mangue beat

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1 Introdução: As condições fornecidas por um ambiente tão rico, porém tão degradado como a cidade do Recife e sua região estuária, proporcionou, entre as tradições populares, o surgimento de um movimento de vanguarda – o Manguebeat. O contraste entre a miséria crônica de origem histórica, e a tecnologia de ponta introduzida por uma das principais rotas de intercâmcio marítimo, e também cibernéticos; produziu condições que resultaram em (re)organização e manifestação cultural de resistência, dentro do caos antropossocial. Vários fatores são responsáveis pelos elementos sutis necessários ao surgimento dessa resposta ao sistema opressor /oprimido. Um deles, o ecossistema que batiza o movimento, é observado em obras consagradas de autores clássicos. Pode-se supor que a vida nasça de uma “luta” de ecossistemas com efeitos opostos que se neutralizam na zona de excelência da homeostase; a vida, pois, se mantém, conforme será visto, dentro de um sistema, constantemente em (re)organização através de desordens, conflitos, antagonismos. “Todos esses seres, todos esses existentes perduram no e pelo

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Análise de fragmentos da obra de Josué de Castro, João Cabral de Melo Neto e Francisco Assis de Sá (Chico Science)

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3030

Introduo:

As condies fornecidas por um ambiente to rico, porm to degradado como a cidade do Recife e sua regio esturia, proporcionou, entre as tradies populares, o surgimento de um movimento de vanguarda o Manguebeat.

O contraste entre a misria crnica de origem histrica, e a tecnologia de ponta introduzida por uma das principais rotas de intercmcio martimo, e tambm cibernticos; produziu condies que resultaram em (re)organizao e manifestao cultural de resistncia, dentro do caos antropossocial.

Vrios fatores so responsveis pelos elementos sutis necessrios ao surgimento dessa resposta ao sistema opressor /oprimido. Um deles, o ecossistema que batiza o movimento, observado em obras consagradas de autores clssicos.

Pode-se supor que a vida nasa de uma luta de ecossistemas com efeitos opostos que se neutralizam na zona de excelncia da homeostase; a vida, pois, se mantm, conforme ser visto, dentro de um sistema, constantemente em (re)organizao atravs de desordens, conflitos, antagonismos.

Todos esses seres, todos esses existentes perduram no e pelo desequilbrio e na instabilidade que alimentam o metaequilbrio e a metainstabilidade, quer dizer, as situaes estacionrias e as homeostases.

Melhor: cada termo, cada ao, cada processo, tomado isoladamente, desordem ou conduz desordem. Juntos, eles fazem a organizao viver, ou seja, o circuito cuja virtude de combinar e transmutar as desordens em generatividade. (Morin, 2005, p. 268)

Este estudo terico pretende estabelecer algumas relaes existentes entre o ecossistema e o homem, a partir de excertos de obras de Josu de Castro, de Joo Cabral de Mello Neto, de Francisco Frana (conhecido como Chico Science) e do movimento Manguebeat idealizado por Frederico Montenegro (conhecido como Fred Zero Quatro). De como os indivduos procuram se organizar, utilizando os parcos recursos disponveis na lama do manguezal, afinal (...) no h mais physis isolada do homem, ou melhor, isolvel de seu entendimento, de sua lgica, de sua cultura, de sua sociedade. No h mais objeto totalmente independente do sujeito. (Morin, 2005, p. 179)

H que se considerar o sistema como uma estrutura, de forma holstica: como um organismo, onde cada parte desempenha sua funo num todo. A palavra organizao, do grego rganon, significa instrumento, rgo. E como organismo, deve-se considerar que entre as partes h uma comunicao, ainda que em nveis sutis, e que permite um arranjo lgico na natureza.

A idia de comunicao deve ser interrogada em todas as suas dimenses organizacionais e existenciais. A comunicao a dimenso nova que a vida traz. Ela uma idia capital, tanto para o organismo quanto para o ecossistema. Ela ilumina de forma rica o problema da improbabilidade biolgica, j que a comunicao a reunio em um conjunto organizado do que, caso contrrio, deveria se dispersar. Existem outras comunicaes vivas, inclusive em nosso planeta? Existem comunicaes desconhecidas? (Morin, 2005, p. 311/312)

Desenvolvimento:

1 Joo Cabral de Melo Neto Morte Vida Severina

(publicado em 1954)

Falam as duas ciganas que haviam aparecido com os vizinhos

- Ateno peo, senhores,

para esta breve leitura:

somos ciganas do Egito,

lemos a sorte futura.

Vou dizer todas as coisas

que desde j posso ver

na vida desse menino

acabado de nascer:

aprender a engatinhar

por a, com aratus,

aprender a caminhar

na lama, com goiamuns,

e a correr o ensinaro

os anfbios caranguejos,

pelo que ser anfbio

como gente daqui mesmo.

Cedo aprender a caar:

primeiro, com as galinhas,

que catando pelo cho

tudo o que cheira a comida

depois, aprender com

outras espcies de bichos:

com os porcos nos monturos,

com os cachorros no lixo.

Vejo-o, uns anos mais tarde

na ilha do Maruim,

vestido negro de lama,

voltar de pescar siris;

e vejo-o, ainda maior,

pelo imenso lamaro

fazendo dos dedos iscas

para pescar camaro.

- Ateno peo, senhores,

tambm para minha leitura:

tambm venho dos Egitos,

vou completar a figura.

Outras coisas que estou vendo

necessrio que eu diga:

no ficar a pescar

de jerer toda a vida.

Minha amiga se esqueceu

de dizer todas as linhas;

no pensem que a vida dele

h de ser sempre daninha.

Enxergo daqui a planura

que a vida do homem de ofcio,

bem mais sadia que os mangues,

tenha embora precipcios.

No o vejo dentro dos mangues,

vejo-o dentro de uma fbrica:

se est negro no de lama,

de graxa de sua mquina,

coisa mais limpa que a lama

do pescador de mar

que vemos aqui, vestido

de lama da cara ao p.

E mais: para que no pensem

que em sua vida tudo triste,

vejo coisa que o trabalho

talvez at lhe conquiste:

que mudar-se destes mangues

daqui do Capibaribe

para um mocambo melhor

nos mangues do Beberibe.

A obra de Joo Cabral de Melo Neto ilustra o prembulo do presente estudo. Severino, em conseqncia da seca do serto, parte seguindo o curso do rio Capibaribe, at chegar no Recife. Ao atingir seu destino, descobre que a realidade da capital no to promissora como o esperado, e pensa at em abandonar a vida, jogando-se no rio, aps ouvir a conversa entre dois coveiros. Ento trava conhecimento com o mestre carpinteiro Jos, inquirindo-lhe se o melhor no seria abandonar sua prpria vida, saltando ao Capibaribe.

Estes excertos de Morte e Vida Severina referem-se s predies de duas ciganas, para o recm-nascido rebento do mestre carpinteiro. A primeira cigana vaticina ao menino, um futuro de agruras, caracterstico dos habitantes dos mangues do Capibaribe: suas vivncias tero como mestres as criaturas que habitam a lama, transfigurando a prpria humanidade do menino numa existncia anfbia e zoomrfica. Trata-se da confirmao da impossibilidade de fuga do destino miservel, que acompanha toda essa gente esquecida pelo poder pblico, e que desvendara-se aos prprios olhos de Severino, em sua chegada capital.

Em seguida, a segunda cigana profetiza algumas linhas mais da ventura do menino, e que ficaram esquecidas na primeira leitura do destino: que o garoto no permaneceria chafurdado naquele lamaal, pois o negrume de seu corpo seria de outro ofcio: operrio de uma fbrica. Existe nesta passagem uma sutil ironia, pois tal profisso no garantia qualquer mudana significante na sorte do menino, pois o trabalho era praticamente to rduo quanto o do pescador dos manguezais.

Da, o ciclo da misria tanto acompanha a vida do retirante, quanto ser o destino do ribeirinho neo-nato.

2 Josu de Castro - Homens e Caranguejos

(publicado em 1966)

2.1 O homem

Logo na apresentao do livro, o autor relata como suas reminiscncias da infncia, dos afogados deste mar de misria nos manguezais de Recife, o inspiraram. Tambm descreve como a fome (tema recorrente de sua obra literria) impregna o vocabulrio da populao carente, contaminando suas grias com comidas imaginrias: Era como se esta gria fosse uma espcie de compensao mental de um povo sempre faminto. (Castro, 2003, p. 4)

Dois relatos da fome que expulsa o sertanejo de sua terra so emblemticos: o de Z Lus e o de Seu Maneca. Pois se a vida no serto por demais dura, a caminhada angustiante do xodo pode ser o destino final de muitos retirantes, cujas cruzes humlimas ao p da estrada se multiplicam, assinalando o seu ltimo (e talvez nico) descanso.Era tanta morte de retirante que a impresso que a gente tinha que eles vinham mesmo acompanhando o seu prprio enterro. Eram uns mortos caminhando at a sua prpria cova. (Castro, 2003, p.45)

- Vocs que chegaram pro Recife, vindos daqui de perto, da zona do brejo, no sabem o que amargar a poeira das estradas do serto em tempos de seca. No s a lonjura das estradas que no tem fim, o sofrimento do retirante que tambm parece que no tem mais fim. (Castro, 2003, p. 45)

Z Lus partiu com a famlia do serto de Cabaceiras, aps a morte de seu filho mais velho, Joaquim; durante a seca de 1877. Em sua caminhada, arranchou com sua famlia por uma noite, numa casa com caimba, a convite do prprio dono. Nesta mesma ocasio chegara um fazendeiro, seu Xandu, levando um carregamento de queijo e rapadura com destino a Caruaru. Seu Xandu convidou Z Lus para seguir viagem, com a famlia, montados nas bestas, entre as cargas. E assim prosseguiram. Contudo, Z Lus no conseguia ignorar o apelo de seu estmago vazio, enquanto a boca salivava pelo cheiro do queijo. Tentara resistir, mastigando apenas um pedao de palha do cesto, com o gosto do queijo, mas sem sucesso. Ento roubou um queijo e enfiou todo na boca, mastigando de soslaio. De vez em quando, arrancava outro pedao, e roa, fingindo dormir, para no levantar suspeita. At que caiu mesmo no sono, e acordou de sobressalto, aps tombar junto com a carga: havia comido tanto queijo, que a carga se desequilibrara, com o peso do balaio de rapadura. Em seguida, ficara abandonado com sua famlia pela estrada, sob um p de juazeiro, vomitando . Dessa maneira, Z Lus tornou-se, de vaqueiro honrado, um reles ladro de queijo.

Seu Maneca deixou o Crato num navio gaiola, pelo rio So Francisco, fugindo da fome, at embarcar num navio a vapor em Pirapora. Mas antes de partir de sua terra natal, havia se alimentado com muita raiz braba, assim como os outros flagelados; o ltimo recurso de sobrevivncia da gente do serto. Por isso, ao servir o jantar para a tripulao de retirantes do vapor, muitos sequer conseguiram terminar sua refeio: as plantas brabas causavam clicas to intensas que a diarria imediatamente acometeu-lhes. Os que no conseguiram chegar at os quatro sanitrios da embarcao, fizeram suas necessidades nas bordas do convs, agarrados s barras de ferro do navio. E foi assim que Seu Maneca contara sua histria aos colegas, amenizando o embarao de seu amigo Z Lus: - Voc vomitou de vergonha toda a sua fome, Z Lus. Pois eu, com licena da palavra, caguei a minha fome toda, do serto at aqui (Castro, 2003, p. 50)

Josu tambm introduz a metfora do homem-caranguejo: o homem deixa de ser humano para se tornar caranguejo, andando de lado, vivendo na lama do mangue. Na sua morte, torna-se alimento do crustceo, mantendo assim, um circuito aparentemente interminvel dessa cadeia alimentar.

Seres anfbios habitantes da terra e da gua, meio homens e meio bichos. Alimentados na infncia com caldo de caranguejo: este leite de lama. Seres humanos que se faziam assim irmos de leite dos caranguejos. Que aprendiam a engatinhar e a andar com os caranguejos da lama e que depois de terem bebido na infncia este leite de lama, de terem enlambuzado com o caldo grosso da lama, de terem impregnado do seu cheiro de terra podre e de maresia, nunca mais se podiam libertar desta crosta de lama que os tornava to parecidos com os caranguejos, seus irmos, com as suas duras carapaas tambm enlambuzadas de lama. (Castro, 2003, p. 3)

2.2 O mangue:

O espao da narrativa a Aldeia Teimosa, no bairro de Afogados, Recife. A capital pernambucana abriga a suntuosidade das antigas residncias palacianas, em face dos mocambos, gerando um imenso contraste socioeconmico.

Conhecida como a Veneza brasileira, devido ao encontro dos rios Capibaribe, Beberibe e de outros quatro rios; a cidade esturio cresceu beira do charco e da lama, num ambiente to rico quanto frgil em seu equilbrio ecolgico.

O ecossistema, s margens do rio Capibaribe, que garante o mnimo para subsistncia daquela gente miservel (retirantes do serto, expulsos por grileiros ou pela seca, como Severino de Joo Cabral de Melo Neto), definido por Josu de Castro como um camarado; pois fornecia tudo quela populao to carente: casa, comida, mocambo e caranguejo. At o ciclo da mar com suas cheias e vazantes, contribui para essa dependncia do homem com a natureza:

Quando ela enche, se avoluma e se estira, alaga a terra toda, mas, quando ela baixa e se encolhe, deixa descobertos os calombos mais altos. Nestes calombos de terra levantam os retirantes os seus mocambos com as paredes de varas de mangue tranadas e de lama amassada. A cobertura de palha de coqueiro, de capim seco e de outros materiais que o monturo fornece. Tudo de graa, encontrado ali mesmo numa bruta camaradagem com a natureza.(Castro, 2003, p. 58).

Diante do contraste habitacional da capital, o menino Joo Paulo, filho de Z Lus e de Maria, retirantes da seca, indaga ao pai o motivo de morarem no mangue:

- Porque quando viemos do interior foi aqui que encontramos a nossa terra da promisso, o nosso paraso responde Z Lus com voz tranqila.

- Paraso dos caranguejos acrescenta em tom de revolta a me de Joo Paulo. (Castro, 2003, p. 11)

Mas, eventualmente, apareciam supostos donos das terras, que at ento no eram de ningum, e reclamavam-lhes a posse. Esses novos donos eram, por coincidncia, senhores muito importantes e ligados situao, que se utilizavam desse recurso como estratgia para varrer os mocambos das terras do mangue.

Esses atravessadores registravam, muitas vezes, terras inexistentes, esperando que um dia a mar as parisse. Outros registravam pequenas ilhas j paridas, mas ainda nuas, sem a vestimenta dos mangues. Registravam pequenas coroas de lodo, espcie de feto de ilhas com o seu corpo mole e liso, ainda enlambuzado da gosma nutriente do rio. Esses atravessadores sabiam que as coroas iriam crescer, que estes criadores de terra que so os mangues iriam levantar o lombo dessas terras, engordar as suas carnes, dar-lhes ossos com suas razes rugosas e transform-las em verdejantes ilhas permanentes ancoradas no meio das guas fecundantes. Por isso se faziam depressa donos dessas terras, para explor-las no futuro, exigindo do habitante do mangue um escorchante aluguel por aquele pedao de lama onde se tinha plantado seu mocambo.

E, se o morador no podia pagar, que sasse dessa lama que o mangue j tinha secado e fosse para outra zona de lama mais mole, viver dentro d'gua com os caranguejos. (Castro, 2003, p. 58/59)

2.3 O ciclo:

Josu descreve o ciclo do caranguejo: o caranguejo que ali habita, alimenta-se da lama e das excretas humanas para, em seguida, alimentar o homem, que vive de pegar o crustceo. So duzentos mil indivduos, duzentos mil cidados feitos de carne de caranguejos. O que o organismo rejeita volta a ser lama outra vez, O ciclo da fome devorando os homens e os caranguejos, todos atolados na lama.(Castro, 2003, p. 8). Em outras palavras, toda existncia se alimenta do que a corri.(Morin, 2005, p. 255)

Identifica-se, ento, trs elementos principais de existncia dentro desse ecossistema:

. a lama do manguezal, substrato inorgnico que serve de nutriente e de componente estrutural para toda a cadeia alimentar que se desenvolve nesse ambiente;

. o crustceo, em sua larga variedade de espcies, cujo caldo de suas carnes impregna o corpo e a alma dos homens;

. o gabiru, que por sua vez, devolve ao mangue e ao crustceo seus prprios restos (mortais ou seus dejetos) e descartes da sociedade. Passa tambm a se constituir desses refugos, absorvidos em outras etapas do ciclo.

Morin afirma que os seres vivos so seres poiticos (...): eles produzem ser e existncia a partir de materiais brutos. A gerao de um ser por outro ser a biolgica final da poesia. (Morin, 2005, p. 200)

No romance, desenvolve-se outra relao mangue/homem, referente s mars. Chico, o leproso, vivia em quase completo isolamento dos outros moradores da Aldeia Teimosa, devido sua doena. Durante a madrugada, saa em sua jangada para pescar, tendo o mangue, com seus rios, como nico companheiro. Isto lhe permitiu estabelecer uma espcie de comunicao particular. a hora em que Chico conversa com intimidade com seus rios. Que ele escuta suas queixas e aprende a am-los cada vez mais. (Castro, 2003, p. 71)

Quando ocorreu a grande cheia, devido ao imenso volume de chuva vindo desde as terras altas do serto, Chico foi um dos primeiros a perceber a extenso da catstrofe que estava por vir. Enquanto socorria Idalina, com sua jangada, a idosa o inquire quem o avisara a tempo. Chico responde que fora o rio.

E era verdade. O rio no tinha segredos para Chico. H muitos anos que ele trocava lngua com o rio. Que descobrira o sentido completo do linguajar do rio dialogando com os mangues, com as jangadas, com os pescadores.

Na vspera da cheia, Chico fora pescar, mas, chegando beira do rio, sentiu que se passava qualquer coisa de estranho. O rio lambia carinhosamente com suas lnguas d'gua os galhos mais altos do mangue, como uma vaca lambe a cabea do seu bezerro, mugindo baixinho.

Chico aplicou bem o ouvido para entender o sentido daquele mugido das guas. E entendeu. Era o aviso da cheia. Era o rio acariciando os mangues e prevenindo-os do perigo que se aproximava, para que se agarrassem com todos os seus galhos e razes para agentar a violncia da cheia.(Castro, 2003, p. 85)

Uma semana aps a grande cheia, as guas j principiavam a baixar, e a lama estava novamente mostra. Em meio a tanta desgraa, entres os corpos apodrecidos de gente e de animais, s quem ressurgia triunfante no meio dessa desolao era o mangue.

Os mangues apareciam frescos como se tivessem acabado de fazer amor naquele instante. Talvez fosse esse o segredo de seu vio.

Afirmava Chico, com ares de entendido, que enquanto permanecem debaixo d'gua, os mangues consagram todo o seu tempo fazendo amor. A abandonar suas folhas ao beijo impetuoso da corrente. A esfregar seus galhos, uns nos outros, com infinita volpia. A atolar suas grossas razes, com gozo, na lama garanhona do fundo do rio. Chico afirmava ter mesmo escutado, certas noites, o bailado nupcial dos mangues no fundo das guas, e o estalar de seus caules membrudos gozando nas carnes da lama viscosa. Era um trepidar violento de amor que se terminava num orgasmo final, derramando as sementes do mangue na gua da cheia para fecundar as novas terras que surgiriam na certa do ventre das guas.

Se os bailados nupciais dos mangues machos e sua luxria amorosa durante a cheia so coisas difceis de se provar, que talvez s existam na imaginao doentia de Chico, j o parto das novas ilhas coisa certa, da qual no participam nem a imaginao nem a fantasia. A cheia improvisa sempre uma nova geografia, fazendo desaparecer terras num lugar e aparecer noutro. As novas terras surgidas do ventre das guas mostram-se como pequenas coroas de lodo, que a vegetao do mangue logo recobre com carinho, para faz-las crescer e se consolidar. (Castro, 2003, p. 91)

No trecho supracitado, o ecossistema assume caractersticas humanas (como se fosse outra personagem dentro do romance), no apenas no imaginrio de Chico, mas na observao de sua gnese. Ele adquire a caracterstica de generatividade e regeneratividade, ainda que estes processos sejam causadores de degradao da relao simbitica que constitui com os ribeirinhos.

Ora, o circuito produtor-de-si ao mesmo tempo produtor de organizao, de ser, de existncia. O que quer dizer que ser, existncia , organizao, nascem do no-ser, da no-existncia, da no-organizao, mas no do ex nihilo: eles nascem do que ainda preciso chamar de mar de caos, quer dizer: turbulncias, atividades em desordem, agitaes, oposies, movimentos contrrios, batidas, choques...

Assim, no e pelo circuito (turbilionrio, retroativo, recursivo), o caos se transforma em ser, existncia, organizao. (Morin, 2005, p. 276/277)

Apesar da tragdia causada pela destruio, seguia-se cheia um fenmeno curiosamente observvel: uma espcie de exploso demogrfica, causada pelas moas que engravidavam durante o caos da inundao.

Mas no era s o bucho das ilhas que inchavam aps a descida das guas. Tambm estufavam os buchos das moas solteiras. De todas aquelas malucas que tinham desobedecido os conselhos das mes, satisfazendo larga os seus recalcados instintos, dormindo entre os troncos dos mangues, sombra acariciante dos coqueiros, com os caboclos excitados pelo furor da cheia.

(...)

Nove meses depois da cheia, colhia a terra sua boa safra de filhos do mangue. Filhos sem pai, sem recurso, sem futuro. Condenados a fuar o mangue, a retirar da lama o seu po e o seu leite a carne e o caldo do caranguejo. E a crescer com os caranguejos, beira da mar.

A mar paria ilhas, as moas pariam meninos, mas ningum se alegrava com tanta terra e tanta gente para batizar. (Castro, 2003, p. 92)

V-se, portanto, que a retroao positiva significa no apenas a desorganizao, mas o desencadeamento da desorganizao. V-se que toda organizao no apenas aprisiona as foras furiosas e devastadoras que ela alimenta, mas tambm alimenta as foras furiosas e devastadoras que ela aprisiona. (Morin, 2005, p. 270)

Ento, atravs das relaes desse sistema homem/caranguejo/mangue, que podemos entender as interaes to caras a esse estudo:

Esta relao circular, para comear, que uma cincia do homem postula uma cincia da natureza, que por sua vez postula uma cincia do homem: ora, logicamente esta relao de dependncia mtua faz com que uma proposio remeta a outra num crculo infernal onde nenhuma pode tomar corpo. Esta relao circular significa tambm que, ao mesmo tempo em que a realidade antropossocial depende da realidade fsica, a realidade fsica depende da realidade antropossocial. (Morin, 2005, p. 31).

1.4 O sistema:

Morin classifica o sistema de duas maneiras: da primeira, ele reflete caractersticas reais do objeto, observveis, conferindo um realismo seguro. Na segunda, o sistema um modelo ideal heurstico aplicado sobre os fenmenos, sem prever a sua realidade.

Em sua dupla natureza, o sistema um conceito-fantasma. Como o fantasma, ele tem a forma de seres materiais, ele o espectro destes; mas como o fantasma, ele imaterial. Ele liga idealismo e realismo, sem se deixar encerrar em nenhum dos dois. Com efeito, ele no diz respeito nem forma, nem ao contedo, nem aos elementos concebidos isoladamente, nem ao todo sozinho, mas tudo isso ligado na e pela organizao que os transforma.(Morin, 2005, p. 178)

De fato, os componentes de um sistema so muito diversos, o que dificulta a reproduo de suas mesmas caractersticas em outro local. Pequenas variaes em qualquer um dos seus componentes, podem gerar outro sistema, que no ser idntico ao anterior.

Pode-se certamente ver a sociedade como um todo e o indivduo como uma parte, a espcie como um todo e a sociedade, assim como o indivduo, como partes. Mas tambm se pode conceber o indivduo como o sistema central e a sociedade como seu ecossistema ou sua placenta organizadora, e principalmente quando a emergncia da conscincia se efetua na escala do indivduo, no na escala do todo social. Da mesma forma, ns podemos inverter a hierarquia espcie/indivduo e considerar o indivduo como o todo concreto, a espcie sendo apenas um ciclo maquinal de reproduo dos indivduos.(Morin, 2005, p. 163).

Morin apresenta o circuito tetralgico, do qual, a partir da desordem, a ordem atingida aps a organizao efetuada por interaes. To logo a ordem estabelecida, recomea o desequilbrio que instaura novamente o caos na natureza (physis), num circuito cclico (Morin, 2005).

desordem interaes organizaes ordem

A relao ordem/organizao circular: a circulao produz ordem, que mantm a organizao que a produz, ou seja co-produz a organizao. Esta ordem organizacional uma ordem construda, conquistada sobre uma desordem, protetora contra as desordens: no mesmo movimento que a ordem transforma a 'improbabilidade' da organizao em probabilidade local, salva a originalidade do sistema e constitui uma ilha de resistncia contra as desordens do exterior (acasos, agresses) e do interior (degradaes, arrebentaes dos antagonismos). (Morin, 2005, p. 166)

Esta relao pr-existente s cincias humanas, e possui origem nas leis da Fsica. Segundo a Fsica, o universo est se degradando desde sua cosmogenia. Dessa forma, o cosmo, que aparenta ordenado aos olhares leigos, est expandindo rumo ao colapso de sua prpria existncia. Todo sistema fsico plenamente um ser do tempo, no tempo, e que o tempo destri. Ele nasce (de interaes), ele tem uma histria (os acontecimentos internos e externos que o perturbam e/ou transformam), ele morre por desintegrao. (Morin, 2005, p.172)

At onde podemos conceber o passado csmico, ele movimento e interaes. At onde podemos conceber as profundezas da physis, encontramos agitaes e interaes particulares. Imobilidade, fixidez, repouso so aparncias locais e provisrias para certos estados (slidos), na escala de nossas duraes e percepes humanas. A physis ativa. O cosmo ativo. (Morin, 2005, p. 197)

Se nenhuma fora externa atuar dentro do sistema, esse fluxo contnuo pode permanecer num estado estacionrio, apesar dos ciclos nele existentes. E, tal qual em um organismo vivo, o fluxo ou mudana contnuo passa a ser um elemento constante, que mantm-se alimentando o circuito de maneira recursiva:

Tal totalidade pode comportar em seu interior outros circuitos retroativos que ele gera e regenera tanto quanto eles o geram e o regeneram. Assim, a forma verdadeira de um ser vivo, no tanto a forma arquitetural de um monumento de componentes, a de um multiprocesso retroativo se fechando em si mesmo a partir de mltiplos e diversos circuitos (circulao do sangue, do ar, dos hormnios, do alimento, dos influxos nervosos, etc). (Morin, 2005, p. 231)

A ocupao do ser no ambiente molda sua condio de existncia, que est atrelada a seu estar-l, a sua permanncia no meio fsico. Mesmo que essa permanncia esteja em constante transformao:

E sobre toda a paisagem do mangue estende-se agora um lenol de sombra, negra mortalha recobrindo todos os corpos dos mortos da revoluo fracassada. Dentre eles, enterrado nos mangues, deve estar, em qualquer parte, o corpo de Joo Paulo que, com sua carne em decomposio, ir alimentar a lama que alimenta o ciclo do caranguejo. (Castro, 2003, p. 112)

Cada um desses circuitos gera e regenera o outro. O circuito global o produto de seus circuitos especiais. Aqui se impe a idia de recurso.(...) dizer ainda que o circuito o processo em que os produtos e os efeitos finais se tornam elementos e caractersticas primordiais. (Morin, 2005, p. 231)

Esta interao cclica entre indivduo e ambiente gera pequenas adaptaes necessrias a sua manuteno. O ser, como uma mquina, passa a organizar um processo de gerao e de produo-de-si, num processo permanentemente renovado:

Produo-de-si: o termo significa que o processo retroativo/recursivo que produz o sistema , e que o produz sem descontinuar , num recomeo ininterrupto que se confunde com sua existncia.

Regenerao: este termo significa que o sistema, como todo sistema que trabalha, produz um aumento de entropia, tende, portanto, a se degenerar, precisa, portanto, de generatividade, para se regenerar. A produo-de-si permanente , sob este ngulo, uma regenerao permanente.

Reorganizao permanente: agora que o termo regenerao ganha sentido em funo da generatividade, o termo reorganizao ganha com relao desorganizao que trabalha no sistema em permanncia: conseqentemente, a organizao fenomenal do prprio ser exige uma reorganizao permanente. neste nvel de reorganizao permanente que eu vou considerar agora o que constitui a permanncia e a constncia de um ser dotado de uma organizao ativa. (Morin, 2005, p. 233)

Ao final do ciclo, embora o indivduo retorne ao estgio inicial, ele no o mesmo indivduo do estgio anterior, assim como o sistema no permanece como antes. O que ocorre de fato sua regenerao enquanto indivduo, ou ainda sua reorganizao. Como a constatao de um dos flagelados diante de tanto sofrimento: Se no chovia e havia seca, eram os pobres que morriam de fome. Se chovia demais e havia cheia, eram as casas dos pobres que eram inundadas e destrudas. (Castro, 2003, p. 89)

Com efeito, a idia de recurso, em prxis organizacional, significa logicamente produo-de-si e regenerao. o fundamento lgico da generatividade. Em outras palavras, recursividade, generatividade, produo-de-si, re-generao e (em conseqncia) reorganizao so os mesmos aspectos do mesmo fenmeno central. (Morin, 2005, p. 232)

Mudanas ocorridas na natureza, refletem diretamente nas espcies que o integram. Assim, todo sistema fsico um dasein (honra de finitude que se acreditava reservada ao homem) um estar-l, dependendo de seu ambiente e submetido ao tempo. (Morin, 2005, p.172)

Diante de uma paisagem to rica e, simultaneamente, to complexa organizam-se condies ideais para o surgimento de tal relao homem/ecossistema. Tais interaes no poderiam ser aleatoriamente instauradas em outro espao ou tempo.

Todo sistema fsico plenamente um ser do tempo, no tempo, que o tempo destri. Ele nasce (de interaes), ele tem uma histria (os acontecimentos internos e externos que o perturbam e/ou o transformam), ele morre por desintegrao. evidentemente quando a vida tomar forma que nascimento e morte tero um sentido forte.

O tempo sistmico no apenas o que vai do nascimento disperso, tambm o da evoluo. O que evolutivo no universo, o que se desenvolve, prolifera, se complexifica a organizao. (Morin, 2005, p. 172)

Em meio ao caos e desordem reinantes, a populao construa sua prpria resposta para a excluso social. A cidade do Recife inchava, embebida daquela tinta grossa da misria formando sua crosta de mocambos. (Castro, 2003, p. 57)

Para Morin, a relao ecolgica do indivduo em seu ambiente um dos fatores que determina sua originalidade, sua viabilidade e a condio de sua existncia. Mais do que reserva de alimento, constitui parte do sistema, onde o ambiente no apenas co-presente; ele tambm co-organizador. (Morin, 2005, p. 252)

Assim se impe a idia-chave: o ambiente formado em permanncia por todos os seres que se alimentam nele; ele coopera em permanncia com sua organizao. Esses seres e organizaes so permanentemente ecodependentes.

Mas, por um paradoxo prprio da relao ecolgica, nesta dependncia que se tece e se constitui a autonomia desses seres.

Tais seres s podem construir e manter sua existncia, sua autonomia, sua individualidade e sua originalidade na relao ecolgica, ou seja, na e pela dependncia com relao a seu ambiente; da a idia alpha de todo pensamento ecologizado: a independncia de um ser vivo requer sua dependncia com relao a seu ambiente. (Morin, 2005, p. 252, 253)

Pois ento, torna-se condio indispensvel de sua materialidade, a mutao, ou seja, reorganizao permanente; seja ela renovao ou degradao de sua condio:

A existncia a fragilidade: o ser aberto ou existente est prximo da runa desde seu nascimento, ele s pode evitar ou diferenciar esta runa pelo dinamismo ininterrupto da organizao permanente e pelo socorro de uma revitalizao exterior. um sendo transitivo, incerto, que sempre precisou reexistir e que desaparece assim que ele deixa de ser alimentado, cuidado, organizado, reorganizado... Sua existncia s pode oscilar entre o equilbrio e o desequilbrio, que ambos o desintegram. (Morin, 2005, p. 255).

Todavia, pode emergir do substrato do mangue, dessa existncia miservel dos mocambos s margens do Capibaribe, uma nova conscincia-de-si entre seus habitantes. Para Joo Paulo so pensamentos sobre sua condio: Misturando as palavras, sem encontrar meios de se exprimir claramente, Joo Paulo diz que a sua tristeza de ver tanta pobreza, tanto sofrimento no mundo, sem poder dar jeito a nada. (Castro, 2003, p. 104). Para outros habitantes da lama, eram ideais revolucionrios:

Das barrancas do rio ele (Joo Paulo) viu, l embaixo, acocorados nas margens do mangue, vrios homens armados de fuzis e metralhadoras, atirando furiosamente, As metralhadoras picavam o trovo miudinho, e as balas silvavam como um vento de morte por entre as folhas gordas dos mangues. (Castro, 2003, p. 105)

E mesmo a palavra revoluo, traz em si mais o sentido de giro do que de contenda, de guerra. Ento, o crculo poderia se transformar em um espiral em que o retorno ao comeo precisamente o que o afasta do comeo. (Morin, 2005, p. 36)

Ns pressentimos a possibilidade de transformar os crculos viciosos em ciclos virtuosos, refletidos e geradores de um pensamento complexo. Da a idia que guiar nossa partida: no preciso quebrar as nossas circularidades, preciso, ao contrrio, vigiar-se para no nos desligarmos delas. O ciclo ser a nossa roda, nossa rota ser espiral. (Morin, 2005, p.32)

3 Fred Zero Quatro - O Manifesto Mangue 1

(publicado em 1992)

Caranguejos com Crebro

Mangue - O conceito

Esturio: Parte terminal de um rio ou lagoa. Poro de um rio com gua salobra. Em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos movimentos dos mares, Pela troca de matria orgnica entre a gua doce e a gua salgada, os mangues esto entre os ecossistemas mais produtivos do mundo.

Estima-se que duas mil espcies de microorganismos e animais vertebrados e invertebrados estejam associados vegetao do mangue. Os esturios fornecem reas de desova e criao para dois teros da produo anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta espcies comercialmente importantes dependem dos alagadios costeiros.

No por acaso que os mangues so considerados um elo bsico da cadeia alimentar marinha. Apesar das muriocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa, para os cientistas os mangues so tidos como os smbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.

Manguetown A cidade

A plancie costeira onde a cidade do Recife foi fundada, cortada por seis rios. Aps a expulso dos holandeses, no sculo XVII, a (ex) cidade maurcia passou a crescer desordenadamente s custas do aterramento indiscriminado e da destruio dos seus manguezais.

Em contrapartida, o desvario irresistvel de uma cnica noo de progresso, que elevou a cidade ao posto de metrpole do Nordeste, no tardou a revelar sua fragilidade.

Bastaram pequenas mudanas nos ventos da histria para que os primeiros sinais de esclerose econmica se manifestassem no incio dos anos 60. Nos ltimos trinta anos a sndrome da estagnao, aliada permanncia do mito da metrpole, s tem elevado ao agravamento acelerado do quadro de misria e caos urbano.

O Recife detm hoje o maior ndice de desemprego do pas. Mais da metade dos seus habitantes moram em favelas e alagados. Segundo um instituto de estudos populacionais de Washington, hoje a quarta pior cidade do mundo para se viver.

Mangue A cena

Emergncia! Um choque rpido, ou o Recife morre de infarto! No preciso ser mdico pra saber que a maneira mais simples de parar o corao de um sujeito obstruir as suas veias. O modo mais rpido, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife matar os seus rios e aterrar os seus esturios. O que fazer para no afundar na depresso crnica que paralisa os cidados? Como devolver o nimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco da energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.

Em meados de 91 comeou a ser gerado e articulado em vrios pontos da cidade um ncleo de pesquisa e produo de idias pop. O objetivo engendrar um circuito energtico, capaz de conectar as boas vibraes dos mangues com a rede mundial de circulao de conceitos pop. Imagem smbolo, uma antena parablica enfiada na lama.

Os mangueboys e manguegirls so indivduos interessados em: quadrinhos, TV interativa, anti- psiquiatra, Bezerra da Silva, Hip Hop, midiotia, artismo, msica de rua, John Coltrane, acaso, sexo no-virtual, conflitos tnicos e todos os avanos da qumica no terreno da alterao e expanso da conscincia.

3.1 Do crculo vicioso ao ciclo virtuoso

A vocao metropolitana do Recife na regio Nordeste, torna esta cidade uma zona de convergncia de migraes humanas. Alm das influncias histricas da ocupao holandesa somam-se a sua posio geogrfica (extremo posicionamento leste do pas) em relao a rotas transcontinentais, sua caracterstica de cidade porturia (confluncia tecnolgica e de idias). Por isso a capital apresenta elementos que diferenciam sua produo cultural das produes do resto do pas.

A cidade, em desenvolvimento, amplia suas fronteiras, seu contingente populacional, sua infra e superestrutura que a mantm. Mas a expanso humana geralmente supera os investimentos feitos no crescimento de outros setores, como por exemplo o de servios bsicos para o desenvolvimento humano.

Um ser-mquina pode criar o que h de mais organizado, organizante, quer dizer, trazer complexidade e organizao ao ambiente. Mas, fazendo isso, necessariamente ele rejeita energia degradada, subprodutos, dejetos, e a prxis mais ricamente organizacional tende, de certa forma, que pode ser ao mesmo tempo complementar, concorrente e antagnica, a reorganizar e a desorganizar seu ambiente.

Assim, os seres vivos transformam seu ambiente; autoproduzindo-se, eles se alimentam e co-produzem seu ecossistema, sempre o degradando por suas poluies, seus dejetos, suas predaes (animais) e suas depredaes (humanas). (Morin, 2005, p. 253/254)

Os movimentos internos, principalmente dos retirantes vindos do serto, reforam a presena das tradies populares no cenrio cosmopolita recifense. O tradicional e o moderno, o local e o global se mesclam em hibridizaes culturais, num cenrio frtil como sua prpria natureza, todavia, de equilbrio extremamente instvel. Quanto mais rica a complexidade organizacional, mais h possibilidade, logo, perigo de crise, e mais capaz de ultrapassar suas crises e at de tirar proveito delas para o seu desenvolvimento. (Morin, 2005, p. 155)

Nos guetos da capital, nos mocambos, nos alagados, as instabilidades desse sistema aumentam a entropia, e por conseguinte, as interaes do tetrlogo de Morin.

Enquanto as emergncias desabrocham em qualidades fenomenais dos sistemas, as imposies organizacionais imergem os caracteres inibidos, reprimidos e comprimidos no nvel das partes em um mundo de silncio. Todo sistema comporta assim a sua zona imersa, oculta, obscura, em que pululam as virtualidades sufocadas. (Morin, 2005, p. 160)

A observao e a mimsis da natureza (physis) criam a resposta intelectual de contracultura, pela ordenao interativa do caos, gerando uma nova ordem. Esta resposta, ironicamente, inspirada na degradao observada na physis. A prpria organizao transforma, polui, enriquece. Um circuito retroativo fenomenal vai unir o ser vivo a seu ecossistema, um produzindo o outro reciprocamente, como ser visto. (Morin, 2005, p. 254)

E a tecnologia das antenas reverbera e dissemina as idias de superao a partir da prpria desordem do meio em questo:

A nica possibilidade de lutar contra o efeito desintegrador dos antagonismos ativa; por exemplo:

- integrar e utilizar o mximo possvel os antagonismos de maneira organizacional,

- renovar a energia indo busc-la no meio ambiente e regenerar a organizao,

- se autodefender de maneira eficaz contra as agresses exteriores e corrigir as desordens interiores,

- se automultiplicar de maneira que a taxa de reproduo ultrapasse a taxa de desintegrao. (Morin, 2005, p. 155)

4 Chico Science - Da Lama Ao Caos

(gravado em 1994)

1 Posso sair daqui

2 Pra me organizar

3 Posso sair daqui

4 Pra desorganizar

5 Da lama ao caos

6 Do caos a lama

7 Um homem roubado

8 Nunca se engana

9O sol queimou, queimou

10A lama do rio

11Eu vi um chi

12Andando devagar

13Vi um aratu

14Pra l e pra c

15Vi um caranguejo

16Andando pro sul

17Saiu do mangue

18Virou gabiru

19 Josu eu nunca vi

20Tamanha desgraa

21Quanto mais misria tem

22Mais urubu ameaa

23Peguei um balaio e fui na feira

24Roubar tomate e cebola

25Ia passando uma 'via'

26Pegou a minha cenoura

27Ae minha 'via'

28Deixa a cenoura aqui

29Com a barriga vazia

30No consigo dormir

31E com o bucho mais cheio

32Comecei a pensar

33Que eu me organizando

34Posso desorganizar

35Que eu desorganizando

36Posso me organizar

37Da lama ao caos

38Do caos a lama

39Um homem roubado

40Nunca se engana

Os oito primeiros versos (do 1 ao 8) praticamente sintetizam o objetivo do presente estudo. A noo de organizao depender do referencial levado em considerao. Para os habitantes do mangue, o caos da lama o princpio de sua organizao, ainda que vivam em condies longe de serem ideais. Os versos 7 e 8 podem ser identificados como as causas histricas da misria, pela espoliao das classe dominantes. Josu de Castro j alertara sobre o parasitismo poltico, paralelamente ao episdio da cheia, em Homens e Caranguejos: Maldita cheia e maldita organizao poltica que tanto oprimiam a vida dos camponeses indefesos. (Castro, 2003, p. 97)

J nos dez versos subseqentes (do 9 ao 18), Chico contextualiza a paisagem e a fauna do mangue. Ele introduz a idia do ciclo do caranguejo, como a metamorfose do crustceo em indivduo subnutrido (gabiru).

Dos versos 19 a 22, Chico evoca Josu, num lamento em nome de todos os esquecidos que vivem atolados no lamaal. Muitos deles sabem de suas carncias, porm no conseguem se fazer ouvidos pelas autoridades. Mesmo porque algumas dessas pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza, sequer conseguem inventariar o que lhes falta, em suas necessidades bsicas: alimentao, moradia, sade, educao...

As verdades da existncia so sempre incompletas, mutiladas, incertas, j que elas dependem do que est alm de suas fronteiras. Quanto mais o existente se torna autnomo, mais ele descobre a sua insuficincia, mais ele olha atravs do horizonte, mais ele busca o alm. (Morin, 2005, p. 256)

Dos versos 23 ao 36, o eu-lrico responde de forma marginal ao apelo da fome: roubar alimentos na feira para saciar-se. Ele encontra um senhora que, no se sabe se est ali para fazer compras ou se tambm est saqueando; mas certo que ela pega o legume desejado. Nos versos 27 e 28 ele demanda senhora o legume, pois a fome impede a ele de descansar (versos 29 e 30); mas a orexia saciada permite-lhe ponderar melhor (versos 31 e 32). E, exatamente, suas consideraes so sobre a superao desse ciclo, onde a lama pode ser ordem ou desordem, o ponto de partida que tambm pode ser o destino. Os versos 33 ao 40 so refro e, ao mesmo tempo, uma espcie de retorno ao nicio da msica. Remetem, de alguma maneira, ao tetrlogo de Morin, na organizao da desordem; e recursividade do sistema.

O movimento recursivo que transforma o escoamento dinmico e um fluxo em circuito de forma constante, e conseqentemente cada um desses dois termos co-produz o outro. O fluxo a condio do trabalho, o qual transforma o fluxo em organizao produtiva, no tanto a organizao de alguma atividade distinta, mas a organizao-de-si. O fluxo alimenta o circuito recursivo que o do todo organizador-de-si.(Morin, 2005, p. 234)

5 Concluso

O ambiente dos manguezais e um dos fatores primordias na poisis desses quatro autores. Sem dvida, no o nico, como fora dito anteriormente, pois vrios fatores interagem dentro de um sistema. Mas o mangue que traduz, com perfeio, o caos que h de ser ordenado na vida desses homens-caranguejos.

Contudo, no se pode definir o que essa ordem, que tanto um estado passageiro, quanto no um consenso para todos. O que representa a ordem para as classes abastadas da capital pernambucana (e as de todo o mundo), com certeza no compartilhada pelos excludos. A recproca verdadeira. Assim a ausncia de um ponto de vista objetivo faz surgir a presena do ponto de vista subjetivo em toda viso de mundo. E ns somos forados a examinar o sujeito, de nos voltar para o observador escondido e para o que est escondido atrs dele. (Morin, 2005, p. 116)

No se sabe se a humanidade est destinada disperso ou se encontrar uma comunicao organizadora; no se sabe se as aspiraes cada vez mais profundas e mltiplas por uma sociedade radicalmente nova sero varridas e dispersas...Em qualquer um dos casos, a crise da antiga ordem muito profunda, mas a nova organizao incerta.(Morin, 2005, p. 119).

At a ordem um estado aparente, visto que transitrio e, tudo leva a crer, ilusrio.

A organizao fisicamente impossvel porque ela cosmicamente improvvel. Cedo ou tarde tudo se dissipar. O ltimo astro se apagar e, antes mesmo que haja um esgotamento da irradiao solar, a vida, nascida do lodo do planeta terra, vai se transformar em p, na infinita poeira que teria perdido forma e nome no universo. (Morin,2005, p. 86/87)

8 Glossrio

Entropia: um termo caro s Leis da Termodinmicas da Fsica. Designa uma tendncia para a desorganizao, prpria a todos os sistemas fechados e dos seres organizados (no caso o de degradao da matria orgnica, tal como o envelhecimento). O aumento da entropia num determinado sistema acarreta maior desorganizao ou degradao do mesmo.

Homeostase: diz respeito a estado de equilbrio dentro de um sistema ou em um organismo vivo.

Homeorria: diz respeito a fluxo contnuo de um sistema ou em um organismo vivo.

Neguentropia: o inverso da entropia, a disponibilidade energtica, a capacidade de organizar. Curiosamente, como a entropia uma medida de uma falta, de uma indisponibilidade, ela sempre negativa, e portanto a neguentropia positiva, apesar do nome. O conceito de neguentropia se tornou importante no estudo da complexidade, quando se constatou que sistemas abertos tm a capacidade de poder gerar organizao, como os seres vivos.

Recurso: significa que o fim do processo alimenta o incio, ou seja, o estado final se tornando de alguma forma o estado inicial, mesmo permanecendo final, o estado inicial se tornando final, mesmo permanecendo inicial.

Retroao: que pode agir ou ter efeito, em relao a uma etapa passada.

7 Referncias Bibliogrficas

CANCLINI, Nestor Garcia: Consumidores e Cidados: conflitos multiculturais da globalizao 3 ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.

CASTRO, Josu de: Homens e Caranguejos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

MELO NETO, Joo Cabral de: Morte e vida severina e outros poemas para vozes - 1 ed. especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

MORIN, Edgar: O Mtodo 1: a natureza da natureza - 2 ed. Porto Alegre: Sulina, 2005.

8 Anexos

SCIENCE, Chico: Da Lama ao Caos. Chico Science e a Nao Zumbi - Da Lama ao Caos. Faixa 6, Gravadora: Sony Music. Ano: 1994

ZERO QUATRO, Fred: Manifesto Mangue 1 Caranguejos com Crebro. Disponvel no site: . Acesso em 13 de outubro de 2007.

ndice

Introduo: 1

Desenvolvimento:3

1 Joo Cabral de Melo Neto Morte Vida Severina3

2 Josu de Castro - Homens e Caranguejos 7

2.1 O homem7

2.2 O mangue:9

2.3 O ciclo:10

1.4 O sistema:14

3 Fred Zero Quatro - O Manifesto Mangue 119

3.1 Do crculo vicioso ao ciclo virtuoso20

4 Chico Science - Da Lama Ao Caos23

5 Concluso26

8 Glossrio27

7 Referncias Bibliogrficas28

8 Anexos29