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Manipulação
do mercado de valores mobiliários
Frederico de Lacerda da Costa Pinto
Instituto de Direito Penal e Ciências Criminais,
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
Maio de 2011
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O mercado de valores mobiliários
Das bolsas às plataformas informáticastransnacionais.
Encontro entre necessidades de financiamento,aplicação de poupanças e cobertura de riscos.
Segmento da economia nacional.
Mercado primário e mercado secundário.
Operações à vista e a prazo.
Circuito informático fechado.
Celeridade das operações.
Anonimato da negociação.
Globalização contratual.
Muito sensível e reactivo à informação.
Sequência de uma transacção
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Investidor
Ordem
Intermediário
Financeiro
Sistema de
Negociação
Oferta
Clearing
Liquidação
Negócio
Mercado,
cotações e negação do mercado
Mercado: encontro entre a oferta e a procura que forma um
preço que pode ser tido como referência.
SEC: manipulação é a «interferência intencional nas regras
de oferta e procura» com formação de um preço artificial.
Não se confunde com a mera especulação: o especulador
assume riscos, o manipulador controla o risco para si e cria-o
para terceiros
Controlo do processo negocial que não é perceptível no
momento.
Negação do mercado: alguém controla a oferta ou a procura
de um activo, impedindo com isso o livre jogo da oferta e da
procura.
Artificialidade da negociação.
Liquidez ou preços artificiais (sem correspondência na oferta
e na procura do mercado). 4
Mercado e aparência de mercado
O mercado real tem liquidez e preços fiáveis.
A manipulação gera cursos artificiais de
liquidez e preços fictícios que não resultam do
livre encontro entre a oferta e a procura.
A oferta e a procura criam mercado.
A manipulação cria uma aparência de
mercado.
A saída do manipulador leva a um ajustamento
à realidade.
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Informação para o mercado e
Informação do mercado
O efeito da informação sobre a negociação:
A informação é essencial ao mercado
A informação permite gerir o risco e as expectativas de
investimento
O mercado é muito reactivo à informação
Os preços formados livremente incorporam a informação
disponível
O efeito da negociação nas decisões de
investimento:
As quantidades, os preços e as ofertas dão a
profundidade do mercado aos investidores.
As tendências são acompanhadas e permitem gerir o
risco do investimento e do desinvestimento6
Configuração legal
da manipulação do mercado
Elementos do crime de manipulação (art. 379.º)
Conduta típica (n.º 1).
Dolo do agente (art. 14.º do CP)
Aptidão lesiva (n.º1 configurada normativamente no n.º 2)
Incriminação autónoma (n.º 3)
Punição da tentativa (n.º 4 e agora ex vi art. 23.º CP)
Responsável civil (n.º 5)
Exclusão típica (n.º 6)
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Bem jurídico e
danosidade material
Regular funcionamento do mercado (processo
fiável de formação dos preços).
Não é uma mera função.
É um bem económico supra individual
Permite a formação de preços justos,
Preços que resultam da oferta e da procura,
Garante mercado a quem queira vender.
A manipulação é mera aparência de mercado
e nada garante senão o interesse do
manipulador.
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Efeitos nocivos da manipulação
O mercado deixa de ser fiável: preços e liquidez.
O manipulador ganha mas as contra-partes perdem.
Falsifica-se um preço público.
Adultera-se o valor das empresas no mercado.
Falsificam-se os valores da liquidez de um título (a
oferta e procura que garantem a possibilidade de
compra e venda de um activo)
Afectam-se produtos de subscrição colectiva (v.g.
fundos de investimento).
Lesa-se a confiança nos mercados e afasta-se
investimento.
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Manipulação ruidosa
Divulgar informação:
Falsa: desconforme à realidade descrita
Incompleta: omite elementos essenciais para o esclarecimento dos
destinatários.
Exagerada: desconformidade quantitativa em relação à realidade
descrita.
Tendenciosa: não sendo falsa, induz seguramente representações
distorcidas da realidade (v.g. um comunicado com excesso de
informação em que apenas uma parte é destacada)
O tipo não abrange a omissão de informação devida (contra-
ordenação muito grave: arts 248.º e 389.º, n.º 1, al. b) )
Casos discutíveis:
Previsões
Recomendações
Juízos de valor
Análises de rating12
Recomendações, previsões,
análises e juízos de valor
Não visam descrever factos mas sim transmitir opiniões e, por isso,
não podem por si só ser sujeitas ao teste da falsidade.
Podem ser consideradas inexactas, infundadas incompletas
(quanto aos pressupostos), mas não falsas.
Se tais elementos contiverem informação podem ser sujeito ao
regime da manipulação ruidosa (art. 7.º, n.º 2, do CdVM).
Se tais opiniões tiverem informação implícita ou de base pode cair
no âmbito da manipulação ruidosa.
Se a divulgação estiver articulada com outros interesses e tiver por
isso um conteúdo enganatório podem ser uma prática fraudulenta
(art. 379.º, n.º 1, terceira parte).
Se tais opiniões se articularem com uma realidade contrária ao que
se afirma pode existir informação falsa (ou, em alternativa, uma
prática fraudulenta) [expl. avaliação crítica de um banco (transmite
desinteresse) com aquisição de posições desse banco (revela
interesse); ou o oposto: avaliar positivamente um activo e vendê-lo]13
Manipulação silenciosa
Trade base manipulation
Operações de natureza fictícia
A operação é real: é efectivamente
executada.
Mas não é o que aparenta ser.
Tais operações aparentam ser mercado mas
não são expressão da livre oferta e procura.
São operações interditas aos intermediários
financeiros, por força do art. 311.º CdVM.
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Tipologias de manipulação
Matched orders – concertar ordens de sentido contrário.
Circular trading – rotação de títulos entre pessoas concertadas
ou entre carteiras controladas por uma ou mais pessoas em
concertação
Wash trades – transacção sem alteração real da titularidade do
activo ou do seu beneficiário económico (venda, benefício fiscal,
recompra)
In and out trading – introduzir ofertas sem intenção de as manter
e cancelá-las a seguir
Marking the close – executar ofertas (ou cancelá-las) no fecho do
mercado neutralizando a possibilidade deste reagir para marcar o
preço de fecho.
Pump and dump – fazer subir artificialmente a cotação dum título
para o vender.
Trash and cash - fazer descer artificialmente a cotação de um
título para o comprar.15
Manipulação fraudulenta
Outras práticas fraudulentas: condutas (no mercado
ou fora do mercado) que pelo seu conteúdo
objectivamente enganatório criam negociação artificial
(não sustentada pela oferta e procura).
Exemplos:
Reversal trading: venda seguida de recompra a preço
superior (venda de um lote por 90 e compra por 100,
para beneficiar a contra-parte).
Stagging – angariação de pessoas para simular
elevado interesse e dispersão de investidores, mas que
é financiado realmente apenas por um agente.
Transações com usurpação de identidade e de contas
(casos warrants Nokia e warrants Yahoo)16
O juízo de aptidão lesiva
Prognose lesiva (juízo ex ante).
O regular funcionamento do mercado do activo.
Referentes da regularidade:
O histórico do activo
A informação disponível
A situação do mercado antes e depois da intervenção.
As alterações ao regular funcionamento do
mercado podem ser induzidas por outros factos que
não a prática negocial em causa.
Não se exige um resultado, mas o resultado por
servir de prova confirmativa do perigo (confirmação
ex post de um juízo realizado ex ante).17
O sistema de alertas
Acompanhamento da negociação em tempo real.
Rotinas de supervisão informatizadas.
SIVAM: novo sistema informático de vigilância do abuso de
mercado:
Identifica padrões anormais de comportamento negocial
(cotações, volumes, ofertas, concentrações, desvios ao psi
20).
Três segmentos do SIVAM:
Real Time: análise de negociação em tempo real (alarmes).
T+1: análise de negociação após o fecho, com testes
específicos (56 testes baseados em informação, negócios,
ofertas e comitentes).
T+K: análise da relação entre um facto ocorrido numa data
(t) com negócios e preços num período mais alargado (k).
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A prova da manipulação
Documentação das transacções.
Documentação da informação divulgada.
Análise do mercado (antes, durante e depois) da
intervenção manipuladora.
Comprovação da idoneidade lesiva dos factos.
Gravações das mesas de dealing.
Demonstração da racionalidade da manipulação
para o manipulador (motivação e vantagens).
Cruzamento das práticas manipuladoras com outros
factos que podem explicar a motivação subjacente.
Contabilização das vantagens obtidas.
Tornar claro o significado dos factos.21
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Manipulação da liquidez e do preço através
de carteiras controladas pelo mesmo arguido
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-06
-19
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Qtd Real Qtd Neg. Fict
• Fonte: perícia do dr. Paulo Alves
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Um padrão de manipulação(“circular trading” e “marking the close” num título pouco líquido
comparado com a evolução do PSI 20)
• Fonte: perícia do dr. Paulo Alves
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Crimes contra o mercado:
informação estatística (1992-2010)
Cerca de 40 participações da CMVM (em 18 anos).
Julgamentos: 11 (3 por manipulação e 8 por abuso de informação).
Manipulação: 3 condenações; 1 das condenações num processo cuja
prescrição foi declarada em Abril (2008) e 2 transitaram em julgado.
Abuso de informação: 6 condenações transitadas com confirmação em
recurso; 1 condenação e 1 absolvição (ambas em recurso).
Processos em curso (inquérito, instrução, julgamento): 7 processos.
6 Acórdãos do Tribunal Constitucional: 1 sobre manipulação e
constituição de assistente (Ac. 162/02), 3 sobre abuso de informação
(Acs. 494/03, 81/2006 e 406/2006), 1 sobre abuso de informação e perda
vantagens do crime (111.º CP) (Ac. 336/2006) e 1 sobre os poderes de
supervisão da CMVM (Ac. 641/2006).
Penas abstractas e penas concretas
nos crimes contra o mercado
Evolução das penas abstractas:
1991-1999: prisão até 2 anos e multa cumulativa.
1999: prisão até 3 anos e multa alternativa.
2009 (Lei 28/2009, de 19 de Junho): prisão até 5 anos e multa
alternativa.
Penas concretas (aplicadas e executadas): Multa (a mais elevada foi de 45.000 € (abuso de informação).
Pena de prisão com execução suspensa e sujeita a condições e regime
de prova (a mais elevada foi uma pena de 18 meses de prisão num caso
de abuso de informação).
Pena acessória de interdição temporária de actividade (a mais elevada
foi de 3 anos (num caso de manipulação).
Todos os casos de manipulação foram punidos com multa (as mais altas
de 11.760 e 12.740 Euros).
Perda da vantagem patrimonial obtida com o crime (montante mais
elevado foi de 1.900.000 €). 25
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Constituição de assistente
Uma empresa que teve os seus activosmanipulados por terceiros pode constituir-seassistente no processo por crime de manipulação?
Respostas divergentes:
Ac. TC n.º 162/2002: não pode porque o bemjurídico directa e imediatamente tutelado (regular etransparente funcionamento dos mercados devalores mobiliários) é de natureza supra individual,sendo o Estado o seu titular.
Decisão do 4.º Juízo Criminal de Lisboa: podeporque os activos manipulados são de umaentidade específica, com um interesse directo naregularidade de formação dos preços dos mesmos.
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Constituição de assistente
O bem jurídico é compósito: é um bem público masintegra dimensões particulares (emitentes einvestidores).
Não há regular funcionamento de mercado semmercado e não há mercado sem activos paranegociar (critério da dupla dimensão do bemjurídico tutelado, acolhido no Ac. STJ n.º 5/2010).
O regular funcionamento do mercado de acções deuma sociedade é um espelho económico dessaentidade.
O interesse é misto: da sociedade cujos activosintegram o mercado e do mercado enquanto tal.