Amos Abdia, Giona, Michea.
Torino: Claudiana editrice, 2005, p. 21. 7 Cf. K. NIELSEN, Yahweh as Prosecutor and Judge. An investigation of the prophetic lawsuit
(RbPattern). In: JSOTSup, 9 (1978), p. 22 8 Cf. L. A. FERNANDES, Evangelizao e famlia. Subsidio bblico, teolgico e pastoral. So Paulo:
Paulinas, 2015, p. 109.
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sobre a casa de Je o homicdio ocorrido em Jezrael; (b) arcarei o fim do Reino da
casa de Israel (cf. Os 1,4; 2Rs 9,110,36); (c) estaro juntos os de Jud e os de
Israel e elegero um chefe comum (cf. Os 2,2)9.
A longa srie de reis que se encontra em Os 1,1 sugere que Oseias tenha
exercido seu ministrio por muito tempo e provvel que tenha comeado sua
misso de profeta quando ainda muito jovem10
.
Os 1,1 relata que, na poca em que o profeta viveu, alternaram-se no Reino
de Jud os reis Ozias, Joato, Acaz e Ezequias, enquanto Jeroboo, filho de Jos,
reinava em Israel. O versculo de abertura deixa entender que Oseias poderia ter
profetizado at o final do reinado de Ezequias, rei de Jud (716-686 a.C.). Mas h
de se considerar que o profeta Oseias comeou o seu ministrio relativamente
tarde, durante o reinado de Jeroboo II, quando a ameaa do juzo divino sobre a
dinastia de Je estava s portas11
, e terminou bastante cedo, provavelmente
durante os primeiros anos do reinado de Ezequias. Por isso, seria possvel concluir
que Oseias tenha atuado nos anos 760-710 a.C., cerca de 50 anos.
O fato de que ele possa ter vivido durante o reinado de Ezequias
especialmente importante porque permite deduzir que ele presenciou a queda da
Samaria, em 722 a.C. Com efeito, no razovel supor que ele tenha terminado os
seus dias na Jerusalm do rei Ezequias e que o seu livro ali tenha sido preservado.
De qualquer forma, seria preciso contar com alguma evidncia direta para
confirmar essa posio12
.
Jeroboo II, que reinou por volta de 790-750 a.C, subiu ao poder enquanto a
Sria e Assria dois inimigos de Israel situados ao norte enfraqueceram-se por
causa de conflitos internos13
. Aps a morte de Ben-Hadade II da Sria, Jeroboo II
estendeu o domnio de Israel ao norte at a cidade de Damasco (cf. 2Rs 14,25-
26)14
. Ele conseguiu restaurar a prosperidade da nao com as vitrias militares,
9 Cf. L. A. FERNANDES, Evangelizao e famlia. Subsidio bblico, teolgico e pastoral, p. 109.
10 Cf. J. L. MAYS, Hosea. A Commentary. Philadelphia: Westminster, 1969, p. 2.
11 Cf. L. A. FERNANDES, Evangelizao e famlia. Subsidio bblico, teolgico e pastoral, p. 105.
12 Cf. K. NIELSEN, Yahweh as Prosecutor and Judge. An investigation of the prophetic lawsuit
(RbPattern), p. 22. 13
Cf. R. ALBERTZ, Storia della religione nellIsraele Antico. Dalle origini allet monarchica.
Brescia: Paideia, 2005, p. 256. 14
Cf. E. H. MERRILL, Kingdom of Priests. Grand Rapids: Baker, 1987, p.374-375.
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tendo a economia do reino crescido muito sob o seu reinado, o que possibilitou
uma poca urea para Israel.
No entanto, mesmo com uma economia forte caracterizando o governo de
Jeroboo II, havia muitas discriminaes e injustias sociais que aos poucos
deixaram o povo dividido em duas classes: de um lado, a classe mais baixa, cada
vez mais sofrida e marcada pela opresso e pobreza; de outro, a alta, ganhando
cada vez mais poder e acumulando nas mos de poucos a riqueza do pas inteiro15
.
O latifundismo, que ia se espalhando espantosamente a partir do mesmo rei,
tinha ameaado a estrutura administrativa do reino de Israel antigo, eliminando
qualquer vestgio do antigo ideal de igualdade social da idade pr-estatal16
. Tal
situao poltica, social e cultual que se encontra durante o reinado de Jeroboo II
justificaria o tom da Palavra de YHWH que, no livro de Oseias, apresenta-se
predominantemente negativa17
.
Ao longo do livro, o profeta costuma colocar-se de forma radical contra o
sistema social e a realidade cultual, uma vez que as suas acusaes principais
eram denncias abertas no s aos abusos e s violaes de responsabilidade dos
que cuidavam da organizao do culto, mas tambm aos exageros imorais dos que
participavam dos cultos18
.
O posicionamento do profeta Oseias, frente realidade social e religiosa do
Reino do Norte, encontra um paralelo com outros profetas: Isaas (cf. Is 5,8-9)19
,
Ams (cf. Am 2,6; 8,4-6)20
, Miqueias (cf. Mq 2,1-2.9)21
. Estes dirigem suas
acusaes s classes mais nobres, cujo comportamento econmico e social criava
injustias e pobreza em detrimento da maioria do povo. nessa poca que se
encontram nas palavras desses profetas expresses tpicas que indicam a categoria
15
Cf. K. NIELSEN, Yahweh as Prosecutor and Judge. An investigation of the prophetic lawsuit
(RbPattern), p. 23. 16
Cf. Cf. R. ALBERTZ, Storia della religione nellIsraele Antico. Dalle origini allet monarchica,
p. 257. 17
Cf. D. STUART, World Biblical Commentary Hosea-Jonah, vol. 31. Dallas-Texas: Word Books
Publisher, 1987, p. 6. 18
Cf. Cf. R. ALBERTZ, Storia della religione nellIsraele Antico. Dalle origini allet monarchica,
p. 277. 19
Cf. D. N. PREMINATH, Latifundialization and Isaiah 5,8-10. In: JSOT, 40 (1988), p. 49-60. 20
Cf. M. FENDLER, Zur Sozialkritik des Amos. Versuch einer wirtschafts und
sozialgeschichtlichen Interpretation altestamentlicher Texte. In: EvTh, 33 (1973), p. 32-53. 21
Cf. A. ALT, Micha 2,1-5. In: Kleine Schriften zur Geschichte des Volkes Israel. Munich: M.
Noth editor, 1959, p. 374.
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social dos fracos (cf. Am 2,7; Is 10,2), dos , ;pobres (cf. Jr 2,34 ,
Ez 16,49) e dos , mseros (cf. Am 2,7; Is 3,14; Jr 22,16)22.
Aps a estabilidade poltica, proporcionada pela longa vida de Jeroboo II,
Israel entrou em um perodo de caos poltico23
. Logo depois que esse monarca
morreu, o Reino do Norte caiu na anarquia. Vrios reis de Israel morreram
assassinados, cada um pela mo de seu sucessor. A fraqueza interna de Israel e a
ascenso poltico-econmica do reino assrio, que ganhou cada vez mais vigor sob
Teglat-Falasar III (745-727 a.C.) e seus sucessores Salmanaser V (727-722 a.C.) e
Sargo II (722-705 a.C.), selaram o destino do Reino do Norte.
Jeroboo II foi sucedido por seu filho Zacarias (753 a.C.) quase
imediatamente. No entanto, este foi derrubado pela mo de Salum, o que
determinou o fim da dinastia de Je (841-814 a.C.). Aps um ms, Salum foi
assassinado por Manam24
(752-742 a.C.), cujo ato mais notvel foi enviar mil
talentos de prata para Teglat-Falasar III, rei da Assria, em troca de apoio militar
por seu direito ao trono (cf. 2Rs 15,17-22). O filho de Manam, Faceias, sucedeu-
lhe, mas seu reinado tambm foi interrompido: Faceia, filho de Romelias, um alto
oficial militar, matou-o aps to somente dois anos de reinado (741-739 a.C)25
.
A cronologia do reinado de Faceia, no entanto, difcil de ser definida, pois,
em 2Rs 15,27, l-se que reinou durante vinte anos. Mas isso no seria possvel,
porque, se a data do incio do seu reinado for calculada por volta de 739 a.C.,
estar em contradio com o ano em que o prprio reinado terminou, ou seja, em
722 a.C.. Pode-se acreditar que o texto de 2Rs 15,27 tenha sido um erro de
escriba, ou que Faceia tenha liderado um governo rival comeando por volta de
752 a.C. e que, com o assassinato de Faceias, ele tenha-se tornado o nico
monarca. De qualquer forma, o seu reinado durou at cerca de 730 a.C..
Ao contrrio de Manam, Faceia era hostil ao imprio Assrio: Rason da
Sria formou uma coalizo destinada a resistir ao poder crescente da Assria26
.
22
Cf. R. ALBERTZ, Storia della religione nellIsraele Antico. Dalle origini allet monarchica, p.
257. 23
Cf. J. D. NOGALSKI, The Book of Twelve: Hosea Jonah. Macon Georgia: Smyth & Helwys,
2011, p. 23. 24
Cf. M. METZGER, Histria de Israel. So Leopoldo: Sinodal, 1984, p. 93. 25
Cf. K. NIELSEN, Yahweh as Prosecutor and Judge. An investigation of the prophetic lawsuit
(RbPattern), p. 23. 26
Cf. M. METZGER, Histria de Israel. So Leopoldo: Sinodal, 1984, p. 101-102.
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Joto, rei de Jud, se recusou a participar da coalizo, como fez o seu sucessor,
Acaz. Tal coalizo, chamada de siro-efraimita, no podia correr o risco de uma
fora hostil na sua retaguarda, no caso o Reino do Sul, de forma que o invadiu
com a inteno de substituir Acaz por Ben Tabeel, que exerceria o papel de um rei
fantoche (Is 7,6) 27
.
Acaz pediu ajuda a Teglat-Falasar para obter socorro, e o rei assrio atendeu
rapidamente ao apelo. Em seguida, o rei Oseias, filho de Ela, assassinou Faceias e
guardou a coroa para si mesmo. Ento salvou a Samaria de ser destruda por uma
submisso imediata Assria, mas ao mesmo tempo mantinha negociaes
secretas com o Egito como apoio contra a mesma Assria. Quando essa traio foi
descoberta, a Assria, sob o rei Salmanasar V, invadiu o Reino do Norte e levou
Oseias para o cativeiro, tendo a Samaria resistido por mais dois anos. Enquanto
isso, Salmanasar V morreu, e seu sucessor, Sargon II, completou a destruio da
capital de Israel28
. De acordo com registros assrios29
, 27.290 cidados israelitas
foram deportados para a Mesopotmia.
Em geral, no livro de Osias, descreve-se a situao poltica em queda aps
a morte de Jeroboo II como um momento catico em que reis se alternavam
rapidamente, interessados mais em reivindicar os benefcios do seu poder do que
em cuidar das necessidades do povo (cf. Os 7,3-7; 8,4; 10,3) 30
. Essa situao
acabou enfraquecendo a autoridade central do Estado e deixou campo aberto
Assria no seu plano de conquistar gradativamente todo o territrio da Samaria
(cf. 2Rs 15,29-30) at o golpe final (cf. 2Rs 17,5-6). Percebe-se, com bastante
clareza, quanto os orculos de Oseias conseguem apresentar o quadro bem
realstico da situao religiosa do Reino do Norte no contexto mais amplo da
situao poltica nacional e internacional do seu tempo31
.
27
Cf. K. NIELSEN, Yahweh as Prosecutor and Judge. An investigation of the prophetic lawsuit
(RbPattern), p. 23-24. 28
Cf. J. B. PRITCHARD (ed.), Ancient Near Eastern Text Relating to the Old Testament. Oxford:
Oxford University Press, 1950, p. 284. 29
Cf. H. TADMOR, The Campaigns of Sargon II of Assur: a Chronological-Historical Study. In:
Journal of Cuneiform Studies, 8 (1958), p. 22-41. 30
Cf. K. NIELSEN, Yahweh as Prosecutor and Judge. An investigation of the prophetic lawsuit
(RbPattern), p. 24. 31
Cf. G. BERNINI, Osea - Michea - Naum - Abacuc. Milano: Edizioni San Paolo, 1997, p. 17.
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Em suma, a denncia do profeta Oseias no seria uma anlise objetiva da
sociedade, mas sim uma tomada de posio em favor das camadas mais baixas do
povo que acabam empobrecendo cada vez mais por causa das polticas
econmicas manipuladas pela minoria rica32
. Contudo, se, por exemplo, em Isaas
(cf. Is 5,8-9), Ams (cf. Am 2,6; 8,4-6) ou Miquias (cf. Mq 2,1-2.9), as classes
dirigentes so alvo principal das crticas e denncias, em Oseias encontra-se uma
dplice crtica mesma instituio monrquica.
A primeira dessas crticas poltica, por motivo do envolvimento dessa
instituio no processo de desestabilizao do Estado; a segunda seria mais de
cunho teolgico, pois uma monarquia desse tipo no teria mais uma legitimao
divina, sendo ela mais um smbolo da apostasia completa de Israel para com
YHWH. Por esse motivo, segundo Oseias, juntamente com Ams e Miqueias,
essa instituio est em contradio com os valores do e da que
caracterizavam os primrdios da sociedade israelita, a qual agora se revela como
uma sociedade doente por causa dos mecanismos econmicos e jurdicos que
geram opresso e discriminaes no meio do povo33
.
Em Os 4,4, encontra-se uma crtica mais particular dirigida classe
sacerdotal e aos que cuidam do culto. Para ele no h dvida de que Israel cultua
Baal (cf. Os 2,15). Por conseguinte, encontra, nesse elemento religioso, mais uma
motivao que justificaria a acusao de apostasia de Israel em relao a YHWH
(cf. Os 4,1b)34
. Pode-se ento perceber uma denncia do profeta contra o perigo
de uma contaminao do culto a YHWH oriunda dos costumes religiosos dos
povos cananeus, com os quais Israel convivia h sculos, a qual poderia ser um
sinal concreto de sincretismo ideolgico e religioso35
.
A partir de Oseias, os baalim tornaram-se a imagem ou o smbolo religioso
do inimigo do qual a religio jahvista precisava se afastar para no trair sua
verdadeira identidade e no adquirir elementos que seriam inconciliveis com a
32
Cf. R. ALBERTZ, Storia della religione nellIsraele Antico. Dalle origini allet monarchica, p.
266. 33
Cf. R. ALBERTZ, Storia della religione nellIsraele Antico. Dalle origini allet monarchica, p.
268. 34
Cf. R. ALBERTZ, Storia della religione nellIsraele Antico. Dalle origini allet monarchica, p.
278. 35
Cf. H. SIMIAN-YOFRE, El desierto de ls dioses. Teologa e Histria en el libro de Oseas.
Cordoba: Ediciones El Almendro, 1992, p. 65.
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religio tradicional de Israel36
. O que acontece nos dois mbitos centrais da vida
pblica a poltica e o culto torna-se o alvo das denncias do profeta Oseias
contra todas as injustias cometidas em detrimento dos mais fracos, no querendo
incitar revoltas, mas dando voz quele anlito de libertao que, no passado, deu
vida religio jahvista37
.
H de se concluir, em ltima analise, que o que leva Oseias a condenar o
tipo de culto prprio da classe proftica e sacerdotal o fato de este manipular a
divindade para atender os prprios interesses. Em outras palavras, Oseias est
profundamente preocupado com a atitude que se esconde por trs do culto a Baal,
a qual revela em si o objetivo de dobrar YHWH prpria vontade. Por isso,
justifica-se o afastamento radical de Oseias dessa tradio religiosa mais do que
Isaas, Ams e Miqueias38
.
Entre os profetas do corpus do Dodekapropheton, Oseias se sobressai por
causa de sua personalidade. Ele no tem medo de se confrontar com os seus
contemporneos e com toda a situao social e cultual do seu tempo. Isso se deve
sua sensibilidade e s dolorosas experincias familiares que moldaram nele uma
personalidade capaz de entender, melhor do que qualquer outro profeta, a angstia
do corao de YHWH39
.
2.2 Origem e redao do livro
2.2.1 Consideraes literrias
largamente aceito que o livro de Oseias provm de sermes do profeta,
entretanto h quem defenda a teoria de que o texto seria fruto de uma coletnea de
36
Cf. R. ALBERTZ, Storia della religione nellIsraele Antico. Dalle origini allet monarchica, p.
281. 37
Cf. R. ALBERTZ, Storia della religione nellIsraele Antico. Dalle origini allet monarchica, p.
267. 38
Cf. R. ALBERTZ, Storia della religione nellIsraele Antico. Dalle origini allet monarchica, p.
282. 39
Cf. J. LIMBURG, I dodici profeti. Parte prima: Osea, Gioele, Amos Abdia, Giona, Michea, p. 22.
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orculos recolhidos por um grupo de discpulos do mesmo Oseias40
. Em alguns
casos, possvel admitir a presena de escribas ou profetas na composio do
texto (cf. Jr 36); em outros (cf. Os 4,15; 5,5.10.12-14; 6,4.11; 8,14; 10,11; 12,1-3),
possvel perceber a mo do profeta41
.
No tocante ao livro de Oseias, preciso reconhecer que o texto
notoriamente difcil de ser analisado. Na maioria dos casos, apresenta-se como
uma srie de fragmentos de no fcil interpretao42
, que levantam uma
quantidade considervel de problemas textuais nica no AT exceo feita ao
livro de J. O fato de o livro de Oseias ter passado por recenses e ter sofrido
desenvolvimentos, inclusive glosas, pode ser um elemento que justifica ainda
mais tal quantidade de problemas textuais43
.
Por isso, prefervel abordar o livro de Oseias mais como obra literria, um
todo complexo, do que uma antologia de diversas partes separadas, a fim de obter
uma compreenso maior e mais integrada da mensagem do profeta44
. Tal
compreenso evita que se pense que o texto em si seja o resultado final de um
longo processo de acrscimos e reelaboraes45
.
Alm do material atribudo tradicionalmente a Osias, preciso levar em
considerao as camadas redacionais e as releituras que foram se inserindo ao
longo do tempo at a redao final46
. H quem sustente que o livro teria assumido
sua forma no Reino do Sul, para onde teria sido levado aps a destruio da
Samaria em 722 a.C. (ou na iminncia desse fato), constituindo a sua forma
textual j no perodo pr-exlico47
.
40
Cf. J. L. MAYS, Hosea. A Commentary, p. 16; B. W. ANDERSON, Understanding the Old
Testament. Englewood CliffsN.J.: PrenticeHall. 1975, p. 284; H. W. WOLFF, Hosea.
Philadelphia: Fortress Press, 1974, p. xxix-xxxii; F. I. ANDERSEN, D. N. FREEDMAN, Hosea.
Garden City: Doubleday, 1980, p. 53. 41
Cf. D. A. GARRETT, The New American Commentary-Hosea-Joel. Vol. 9. Nashville-Tennessee:
B&H Publishing Group, 1997, p. 24; O. EISSFELD, Einleitung in das Alten Testament. Nachdruck:
Hildesheim, 1965, p. 519. 42
Cf. K. NIELSEN, Yahweh as Prosecutor and Judge. An investigation of the prophetic lawsuit
(RbPattern). p. 6-7. 43
Cf. D. STUART, World Biblical Commentary Hosea-Jonah, p. 13. 44
Cf. J. JEREMIAS, Osea. Brescia: Paideia, 2000, p. 7. 45
Cf. H. SIMIAN-YOFRE, El desierto de los dioses. Teologa e histria en el libro de Oseas, p. 262. 46
Cf. N. K. GOTTWALD, Introduo Socioliterria Bblia Hebraica. So Paulo: Paulus, 1988, p.
340. 47
Cf. R. MARTINACHARD, Oseias. In: S. AMLER, Os profetas e os livros profticos. So Paulo:
Paulinas, 1992, p.7.
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Entretanto, h evidncias de que os textos profticos sofreram modificaes
tambm no perodo do exlio babilnico, quando foram reorganizados num nico
grande complexo pelos israelitas, que buscavam entender o significado dos
sofrimentos de Jud48
. H ainda de se considerar o fato de Oseias ter sido o nico
profeta oriundo do Reino do Norte, o que faz com que no haja muitos pontos de
comparao com outros profetas que operaram no mesmo contexto, ou seja, pode-
se pensar que o fenmeno literrio de Oseias seja nico no seu gnero. Portanto,
no h como distinguir entre o que faz parte do perfil especfico da sua mensagem
e o que, no sentido geral, fruto da temtica, do estilo e da tradio proftica49
.
Outro elemento que se h de considerar importante o momento em que os
orculos passaram a ser escritos, tornando quase inevitveis acrscimos e
mudanas 50
. O encontro da tradio proftica advinda do ambiente do Reino do
Norte com as tradies do ambiente de Jud, que acolheu os refugiados aps a
derrota da Samaria, permitiu estruturar a compilao da mensagem e da narrativa
dos profetas luz da situao de Jud-Jerusalm, inclusive a mensagem de Oseias
que pertenceria s ultimas dcadas do Reino do Norte51
.
provvel que tanto o texto de Oseias quanto o texto de Amos, cujos
orculos foram pronunciados no Reino do Norte, tenham sido relidos luz do
contexto do Reino do Sul, que no apresentava uma situao muito diferente
daquela da Samaria depois que esta sofreu a derrota da Assria. Por esse mesmo
contexto, percebe-se como as palavras de Oseias acabaram por se tornar bem
atuais tambm para Jerusalm52
.
48
Cf. W. R. HARPER, A critical and exegetical commentary on Amos and Hosea. Edinburgh: T. &
T. Clark, 1905, p. 378. 49
Cf. G. VON RAD, Teologia do Antigo Testamento. So Paulo: Aste/Targumin, 20062, p. 569.
50 Cf. M. SCHWANTES, As monarquias no antigo Israel. Um roteiro de pesquisa histrica e
arqueolgica. So Paulo: Paulinas, 2006, p. 147. 51
Cf. A. H. J. GUNNEWEG, Histria de Israel Dos primordios at Bar Kochba e de Theodor
Herzl at os nossos dias. So Paulo: Teolgica/Loyola, 2005, p. 187. 52
Cf. A. A. MACINTOSH, Hosea. A critical and exegetical commentary, p. xxi.
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2.2.2 As tradies poltico-religiosas do ambiente do
Reino do Norte
Uma das observaes mais consistentes entre os estudiosos, no que diz
respeito histria da redao do livro de Oseias, est relacionada s tradies do
Reino do Norte. diferena dos demais profetas do perodo pr-exlico, Oseias
trata por extenso das tradies do Norte, especialmente as que esto relacionadas a
Jac (cf. Os 12,3-5.13), experincia do xodo (cf. Os 11,1; Os 12,10-14; Os
13,4) e ao deserto (cf. Os 9,10; Os 13,4), em vez de tratar daquelas que esto
relacionadas a Sio e Davi. Por se tratar de tradies que aparecem de forma
fragmentria, o debate sobre as origens dessas tradies ainda est vivo entre os
estudiosos, sobretudo em relao s questes sobre a procedncia, ou seja, como
Oseias poderia ter conhecido tais tradies e a funo que assumem para o livro.
Por um lado, alguns53
priorizam uma leitura intertextual e literria dessas
tradies; por outro, h os que sustentam a tese de que tais tradies j teriam
alcanado uma forma prpria bem antes da poca de Oseias54
. H outros, ainda,
que consideram que o profeta derivasse seu conhecimento das tradies de
recitao oral, advindo de cenrios cultuais diversos, talvez em forma de lendas
sagradas guardadas e transmitidas pela tradio cultual dos santurios do Norte,
por exemplo, o santurio de Betel55
.
A posio que justifica uma estruturao bsica das tradies antes da poca
de Oseias, embora de maneira diferente das que foram preservadas mais tarde
concernentes ao Pentateuco, parece se sobressair com uma nfase maior entre os
estudos cientficos sobre esse tema.
Houve tambm uma srie de estudos em relao s tradies especficas
presentes nos orculos de Oseias. As tradies que mais tm chamado a ateno
53
Cf. I. WILLY-PLEIN, Vorformen der Schriftexegese innerhalb des Alten Testaments:
Untersuchungen zum literarischen Werden der auf Amos, Hosea und Micha zurckgeheaden
Bcher im hebrischen Zwlfprophetenbuch. Berlin: W. de Gruyter, 1971, p. 123; M.A. SWEENEY,
A Form-Critical Rereading of Hosea. In: JHS, 2(2000), p. 1-16. 54
Cf. D. A. GARRETT, Hosea, Joel, p. 369; Cf. D. STUART, World Biblical Commentary Hosea-
Jonah, p. 232-233. 55
Cf. H. W. WOLFF, Hoseia, p. xxiii; D. R. DANIELS, Hosea and Salvation History: The Early
Traditions of Israel in the Prophecy of Hosea. In: BZAW, 191 (1990), p. 191; G. I. DAVIES,
Hosea, p. 70-72; E. K. HOLT, Prophesying the Past: The Use of Israels History in the Book of
Hosea. In: JSOTSupp, (1995), p. 194.
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dos estudiosos e que poderiam ser consideradas em relao estruturao e
natureza do livro de Oseias so as seguintes: (a) tradies ligadas ao livro do
xodo, a permanncia no deserto e a caminhada do povo de Israel (cf. Ex 9,10-17;
10,1-2; 11,1-7)56
; (b) tradies ligadas experincia do Horeb/Sinai, da
Aliana/Declogo (cf. Ex 4,2; 6,7; 8,1.4-6)57
; (c) tradies ligadas ao ambiente
levtico-sacerdotal (cf. Lv 5,14-15; 6,11-7,1; 9,14)58
, tradies sapienciais (cf. Sb
4,15; 5,12; 8,7)59
; (d) tradies do Cntico dos Cnticos60
.
Em muitas obras, encontra-se entre os estudiosos um interesse maior nas
tradies concernentes a Jac, ao Deuteronmio e a Jeremias, no que diz respeito
s caractersticas consideradas como nicas61
. Assim, essas reas de investigao
giram em torno da origem das tradies sobre Jac em Oseias com nfase nas
funes para as quais o texto as emprega. A partir da metade do sculo XX,
registrou-se uma mudana de pensamento no que concerne ateno dada s
tradies orais sobre Jac62
.
56
Cf. tambm: Ex 12,10; Ex 13,4-8. Tais tradies so justificadas por: H. W. WOLFF, Hoseia, p.
34; U. CASSUTO, The Prophet Hosea and the Books of the Pentateuch. Biblical and Oriental
Studies. Selected Writings. Vol. 1. Jerusalem: Magnes, 1973, p.79-100; C. S. JIMENEZ, El Desierto
en el profeta Oseas. Estella: Verbo Divino, 2006, p. 45; G. R. BOUDREAU, Hosea and the
Pentateuchal Traditions: The Case of the Baal of Peor.
In: M. P. GRAHAM, W. BROWN, J. K. KUAN (eds.), History and Interpretation: Essays in Honour
of John H. Hayes. In: JSOTSup, 173 (1993), p. 121-32; T. B DOZEMAN, Hosea and the
Wilderness Wandering Tradition. In: S. L. MCKENZIE, T. ROMER (eds.), Rethinking the
Foundations: Historiography in the Ancient World and in the Bible: Essays in honour of John Van
Seters. In: BZAW, 294 (2000), p. 55-70. 57
Cf. tambm: Ex 10,4; 12,2; 13,1-4. Essas tradies so justificadas por: W. BRUEGGEMANN,
Tradition for Crisis: A Study in Hosea. Richmond: John Knox Press, 1968, p.14; Cf. D. STUART,
World Biblical Commentary Hosea-Jonah, p. 98-99. 58
Cf. H. W. WOLFF, Hoseas geistige Heimat. In: TLZ, 81 (1956), p. 83-94; S. L. COOK, The
lineage Roots of Hoseass Yahwism. In: Semeia, 87 (1999), p. 145-161. 59
Cf. tambm: Sb 12,8-9; 14,17. Tradies justificadas por: H. W. WOLFF, Hoseia, p. xxiv;
C. L. SEOW, Hosea 14,10 and the Foolish People Motif. In: CBQ, 44 (1982), p. 212-24; C. L.
SEOW, Hosea, Book of. In: ABD, 3 (1992), p. 291-97. 60
Cf. A. VAN SELMS, Hosea and Canticles. In: OTWSA, 7/8 (1964-1965), p. 85-89;
F. VAN DIJK-HEMMES, The Imagination of Power and the Power of Imagination: An ntertextual
analysis of two biblical love songs: the Song of Songs and Hosea 2. In: JSOT, 44 (1989), p. 75-
88; M. J. BUSS, Hosea as a Canonical Problem: with attention to the Song of Songs. In: S. B. REID
(ed.), Prophets and Paradigms: Essays in Honor of Gene M. Tucker. In: JSOTSup, 229 (1996), p.
79-93. 61
Cf. P. R. ACKROYD, Hosea and Jacob. In: VT, 13 (1963), p. 245-59; E. M. GOOD, Hosea and
the Jacob Tradition. In: VT, 16 (1966), p. 137-51; F. DIEDRICH, Die Anspielungen auf die Jakob
-Tradition in Hosea 12,113,3e. Literaturwissenschaftlicher Beitrag zur Exegese frher Propheten
Texte. In: EB, 27 (1977); W. D. WHITT, The Jacob Traditions in Hosea and Their Relation to
Genesis. In: ZAW, 103 (1991), p. 18-43; B. J. KOET, Jacob, comme prototype dIsrael en Osee
12. In: IJPT, 63 (2002), p. 156-70. 62
Cf. E. M. GOOD, Hosea and the Jacob Tradition, p. 139.
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As pesquisas comearam a dar um valor maior a tais tradies mais do que
s tradies preservadas em Gneses, pelo fato de ser mais extensas e diversas ou
at mesmo querendo partilhar de uma fonte comum s tradies do Pentateuco
que parece se adaptar a Oseias de diversas maneiras63
. A relao de Oseias com as
tradies deuteronomistas e com o ambiente cultural do Reino do Norte abrange
tambm questes de linguagem teolgica, tais como a eleio (cf. Dt 4,37; 7,6-8;
Os 9,10; 11,1) e o convite ao arrependimento/retorno a YHWH (cf. Dt 4,29-31;
30,1-10; Os 6,1-3; 14,2-3).
A procedncia do Reino do Norte e a partilha da tradio comum entre o
material deuteronomista e o livro de Oseias fornecem um ponto de partida comum
para explicar tais semelhanas, mesmo que a pesquisa moderna permanea
dividida sobre a natureza precisa da relao entre tais livros, pois ainda h de se
debater sobre as origens e a composio do Deuteronmio, bem como a tradio
deuteronomista64
.
Alguns trabalhos recentes reconhecem certa primazia da tradio
deuteronomista como fonte direta para Oseias ou a possibilidade do livro ter sido
obra de um redator nico durante a poca de Josias65
, mas h estudiosos que
apoiam a perspectiva que tem sido dominante desde a poca de Wellhausen66
, isto
, a de que os livros de Oseias e do Deuteronmio no apresentariam
dependncias literrias diretas, mas ambos recorreriam a uma corrente maior de
tradies originrias do Reino do Norte. Nessa perspectiva, possvel acreditar
que o profeta Oseias se aproximaria mais desse fluxo de tradies do Reino do
Norte do que da tradio deuteronomista, oferecendo uma reformulao das
primeiras que, em seguida, poderiam ter favorecido o surgimento do contexto
teolgico de obras posteriores67
.
63
Cf. H. L. GINSBERG, Hoseas Ephraim: more fool than knave: a new interpretation of Hosea
12,1-14. In: JBL, 80 (1961), p. 339-47; W. D. WHITT, Hosea and the Jacob Tradition, p. 35. 64
Cf. B. E. KELLE, Hosea 414 in Twentieth-Century Scholarship. In: CBR, 8.3 (2010), p. 326. 65
Cf. G. A. YEE, Composition and Tradition in the Book of Hosea: A Redaction Critical
Investigation. Atlanta: Scholars Press SBLDS, 1987, p. 309; D. STUART, World Biblical
Commentary Hosea-Jonah, p. 98-99. 66
Cf. J. G. MCCONVILLE, Law and Theology in Deuteronomy. In: JSOTSup, 33 (1984), p. 125. 67
Cf. J. L. MAYS, Hosea. A Commentary, p. 52; F. I. ANDERSEN, D. N. FREEDMAN, Hosea. Garden
City: Doubleday, 1980, p. 75; M. J. BUSS, The Prophetic Word of Hosea. In: BZAW, 111
(1969), p. 125. G. I. DAVIES, Hosea. OTG. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1993, p. 163.
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Pesquisas mais recentes argumentam que o livro de Oseias usaria elementos
tanto da tradio deuteronomista como do Reino do Norte com o intuito de criar
uma ciso entre o passado e o presente de Israel68
, a fim de demonstrar a
constncia do amor de YHWH por Israel, o que, portanto, seria incentivo para
despertar no povo o arrependimento e a converso69
.
Procedendo da convico mais ampla de que o profeta Oseias teria herdado
uma compreenso coerente do incio da histria de Israel, assim como se
articulava nos crculos sacerdotais, foram-se examinando diversas passagens
particulares70
para justificar que tais tradies j existiam no Pentateuco e que
aquelas presentes em Oseias, como parte integrante da sua mensagem, poderiam
ter sido sintetizadas dentro de uma compreenso coerente a partir do incio da
histria de Israel71
.
Mais recentemente foi aceita a hiptese de que o profeta Oseias teria
herdado de tradies locais, orais e cultuais, os elementos bsicos do livro, de
maneira que este preservaria a forma mais antiga de composio a partir desse
rico repertrio72
.
A viso teolgica que procede dessa interpretao deixa entrever certa
proximidade das tradies acerca de Jac, a partir de referncias especficas no
livro de Oseias (cf. Os 12,3-7; 12,13-14), incluindo tambm as representaes de
Israel como rebelde (cf. Os 6,7; 8,1; 9,10-17; 10,11-13; 11,1; 13,4-8), e poderia
demonstrar o fato de que o profeta usaria dessas tradies para fazer valer a
exclusividade da reivindicao de YHWH sobre Israel. Isso explicaria o porqu
do uso que o profeta Oseias faz das tradies que enfatizam o lao de
reciprocidade entre YHWH e Israel, isto , o cuidado do mesmo YHWH para com
o seu povo73
.
68
Cf. J. VOLLMER, Geschichtliche Rckblicke und Motive in der Prophetie des Amos, Hosea,
und Jesaja. In: BZAW, 119 (1971), p. 254. 69
Cf. H. D. NEEF, Die heilstraditionen Israels in der verkundigung des Propheten Hosea. In:
BZAW, 169 (1987), p. 178. 70
Cf. Os 2,16-25; 6,7-10; 8,1-3; 9,10-13; 11, 1-7; 12,3-15; 13,4-8. 71
Cf. D. R. DANIELS, Hosea and Salvation History: The Early Traditions of Israel in the Prophecy
of Hosea, p. 123-4. 72
Cf. E. K. HOLT, Prophesying the Past: the use of Israels history in the Book of Hosea. In:
JSOTSup, 194 (1995), p. 95. 73
Cf. B. E. KELLE, Hosea 414 in Twentieth-Century Scholarship, p. 328.
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2.2.3 Hipteses redacionais
Consoante o exame dos contedos herdados e trazidos composio do
livro de Oseias, vrias questes redacionais envolveram-se no estudo dessa obra
literria. Um motivo que animou as anlises da crtica da redao sobre o livro de
Oseias, no passado, foi a observao de que essa obra literria parece ser
constituda por duas partes por vezes desconexas entre si: Os 13 e Os 414.
Entre os exegetas, h quem sustente a posio de que a atual forma do livro
conteria os orculos de dois profetas diferentes que viveram em pocas distintas74
.
Alm disso, a natureza desarticulada dos contedos de Os 414 deixa
entrever um trabalho que se assemelha a fruto de diversas mos, que se alternaram
na formao do livro, ao longo do tempo, a partir da contribuio do material
vindo do Reino do Norte e que se sucederam no tempo at o sculo VIII,
culminando no ambiente temporal de Oseias75
.
Entre os anos 1980 - 1990, prevaleceu a posio que apontava para uma
origem do livro a partir de trs blocos ou complexos de transmisso: (a) Os 13;
(b) Os 411; (c) Os 1214. Tais blocos seriam o resultado de um processo de
desenvolvimento independente um do outro e teriam sido ajuntados em poca
posterior. Cada um desses blocos, contendo uma mistura de palavras originais
tpicas do ambiente de Oseias e acrscimos posteriores, teria sido estruturado de
maneira a mudar o tom de acusao presente na verso original para um tom mais
de restaurao76
.
Particular ateno prestava-se ao material redacional presente em Os 414,
pois neste poderia ser encontrada uma quantidade significativa de orculos
considerados como originais de Oseias, estruturados de uma maneira
aproximadamente cronolgica. Contudo, mesmo que o material contido nesses
trs complexos de transmisso tenha sido colocado por escrito enquanto Oseias
74
Cf. Y. KAUFMANN, The Religion of Israel: from its beginnings to the Babylonian exile. London:
George Allen and Unwin; 1961, p. 56; H. L. GINSBERG, Hosea, In: EncJud, 8 (1971), p. 1010-
1024. 75
Cf. B. E. KELLE, Hosea 414 in Twentieth-Century Scholarship, p. 328. 76
Cf. H. W. WOLFF, Hosea, p. xxxi.
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30
ainda estava em vida, no teria alcanado a sua forma final a no ser s muito
tempo depois77
.
Aps o ano de 1980, outras pesquisas se propuseram a recuperar expresses
tpicas de Oseias, distinguindo-as das expresses do ambiente judaico, j que o
destaque das mudanas redacionais que afetaram as colees dos orculos de
Oseias a partir do contexto cultural do Reino do Sul pode ajudar a identificar essas
atividades editoriais em vrios nveis da histria da composio do texto78
.
Quando, por volta de 1970, percebeu-se a necessidade de reconsiderar o
valor das assim chamadas partes no autnticas do livro de Oseias, principiou-
se por estabelecer o objetivo global do livro, considerando principalmente o papel
dos elementos redacionais como parte de um todo. Foram assim identificados oito
grupos de orculos, que redatores de vrias pocas haviam acrescentado ao longo
do tempo a um texto primitivo do livro. Chegou-se concluso de que tais
orculos poderiam ser considerados como acrscimos interpretativos com a
funo de interagir com o contexto geral e com o objetivo de produzir uma viso
integrada da composio final do texto79
.
Outras consideraes, no que tange gnese do livro de Oseias, ocorreram a
partir do momento em que mudou o fim do debate, o qual passou do interesse
sobre a integrao interna do diverso material redacional a uma ateno maior
sobre a intencionalidade e a coerncia da composio final alcanada, mediante
uma redao sistemtica e compreensiva dos diversos nveis do material80
. Esse
debate necessitou de uma insero das dinmicas sociais e ideolgicas, bem como
das circunstncias e das finalidades que levaram constituio do texto.
Mostra-se razovel a ideia de um processo redacional em que os orculos
contidos em Os 414 possam ser considerados de autoria do profeta Oseias,
mesmo que tenham passado por mudanas feitas pelas mos dos discpulos do
profeta at alcanar sua forma final somente durante a poca do exlio. Esse
77
Cf. B. E. KELLE, Hosea 4-14 in Twentieth-Century Scholarship, p. 329. 78
Cf. H. FREY, Das Buch des Werbens Gottes um seine Kirche: Der Prophet Hosea. In: BAT, 23
(1957), p. 2; E. M. GOOD, Hosea and the Jacob Tradition, p. 146; J. L. MAYS, Hosea. A
Commentary, p. 12. 79
Cf. I. WILLI-PLEIN, Vorformen der Schriftexegese innerhalb des Alten Testaments:
Untersuchungen zum literarischen Werden der auf Amos, Hosea und Micha zurckgeheaden
Bcher im hebrischen Zwlfprophetenbuch. In: BZAW, 123 (1971), p. 136. 80
Cf. B. E. KELLE, Hosea 414 in Twentieth-Century Scholarship, p. 330.
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processo pode ser considerado como um todo coerente em si mesmo e no como
uma miscelnea desorganizada de material procedente de vrias tradies81
.
H pesquisadores que conseguiram desenvolver uma viso mais abrangente
e completa em relao integrao intencional do material redacional original no
livro de Oseias82
. A utilizao de critrios teolgicos, histricos e lingusticos,
sobretudo em relao ao ambiente cultual de Jud-Jerusalm e s atitudes quanto
ao Reino do Norte, permitiu a identificao de material redacional associado ao
trabalho de reelaborao do material original feito na poca judaica com a
tradio deuteronomista da poca de Josias83
.
Dessa maneira, seria possvel considerar a integrao do material redacional
advindo de diversas tradies no livro como num todo, aproveitando a
oportunidade para perceber que o material de tradio judaica, que veio a se
sobrepor ao material original, no se limitaria a apresentar a mensagem do profeta
em si, mas reelaboraria propositadamente o material geral em funo de uma nova
situao84
.
Em outras abordagens crticas, com o uso de alguns dos mesmos critrios,
foi identificado o material redacional relacionado a quatro estgios redacionais
distribudos ao longo de um perodo entre o prprio profeta Oseias, do sculo
VIII, at um redator final provavelmente do perodo exlico. Contudo, essa viso
levaria a entender a redao final do livro no como uma obra de simples
colecionadores, acrescentando material novo ou introduzindo glosas, mas como
uma nova obra literria a cada redao, em conformidade com os objetivos do
redator85
.
Por outro lado, no haveria razo para apoiar tal processo redacional, pois
h motivos para justificar como vlida a posio de quem, entre os exegetas,
81
Cf. F. I. ANDERSEN, D. N. FREEDMAN, Hosea, p. 66. De uma perspective mais conservadora
revelam-se: D. STUART, World Biblical Commentary Hosea-Jonah, p. 28; D. A. HUBBARD,
Hosea: An Introduction and Commentary. Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1989, p.
22. 82
Cf. G. I. EMMERSON, Hosea: An Israelite Prophet in Judean Perspective. In: JSOTSup, 28
(1984), p. 9-20; Cf. G. A. YEE, Composition and Tradition in the Book of Hosea: A Redaction
Critical Investigation, p. 45. 83
Cf. B. E. KELLE, Hosea 414 in Twentieth-Century Scholarship, p. 330. 84
Cf. G. I. EMMERSON, Hosea: An Israelite Prophet in Judean Perspective, p. 18-19. 85
Cf. G. A. YEE, Composition and Tradition in the Book of Hosea: A Redaction Critical
Investigation, p. 48.
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percebe a presena de unidade de estilo e de teologia que leva necessariamente a
reconhecer a presena de um nico redator que respeitou o estilo do profeta
Oseias, emprestando, de certa maneira, a sua prpria voz86
.
Enquanto obras mais recentes tm sustentado a teoria de que haveria pouco
ou at nenhum material de importncia secundria no livro de Oseias87
, a maioria
das pesquisas publicadas a partir de 1990 aceita a presena de grande quantidade
de material editorial, mas que mesmo assim teria sido cuidadosamente integrado
dentro de uma composio unitria e planejada88
.
A diferena principal entre os estudos mais recentes tem a ver com a nfase
dada apresentao dos detalhes, ao carter e procedncia das diversas camadas
redacionais e o seu processo de desenvolvimento, juntamente a ateno dada s
dinmicas e s finalidades do trabalho de redao final89
.
Destacando questes como o processo de composio, de mudanas, de
redao, bem como as circunstncias e os objetivos pelos quais o livro foi escrito,
percebem-se ainda divergncias sobre o assunto. Contudo, devem-se considerar as
duas posies que tm sido objeto de discordncia sobre as transformaes que o
material original sofreu.
Por um lado, h aqueles que defendem a opinio de que existe a
possibilidade de que o material redacional tenha passado por transformaes antes
de ser levado para Jud-Jerusalm. Aps a queda do Reino do Norte, uma coleo
dos orculos de Oseias teria sido levada para o Reino do Sul e reelaborada
sucessivamente, passando ao menos por duas redaes90
. S durante a ltima
parte do exlio ou no primeiro perodo ps-exlico, essa coleo teria alcanado
sua forma final como sntese das vrias colees que conseguiram chegar at
ento91
. Por outro lado, h quem defenda a posio de que o livro teria sido o
resultado de um trabalho de redao de poca exlica ou ps-exlica, em que o
86
H. SIMIAN-YOFRE, El desierto de los dioses. Teologa e Histria en el libro de Oseas, p. 262. 87
Cf. D. A. GARRETT, Hosea-Joel, p. 25; W. GISIN, Hosea: Ein literarisches Netzwerk beweist
seine Authentizitt. In: BBB, 139 (2002), p. 374-376. 88
Cf. M. W. MITCHELL, Hosea 12 and the Search for Unity. In: JSOT, 29 (2004), p. 115-27. 89
Cf. B. E. KELLE, Hosea 414 in Twentieth-Century Scholarship, p. 331. 90
Cf. H. W. WOLFF, Hosea, p. xxxii. 91
Cf. T. NAUMANN, Hoseas Erben: Strukturen der nachinterpretation im Buch Hosea. In:
BWANT, 131 (1991), p. 39-40; Cf. A. A. MACINTOSH, Hosea. A critical and exegetical
commentary, p. lxxii; M. A. SWEENEY, Berit Olam. The Twelve Prophets. Vol. 1. Collegeville,
MN: Liturgical, 2000, p. 7.
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redator teria utilizado um material anterior para criar um texto completo e
coerente em si de uma vez s92
.
Os que se concentraram sobre o desenvolvimento do material de Os 411
demonstraram certo interesse, pois perceberam que esse material poderia ser
considerado como um conjunto de orculos passando por um processo redacional,
em cujo final o trabalho obtido seria parecido a uma colcha de retalhos,
composta por diversos estilos, formas e partes dissonantes93
.
Admitindo uma diversidade de opinies sobre o produto final do processo
de redao do livro de Oseias, pode-se chegar concluso de que o
remanejamento do material redacional por parte dos redatores, em cada fase do
desenvolvimento do texto, pode ter acontecido dentro dos moldes de um plano de
composio tal, que seria difcil distinguir o material original do material que foi
acrescentado entre as camadas redacionais94
.
Uma tendncia relativamente recente da crtica das redaes tem-se
debruado de maneira especial sobre algumas sees do livro de Oseias, no
tocante a Os 4,19,9 ou Os 5,88,14, ou at mesmo elementos literrios
especficos ou verbais, como, por exemplo, o nome de quem pronuncia um
discurso ou de quem o acolhe ou, mais ainda, o nome do lugar de acontecimentos,
para melhor entender o modo como se sucederam as etapas de desenvolvimento
da histria da composio do livro95
.
Outra teoria considera a seo de Os 49 como sendo um ncleo composto
por orculos96
considerados originais, ao qual se foram juntando camadas
redacionais, tanto dentro quanto fora dessa seo. Originalmente Os 49
conteriam as preocupaes do profeta com assuntos de carter poltico, tendo sido
mais tarde includos o culto e as retrospectivas histricas97
.
92
Cf. E. BEN ZVI, Hosea. Grand Rapids: Eerdmans, 2005, p. 17; M. NISSINEN, Prophetie,
Redaktion und Fortschreibung im Hoseabuch: Studien zum Werdegang eines Prophetenbuches im
Lichte von Hos 4 und 11. In: AOAT, 231 (1991), p. 330-337. 93
Cf. M. NISSINEN, Prophetie, Redaktion und Fortschreibung im Hoseabuch: Studien zum
Werdegang eines Prophetenbuches im Lichte von Hos 4 und 11, p. 336. 94
Cf. T. NAUMANN, Hoseas Erben: Strukturen der nachinterpretation im Buch Hosea, p. 39-40. 95
Cf. M. MULZER, Alarm fr Benjamin. Text, Struktur und Bedeutung in Hos 5,88,14. Arbeiten
zu Text und Sprache im Alten Testament. St. Ottilien: EOS-Verl, 2003, p. 74; W. SCHTTE, Die
Entstehung der juda-exilischen Hoseaschrift. In: Bib, 85 (2014), p. 198-223. 96
Destacam-se de maneira especial: Os 5,1-2; 6,77,2; 7,3-7 e Os 812. 97
Cf. R. VIELHAUER, Das Werden des Buches Hosea: Eine Redaktionsgeschichtliche
Untersuchung. In: BZAW, 349 (2007), p. 225-229.
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Promovem certo interesse tambm as orientaes crticas sobre o processo
redacional do livro de Oseias, visto que se concentram sobre as circunstncias e os
propsitos que levaram composio do livro98
. Essa linha de estudo, mesmo
reconhecendo no livro de Oseias a presena de materiais posteriores poca do
profeta sobretudo aqueles que se referem ao contexto de Jud-Jerusalm ,
refora que o mesmo Oseias, retirando-se vida privada por volta de 733 a.C.,
teria trabalhado e expandido os seus prprios orculos pblicos dentro da seo
Os 414. Dessa forma, o livro poderia ser uma obra literria que teria sido
completada antes de ser levada para Jud, depois da queda do Reino do Norte99
.
Por outro lado, seria possvel pensar em abordar o livro de Oseias como uma
unidade literria autnoma, mais do que uma combinao de tradies e materiais
redacionais diversos, devendo identificar possveis autores e redatores100
.
Estudos especficos, porm, chamaram a ateno sobre o material redacional
mais antigo, que teria sido reelaborado para constituir um texto organicamente
unitrio s na poca ps-monrquica de Je por obra de escribas. Estes teriam
acrescentado ao material redacional recebido a figura de um personagem
proftico, antigo, a fim de criar uma obra de autoridade, concebida para ser lida
como Palavra de YHWH101
.
Diante dessa variedade de posies crticas quanto gnese do livro de
Oseias, difcil dizer qual deveria ser a resposta acertada, considerando que o
processo de reconstruo histrica de um texto tanto mais complicada quanto
maior o tempo que separa o autor do material do redator, como tambm o
redator do leitor final, pois esse ltimo olhar que se tem no momento. Talvez o
objetivo no seja, de fato, procurar saber qual das posies apresentadas a que
mais se aproxima da verdade. Talvez seja mais oportuno procurar entender, por
meio da reconstruo do processo redacional, qual a mensagem que o profeta quis
transmitir, bem como o que ela significa para o contexto atual.
Ao abordar tal mensagem, ser inevitvel no pensar que est pronta a fazer
parte do processo histrico da sua compreenso que se estende enquanto se busca
98
Cf. B. E. KELLE, Hosea 414 in Twentieth-Century Scholarship, p. 332. 99
Cf. A. A. MACINTOSH, Hosea. A critical and exegetical commentary, p. lxvi-lxxiii. 100
Cf. E. BEN ZVI, Hosea, p. 4. 101
Cf. J. TROTTER, Reading Hosea in Achaemenid Yehud. In: JSOTSup, 328 (2001), p. 167-178.
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a comunicao e se esbarra na reciprocidade do dilogo espontneo e certo entre
humanos que compreendem a notcia divina.
2.3 Estrutura do livro
Geralmente no h um parecer comum em relao estrutura do livro. Em
certos casos, tem-se procurado respeitar a unidade interna da obra em si, tentando
recuperar unidades textuais amplas e excluindo a escolha de dividi-las para
interpret-las102
.
Na maioria das vezes, percebe-se o livro de Oseias dividido em trs grandes
partes103
. A primeira delas (cf. Os 1,23,5) narra o casamento de Oseias seguido
do nascimento de seus filhos e traz orculos do profeta. Nessa parte, possvel
entrever a experincia do casamento como paradigma do relacionamento entre
YHWH e Israel. Houve uma diviso da primeira parte (cf. Os 13), segundo trs
nveis de leitura: biogrfico-teolgico, histrico e mtico-religioso. Tal diviso
no foi considerada como que uma subdiviso de Os 13, mas a tentativa de
apresentar como o profeta quis reler a prpria vida luz de novos acontecimentos
pessoais ou pblicos.
A segunda parte (cf. Os 4,111,11) aparece como uma coletnea de orculos
profticos: a mensagem do profeta Oseias articula-se ao redor do tema do juzo
contra Israel e conclui-se com o clamor apaixonado de YHWH, que parece
demonstrar sua incapacidade de exterminar Israel e de permitir que seja destrudo.
Nessa parte, mais difcil identificar as unidades porque elas tm sido reunidas
sem introduo e sem concluso104
.
Por fim, a terceira parte (cf. Os 12,114,9) se apresentaria como uma
coleo de orculos posteriores a Oseias, cuja composio remeteria ao ltimo
perodo do Reino do Norte. Cada uma dessas trs partes comearia com uma
102
Cf. H. SIMIAN-YOFRE, El desierto de los dioses. Teologa e Histria en el libro de Oseas, p.
261.
103 Cf. H. W. Wolff, Hosea, p. xxix; G. A. Yee, Composition and Tradition in the Book of Hosea:
A Redaction Critical Investigation, p. 51-52; G. I. Davies, Hosea, p. 102-107; E. M. Good, The
Composition of Hosea. In: SEA, 31 (1966), p. 21-31; M. Buss, The Prophetic Word of Hosea: A
Morphological Study. Berlin: A. Topelmann, 1969, p.111.
104 Cf. H. W. Wolff, Hosea, p. xxx.
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perspectiva de julgamento de Israel e teria como desfecho a sua restaurao e
salvao105
.
Essa perspectiva permite critica da redao perceber que ao material
original que apresentava a perspectiva de condenao do povo de Israel foi
acrescentado um material redacional mais tardio, que muda, assim, um desfecho
de condenao para outro de grande esperana e salvao.
Esse tipo de leitura crtica da estrutura do livro de Oseias se apresenta
problemtico, uma vez que no parece estar baseado inteiramente sobre a
considerao das caractersticas literrias do livro em sua forma atual, pois
identifica o remetente e o destinatrio de uma percope especfica, o que pode
prejudicar indevidamente as consideraes sobre a estrutura literria geral106
.
Essa problemtica se evidencia em Os 13; j que nessa unidade se percebe
uma preocupao geral com a situao pessoal de Oseias e de seu casamento, que
permite suprimir importantes caractersticas literrias, como, por exemplo, a voz
narrativa do texto. J em Os 3, a narrao aparece mais autobiogrfica, pois
evidente que em Os 1 h uma indicao clara e objetiva sobre Oseias. Ademais, o
material potico encontrado a partir de Os 2,4 revela uma mensagem do profeta
dirigida ao povo de Israel, enquanto Os 2,1-3 formulada com um estilo mais
apurado107
.
Tal hiptese sugere que Os 13 poderia ser considerado no como um bloco
nico, mas como dois blocos textuais formulados distintamente por autores
diferentes para um pblico alvo diferente, ou seja, Os 1,12,3 para o leitor e Os
2,43,5 alternativamente para o povo de Israel, em Os 2,4-25, e ao leitor em Os
3,1-5108
.
Uma problemtica similar se encontra em Os 411, em que se detectam
frmulas introdutrias de abertura, em analogia com Os 2,4, em que o autor
estaria se dirigindo a um pblico especfico no meio do povo de Israel109
. Tal
pblico incluiria tambm o povo de Israel que se encontra a partir de Os 4,1, isto
, os filhos de Israel, os sacerdotes e o rei (cf. Os 5,1). Esses anncios parecem se
105 Cf. H. W. Wolff, Hosea, p. xxxi. 106
Cf. M. A. Sweeney, A Form-Critical Rereading of Hosea, p. 1-16. 107
Cf. I. WILLI-PLEIN, Vorformen der Schriftexegese innerhalb des Alten Testaments, p.137. 108
Cf. M. A. SWEENEY, A Form-Critical Rereading of Hosea, p. 1-16. 109
Cf. T. NAUMANN, Hoseas Erben: Strukturen der nachinterpretation im Buch Hosea, p. 39-40.
AppData/Roaming/Microsoft/Word/M.%20A.%20SweeneyAppData/Roaming/Microsoft/Word/M.%20A.%20SweeneyDBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1413547/CA
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misturar com um material descritivo sobre Israel, apresentando-se geralmente
como Palavra de YHWH ou do profeta a um pblico no especificado no decorrer
dos captulos de Os 411110
. Da mesma forma, no bloco de Os 1214, Os 14,2
parece conter um orculo dirigido a Israel. Pelo contexto, poderia tratar-se tanto
da situao de Israel como um todo, quanto da de pessoas especficas.
Ao esboar uma estrutura do livro de Oseias, observam-se alguns
elementos: o livro comea (cf. Os 1,1) identificando o contedo, o autor e o
contexto histrico dos acontecimentos111
. Segundo algumas posies crticas, no
seria possvel atribuir ao profeta Oseias a autoria desse versculo inicial, mas sim
obra de um autor annimo que aparece em dois pontos estratgicos do livro.
O primeiro ponto aparece em Os 1,22,3 ao descrever a maneira tpica de
YHWH se dirigir ao profeta Oseias. O trabalho desse autor annimo surge na
declarao inicial em Os 1,2b e nas indicaes narrativas das palavras de YHWH
dirigidas ao profeta e das aes subsequentes deste de acordo com a lgica da
percope Os 1,22,3112
. Em Os 2,4 parece comear uma nova percope. Nesse
ponto, o foco Oseias dirigir-se aos filhos nascidos do casamento (cf. Os 1,22,3)
mais do que dar ateno narrativa das palavras de YHWH dirigidas a ele.
O segundo ponto estratgico aparece em Os 14,9 e, tambm, em Os 14,10,
em que poderia tratar-se de um convite final a compreender o anncio que foi
feito nos captulos anteriores a seguir os caminhos de YHWH (cf. Os 14,10).
Em linha geral, portanto, pode-se justificar a presena de trs elementos
centrais na estruturao do livro, considerando a importncia fundamental do
autor annimo no processo de constituio da estrutura do livro. O primeiro
elemento estrutural aparece no versculo de abertura (cf. Os 1,1) em que est
identificado o contedo do livro, isto , Palavra de YHWH que foi dirigida a
Oseias, filho de Beeri, nos dias de Ozias, Joato, Acaz, Ezequias, reis de Jud, e
nos dias de Jeroboo, filho de Jos, rei de Israel 113
.
110
Cf. M. NISSINEN, Prophetie, Redaktion und Fortschreibung im Hoseabuch: Studien zum
Werdegang eines Prophetenbuches im Lichte von Hos 4 und 11, p. 335. 111
Cf. G. M. TUCKER, Prophetic Superscriptions and the Growth of the Canon. In: G. W. COATS,
B. O. LONG (org.), Canon and Authority. Philadelphia: Fortress, 1977, p. 56. 112
Cf. M. A. SWEENEY, A Form-Critical Rereading of Hosea, p. 1-16. 113
Cf. M. A. SWEENEY, Berit Olam. The Twelve Prophets, p. 8.
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O segundo elemento corresponderia a Os 1,214,9, que se considera como o
corpo principal do livro, estruturado como um relato das palavras de YHWH
dirigidas ao profeta (cf. Os 1,22,3) e o relato das palavras subsequentes de
Oseias baseadas na experincia da escuta da Palavra de YHWH (cf. Os 2,414,9)
114.
No final, o terceiro elemento estrutural selecionado em Os 14,10 pode ser
considerado como o posfcio do livro com relativo convite escuta e
compreenso da mensagem de YHWH115
. O valor disso resulta na importncia
relevante na interpretao geral do livro, pois auxilia a compreenso quanto ao
livro de Oseias, que no apenas uma transcrio ou relatrio da experincia e da
mensagem do profeta, mas uma apresentao para fins didticos ou persuasivos,
isto , o leitor que se aproximar, a fim de conhecer o texto, dispe-se a aprender o
que encontrar nele e a aplic-lo na sua vida.
Houve estudos que propuseram uma anlise da estrutura com base em
critrios de repetio de slogans e padro formal comum. Nesse caso, depara-se
com uma diviso maior no interior do livro, entre Os 13 e Os 414116
,
considerando vinte e dois orculos presentes em Oseias, sendo os primeiros trs
em Os 13 e os demais em Os 414.
Os orculos profticos que se encontram em Os 414 esto reunidos numa
srie de cinco ciclos. Cada um dos ciclos desdobra-se em torno de conceitos
ou slogans. Os ciclos so os seguintes: (a) o culto s runas (cf. Os 4,15,7),
cujo slogan prostituio; (b) a desordem da poltica e da sociedade (cf. Os
5,88,10), cujo slogan reis e prncipes; (c) o caos da religio (cf. Os 8,11
9,9), cujos slogans so sacrifcios e retorno ao Egito; (d) o pecado de Israel na
histria (cf. 9,1011,11), cujos slogans so frutos e colina; (e) o
esquecimento das sagradas tradies (cf. Os 12,114,10), cujos slogans so
Egito, Assria e YHWH teu Deus117
. Em relao s unidades menores, tal
posio crtica observa que cada um dos orculos profticos individuais comea
com um chamado na segunda pessoa ou com o anncio de um dia de julgamento
114
Cf. G. M. TUCKER, Prophetic Superscriptions and the Growth of the Canon. p. 67. 115
Cf. C. L. SEOW, Hosea 14:10 and the Foolish People Motif, p. 212-224. 116
Cf. M. J. BUSS, The Prophetic Word of Hosea: a morphological Study. In: BZAW, 11 (1969),
p. 18. 117
Cf. M. J. BUSS, The Prophetic Word of Hosea: a morphological Study, p. 31.
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ou de referncia histrica e termina com uma palavra que se refere a um desastre
ou a uma esperana.
Tal viso, ao utilizar a crtica das formas para analisar o livro de Oseias,
deixa entrever alguns pontos fracos. Por um lado, nem sempre aparece com
clareza que os slogans tm essa funo no contexto em que eles esto situados. As
passagens em questo no focam especificamente as temticas que so indicadas
como inerentes e, ao que parece bem claro, no respeitam devidamente os limites
do prprio texto118
.
Embora seja verdade que termos como ou apaream no ciclo da
desordem da poltica e da sociedade, tais termos aparecem tambm em outras
partes do livro de Oseias119
. No h nenhum motivo para pensar que palavras que
marcam de maneira especfica uma percope no possam ter um significado
especial tambm para o restante do livro.
A proposta ora descrita parece no ter muita fundamentao, pois a questo
da anlise dos slogans apresenta-se bastante arbitrria para sustentar tal
estruturao do livro, e as variveis que se encontram na anlise dos orculos so
excessivas para confirmar uma teoria120
.
Outras posies crticas chegam a dividir o texto em mais sees. H
estudiosos que propem, por exemplo, uma diviso em quatro sees: 1) Os 1,1
3,5: Casamento de Oseias; 2) Os 4,17,16: Estado das Naes; 3) Os 8,111,11:
Histria espiritu