magritte e a crítica da representação

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Uma reflexão sobre a produção pictórica de Magritte.

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  • 1

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO CENTRO DE ARTES

    DEPARTAMENTO DE ARTES VISUAIS

    LARA CARPANEDO CARLINI

    MAGRITTE E A CRTICA DA REPRESENTAO: UMA REFLEXO SOBRE A PRODUO

    PICTRICA DE REN MAGRITTE

    VITRIA 2013

  • 2

    LARA CARPANEDO CARLINI

    MAGRITTE E A CRTICA DA REPRESENTAO: UMA REFLEXO SOBRE A PRODUO

    PICTRICA DE REN MAGRITTE

    Trabalho de Graduao apresentado junto ao curso de Artes Visuais da Universidade Federal do Esprito Santo como requisito parcial para obteno do ttulo de Licenciatura. Orientador: Prof. Dr. Alexandre Emerick Neves.

    VITRIA 2013

  • 3

    minha famlia, amigos e professores.

  • 4

    Ao escrevermos, como evitar que escrevamos

    sobre aquilo que no sabemos ou que

    sabemos mal? necessariamente neste ponto

    que imaginamos ter algo a dizer. S

    escrevemos na extremidade de nosso prprio

    saber, nesta ponta extrema que separa nosso

    saber e nossa ignorncia e que transforma um

    no outro.

    Gilles Deleuze

  • 5

    RESUMO

    A produo pictrica de Ren Magritte enfrentou muitas interpretaes

    consideradas gratuitas pelo prprio artista. O objetivo desse estudo propor

    uma reflexo capaz de valorizar a compreenso do trabalho de Magritte como

    uma crtica representao. feita uma contextualizao relacionando o que o

    historiador da arte Giulio Carlo Argan denominou de a poca do funcionalismo

    ao Dadasmo e ao Surrealismo, bem como um levantamento de questes

    formalistas, que na concepo do crtico de arte Clement Greenberg, implicam

    na omisso da participao da pintura surrealista na narrativa histrica

    moderna. A partir dos apontamentos realizados por Michel Foucault, levando

    em conta principalmente a obra A Traio das Imagens (Isto no um

    cachimbo), de 1928/29, estabelecida certa autonomia entre elemento grfico

    e elemento pictrico, alm da compreenso dos elementos do quadro como

    similitudes. Ento, feita uma avaliao que considera que a crtica

    representao evocada pela obra de Magritte proporciona o questionamento do

    hbito de submeter a experincia relacionada ao contato com a arte ao

    discurso, configurando uma relao hierrquica.

    Palavras-chave: Ren Magritte. Crtica representao. Foucault.

  • 6

    ABSTRACT

    Ren Magrittes pictorial production has faced many interpretations considered

    gratuitous by the artist himself. The aim of this study is to propose a reflection

    capable to valorize the understanding of Magritte's work as a critique of

    representation. A contextualization is made, relating what the art historian Giulio

    Carlo Argan called an "era of Functionalism" to Dadaism and Surrealism, as

    well as a survey of formalist issues, that on the conception of the art critic

    Clement Greenberg, imply on the omission of Surrealist painting in the modern

    historical narrative. From the notes made by Foucault, taking into account

    mainly the work The Treason of the Images (This is not a pipe), from 1928/29,

    is set certain autonomy between the graphic element and the pictorial element,

    in addition the comprehension of elements of the picture as similitudes. Thus,

    an evaluation is made that considers the critique of representation evoked by

    Magritte's work providing the questioning of the habit of submitting the

    experience related to the contact with the art to the speech, configuring a

    hierarchical relationship.

    Keywords: Ren Magritte. Critique of representation. Foucault.

  • 7

    SUMRIO

    1. INTRODUO..........................................................................................8

    2. ELEMENTOS TANGENCIAIS.................................................................11

    2.1. A poca do funcionalismo................................................................11

    2.2. Dadasmo e Surrealismo: aproximaes e afastamentos................13

    2.3. Sobre o Surrealismo........................................................................15

    3. SURREALISMO E FORMALISMO.........................................................20

    3.1. A imagem surrealista.......................................................................20

    3.2. Formalismo modernista: o Surrealismo e os limites da narrativa

    histrica ..................................................................................................22

    4. REN MAGRITTE E O CALIGRAMA DESFEITO..................................26

    4.1. O artista Magritte e a lgica convencional.......................................26

    4.2. Do caligrama desfeito uma anlise foucaultiana...........................32

    5. CONSIDERAES FINAIS....................................................................49

    6. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS........................................................51

  • 8

    1. INTRODUO

    Essa pesquisa busca fazer uma reflexo acerca do trabalho pictrico do artista

    Ren Magritte (18981967). Para isso, o trabalho foi desenvolvido em trs

    partes principais: a primeira Elementos Tangenciais aborda questes

    ligadas ao contexto histrico relacionando transformaes sociais e artsticas

    ao Dadasmo e ao Surrealismo; a segunda Surrealismo e Formalismo

    apresenta a perspectiva formalista do crtico de arte Clement Greenberg,

    discutindo a importncia desempenhada por esses critrios para o Surrealismo;

    e a terceira Ren Magritte e o Caligrama Desfeito pretende estabelecer

    uma crtica representao, presente tanto nas falas do prprio artista, que

    condenava as interpretaes que pretendiam revelar contedos supostamente

    ocultos em suas obras, quanto na anlise do filsofo Michel Foucault, pautada,

    principalmente, na obra A Traio das Imagens (Isto no um Cachimbo), de

    1928/29. O trabalho se desenvolve de maneira a valorizar a compreenso de

    que a aparente semelhana do realismo utilizado nas obras de Magritte no

    remete a outro elemento externo, o qual se pretende representar. A partir dos

    apontamentos realizados por Foucault, se busca estabelecer certa autonomia

    entre elemento grfico e elemento pictrico, alm de compreender os

    elementos do quadro como similitudes, que no fazem referncia a outra coisa

    se no a elas prprias.

    Em Elementos Tangenciais, feita uma contextualizao abordando o que o

    historiador e terico da arte Giulio Carlo Argan concebeu como a poca do

    funcionalismo.1 As transformaes sociais e artsticas que ocorreram nessa

    poca foram importantes para o desenvolvimento do Dadasmo, movimento

    artstico do qual muitos surrealistas participaram, e do Surrealismo

    movimento do qual Ren Magritte participou. Assim, o trabalho segue

    apresentando pontos de convergncia e de afastamento entre esses dois

    movimentos, segundo a crtica e historiadora da arte Dawn Ades. A ltima parte

    desse tpico trata da histria do Surrealismo, discutindo tambm a relao

    1 ARGAN, G. C. Arte moderna: do Iluminismo aos movimentos contemporneos. 2. ed. So Paulo:

    Companhia das Letras, 2006. p. 263.

  • 9

    desse movimento com as teorias do inconsciente elaboradas pelo neurologista

    Sigmund Freud.

    O tpico Surrealismo e formalismo se destina a comentar a imagem surrealista,

    apresentando as consideraes do crtico de arte Clement Greenberg para

    quem o Surrealismo se deu alm do limite da histria 2 e propondo reflexes

    a partir dos comentrios do ensasta Cludio Willer, que entende o Surrealismo

    como um movimento que se diferenciou da maioria das outras vanguardas por

    apresentar uma ruptura muito mais radical e abrangente da qual o anncio da

    revoluo plstica das obras de arte parece estar longe de ser o objetivo

    principal.

    Em Ren Magritte e o caligrama desfeito, a primeira parte trata da trajetria

    artstica de Ren Magritte sob a perspectiva do escritor e crtico de arte

    Jacques Meuris, apresentando observaes acerca de algumas interpretaes

    de suas obras e de como o artista lidou com elas. Em seguida, o filsofo Michel

    Foucault associa as obras de Magritte A traio das Imagens (Isto no um

    cachimbo) [Figura 3], de 1928/29, e Desenho para Os dois Mistrios [Figura 4],

    de 1966, a um caligrama3 desfeito. Afirma ainda que nos trabalhos dos artistas

    Paul Klee (18791940) e Wassily Kandinsky (18661944), assim como no de

    Ren Magritte, h uma quebra dos princpios da pintura ocidental do sculo XV

    ao sculo XX, que, segundo o autor, estabelecia entre elemento grfico e

    elemento plstico uma relao de hierarquia e estabelecia a presena da

    semelhana como um indcio de lao representativo.

    Por fim, as Consideraes finais reforam as crticas de Magritte s

    interpretaes conteudistas de suas obras, ao que vem se somar as

    contribuies de Foucault. Nesse item feita uma avaliao que considera que

    a crtica representao evocada pela obra de Magritte proporciona o

    2 DANTO, Arthur. C. Aps o Fim da Arte: A Arte Contempornea e os Limites da Histria. So Paulo:

    Odysseus Editora, 2006. p. 10. 3 Poema no qual os versos so dispostos de modo a formar um desenho que evoca o mesmo objeto que

    o texto. (ROBERT, Paul. Le Nouveau Petit Robert: Dictionnaire alphabtique de la langue franaise. Paris: Dictionnaires Le Robert, 1993. p. 335.)

  • 10

    questionamento do hbito de submeter a experincia relacionada ao contato

    com a arte ao discurso, configurando uma relao hierrquica.

  • 11

    2. ELEMENTOS TANGENCIAIS

    Esse captulo aborda o que Argan chamou de poca do funcionalismo,

    apresentando as transformaes caractersticas desse perodo e como elas

    afetaram o Dadasmo e o Surrealismo. Ainda coloca esses dois movimentos

    em relao, discutindo seus pontos em comum e suas particularidades e,

    por fim, se concentra no Surrealismo, discutindo a relao do movimento

    com a psicanlise.

    2.1. A poca do funcionalismo

    Antes de abordar diretamente o assunto do Surrealismo, se faz necessrio

    compreender suas implicaes levando em conta um contexto mais

    abrangente. O perodo de 1910 at aproximadamente a Segunda Guerra

    Mundial, identificado como a poca do funcionalismo por Argan, compreendeu

    uma srie de transformaes tanto no campo social, como no artstico.

    No campo social, a Primeira Guerra Mundial acelerou por toda parte o

    desenvolvimento da indstria, tanto em sentido quantitativo, quanto no sentido

    do progresso tecnolgico, o que acabou gerando, indiretamente, um aumento

    populacional urbano. Algumas das transformaes que deram sentido a essa

    poca encontram-se na fala do crtico italiano:

    A classe operria, consciente de ter contribudo e sofrido com o

    esforo blico mais do que qualquer outra classe, vem adquirindo um

    peso poltico decisivo; ademais, a revoluo bolchevique demonstrou

    que o proletariado pode conquistar e manter o poder; na arte, com

    seus movimentos experimentais e de vanguarda, ela pode realizar

    uma transformao radical no s da estrutura e da finalidade, como

    tambm da figura social do artista. A burguesia profissional, por sua

    vez, est se transformando em classe de tcnicos dirigentes. 4

    4 ARGAN, 2006, p. 263.

  • 12

    Com essas transformaes, que incluem principalmente o aumento

    populacional e a crescente mecanizao dos servios e transportes, se fez

    necessrio estabelecer um dinamismo funcional que trata a cidade como um

    organismo produtivo, um aparelho que deve desenvolver certa fora de

    trabalho, e, portanto, precisa se libertar de tudo o que emperra ou retarda seu

    funcionamento. 5 Esse processo acabou produzindo um ambiente opressor,

    psicologicamente alienante.

    Quanto arte, depois do Expressionismo, seus esforos no esto mais

    convergindo para um sentido de representao do mundo, e sim para uma

    ao que se realiza e cuja funo est atrelada ao funcionamento de seu

    mecanismo interno:

    Na poca do funcionalismo [...], diversas correntes pretendem definir

    a relao entre funcionamento interno e a funo social da obra de

    arte. A exigncia de desenvolver a funcionalidade da arte se inclui na

    tendncia geral da sociedade, j totalmente envolvida no ciclo

    econmico de produo e consumo, em realizar a mxima

    funcionalidade. Os artistas querem participar na demolio das velhas

    hierarquias estticas de classes e no advento de uma sociedade

    funcional sem classes. Suas pesquisas se incluem no processo rumo

    a uma ordem democrtica da sociedade, na histria da luta das

    foras progressistas contra as foras conservadoras. Visto que o

    capitalismo, que controla a indstria, pretende conservar e reforar a

    separao hierrquica entre classe dirigente e classe trabalhadora,

    opondo-se unidade necessria da funo, a oposio ideolgica

    dos artistas contrria da burguesia capitalista. A oposio se

    tornar mais explcita e ferrenha quando a burguesia capitalista, em

    alguns pases, vier a se organizar em regimes polticos totalitrios. 6

    Pode-se dizer, ento, que no mais se reconhece um valor em si na obra de

    arte, mas um valor de um tipo de procedimento que implica e renova a

    experincia da realidade. Nesse perodo, se realiza a transformao do sistema

    ou da estrutura da arte, que passa de representativa a funcional. 7 No cabe

    5 ARGAN, 2006, p. 263.

    6 Ibid., p. 301.

    7 Ibid., p. 301.

  • 13

    mais perguntar o que determinada obra de arte representa, mas como ela

    funciona, como ela se articula com essas transformaes da poca do

    funcionalismo. Excluindo a hiptese de subordinao artstica finalidade

    produtiva, podemos considerar duas hipteses nas quais a arte se relacionaria

    com o contexto funcionalista e ainda uma terceira, na qual sua atuao estaria

    comprometida:

    1) A arte, como modelo de operao criativa, contribui para modificar

    as condies objetivas pelas quais a produo industrial alienante;

    2) a arte compensa a alienao favorecendo uma recuperao de

    energias criativas fora da funo industrial. Para alm dessas duas

    hipteses de mxima e mnima funo, no h outra possibilidade

    seno afirmar a absoluta irredutibilidade da arte ao sistema cultural

    vigente e, portanto, seu anacronismo ou at sua impossibilidade de

    sobrevivncia. 8

    Segundo Argan, da tese da irredutibilidade da arte ao sistema cultural vigente,

    que se efetuava de acordo com a lgica do funcionalismo, partem os

    movimentos artsticos: Metafsica, Dadasmo e Surrealismo. Desses, podemos

    destacar o movimento Dad, que, conforme veremos adiante, se apresenta

    como uma contestao absoluta de todos os valores, a comear pela arte.

    Trata-se de uma vanguarda negativa, por no pretender instaurar uma nova

    relao, e sim demonstrar a impossibilidade de qualquer relao entre arte e

    sociedade.

    2.2. Dadasmo e Surrealismo: aproximaes e afastamentos

    A reao psicolgica e moral guerra leva polmica contra a sociedade da

    poca e seus extremos. A guerra era um acontecimento em contradio com o

    racionalismo no qual se pretendia baseado o progresso social. racionalidade

    do projeto civilizatrio ocidental os dadastas contrapem a casualidade; mas

    no colocam a lgica e o acaso como duas categorias distintas e opostas, mas

    consideram a lgica uma interpretao, dentre tantas outras possveis, da lei

    8 ARGAN, 2006, p. 301.

  • 14

    do acaso. Ento, os dadastas apostaram em uma abordagem de ataque ao

    racionalismo e aos padres vigentes da arte e da cultura em geral. Porm,

    segundo Ades, ao negar todo o sistema de valores, o Dad negava a si

    mesmo:

    A prpria arte era dependente dessa sociedade; o artista e o poeta

    eram produzidos pela burguesia e deles esperava-se, portanto, que

    fossem seus trabalhadores assalariados, servindo a arte meramente

    para preserv-la e defende-la. [...] A revolta dos dadastas envolveu

    um tipo complexo de ironia, porque eles prprios eram dependentes

    da sociedade condenada, e a destruio desta e de sua arte

    significaria, pois, a destruio deles prprios como artistas. Assim,

    num certo sentido, o dad existiu para se destruir. 9

    Assim como no movimento Dad, ao qual alguns surrealistas pertenceram, os

    poetas e artistas surrealistas denunciavam a arrogncia racionalista do fim do

    sculo XIX, posta em cheque pela Primeira Guerra Mundial. Apesar dos muitos

    aspectos semelhantes entre o Dadasmo e o Surrealismo como a abordagem

    poltica de ataque burguesia e s formas tradicionais de arte, pelo menos em

    teoria havia uma diferena radical entre eles: enquanto o anarquismo

    dadasta se bastava no esforo de se contrapor s formas sociais e artsticas

    vigentes, o surrealismo levava essa preocupao a diante, formulando teorias e

    princpios. O surgimento do movimento artstico e literrio surrealista est

    ligado ao esforo de construir, a partir das runas deixadas pelo Dadasmo,

    uma ao positiva, pois:

    ao negar tudo, o Dad tinha que terminar negando a si mesmo

    (O verdadeiro dadasta contra o Dad), e isso levou a um crculo

    vicioso que era necessrio romper. Isso foi sentido da maneira mais

    aguda pelo grupo de jovens franceses reunidos em torno de Andr

    Breton. 10

    9 ADES, Dawn. Dad e Surrealismo. In: STANGOS, Nikos (Org.). Conceitos da arte moderna. Rio de

    Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 82. 10

    Ibid., p. 89.

  • 15

    O Surrealismo, ento, se desenvolveu promovendo uma teoria do irracional ou

    do inconsciente na arte. O automatismo presente no Dad tambm era parte

    fundamental do Surrealismo; e, no Manifesto Surrealista de 1924, Breton

    discute seriamente o poema jornal como atividade surrealista. Entretanto, de

    acordo com Ades, enquanto o surrealismo organizaria essas ideias num

    conjunto de regras e princpios, no Dad elas eram apenas uma grande

    exploso de atividade que tinha por objetivo provocar o pblico, a destruio

    das noes tradicionais de bom gosto, e a libertao das amarras da

    racionalidade e do materialismo.

    2.3. Sobre o Surrealismo

    esse esprito de revolta que reuniu o grupo dos surrealistas, que se formou

    em Paris, permanecendo um movimento predominantemente francs at se

    tornar realmente internacional a partir de 1936. De incio, o Surrealismo foi

    essencialmente um movimento literrio. Depois, abrangeu as artes plsticas, a

    fotografia e o cinema, graas adeso de artistas vindos de toda a Europa e

    dos Estados Unidos para Paris, a ento capital mundial das artes. O primeiro

    Manifesto Surrealista foi publicado em 1924 e escrito por Andr Breton. Nesse

    ano, tambm foi estabelecido o Centro de Pesquisas Surrealistas e o primeiro

    nmero da revista La Rvolution Surraliste, o que gerou uma atmosfera de

    expectativa, atraindo mais escritores e artistas plsticos para o novo

    movimento. Como era um movimento que criticava a racionalidade, o

    Surrealismo tambm ficou conhecido por valorizar o inconsciente. Alm de

    literato, Breton era mdico psiquiatra, estudioso da teoria do inconsciente

    elaborada por Freud. O pensamento inconsciente se d por imagens; e como a

    arte formula imagens, foi considerada o meio mais adequado para lidar com o

    inconsciente, possuindo, na primeira fase da potica surrealista, um carter de

    teste psicolgico (ARGAN, 2006). Essas prticas prezavam pela menor

    participao possvel da conscincia, realizando seus processos de forma

    automtica. Mas foram precisos dois anos de 1922 a 1924, que ficaram

    conhecidos como priode des sommeils (perodo de sono) para que o

    surrealismo se firmasse como um movimento efetivamente. Durante o perodo

  • 16

    citado, os surrealistas j estavam explorando as possibilidades do automatismo

    e dos sonhos, mas utilizaram tambm hipnose e drogas. A intensidade com a

    qual essas experincias aconteciam tornou invivel a utilizao de alguns

    desses recursos:

    [...] uma srie de incidentes perturbadores, como a tentativa de

    suicdio em massa de todo um grupo deles durante um transe

    hipntico, levou ao abandono desses experimentos e, no primeiro

    Manifesto surrealista, Breton evita qualquer discusso de auxiliares

    mecnicos, como drogas ou hipnotismo, enfatizando o surrealismo

    como atividade natural, no induzida. 11

    O interesse de Breton pelo automatismo est diretamente ligado aos estudos

    das teorias de Freud e s experincias realizadas a partir disso, como

    podemos observar no seguinte trecho do Manifesto, no qual relata:

    Completamente ocupado com Freud, como eu ainda estava nessa

    poca, e familiarizado com os seus mtodos de observao, que eu

    tivera ocasio de aplicar em pacientes durante a guerra, decidi obter

    de mim mesmo o que tentamos obter deles, um monlogo

    pronunciado o mais rapidamente possvel, sobre o qual a mente

    crtica do indivduo no deve produzir qualquer julgamento, e que,

    portanto, no seja embaraado por nenhuma reticncia e seja, to

    exatamente quanto possvel, pensamento falado. 12

    Fica claro, segundo esse documento, que, para os surrealistas, o automatismo

    era o meio mais adequado para alcanar e desvendar o inconsciente. O

    Manifesto apresentou a seguinte definio de Surrealismo:

    SURREALISMO, s.m. Puro automatismo psquico, atravs do qual se

    pretende expressar, verbalmente ou por escrito, o verdadeiro

    funcionamento do pensamento. O pensamento ditado na ausncia de

    todo o controle exercido pela razo, e margem de qualquer

    preocupao esttica ou moral.

    11

    ADES, 2000, p. 90. 12

    Ibid., p. 91.

  • 17

    ENCICL Filos. O surrealismo se assenta na crena na realidade

    superior de certas formas de associao at agora desprezadas, na

    onipotncia do sonho e no jogo desinteressado do pensamento. Visa

    destruio definitiva de todos os outros mecanismos psquicos,

    substituindo-os na resoluo dos principais problemas da vida. 13

    Alm de contemplar o automatismo, uma extensa parte do Manifesto foi

    dedicada ao sonho atividade compreendida por Freud como expresso direta

    da mente inconsciente, quando a mente consciente diminua seu controle

    durante o sono. importante salientar, porm, que essa aproximao com a

    psicanlise no garantiu que a utilizao que os surrealistas fizeram dessas

    tcnicas fosse convergente com as intenes de Freud. A preocupao de

    Freud consistia em curar os distrbios mentais e emocionais do homem,

    habilitando-o a ocupar o seu lugar na sociedade e a viver num estado de

    normalidade burguesa; portanto, encorajar deliberadamente os desejos

    indisciplinados dos homens contrariar frontalmente a psicanlise de Freud. 14

    Tambm no interessava aos surrealistas interpretar os sonhos, eles

    continham-se em deixar com que os sonhos se sustentassem por si mesmos.

    Essa diferena de postura pode ser observada no episdio em que Freud

    recusou-se a participar de uma antologia de sonhos elaborada por Breton,

    alegando que no conseguia vislumbrar em que que uma coletnea de

    sonhos, sem as associaes e as lembranas da infncia do sonhador, poderia

    ter interesse para algum. 15. Estabelecendo-se como uma arte preocupada

    em dar ao inconsciente plena liberdade de ao, o Surrealismo tambm

    assume uma postura poltica:

    evidente, porm, que uma potica do inconsciente no pode se

    associar a uma ideologia; a postura revolucionria do Surrealismo ,

    na verdade, apenas subversiva, enquanto revolta contra a represso

    dos instintos por parte do bom senso e do decoro burgueses,

    enquanto primeiro desafio da imaginao no poder. 16

    13

    ADES, 2000, p. 91. 14

    Ibid., p. 92. 15

    Ibid., p. 92. 16

    ARGAN, 2006, p. 361.

  • 18

    Fica claro, portanto, que no aconteceu de fato uma aliana ideolgica, mas

    certa utilizao das teorias e prticas psicanalticas que se deu conforme

    convinha liberdade potica do movimento. Afinal, segundo Argan, o

    inconsciente revelado pela arte surrealista com aparente objetividade um

    patente inconsciente de classe: a outra face da lucidez racional, da eficincia,

    da clareza de viso do dirigente burgus:

    Pretende-se, em suma, demonstrar que as enaltecidas virtudes da

    classe no poder no passam de uma fachada: para alm dela, os

    mitos de uma libido de classe pressionam a conscincia, deformando-

    a e convertendo a razo, e mesmo a cincia e a tcnica, em

    instrumentos de uma vontade de poder. 17

    Em 1938, Paris sediou a Exposio Internacional do Surrealismo, que marcou

    o apogeu do movimento antes da Segunda Guerra Mundial. Nessa exposio

    houve o predomnio do objeto surrealista. A proposta consistia na criao de

    um meio ambiente totalmente surrealista e o resultado foi esplendidamente

    desorientador:

    Duchamp, que organizou toda a decorao, pendurou do teto

    duzentos sacos de carvo; folhas mortas e grama cobriam o cho em

    redor de um tanque orlado de canios e samambaias, um braseiro de

    carvo ardia no centro e em cada um dos cantos do recinto havia

    uma enorme cama de casal. Na entrada para a exposio estava

    colocado o Txi Chuvoso de Dal, um carro abandonado em que a

    hera crescia por todo lado, tendo em seu interior os bonecos do

    motorista e de uma passageira histrica, que eram regados com

    gua, e havia caracis vivos rastejando por eles. O acesso ao

    pavilho principal fazia-se por uma rua surrealista, com manequins

    femininos alinhados de ambos os lados e vestidos por Arp, Dal,

    Duchamp, Ernst, Man Ray e outros. No interior do pavilho estavam

    reunidos, alm dos numerosos quadros, objetos surrealistas tais

    como xcaras com pires para o caf da manh, forrados e revestidos

    com peles, e Jamais, de Dominguez, um imenso gramofone com um

    17

    ARGAN, 2006. p. 361.

  • 19

    par de pernas sobressaindo do pavilho acstico e uma mo de

    mulher substituindo o brao do pick-up. 18

    A Segunda Guerra Mundial dispersou os surrealistas de Paris. Muitos deles,

    como Breton, Ernst e Masson, foram para Nova York, onde deram continuidade

    a suas atividades surrealistas, ajudando a plantar as sementes de movimentos

    americanos do ps-guerra como o Expressionismo Abstrato e a Arte Pop. 19

    Aps a guerra, o Surrealismo deixara de ser o movimento artstico

    predominante, embora a bibliografia sobre o assunto seguisse aumentando e

    diversos grupos surrealistas tenham aparecido em vrias partes do mundo a

    partir dos anos 60. O principal instigador e organizador do Surrealismo, Breton,

    morreu em 1966, mas muitas ideias presentes no movimento ainda esto em

    circulao. O termo surrealismo, por exemplo, assim como aconteceu com o

    termo romntico ainda muito utilizado, sendo, muitas vezes, adaptado a

    contextos mais coloquiais. Sendo assim, pode ser vlido recordar a finalidade

    do Surrealismo destacada no Segundo Manifesto Surrealista, de 1930, tambm

    elaborado por Breton:

    Tudo sugere a existncia de um certo ponto da mente no qual vida e

    morte, real e imaginrio, passado e futuro, o comunicvel e o

    incomunicvel, as alturas e as profundidades, deixam de ser

    percebidos como contraditrios. Ora, seria em vo que se buscaria

    qualquer outro motivo para a atividade surrealista a no ser a

    esperana de determinar esse ponto. 20

    Como veremos adiante, muitas obras de Ren Magritte parecem fazer

    reverberar essa colocao de Breton, ao trabalhar com alternativas lgica

    convencional que, no raramente, rejeita a contradio.

    18

    ADES, 2000, p. 97. 19

    Ibid., p. 97. 20

    Ibid., p. 97.

  • 20

    3. SURREALISMO E FORMALISMO

    No captulo anterior ficou patente que o Surrealismo surgiu como um

    movimento que questionava principalmente a racionalidade abalada pela

    guerra. A partir disso, podemos pensar em como a imagem surrealista se

    constri, quais so as ferramentas que elege para isso e como essa escolha

    repercute em relao ao que se entende por formalismo modernista cuja

    principal referncia terica se d nas contribuies do crtico de arte americano

    Clement Greenberg.

    3.1. A imagem surrealista

    A forma com a qual Breton discorre sobre a imagem surrealista aponta para a

    utilizao do inconsciente como a forma capaz de realizar o potencial humano:

    a linguagem foi dada ao homem para ser usada de um modo surrealista.21

    Ainda a respeito da imagem surrealista, podemos dizer que ela:

    nasce da justaposio fortuita de duas realidades diferentes, e da

    centelha gerada por esse encontro que depende a beleza da imagem;

    quanto mais diferentes forem os dois termos da imagem, mais

    brilhante ser a centelha. Essa espcie de imagem, acreditava

    Breton, no podia ser premeditada; o mais perfeito exemplo, com que

    eles se dispunham a rivalizar e passaria a ser a sua divisa, era a

    frase de Lautramont: To belo quanto o encontro fortuito de uma

    mquina de costura e de um guarda-chuva sobre uma mesa

    anatmica. 22

    Conforme afirmado anteriormente, o Surrealismo, de incio, foi um movimento

    essencialmente literrio. Tanto que Pierre Naville, um dos editores de La

    Rvolution Surraliste, negou que pudesse existir uma pintura surrealista. 23 No

    entanto, Breton considerou o Surrealismo um movimento que abrangia todo o

    espectro da atividade humana, apesar de s ter feito meno pintura em uma

    21

    ADES, 2000, p. 92. 22

    Ibid., p. 92. 23

    Ibid., p. 93.

  • 21

    nota de rodap do Manifesto. Porm, Breton respondeu quela acusao de

    Naville em uma srie de artigos publicados em La Rvolution Surraliste a

    partir de 1925. Nesses artigos, Breton no demonstrava uma preocupao em

    realizar uma discusso real sobre esttica, propondo critrios enrijecidos,

    procurava, ao invs, avaliar o relacionamento individual de cada pintor com o

    Surrealismo. Talvez porque a pintura no fosse propriamente o campo de

    atuao de Breton, os pintores surrealistas conseguiram manter um maior grau

    de independncia em relao personalidade forte de Breton do que os

    escritores surrealistas: Num certo sentido, eles puderam usar ideias

    surrealistas sem serem por elas subjugadas e acharam a atmosfera gerada

    pelo surrealismo, sem dvida, muito estimulante. 24 Por exemplo, enquanto em

    La Rvolution Surraliste a abordagem do automatismo e dos sonhos aparecia

    com sees separadas para os textos automticos e para a narrao de

    sonhos, na pintura surrealista, esses aspectos no encontravam divises to

    claras, no acontecendo necessariamente como um registro de sonhos

    apesar de muitas telas surrealistas terem sido entendidas como contendo

    caractersticas do que Freud chamou labor do sonho, como, por exemplo, a

    existncia de elementos contrrios lado a lado, a condensao de dois ou mais

    objetos ou imagens, o uso de objetos que tm um valor simblico (ocultando

    frequentemente um significado sexual). Porm, o entendimento de Argan no

    sentido de que o Surrealismo no tratava de uma tcnica representativa capaz

    de transportar o inconsciente ao nvel da conscincia, e sim de um processo de

    estmulo imaginao, que ultrapassa a mera transcrio automtica do

    imaginado. Por exemplo, na pintura de Max Ernst (18911976) no o sonho

    que cria a imagem, e sim o inverso: a imagem se desenvolve no quadro por

    meio de um jogo complexo de associaes algicas. 25 Como veremos mais

    adiante, Ren Magritte , dentre todos os surrealistas, o que mais aprofundou o

    problema da ambiguidade algica da imagem, e tambm em relao palavra.

    26

    24

    ADES, 2000, p. 93. 25

    ARGAN, 2006, p. 361. 26

    Ibid., p. 364.

  • 22

    2.3 Formalismo modernista: o Surrealismo e os limites da narrativa

    histrica

    At agora apresentamos o Surrealismo como um movimento de vanguarda

    inserido em um contexto histrico mais amplo, o do Modernismo. Porm, esse

    recorte que inclui a produo surrealista em especial a pintura no perodo

    que se entende como moderno no encontrou conformidade em toda a

    produo terica sobre o assunto. o caso do crtico de arte norte-americano

    Clement Greenberg, considerado principal defensor das teorias formalistas do

    modernismo. Segundo Arthur Danto, crtico de arte e filsofo, a concepo de

    modernismo elaborada por Greenberg no contemplava o Surrealismo como

    um movimento legtimo, digno de ser inscrito no percurso de uma narrativa

    moderna; afirma que o surrealismo aconteceu, mas no foi parte significativa

    do progresso 27 que considera a formao de uma nova arte: a moderna. Isso

    por que:

    A passagem da arte pr-modernista para a modernista, se

    concordarmos com Greenberg, foi a passagem das caractersticas

    mimticas para as no-mimticas da pintura. (...) as caractersticas

    representativas tornaram-se secundrias no modernismo, tendo sido

    fundamentais na arte pr-modernista. 28

    Considerando a pintura surrealista como alm do limite da histria, 29

    percebemos o quanto a identidade da arte esse estatuto que confere

    legitimidade artstica a uma produo e assegura a ela um lugar na histria

    estava ligada sua participao em uma narrativa oficial. A respeito dessa

    questo, Danto menciona o historiador e crtico de arte Hal Foster ao afirmar

    que, se o surrealismo no foi pensado dentro de uma narrativa moderna, ele se

    tornou um ponto privilegiado para a crtica contempornea dessa narrativa. 30 O

    prprio Danto, ao afirmar o fim da arte, prope uma diluio da ideia de limite

    contida nas narrativas histricas, em especial na modernista, entendida como

    27

    DANTO, 2006, p. 11. 28

    Ibid., p. 10. 29

    Ibid., p. 10. 30

    Ibid., p. 11.

  • 23

    uma barreira que considera que o que est alm desse limite ou no faz parte

    da varredura da histria ou uma reverso a alguma forma antiga de arte. 31 A

    noo histrica elaborada por Greenberg considera uma maturao da

    produo artstica que se d em direo pureza da forma (formalismo) a

    pureza se referiria arte aplicada arte. Nessa perspectiva, assim como a

    produo contempornea, o Surrealismo era considerado impuro. 32

    Se por um lado essa concepo apresentada por Greenberg omite o

    Surrealismo da histria da pintura moderna por compreender que ele no faz

    parte de um progresso em direo pureza da forma, por outro, na concepo

    de Cludio Willer, esse posicionamento do Surrealismo em relao forma

    evidenciaria um projeto mais amplo:

    De um lado, movimentos preocupados em revolucionar ou

    transformar a linguagem artstica (o que no impede, evidentemente,

    que tivessem desdobramentos filosficos, polticos, ideolgicos em

    geral); de outro, algo muito mais amplo, abrangente e ambicioso, uma

    expresso da busca da transformao do homem e da sociedade, na

    qual a manifestao mais especificamente artstica um dos

    aspectos. 33

    Portanto, no caso da maioria dos movimentos artsticos modernos, o objetivo

    central consistia na revoluo ou renovao esttica, obtendo um resultado

    artstico; toda a rebelio desses movimentos se voltaria para o campo das

    artes. No caso do Surrealismo, diferentemente, temos uma ruptura muito mais

    radical, o que de fato no exclui a importncia da atividade artstica desse

    movimento. 34 Assim, Willer defende que o Surrealismo no deve ser

    catalogado entre as demais vanguardas. 35 Apresenta, ainda, uma das crticas

    que so feitas a essa forma de dispor as manifestaes artsticas em

    modismos consecutivos:

    31

    DANTO, 2006, p. 11. 32

    Ibid., p. 12. 33

    WILLER, C. Prefcio. In: BRETON, A. Manifestos do Surrealismo. So Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 13. 34

    Ibid., p. 13. 35

    Ibid., p. 14.

  • 24

    (...) a da fetichizao do novo, ou seja, ao fato de tomar-se a

    inovao, a apresentao de algo diferente, que ento seria a

    expresso da modernidade, como um valor em si. De fato, essa

    valorizao reproduz a ideologia da nossa sociedade, anloga ao

    marketing dos produtos de consumo (particularmente na indstria

    cultural), busca de alguma novidade que sirva para excitar o

    consumo. Esse tipo de dinmica, projetada no campo da criao

    artstica, s poderia mesmo resultar no que est a, na histria

    recente da arte transformada em uma sucesso de modismos. 36

    O termo surreal, para muitos, passou a significar a fetichizao do extico, o

    mero embelezamento de obras de arte por elementos aparentemente

    estranhos ou inslitos. Essa diluio, constantemente denunciada por Breton,

    acabou gerando uma vasta bibliografia crtica sobre o Surrealismo, confundindo

    seu objeto ao gerar criticas ao esteticismo surrealista, como se o movimento se

    exaurisse em questes estticas. No entanto, o propsito do Surrealismo

    subversivo, trabalha no sentido de questionar esta realidade imposta por uma

    civilizao vacilante como a nica realidade possvel, verdadeira e legtima:

    Uma das armadilhas da teoria burguesa do conhecimento inclusive

    a que se pretende transformadora da sociedade tentar impor uma

    determinada viso da realidade, uma determinada posio

    epistemolgica como sendo o real, alegando sua concretude e

    presena. H, porm, uma jogada ideolgica nesta percepo da

    realidade to ferozmente combatida por Breton, tanto na sua verso

    de realismo burgus como tambm na do realismo socialista j

    que, na medida que proposta uma aceitao ingnua e submissa

    de uma dada realidade, tambm est sendo proposta a aceitao da

    sua normalidade e sua veracidade. Ou seja, a crena no real torna-se

    uma crena em um real socialmente produzido, levado aceitao,

    como normais, verdadeiras e justas, da ideologia e da linguagem que

    legitimam e justificam essa realidade, bem como da sociedade que a

    produziu. 37

    Portanto, o que parece ser efetivamente o fundamento do Surrealismo uma

    tentativa, no de revolucionar ou questionar a criao artstica apenas (o que

    36

    WILLER, 1985, p. 14. 37

    Ibid., p. 18.

  • 25

    foi levado at o limite pelo Dadasmo), mas sim de repensar e reconstruir a

    noo de homem e de sociedade. Como podemos observar na fala do poeta e

    ensasta Octvio Paz citada por Cludio Willer, o Surrealismo coloca sob

    suspeita uma concepo de realidade que confere ao objeto uma noo de

    pureza:

    O surrealismo recusa-se a ver o mundo como um conjunto de coisas

    boas e ms, (...), nega-se a ver a realidade como um conglomerado

    de coisas teis ou nocivas, (...) tampouco considera o mundo

    maneira do homem de cincia puro, ou seja, como objeto ou grupo de

    objetos desnudados de todo valor, desprendidos do espectador.. 38

    Assim, o Surrealismo no um movimento que parece tomar como carro chefe

    a instaurao de uma maneira de expresso plstica presumidamente mais

    desenvolvida e interessante do que as outras. Tanto que muitos artistas

    surrealistas, como o caso de Magritte, utilizaram tcnicas que se

    aproximavam de uma abordagem mais realista, o que no seria uma novidade

    no fazer artstico. Contudo, a diferena se d na utilizao que o Surrealismo e,

    principalmente, que Magritte faz dessas tcnicas, ampliando a questo para

    alm dos limites formais.

    38

    WILLER, 1985, p. 16.

  • 26

    4. REN MAGRITTE E O CALIGRAMA DESFEITO

    Esse captulo relata brevemente a trajetria artstica de Ren Magritte,

    mencionando a ocasio na qual, segundo o historiador Jacques Meuris, o

    artista se ligou ao Surrealismo. Segue apresentando confrontaes do artista

    em relao aos sentidos que eram atribudos a suas obras, frequentemente

    ligados ao Simbolismo ou a alguma interpretao psicanaltica. Em Do

    caligrama desfeito uma anlise foucaultiana, a obra de Ren Magritte

    analisada como uma crtica representao pelo filsofo Michel Foucault, que

    associa as obras A Traio das Imagens (Isto no um cachimbo), de

    1928/29, e Desenho para Os Dois Mistrios, de 1966, a um caligrama desfeito,

    que evidencia um apagar do lugar-comum no qual texto e imagem estariam

    subordinados um ao outro. Foucault ainda afirma que nos trabalhos dos artistas

    Paul Klee e Wassily Kandinsky, assim como nos de Magritte, h a quebra de

    dois princpios da pintura ocidental do sculo XV ao sculo XX: a relao de

    hierarquia entre elemento grfico e elemento plstico e a presena da

    semelhana como evidncia da representao.

    4.1. O artista Magritte e a lgica convencional

    Ren Franois-Ghislain Magritte nasceu em 1898 em Lessines, no Hainaut

    belga. Em 1910, quando tinha doze anos, foi inscrito em uma escola de Chlet,

    onde se iniciou na pintura. Em 1916, aos 18 anos, entrou para a Academie

    Royale de Beux-Arts de Bruxelas, na qual permaneceu por apenas dois anos.

    Segundo Louis Scutenaire bigrafo e, assim como sua esposa, amigo mais

    ntimo e constante de Magritte Desde a sua chegada Academia, Magritte

    nutriu um desprezo juvenil, que hoje considera tanto mais presunoso quanto

    na poca no foi capaz de se aperceber dos verdadeiros objetivos da escola.

    39 Apesar de breve, possvel que essa passagem pela Academia tenha

    contribudo para que o fazer artstico de Magritte tenha tendido para o realismo.

    No entanto, antes de adotar uma postura mais consistente acerca de sua

    produo pictrica me refiro mais precisamente ao perodo de 1910 a 1925,

    39

    MEURIS, Jacques. Ren Magritte: 1898-1967. Koln [Alemanha]: Benedikt Taschen, 1993. p. 21.

  • 27

    entre seus 12 e 27 anos , Magritte investiu em experincias pictricas que

    caminhavam pela abstrao, pelo Cubismo, pelo Futurismo, pelo

    Expressionismo. Ficou atrado pelo Futurismo, mas acreditava que o

    movimento pecava por permanecer fiel a uma interpretao estetizante do real.

    40 Em 1925, um ano aps a publicao do Manifesto de Breton, o poeta Marcel

    Lecomte lhe mostrou o quadro metafsico de Giorgio de Chirico: O Canto do

    Amor [Figura 1], de 1914, com o qual ficou muito entusiasmado. No mesmo

    ano o pintor tomou uma deciso definitiva: nunca mais pintar objectos seno

    nos seus pormenores aparentes. 41 Comps, ento, o grupo inicial dos

    surrealistas de Bruxelas, e o primeiro quadro a ser considerado pelo prprio

    autor como testemunha dessa opo A Janela [Figura 2], de 1925. 42 A partir

    de ento, Magritte apresenta uma consolidao no discurso, nas formas.

    Desenvolve uma srie de obras que apresentam objetos considerados tal como

    existem na realidade, porm, quando confrontados uns com os outros, criam

    contextos inusitados. O realismo dos elementos, absolutamente comprovado,

    permitiu ultrapassar o possvel para atingir o imprevisto 43 sem exigir, porm,

    nenhuma interpretao posterior.

    40

    MEURIS, 1993, p. 34. 41

    Ibid., p. 37. 42

    Ibid., p. 38 43

    Ibid., p. 38.

  • 28

    Figura 1. Giorgio de Chirico: O Canto do

    Amor, 1914. leo sobre tela, 73 x 59,1 cm

    Nova Iorque, Collection, The Museum of

    Modern Art, Legs Nelson A. Rockefeller.

    Figura 2. Ren Magritte: A Janela, 1925.

    leo sobre tela 65 x 50 cm

    Bruxelas, Coleo Particular.

    No entanto, essas confrontaes poticas geraram muitas interpretaes

    divergentes entre os propsitos surrealistas. Durante sua passagem pela

    Academia, Magritte teve aulas com o simbolista Montald, mas nunca foi adepto

    do Simbolismo, apesar de ser um movimento considerado pr-surrealista.

    Alis, a diferena mais fundamental entre Magritte e os simbolistas est

    justamente na noo de smbolos. A esse respeito, h um curto texto para a

    exposio O Sentido Prprio, publicado em 1964, no qual se pode ler:

    necessrio ignorar a minha pintura para a associar a um

    simbolismo simples ou erudito. Por outro lado, a minha pintura no

    implica qualquer supremacia do invisvel sobre o visvel; este to

    rico que forma a linguagem potica, evocadora do mistrio do

    invisvel e do visvel. (MEURIS, 1993, p. 29)

    Esse posicionamento se repete em outra ocasio, como podemos observar em

    um trecho de uma carta na qual Magritte esclarece ao conservador-chefe dos

    museus que receberam no mesmo ano outra exposio de seus trabalhos e

  • 29

    que identificaram os objetos confeccionados a partir do vocabulrio presente

    em seus quadros como smbolos:

    Creio ser desejvel evitar, tanto quanto possvel, confuses sobre

    este assunto, porque trata-se de objectos (campainhas, cus,

    rvores, etc.) e no de smbolos. 44

    Scutenaire aponta para o incidente do suicdio da me de Magritte, quando

    este tinha 14 anos, como responsvel por ter conferido ao jovem um

    sentimento de mistrio, que teria talvez excitado o seu sentimento muito

    especial do bizarro. 45 A partir do afogamento da me de Magritte no rio

    Sambra, Meuris faz uma srie de suposies acerca da possibilidade dessa

    imagem um cadver praticamente nu, apenas com uma camisa mida colada

    ao corpo, puxada para cima , a qual no se sabe se foi realmente vista por

    Magritte e seus irmos, ter influenciado de alguma forma a produo pictrica

    de Magritte. Uma hiptese formulada por Meuris a seguinte:

    Ren Magritte, atravs de uma explicao freudiana, viu no suicdio

    materno um abandono total que o teria lanado numa dvida

    interminvel sobre o mistrio complexo das coisas, vivas ou mortas,

    que povoam a existncia de todos ns? 46

    Afirma, ainda, que uma srie de quadros de Magritte nos leva a pensar que a

    recordao do corpo materno nu, com apenas uma camisola colada ao corpo,

    pode ter relao com uma srie de quadros nos quais se veem lenis que

    moldam as formas humanas, ou escondem situaes onde podemos ver essas

    formas aludidas, como nos quadros Em Homenagem a Mack Sennet, de 1937,

    e A Filosofia no Quarto de Dormir, de 1947. Hipteses parte, Magritte

    manifestou pouco interesse pela psicanlise, principalmente quando usada na

    tentativa de explicao de seus quadros. Isso fica claro em uma carta que

    Magritte escreveu aos Scutenaire em 1937 relatando a visita que tinha sido

    combinada por Sbastian Matta a dois psicanalistas sul-americanos instalados

    44

    MEURIS, 1993, p. 29. 45

    Ibid., p. 12. 46

    Ibid., p. 13.

  • 30

    na capital britnica, na qual falaram sobre os significados dos quadros de

    Magritte, principalmente sobre O Modelo Encarnado, de 1937:

    Eles pensam que o meu quadro O Modelo Encarnado um caso de

    castrao. Podem ver como, de repente, tudo se torna simples.

    Assim, aps vrias interpretaes semelhantes, propus-lhes um

    verdadeiro desenho psicanaltico (sabem ao que me refiro) ideal

    infantil, etc. Evidentemente, eles analisaram estas imagens com a

    mesma indiferena. Aqui para ns, aterrador ver ao que estamos

    sujeitos, quando desenhamos uma imagem inocente. 47

    preciso retomar a ideia de que, para o movimento surrealista, as imagens

    produzidas no careciam nem estavam a servio de qualquer relao

    interpretativa obrigatria. No entanto:

    O perigo na potica surrealista o conteudismo, o prazer mrbido

    pelas associaes impossveis, mas misteriosamente motivadas, das

    imagens sonhadas; as deformaes infinitas e imprevisveis do

    erotismo sob a capa repressora das censuras; os fceis mecanismos

    dos lapsos reveladores e comprometedores. um filo que parte da

    potica da ambiguidade instaurada pela Metafsica, e evita

    deliberadamente as inovaes tcnicas e formais, fruindo a

    obviedade e mesmo a banalidade dos meios de representao, para

    ressaltar a incongruncia e o absurdo dos contedos

    representacionais. 48

    O Surrealismo se apresentou como uma reao quase filosfica que defendia

    a maior liberdade de esprito e um no conformismo absoluto, em

    contraposio s reaes racionalistas que dominavam o pensamento francs.

    49 Ao reproduzir as coisas e os objetos o mais fielmente possvel ao que se

    pode perceber, porm confrontando esses objetos e criando contextos

    inusitados, era possvel questionar a lgica convencional.

    47

    MEURIS, 1993, p. 16. 48

    ARGAN, 2006, p. 364. 49

    MEURIS, 1993, p. 50.

  • 31

    Esse jogo que fazemos relacionando imagens a significados que supostamente

    corresponderiam a elas, estando, porm, ocultos em um primeiro momento

    posto em questionamento especialmente nas obras de Magritte:

    R. Magritte (1898-1967) , dentre todos os surrealistas, o que mais

    aprofundou o problema da ambiguidade algica da imagem, e

    tambm em relao palavra; ele cria a anti-histria, desvenda o

    absurdo do banal, representa com meticuloso detalhismo imagens de

    significado ambguo, que facilmente decaem no duplo sentido, no

    jogo de palavras figurado. 50

    Utilizando uma tcnica realista, as obras de Magritte nos fazem questionar a

    representao. Portanto, essa utilizao diferente da maneira com a qual os

    artistas realistas do sculo XIX procediam. Enquanto Gustave Courbet, um

    importante representante do Realismo surgido na Frana por volta de 1848,

    queria dar seu testemunho e convencer 51 sem questionar diretamente as

    relaes entre os signos , Magritte tensiona essas relaes que, para alm de

    questes plsticas, ganham o campo da linguagem. Segundo Meuris, para nos

    referir ao percurso de Magritte e a sua obra, poderamos usar o termo sobre-

    realista em duas palavras mais do que como surrealista numa nica

    palavra pois ele se exprimiu a partir da realidade, sem deixar de cuidar para

    que os elementos presentes em suas obras fossem retratados de forma

    fidedigna, enquanto a maior parte dos outros surrealistas se exprimiram

    procurando inventar equivalncias do que existia no inconsciente.

    Ao dialogar com a maneira habitual do pensamento racionalista proceder,

    Magritte alerta para a questo do entendimento da semelhana:

    A arte de pintar no concebida como mistificao mais ou menos

    inocente no seria capaz de enunciar ideias nem exprimir

    sentimentos: a imagem de um rosto que chora no exprime a tristeza,

    do mesmo modo que no enuncia uma ideia de tristeza, pois ideias e

    sentimentos no possuem nenhuma forma visvel. [...] Uma imagem

    da semelhana mostra tudo o que ela , quer dizer, uma reunio de

    50

    ARGAN, 2006, p.364. 51

    MEURIS, 1993, p. 76.

  • 32

    figuras onde nada subentendido. Querer interpretar afim de

    exercer no sei que falaciosa liberdade desconhecer uma imagem

    inspirada substituindo-lhe uma interpretao gratuita que pode, por

    sua vez, ser o objeto de uma srie sem fim de interpretaes

    suprfluas. 52

    Portanto, o esforo desempenhado por Magritte no consiste na elaborao de

    imagens para as quais seria necessrio revelar seus significados ocultos. Ao

    contrrio, como podemos perceber na fala do pintor, fica clara a reprovao

    desse tipo de abordagem.

    4.2 Do caligrama desfeito - uma anlise foucaultiana

    Conforme comentado anteriormente, Magritte inquieta as relaes tradicionais

    da linguagem e da imagem. Esse tpico se prope a aprofundar essa questo,

    utilizando para isso uma anlise elaborada por Foucault. 53 Em A Traio das

    Imagens (Isto no um Cachimbo) [Figura 3], a imagem de um cachimbo,

    executada com realismo, divide espao no mesmo quadro com a frase que

    afirma Isto no um cachimbo. A respeito dessa obra, Magritte declara:

    O famoso cachimbo...

    Como fui censurado por isso!

    E entretanto...

    Vocs podem encher de fumo,

    O meu cachimbo?

    No, no mesmo?

    Ela apenas uma representao.

    Portanto,

    Se eu tivesse escrito sob meu quadro:

    isto um cachimbo,

    Eu teria mentido. (Ren Magritte)

    52

    Ren Magritte. Extrado do prefcio exposio Ren Magritte de Dallas, 1961. 53

    FOUCAULT, . Isto no um cachimbo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

  • 33

    Figura 3. Ren Magritte: A Traio das Imagens (Isto no um cachimbo), 1928/29.

    leo sobre tela, 62.2 x 81 cm. Los Angeles, Country Museum.

    Existe a um cachimbo pintado de forma bem minuciosa. Logo abaixo, como

    descreve Foucault, uma caligrafia regular, caprichada, artificial, caligrafia de

    convento 54, como possvel encontrar servindo de modelo no alto dos

    cadernos escolares, ou num quadro-negro, depois de uma lio de coisas, esta

    meno: Isto no um cachimbo. Certamente, um desenho, ou uma pintura,

    representando um cachimbo no ele mesmo um cachimbo. Seria tolice

    afirm-lo. Tambm no poderamos afirmar que h uma contradio entre a

    imagem e o texto pelo simples fato de que no poderia haver contradio a no

    ser entre dois enunciados, ou no interior de um nico e mesmo enunciado, 55 o

    que no o caso. Como, ento, explicar o desconforto que essa obra provoca?

    Foucault chama ateno para um hbito de linguagem:

    o que este desenho? um bezerro, um quadrado, uma flor.

    Velho hbito que no desprovido de fundamento: pois toda a funo

    de um desenho to esquemtico, to escolar, quanto este a de se

    fazer reconhecer, de deixar aparecer sem equvoco nem hesitao

    aquilo que ele representa. Por mais que seja o depsito, sobre uma

    folha ou quadro, de um pouco de plumbagina ou de uma fina poeira

    de giz, ele no reenvia como uma flecha ou um indicador apontando

    a um certo cachimbo que se encontra mais longe, ou alhures; ele

    um cachimbo. 56

    54

    FOUCAULT, 1988, p. 11. 55

    Ibid., p. 20. 56

    FOUCAULT, M., 1988. p. 20.

  • 34

    Portanto, o que desconcerta o fato de inevitavelmente associarmos o texto

    imagem como nos convidam o demonstrativo da frase, o sentido da palavra

    cachimbo, a semelhana da imagem e ser impossvel definir o plano que

    permitiria dizer que a assero verdadeira, falsa, contraditria. 57

    Foucault associa a obra de Magritte a um caligrama58 secretamente constitudo

    e em seguida desfeito com cuidado, constatando o fracasso e os restos

    irnicos dessa operao. Afirma que o caligrama, em sua tradio milenar, tem

    o trplice papel de compensar o alfabeto, repetir sem o recurso da retrica e

    prender as coisas na armadilha de uma dupla grafia; ele aproxima o texto da

    figura: aloja os enunciados no espao da figura, e faz dizer ao texto aquilo que

    o desenho representa. Constata que a obra A Traio das Imagens (Isto no

    um cachimbo) [Figura 3] retoma essas trs funes do caligrama, mas para

    pervert-las e inquietar todas as relaes tradicionais da linguagem e da

    imagem:

    O texto que tinha invadido a figura a fim de reconstituir o velho

    ideograma, ei-lo que retomou seu lugar. Voltou para seu lugar natural

    em baixo: l onde serve de suporte para a imagem, onde a nomeia,

    a explica, a decompe, a insere na sequncia dos textos e nas

    pginas do livro. Torna a ser legenda. A forma, quanto a ela, volta a

    seu cu, do qual a cumplicidade das letras com o espao a havia feito

    descer por um instante: livre de qualquer liame discursivo, ela vai

    poder flutuar de novo em seu silncio nativo. Volta-se pgina e a

    seu velho princpio de distribuio. Mas apenas em aparncia. Pois

    as palavras que posso ler agora sob o desenho so, elas prprias,

    palavras desenhadas imagens de palavras que o pintor colocou fora

    do cachimbo, mas no permetro geral (alis, indeterminvel) de seu

    desenho. Do passado caligrfico que me vejo obrigado a lhes supor,

    57

    Ibid., p. 21. 58

    CALIGRAMA Fr. calligramme; gr. kllos, belo; gramma, letra. Nome inventado por Guillaume Apollinaire (1880-1918), a partir de caligrafia e ideograma, para servir de ttulo a uma coletnea de poemas que publicou em 1918 (Calligrammes), nos quais as palavras se organizam graficamente de modo a dar uma ideia de contedo. O resultado era uma poesia visual, entroncada na velha tradio que remonta ao poema figurado*, denominado entre os latinos de carmen figuratum e entre os gregos de technopaignion, e que mais tarde encontraria eco na chamada poesia concretista (V. MODERNISMO). Fundindo a poesia com as artes plsticas, os caligramas denotavam a influncia do Cubismo*, da pintura futurista e do ideograma. (MOISS, Massaud. Caligrama. In: DICIONRIO DE TERMOS LITERRIOS. 12. ed. rev. e ampl. - So Paulo: Cultrix, 2004. p. 61-62.).

  • 35

    as palavras conservaram sua derivao do desenho e seu estado de

    coisa desenhada (...). Texto em imagem. Mas, inversamente, o

    cachimbo representado desenhado com a mesma mo e com a

    mesma pena que as letras do texto: ele prolonga a escrita mais do

    que a ilustra e completa o que lhe falta. (...) A prvia e invisvel

    operao caligrfica entrecruzou a escrita e o desenho; e quando

    Magritte recolocou as coisas em seu lugar, tomou cuidado para que a

    figura tivesse em si a pacincia da escrita e que o texto fosse apenas

    uma representao desenhada. 59

    Foucault indica que, comparando funo tradicional da legenda, o texto de

    Magritte duplamente paradoxal. Primeiramente, porque se prope a nomear o

    que no precisa ser nomeado, pois a forma por demais conhecida. Depois,

    porque, no momento em que deveria dar o nome, o faz negando que seja ele.

    O caligrama diz duas vezes a mesma coisa, faz o que mostra e o que diz

    escorregarem um sobre o outro, para que se mascarem reciprocamente. No

    entanto, no chega a dizer isto uma pomba, uma flor, uma chuva que cai,

    pois est demasiadamente preso na forma, demasiadamente sujeito

    representao por semelhana para formular uma tal afirmao. Por astcia ou

    por impotncia, pouco importa, o caligrama no diz e no representa nunca no

    mesmo momento; essa mesma coisa que se v e se l matada na viso,

    mascarada na leitura. 60 Isso porque no momento em que lemos, perdemos a

    noo da forma que as palavras agrupadas representam; e quando

    observamos esse conjunto, percebendo a forma, no podemos, ao mesmo

    tempo, ler as palavras. Magritte redistribuiu no espao o texto e a imagem;

    cada um retoma seu lugar; mas no sem reter alguma coisa do esquivo que

    prprio ao caligrama. 61 A representao de um cachimbo nessa obra to

    reconhecvel em seu esquematismo escolar que dispensa todo texto

    explicativo, sendo assim mais eficiente do que o desenho possivelmente

    formado por palavras. Isso enquanto o desenho caprichado que representa

    uma escrita no pretende tomar a forma de um cachimbo, mas se apresentar

    59

    FOUCAULT, 1988, p. 24. 60

    FOUCAULT, 1988, p. 27. 61

    Ibid., p. 27.

  • 36

    como letras colocadas umas do lado das outras, formando palavras que podem

    ser reconhecidas e lidas. No Cachimbo de Magritte,

    (...) O no dizer ainda da forma voltou, no exatamente como uma

    afirmao, mas como uma dupla posio: de um lado, no alto, a

    forma bem lisa, bem visvel, bem muda, e cuja evidncia deixa

    altivamente, ironicamente, o texto dizer o que quer, qualquer coisa; e

    de outro, embaixo, o texto, espalhando segundo sua lei intrnseca,

    afirma sua prpria autonomia diante daquilo que ele nomeia. A

    redundncia do caligrama repousava sobre uma relao de excluso:

    em Magritte, a distncia dos dois elementos, a ausncia de letras em

    seu desenho, a negao expressa no texto, manifestam

    afirmativamente duas posies. 62

    Portanto, enquanto no caligrama o no dizer ainda da forma e o no mais

    representar das palavras eram movimentos alternados e excludentes, em

    Magritte, os dois elementos a imagem do cachimbo e o texto assumem

    duas posies diferentes, sem que uma exclua a outra.

    Porm, no se pode assumir que, dividindo o mesmo espao, figura e texto

    possam assumir duas posies simultneas e bem separadas uma da outra.

    Pois a palavra isto assinala entre a figura e o texto uma srie de cruzamentos.

    Por exemplo:

    isto (este desenho que vocs esto vendo, cuja forma sem dvida

    reconhecem e do qual acabo de desatar os liames caligrficos) no

    (no substancialmente ligado a..., no constitudo por..., no

    recobre a mesma matria que...) um cachimbo (quer dizer, essa

    palavra pertencente a sua linguagem, feita de sonoridades que voc

    pode pronunciar e cujas letras que voc l neste momento traduzem).

    63

    Ao mesmo tempo, esse mesmo texto pode enunciar uma coisa completamente

    diferente, como: Isto (este enunciado, este texto) no um cachimbo (a

    figura que se pode ver acima do texto). H ainda uma terceira funo do

    62

    Ibid., p. 28. 63

    FOUCAULT, 1988, p. 29.

  • 37

    enunciado Isto (este conjunto constitudo por texto e figura) no (

    incompatvel com...) um cachimbo (este elemento misto que depende ao

    mesmo tempo do discurso e da imagem, e cujo jogo, verbal e visual, do

    caligrama, queria fazer surgir o ambguo ser; ou seja, a superposio do

    desenho e da designao que acontece no jogo caligrfico).

    Como podemos ver no Desenho para Os Dois Mistrios [Figura 4], de 1966,

    Magritte se esforou para reconstituir o lugar-comum imagem e linguagem

    dispondo o desenho do cachimbo e o enunciado que lhe serve de legenda no

    espao delimitado de um quadro, que colocado sobre um triedro de madeira

    espessa e slida. Assim, incita a perenidade de uma obra de arte e cria,

    segundo Foucault, um ambiente que faz lembrar um quadro-negro que mostra

    a continuao didtica de um discurso, de uma lio de coisas. As negaes

    como isto no um cachimbo, mas o desenho de um cachimbo, a frase: isto

    no um cachimbo, no um cachimbo, na frase: isto no um cachimbo,

    isto no um cachimbo: este quadro, esta frase escrita, este desenho de um

    cachimbo, tudo isto no um cachimbo se multiplicam. No entanto, na cena

    imaginada por Foucault, o cachimbo que surge no alto provoca algazarra nos

    alunos, que gritam e apontam um cachimbo, um cachimbo!, tornando as

    negativas do mestre inaudveis.

    Figura 4. Ren Magritte: Desenho para Os dois Mistrios, de 1966.

  • 38

    Porm, ao reabrir a armadilha que o caligrama tinha fechado sobre aquilo de

    que falava, Magritte fez desatar, entre as palavras e as formas, as relaes de

    designao, de denominao, de descrio, de classificao.

    (...) a imagem e o texto caem, cada um para o seu lado, segundo a

    gravitao que lhes prpria. Eles no tm mais espao comum,

    mais lugar onde possam interferir, onde as palavras sejam

    suscetveis de receber uma figura, e as imagens, de entrar na ordem

    do lxico. 64

    Portanto, nem no quadro-negro, nem acima dele, o desenho do cachimbo e o

    texto que deveria nome-lo acham lugar onde se encontrar e sobrepor, como o

    caligrama, com muita presuno, havia tentado fazer. Desta forma, a obra de

    Magritte evidencia um apagar desse lugar-comum entre os signos da escrita e

    as linhas da imagem.

    A importncia da produo de Magritte fica evidente quando consideramos que

    ela apresenta divergncias significativas em relao aos dois princpios que,

    segundo Foucault, regeram a pintura ocidental do sculo XV ao sculo XX. 65 O

    primeiro afirma a separao entre representao plstica e referncia

    lingustica, estabelecendo entre esses dois sistemas uma relao de

    hierarquia. O segundo estabelece que quando h semelhana, h lao

    representativo. Ao analisar as relaes entre representao plstica e

    referncia lingustica, Foucault elege, alm de Magritte, os artistas Paul Klee e

    Wassily Kandinsky para demonstrar como as obras desses artistas rompem

    com esses princpios.

    Esses dois princpios compreendem dois sistemas diferentes, que no podem

    se fundir, acontecer ao mesmo tempo:

    64

    FOUCAULT, 1988, p. 33. 65

    FOUCAULT, 1988, p. 39.

  • 39

    (...) o essencial que o signo verbal e a representao visual no so

    jamais dados de uma vez s. Sempre uma ordem os hierarquiza, indo

    da forma ao discurso ou do discurso forma. 66

    Assim, ou o texto passa a desempenhar o papel apenas de comentar a

    imagem; ou a imagem dominada pelo texto, se bastando na funo de ilustrar

    o discurso, efetuando plasticamente as significaes abordadas por ele. Klee,

    em contrapartida, abole a soberania desse princpio ao colocar em destaque,

    num espao incerto, reversvel, flutuante, a justaposio das figuras e a sintaxe

    dos signos, como podemos observar na obra Wohin? [Figura 5], de 1920.

    importante notar que, apesar de existirem palavras e formas sobre o mesmo

    espao fsico, como acontece no caligrama,

    No se trata absolutamente a de um desses caligramas que jogam

    com o rodzio da subordinao do signo forma (nuvem das letras e

    das palavras tomando a figura daquilo de que falam), depois da forma

    ao signo (figura se anatomizando em elementos alfabticos): no se

    trata tambm dessas colagens ou reprodues que captam a forma

    recortada das letras em fragmentos de objetos; mas do cruzamento

    num mesmo tecido do sistema da representao por semelhana e

    da referncia pelos signos. 67

    Figura 5. Paul Klee: Wohin?, 1920.

    66

    Ibid., p. 40. 67

    Ibid., p. 41.

  • 40

    O segundo princpio coloca a equivalncia entre a presena da semelhana e a

    afirmao de um lao representativo:

    Basta que uma figura parea com uma coisa (ou qualquer outra

    figura), para que se insira no jogo da pintura um anunciado evidente,

    banal, mil vezes repetido e entretanto quase sempre silencioso (ele

    como um murmrio infinito, obsidiante, que envolve o silncio das

    figuras, o investe, se apodera dele, obriga-o a sair de si prprio, e

    torna a despej-lo finalmente no domnio das coisas que se pode

    nomear): O que vocs esto vendo, isto. Pouco importa, ainda

    aqui, o sentido em que est colocada a relao da representao, se

    a pintura remetida ao visvel que a envolve ou se ela cria, sozinha,

    um invisvel que se lhe assemelha. (FOUCAULT, 1988, p. 41)

    Portanto, pouco importa se a semelhana que a figura evoca se d a partir de

    investimentos pautados em elementos visveis e familiares, como a pintura

    chamada de realista, ou se a semelhana busca afirmar um lao de

    representao entre as imagens criadas a partir do prprio ato de pintar e

    desse mundo invisvel que se busca representar como, em uma avaliao

    superficial, se poderia pensar que alguns trabalhos surrealistas se

    empenharam em representar o mundo dos sonhos. O essencial que, de

    acordo com esse segundo princpio, no se pode dissociar semelhana e

    afirmao. Kandinsky, como podemos observar em Composio n 218 [Figura

    6], de 1919, rompe esse princpio ao apagar simultaneamente a semelhana e

    o lao representativo:

    pela afirmao cada vez mais insistente dessas linhas, dessas cores,

    das quais dizia Kandinski que eram coisas, nem mais nem menos

    que o objeto igreja, que o objeto ponte ou homem-cavaleiro com seu

    arco; afirmao nua que no toma apoio em nenhuma semelhana e

    que, quando se lhe pergunta o que , s pode responder se

    referindo ao gesto que a formou: improvisao, composio; ao

    que se encontra ali: forma vermelha, tringulos, violeta laranja;

  • 41

    s tenses ou relaes internas: rosa determinante, para o alto,

    centro amarelo, compensao cor-de-rosa. 68

    Figura 6. Wassily Kandinsky: Improvisao n 26 (Remo), 1912.

    leo sobre tela, 97 x 107,5 cm. Munique, Stdtische Galerie im Lenbachhaus.

    Podemos dizer que os elementos da pintura de Kandinsky afirmam sua

    presena sem remeter a outros nem estabelecer uma relao representativa.

    Considerando as formas com as quais os artistas Klee e Kandinsky trabalham

    a plstica de suas obras, certamente perceberemos o quo distante delas est

    a maneira de Magritte pintar.

    Sua pintura parece, mais do que qualquer outra, presa exatido das

    semelhanas, a tal ponto que ela as multiplica voluntariamente, como

    para confirm-las: no suficiente que o desenho de um cachimbo

    parea com um cachimbo; preciso que ele parea com outro

    cachimbo desenhado, que, ele prprio, parea com um cachimbo.

    No suficiente que uma rvore parea com uma rvore e a folha

    com uma folha; mas a folha da rvore parecer com a prpria rvore,

    e esta ter a forma de sua folha (o Incndio); (...) a exata

    68

    FOUCAULT, 1988, p. 42.

  • 42

    representao de um par de sapatos se aplicar, alm disso, em

    parecer com os ps nus que ele deve recobrir. 69

    Enquanto Kandinsky e Klee investem em tcnicas que caminham no sentido do

    abstracionismo, Magritte insiste, ao menos superficialmente, em investir na

    semelhana. A forma com a qual esses artistas trabalham, evidentemente,

    diferente. E, no entanto, a pintura de Magritte no estranha ao projeto de

    Klee e de Kandinsky; constitui antes, diante deles e a partir de um sistema que

    lhes comum, uma figura ao mesmo tempo oposta e complementar. 70 Oposta,

    pois trabalha com a semelhana; complementar, porque assim como ocorre na

    obra desses, a de Magritte aboli a hierarquia entre signo verbal e

    representao visual, assim como aparentemente utiliza a semelhana, mas

    no para afirmar uma relao de representao.

    Na obra A Chave dos Sonhos [Figura 7], de 1930, podemos identificar que o

    que parece exatamente com um ovo, tem a inscrio a accia em baixo dele,

    ocupando um lugar de legenda; a figura de um sapato se chama a lua; um

    chapu coco, a neve. Podemos notar o empenho de Magritte em separar

    cuidadosamente o elemento grfico do elemento plstico e, quando eles

    dividem espao no quadro com a condio de que o enunciado conteste a

    identidade manifesta da figura e o nome que atribuiramos a ela. Assim

    tambm funcionam os ttulos das obras, que geralmente eram dados a

    posteriori e por outrem. A respeito deles, Magritte afirma:

    Os ttulos so escolhidos de tal maneira que impedem de situar meus

    quadros numa regio familiar que o automatismo do pensamento no

    deixaria de suscitar a fim de se subtrair inquietao. 71

    69

    FOUCAULT, 1988, p.43. 70

    Ibid., p. 43. 71

    Ibid., p. 47.

  • 43

    Figura 7. Ren Magritte: A Chave dos Sonhos, 1930.

    leo sobre tela, 81 x 60 cm. Paris, Coleo Particular.

    O que garante essa movimentao de sada da zona de conforto a

    dificuldade de ligar imediatamente obra com ttulo, pois um no traduz o outro,

    mas a relao se faz de modo muito complexo ou aleatrio. Assim, Magritte

    mina em segredo um espao que parece manter na disposio tradicional. 72

    nesse espao quebrado e deriva que estranhas relaes acontecem.

    Em A Traio das Imagens (Isto no um cachimbo), as palavras pintadas

    expulsam a figura para uma dimenso na qual ser regida a partir de uma

    lgica no lexical, sem que saibamos se semelhante ou no a si mesma. J

    em A arte da conversa, de 1950, h uma situao oposta:

    72

    FOUCAULT, 1988, p.48.

  • 44

    Numa paisagem de comeo do mundo ou de gigantomaquia, dois

    personagens minsculos esto falando: discurso inaudvel, murmrio

    que logo retomado no silncio das pedras, no silncio dessa parede

    em desaprumo que domina, com seus blocos enormes, os dois

    tagarelas mudos; ora, esses blocos, amontoados em desordem uns

    sobre os outros, formam, em sua base, um conjunto de letras onde

    fcil decifrar a palavra: RVE sonho (que possvel, olhando um

    pouco melhor, completar com TRVE trgua ou CRVE morte,

    ou morra, arrebente), como se todas as palavras frgeis e sem peso

    tivessem recebido o poder de organizar o caos das pedras. Ou como

    se, ao contrrio, por trs da tagarelice despertada mas logo perdida

    dos homens, as coisas pudessem, em seu mutismo e em seu sono,

    compor uma palavra uma palavra estvel que nada poder apagar;

    ora, essa palavra designa a mais fugidia das imagens. Mas no

    tudo: pois no sonho que os homens, enfim reduzidos ao silncio,

    comunicam com a significao das coisas, e se deixam impressionar

    por essas palavras enigmticas, insistentes, que vm de outro lugar.

    73

    Enquanto em A Traio das Imagens (Isto no um cachimbo) temos a inciso

    do discurso na forma das coisas seu poder ambguo de negar e de desdobrar

    , em A arte da conversa temos a gravitao autnoma das coisas que formam

    suas prprias palavras na indiferena dos homens, impondo-a a eles, sem

    mesmo que eles o saibam, em sua tagarelice cotidiana. 74

    Klee tecia um espao novo para dispor nele seus signos plsticos. Magritte

    deixa reinar o velho espao da representao, mas apenas superficialmente:

    pois no mais do que uma pedra lisa, que traz figuras e palavras:

    embaixo, no h nada. a lpide de um tmulo: as incises que

    desenham as figuras e as que marcaram as letras no comunicam

    seno pelo vazio, por esse no-lugar que se esconde sob a solidez

    do mrmore. 75

    73

    FOUCAULT, 1988, p. 49. 74

    Ibid., p. 49. 75

    Ibid., p. 54.

  • 45

    Kandinsky despediu a velha equivalncia entre semelhana e afirmao 76

    criando elementos que no funcionavam a servio da representao. Ento,

    no mais uma obrigao da pintura trabalhar nem com a afirmao de

    relaes de representao, nem com a semelhana. Magritte, por sua vez,

    trabalha dissociando semelhana de afirmao: ele claramente utiliza o

    semelhante, levando esse propsito to longe quanto possvel, mas afasta toda

    afirmao que diria com o que isso parece. Assim, estabelecida uma

    desigualdade entre semelhana e afirmao. Segundo Foucault, Magritte joga

    a similitude contra a semelhana, dissociando uma da outra:

    A semelhana tem um padro: elemento original que ordena e

    hierarquiza a partir de si todas as cpias, cada vez mais fracas, que

    podem ser tiradas. Assemelhar significa uma referncia primeira que

    prescreve e classifica. O similar se desenvolve em sries que no tm

    nem comeo nem fim, que possvel percorrer num sentido ou em

    outro, que no obedecem a nenhuma hierarquia, mas se propagam

    de pequenas diferenas em pequenas diferenas. A semelhana

    serve representao, que reina sobre ela; a similitude serve

    repetio, que corre atravs dela. A semelhana se ordena segundo

    o modelo que est encarregada de acompanhar e de fazer

    reconhecer; a similitude faz circular o simulacro como relao

    indefinida e reversvel do similar ao similar. 77

    Ento, a semelhana est presa a um modelo e, a partir da referncia dele,

    classifica as cpias de forma hierrquica: quanto maior a semelhana, maior

    eficincia no representar, no fazer reconhecer esse modelo. Por outro lado, a

    similitude faz circular a diferena, a variao, o simulacro, se libertando, dessa

    forma, do modelo e da funo de representar. No h ordem nem hierarquia de

    similar para similar.

    A semelhana comporta uma nica assero, sempre a mesma: isto,

    aquilo, aquilo ainda, tal coisa. A similitude multiplica as afirmaes

    diferentes, que danam juntas, apoiando-se e caindo umas em cima

    das outras.

    76

    FOUCAULT, 1988, p.59. 77

    Ibid., p.60.

  • 46

    Expulsa do espao do quadro, excluda da relao entre as coisas

    que reenviam uma outra, a semelhana desaparece. Mas no

    para reinar em outro lugar, onde estaria liberta do jogo indefinido da

    similitude. No cabe semelhana ser a soberania que faz surgir. 78

    Isso porque a semelhana no uma propriedade das coisas, mas sim uma

    construo do pensamento. S ao pensamento, diz Magritte, dado ser

    semelhante. 79 Portanto, um dos modos do pensamento funcionar, e no o

    nico.

    Voltando ao desenho de um cachimbo e ao desenho de um texto escrito em

    Desenho para Os Dois Mistrios [Figura 4], podemos perceber que, quando

    justapostos, esses elementos anulam a semelhana intrnseca que parecem

    trazer consigo, e pouco a pouco se esboa uma rede aberta de similitudes. No

    se abre, porm, para um cachimbo real, que funcionaria como modelo

    exterior. Abre-se para todos os elementos similares, todos os cachimbos

    reais, de barro, de escuma, de madeira, que teriam lugar e funo de

    simulacro. Acerca disso, ainda afirma Foucault:

    E cada um dos elementos de isto no um cachimbo bem poderia

    manter um discurso em aparncia negativo, pois se trata de negar,

    com a semelhana, a assero de realidade que ela comporta, mas

    que no fundo afirmativo: afirmao do simulacro, afirmao do

    elemento na rede do similar. 80

    Ao recusar a assero que indica a semelhana como um indcio de uma

    relao de representao, se afirma o simulacro. A prpria figura do cachimbo

    poderia afirmar:

    (...) O que vocs vem aqui, essas linhas que eu formo ou que me

    formam, tudo isto no um cachimbo, como vocs crem, sem

    dvida; mas um desenho que est numa relao de similitude vertical

    com esse outro cachimbo, real ou no, verdadeiro ou no, no tenho

    78

    FOUCAULT, 1988, p. 63. 79

    Ibid., p. 64. 80

    Ibid., p. 65.

  • 47

    a menor ideia, que vocs esto vendo l olhem, bem em cima

    desse quadro onde sou, eu, uma simples e solitria similitude. 81

    No se afirma que os elementos do quadro no so um cachimbo porque so

    apenas semelhantes a um cachimbo. O que se coloca so similitudes que no

    remetem a nenhum outro elemento, mas fazem circular esses elementos que

    s se parecem com eles mesmos e no podem valer por outra coisa.

    De ora em diante, a similitude reenviada a si prpria desdobrada

    a partir de si e dobrada sobre si. No mais indicador que atravessa

    de modo perpendicular a superfcie da tela para remeter outra

    coisa. Ela inaugura um jogo de transferncias que correm, proliferam,

    se propagam, se respondem no plano do quadro, sem nada afirmar

    nem representar. 82

    Segundo Foucault, a pintura clssica se desenvolvia tratando a semelhana

    como uma afirmao. Ento, apesar de no apresentar elementos lingusticos

    nas obras, a afirmao levada a diante pela semelhana fazia a pintura falar,

    reintroduzia o discurso (s h afirmao onde se fala). 83 Silenciosamente, a

    pintura clssica repousava num espao discursivo; instaurava, ento, uma

    espcie de lugar-comum onde podia restaurar as relaes da imagem e dos

    signos. Em contrapartida, Magritte utiliza os signos verbais e os elementos

    plsticos, mas sem propor uma relao de hierarquia entre eles, na qual um

    ficaria submetido ao outro. Ele esquiva o fundo de discurso afirmativo, sobre o

    qual repousa tranquilamente a semelhana e coloca em jogo puras similitudes

    e enunciados verbais no-afirmativos em um espao instvel, sem referncia.

    A partir dessa operao, A Traio das Imagens (Isto no um cachimbo) d,

    segundo Foucault, o seguinte formulrio:

    1. Praticar um caligrama onde se encontrem simultaneamente

    presentes e visveis a imagem, o texto, a semelhana, a afirmao

    e o lugar-comum deles.

    81

    FOUCAULT, 1998, p. 65. 82

    Ibid., p. 68. 83

    Ibid., p. 75.

  • 48

    2. Depois abrir, de uma vez s, de maneira que o caligrama se

    decomponha imediatamente e desaparea, deixando como rastro

    apenas seu prprio vazio.

    3. Deixar o discurso cair segundo seu prprio peso e adquirir a

    forma visvel das letras. Letras que, na medida em que so

    desenhadas, entram numa relao incerta, indefinida,

    emaranhada, com o prprio desenho mas sem que nenhuma

    superfcie possa lhes servir de lugar-comum.

    4. Deixar de um outro lado as similitudes se multiplicarem a partir

    delas mesmas, nascer de seu prprio vapor e se elevar sem fim,

    num ter onde s se reenviam a si prprias, e a nada mais.

    5. Verificar bem, no final da operao, que o precipitado mudou

    de cor, que passou de branco a preto, que o isto no um

    cachimbo silenciosamente escondido na representao

    semelhante tornou-se o isto no um cachimbo das similitudes

    em circulao. 84

    Finalmente, Foucault ainda sugere que, assim como Magritte desvincula a

    relao de representao em sua obra, fazendo com que a semelhana saia de

    cena e que as similitudes circulem, o processo da obra de Warhol faz a prpria

    imagem, com o nome que traz, ser desidentificada pela similitude

    indefinidamente transferida ao longo de uma srie. Campbell, Campbell,

    Campbell, Campbell. 85

    84

    FOUCAULT, 1988, p. 76. 85

    Ibid., p. 77.

  • 49

    5. CONSIDERAES FINAIS

    Como vimos, o Surrealismo enfrentou vrias interpretaes conteudistas, que

    foram combatidas explicitamente por Magritte. Ainda hoje no difcil perceber

    em algumas exposies de Arte a presena de textos explicativos que acabam

    propondo uma relao de hierarquia com as obras. Mesmo que essa relao

    seja estabelecida pelos visitantes, e no pelo curador da exposio, parece

    que a necessidade de encontrar uma explicao unvoca ou interpretao

    pretensiosamente fidedigna ao que se percebe nas obras acaba falando mais

    alto do que a importncia que damos s experincias e aos desdobramentos

    que so desenvolvidos em relao ao contato com a obra de arte.

    A obra de Magritte parece manter um lugar-comum no qual elementos grficos

    e pictricos se encontram em uma relao hierrquica. Alm disso, ao

    observarmos os elementos pictricos que Magritte faz questo de manter nos

    pormenores aparentes, somos tentados a perguntar o que isso quer dizer?,

    ou o que o artista quis dizer com isso?, ou ento: o que isso representa?.

    Essa maneira de estabelecer o primeiro contato com a obra logo

    desconcertado quando percebemos um ovo que recebe uma legenda que diz

    a accia, em A Chave dos Sonhos, de 1930, ou quando o que parece ser

    claramente um cachimbo divide o mesmo quadro com a frase que diz Isto no

    um cachimbo, em A Traio das Imagens, de 1928/29. Conforme as

    observaes de Foucault, quando os elementos grficos e os pictricos

    dividem o mesmo espao nas obras de Magritte, com a condio de que a

    relao entre eles no seja de conformidade. Esses elementos passam a

    gravitar segundo seus prprios modos de funcionamento; um no exclui o outro

    nem est submetido ao funcionamento dele. Portanto, Magritte desarticula a

    habitual hierarquia com a qual julgamos estarem relacionados texto e imagem.

    A maneira plstica com a qual Magritte trabalha os elementos pictricos sugere

    que a suposta semelhana presente em sua obra se referiria a algum elemento

    externo, que serviria de modelo e que estaria representado. Porm, a

    disposio dos elementos na obra de Magritte cria contextos inusitados, o que

    parece ironizar esse esforo que se faz para encontrar uma explicao, ou uma

    interpretao pretensiosamente mais adequada para aquilo que se apresenta.

  • 50

    Trata-se de uma crtica representao, pois, sem se remeter a um modelo

    exterior, a suposta semelhana presente na obra de Magritte se liberta da

    representao; d lugar s similitudes, que no buscam fixar nenhuma

    referncia, apenas afirmam a diferena.

    O esforo do discurso em estabelecer qual seria o sentido que pretende ser o

    mais adequado para determinada obra de arte parece nos fazer correr o risco

    de submeter a experincia do contato com a obra a uma interpretao

    gratuita, para usar as palavras de Magritte. Portanto, mais importante do que

    perguntar o que isso quer dizer? talvez seja colocar em questo essa

    necessidade de eleger o discurso como uma ferramenta capaz de submeter a

    obra de arte e todo o campo do sensvel ao seu modo de funcionamento.

    Em contrapartida, quando se estabelece certa autonomia ao que da ordem

    do discurso e ao que da ordem do sensvel, compreendendo que cada

    instncia tem sua forma de funcionamento, as relaes que estabelecemos

    entre elas so mltiplas, so similitudes em circulao.

  • 51

    6. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS