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DIREITO CIVIL

VOLUME NICO

2018

Manual de

1CONTEXTUALIZANDO O NOVO

DIREITO CIVIL

A criao um meio melhor de autoexpresso do que a posse; atravs do criar, e no do ter, que a vida se revela.

Vida Dutton Scudder (The life of the spirit in the modern english poets)

1. DIREITO CIVIL: ORIGENS E FUNES CONTEMPORNEAS

Seria exagero falar em novo direito civil? Ser que o direito civil no se re-nova sempre, a cada gerao, a cada passo do caminhar histrico? Sim e no. H, naturalmente, a cada gerao, mudanas legislativas, mudanas nesse ou naquele entendimento jurisprudencial. Isso algo natural, esperado. Porm os nossos dias testemunham algo (muito) maior, algo com o perdo da palavra gasta revolu-cionrio. O direito civil do sculo XXI fundamentalmente distinto daquele que vigorou durante boa parte dos sculos passados. um direito civil que consagra um sistema aberto, dinmico, fortemente influenciado por princpios normativos e com particular cuidado com as dimenses existenciais do ser humano. Promove um dilogo entre as conquistas conceituais da tradio e as espantosas mudanas dos nossos dias. claramente um edifcio em construo.

Convm esclarecer algo desde j. Este primeiro captulo introdutrio. Nele no tratamos, ainda, da Parte Geral do Cdigo Civil (pessoas, bens, atos ilcitos etc.). Nem da Lei de Introduo s Normas do Direito Brasileiro, que veremos no captulo seguinte. fundamental, antes disso, em tpicos breves, contextualizar o sentido das mudanas que vm atingindo o direito civil. No faria sentido repetir, com novo verniz, velhas lies. essencial verificar o sentido das mudanas, preciso fazer a pergunta: para aonde estamos indo?

86 MANUAL DE DIREITO CIVIL Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto

O direito civil participa da vida e da cultura dos povos e em boa medida as reflete. uma expresso cultural poderosa, forjada ao longo de muitos sculos, alternando perodos de maior empirismo com perodos de grandes construes con-ceituais (no esqueamos que o prprio direito romano era fundamentalmente prtico. Talvez esse, alis, seja um dos seus trunfos, uma das causas de sua longevidade) 1.

Trata-se de construo no s normativa, mas tambm histrico-cultural. O direito civil obra coletiva dos sculos. Nasceu da sabedoria emprica dos romanos2 e ao longo dos sculos ganhou em abstrao e conceitualismo atingindo um refi-namento admirvel com os pandectistas (estes, em notvel trabalho analtico, cons-truram um modelo que por muito tempo pareceu definitivo). Mas a historicidade das categorias jurdicas mostra, hoje, com muita clareza, que no existem modelos eternos. Como diz o poeta, o sempre, sempre acaba. As estruturas e funes do direito civil mudaram bastante nas ltimas dcadas. Passamos de um regramento mais engessado e previsvel para a aceitao, cada vez maior, do sistema jurdico como um sistema aberto de princpios normativos, que busca realizar valores e fins3.

Nossa formao cultural, romano-germnica, tradicionalmente est habituada a trabalhar com regras jurdicas, no com princpios. Isso, aos poucos, est mudando. Em sociedades plurais e complexas como a nossa s as regras no resolvem. No por acaso, alguns autores alemes sustentam que o Estado Constitucional de Direito um Estado de Ponderao (Abwgungsstaat). De especial relevncia, nesse contexto, a Constituio como um sistema aberto de princpios e regras. O sistema jurdico, assim, cada vez mais se pe como um sistema aberto de princpios normativos. Esses princpios, que estabelecem objetivos e fins, so articulados de modo dinmico, no esttico. No h nem mesmo uma hierarquia prvia entre eles. Eles trabalham com

1 Mary Beard professora de Cambridge e respeitada escritora destaca: Roma Antiga importante. Ignorar os romanos no apenas fechar os olhos para o passado distante. Roma ainda nos ajuda a definir o modo como entendemos nosso mundo e pensamos a respeito de ns mesmos, e isso abrange da alta cultura comdia ba-rata. Aps 2 mil anos, ela continua na base do pensamento e da poltica ocidental, daquilo que escrevemos e do modo como vemos o mundo e nosso lugar nele. No entanto, a histria da Roma Antiga mudou radicalmente ao longo dos ltimos cinquenta anos. Isso se deve em parte s novas maneiras de interpretar os dados antigos, e aos diferentes questionamentos que escolhemos fazer. um mito perigoso achar que somos historiadores melhores do que aqueles que nos precederam. No somos. Mas chegamos histria romana com outras prioridades desde identidade de gnero a suprimento de comida que fazem o passado antigo falar conosco num novo idioma. A histria de Roma est sempre sendo reescrita, e sempre foi; em certos aspectos, sabemos mais sobre a Roma Antiga do que os prprios romanos. A histria romana, em outras palavras, uma obra em progresso (BEARD, Mary. SPQR. Traduo. Luis Reyes. So Paulo: Planeta, 2017, p. 17-19).

2 As influncias so, at hoje, sensveis e fortes: A base do direito da chamada civilizao ocidental crist o direito romano, donde nos vieram as noes fundamentais, o mtodo e os principais institutos, principalmente em ma-tria de obrigaes. Adiante, complementa: O legado do direito romano, at hoje presente na cultura do mundo ocidental, traduz-se em alguns institutos de direito civil, como a teoria da personalidade, a capacidade de direito, a teoria dos bens e os direitos reais, a teoria da posse, a teoria geral das obrigaes e dos contratos e a sucesso (AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introduo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 109 e 115). Alis, preciso no esquecer em favor do carter sempre renovador e dinmico da interpretao jurdica que o prprio direito romano teve suas grandes caractersticas firmadas no perodo da interpretatio, merc de substanciais trabalhos hermenuticos perspectivados embora a partir da praxis (JOLOWICZ, H. F., Historical Introduction to the study of Roman Law. Cambridge: University Press, 1952, p. 87).

3 Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Trad. Paulo Motta Pinto e Ingo Wolfgang Sarlet. Coimbra: Coimbra editora, 2003.

CONCEITOS FUNDAMENTAIS Cap. 1 CONTEXTUALIZANDO O NOVO DIREITO CIVIL 87

uma lgica de ponderao, o que significa que apenas nos casos concretos, devida-mente contextualizados, que os princpios se expandem ou se retraem, luz das especificidades das circunstncias.

O direito civil do sculo XXI dialoga com a sociedade complexa em que se insere. No tenta negar essa complexidade, nem virar as costas para as profundas mudanas em curso que repercutem intimamente na interpretao jurdica e na aplicao de suas normas. Ampliam-se, em nosso sculo, os espaos de liberdade no que diz respeito s situaes subjetivas existenciais. Essa liberdade de escolha para as situaes existenciais no infirma o carter indisponvel dos direitos da personalidade. As escolhas no podem contrariar a dignidade da pessoa humana, e a diretiva vale no s relativamente aos outros, mas tambm a si prprio (mas a autodeterminao tambm deve ser resguardada, o que torna particularmente delicada certas discus-ses). Nesse contexto, o STJ, a pedido do Ministrio Pblico Federal, proibiu que o apresentador Ratinho exibisse deficincias fsicas como atraes do seu programa, quando a deficincia fosse a prpria atrao do quadro, com propsitos sensacio-nalistas. A alegao do apresentador, no sentido de haver censura, foi afastada (STJ, Ag 886.698). O direito civil dos nossos dias um processo de elaborao contnua e realizao permanente.

2. PARA AONDE ESTAMOS INDO? A ESTRUTURA TERICO-NORMATIVA DO NOVO DIREITO CIVIL

Um dia serei feliz? Sim, mas no h de ser j:

A Eternidade est longe, Brinca de tempo-ser.

Manoel Bandeira

Vivemos dias complexos e velozes4. Nossa sociedade caracterizada por amplo pluralismo axiolgico, com muitos e distintos interesses interagindo no quadro social. Isso, de certo modo, explica a heterogeneidade de valores e princpios acolhidos na Constituio. Temos uma Constituio pluralista como a sociedade que ela busca reger que tem, entre outros objetivos, a proteo da dignidade humana e a reduo das desigualdades sociais. verdade que nem sempre chegamos na velocidade que queremos chegar. As mudanas, que julgamos lentas, nem sempre correspondem s nossas ansiosas expectativas. Mais importante, no entanto, de quando chegar, caminhar na direo certa.

4 Barbosa Moreira, a respeito, constata que no liminar do sculo XXI, a vertiginosa acelerao do ritmo histrico parece prestigiar a consagrao do efmero como categoria suprema (BARBOSA MOREIRA. O transitrio e o permanente no direito. Temas de direito processual, quinta srie. So Paulo: Saraiva, 1994, 225/231).

88 MANUAL DE DIREITO CIVIL Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto

O direito civil do sculo XXI prestigia a diversidade e a tolerncia. Reflexo de uma sociedade plural, ele busca afirmar o pluralismo reconhecendo a dignidade em cada ser humano no importa sexo, crena, idade, raa, opo sexual, ou local de nascimento. Em cada ser humano o direito reconhece o potencial do livre desenvolvimento de sua personalidade. O direito no pode, naturalmente, assegurar que seremos felizes isso, para o bem e para o mal, construo de cada um de ns. Pode, porm, fixar espaos de livre e pleno desenvolvimento da personalidade, assegurando o mnimo existencial e o respeito aos direitos bsicos de alimentao, educao, sade e moradia.

A soluo dos casos difceis (hard cases) ganhou, em nossos dias, uma com-plexidade indita. A ponderao de princpios envolve, com frequncia, valores igualmente valiosos e constitucionalmente protegidos. Sabemos, hoje, ademais, que o intrprete no um ser absolutamente neutro, que interpreta o direito como se estivesse fora da Terra. Isso no existe. O intrprete traz sempre sua carga de valores, seus conceitos e suas reservas, e esse conjunto humano influi, em graus variados, na interpretao que ser dada norma5.

Tambm se aceita cada vez menos a ideia muito forte no sculo XIX e em parte do sculo XX de que a ordem jurdica traz solues predefinidas para todos os problemas e que cabe ao intrprete, apenas, encontr-las, mediante a subsuno (o intrprete, nessa viso, seria um ser neutro, cuja funo, puramente tcnica, seria dizer o direito aplicvel ao caso concreto a famosa boca da lei, de Montesquieu). A interpretao jurdica, hoje, algo bastante complexo que no pode ser reduzida a frmulas esquemticas. A construo de sentido da norma algo dinmico e nunca esttico ou formal.

Em outras palavras, a interpretao jurdica no pode, por bvio, desprezar o direito posto, mas tampouco se prende ao literalismo. O direito exige uma leitura tica, que dialogue com a sociedade, e no se satisfaz com conceitos puramente apriorsticos e formais. Isso no significa, convm repetir, que o juiz possa se libertar dos limites do sistema jurdico. No se trata de voluntarismo, mas de reconhecer a fora normativa dos princpios e a importncia da teoria dos direitos fundamentais.

As construes de sentido das normas, portanto, resultam de uma complexa interao entre o intrprete e os demais atores sociais, com valores plurais e nem sempre homogneos. Isso, porm, no significa nem pode significar um desprezo pela tcnica. Trata-se apenas de reconhecer que a dimenso tcnica, isoladamente, no explica nem responde muitos dos problemas do nosso sculo, preciso ir alm.

Essa redefinio dos valores do direito civil exige certa humildade epistemolgica. dizer: ao civilista atual no dado isolar-se, manter-se em clausura intelectual, como se no sculo XIX estivesse. O direito de hoje exige uma abordagem menos estreita e parcial, que possibilite vises multissetoriais e portanto mais integrais. Ou

5 Cf. GADAMER, Hans-Georg. O problema da conscincia histrica. 3 edio. Pierre Fruchon (org.). Rio de Janeiro: Getlio Vargas, 1998, p. 70. H, inclusive, fatores inconscientes que escapam, ou podem escapar, da percepo do intrprete.

CONCEITOS FUNDAMENTAIS Cap. 1 CONTEXTUALIZANDO O NOVO DIREITO CIVIL 89

seja, o civilista no pode se isolar e se satisfazer apenas com a coerncia e a beleza formal dos seus conceitos. O sculo XXI , nesse sentido, mais pragmtico. Pessoas que nasceram e foram educadas com a multiplicidade de informaes que o mundo digital proporciona no aceitam um direito arcaico e preso a frmulas sem sentido6. Um dos desafios do direito atual se legitimar pela fundamentao das decises, pela razoabilidade das solues e pela dimenso social das suas normas. No basta impor, preciso impor com legitimidade.

As democracias constitucionais contemporneas com a contribuio dos princpios, conceitos e regras do direito civil no toleram qualquer tentativa de coisificar a pessoa humana. A dignidade remete, sem dvida, entre seus sentidos principais, a no coisificao do ser humano. Se h, aqui e ali, certos exageros no uso conceitual e normativo da dignidade da pessoa humana, isso no pode encobrir a verdade bsica, que se extrai da nossa Constituio: trata-se de vetor normativo vinculante, da mais alta importncia, e que redefine, em muitos sentidos, a inci-dncia e aplicao das normas jurdicas brasileiras. No esqueamos que o Brasil foi o ltimo pas da Amricas a abolir a propriedade de uma pessoa sobre outra, em terrvel mancha histrica. O intrprete do sculo XXI deve ter uma ateno prioritria com a pessoa humana, e no com o seu patrimnio. O patrimnio mero instrumento de realizao de finalidades existenciais e espirituais, no um fim em si mesmo.

Alis, talvez caiba uma palavra mais ampla: a brutalidade humana continua a espantar. Da Sria de hoje chegam imagens que chocam, que nos fazem perguntar se estamos mesmo no sculo XXI. A histria humana manchada, desde a noite dos tempos, pela perversidade de ditadores e seus asseclas, que agem como se no tivessem que responder pelas agudas maldades que praticam (convm lembrar que Stlin imps a fome sistemtica aos camponeses do seu pas, matando mais pesso-as do que os mortos durante a Primeira Guerra Mundial, mesmo se somarmos as vtimas dos dois lados do conflito)7.

Hoje a experincia jurdica repele abordagens unilaterais, to comuns nos sculos passados. O civilista, em especial, chamado a sair dos cdigos e dialogar com outras formas de conhecimento. Sem falar na interdisciplinariedade entre as matrias jurdicas, algo to fundamental atualmente que deixou de ser novidade. A formao cultural do civilista, tradicionalmente, vista como conservadora e avessa a mudanas. Isso, no entanto, mudou, est mudando. Poucos campos tericos, atu-almente, so to receptivos s novas abordagens como o direito civil.

6 Nesse sentido as observaes de Weinberger: Nos dias de hoje, sob o influxo das idias democrticas, ningum mais cr na sacralidade do direito ou v na tradio uma justificao suficiente das instituies sociais. Estamos convencidos de que o homem pode modelar e remodelar o seu sistema poltico e que as disposies jurdicas e as instituies sociais devem ser examinadas criticamente e justificadas sobre a base de anlises funcionais e valorativas (WEINBERGER, Ota. Politica del diritto e istituzioni. Il diritto come istituzione, Neil MacComick e Ota Weinberger, Milano: Giuffr, 1990, p. 287).

7 REID, Anna. Borderland: A Journey through the History of Ukraine. Boulder: Westview Press, 1999, p. 132.

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2.1. O direito civil em sociedades complexas e plurais

Nada , tudo se outra.

Fernando Pessoa

As nuvens so sombrias mas, nos lados do sul,

um bocado do cu tristemente azul.

Fernando Pessoa

O direito civil talvez mais ainda que os outros ramos traz a marca dos costumes dos povos. Por dialogar, muito de perto, com a vida diria das pessoas, o direito civil moldado por aquilo que cada comunidade, sculo aps sculo, tem por valioso, correto, necessrio. O conservadorismo, por exemplo, que sempre timbrou o direito de famlia baseado no poder do marido e do pai refletia por certo a sociedade que tnhamos8. Hoje a sociedade plural, com muitos modelos familiares aceitos, e o direito civil, como no poderia deixar de ser, tambm reflete isso.

O Cdigo Civil de 1916 tecnicamente admirvel refletia os padres mentais e culturais da sociedade patriarcal e patrimonialista em que se inseria (no esquea-mos que ele foi elaborado ainda antes de 1900, e teve tramitao lenta, assim como seu sucessor, quase um sculo depois). A propriedade era a instituio em torno da qual orbitavam os demais interesses juridicamente protegidos. Convm lembrar que o Cdigo Civil de 1916 que chegou, no esqueamos, at o sculo XXI , foi elaborado pouqussimo tempo depois do fim da escravatura entre ns. Pode-se dizer que so contemporneos9.

Nesse sentido, no exagero dizer que as dimenses existenciais do ser hu-mano so de considerao relativamente recente, na caminhada histrica do direito civil. Hoje tanto a propriedade como os contratos ganham notas funcionais, isto , a funo define, em certo sentido, o que estes institutos so, e no apenas at aonde eles podem ir. Isto , a funcionalizao dos conceitos, categorias e institutos no atua apenas como limites externos.

8 No por acaso, os civilistas sempre simbolizaram o conservadorismo jurdico. Pierre Bourdieu, por exemplo, enxerga nos privatistas o culto do texto, o primado da doutrina e da exegese, quer dizer, ao mesmo tempo da teoria e do passado (BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 252. De modo semelhante, percebeu-se que a permanncia jurdica se manifesta, em toda sua plenitude, no setor especfico das codificaes. E, a, especialmente em matria de Direito Civil, tido por prottipo do conservadorismo jurdico (VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurdica. So Paulo: Malheiros, 1993, p. 144). Nesse contexto terico, convm lembrar que o sculo XIX foi prdigo em generalizaes, amplas construes tericas e esquemas abstratos (MEAD, George H. Movements of thougt in the nineteenth century. Chicago: The University of Chicago Press, 1972).

9 No perodo de elaborao do Cdigo Civil, o divrcio entre a elite letrada e a massa inculta perdurava quase inalterado. A despeito de sua ilustrao, a aristocracia de anel representava e racionalizava os interesses bsicos de uma sociedade ainda patriarcal, que no perdera o seu teor privatista, nem se libertara da estreiteza do arcabouo econmico, apesar do seu sistema de produo ter sido golpeado fundamente em 1888. Natural que o Cdigo refletisse as aspiraes dessa elite (GOMES, Orlando. Razes histricas e sociolgicas do Cdigo Civil brasileiro. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 22).

CONCEITOS FUNDAMENTAIS Cap. 1 CONTEXTUALIZANDO O NOVO DIREITO CIVIL 91

Nos anos anteriores ao Cdigo Civil de 2002, era voz corrente, no Brasil e, antes, na Itlia a convico de que o tempo das codificaes tinha passado. Que os cdigos civis estratificavam demais as relaes jurdicas, e eram prprios dos sculos XIX e XX, e no do sculo XXI. Ademais, devamos e devemos buscar a unidade valorativa do sistema na Constituio, e no no Cdigo Civil. Seja como for, certo que o Cdigo Civil de 2002 acabou por promover a revitalizao dos estudos de direito civil no Brasil. Novas e valiosas obras surgiram. Talentosos pes-quisadores se dedicaram ao tema10.

O direito brasileiro filia-se tradio romano-germnica, da civil law. Bebeu na fonte das grandes codificaes modernas da Europa continental. O Brasil, desde antes do Cdigo Civil de 1916, recebe forte influncia da civilstica europeia sobretudo francesa, alem, italiana e espanhola e bem menos dos pases da Amrica, mesmo aqueles que se filiam estirpe cultural do civil law (o que parece estar mudando aos poucos, o Brasil e seus vizinhos sul-americanos esto, por assim dizer, redesco-brindo-se culturalmente). Em relao aos Estados Unidos da Amrica, ocorre algo interessante. A influncia exercida no Brasil fortssima na rea do direito consti-tucional, mas praticamente inexistente no campo do direito civil.

O constitucionalismo, tradicionalmente, ocupou-se em limitar o exerccio do poder. Atualmente percebemos, atravs da jurisdio constitucional, que atos legis-lativos tambm podem violar a Constituio, e por isso temos fortalecido modos e formas de impedir essas agresses. Os juzes, atualmente, longe de serem mec-nicos aplicadores da lei, tm, em alguma medida, funo criativa, participando do processo de criao do direito. Na chamada jurisdio constitucional, esse potencial criativo ainda mais forte. Nesse contexto, as leis continuam sendo instrumentos (muito) importantes. So elas que, em linha de princpio, concretizam as escolhas constitucionais. Merecem respeito e acolhimento. H, porm, atualmente, limites.

O STF j esclareceu que o Estado no dispe da competncia para legislar ilimi-tadamente, de forma imoderada e irresponsvel, gerando, com o seu comportamento institucional, situaes normativas de absoluta distoro e, at mesmo, de subverso dos fins que regem o desempenho da funo estatal (STF, ADInMC 1.063-8, Rel. Min. Celso de Mello). Em outra ocasio, o STF proclamou que o Estado no pode legislar abusivamente. A atividade legislativa est necessariamente sujeita rgida observncia de diretriz fundamental que, encontrando suporte terico no princpio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescries irrazoveis do Poder Pblico (STF, ADI-MC 1.407-DF, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno). Pontes

10 Paulo Lbo, a propsito, diagnostica: Ao novo Cdigo Civil credita-se verdadeira exploso de obras jurdicas, provocando o renascimento do interesse pelo direito civil e da conscincia de sua importncia fundamental para o cotidiano das pessoas. (). Acrescentem-se, ainda, como fatores decisivos para a reformulao do direito civil brasileiro, de modo a torn-lo apto a responder s demandas do sculo XXI, o desenvolvimento cientfico da rea propiciado pelos programas de ps-graduao em Direito, com rigor metdico e pesquisa, superando o anterior autodidatismo, e a criao do Superior Tribunal de Justia, pela Constituio de 1988, incumbido da harmonizao jurisprudencial do direito federal, inclusive o direito civil. No geral, o STJ tem correspondido s mudanas sociais e aos vetores axiolgicos da Constituio, alm de dar ateno aos avanos da doutrina (LBO, Paulo. Direito Civil. Parte Geral. So Paulo: Saraiva, 2009, p. 27/28).

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de Miranda, escrevendo no incio do sculo XX, lembrava que o Estado no um criador arbitrrio do direito. E que a prpria formulao da lei perde a arbitrariedade que tinha no passado.

No caso brasileiro, o fortalecimento, com a Constituio de 1988, da jurisdio constitucional, trouxe mudanas profundas no processo de realizao do direito. O Judicirio assumiu funes que no tinha no passado. Fala-se em ativismo judicial, que seria uma atuao mais ativa do juiz, ingressando em reas que antes eram fundamentalmente polticas11. Goste-se ou no, a verdade que em curso um pro-cesso de judicializao das questes sociais e polticas. Casamento e unio estvel entre pessoas do mesmo sexo, moralidade para disputar eleies, clulas-tronco, so exemplos dentre muitos outros de questes que interessam vida social e cuja palavra final dada pelo Judicirio, luz da Constituio.

Os princpios reunificam o direito privado, porm agora como um sistema aberto. So, seguramente, a fonte onde o intrprete vai buscar mais do que nas regras jurdicas a fonte de legitimidade de suas decises. So, alm disso, normas com a notvel caracterstica de incorporar, como camadas normativas, as mudanas sociais, juridicizando-as.

preciso lembrar que as relaes entre particulares so, frequentemente, assim-tricas e desiguais. H poderes privados aos quais no deve ser indiferente o Estado12. Bem por isso, os direitos fundamentais, hoje, no Brasil, no so apenas direitos de defesa em face do Estado. Exige-se uma postura ativa do Estado para proteger os direitos fundamentais. Essa constatao redefine muitas abordagens, sobretudo da responsabilidade civil do Estado por omisso. Peter Hberle, argutamente, verifica que no h numerus clausus das dimenses de proteo dos direitos fundamentais, nem numerus clausus dos perigos.

Podemos ainda dizer, de modo mais amplo, que o Brasil como Estado Constitucional Democrtico13 ocupa hoje um espao poltico, social e econmico muito maior do que ocupava no passado. Significativamente, tornou-se, de acordo com certos veculos de imprensa, a sexta maior economia do mundo. Em 2012, o tradicional jornal The Guardian ironizou: O Brasil tem batido os pases europeus no

11 Nesse contexto terico, a admisso de que juzes no esto presos norma choca-se com um antigo tabu. Esse mal-estar foi atenuado por uma nova tentativa da teoria jurdica de constranger o juiz por demandas de consistn-cia, por exigncias, ao menos, de argumentao racional. A cincia poltica volta e denuncia a nudez do rei: o juiz constitucional um ator poltico que reage conforme variveis outras que no somente a norma, a razo, ou as recomendaes que a teoria normativa lhe enderea (MENDES, Conrado Hbner, Direitos Fundamentais, Separao de Poderes e Deliberao. So Paulo: Saraiva, 2011, p. 193).

12 inegvel, sobretudo em nossos dias, que existem situaes de opresso ou desnvel entre particulares, algo semelhante com as relaes assimtricas que lastrearam ainda na concepo liberal dos direitos fundamentais em face do Estado (UBILLO, Juan Mara Bilbao. La Eficcia de los Derechos Fundamentales frente a particulares. Anlisis de la Jurisprudencia del Tribuna Constitucional. Madrid: Centros de Estudios Polticos y Consitucionales, 1997, p. 369).

13 A verdade que democracia uma palavra to gasta pelo uso promscuo que perdeu muito do seu valor expli-cativo. No h, por certo, tipos-puros de democracia, apenas experincias mltiplas com caractersticas histricas bastante distintas. As democracias constitucionais contemporneas buscam banhos de legitimidade mais ambiciosos, no se satisfazem apenas com eleies formalmente limpas, ultimadas pela representao popular tradicional. cedo para dizer quais mecanismos surgiro dessa tenso de legitimidade. A jurisdio constitucional, mesmo com suas notrias falhas, uma delas. Outras, menos problemticas, podem surgir, e sero bem-vindas. Cabe lembrar, nessa ordem de ideias, que a legitimidade de uma deciso numa democracia constitucional mensurada tanto por seu contedo (output) quanto pelo seu procedimento (input) (MENDES, Conrado Hbner. Direitos Fundamentais, separao de poderes e deliberao. So Paulo: Saraiva, 2011, p. 56).

CONCEITOS FUNDAMENTAIS Cap. 1 CONTEXTUALIZANDO O NOVO DIREITO CIVIL 93

futebol por um longo tempo, mas bat-los em economia um fenmeno novo. Isso no significa, sabemos, que nossos gravssimos problemas sociais estejam resolvidos. Como mostra o Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), temos desigualdades sociais muito profundas. O ndice de desenvolvimento humano (IDH), no Brasil, continua aqum do desejvel. Combater a misria e a violncia e propiciar nveis adequados de sade e educao esto entre os desafios do novo sculo.

Relevante, em qualquer disciplina jurdica, a tomada de conscincia, por parte do intrprete, que estamos diante do Estado dos direitos fundamentais. J no podemos nos dar por satisfeitos em aceitar que o Estado se abstenha de violar tais direitos. preciso, como veremos adiante, que alm disso o Estado atue de modo cauteloso, eficaz e proporcional para proteger os direitos fundamentais de violaes por terceiros.

Sob o prisma sociolgico, um ponto sublinhado por muitos estudiosos dos padres culturais brasileiros o patrimonialismo. Ou na dico que se tornou clssica de Nelson Saldanha a dificuldade, algo crnica, de distinguir o jardim da praa. Privado e pblico se misturam numa convivncia nem sempre saudvel. O pblico, to frequentemente, confunde-se com o privado, e as categorias asspticas da lei nem sempre consegue impedir certos usos promscuos do que (ou deveria ser) de todos em proveito prprio ou de alguns. Talvez, em parte, nosso conhecido trao patrimonialista to bem denunciado por Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder e por Srgio Buarque de Holanda em Razes do Brasil que faz pensar que os bens do Estado no so de ningum. O Brasil, como democracia constitucional recente, tem entre seus desafios o aprimoramento do sistema jurdico-institucional, buscando aplicar o direito objetivo com isonomia e impessoalidade. A imprensa, com sua fiscalizao permanente, exerce relevante funo nesse campo.

2.2. Os fins ticos do direito civil contemporneo

O juiz de So Gonalo manda prender todo casal encontrado em lugares escuros e ermos. Com isso, afirmava Sua Excelncia, se evita que os olhos das senhoras de boa-f se chocassem. Rubem Braga comenta a notcia e se pergunta, apenas, o que fariam tais senhoras de boa-f em locais escuros e ermos.

(Marco de Carvalho, bigrafo de Rubem Braga)

Os conceitos, categorias e institutos do direito civil passam por uma filtragem tica14.Tradicionalmente, os institutos civis carregam forte dose de patrimonialidade.

Se percorrermos o Cdigo Civil apesar dos princpios sociais que o dirigem e das

14 Podemos, alis, sugerir a exemplo do que faz Alexy que a distino fundamental entre positivistas e no positi-vistas reside na relao entre direito e moral. Os positivistas, em geral, separam as categorias; j os no positivistas, sem negar especificidades, no admitem essa separao (ALEXY, Robert. El problema del positivismo jurdico. In: El concepto y la validez del derecho. Trad. Jorge M. Sena. Barcelona: Gedisa, 1994, p. 13/14).

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clusulas gerais que traz no ser difcil identificar fortes resduos de um passado no qual a preocupao precpua era com o patrimnio15.

Nascituro, comorincia, prodigalidade, ausncia so exemplos vivos no sentido de que o que movimenta a regulao civil o patrimnio. Qual a relevncia da tradicionalssima discusso acerca do nascimento ou no com vida do nascituro? Fundamentalmente a destinao dos bens, sendo relevante, para efeitos patrimoniais, saber se o recm-nascido nasceu com vida ou no. Qual a razo de ser da como-rincia? A destinao dos bens em razo da morte simultnea de pessoas que so reciprocamente herdeiras. Qual a razo de ser do prdigo? A preocupao, no com a pessoa, mas com os bens do prdigo, que podem acabar se ele continuar gastando como est. Qual a razo precpua da ausncia? Possibilitar a abertura do inventrio, com a distribuio dos bens entre os herdeiros.

Bens, sempre bens patrimoniais. Esse foi o timbre do direito civil. Observa-se, porm, em nosso sculo, uma filtragem tica dos institutos de di-

reito civil. O que no se aceita, hoje, que ponhamos em p de igualdade valores existenciais (ticos, personalsticos, espirituais) e valores relativos ao patrimnio. Sem falar que os primeiros, se violados, dificilmente aceitam uma recomposio adequada16. A restaurao do equilbrio perdido, alm de tardia, quase sempre ineficaz, caindo na vala comum da indenizao monetria.

Hoje, os civilistas aludem, crescentemente, despatrimonializao e re-personalizao das relaes civis. Os juristas so instados a reler a legislao infraconstitucional com novos olhos, observando os valores constitucionalmente prestigiados17. Nesse contexto, dificilmente teramos, hoje, no plano do direito civil, uma conduta agressora das convices sociais como conforme ao direito. Em face da atual Constituio da Repblica que adotou, entre os princpios fundamentais da Repblica, a cidadania, a dignidade da pessoa humana (art. 1, I e III), e entre

15 Houve at quem defendesse que o Cdigo Civil de 2002 seria ainda mais patrimonialista que o de 1916 (FACHIN, Luiz Edson; RUZIK, Carlos Eduardo. Um projeto de cdigo civil na contramo da Constituio. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro, v. 4, p. 243, set./dez. 2000).

16 Os exemplos, infelizmente, seriam incontveis. A jurisprudncia, a propsito, anotou a propsito de uma criana baleada e morta na porta da escola, em virtude de confronto a rito entre policiais e suspeitos: Esse valor de modo nenhum serve de reparao pela perda do filho da autora. Nenhum valor pecunirio teria essa serventia. Mas isso no induz a que seja fixado valor irrisrio, meramente simblico. Seria um contrassenso: a vida de um ente que-rido, por ser bem to precioso, acima de qualquer avaliao pecuniria, ser indenizada com quantia nfima. Seria degradar, envilecer a prpria condenao indenizao pelo dano moral ocorrido. Conclui, adiante: Impe-se, por questo de justia, mais do que o direito, que o dano moral, consistente na dor sofrida pela morte de um filho seja, no reparado (porque impossvel), mas minimizado pelo reconhecimento real e efetivo do sofrimento havido e pelo reconhecimento da culpa de quem o proporcionou. Alm disso, fundamental que a indenizao, no presente caso, atue com finalidade dissuasria, preventiva ou pedaggica, para compelir o Estado a buscar meios de impedir que fatos como o que levou morte da vtima venham a ocorrer, atravs da eficiente seleo e do constante treinamento dos seus agentes policiais (STJ, REsp 1.262.938). O julgado condenou o Estado em duzentos mil reais, sendo cem mil pela dor da morte do filho, e cem mil pela punio pela reprovabilidade da conduta dos agentes pblicos. O STF j reconheceu a necessria correlao entre o carter punitivo da obrigao de indenizar e a natureza compensatria para a vtima (STF, Rel. Min. Celso de Mello, AI 455.846). Alis, a sano punitiva nos quadrantes do direito privado requer somente uma aferio do lamentvel comportamento do agente: a repro-vabilidade da conduta daquele que ofende situaes jurdicas existenciais ou pratica danos sociais com desprezo condio das vtimas em potencial (ROSENVALD, Nelson. As funes da responsabilidade civil. So Paulo: Saraiva, 2017, p. 101).

17 PERLINGIERE, Pietro. La personalit umana nellordinamento giuridico. Camerino: Jovene, 1972, p. 155.

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os objetivos fundamentais da Repblica a construo de uma sociedade livre, justa e solidria (art. 3, I) ampliou-se, de modo generoso, o panorama de anlise da inconstitucionalidade das leis.

Vivemos, atualmente, em sociedades complexas e heterogneas. Pronunciado pluralismo nos caracteriza. As amplas transformaes ocorridas na sociedade exigem que o ordenamento jurdico incorpore a tica e no se mostre to fechado como costumava ser no passado. Alm disso, os desafios e ameaas que hoje nos afligem so, de certo modo, distintos daqueles dos sculos passados. H quem sustente que vivemos numa sociedade de risco. Em boa medida, nossa sociedade definida por eles18. Lembremos que em nossas atuais sociedades de risco, h ou deve haver uma democrtica reavaliao dos riscos que so socialmente aceitveis. Antigas prticas que eram tidas como normais e aceitveis podem se mostrar inadequadas ou nocivas com o andar das dcadas. Nesse contexto, o mero risco de dano autori-za que sejam adotadas medidas prvias necessrias para evitar que o dano ocorra.

Durante o sculo XIX e boa parte do sculo XX, o direito civil orgulhava-se do rigor formal dos seus conceitos, em sistema logicamente impecvel19. Porm, paralelamente aos encadeamentos lgicos dos juristas, os poderes privados eram e, de certo modo, ainda so marcados por forte carga desptica20. O marido sobrepunha-se, social e juridicamente, mulher; o pai sobrepunha-se ao filho; os empregadores a seus empregados. A igualdade material no inspirava os cdigos civis. Os cdigos civis clssicos no se preocupavam com esses desnveis de poder privado; antes os secundavam. Padres de comportamento preconceituosos se re-petiam, e a lei os incentivava.

Podemos dizer, de certo modo, que substitumos a lgica formal do passado por algo mais flexvel (ganhou destaque a expresso lgica do razovel, introduzida por Recsens Siches). Hoje lidamos frequentemente com modelos normativos como a dignidade, razoabilidade, proibio do excesso etc. A progressiva relevncia das normas abertas acompanhada por uma tambm maior relevncia da atividade do intrprete. No significa, decerto, que o intrprete possa sobrepor suas convices pessoais quelas da ordem jurdica. preciso algum modo de controle, e esse se dar pela argumentao. Quanto mais aberta for a norma, maiores sero os deveres de densidade argumentativa do aplicador. O CPC/2015, nesse sentido, dispe, no art. 489, 1: No se considera

18 A referncia terica mais consistente, a propsito, Ulrich Beck, que argumenta haver a globalizao dos riscos civilizacionais, e que a concretude do risco no respeita fronteiras nacionais (BECK, Ulrich. Sociedade de Risco rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastio Nascimento. 2 ed. So Paulo: Ed. 34, 2011). H autores, sob diversa orien-tao terica, que preferem dizer que vivemos numa sociedade informacional. Cf. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2005.

19 Franz Wieacker assinala as trs caractersticas que, a seu juzo, apontam para uma evoluo no sentido de um Estado Social: a) a relativizao dos direitos privados pela sua funo social; b) a vinculao tico-social destes direitos; c) o recuo perante o formalismo do sistema de direito privado clssico do sculo dezenove. (WIEACKER, Franz. Histria do Direito Privado moderno. Trad. A. M. Botelho Hespanha. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1967, p. 624).

20 Pontes de Miranda, desde o incio do sculo passado, vigorosamente se punha contra o contedo desptico no exerccio dos direitos subjetivos, antecipando, em longas dcadas, o conceito de funo social da propriedade e dos contratos: Tampouco se definiria o direito subjetivo como poder de mandar, de impor, de comandar. Aos sculos de pontiagudo individualismo foi grata tal concepo, que ps o indivduo no lugar dos dspotas. O meu direito (subjetivo) significava a minha fora, o meu poder, a minha violncia, sucedneos da fora, do poder, da violncia do prncipe (PONTES DE MIRANDA. Tratado da Ao Rescisria. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 10).

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fundamentada qualquer deciso judicial, seja ela interlocutria, sentena ou acrdo, que: II empregar conceitos jurdicos indeterminados, sem explicar o motivo con-creto de sua incidncia no caso; III invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra deciso. De modo semelhante, o 2 do mesmo artigo prescreve: No caso de coliso entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critrios gerais da ponderao efetuada, enunciando as razes que autorizam a interferncia na norma afastada e as premissas fticas que fundamentam a concluso. O CPC/2015 prev ainda que a deciso judicial deve ser interpretada a partir da conjugao de todos os seus elementos e em conformidade com o princpio da boa-f.

Os sculos passados se orgulhavam de uma rigorosa separao entre o direito e a moral. Tratava-se, alis, de ponto de honra para os positivistas. J os no-po-sitivistas negam essa separao absoluta. Segundo Alexy, esse o ponto central da distino entre uns e outros. Hoje, no ps-positivismo se quisermos utilizar a expresso (que eventualmente vem usada juntamente com ps-modernidade, que adiante discutiremos) observa-se uma aproximao, um contnuo dilogo entre os campos do direito e da moral (preferimos falar em tica)21. H, verdade, no se discute, especificidades em cada uma das esferas. Dizer que h um dilogo entre o direito e a tica apenas revela a percepo, cada dia mais forte, de que o direito no se legitima apenas por suas estruturas formais, que h necessidade de contedos substantivos que apontam para certos fins, e esses fins prestigiam o ser humano.

Traduzindo isso para a prtica jurdica, podemos dizer, com o risco de sim-plificao, que o direito do nosso sculo seja no plano normativo, seja no plano da interpretao abre-se para uma compreenso mais integral do ser humano. H, inclusive, um olhar mais compreensivo para o sofrimento humano, sobretudo daqueles cidados mais humildes. Isso, que antes poderia soar como heresia para os formalistas, hoje algo aceito no discurso jurdico. A igualdade substancial ou material, por exemplo, atua nesse campo, buscando diminuir as desigualdades, evi-tando relaes jurdicas injustamente assimtricas22.

Observa-se, igualmente, forte tendncia no sentido da construo de um direito legislativa, doutrinria e jurisprudencialmente que se ocupe menos com pequenas questes formais, e mais com as posies reais das pessoas no mundo social (projetos de vida, esperanas, alegrias e dores). Cludia Lima Marques argumenta que hoje a grande metanarrativa do direito civil a solidariedade e a realizao dos direitos humanos em

21 Afirmamos em outra ocasio: Ns preferimos ao invs de falar em aproximao do direito com a moral aludir a aproximao do direito com a tica. O direito do sculo XXI busca contedos ticos em suas fundamentaes, buscar ler os institutos luz de valores substantivos, com luzes humanistas e reflexos que valorizem a pessoa humana. Ricardo Lobo Torres, no mesmo sentido, assinala: De uns trinta anos para c assiste-se ao retorno aos valores como caminho para a superao dos positivismos. A partir do que se convencionou chamar de virada kantiana (kantische Wende), isto , volta influncia da filosofia de Kant, deu-se a reaproximao entre tica e direito, com a fundamentao moral dos direitos humanos. O livro A Theory of Justice, de John Rawls, publicado em 1971, constitui a certido do renascimento dessas ideias.

22 O exerccio das liberdades existenciais pressupe padres mnimos de igualdade material. Sem a promoo de patamares razoveis de igualdade entre as pessoas no h liberdade para as escolhas existenciais. O pacta sunt servanda no deixou de existir, apenas no tem a fora absoluta que detinha nos sculos passados (por exemplo, quem assinou um contrato de adeso com o plano de sade em cujas clusulas previa-se um tempo mximo de internao em UTI no estar vinculado a essa clusula, mesmo que contratualmente firmada, na linha da Smula 302 do STJ). Pontes de Miranda lembrava que a liberdade de contratar praticamente se traduzia, no direito clssico, na liberdade para os mais fortes de impor sua vontade aos mais fracos.

CONCEITOS FUNDAMENTAIS Cap. 1 CONTEXTUALIZANDO O NOVO DIREITO CIVIL 97

pleno direito privado. J se percebeu, ademais, que luz do princpio da solidariedade devem ser lidas no apenas as normas constitucionais, mas todo o ordenamento jurdico23.

3. UM INCIO DE SCULO MARCADO POR MUDANAS

Desculpe por no ter te reconhecido. que mudei muito

Oscar Wilde

O direito se pe na esfera tica do convvio social. A ordem jurdica faz cer-tas escolhas e deixa, ao mesmo tempo, um campo livre para que ns faamos as nossas escolhas. Dessa tenso que nascem os conflitos e as solues jurdicas. A liberdade humana pode muito, no direito civil. Pode muito, no pode tudo. Alis, os prprios limites do pode muito sofrem constantes revises. No fosse a to conhecida tendncia humana para fazer prevalecer a vontade do mais forte, os limites da liberdade seriam maiores. Somos ns, com os abusos, que diminumos nossa esfera de liberdade.

O direito civil dos nossos dias incorpora novos modos de percepo. chamado, a todo instante, a reconstruir o sentido de velhos conceitos e categorias, diante dos problemas inditos que o nosso sculo apresenta. No so poucos nem simples os desafios que se pem diante do sculo XXI. As ameaas que nos afligem, atualmente, parecem se renovar a todo instante. J se disse que toda poca tem seus fantasmas24.

O individualismo jurdico era muito bem representado pelas trs liberdades bsicas do direito civil: liberdade de contratar, de ser proprietrio e de testar25. Obviamente, so liberdades que ainda persistem, que no desapareceram nem de-saparecero, mas sofrem os influxos dos novos valores deste sculo. Vejamos, com brevidade, algumas dessas mudanas.

3.1. Mudanas na parte geral

No sorria tranquilo, porque feio ficar despreocupado com o semelhante s porque ele no nosso comensal ou nosso amigo. Cada estranho um irmo de destino, que ainda no nos foi apresentado, apenas.

Ceclia Meireles

Conforme j frisamos, a parte geral confere certa unidade conceitual ao direito civil. Ela resulta da genialidade de Teixeira de Freitas, posteriormente adotada no Cdigo Civil Alemo de 1900 (mais exato seria dizer: Cdigo de 1896 que entrou

23 PERLINGIERE, Pietro. La personalit umana nellordinamento giuridico. Camerino: Jovene, 1972, p. 161.24 SAVATER, Fernando. O valor de educar. So Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 136. 25 Cf. STOLFI, Giuseppe. Teoria del negozio giuridico. Madrid: Briz, 1959, p. 20. Tambm: BARCELLONA, Pietro. El indivi-

dualismo propietario. Madrid: Trotta, 1996, p. 115.

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em vigor em 1 de janeiro de 1900). Segundo Francisco Amaral, a parte geral o nvel mais elevado do sistema bsico do direito privado que o Cdigo Civil26. A parte geral traz normas de aplicao comum a toda parte especial do Cdigo Civil, pelo menos esse seu intento. Haver, por certo, excees episdicas, mas a coe-rncia conceitual do Cdigo Civil dada pela parte geral, pelos conceitos, categorias e institutos nela previstos. No convm, neste tpico, trazer um rol de mudanas ocorridas na parte geral a partir do Cdigo Civil atual (o livro, afinal, cuidar disso ou tambm cuidar disso nos prximos captulos). Aqui nos interessa apenas uma palavra geral, uma viso das linhas de tendncia mais amplas.

O desafio, neste sculo, incorporar o novo sem esquecer as conquistas j realizadas. Alis, o novo no sinnimo de qualidade terica. O autenticamente novo dialoga com a tradio e dela recebe boas heranas.

O direito civil brasileiro tem buscado, nos ltimos anos, modelos tericos que guardem compatibilidade com as opes valorativas bsicas da Constituio da Repblica (lembremos, por exemplo, do Estatuto da Pessoa com Deficincia, de 2015, que alterou profundamente a teoria das incapacidades, fazendo com que um novo tempo se iniciasse na matria). Os conceitos, categorias e institutos da parte geral passam por um processo de despatrimonializao e de repersonalizao. Isso no significa negligenciar ou negar a relevante dimenso patrimonial deles, mas apenas reconhecer que a dimenso existencial deve vir em primeiro lugar (veremos exemplos ao longo do livro). A experincia jurdica do sculo XXI fundamental-mente tico-jurdica. No faz sentido, hoje, falar em direito como um repositrio de solues neutras e formais. No isso que a sociedade legitimamente espera, nem isso que a Constituio de 88 de ndole transformadora e humanista , no caso brasileiro, determina. O conceito atual de personalidade no puramente formal. No basta dizer que pessoa aquele que pode ser sujeito de direito. Continua sen-do isso, mas no s isso. Essencial, hoje, ao conceito, a luz transformadora da dignidade humana.

H clara tendncia de revisitar antigos institutos clssicos. A interpretao de institutos jurdicos como a prodigalidade e a prpria teoria das incapacidades sofre mudanas profundas, luz da despatrimonializao e repersonalizao das relaes jurdicas. Os atos ilcitos so, hoje, distintos do que eram h algumas dcadas. A abordagem das coisas e dos bens percebe que esses conceitos passam por intensas transformaes, desmaterializando-se, em processo de mudana at certo ponto natural numa sociedade incrivelmente complexa e marcada pela velocidade na transmisso das informaes. O conceito de pessoa talvez mais do que os outros renova-se fortemente, deixando de ser o sujeito de direito abstrato e enxergado sob um prisma substancial, concreto, real. Em relao, por exemplo, aos prdigos que adiante es-tudaremos podemos dizer que desde que a pessoa preserve um mnimo para sua existncia por exemplo, os proventos de aposentadoria ou penso previdenciria ,

26 AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introduo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, prefcio quinta edio. Pontes de Miranda lembra que os sistemas jurdicos so formados por cabedal inestimvel de intuies e experimentaes humanas (PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. T. IV. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 108).

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no pode o Estado interferir em sua opo de vida. Levada ao extremo, a interdio da prodigalidade impede que uma pessoa siga o exemplo de So Francisco de Assis, que se desfez de todos os bens que possua em benefcio dos pobres27.

Alm disso, as democracias constitucionais contemporneas reconhecem e valorizam uma ampla esfera autodeterminativa para o ser humano28. Os hori-zontes autodeterminativos so cada vez mais generosos, em nosso sculo, naquilo que se refere aos percursos com dignidade, liberdade e igualdade que cada um traa para si na construo de seus caminhos existenciais. A intolerncia autorit-ria seja do Estado, seja dos particulares no possvel, em questes atinentes ao foro ntimo de cada um. Alis, mesmo em questes patrimoniais nota-se certa esquizofrenia nas regras do Cdigo civil ou, pelo menos, em algumas delas. Um adolescente, com 17 anos, no poderia pelo menos na letra fria da lei sequer pegar um nibus sozinho (o negcio jurdico seria invlido, por falta de assistncia), ou comprar um sorvete, mas pode, pasmem, fazer testamento (Cdigo Civil, art. 1.860, pargrafo nico).

No difcil perceber, ainda hoje, a repetio de dogmas que herdamos do direito civil de feio individualista. O instituto da ausncia como tantos institutos do direito civil tradicional no se preocupa tanto com aspectos existenciais do direito humano, mas, ao contrrio, com aqueles patrimoniais. H, tambm, abuso no uso de certas fices jurdicas tradicionais29.

No se trata de querer que o direito civil resolva problemas que no so dele. Sabemos que o direito no opera milagres nem cria riquezas onde elas no existem. Entre essa constatao e o abuso das fices jurdicas do sculo XIX com a qual, em boa medida, continuamos a trabalhar h espao para construes teoricamente mais criativas, menos formais e mais abertas realidade dos nossos dias.

27 LBO, Paulo. Direito Civil. Parte Geral. So Paulo: Saraiva, 2009, p. 124. De outro lado, a despatrimonializao do direito civil e sua repersonalizao conduzem valorizao jurdica do ser humano, que um fim em si mesmo, e lembrar sempre do carter instrumental do patrimnio. Nesse sentido, o iuris civilis aproxima-se, mais e mais, das relaes de civilidade, despindo-se de sua dimenso meramente econmica (TEPEDINO, Gustavo. In: Prefcio, Luiz Edson Fachin, Estatuto Jurdico do Patrimnio Mnimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001).

28 Conferir, a propsito: RODOT, Stefano. La vida y las reglas. Entre el derecho y el no derecho. Traduccin de Andrea Greppi. Madrid: Editorial Trotta. 2010, especialmente o ensaio El derecho y su lmite, p. 25-71. Conferir ainda: AMARAL, Francisco. A autonomia privada como princpio fundamental da ordem jurdica: perspectiva estrutural e funcional. Revista de Direito Civil. So Paulo, n. 46, pp. 07-26, out-dez. 1988; FRIEDMAN, L. M. The Republic of Choice: Law, Authority and Culture. Cambridge: Harvard UP, 1990; PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. T. I. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. XVII.

29 Diz-se, por exemplo, de modo unnime, que toda pessoa tem domiclio e toda pessoa tem patrimnio (a velha obsesso do direito civil: o patrimnio). Trata-se de construo conceitual que, ao que podemos perceber, no s briga com os fatos (e psicologicamente perversa), como, ao que nos consta, no tem utilidade alguma. Qual a operacionalidade de se afirmar que todos tm patrimnio? Alis, a maior serventia do patrimnio servir de garantia para os credores e responder pelas dvidas da pessoa. Pois bem, pergunta-se: em relao pessoa fsica que no tem patrimnio e que os juristas presumem que ela tem o que se alterar nessa situao? Nada. A execuo, por certo, no avanar, enquanto no houver patrimnio (real, bem entendido, no fictcio). A mesma lgica, lembremos, acontecia e acontece em relao ao domiclio. Parte-se do dogma teoricamente absoluto que todos tm domiclio. Mesmo que os no tem. Perceba-se que a presuno no altera, nem busca alterar, absolutamente nada no mundo l fora, na vida social. No , portanto, minimamente generosa nesse ponto. Nem sequer como um objetivo distante a ser alcanado. isso que deve incomodar o direito civil do sculo XXI. Ao invs de presumir, formal e inutilmente, que todos tm domiclio, temos que, a partir das desigualdades reais, construir solues juridicamente diferenciadas, oferecendo respostas consistentes, luz da Constituio. Voltaremos a alguns desses pontos ao longo da obra.

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Cabe, por fim, lembrar, como palavra final deste tpico, que a natureza da argumentao jurdica no demonstrativa, mas persuasiva30. Isso, talvez, nem deva ser encarado como um defeito, mas como algo prprio do conhecimento jurdico. Alis, o conhecimento jurdico e deve ser pluralista. Pontes de Miranda certa vez frisou que um dos enganos da inteligncia humana crer na unilateralidade do verdadeiro. Exemplificou dizendo que entre duas ou mais pessoas que discutem, podem todos ter razo.

3.2. Mudanas no direito contratual

bom que haja uma ao de despejo, sempre devia haver, em toda casa, para que assim o sentimento constante do precrio nos proibisse de revestir as paredes alheias com nossa ternura e de nos afeioarmos sem sentir at humilde torneira, e ao corrimo da escada como se fosse um ombro de amigo onde pousamos a mo.

Rubem Braga

Os contratos so instrumentos para a consecuo de finalidades sociais. Tra-ta-se de instituto jurdico cujas feies alteram-se de acordo com as funes que chamado a exercer, bem como a partir do contexto econmico e social em que se insere. Perderam, atualmente, a cor puramente voluntarista, uma espcie de manto sagrado atrs do qual a vontade humana tudo podia (porque livremente manifestada). No se trata, hoje, de buscar a vontade tcita para alm da vontade expressamente declarada. preciso absorver a imensa mudana havida: a Constituio confere for-a obrigatria aos contratos no porque voluntariamente queridos na medida do querer egostico das partes , e sim porque seus efeitos so socialmente adequados, proporcionais, razoveis e equitativos31.

Conforme veremos adiante, o direito civil, tradicionalmente, ocupou-se com a existncia, validade e a eficcia dos negcios jurdicos. Isso, porm, a partir de um prisma voluntarista: conjugar aquilo que se desejou com aquilo que se declarou desejar (os defeitos do negcio jurdico, que veremos na parte geral erro, dolo, coao etc. so, em grande parte, apenas isso). Hoje, conforme tambm veremos, h uma tendncia de analisar de modo mais objetivo as clusulas contratuais e os comportamentos das partes. As perguntas so outras: houve quebra de confiana? (princpio da confiana). Houve comportamento contraditrio? (princpio do venire contra factum proprium). Uma das partes adimpliu substancialmente a sua presta-o? (princpio do adimplemento substancial). H desproporo entre as prestaes?

30 MACCORMICK, Neil. Rhetoric and the Rule of Law. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 05.31 Antnio Junqueira de Azevedo, nesse sentido, ensina que a perspectiva muda inteiramente, j que de psicolgica

passa a social. O negcio no o que o agente quer, mas sim o que a sociedade v como declarao de vontade do agente. Deixa-se, pois, de examinar o negcio atravs da tica estreita do seu autor e, alargando-se extraordina-riamente o campo de viso, passa-se a fazer o exame pelo prisma social e mais propriamente jurdico (AZEVEDO, Antnio Junqueira. Negcio jurdico: existncia, validade e eficcia. So Paulo: Saraiva, 2000, p. 21). Conferir: GALGANO, Francesco. Il negozio giuridico. Milano: Giuffr, 2002.

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(princpio da equivalncia material entre as prestaes). Uma das partes frustrou as legtimas expectativas da outra? (princpio da boa-f objetiva em uma de suas funes). Hoje, ademais, o dever de informar se incorporou ao direito contratual como dever geral de conduta.

O contrato, em nossos dias, dialoga fortemente com os ventos constitucionais. Ele no perdeu, nem o poderia, o seu vis econmico. Esse vis, porm, j no o nico. H, tambm, muito forte, a preocupao com as dimenses existenciais do ser humano e com a promoo da solidariedade social. O Cdigo Civil, em mais de uma oportunidade, sublinha a relevncia da dimenso funcional a respeito dos contratos. Nesse contexto, a funo social passa a ser parmetro de validade dos contratos. Podemos at sustentar que a funo social um dos mais importantes princpios do Cdigo Civil, e que a Constituio somente admite o contrato que realiza sua funo social. Seja como for, a funo social permeia todas as formas de contratos e de propriedade, de bens imveis e mveis, inclusive as novas e iconoclastas formas de circulao de riqueza, pela bolsa de valores, em transaes instantneas, ou pelo comrcio digital.

A legitimidade da eficcia dos contratos transmudou-se da forma para o con-tedo. A forma permanece condio necessria, mas no suficiente. fundamental que o contedo reflita, em alguma medida, a ordem dos valores constitucionais, sem o que no haver validade no ajuste. Nessa ordem de ideias, a aferio de validade dos contratos deslocou-se do momento de formao do vnculo para, alm dele, espalhar-se pelos momentos posteriores contratao32. A verificao da validade, luz da Constituio, dinmica e flexvel, e no esttica e rgida. O princpio do equilbrio material entre as prestaes, cuja base normativa superior o art. 3, III, CF/88, impe um contnuo acompanhamento da relao contratual, verificando, caso a caso, a existncia de desigualdades reais que exijam correo.

Se assegurar a liberdade de contratar era a grande misso dos cdigos civis oitocentescos33, hoje a grande misso, dos cdigos civis e das Constituies, assegurar uma tutela privilegiada pessoa humana. Nesse contexto, os contratos so socialmente funcionalizados, o que impede uma utilizao inconsequente da autonomia da vontade. A propriedade, cuja funo social tem sede constitucional, restringe o espao de ao do proprietrio, que no pode agir em descompasso com a insero social do bem que titulariza. O abuso de direito (Cdigo Civil, art. 187), ato ilcito, exige que o exerccio no ultrapasse os padres tico-sociais, sendo ilcitas as aes ou omisses que, a pretexto de exercer um direito, excedam o razovel e o proporcional. Esse artigo serve como base normativa imediata para conformar

32 Nesse sentido, um contrato livremente pactuado pode ser, no obstante, um contrato injusto e, nesta medida, pode ser revisto, modificado judicialmente ou mesmo integralmente rescindido: nfase na liberdade sucede a nfase na paridade. Trata-se, pois, de uma transformao profunda no conceito de justia contratual. A dimenso de tal mudana dificilmente pode ser compreendida em funo, apenas, do direito contratual, exigindo, comple-mentarmente, uma contextualizao filosfica (NEGREIROS, Teresa Negreiros. Teoria do Contrato. Novos Paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 158).

33 DONEDA, Danilo. Os direitos da personalidade no Cdigo Civil. A Parte Geral do novo Cdigo Civil: estudos na pers-pectiva civil-constitucional. TEPEDINO, Gustavo (Org.). Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 38.

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direitos que, embora contratualmente assegurados, agridam a boa-f ou a finalidade econmico-social do negcio jurdico. Retrai-se, assim, nas relaes patrimoniais, a autonomia, vedando que, sob o vu do exerccio de um direito, cometam-se abusos.

H, alm disso, a necessidade da tutela da confiana das partes e de terceiros. Busca-se, como veremos adiante, o equilbrio material entre as prestaes. A funo social dos contratos desempenha relevantes tarefas, ao lado das mltiplas funes da boa-f objetiva. Passa-se da tutela subjetiva da vontade tutela objetiva da con-fiana34. Existem, no Cdigo Civil, trs grandes princpios que marcam o direito contratual: princpio do equilbrio material entre as prestaes, princpio da boa-f objetiva e princpio da funo social dos contratos. Veremos, mais adiante, ao longo do livro, cada um deles.

H outro ponto que pede meno. No difcil perceber analisando as re-laes sociais no Brasil do sculo XXI que parcela imensa dos contratos deixou de ser juridicamente regrada pelo Cdigo Civil. Grande parte, a quase totalidade, dos contratos que firmamos diariamente so contratos de consumo, alm de serem contratos de adeso (cartes de crdito e dbito, operadoras de telefonia, bancos, passagens areas, planos de sade, escolas e faculdades privadas, seguradoras, esta-cionamentos, shoppings, servios em geral). No so contratos regidos pelo Cdigo Civil, pelo menos no diretamente. So contratos regidos pelo Cdigo de Defesa do Consumidor35.

Alis, inegvel que os contratos, hoje, revelam inegvel poder normativo pri-vado. As condies gerais dos contratos de alguns dos servios que mencionamos: bancos, telefonia, tev a cabo, cartes de crdito, passagens areas etc. mal escon-dem um poder contratual que rivaliza com o poder estatal (monoplio legislativo na edio de normas jurdicas vinculantes). certo que boa parte dessas clusulas gerais, se judicialmente questionadas, no prevalecem, mas tambm certo que s uma pequena parte dessas clusulas efetivamente sindicada.

No contexto exposto, perde fora o dogma da intangibilidade da vontade. Ain-da que sua manifestao tenha sido livre, sem vcios, isso no constri muros que impeam sua adequao aos valores tico-sociais. O dirigismo contratual esvazia o carter sacro de respeito palavra dada; os acordos prevalecero no porque foram firmados entre pessoas livres e iguais; isso importante, mas no tudo: essencial,

34 Cf. FACHIN, Luiz Edson. O aggiornamento do direito civil brasileiro e a confiana negocial. Repensando os fundamentos do direito civil brasileiro contemporneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 145; MATTIETTO, Leonardo de Andrade. O papel da vontade nas situaes jurdicas patrimoniais: o negcio jurdico e o novo Cdigo Civil. Dilogos sobre Direito Civil Construindo a racionalidade contempornea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 23-39, p. 35.

35 A proteo do consumidor, por exemplo, participa de uma tutela mais ampla, a tutela pessoa humana. O Cdigo de Defesa do Consumidor estatui, no art. 1, seu carter de norma de ordem pblica e de interesse social, afasta a possibilidade do consumidor a elas renunciar, sendo cogente sua incidncia. Ento, independente de sua vontade, o consumidor protegido. A publicidade, desde que suficientemente precisa, vincula o fornecedor, preponderando inclusive sobre eventual acordo escrito. Na rbita processual, o juiz pode, havendo verossimilhana, inverter o nus da prova, oportunizando um acesso justia diferenciado. As clusulas abusivas so despidas de fora jurdica, no vinculando o consumidor, ainda que a elas tenha expressamente aderido. O CDC usado aqui apenas como exemplo. No Cdigo Civil h normas semelhantes, talvez at em certo sentido mais fortes, por exemplo: Art. 421. A liberdade de contratar ser exercida em razo e nos limites da funo social do contrato. Mais adiante, pre-ceitua, no art. 2.035, pargrafo nico: Nenhuma conveno prevalecer se contrariar preceitos de ordem pblica, tais como os estabelecidos por este Cdigo para assegurar a funo social da propriedade e dos contratos.

CONCEITOS FUNDAMENTAIS Cap. 1 CONTEXTUALIZANDO O NOVO DIREITO CIVIL 103

para que prevaleam, que o seu contedo espelhe vnculos e prestaes equilibradas e no conflitem com a funo social dos contratos e da propriedade36. Por certo, o princpio da fora obrigatria dos contratos no deixou de existir em nossos dias. Apenas no apresenta, atualmente, carter absoluto. Dever ser temperado luz de outros princpios e regras, tendo maior ou menor aplicao, luz da relao jurdica subjacente (em princpio, ser maior o valor do pacta sunt servanda, por exemplo, quanto mais equivalente, ou menos desigual, for a situao dos contratantes entre si).

Est havendo, no direito civil contemporneo, um progressivo decrscimo de autonomia da vontade, no que se refere s relaes contratuais, decrscimo esse inver-samente proporcional crescente liberdade das pessoas nas relaes existenciais. Esse aumento de liberdade nas relaes existenciais tem amparo no princpio da melhor realizao do ser humano, princpio implcito em nossa ordem constitucional, prin-cpio cuja estruturao terico-normativa pode ser extrada da dignidade da pessoa humana, fundamento da Repblica (CF/88, art. 1, III). Se os espaos se ampliam nas situaes subjetivas existenciais, por outro lado, nas patrimoniais superado o paradigma liberal exigem atenta tutela estatal. O Estado no pode se manter alheio brutal excluso social, porque, com ela, as demais liberdades se convertem em quimeras. O exerccio da liberdade pressupe nveis mnimos de igualdade.

Diminuem os espaos da liberdade contratual; ampliam-se os espaos para a liberdade existencial. No somos livres para realizar contrato com qualquer conte-do; somos, porm, cada vez mais livres para deliberar sobre os caminhos ntimos, existenciais, que nos conduziro a uma vida espera-se em paz com nossa consci-ncia. Isso significa, concretamente, o seguinte: espaos mais generosos de liberdade para escolhas subjetivas existenciais. Em outras palavras: as estradas que conduzem felicidade, quilo que cada um de ns julga ser mais apropriado para nossas vidas, devem ser preservadas, tanto quanto possvel, de interferncias estatais. Voltaremos, adiante, ao longo do livro, a esses temas.

3.3. Mudanas no direito de propriedade

Sempre me achara parecido com algum e no sabia quem. At que, naquele momento e tardiamente, descobri a minha total semelhana com a Idade Mdia.

Nelson Rodrigues

Sob inspirao individualstica, a liberdade se afirmou, nos cdigos civis, sob a forma da propriedade (simbolizada pela autonomia para celebrar pactos vinculantes). Havia um respeito religioso propriedade e aos contratos, considerados inviolveis

36 Nessa ordem de ideias, o foco na anlise de uma relao contratual deve dar-se sobre a eventual vantagem que uma parte possa ter sobre a outra. Essa a chave para uma justa compreenso do caso concreto. Essa anlise mais arejada e mais proveitosa do ponto de vista social foi observada pelas decises do Superior Tribunal de Justia (...). Nessas decises se atentou, antes, para a situao de desvantagem de uma das partes diante de outra, para, ento, oferecer uma resposta do Judicirio em sintonia com a finalidade do ordenamento, consistente em evitar iniquidades e garantir a justia no caso concreto (CASTRO NEVES, Jos Roberto de. O Direito do Consumidor de onde viemos e para onde vamos. RTDC, vol. 26, abr/jun, 2006, p. 197).

104 MANUAL DE DIREITO CIVIL Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto

em seu contedo. A liberdade ento exercida era uma liberdade de proprietrios. Os cdigos civis regiam relaes entre pessoas dotadas de patrimnio. Os cdigos civis clssicos, que se propunham a ser a Constituio do direito privado, no atingiam as pessoas sem patrimnio, e j a se v que quo pobres eram tais Constituies37. Pontes de Miranda com a anteviso que o distinguia j nas primeiras dcadas do sculo passado j alertava para o regressivo erro de tratar outros direitos menos favoravelmente que o direito de propriedade38.

O direito civil, nesse sentido, se renovou, est se renovando. H um choque entre velhas estruturas e novas funes. Alis, no novidade que o direito civil sempre foi visto como o espao jurdico do tradicionalismo. Os civilistas, com seu conservadorismo inteligente, hesitam muito em abandonar antigos esquemas ou classificaes ou renovar velhas pautas temticas. Para abraar o novo preciso, muitas vezes, abandonar o antigo, e esse abandono mais do que a aceitao do novo que parece incomodar.

Outro ponto importante. Mudamos bastante nas ltimas dcadas. No s social-mente, mas tambm na dimenso jurdica (dimenses que esto obviamente interliga-das, mudanas sociais repercutem, em maior ou menor grau, na experincia jurdica, mesmo que no tenha havido alterao formal das regras jurdicas). Pensemos no meio ambiente. O direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado redefine papis e funes no ordenamento jurdico. Convm no esquecer que h poucas dcadas a literatura jurdica tratados, manuais e monografias considerava a natureza (ar, mares etc.) res nullius, coisa de ningum. Algo de menor importncia, algo que nem merecia mais que duas ou trs linhas nos cursos e manuais. Hoje, em poucas dcadas, a situao se inverteu. O meio ambiente considerado bem de uso comum, direito fundamental de terceira gerao. Tivemos, portanto, na mat-ria, curiosa evoluo conceitual: de res nullius para res communis omnium. Temos, portanto, no meio ambiente, um bem difuso, um macrobem39.

Dentre as preocupaes que afligem o sculo XXI certamente est a preocupao ambiental, que assume mltiplos aspectos, dentre eles a progressiva perda da biodi-versidade do planeta. Sabemos, hoje, quo ingnua era a crena acerca da inesgota-bilidade dos recursos naturais, e que no infinita a capacidade de autorregenerao

37 Alis, em fico risvel, bem ao esprito oitocentista, concluiu-se que mesmo a pessoa que no tem patrimnio considerada como se o tivesse, para que as categorias jurdicas pudessem continuar a funcionar.

38 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 367. 39 A bibliografia sobre o tema riqussima. Conferir, apenas a ttulo exemplificativo, dentre outros valiosos trabalhos:

NASH, Roderick Frazier. The Righst of Nature: a history of environmental Ethics. The University of Wisconsin Press. Madison, 1989; SOLLOW, Robert M. Intergenerational Equity and Exhaustible Resources. Review of Economic Studies. Symposium on the Economics of Exhaustible Resources, 1974; BENJAMIN, Herman V., Responsabilidade civil pelo dano ambiental. Revista de Direito Ambiental. So Paulo, v. 3, n. 9, p. 5-52, jan./mar. 1998; SILVA, Jos Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. So Paulo: Malheiros, 1995; HUTCHINSON, Toms. Dao Ambiental. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1998; ITURRASPE, Jorge Mosset. Dao Ambiental. Buenos Aires: Bubinzal Culzoni, 1999; REHBINDER, Eckard. Germany (Chapter 3). KOTZ, L. J.; PATERSON, A. L. (eds.). The role of the judiciary in environmental governan-ce. Netherlands: Kluwer Law International, 2009; STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade civil ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011; MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. A responsabilidade civil por presuno de causalidade. Rio de Janeiro: GZ, 2010; BENJAMIN, Herman. Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. CANOTILHO, J.J. Gomes; LEITE, Jos Rubens Morato. Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. So Paulo: Saraiva, 2007; FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Novo Tratado de Responsabilidade Civil. 2 edio. So Paulo: Saraiva, 2017.