lucio nicoletto yhwh está em litígio com o seu povo: um ... · bacharel em teologia (faculdade...

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Lucio Nicoletto YHWH está em litígio com o seu povo: um estudo exegético de Os 4,1-3 Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo programa de Pós- graduação em Teologia da PUC-Rio. Orientador: Prof. Leonardo Agostini Fernandes Rio de Janeiro Março de 2016

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  • Lucio Nicoletto

    YHWH est em litgio com o seu povo: um estudo exegtico de Os 4,1-3

    Dissertao de Mestrado Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre pelo programa de Ps-graduao em Teologia da PUC-Rio.

    Orientador: Prof. Leonardo Agostini Fernandes

    Rio de Janeiro

    Maro de 2016

    DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1413547/CA

  • Lucio Nicoletto

    YHWH est em litgio com o seu povo: um estudo exegtico de Os 4,1-3

    Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre pelo Programa de Ps-graduao em Teologia do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Aprovada pela Comisso Examinadora abaixo assinada

    Prof. Leonardo Agostini Fernandes Orientador

    Departamento de Teologia PUC-Rio

    Prof. Waldecir Gonzaga Departamento de Teologia PUC-Rio

    Prof. Matthias Grenzer PUC/SP

    Prof. Denise Berruezo Portinari Coordenadora Setorial de Ps-Graduao

    e Pesquisa do Centro de Teologia e Cincias Humanas PUC-Rio

    Rio de Janeiro, 14 de maro de 2016

    DBDPUC-Rio - Certificao Digital N 1413547/CA

  • Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total

    ou parcial do trabalho sem autorizao da universidade, do

    autor e do orientador.

    Lucio Nicoletto

    Bacharel em Teologia (Faculdade Teolgica da Itlia

    Setentrional Pdua -Itlia) em 1997. Cursou a Escola de

    Formao para Formadores ISSR Istituto Superiore di

    Scienze Religiose Mogliano Veneto (VE) Itlia e

    Transcender So Paulo, de 2009 a 2012. Desde 2005 e

    missionrio fidei donum da diocese de Padova Itlia,

    no Brasil. Trabalhou na diocese de Duque de Caxias (RJ)

    e atualmente vive seu ministrio junto diocese de

    Roraima.

    Ficha Catalogrfica

    CDD: 200

    Nicoletto, Lucio YHWH est em litgio com o seu povo: um estudo exegtico de OS 4,1-3 / Lucio Nicoletto; orientador: Leonardo Agostini Fernandes. 2016. v., 106 f.; 29,7cm

    1. Dissertao (mestrado) Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Departamento de Teologia, 2016.

    Inclui bibliografia 1. Teologia Teses. 2. Antigo Testamento. 3. Literatura proftica. 4. Livro de Oseias. 5. Litgio. 6. Fidelidade I. Fernandes, Leonardo Agostini. II. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Ttulo.

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  • Aos meus irmos e irms de caminhada

    que j se foram

    deixando um vazio

    que s a F no abrao eterno de YHWH

    enche de luz e de esperana.

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  • Agradecimentos

    Agradeo primeiramente a Deus, Trindade Santa, o dom da vida e do ministrio

    presbiteral mediante o qual me chamou para servir o seu povo nesta terra

    maravilhosa que o Brasil, neste tempo de misso, verdadeira epifania da sua

    misericrdia e fidelidade.

    Aos meus pais, Dino e Paola, os primeiros instrumentos nas mos de Deus, que

    me transmitiram o dom da vida.

    minha irm Elisabetta e ao meu irmo Rossano com sua esposa Laura e filhos,

    meus sobrinhos Anna e Lorenzo, pelo carinho com que me acompanharam nesses

    anos de misso.

    Aos meus amigos e irmos Andrea e Geraldine, como aos seus filhos, meus

    afilhados, Chiara, Francesco e Matteo, pelo apoio moral e tcnico nos

    momentos de pesquisas e de contato com as bibliotecas da Pontifcia

    Universidade Gregoriana e do Pontifcio Instituto Bblico em Roma.

    Agradeo minha Igreja Me de Pdua, que me ofereceu a oportunidade de

    caminhar e de contemplar, nesses anos de minha vida, as manifestaes do

    Esprito de YHWH na Igreja irm de Duque de Caxias e permitiu-me enriquecer a

    experincia missionria com a aventura do Mestrado.

    Agradeo ao meu orientador, Pe. Leonardo Agostini Fernandes, que, com percia

    e esmero, me ajudou a sondar as profundas riquezas das Sagradas Escrituras e me

    acompanhou com pacincia e grande demonstrao de verdadeira fraternidade

    presbiteral nesse tempo do trabalho de pesquisa na dissertao.

    Aos professores e ao pessoal do Departamento de Teologia da PUC-Rio, pelo

    carinho, pela competncia e pela dedicao com que nos acompanharam por

    caminhos inigualveis e de alto nvel, sem medir tempo e esforo. De maneira

    especial, agradeo aos professores Abimar Oliveira de Moraes, Maria de Lourdes,

    Isidoro Mazzarolo, Waldecir Gonzaga, Jos Otcio Oliveira Guedes e Ludovico

    Garmus.

    CAPES e PUC-Rio, pelos auxlios concedidos, sem os quais este trabalho

    seria impossvel.

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  • Ir. Marlene Leite Mendona e a toda a comunidade das Irms Calvarianas do

    INOSEL Gvea, pelo carinho e pela amizade que me demonstraram no tempo

    em que me acolheram em sua casa, todas as vezes em que precisei de hospedagem

    e descanso ao longo desses anos de frequentao da PUC-Rio.

    Aos meus colegas e amigos de estudo que encontrei ao longo do curso de

    Mestrado, pela unio, pela amizade e pelo companheirismo recprocos que nunca

    esquecerei.

    Aos amigos Carlos Alberto, Gilson Freire e Camila Maciel Pires, pelo carinho e

    profissionalismo com que me ajudaram na estruturao e na correo da minha

    dissertao.

    Ao meu diretor espiritual e amigo, Pe. Geraldo Dndici Vieira, que com a

    pacincia e o carinho de um pai me acompanhou e me incentivou a trilhar o

    caminho do estudo das Sagradas Escrituras para alcanar a plena maturidade na

    F e para ajudar sempre mais, com maior competncia, o povo de Deus no

    aprofundamento do seu .

    famlia do Seminrio diocesano Santa Maria, em Duque de Caxias, aos

    seminaristas, esperana e futuro dessa Igreja local, que me possibilitaram a

    oportunidade de cursar o Mestrado, e a todos os colaboradores e colaboradoras

    com que caminhei ao longo dos ltimos nove anos da minha vida.

    Aos amigos padres Matteo, Luigi, Orazio, Benedetto, Marcos Bejarano, Renato

    Gentile, Alcindo Milena, Vanildo Cregi, Jorge Vasconcellos, bem como a todos

    os padres da diocese de Duque de Caxias e de Pdua, que lutam incansavelmente

    pela realizao do reino de Deus nos lugares onde a Providncia os colocou.

    A dom Jos Francisco Rezende Dias, que me acolheu como pai e amigo na

    diocese de Duque de Caxias, no incio da minha caminhada aqui no Brasil, e a

    dom Tarcsio Nascentes, atual bispo da diocese caxiense.

    s parquias de Nossa Senhora de Ftima em Vilar dos Teles e de Nossa Senhora

    das Graas em Xerm, com que convivi ao longo desses dez anos, bebendo das

    fontes da f simples e concreta desse povo maravilhoso, rosto de YHWH

    misericordioso e compassivo, obrigado pelas oraes e pelo carinho com que

    sempre me apoiaram e me acompanharam.

    A todo o povo de Deus de Duque de Caxias e da Baixada Fluminense, to sofrido

    e to querido, por ser imagem viva do povo de Deus que caminha com dignidade

    e com f, pelos desertos das injustias e das violncias, mas com a fora da

    mesma f e da comunho em YHWH, Deus da Histria, rumo a um novo

    amanhecer de esperana e vida.

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  • Resumo

    Nicoletto, Lucio; Fernandes, Leonardo Agostini. YHWH est em litgio

    com Israel: um estudo exegtico de Os 4,1-3. Rio de Janeiro: 2016, 106 p.

    Dissertao de Mestrado Departamento de Teologia, Pontifcia

    Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

    Na primeira parte do livro de Oseias (Os 13), so descritos a experincia

    matrimonial do profeta Oseias e o significado que essa experincia (casamento,

    traio, afastamento e reconciliao) tem enquanto revelao do amor de YHWH

    por Israel. Na segunda parte do livro (cf. Os 411), foram coletados todos os

    diferentes orculos atribudos ao profeta Osias, que giram em torno do tema do

    julgamento sobre Israel e da promessa de salvao e perdo. Pode-se considerar

    Os 4,1-3 como um portal de ingresso da segunda parte do livro: deixa-se a

    linguagem alegrica (casamento, prostituio e adultrio) e diretamente se

    apresenta a queixa sobre a violao do pacto com YHWH. As acusaes so

    dirigidas contra o povo e, mais adiante, contra a classe sacerdotal, os lderes, a

    famlia governante e o rei. As palavras de Os 4,1-3 convocam os filhos de Israel a

    um , litgio, no qual o profeta, em nome de YHWH, denuncia a ruptura da

    Aliana. No meio do processo judicirio, emerge uma acusao fundamental: a

    falta de , e (cf. Os 4,1c). Essa falta impede os imputados de

    reconhecer as obras de YHWH, Deus de Israel, (criao e libertao) com a

    consequente adeso a um estilo de vida em que esto envolvidas tanto as relaes

    comunitrias quanto as relaes com a criao.

    Palavras-chave

    Antigo Testamento; Literatura Proftica; Livro de Oseias; Litgio;

    Fidelidade; Lealdade; Conhecimento de Deus.

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  • Abstract

    Nicoletto, Lucio; Fernandes, Leonardo Agostini (Advisor).

    YHWH is in wrangle with Israel: an Exegetical Study in Hos 4:1-3.

    Rio de Janeiro: 2016, 106 p. MSc. Dissertation Departamento de

    Teologia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

    The first part of the book of Hosea (Hos 13) describes the conjugal

    experience of the prophet Hosea and the meaning that this experience (marriage,

    betrayal, separation and reconciliation) has as revelation of YHWHs love for

    Israel. The second part of the book (cf. Hos 411) collects all the different oracles

    attributed to the prophet Hosea that revolve around the theme of judgment on

    Israel and the promise of salvation and forgiveness. It is possible to consider Hos

    4:1-3 as a portal of entry of the second part of the book: it leaves the allegorical

    language (marriage, prostitution and adultery) and presents directly the complaint

    about the violation of the Covenant with YHWH. The charges presented in Hos

    4:1-3 are directed against the people and, later, against the priestly class, the

    ruling family and the king. The words of Hos 4:1-3 summon the children of Israel,

    to a wrangle, in which the prophet, in the name of YHWH, denounces the ,

    breaking of the Covenant. Right in the middle of the investigation of the case,

    there is a fundamental accusation: the lack of , and (cf. Hos

    4:1c). Such lack does not allow the imputed to recognize the works of YHWH,

    God of Israel, (creation and liberation) with the consequent acceptance of a

    lifestyle where are involved relations both with the community and with the

    creation.

    Keywords

    Old Testament; Prophetic Literature; Book of Hosea; Wrangle;

    Faithfulness; Loyalty; Knowledge of God.

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  • Sumrio

    1. Introduo 13

    2. O livro do profeta Oseias................................................................16

    2.1 O livro do profeta Oseias e o seu contexto histrico......16

    2.2 Origem e redao do livro..............................................22

    2.2.1 Consideraes literrias.................................................................22

    2.2.2 As tradies do ambiente do Reino do Norte.................................25

    2.2.3 Hipteses redacionais....................................................................29

    2.3 Estruturas do livro...........................................................................35

    3. Os 4,1-3: Texto e crtica.................................................................45

    3.1 Traduo.........................................................................................45

    3.2 Notas de crtica textual ..........................................................45

    3.3 Notas filolgicas..............................................................................48

    3.4 Delimitao do texto e unidade............................................55

    3.4.1 Proposta de delimitao.................................................................55

    3.4.2 Organizao do texto......................................................................59

    3.5 Gnero literrio de Os 4,1-3...........................................................62

    4. Os 4,1-3: Comentrio exegtico-teolgico.....................................65

    4.1 O contexto exegtico de Os 4,1-3..................................................65

    4.1.1 Intimao escuta (Os 4,1a)..........................................................66

    4.1.2 O anncio da acusao e apresentao das partes (Os 4,1b).....68

    4.1.3 A motivao da acusao (Os 4,1c)...............................................70

    4.1.4 As provas que fundamentam a acusao (Os 4,2)........................75

    4.1.5 As consequncias do agir contrrio Aliana e

    quebra da harmonia da natureza (Os 4,3)................................................77

    4.2 Viso de conjunto................................................................................81

    4.2.1 O em Os 4,1-3...............................................................82

    4.2.2 O e a falta de 84............................................................

    4.2.3 O trinmio , e no livro de Oseias.......................86

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  • 5. Concluso e sntese da pesquisa...................................................91

    6. Referncias bibliogrficas...............................................................95

    6.1 Bblias, Gramticas e Manuais.......................................................95

    6.2 Dicionrios......................................................................................95

    6.3 Concordncias e Lxicos .........................................................97

    6.4 Documentos da Igreja ..............................................................98

    6.5 Artigos e Revistas...........................................................................98

    6.6 Obras............................................................................................103

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  • Lista de siglas e abreviaes

    a.C. Antes de Cristo

    ABD The Anchor Bible Dictionary

    Am Ams

    AnBib Analecta Biblica

    AncB The Anchor Bible

    AOAT Alter Orient und Altes Testament

    AOP Antigo Oriente Proximo

    AT Antigo Testamento

    ATeo Atualidade Teologica, Revista do Departamento de Teologia da

    Puc-Rio

    BAT Die Botschaft des Alten Testaments

    BBB Bonner biblische Beitrge

    BDB The Brown-Driver-Briggs Hebrew and English Lexicon

    BHQApp

    Biblia Hebraica Quinta Aparato crtico

    BHS Biblia Hebraica Stuttgartensia

    Bib Biblica

    BZAW Beiheft zur Zeitschrift fr die alttestamentliche Wissenschaft

    CBQ The Catholic Biblical Quarterly

    CCS The Communicators Commentary Series

    DBHP Dicionrio Bblico Hebraico-Portugus

    DITAT Dicionrio Internacional de Teologia do Antigo Testamento

    DTMAT Diccionrio Teolgico Manual del Antiguo Testamento

    EB Estudos Bblicos

    EncJud Encyclopedia Judaica

    EvTh Evangelische Theologie

    Ex xodo

    Ez Ezequiel

    FRLANT Forschungen zur Religion und Literatur des Alten und Neuen

    Testament.

    Ges. Stud. Gesammelte Studien (zum Alten Testament)

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  • HALAT Hebrisches und Aramisches Lexikon zum Alten Testament. I-IV.

    BAUMGARTNER, W., HARTMANN, B., KUTSCHER, Y. (eds.). Leiden:

    Brill Academic Pub, 1990.

    IJPT International Journal in Philosophy and Theology

    Interpr. Interpretation

    JBL Journal of Biblical Literature

    JCS Journal of Cuneiform Studies

    JHS Journal of Hebrew Scriptures

    JSOT Journal for the Study of the Old Testament

    JSOTSup Journal for the Study of the Old Testament. Supplement series

    JTS Journal of Theological Study

    KAT Kommentar zum Alten Testament

    Mq Miqueias

    NDITEAT Novo Dicionrio Internacional de Teologia e Exegese do Antigo

    Testamento

    Os Oseias

    OTL Old Testament Library

    OTWSA Ou Testamentiese Werkgemeenskap van Suid-Afrika

    (Trad. do Afrikaans: Old Testament Society in South Africa)

    PSV Parola, Spirito e Vita

    RE Review and Expositor

    SBLDS Society of Biblical Literature Dissertation Series

    SEA Svensk Exegetisks rsbok

    Sem Semeia

    TDOT Theological Dictionary of the Old Testament

    TLZ Theologische Literaturzeitung

    TM texto massortico

    Vol. volume

    VT Vetus Testamentum

    ZAW Zeitschrift zr die Alttestamentliche Wissenschaft

    ZTK Zeitschrift fr Theologie und Kirche.

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  • 13

    1. Introduo

    O encontro com o livro do profeta Oseias sempre apaixonante e abre

    novos horizontes para a compreenso da mensagem da Palavra de YHWH. A

    concretude da linguagem tpica desse profeta, que pertence ao corpus do

    Dodekapropheton, ajuda a deixar de lado certa imagem racionalista de YHWH,

    fruto de vrios fatores sociais, culturais e religiosos, e introduz a uma intimidade

    profunda com esse Deus maravilhoso que se revela como apaixonado, um Deus

    pelo qual j possvel entrever o rosto de Cristo, um rosto sofrido por causa do

    seu amor para com a pessoa amada, a humanidade. Esse Deus que no deixa de

    chamar converso o seu povo, o qual no se d conta de que est se afastando

    gradativamente dele, fonte da sua vida e seiva que alimenta um futuro de paz.

    So pginas de alta poesia com tenses profundas que retratam o esforo

    diuturno de YHWH para reconquistar o seu povo, Israel, depois de todas as

    traies e infidelidades, de modo a constituir uma estupenda e dramtica

    parbola do amor conjugal, segundo a lgica de YHWH, o qual d vazo de

    amor verdadeiro ao homem de ontem e de hoje, at as ltimas consequncias, para

    fazer brotar sempre de novo o sim do corao de sua esposa, Israel, um sim

    livre e total para um amor que resgata o valor da prpria humanidade imbuda da

    divindade do seu Criador.

    Para Oseias no suficiente ter um sentimento vago da divindade de

    YHWH, visto que preciso aprender a conhecer esse Deus para am-lo e

    reconhec-lo como o nico e verdadeiro Deus. Tal conhecimento passa

    inevitavelmente pela experincia do deserto, uma experincia na qual Israel

    toma conscincia do prprio pecado no meio de uma terra de abandono e

    desolao. nessa terra que a voz de YHWH, leal e fiel s suas promessas, se faz

    sentir para confirmar as palavras do primeiro encontro amoroso, mesmo que seja

    com palavras duras e acertadas para provocar um benfico choque no povo em

    vista da to esperada volta ao primeiro amor.

    Por sua vez, Os 4,1-3, objeto de estudo deste trabalho, apresenta-se como

    uma introduo programtica que provavelmente nunca existiu em forma oral,

    como palavra em si, tendo sido estruturada como uma espcie de portal de

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  • 14

    acesso para Os 411 pelos discpulos do mesmo profeta Oseias, tendo em vista o

    carter de resumo que tal percope possui.

    Dessa forma, o presente trabalho de pesquisa, cujo tema YHWH est em

    litgio com Israel: um estudo exegtico de Os 4,1-3, apresenta-se dividido em

    trs partes.

    Na primeira parte, busca-se perceber o contexto histrico do livro do profeta

    Oseias, sua origem e sua estrutura, promovendo uma reflexo sobre tal contexto,

    tendo em vista a compreenso de Os 4,1-3 num mbito mais amplo (captulo 2).

    Na segunda parte, desenvolve-se o estudo de Os 4,1-3 que compreender a

    traduo, as notas de crtica textual e a filologia, o que se seguir da delimitao

    de texto e unidade, examinando a organizao textual e o gnero literrio (captulo

    3).

    Na terceira parte, prope-se uma exegese de Os 4,1-3, debruando-se

    especialmente sobre o tpico de maior destaque da percope, o e as trs

    motivaes que o fundamentam, a saber: , e (captulo 4).

    Para o trabalho de pesquisa, fez-se uso dos principais comentrios do livro

    de Oseias, no s para a apresentao das tendncias interpretativas de Os 4,1-3,

    como tambm para a anlise especfica do significado do e da trade

    em Os 4,1-3. Empreendeu-se a anlise dessa unidade e ,

    textual seguindo os passos do Mtodo Histrico Crtico, considerando e

    analisando o texto na perspectiva do seu estado final e cannico1.

    O conjunto dos procedimentos adotados permitiu o acesso mais direto ao

    objetivo da pesquisa, considerando o elemento histrico que implica o

    reconhecimento de que os textos bblicos foram concebidos em determinado

    perodo do passado e se desenvolveram num processo histrico. Portanto, o

    estudo histrico tem muito a dizer sobre o sentido dos textos. Por outro lado,

    pode-se dizer que se trata tambm de um estudo crtico porque estabelece as

    distines que do base para julgar os diversos aspectos do texto ligados histria

    quanto ao tempo de composio, relao com textos contemporneos e

    realidade extratextual, como a histria poltica, religiosa e social2. Nessa

    1 Cf. H. SIMIAN-YOFRE, Metodologia do Antigo Testamento. So Paulo: Loyola, 2000, p. 73.

    2 Cf. H. SIMIAN-YOFRE, Metodologia do Antigo Testamento. p. 74-75.

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  • 15

    abordagem diacrnica, operou-se com a ajuda de critrios cientficos to objetivos

    quanto possveis, de maneira a tornar acessvel o sentido do texto analisado3. J a

    abordagem sincrnica, reconhecida como legtima, permitiu tratar o texto em seu

    estado final, e no baseado em uma redao anterior, tornando-se fundamento de

    uma leitura cannica4.

    Esta pesquisa no pretende esgotar os inmeros elementos lingusticos,

    histricos e teolgicos que envolvem as abordagens diacrnica e sincrnica

    aplicadas ao texto, pois tal tarefa vai alm dos limites deste estudo. Este pretende

    elencar alguns elementos que permitem aprofundar o estudo de Os 4,1-3, podendo

    servir de referncia para futuras pesquisas relacionadas.

    3 Cf. PONTIFCIA COMISSO BBLICA, A interpretao da Bblia na Igreja. So Paulo: Paulinas,

    2004, p. 37.41. 4 Cf. PONTIFCIA COMISSO BBLICA, A interpretao da Bblia na Igreja, p. 45.

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  • 16

    2. O livro do profeta Oseias

    2.1 O livro do profeta Oseias e o seu contexto histrico

    As primeiras e parcas informaes sobre a origem e a identidade do profeta

    encontram-se logo no incio do texto. Seu nome cf. Os 1,1) cujo)

    significado remete maioria dos nomes que tm como raiz , salvar5, da o

    significado YHWH salva ou YHWH socorreu.

    Dentro do corpus do Dodekapropheton, Oseias relacionado ao pai, da

    mesma forma como acontece com Joel, Jonas, Sofonias e Zacarias, e no cidade

    de origem, tal como ocorre com Ams, Miqueias e Naum. Talvez seja possvel

    considerar esse dado como uma indicao que o autor quis deixar para melhor

    entender a identidade do profeta como um homem no meio dos homens6.

    Pouco se sabe sobre Oseias alm do nome de seu pai, nem se conhece ,

    algo em relao a sua casa, sua formao ou como foi educado. Contudo,

    notvel a familiaridade com as tradies presentes nos livros do Pentateuco, Josu

    e Juzes, o que sugere ter sido a sua formao cultural e religiosa slida e

    fecunda7. provvel que ele se tenha tornado um profeta antes do casamento,

    pois em Os 1,2 se escreve que foi por ordem de YHWH que Oseias escolheu a

    mulher adltera com a qual se casou. A experincia conjugal de Oseias com

    Gomer, provavelmente uma sacerdotisa que praticava a prostituio sagrada,

    segundo os rituais da religio cananeia, foi determinante para ele viver na prpria

    pele o que YHWH estava vivendo com o seu povo, Israel: a experincia de um

    amor no correspondido, mas fiel at os limites da compreenso humana, de modo

    a ser o nico remdio que permitiria pessoa amada se libertar daquela que por

    muitos anos tinha sido a sua vida de prostituta8.

    Pode-se levantar uma srie de indcios histricos ocorridos no Reino do

    Norte para melhor situar o contexto histrico do livro de Oseias: (a) vingarei

    5 Cf. L. ALONSO SCHKEL, , DBHP, p. 300.

    6 Cf. J. LIMBURG, I dodici profeti. Parte prima: Osea, Gioele, Amos Abdia, Giona, Michea.

    Torino: Claudiana editrice, 2005, p. 21. 7 Cf. K. NIELSEN, Yahweh as Prosecutor and Judge. An investigation of the prophetic lawsuit

    (RbPattern). In: JSOTSup, 9 (1978), p. 22 8 Cf. L. A. FERNANDES, Evangelizao e famlia. Subsidio bblico, teolgico e pastoral. So Paulo:

    Paulinas, 2015, p. 109.

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  • 17

    sobre a casa de Je o homicdio ocorrido em Jezrael; (b) arcarei o fim do Reino da

    casa de Israel (cf. Os 1,4; 2Rs 9,110,36); (c) estaro juntos os de Jud e os de

    Israel e elegero um chefe comum (cf. Os 2,2)9.

    A longa srie de reis que se encontra em Os 1,1 sugere que Oseias tenha

    exercido seu ministrio por muito tempo e provvel que tenha comeado sua

    misso de profeta quando ainda muito jovem10

    .

    Os 1,1 relata que, na poca em que o profeta viveu, alternaram-se no Reino

    de Jud os reis Ozias, Joato, Acaz e Ezequias, enquanto Jeroboo, filho de Jos,

    reinava em Israel. O versculo de abertura deixa entender que Oseias poderia ter

    profetizado at o final do reinado de Ezequias, rei de Jud (716-686 a.C.). Mas h

    de se considerar que o profeta Oseias comeou o seu ministrio relativamente

    tarde, durante o reinado de Jeroboo II, quando a ameaa do juzo divino sobre a

    dinastia de Je estava s portas11

    , e terminou bastante cedo, provavelmente

    durante os primeiros anos do reinado de Ezequias. Por isso, seria possvel concluir

    que Oseias tenha atuado nos anos 760-710 a.C., cerca de 50 anos.

    O fato de que ele possa ter vivido durante o reinado de Ezequias

    especialmente importante porque permite deduzir que ele presenciou a queda da

    Samaria, em 722 a.C. Com efeito, no razovel supor que ele tenha terminado os

    seus dias na Jerusalm do rei Ezequias e que o seu livro ali tenha sido preservado.

    De qualquer forma, seria preciso contar com alguma evidncia direta para

    confirmar essa posio12

    .

    Jeroboo II, que reinou por volta de 790-750 a.C, subiu ao poder enquanto a

    Sria e Assria dois inimigos de Israel situados ao norte enfraqueceram-se por

    causa de conflitos internos13

    . Aps a morte de Ben-Hadade II da Sria, Jeroboo II

    estendeu o domnio de Israel ao norte at a cidade de Damasco (cf. 2Rs 14,25-

    26)14

    . Ele conseguiu restaurar a prosperidade da nao com as vitrias militares,

    9 Cf. L. A. FERNANDES, Evangelizao e famlia. Subsidio bblico, teolgico e pastoral, p. 109.

    10 Cf. J. L. MAYS, Hosea. A Commentary. Philadelphia: Westminster, 1969, p. 2.

    11 Cf. L. A. FERNANDES, Evangelizao e famlia. Subsidio bblico, teolgico e pastoral, p. 105.

    12 Cf. K. NIELSEN, Yahweh as Prosecutor and Judge. An investigation of the prophetic lawsuit

    (RbPattern), p. 22. 13

    Cf. R. ALBERTZ, Storia della religione nellIsraele Antico. Dalle origini allet monarchica.

    Brescia: Paideia, 2005, p. 256. 14

    Cf. E. H. MERRILL, Kingdom of Priests. Grand Rapids: Baker, 1987, p.374-375.

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  • 18

    tendo a economia do reino crescido muito sob o seu reinado, o que possibilitou

    uma poca urea para Israel.

    No entanto, mesmo com uma economia forte caracterizando o governo de

    Jeroboo II, havia muitas discriminaes e injustias sociais que aos poucos

    deixaram o povo dividido em duas classes: de um lado, a classe mais baixa, cada

    vez mais sofrida e marcada pela opresso e pobreza; de outro, a alta, ganhando

    cada vez mais poder e acumulando nas mos de poucos a riqueza do pas inteiro15

    .

    O latifundismo, que ia se espalhando espantosamente a partir do mesmo rei,

    tinha ameaado a estrutura administrativa do reino de Israel antigo, eliminando

    qualquer vestgio do antigo ideal de igualdade social da idade pr-estatal16

    . Tal

    situao poltica, social e cultual que se encontra durante o reinado de Jeroboo II

    justificaria o tom da Palavra de YHWH que, no livro de Oseias, apresenta-se

    predominantemente negativa17

    .

    Ao longo do livro, o profeta costuma colocar-se de forma radical contra o

    sistema social e a realidade cultual, uma vez que as suas acusaes principais

    eram denncias abertas no s aos abusos e s violaes de responsabilidade dos

    que cuidavam da organizao do culto, mas tambm aos exageros imorais dos que

    participavam dos cultos18

    .

    O posicionamento do profeta Oseias, frente realidade social e religiosa do

    Reino do Norte, encontra um paralelo com outros profetas: Isaas (cf. Is 5,8-9)19

    ,

    Ams (cf. Am 2,6; 8,4-6)20

    , Miqueias (cf. Mq 2,1-2.9)21

    . Estes dirigem suas

    acusaes s classes mais nobres, cujo comportamento econmico e social criava

    injustias e pobreza em detrimento da maioria do povo. nessa poca que se

    encontram nas palavras desses profetas expresses tpicas que indicam a categoria

    15

    Cf. K. NIELSEN, Yahweh as Prosecutor and Judge. An investigation of the prophetic lawsuit

    (RbPattern), p. 23. 16

    Cf. Cf. R. ALBERTZ, Storia della religione nellIsraele Antico. Dalle origini allet monarchica,

    p. 257. 17

    Cf. D. STUART, World Biblical Commentary Hosea-Jonah, vol. 31. Dallas-Texas: Word Books

    Publisher, 1987, p. 6. 18

    Cf. Cf. R. ALBERTZ, Storia della religione nellIsraele Antico. Dalle origini allet monarchica,

    p. 277. 19

    Cf. D. N. PREMINATH, Latifundialization and Isaiah 5,8-10. In: JSOT, 40 (1988), p. 49-60. 20

    Cf. M. FENDLER, Zur Sozialkritik des Amos. Versuch einer wirtschafts und

    sozialgeschichtlichen Interpretation altestamentlicher Texte. In: EvTh, 33 (1973), p. 32-53. 21

    Cf. A. ALT, Micha 2,1-5. In: Kleine Schriften zur Geschichte des Volkes Israel. Munich: M.

    Noth editor, 1959, p. 374.

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  • 19

    social dos fracos (cf. Am 2,7; Is 10,2), dos , ;pobres (cf. Jr 2,34 ,

    Ez 16,49) e dos , mseros (cf. Am 2,7; Is 3,14; Jr 22,16)22.

    Aps a estabilidade poltica, proporcionada pela longa vida de Jeroboo II,

    Israel entrou em um perodo de caos poltico23

    . Logo depois que esse monarca

    morreu, o Reino do Norte caiu na anarquia. Vrios reis de Israel morreram

    assassinados, cada um pela mo de seu sucessor. A fraqueza interna de Israel e a

    ascenso poltico-econmica do reino assrio, que ganhou cada vez mais vigor sob

    Teglat-Falasar III (745-727 a.C.) e seus sucessores Salmanaser V (727-722 a.C.) e

    Sargo II (722-705 a.C.), selaram o destino do Reino do Norte.

    Jeroboo II foi sucedido por seu filho Zacarias (753 a.C.) quase

    imediatamente. No entanto, este foi derrubado pela mo de Salum, o que

    determinou o fim da dinastia de Je (841-814 a.C.). Aps um ms, Salum foi

    assassinado por Manam24

    (752-742 a.C.), cujo ato mais notvel foi enviar mil

    talentos de prata para Teglat-Falasar III, rei da Assria, em troca de apoio militar

    por seu direito ao trono (cf. 2Rs 15,17-22). O filho de Manam, Faceias, sucedeu-

    lhe, mas seu reinado tambm foi interrompido: Faceia, filho de Romelias, um alto

    oficial militar, matou-o aps to somente dois anos de reinado (741-739 a.C)25

    .

    A cronologia do reinado de Faceia, no entanto, difcil de ser definida, pois,

    em 2Rs 15,27, l-se que reinou durante vinte anos. Mas isso no seria possvel,

    porque, se a data do incio do seu reinado for calculada por volta de 739 a.C.,

    estar em contradio com o ano em que o prprio reinado terminou, ou seja, em

    722 a.C.. Pode-se acreditar que o texto de 2Rs 15,27 tenha sido um erro de

    escriba, ou que Faceia tenha liderado um governo rival comeando por volta de

    752 a.C. e que, com o assassinato de Faceias, ele tenha-se tornado o nico

    monarca. De qualquer forma, o seu reinado durou at cerca de 730 a.C..

    Ao contrrio de Manam, Faceia era hostil ao imprio Assrio: Rason da

    Sria formou uma coalizo destinada a resistir ao poder crescente da Assria26

    .

    22

    Cf. R. ALBERTZ, Storia della religione nellIsraele Antico. Dalle origini allet monarchica, p.

    257. 23

    Cf. J. D. NOGALSKI, The Book of Twelve: Hosea Jonah. Macon Georgia: Smyth & Helwys,

    2011, p. 23. 24

    Cf. M. METZGER, Histria de Israel. So Leopoldo: Sinodal, 1984, p. 93. 25

    Cf. K. NIELSEN, Yahweh as Prosecutor and Judge. An investigation of the prophetic lawsuit

    (RbPattern), p. 23. 26

    Cf. M. METZGER, Histria de Israel. So Leopoldo: Sinodal, 1984, p. 101-102.

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  • 20

    Joto, rei de Jud, se recusou a participar da coalizo, como fez o seu sucessor,

    Acaz. Tal coalizo, chamada de siro-efraimita, no podia correr o risco de uma

    fora hostil na sua retaguarda, no caso o Reino do Sul, de forma que o invadiu

    com a inteno de substituir Acaz por Ben Tabeel, que exerceria o papel de um rei

    fantoche (Is 7,6) 27

    .

    Acaz pediu ajuda a Teglat-Falasar para obter socorro, e o rei assrio atendeu

    rapidamente ao apelo. Em seguida, o rei Oseias, filho de Ela, assassinou Faceias e

    guardou a coroa para si mesmo. Ento salvou a Samaria de ser destruda por uma

    submisso imediata Assria, mas ao mesmo tempo mantinha negociaes

    secretas com o Egito como apoio contra a mesma Assria. Quando essa traio foi

    descoberta, a Assria, sob o rei Salmanasar V, invadiu o Reino do Norte e levou

    Oseias para o cativeiro, tendo a Samaria resistido por mais dois anos. Enquanto

    isso, Salmanasar V morreu, e seu sucessor, Sargon II, completou a destruio da

    capital de Israel28

    . De acordo com registros assrios29

    , 27.290 cidados israelitas

    foram deportados para a Mesopotmia.

    Em geral, no livro de Osias, descreve-se a situao poltica em queda aps

    a morte de Jeroboo II como um momento catico em que reis se alternavam

    rapidamente, interessados mais em reivindicar os benefcios do seu poder do que

    em cuidar das necessidades do povo (cf. Os 7,3-7; 8,4; 10,3) 30

    . Essa situao

    acabou enfraquecendo a autoridade central do Estado e deixou campo aberto

    Assria no seu plano de conquistar gradativamente todo o territrio da Samaria

    (cf. 2Rs 15,29-30) at o golpe final (cf. 2Rs 17,5-6). Percebe-se, com bastante

    clareza, quanto os orculos de Oseias conseguem apresentar o quadro bem

    realstico da situao religiosa do Reino do Norte no contexto mais amplo da

    situao poltica nacional e internacional do seu tempo31

    .

    27

    Cf. K. NIELSEN, Yahweh as Prosecutor and Judge. An investigation of the prophetic lawsuit

    (RbPattern), p. 23-24. 28

    Cf. J. B. PRITCHARD (ed.), Ancient Near Eastern Text Relating to the Old Testament. Oxford:

    Oxford University Press, 1950, p. 284. 29

    Cf. H. TADMOR, The Campaigns of Sargon II of Assur: a Chronological-Historical Study. In:

    Journal of Cuneiform Studies, 8 (1958), p. 22-41. 30

    Cf. K. NIELSEN, Yahweh as Prosecutor and Judge. An investigation of the prophetic lawsuit

    (RbPattern), p. 24. 31

    Cf. G. BERNINI, Osea - Michea - Naum - Abacuc. Milano: Edizioni San Paolo, 1997, p. 17.

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  • 21

    Em suma, a denncia do profeta Oseias no seria uma anlise objetiva da

    sociedade, mas sim uma tomada de posio em favor das camadas mais baixas do

    povo que acabam empobrecendo cada vez mais por causa das polticas

    econmicas manipuladas pela minoria rica32

    . Contudo, se, por exemplo, em Isaas

    (cf. Is 5,8-9), Ams (cf. Am 2,6; 8,4-6) ou Miquias (cf. Mq 2,1-2.9), as classes

    dirigentes so alvo principal das crticas e denncias, em Oseias encontra-se uma

    dplice crtica mesma instituio monrquica.

    A primeira dessas crticas poltica, por motivo do envolvimento dessa

    instituio no processo de desestabilizao do Estado; a segunda seria mais de

    cunho teolgico, pois uma monarquia desse tipo no teria mais uma legitimao

    divina, sendo ela mais um smbolo da apostasia completa de Israel para com

    YHWH. Por esse motivo, segundo Oseias, juntamente com Ams e Miqueias,

    essa instituio est em contradio com os valores do e da que

    caracterizavam os primrdios da sociedade israelita, a qual agora se revela como

    uma sociedade doente por causa dos mecanismos econmicos e jurdicos que

    geram opresso e discriminaes no meio do povo33

    .

    Em Os 4,4, encontra-se uma crtica mais particular dirigida classe

    sacerdotal e aos que cuidam do culto. Para ele no h dvida de que Israel cultua

    Baal (cf. Os 2,15). Por conseguinte, encontra, nesse elemento religioso, mais uma

    motivao que justificaria a acusao de apostasia de Israel em relao a YHWH

    (cf. Os 4,1b)34

    . Pode-se ento perceber uma denncia do profeta contra o perigo

    de uma contaminao do culto a YHWH oriunda dos costumes religiosos dos

    povos cananeus, com os quais Israel convivia h sculos, a qual poderia ser um

    sinal concreto de sincretismo ideolgico e religioso35

    .

    A partir de Oseias, os baalim tornaram-se a imagem ou o smbolo religioso

    do inimigo do qual a religio jahvista precisava se afastar para no trair sua

    verdadeira identidade e no adquirir elementos que seriam inconciliveis com a

    32

    Cf. R. ALBERTZ, Storia della religione nellIsraele Antico. Dalle origini allet monarchica, p.

    266. 33

    Cf. R. ALBERTZ, Storia della religione nellIsraele Antico. Dalle origini allet monarchica, p.

    268. 34

    Cf. R. ALBERTZ, Storia della religione nellIsraele Antico. Dalle origini allet monarchica, p.

    278. 35

    Cf. H. SIMIAN-YOFRE, El desierto de ls dioses. Teologa e Histria en el libro de Oseas.

    Cordoba: Ediciones El Almendro, 1992, p. 65.

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  • 22

    religio tradicional de Israel36

    . O que acontece nos dois mbitos centrais da vida

    pblica a poltica e o culto torna-se o alvo das denncias do profeta Oseias

    contra todas as injustias cometidas em detrimento dos mais fracos, no querendo

    incitar revoltas, mas dando voz quele anlito de libertao que, no passado, deu

    vida religio jahvista37

    .

    H de se concluir, em ltima analise, que o que leva Oseias a condenar o

    tipo de culto prprio da classe proftica e sacerdotal o fato de este manipular a

    divindade para atender os prprios interesses. Em outras palavras, Oseias est

    profundamente preocupado com a atitude que se esconde por trs do culto a Baal,

    a qual revela em si o objetivo de dobrar YHWH prpria vontade. Por isso,

    justifica-se o afastamento radical de Oseias dessa tradio religiosa mais do que

    Isaas, Ams e Miqueias38

    .

    Entre os profetas do corpus do Dodekapropheton, Oseias se sobressai por

    causa de sua personalidade. Ele no tem medo de se confrontar com os seus

    contemporneos e com toda a situao social e cultual do seu tempo. Isso se deve

    sua sensibilidade e s dolorosas experincias familiares que moldaram nele uma

    personalidade capaz de entender, melhor do que qualquer outro profeta, a angstia

    do corao de YHWH39

    .

    2.2 Origem e redao do livro

    2.2.1 Consideraes literrias

    largamente aceito que o livro de Oseias provm de sermes do profeta,

    entretanto h quem defenda a teoria de que o texto seria fruto de uma coletnea de

    36

    Cf. R. ALBERTZ, Storia della religione nellIsraele Antico. Dalle origini allet monarchica, p.

    281. 37

    Cf. R. ALBERTZ, Storia della religione nellIsraele Antico. Dalle origini allet monarchica, p.

    267. 38

    Cf. R. ALBERTZ, Storia della religione nellIsraele Antico. Dalle origini allet monarchica, p.

    282. 39

    Cf. J. LIMBURG, I dodici profeti. Parte prima: Osea, Gioele, Amos Abdia, Giona, Michea, p. 22.

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  • 23

    orculos recolhidos por um grupo de discpulos do mesmo Oseias40

    . Em alguns

    casos, possvel admitir a presena de escribas ou profetas na composio do

    texto (cf. Jr 36); em outros (cf. Os 4,15; 5,5.10.12-14; 6,4.11; 8,14; 10,11; 12,1-3),

    possvel perceber a mo do profeta41

    .

    No tocante ao livro de Oseias, preciso reconhecer que o texto

    notoriamente difcil de ser analisado. Na maioria dos casos, apresenta-se como

    uma srie de fragmentos de no fcil interpretao42

    , que levantam uma

    quantidade considervel de problemas textuais nica no AT exceo feita ao

    livro de J. O fato de o livro de Oseias ter passado por recenses e ter sofrido

    desenvolvimentos, inclusive glosas, pode ser um elemento que justifica ainda

    mais tal quantidade de problemas textuais43

    .

    Por isso, prefervel abordar o livro de Oseias mais como obra literria, um

    todo complexo, do que uma antologia de diversas partes separadas, a fim de obter

    uma compreenso maior e mais integrada da mensagem do profeta44

    . Tal

    compreenso evita que se pense que o texto em si seja o resultado final de um

    longo processo de acrscimos e reelaboraes45

    .

    Alm do material atribudo tradicionalmente a Osias, preciso levar em

    considerao as camadas redacionais e as releituras que foram se inserindo ao

    longo do tempo at a redao final46

    . H quem sustente que o livro teria assumido

    sua forma no Reino do Sul, para onde teria sido levado aps a destruio da

    Samaria em 722 a.C. (ou na iminncia desse fato), constituindo a sua forma

    textual j no perodo pr-exlico47

    .

    40

    Cf. J. L. MAYS, Hosea. A Commentary, p. 16; B. W. ANDERSON, Understanding the Old

    Testament. Englewood CliffsN.J.: PrenticeHall. 1975, p. 284; H. W. WOLFF, Hosea.

    Philadelphia: Fortress Press, 1974, p. xxix-xxxii; F. I. ANDERSEN, D. N. FREEDMAN, Hosea.

    Garden City: Doubleday, 1980, p. 53. 41

    Cf. D. A. GARRETT, The New American Commentary-Hosea-Joel. Vol. 9. Nashville-Tennessee:

    B&H Publishing Group, 1997, p. 24; O. EISSFELD, Einleitung in das Alten Testament. Nachdruck:

    Hildesheim, 1965, p. 519. 42

    Cf. K. NIELSEN, Yahweh as Prosecutor and Judge. An investigation of the prophetic lawsuit

    (RbPattern). p. 6-7. 43

    Cf. D. STUART, World Biblical Commentary Hosea-Jonah, p. 13. 44

    Cf. J. JEREMIAS, Osea. Brescia: Paideia, 2000, p. 7. 45

    Cf. H. SIMIAN-YOFRE, El desierto de los dioses. Teologa e histria en el libro de Oseas, p. 262. 46

    Cf. N. K. GOTTWALD, Introduo Socioliterria Bblia Hebraica. So Paulo: Paulus, 1988, p.

    340. 47

    Cf. R. MARTINACHARD, Oseias. In: S. AMLER, Os profetas e os livros profticos. So Paulo:

    Paulinas, 1992, p.7.

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  • 24

    Entretanto, h evidncias de que os textos profticos sofreram modificaes

    tambm no perodo do exlio babilnico, quando foram reorganizados num nico

    grande complexo pelos israelitas, que buscavam entender o significado dos

    sofrimentos de Jud48

    . H ainda de se considerar o fato de Oseias ter sido o nico

    profeta oriundo do Reino do Norte, o que faz com que no haja muitos pontos de

    comparao com outros profetas que operaram no mesmo contexto, ou seja, pode-

    se pensar que o fenmeno literrio de Oseias seja nico no seu gnero. Portanto,

    no h como distinguir entre o que faz parte do perfil especfico da sua mensagem

    e o que, no sentido geral, fruto da temtica, do estilo e da tradio proftica49

    .

    Outro elemento que se h de considerar importante o momento em que os

    orculos passaram a ser escritos, tornando quase inevitveis acrscimos e

    mudanas 50

    . O encontro da tradio proftica advinda do ambiente do Reino do

    Norte com as tradies do ambiente de Jud, que acolheu os refugiados aps a

    derrota da Samaria, permitiu estruturar a compilao da mensagem e da narrativa

    dos profetas luz da situao de Jud-Jerusalm, inclusive a mensagem de Oseias

    que pertenceria s ultimas dcadas do Reino do Norte51

    .

    provvel que tanto o texto de Oseias quanto o texto de Amos, cujos

    orculos foram pronunciados no Reino do Norte, tenham sido relidos luz do

    contexto do Reino do Sul, que no apresentava uma situao muito diferente

    daquela da Samaria depois que esta sofreu a derrota da Assria. Por esse mesmo

    contexto, percebe-se como as palavras de Oseias acabaram por se tornar bem

    atuais tambm para Jerusalm52

    .

    48

    Cf. W. R. HARPER, A critical and exegetical commentary on Amos and Hosea. Edinburgh: T. &

    T. Clark, 1905, p. 378. 49

    Cf. G. VON RAD, Teologia do Antigo Testamento. So Paulo: Aste/Targumin, 20062, p. 569.

    50 Cf. M. SCHWANTES, As monarquias no antigo Israel. Um roteiro de pesquisa histrica e

    arqueolgica. So Paulo: Paulinas, 2006, p. 147. 51

    Cf. A. H. J. GUNNEWEG, Histria de Israel Dos primordios at Bar Kochba e de Theodor

    Herzl at os nossos dias. So Paulo: Teolgica/Loyola, 2005, p. 187. 52

    Cf. A. A. MACINTOSH, Hosea. A critical and exegetical commentary, p. xxi.

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  • 25

    2.2.2 As tradies poltico-religiosas do ambiente do

    Reino do Norte

    Uma das observaes mais consistentes entre os estudiosos, no que diz

    respeito histria da redao do livro de Oseias, est relacionada s tradies do

    Reino do Norte. diferena dos demais profetas do perodo pr-exlico, Oseias

    trata por extenso das tradies do Norte, especialmente as que esto relacionadas a

    Jac (cf. Os 12,3-5.13), experincia do xodo (cf. Os 11,1; Os 12,10-14; Os

    13,4) e ao deserto (cf. Os 9,10; Os 13,4), em vez de tratar daquelas que esto

    relacionadas a Sio e Davi. Por se tratar de tradies que aparecem de forma

    fragmentria, o debate sobre as origens dessas tradies ainda est vivo entre os

    estudiosos, sobretudo em relao s questes sobre a procedncia, ou seja, como

    Oseias poderia ter conhecido tais tradies e a funo que assumem para o livro.

    Por um lado, alguns53

    priorizam uma leitura intertextual e literria dessas

    tradies; por outro, h os que sustentam a tese de que tais tradies j teriam

    alcanado uma forma prpria bem antes da poca de Oseias54

    . H outros, ainda,

    que consideram que o profeta derivasse seu conhecimento das tradies de

    recitao oral, advindo de cenrios cultuais diversos, talvez em forma de lendas

    sagradas guardadas e transmitidas pela tradio cultual dos santurios do Norte,

    por exemplo, o santurio de Betel55

    .

    A posio que justifica uma estruturao bsica das tradies antes da poca

    de Oseias, embora de maneira diferente das que foram preservadas mais tarde

    concernentes ao Pentateuco, parece se sobressair com uma nfase maior entre os

    estudos cientficos sobre esse tema.

    Houve tambm uma srie de estudos em relao s tradies especficas

    presentes nos orculos de Oseias. As tradies que mais tm chamado a ateno

    53

    Cf. I. WILLY-PLEIN, Vorformen der Schriftexegese innerhalb des Alten Testaments:

    Untersuchungen zum literarischen Werden der auf Amos, Hosea und Micha zurckgeheaden

    Bcher im hebrischen Zwlfprophetenbuch. Berlin: W. de Gruyter, 1971, p. 123; M.A. SWEENEY,

    A Form-Critical Rereading of Hosea. In: JHS, 2(2000), p. 1-16. 54

    Cf. D. A. GARRETT, Hosea, Joel, p. 369; Cf. D. STUART, World Biblical Commentary Hosea-

    Jonah, p. 232-233. 55

    Cf. H. W. WOLFF, Hoseia, p. xxiii; D. R. DANIELS, Hosea and Salvation History: The Early

    Traditions of Israel in the Prophecy of Hosea. In: BZAW, 191 (1990), p. 191; G. I. DAVIES,

    Hosea, p. 70-72; E. K. HOLT, Prophesying the Past: The Use of Israels History in the Book of

    Hosea. In: JSOTSupp, (1995), p. 194.

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  • 26

    dos estudiosos e que poderiam ser consideradas em relao estruturao e

    natureza do livro de Oseias so as seguintes: (a) tradies ligadas ao livro do

    xodo, a permanncia no deserto e a caminhada do povo de Israel (cf. Ex 9,10-17;

    10,1-2; 11,1-7)56

    ; (b) tradies ligadas experincia do Horeb/Sinai, da

    Aliana/Declogo (cf. Ex 4,2; 6,7; 8,1.4-6)57

    ; (c) tradies ligadas ao ambiente

    levtico-sacerdotal (cf. Lv 5,14-15; 6,11-7,1; 9,14)58

    , tradies sapienciais (cf. Sb

    4,15; 5,12; 8,7)59

    ; (d) tradies do Cntico dos Cnticos60

    .

    Em muitas obras, encontra-se entre os estudiosos um interesse maior nas

    tradies concernentes a Jac, ao Deuteronmio e a Jeremias, no que diz respeito

    s caractersticas consideradas como nicas61

    . Assim, essas reas de investigao

    giram em torno da origem das tradies sobre Jac em Oseias com nfase nas

    funes para as quais o texto as emprega. A partir da metade do sculo XX,

    registrou-se uma mudana de pensamento no que concerne ateno dada s

    tradies orais sobre Jac62

    .

    56

    Cf. tambm: Ex 12,10; Ex 13,4-8. Tais tradies so justificadas por: H. W. WOLFF, Hoseia, p.

    34; U. CASSUTO, The Prophet Hosea and the Books of the Pentateuch. Biblical and Oriental

    Studies. Selected Writings. Vol. 1. Jerusalem: Magnes, 1973, p.79-100; C. S. JIMENEZ, El Desierto

    en el profeta Oseas. Estella: Verbo Divino, 2006, p. 45; G. R. BOUDREAU, Hosea and the

    Pentateuchal Traditions: The Case of the Baal of Peor.

    In: M. P. GRAHAM, W. BROWN, J. K. KUAN (eds.), History and Interpretation: Essays in Honour

    of John H. Hayes. In: JSOTSup, 173 (1993), p. 121-32; T. B DOZEMAN, Hosea and the

    Wilderness Wandering Tradition. In: S. L. MCKENZIE, T. ROMER (eds.), Rethinking the

    Foundations: Historiography in the Ancient World and in the Bible: Essays in honour of John Van

    Seters. In: BZAW, 294 (2000), p. 55-70. 57

    Cf. tambm: Ex 10,4; 12,2; 13,1-4. Essas tradies so justificadas por: W. BRUEGGEMANN,

    Tradition for Crisis: A Study in Hosea. Richmond: John Knox Press, 1968, p.14; Cf. D. STUART,

    World Biblical Commentary Hosea-Jonah, p. 98-99. 58

    Cf. H. W. WOLFF, Hoseas geistige Heimat. In: TLZ, 81 (1956), p. 83-94; S. L. COOK, The

    lineage Roots of Hoseass Yahwism. In: Semeia, 87 (1999), p. 145-161. 59

    Cf. tambm: Sb 12,8-9; 14,17. Tradies justificadas por: H. W. WOLFF, Hoseia, p. xxiv;

    C. L. SEOW, Hosea 14,10 and the Foolish People Motif. In: CBQ, 44 (1982), p. 212-24; C. L.

    SEOW, Hosea, Book of. In: ABD, 3 (1992), p. 291-97. 60

    Cf. A. VAN SELMS, Hosea and Canticles. In: OTWSA, 7/8 (1964-1965), p. 85-89;

    F. VAN DIJK-HEMMES, The Imagination of Power and the Power of Imagination: An ntertextual

    analysis of two biblical love songs: the Song of Songs and Hosea 2. In: JSOT, 44 (1989), p. 75-

    88; M. J. BUSS, Hosea as a Canonical Problem: with attention to the Song of Songs. In: S. B. REID

    (ed.), Prophets and Paradigms: Essays in Honor of Gene M. Tucker. In: JSOTSup, 229 (1996), p.

    79-93. 61

    Cf. P. R. ACKROYD, Hosea and Jacob. In: VT, 13 (1963), p. 245-59; E. M. GOOD, Hosea and

    the Jacob Tradition. In: VT, 16 (1966), p. 137-51; F. DIEDRICH, Die Anspielungen auf die Jakob

    -Tradition in Hosea 12,113,3e. Literaturwissenschaftlicher Beitrag zur Exegese frher Propheten

    Texte. In: EB, 27 (1977); W. D. WHITT, The Jacob Traditions in Hosea and Their Relation to

    Genesis. In: ZAW, 103 (1991), p. 18-43; B. J. KOET, Jacob, comme prototype dIsrael en Osee

    12. In: IJPT, 63 (2002), p. 156-70. 62

    Cf. E. M. GOOD, Hosea and the Jacob Tradition, p. 139.

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  • 27

    As pesquisas comearam a dar um valor maior a tais tradies mais do que

    s tradies preservadas em Gneses, pelo fato de ser mais extensas e diversas ou

    at mesmo querendo partilhar de uma fonte comum s tradies do Pentateuco

    que parece se adaptar a Oseias de diversas maneiras63

    . A relao de Oseias com as

    tradies deuteronomistas e com o ambiente cultural do Reino do Norte abrange

    tambm questes de linguagem teolgica, tais como a eleio (cf. Dt 4,37; 7,6-8;

    Os 9,10; 11,1) e o convite ao arrependimento/retorno a YHWH (cf. Dt 4,29-31;

    30,1-10; Os 6,1-3; 14,2-3).

    A procedncia do Reino do Norte e a partilha da tradio comum entre o

    material deuteronomista e o livro de Oseias fornecem um ponto de partida comum

    para explicar tais semelhanas, mesmo que a pesquisa moderna permanea

    dividida sobre a natureza precisa da relao entre tais livros, pois ainda h de se

    debater sobre as origens e a composio do Deuteronmio, bem como a tradio

    deuteronomista64

    .

    Alguns trabalhos recentes reconhecem certa primazia da tradio

    deuteronomista como fonte direta para Oseias ou a possibilidade do livro ter sido

    obra de um redator nico durante a poca de Josias65

    , mas h estudiosos que

    apoiam a perspectiva que tem sido dominante desde a poca de Wellhausen66

    , isto

    , a de que os livros de Oseias e do Deuteronmio no apresentariam

    dependncias literrias diretas, mas ambos recorreriam a uma corrente maior de

    tradies originrias do Reino do Norte. Nessa perspectiva, possvel acreditar

    que o profeta Oseias se aproximaria mais desse fluxo de tradies do Reino do

    Norte do que da tradio deuteronomista, oferecendo uma reformulao das

    primeiras que, em seguida, poderiam ter favorecido o surgimento do contexto

    teolgico de obras posteriores67

    .

    63

    Cf. H. L. GINSBERG, Hoseas Ephraim: more fool than knave: a new interpretation of Hosea

    12,1-14. In: JBL, 80 (1961), p. 339-47; W. D. WHITT, Hosea and the Jacob Tradition, p. 35. 64

    Cf. B. E. KELLE, Hosea 414 in Twentieth-Century Scholarship. In: CBR, 8.3 (2010), p. 326. 65

    Cf. G. A. YEE, Composition and Tradition in the Book of Hosea: A Redaction Critical

    Investigation. Atlanta: Scholars Press SBLDS, 1987, p. 309; D. STUART, World Biblical

    Commentary Hosea-Jonah, p. 98-99. 66

    Cf. J. G. MCCONVILLE, Law and Theology in Deuteronomy. In: JSOTSup, 33 (1984), p. 125. 67

    Cf. J. L. MAYS, Hosea. A Commentary, p. 52; F. I. ANDERSEN, D. N. FREEDMAN, Hosea. Garden

    City: Doubleday, 1980, p. 75; M. J. BUSS, The Prophetic Word of Hosea. In: BZAW, 111

    (1969), p. 125. G. I. DAVIES, Hosea. OTG. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1993, p. 163.

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  • 28

    Pesquisas mais recentes argumentam que o livro de Oseias usaria elementos

    tanto da tradio deuteronomista como do Reino do Norte com o intuito de criar

    uma ciso entre o passado e o presente de Israel68

    , a fim de demonstrar a

    constncia do amor de YHWH por Israel, o que, portanto, seria incentivo para

    despertar no povo o arrependimento e a converso69

    .

    Procedendo da convico mais ampla de que o profeta Oseias teria herdado

    uma compreenso coerente do incio da histria de Israel, assim como se

    articulava nos crculos sacerdotais, foram-se examinando diversas passagens

    particulares70

    para justificar que tais tradies j existiam no Pentateuco e que

    aquelas presentes em Oseias, como parte integrante da sua mensagem, poderiam

    ter sido sintetizadas dentro de uma compreenso coerente a partir do incio da

    histria de Israel71

    .

    Mais recentemente foi aceita a hiptese de que o profeta Oseias teria

    herdado de tradies locais, orais e cultuais, os elementos bsicos do livro, de

    maneira que este preservaria a forma mais antiga de composio a partir desse

    rico repertrio72

    .

    A viso teolgica que procede dessa interpretao deixa entrever certa

    proximidade das tradies acerca de Jac, a partir de referncias especficas no

    livro de Oseias (cf. Os 12,3-7; 12,13-14), incluindo tambm as representaes de

    Israel como rebelde (cf. Os 6,7; 8,1; 9,10-17; 10,11-13; 11,1; 13,4-8), e poderia

    demonstrar o fato de que o profeta usaria dessas tradies para fazer valer a

    exclusividade da reivindicao de YHWH sobre Israel. Isso explicaria o porqu

    do uso que o profeta Oseias faz das tradies que enfatizam o lao de

    reciprocidade entre YHWH e Israel, isto , o cuidado do mesmo YHWH para com

    o seu povo73

    .

    68

    Cf. J. VOLLMER, Geschichtliche Rckblicke und Motive in der Prophetie des Amos, Hosea,

    und Jesaja. In: BZAW, 119 (1971), p. 254. 69

    Cf. H. D. NEEF, Die heilstraditionen Israels in der verkundigung des Propheten Hosea. In:

    BZAW, 169 (1987), p. 178. 70

    Cf. Os 2,16-25; 6,7-10; 8,1-3; 9,10-13; 11, 1-7; 12,3-15; 13,4-8. 71

    Cf. D. R. DANIELS, Hosea and Salvation History: The Early Traditions of Israel in the Prophecy

    of Hosea, p. 123-4. 72

    Cf. E. K. HOLT, Prophesying the Past: the use of Israels history in the Book of Hosea. In:

    JSOTSup, 194 (1995), p. 95. 73

    Cf. B. E. KELLE, Hosea 414 in Twentieth-Century Scholarship, p. 328.

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  • 29

    2.2.3 Hipteses redacionais

    Consoante o exame dos contedos herdados e trazidos composio do

    livro de Oseias, vrias questes redacionais envolveram-se no estudo dessa obra

    literria. Um motivo que animou as anlises da crtica da redao sobre o livro de

    Oseias, no passado, foi a observao de que essa obra literria parece ser

    constituda por duas partes por vezes desconexas entre si: Os 13 e Os 414.

    Entre os exegetas, h quem sustente a posio de que a atual forma do livro

    conteria os orculos de dois profetas diferentes que viveram em pocas distintas74

    .

    Alm disso, a natureza desarticulada dos contedos de Os 414 deixa

    entrever um trabalho que se assemelha a fruto de diversas mos, que se alternaram

    na formao do livro, ao longo do tempo, a partir da contribuio do material

    vindo do Reino do Norte e que se sucederam no tempo at o sculo VIII,

    culminando no ambiente temporal de Oseias75

    .

    Entre os anos 1980 - 1990, prevaleceu a posio que apontava para uma

    origem do livro a partir de trs blocos ou complexos de transmisso: (a) Os 13;

    (b) Os 411; (c) Os 1214. Tais blocos seriam o resultado de um processo de

    desenvolvimento independente um do outro e teriam sido ajuntados em poca

    posterior. Cada um desses blocos, contendo uma mistura de palavras originais

    tpicas do ambiente de Oseias e acrscimos posteriores, teria sido estruturado de

    maneira a mudar o tom de acusao presente na verso original para um tom mais

    de restaurao76

    .

    Particular ateno prestava-se ao material redacional presente em Os 414,

    pois neste poderia ser encontrada uma quantidade significativa de orculos

    considerados como originais de Oseias, estruturados de uma maneira

    aproximadamente cronolgica. Contudo, mesmo que o material contido nesses

    trs complexos de transmisso tenha sido colocado por escrito enquanto Oseias

    74

    Cf. Y. KAUFMANN, The Religion of Israel: from its beginnings to the Babylonian exile. London:

    George Allen and Unwin; 1961, p. 56; H. L. GINSBERG, Hosea, In: EncJud, 8 (1971), p. 1010-

    1024. 75

    Cf. B. E. KELLE, Hosea 414 in Twentieth-Century Scholarship, p. 328. 76

    Cf. H. W. WOLFF, Hosea, p. xxxi.

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  • 30

    ainda estava em vida, no teria alcanado a sua forma final a no ser s muito

    tempo depois77

    .

    Aps o ano de 1980, outras pesquisas se propuseram a recuperar expresses

    tpicas de Oseias, distinguindo-as das expresses do ambiente judaico, j que o

    destaque das mudanas redacionais que afetaram as colees dos orculos de

    Oseias a partir do contexto cultural do Reino do Sul pode ajudar a identificar essas

    atividades editoriais em vrios nveis da histria da composio do texto78

    .

    Quando, por volta de 1970, percebeu-se a necessidade de reconsiderar o

    valor das assim chamadas partes no autnticas do livro de Oseias, principiou-

    se por estabelecer o objetivo global do livro, considerando principalmente o papel

    dos elementos redacionais como parte de um todo. Foram assim identificados oito

    grupos de orculos, que redatores de vrias pocas haviam acrescentado ao longo

    do tempo a um texto primitivo do livro. Chegou-se concluso de que tais

    orculos poderiam ser considerados como acrscimos interpretativos com a

    funo de interagir com o contexto geral e com o objetivo de produzir uma viso

    integrada da composio final do texto79

    .

    Outras consideraes, no que tange gnese do livro de Oseias, ocorreram a

    partir do momento em que mudou o fim do debate, o qual passou do interesse

    sobre a integrao interna do diverso material redacional a uma ateno maior

    sobre a intencionalidade e a coerncia da composio final alcanada, mediante

    uma redao sistemtica e compreensiva dos diversos nveis do material80

    . Esse

    debate necessitou de uma insero das dinmicas sociais e ideolgicas, bem como

    das circunstncias e das finalidades que levaram constituio do texto.

    Mostra-se razovel a ideia de um processo redacional em que os orculos

    contidos em Os 414 possam ser considerados de autoria do profeta Oseias,

    mesmo que tenham passado por mudanas feitas pelas mos dos discpulos do

    profeta at alcanar sua forma final somente durante a poca do exlio. Esse

    77

    Cf. B. E. KELLE, Hosea 4-14 in Twentieth-Century Scholarship, p. 329. 78

    Cf. H. FREY, Das Buch des Werbens Gottes um seine Kirche: Der Prophet Hosea. In: BAT, 23

    (1957), p. 2; E. M. GOOD, Hosea and the Jacob Tradition, p. 146; J. L. MAYS, Hosea. A

    Commentary, p. 12. 79

    Cf. I. WILLI-PLEIN, Vorformen der Schriftexegese innerhalb des Alten Testaments:

    Untersuchungen zum literarischen Werden der auf Amos, Hosea und Micha zurckgeheaden

    Bcher im hebrischen Zwlfprophetenbuch. In: BZAW, 123 (1971), p. 136. 80

    Cf. B. E. KELLE, Hosea 414 in Twentieth-Century Scholarship, p. 330.

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  • 31

    processo pode ser considerado como um todo coerente em si mesmo e no como

    uma miscelnea desorganizada de material procedente de vrias tradies81

    .

    H pesquisadores que conseguiram desenvolver uma viso mais abrangente

    e completa em relao integrao intencional do material redacional original no

    livro de Oseias82

    . A utilizao de critrios teolgicos, histricos e lingusticos,

    sobretudo em relao ao ambiente cultual de Jud-Jerusalm e s atitudes quanto

    ao Reino do Norte, permitiu a identificao de material redacional associado ao

    trabalho de reelaborao do material original feito na poca judaica com a

    tradio deuteronomista da poca de Josias83

    .

    Dessa maneira, seria possvel considerar a integrao do material redacional

    advindo de diversas tradies no livro como num todo, aproveitando a

    oportunidade para perceber que o material de tradio judaica, que veio a se

    sobrepor ao material original, no se limitaria a apresentar a mensagem do profeta

    em si, mas reelaboraria propositadamente o material geral em funo de uma nova

    situao84

    .

    Em outras abordagens crticas, com o uso de alguns dos mesmos critrios,

    foi identificado o material redacional relacionado a quatro estgios redacionais

    distribudos ao longo de um perodo entre o prprio profeta Oseias, do sculo

    VIII, at um redator final provavelmente do perodo exlico. Contudo, essa viso

    levaria a entender a redao final do livro no como uma obra de simples

    colecionadores, acrescentando material novo ou introduzindo glosas, mas como

    uma nova obra literria a cada redao, em conformidade com os objetivos do

    redator85

    .

    Por outro lado, no haveria razo para apoiar tal processo redacional, pois

    h motivos para justificar como vlida a posio de quem, entre os exegetas,

    81

    Cf. F. I. ANDERSEN, D. N. FREEDMAN, Hosea, p. 66. De uma perspective mais conservadora

    revelam-se: D. STUART, World Biblical Commentary Hosea-Jonah, p. 28; D. A. HUBBARD,

    Hosea: An Introduction and Commentary. Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1989, p.

    22. 82

    Cf. G. I. EMMERSON, Hosea: An Israelite Prophet in Judean Perspective. In: JSOTSup, 28

    (1984), p. 9-20; Cf. G. A. YEE, Composition and Tradition in the Book of Hosea: A Redaction

    Critical Investigation, p. 45. 83

    Cf. B. E. KELLE, Hosea 414 in Twentieth-Century Scholarship, p. 330. 84

    Cf. G. I. EMMERSON, Hosea: An Israelite Prophet in Judean Perspective, p. 18-19. 85

    Cf. G. A. YEE, Composition and Tradition in the Book of Hosea: A Redaction Critical

    Investigation, p. 48.

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  • 32

    percebe a presena de unidade de estilo e de teologia que leva necessariamente a

    reconhecer a presena de um nico redator que respeitou o estilo do profeta

    Oseias, emprestando, de certa maneira, a sua prpria voz86

    .

    Enquanto obras mais recentes tm sustentado a teoria de que haveria pouco

    ou at nenhum material de importncia secundria no livro de Oseias87

    , a maioria

    das pesquisas publicadas a partir de 1990 aceita a presena de grande quantidade

    de material editorial, mas que mesmo assim teria sido cuidadosamente integrado

    dentro de uma composio unitria e planejada88

    .

    A diferena principal entre os estudos mais recentes tem a ver com a nfase

    dada apresentao dos detalhes, ao carter e procedncia das diversas camadas

    redacionais e o seu processo de desenvolvimento, juntamente a ateno dada s

    dinmicas e s finalidades do trabalho de redao final89

    .

    Destacando questes como o processo de composio, de mudanas, de

    redao, bem como as circunstncias e os objetivos pelos quais o livro foi escrito,

    percebem-se ainda divergncias sobre o assunto. Contudo, devem-se considerar as

    duas posies que tm sido objeto de discordncia sobre as transformaes que o

    material original sofreu.

    Por um lado, h aqueles que defendem a opinio de que existe a

    possibilidade de que o material redacional tenha passado por transformaes antes

    de ser levado para Jud-Jerusalm. Aps a queda do Reino do Norte, uma coleo

    dos orculos de Oseias teria sido levada para o Reino do Sul e reelaborada

    sucessivamente, passando ao menos por duas redaes90

    . S durante a ltima

    parte do exlio ou no primeiro perodo ps-exlico, essa coleo teria alcanado

    sua forma final como sntese das vrias colees que conseguiram chegar at

    ento91

    . Por outro lado, h quem defenda a posio de que o livro teria sido o

    resultado de um trabalho de redao de poca exlica ou ps-exlica, em que o

    86

    H. SIMIAN-YOFRE, El desierto de los dioses. Teologa e Histria en el libro de Oseas, p. 262. 87

    Cf. D. A. GARRETT, Hosea-Joel, p. 25; W. GISIN, Hosea: Ein literarisches Netzwerk beweist

    seine Authentizitt. In: BBB, 139 (2002), p. 374-376. 88

    Cf. M. W. MITCHELL, Hosea 12 and the Search for Unity. In: JSOT, 29 (2004), p. 115-27. 89

    Cf. B. E. KELLE, Hosea 414 in Twentieth-Century Scholarship, p. 331. 90

    Cf. H. W. WOLFF, Hosea, p. xxxii. 91

    Cf. T. NAUMANN, Hoseas Erben: Strukturen der nachinterpretation im Buch Hosea. In:

    BWANT, 131 (1991), p. 39-40; Cf. A. A. MACINTOSH, Hosea. A critical and exegetical

    commentary, p. lxxii; M. A. SWEENEY, Berit Olam. The Twelve Prophets. Vol. 1. Collegeville,

    MN: Liturgical, 2000, p. 7.

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  • 33

    redator teria utilizado um material anterior para criar um texto completo e

    coerente em si de uma vez s92

    .

    Os que se concentraram sobre o desenvolvimento do material de Os 411

    demonstraram certo interesse, pois perceberam que esse material poderia ser

    considerado como um conjunto de orculos passando por um processo redacional,

    em cujo final o trabalho obtido seria parecido a uma colcha de retalhos,

    composta por diversos estilos, formas e partes dissonantes93

    .

    Admitindo uma diversidade de opinies sobre o produto final do processo

    de redao do livro de Oseias, pode-se chegar concluso de que o

    remanejamento do material redacional por parte dos redatores, em cada fase do

    desenvolvimento do texto, pode ter acontecido dentro dos moldes de um plano de

    composio tal, que seria difcil distinguir o material original do material que foi

    acrescentado entre as camadas redacionais94

    .

    Uma tendncia relativamente recente da crtica das redaes tem-se

    debruado de maneira especial sobre algumas sees do livro de Oseias, no

    tocante a Os 4,19,9 ou Os 5,88,14, ou at mesmo elementos literrios

    especficos ou verbais, como, por exemplo, o nome de quem pronuncia um

    discurso ou de quem o acolhe ou, mais ainda, o nome do lugar de acontecimentos,

    para melhor entender o modo como se sucederam as etapas de desenvolvimento

    da histria da composio do livro95

    .

    Outra teoria considera a seo de Os 49 como sendo um ncleo composto

    por orculos96

    considerados originais, ao qual se foram juntando camadas

    redacionais, tanto dentro quanto fora dessa seo. Originalmente Os 49

    conteriam as preocupaes do profeta com assuntos de carter poltico, tendo sido

    mais tarde includos o culto e as retrospectivas histricas97

    .

    92

    Cf. E. BEN ZVI, Hosea. Grand Rapids: Eerdmans, 2005, p. 17; M. NISSINEN, Prophetie,

    Redaktion und Fortschreibung im Hoseabuch: Studien zum Werdegang eines Prophetenbuches im

    Lichte von Hos 4 und 11. In: AOAT, 231 (1991), p. 330-337. 93

    Cf. M. NISSINEN, Prophetie, Redaktion und Fortschreibung im Hoseabuch: Studien zum

    Werdegang eines Prophetenbuches im Lichte von Hos 4 und 11, p. 336. 94

    Cf. T. NAUMANN, Hoseas Erben: Strukturen der nachinterpretation im Buch Hosea, p. 39-40. 95

    Cf. M. MULZER, Alarm fr Benjamin. Text, Struktur und Bedeutung in Hos 5,88,14. Arbeiten

    zu Text und Sprache im Alten Testament. St. Ottilien: EOS-Verl, 2003, p. 74; W. SCHTTE, Die

    Entstehung der juda-exilischen Hoseaschrift. In: Bib, 85 (2014), p. 198-223. 96

    Destacam-se de maneira especial: Os 5,1-2; 6,77,2; 7,3-7 e Os 812. 97

    Cf. R. VIELHAUER, Das Werden des Buches Hosea: Eine Redaktionsgeschichtliche

    Untersuchung. In: BZAW, 349 (2007), p. 225-229.

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  • 34

    Promovem certo interesse tambm as orientaes crticas sobre o processo

    redacional do livro de Oseias, visto que se concentram sobre as circunstncias e os

    propsitos que levaram composio do livro98

    . Essa linha de estudo, mesmo

    reconhecendo no livro de Oseias a presena de materiais posteriores poca do

    profeta sobretudo aqueles que se referem ao contexto de Jud-Jerusalm ,

    refora que o mesmo Oseias, retirando-se vida privada por volta de 733 a.C.,

    teria trabalhado e expandido os seus prprios orculos pblicos dentro da seo

    Os 414. Dessa forma, o livro poderia ser uma obra literria que teria sido

    completada antes de ser levada para Jud, depois da queda do Reino do Norte99

    .

    Por outro lado, seria possvel pensar em abordar o livro de Oseias como uma

    unidade literria autnoma, mais do que uma combinao de tradies e materiais

    redacionais diversos, devendo identificar possveis autores e redatores100

    .

    Estudos especficos, porm, chamaram a ateno sobre o material redacional

    mais antigo, que teria sido reelaborado para constituir um texto organicamente

    unitrio s na poca ps-monrquica de Je por obra de escribas. Estes teriam

    acrescentado ao material redacional recebido a figura de um personagem

    proftico, antigo, a fim de criar uma obra de autoridade, concebida para ser lida

    como Palavra de YHWH101

    .

    Diante dessa variedade de posies crticas quanto gnese do livro de

    Oseias, difcil dizer qual deveria ser a resposta acertada, considerando que o

    processo de reconstruo histrica de um texto tanto mais complicada quanto

    maior o tempo que separa o autor do material do redator, como tambm o

    redator do leitor final, pois esse ltimo olhar que se tem no momento. Talvez o

    objetivo no seja, de fato, procurar saber qual das posies apresentadas a que

    mais se aproxima da verdade. Talvez seja mais oportuno procurar entender, por

    meio da reconstruo do processo redacional, qual a mensagem que o profeta quis

    transmitir, bem como o que ela significa para o contexto atual.

    Ao abordar tal mensagem, ser inevitvel no pensar que est pronta a fazer

    parte do processo histrico da sua compreenso que se estende enquanto se busca

    98

    Cf. B. E. KELLE, Hosea 414 in Twentieth-Century Scholarship, p. 332. 99

    Cf. A. A. MACINTOSH, Hosea. A critical and exegetical commentary, p. lxvi-lxxiii. 100

    Cf. E. BEN ZVI, Hosea, p. 4. 101

    Cf. J. TROTTER, Reading Hosea in Achaemenid Yehud. In: JSOTSup, 328 (2001), p. 167-178.

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  • 35

    a comunicao e se esbarra na reciprocidade do dilogo espontneo e certo entre

    humanos que compreendem a notcia divina.

    2.3 Estrutura do livro

    Geralmente no h um parecer comum em relao estrutura do livro. Em

    certos casos, tem-se procurado respeitar a unidade interna da obra em si, tentando

    recuperar unidades textuais amplas e excluindo a escolha de dividi-las para

    interpret-las102

    .

    Na maioria das vezes, percebe-se o livro de Oseias dividido em trs grandes

    partes103

    . A primeira delas (cf. Os 1,23,5) narra o casamento de Oseias seguido

    do nascimento de seus filhos e traz orculos do profeta. Nessa parte, possvel

    entrever a experincia do casamento como paradigma do relacionamento entre

    YHWH e Israel. Houve uma diviso da primeira parte (cf. Os 13), segundo trs

    nveis de leitura: biogrfico-teolgico, histrico e mtico-religioso. Tal diviso

    no foi considerada como que uma subdiviso de Os 13, mas a tentativa de

    apresentar como o profeta quis reler a prpria vida luz de novos acontecimentos

    pessoais ou pblicos.

    A segunda parte (cf. Os 4,111,11) aparece como uma coletnea de orculos

    profticos: a mensagem do profeta Oseias articula-se ao redor do tema do juzo

    contra Israel e conclui-se com o clamor apaixonado de YHWH, que parece

    demonstrar sua incapacidade de exterminar Israel e de permitir que seja destrudo.

    Nessa parte, mais difcil identificar as unidades porque elas tm sido reunidas

    sem introduo e sem concluso104

    .

    Por fim, a terceira parte (cf. Os 12,114,9) se apresentaria como uma

    coleo de orculos posteriores a Oseias, cuja composio remeteria ao ltimo

    perodo do Reino do Norte. Cada uma dessas trs partes comearia com uma

    102

    Cf. H. SIMIAN-YOFRE, El desierto de los dioses. Teologa e Histria en el libro de Oseas, p.

    261.

    103 Cf. H. W. Wolff, Hosea, p. xxix; G. A. Yee, Composition and Tradition in the Book of Hosea:

    A Redaction Critical Investigation, p. 51-52; G. I. Davies, Hosea, p. 102-107; E. M. Good, The

    Composition of Hosea. In: SEA, 31 (1966), p. 21-31; M. Buss, The Prophetic Word of Hosea: A

    Morphological Study. Berlin: A. Topelmann, 1969, p.111.

    104 Cf. H. W. Wolff, Hosea, p. xxx.

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  • 36

    perspectiva de julgamento de Israel e teria como desfecho a sua restaurao e

    salvao105

    .

    Essa perspectiva permite critica da redao perceber que ao material

    original que apresentava a perspectiva de condenao do povo de Israel foi

    acrescentado um material redacional mais tardio, que muda, assim, um desfecho

    de condenao para outro de grande esperana e salvao.

    Esse tipo de leitura crtica da estrutura do livro de Oseias se apresenta

    problemtico, uma vez que no parece estar baseado inteiramente sobre a

    considerao das caractersticas literrias do livro em sua forma atual, pois

    identifica o remetente e o destinatrio de uma percope especfica, o que pode

    prejudicar indevidamente as consideraes sobre a estrutura literria geral106

    .

    Essa problemtica se evidencia em Os 13; j que nessa unidade se percebe

    uma preocupao geral com a situao pessoal de Oseias e de seu casamento, que

    permite suprimir importantes caractersticas literrias, como, por exemplo, a voz

    narrativa do texto. J em Os 3, a narrao aparece mais autobiogrfica, pois

    evidente que em Os 1 h uma indicao clara e objetiva sobre Oseias. Ademais, o

    material potico encontrado a partir de Os 2,4 revela uma mensagem do profeta

    dirigida ao povo de Israel, enquanto Os 2,1-3 formulada com um estilo mais

    apurado107

    .

    Tal hiptese sugere que Os 13 poderia ser considerado no como um bloco

    nico, mas como dois blocos textuais formulados distintamente por autores

    diferentes para um pblico alvo diferente, ou seja, Os 1,12,3 para o leitor e Os

    2,43,5 alternativamente para o povo de Israel, em Os 2,4-25, e ao leitor em Os

    3,1-5108

    .

    Uma problemtica similar se encontra em Os 411, em que se detectam

    frmulas introdutrias de abertura, em analogia com Os 2,4, em que o autor

    estaria se dirigindo a um pblico especfico no meio do povo de Israel109

    . Tal

    pblico incluiria tambm o povo de Israel que se encontra a partir de Os 4,1, isto

    , os filhos de Israel, os sacerdotes e o rei (cf. Os 5,1). Esses anncios parecem se

    105 Cf. H. W. Wolff, Hosea, p. xxxi. 106

    Cf. M. A. Sweeney, A Form-Critical Rereading of Hosea, p. 1-16. 107

    Cf. I. WILLI-PLEIN, Vorformen der Schriftexegese innerhalb des Alten Testaments, p.137. 108

    Cf. M. A. SWEENEY, A Form-Critical Rereading of Hosea, p. 1-16. 109

    Cf. T. NAUMANN, Hoseas Erben: Strukturen der nachinterpretation im Buch Hosea, p. 39-40.

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  • 37

    misturar com um material descritivo sobre Israel, apresentando-se geralmente

    como Palavra de YHWH ou do profeta a um pblico no especificado no decorrer

    dos captulos de Os 411110

    . Da mesma forma, no bloco de Os 1214, Os 14,2

    parece conter um orculo dirigido a Israel. Pelo contexto, poderia tratar-se tanto

    da situao de Israel como um todo, quanto da de pessoas especficas.

    Ao esboar uma estrutura do livro de Oseias, observam-se alguns

    elementos: o livro comea (cf. Os 1,1) identificando o contedo, o autor e o

    contexto histrico dos acontecimentos111

    . Segundo algumas posies crticas, no

    seria possvel atribuir ao profeta Oseias a autoria desse versculo inicial, mas sim

    obra de um autor annimo que aparece em dois pontos estratgicos do livro.

    O primeiro ponto aparece em Os 1,22,3 ao descrever a maneira tpica de

    YHWH se dirigir ao profeta Oseias. O trabalho desse autor annimo surge na

    declarao inicial em Os 1,2b e nas indicaes narrativas das palavras de YHWH

    dirigidas ao profeta e das aes subsequentes deste de acordo com a lgica da

    percope Os 1,22,3112

    . Em Os 2,4 parece comear uma nova percope. Nesse

    ponto, o foco Oseias dirigir-se aos filhos nascidos do casamento (cf. Os 1,22,3)

    mais do que dar ateno narrativa das palavras de YHWH dirigidas a ele.

    O segundo ponto estratgico aparece em Os 14,9 e, tambm, em Os 14,10,

    em que poderia tratar-se de um convite final a compreender o anncio que foi

    feito nos captulos anteriores a seguir os caminhos de YHWH (cf. Os 14,10).

    Em linha geral, portanto, pode-se justificar a presena de trs elementos

    centrais na estruturao do livro, considerando a importncia fundamental do

    autor annimo no processo de constituio da estrutura do livro. O primeiro

    elemento estrutural aparece no versculo de abertura (cf. Os 1,1) em que est

    identificado o contedo do livro, isto , Palavra de YHWH que foi dirigida a

    Oseias, filho de Beeri, nos dias de Ozias, Joato, Acaz, Ezequias, reis de Jud, e

    nos dias de Jeroboo, filho de Jos, rei de Israel 113

    .

    110

    Cf. M. NISSINEN, Prophetie, Redaktion und Fortschreibung im Hoseabuch: Studien zum

    Werdegang eines Prophetenbuches im Lichte von Hos 4 und 11, p. 335. 111

    Cf. G. M. TUCKER, Prophetic Superscriptions and the Growth of the Canon. In: G. W. COATS,

    B. O. LONG (org.), Canon and Authority. Philadelphia: Fortress, 1977, p. 56. 112

    Cf. M. A. SWEENEY, A Form-Critical Rereading of Hosea, p. 1-16. 113

    Cf. M. A. SWEENEY, Berit Olam. The Twelve Prophets, p. 8.

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  • 38

    O segundo elemento corresponderia a Os 1,214,9, que se considera como o

    corpo principal do livro, estruturado como um relato das palavras de YHWH

    dirigidas ao profeta (cf. Os 1,22,3) e o relato das palavras subsequentes de

    Oseias baseadas na experincia da escuta da Palavra de YHWH (cf. Os 2,414,9)

    114.

    No final, o terceiro elemento estrutural selecionado em Os 14,10 pode ser

    considerado como o posfcio do livro com relativo convite escuta e

    compreenso da mensagem de YHWH115

    . O valor disso resulta na importncia

    relevante na interpretao geral do livro, pois auxilia a compreenso quanto ao

    livro de Oseias, que no apenas uma transcrio ou relatrio da experincia e da

    mensagem do profeta, mas uma apresentao para fins didticos ou persuasivos,

    isto , o leitor que se aproximar, a fim de conhecer o texto, dispe-se a aprender o

    que encontrar nele e a aplic-lo na sua vida.

    Houve estudos que propuseram uma anlise da estrutura com base em

    critrios de repetio de slogans e padro formal comum. Nesse caso, depara-se

    com uma diviso maior no interior do livro, entre Os 13 e Os 414116

    ,

    considerando vinte e dois orculos presentes em Oseias, sendo os primeiros trs

    em Os 13 e os demais em Os 414.

    Os orculos profticos que se encontram em Os 414 esto reunidos numa

    srie de cinco ciclos. Cada um dos ciclos desdobra-se em torno de conceitos

    ou slogans. Os ciclos so os seguintes: (a) o culto s runas (cf. Os 4,15,7),

    cujo slogan prostituio; (b) a desordem da poltica e da sociedade (cf. Os

    5,88,10), cujo slogan reis e prncipes; (c) o caos da religio (cf. Os 8,11

    9,9), cujos slogans so sacrifcios e retorno ao Egito; (d) o pecado de Israel na

    histria (cf. 9,1011,11), cujos slogans so frutos e colina; (e) o

    esquecimento das sagradas tradies (cf. Os 12,114,10), cujos slogans so

    Egito, Assria e YHWH teu Deus117

    . Em relao s unidades menores, tal

    posio crtica observa que cada um dos orculos profticos individuais comea

    com um chamado na segunda pessoa ou com o anncio de um dia de julgamento

    114

    Cf. G. M. TUCKER, Prophetic Superscriptions and the Growth of the Canon. p. 67. 115

    Cf. C. L. SEOW, Hosea 14:10 and the Foolish People Motif, p. 212-224. 116

    Cf. M. J. BUSS, The Prophetic Word of Hosea: a morphological Study. In: BZAW, 11 (1969),

    p. 18. 117

    Cf. M. J. BUSS, The Prophetic Word of Hosea: a morphological Study, p. 31.

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  • 39

    ou de referncia histrica e termina com uma palavra que se refere a um desastre

    ou a uma esperana.

    Tal viso, ao utilizar a crtica das formas para analisar o livro de Oseias,

    deixa entrever alguns pontos fracos. Por um lado, nem sempre aparece com

    clareza que os slogans tm essa funo no contexto em que eles esto situados. As

    passagens em questo no focam especificamente as temticas que so indicadas

    como inerentes e, ao que parece bem claro, no respeitam devidamente os limites

    do prprio texto118

    .

    Embora seja verdade que termos como ou apaream no ciclo da

    desordem da poltica e da sociedade, tais termos aparecem tambm em outras

    partes do livro de Oseias119

    . No h nenhum motivo para pensar que palavras que

    marcam de maneira especfica uma percope no possam ter um significado

    especial tambm para o restante do livro.

    A proposta ora descrita parece no ter muita fundamentao, pois a questo

    da anlise dos slogans apresenta-se bastante arbitrria para sustentar tal

    estruturao do livro, e as variveis que se encontram na anlise dos orculos so

    excessivas para confirmar uma teoria120

    .

    Outras posies crticas chegam a dividir o texto em mais sees. H

    estudiosos que propem, por exemplo, uma diviso em quatro sees: 1) Os 1,1

    3,5: Casamento de Oseias; 2) Os 4,17,16: Estado das Naes; 3) Os 8,111,11:

    Histria espiritu