manuscritos de linguistas e genética textual. quais as metas das
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Manuscritos de linguistas e genética textual. Quais as metas das
ciências da linguagem?
Exemplo dos “papeis” Benveniste1
Introdução
Após una introdução geral visando explicitar os eixos da crítica textual
aplicada à linguística e que exporá materiais, questões e metodologia da disciplina,
a palestra abrangerá três perspectivas:
- a abordagem do processo de escritura em si (diferentes documentos observáveis,
constituição de dossiês genéticos, reconstrução de habitus autorais);
- agênese da escritura de invenção em geral (gênese do discurso linguístico, traços
específicos da escritura linguística, tipologia de traços estilísticos autorais);
- a gênese de noções e conceitos lingüísticos de um corpus específico. Diversos
dossiês manuscritos de Emile Benveniste deveriam possibilitar-nos propor a gênese
de um conceito dentro de um escrito (noção de ―experiência humana‖), a gênese de
uma noção dentro de uma obra (noção de ―aparelho formal‖), a gênese cultural de
conceitos pela transmissão e recepção (noção de ―enunciação‖).
História da disciplina
A crítica genética, que fundou a metodologia de análise genética, se constituiu
ao levar em conta os manuscritos ditos ―modernos‖.
A genética dos textos encontrou seu lugar no campo da críticaliterária nos
anos 70. Foi exatamente em 1968 que o estudo dos manuscritos foi reconhecido,
quando foi criada uma equipe CNRS (fundada e dirigida por Louis Hay) encarregada
de recensear e classificar os manuscritos de Heine adquiridos dois anos antes pela
Biblioteca Nacional. Louis Hay descreveu seu início: ―o acervo Heine será o primeiro
grande conjunto de manuscritos modernos a ser estudado por uma equipe de
pesquisadores expressamente formada para isso […]. Como desbastar a massa dos
manuscritos com ajuda de instrumentos contemporâneos da pesquisa? Como
atravessá-la para compreender melhor o processo criador? Como enriquecer a
1 Conferência proferida pela pesquisadora Irène Fenoglio (ITEM/ENS/CNRS), na PUCRS, em
14/11/2012, promovida pelo DELFOS – Espaço de Documentação e Memória Cultural. (Tradução de Marie-Hélène Paret Passos)
crítica das obras com o reconhecimento de seu devir?‖. Aos poucos, a equipe ganha
outros acervos e, após ter tido o nome de Centro de História e Análise dos
Manuscritos Modernos (CAM), torna-se um laboratório e passa a se chamar, em
1892, Instituto dos Textos e Manuscritos Modernos (ITEM).
A estruturação em equipe do CNRS possibilitou a elaboração de uma teoria
da crítica genética, contudo, sua prática e sua ―invenção‖ antecederam sua
designação pública. De fato, se, em 1972, Jean Bellemin-Noël publicou Le texte et
l’avant-texte, obra que instala um dos conceitos chave da crítica genética, foi
somente em 1979 que essa ciência humana adquiriu realmente seu nome com a
publicação de Essais de critique génétique, obra coletiva dirigida por Louis Hay.
Quais os parâmetros que permitiram a essa nova ciência de explicitar-se?
O objeto de trabalho é o manuscrito. Até Gutenberg, todo escrito é
libermanuscriptum. A palavra ―manuscrito‖ entra no dicionário só no século XVII, e
encontra-se em concorrência com o substantivo ―autógrafo‖, neologismo que
substitui quirógrafo. ―Se o derivado latim visa o modo de inscrição do texto, diz Louis
Hay, o grego designa a pessoa do autor e o léxico encontra a visão compartilhada
que os homens sempre tiveram do objeto manuscrito: testemunha do texto para os
filósofos, relíquia do artista para os colecionadores. Essa dupla realidade do
manuscrito, documento e monumento, marca toda a história cultural de sua
transmissão. Por outro lado, foi preciso esperar até o final do século XIX para que
ambos os pontos de vista se encontrassem num sintagma comum, o manuscrito
autógrafo […]. A partir daí, inicia-se uma evolução que leva a deslocar a atenção dos
testemunhas do texto para os de sua gênese.2Várias expressões passam a ser
utilizadas para designar esse material na história dos documentos e de sua
conservação, ―papeis‖ para o conjunto de um acervo que inclui tanto manuscritos de
trabalho quanto provas, correspondência, notas de todo tipo, ―rascunhos‖ para os
manuscritos de trabalho suficientemente elaborados para serem relacionados com o
texto final. O manuscrito ―moderno‖ é então o que resta de visível e consultável do
trabalho privado de um autor para construir um texto publicado. O manuscrito se
aborda em relação a um livro ou uma publicação transmitida e transmissível.
Com essa consideração dos rascunhos, a crítica genética distingue-se e
distancia-se da filologia com a qual, no entanto, conserva laços tanto históricos
2 ―L’écriture vive’’, prefácio a: Les manuscrits d’écrivains. Hachette, CNRS édition, 1993, p.10-11.
quanto metodológicos. A filologia tem como objeto o texto final e procura estabelecer
sua ―verdade‖ em função de sua história e das diversas variantes; seu objetivo é
estabelecer uma edição do melhor texto. A genética dos textos, por sua vez, visa
elucidar o trabalho de escritura e interpretar seu processo. De fato, isso passa por
uma análise das versões sucessivas em seus diferentes estados, mas nenhuma
hierarquia obedece a um julgamento de valor: tudo é levado em conta.
No início, a disciplina genética fundou-se sobre manuscritos de escritores.
Hoje, é importante notar que o material a analisar diversifica-se em função dos
gêneros e tipos de textos visados pelos manuscritos que os levam à maturidade:
literários, científicos, ciências humanas, direito, etc.
O material arquivístico disponível
Evidentemente, várias perguntas surgem de imediato: O quê? Onde? Como
acessar? Todas as configurações são possíveis. No caso de Benveniste, por
exemplo, havia muito tempo que eu queria trabalhar nos seus manuscritos e não
conseguia encontrá-los, enquanto eles esperavam tranquilamente na BnF (Biblioteca
nacional da França) mas... no departamento dos ―manuscritos orientais‖
(manuscritos chineses, árabes, japoneses…), eu procurava-os simplesmente no
―departamento dos manuscritos‖, após, evidentemente, tê-los procurado muito
tempo no Colégio de França, na Gallimard…etc.
Outra questão muito importante: sobre/dentro de um manuscrito há dois
materiais diferentes: a imagem do manuscrito e o que ele porta. Como diz Carlo
Ginzburg ―o texto não se identifica com seu suporte.‖3
o suporte manuscrito ou datiloscrito
o discursivo esparso e fragmentar constitutivo do discurso por vir, em
outras palavras, há o legível e o visível. Notamos que para o geneticista-
linguista, a questão é ainda mais presente posto que o objeto de sua
observação é o discurso fragmentar e esparso, que formará o discurso do
texto final. Mas esses fragmentos são ordenáveis só quando se observa a
imagem do manuscrito, ou seja, todos os rastros, inclusive a troca de
3Mitos, Emblemas, Sinais.CompanhiadasLetras, 2007.
papel, inclusive as mudanças de cor de caneta, inclusive os desenhos
como no fólio seguinte
4
que será preciso decriptar e eventualmente relacionar com algum pedaço de texto.
De fato, é o caso aí: encontramos em outra folha a seguinte nota:
L‘écriture est de la parole convertie par la main en signes parlants. La main et la parole se tiennent dans l‘invention de l‘écriture. La main prolonge la parole. Le système primaire voix (la bouche)-oreille est relayé par le système secondaire main (l‘inscription)-œil. La main joue le rôle d‘émetteur en traçant les lettres, et l‘œil devient récepteur en collectant les traces écrites. Entre la bouche et l‘oreille, le lien est la phonie émise-entendue ; entre la main (l‘inscription et l‘œil, le lien est la graphie tracée-lue)
5.
As questões
Frente ao material, pode-se começar a trabalhar, isto é: enunciar e seriar as
questões possíveis > fazer a escolha das questões científicas que escolhemos
fazer > a partir dessas questões estabelecer um projeto > a partir desse projeto
estabelecer um programa de trabalho.
Se insisto muito sobre esse caminho que, sem dúvida, lhes parecerá obvio, é
porque perante arquivos e manuscritos somos confrontados a imprevistos que nem
sempre podemos controlar; por exemplo, um conjunto de manuscritos preciosos mas
muito danificados ou ilegíveis (Meillet no IMEC), um inédito que abala o que
sabemos sobre um discurso peculiar bem conhecido, a falta de uma peça do
4Benveniste faz esse desenho na sua aula no Colégio da França (Aula 15), em 24 de março de 1969.
5A escritura é uma fala convertida pela mão em signos falantes. A mão e a fala estão na invenção da
escritura. A mão prolonga a fala. O sistema primário voz (a boca)-ouvido tem como relê o sistema secundário mão (a inscrição)-olho. A mão tem o papel de emissor ao traçar as letras, e o olho torna-se receptor ao coletar os rastros escritos. Entre a boca e o ouvido, a relação é a fonia emitida-ouvida (a inscrição) e o olho, a relação é a grafia traçada-lida.
quebra-cabeça que não permite induzir de forma suficiente a gênese de um
texto…etc.
Se, então, perante esse material,podemos usufruir de uma descoberta, de um
achado, também dependemos das condições específicas da materialidade dos
arquivos, de sua acessibilidade, de sua legibilidade.
A metodologia de análise
A genética textual tem seu próprio método de análise com algumas regras e
parâmetros que se encontram em toda análise desse tipo, qualquer que seja o
gênero ou o tipo de texto: a constituição de um ―dossiê genético‖, isto é, o inventário
e a classificação cronológica das peças, análise das modificações de uma versão
para outra.
Em função dos casos, e da orientação disciplinar do geneticista,serão
enfocadas as transformações concernentes ao conteúdo do texto e à sua forma
(abordagem literária) ou, mais exaustivamente, as formas linguísticas de
reformulação (abordagem linguística) salientando, no seu papel para a
recomposição infinita do texto, as quatro operações que sustentam qualquer
modificação: acréscimo, supressão, substituição, deslocamento.
Veremos que, para o geneticista linguista que se propõe examinar um
manuscrito de linguista, esse último caminho tem a característica de uma dupla
dimensão de cunho meta:
- olhar linguístico sobre os rastros do processo de escritura = recomposição
enunciativa;
- olhar de linguista sobre a elaboração do discurso linguístico e a formulação em ato
de conceitos onde se conjugam, de certa forma, genética textual, análise linguística
enunciativa e análise o discurso.
Para retomar a expressão de Carlo Ginzburg, parece necessário ter uma
abordagem ―combinando o telescópio e o microscópio‖6. É assim que concebo o
método de investigação genética: um olhar ao mesmo tempo telescópico e
microscópico para poder conjugar curiosidade arriscada, de modo ―benevolente‖ no
sentido psicanalítico, e curiosidade orientada, isto é, informada e de certo modo pré-
forma, afastando uma estratégia consciente e rígida, mas informada do conjunto de
6Mitos, Emblemas, Sinais.Companhia dasLetras, 2007.
uma obra. Então, dentro desse amplo espectro de luz, um/uns objetos precisos
podem ser definidos, convocando uma análise formal e codificada.
Obviamente, assim, a tarefa não está facilitada.
Enquanto à focalização enunciativa, os rastros multiformes do processo de
elaboração textual, que encontramos num manuscrito, constituem uma via para
entender como funciona, durante o gesto psíquico de escritura, a solicitação do
sistema da língua. Em outros termos, o que interessa ao linguista geneticista é
enxergar um pouco melhor como se elabora a enunciação escrita dentro de um
processo de textualização.
Cada correção recomeça o texto e recomeça a sua estrutura e, a cada estado
de uma versão, será preciso desconstruir e reconstruir para entender o que está
acontecendo.
1. Abordagem fenomenológico do processo de escritura: os rastros
Utilizo ―fenomenológico‖ de propósito para, de certa forma, mostrar os limites
do empreendimento. Esse termo caracteriza uma atitude que procura a
compreensão de um fenômeno pelo exame de suas manifestações acessíveis à
percepção. Ora, que seja claro. Ao observar os manuscritos, temos acesso somente
aos rastos deixados no suporte. Podemos deduzir certos fenômenos, mas não
sabemos tudo da escritura em ato, nem do escriptor que está escrevendo. Os
rastros são somente testemunhos. Aqui, lhes remeto aos belos textos de Carlo
Ginzburg publicados pela Companhia das Letras: O fio e os rastros. Verdadeiro,
falso, fictício (2007) e Mitos, Emblemas, Sinais (1989). No entanto, os rastros são
irreversíveis e irrevocáveis. O fato de serem irrevocáveis os torna mais fáceis de
serem analisados, mas o fato de serem irreversíveis torna mais difícil de analisar a
textualização: podemos imaginar que rasurar, por exemplo, torna reversível o ato de
ter enunciado essa palavra, essa frase, esse fragmento, mas, pelo contrário, a
rasura mostra ainda mais e torna mais complexa o remanejo enunciativo.
1.1. Escolha de corpus
Escolher um corpus de trabalho, de modo geral, não é fácil. Trata-se de
uma etapa em que a meta científica, isto é, a questão colocada no início, deve
compor com um conjunto de componentes e limites que não dependem, ou pouco
dependem, do pesquisador: material disponível, método de investigação, trabalhos
anteriores, etc.
Coloca-se a questão do estatuto dos arquivos disponíveis: tornar-se-ão
rascunhos de algum texto? Assim, o problema que surge com os manuscritos sobre
a linguagem poética de Benveniste, sem texto (projeto de arte ou ensaio? Confere o
fólio onde está mencionado ―ensaio‖).
As questões científicas podem ser diversas. Somente para o acervo
Benveniste, me fiz várias perguntas e, a cada uma delas, o corpus deve ser
adaptado:
- Quando quis examinar a gênese de um artigo específico, escolhi ―O aparelho
formal da enunciação‖, o texto fundador com dossiê completo.
- Quando quis estudar o papel das notas em relação aos rascunhos, tive de
trabalhar com vários dossiês correspondentes a diferentes artigos.
- Quando quis refletir sobre a ―conceitualização‖ linguística e os traços linguísticos
que o processo de escritura teórica solicita, um único dossiê rico (―a linguagem e
a experiência humana) foi suficiente no início, mas sei que não é suficiente como
comprovação e que o corpus deve ser ampliado.
Contudo, permanece uma questão geral, que procuro resolver passo a passo,
com todas as análises que realizo, e que poderei realizar com material de outros
autores além de Benveniste, e que é a seguinte: será que observar o modo de um
científico, neste caso um linguista, formular sua teoria – e logo os conceitos que a
sustentam – permite compreender o processo de escritura linguística? Em outros
termos, será que recolher os rastros de textualização do discurso científico e
analisá-los – de forma linguística – pode permitir compreender como se constrói um
discurso linguístico e exumar os marcos distintivos e constitutivos? Constatamos que
minha interrogação é linguística: utilizo a metodologia genética, solicito a informação
histórica, até sociológica para compreender o linguístico.
Algumas palavras sobre o acervo Benveniste no qual embaso minha reflexão.
Antes de 2005 nenhuma abordagem genética havia sido feito sobre acervos
de linguistas. Exceto, obviamente, os numerosos trabalhos sobre os manuscritos de
Saussure, mas se constata que estes, na maioria (não todos) têm como finalidade a
edição de texto. Da mesma forma, são explorados os manuscritos de Guillaume mas
o objetivo é unicamente editorial, logo para o estabelecimento de um texto final.
Os linguistas geneticistas, até agora, haviam-se interessado só pela gênese
enunciativa em geral, utilizando unicamente corpora de rascunhos de escritores. O
campo constituído pelo discurso teórico linguístico em si permanecia virgem de
qualquer abordagem.
Essa abordagem, hoje, é efetiva e desenvolvida pela equipe ―Génétique et
Théories Linguistiques‖ do ITEM, à qual pertencem geneticistas, historiadores da
linguística e linguistas curiosos para compreender a construção de um discurso
teórico e a elaboração de noções e conceitos.
O Acervo Benveniste é um acervo prototípico. Emile Benveniste nasce em 27
de maio de 1902 em Alep, na Síria, e morre em 3 de outubro de 1976 em Versailles
em consequência de um derrame ocorrido em 1969. Ele lega, a título particular, seus
papeis à Biblioteca nacional da França que deverá catalogá-los. O acervo é muito
rico e contém notas de Benveniste, de estudantes, tomadas nas aulas de Meillet por
exemplo, até as últimas notas de preparação de suas aulas no Colégio de França.
1.2. Constituição de dossiês = reconstituição de um processo e de uma cronologia de escritura (dimensão macro)
Está claro que, se pensamos que essa experiência deve ser feita, precisamos
encontrar o corpus adequado, isto é um ―manuscrito‖ no sentido amplo do termo, um
prototexto, no sentido genético do termo, qualquer que seja a ―forma‖. O que é um
prototexto? É um espaço materializado de trabalho, um conjunto de suportes de
rastros de elaboração de um texto dado que será dito ―final‖.
Jean Bellemin-Noël foi o primeiro a definir essa noção, em dois momentos.
Num primeiro momento, definiu-o como ―o conjunto constituído pelos rascunhos,
manuscritos, provas, ―variantes‖, vistos sob ângulo do que antecede materialmente
uma obra quando esta é tratada como texto, e que pode fazer sistema com ele.‖7Em
um segundo momento, incluíra, na compreensão dessa noção, o trabalho crítico do
pesquisador que, de um conjunto empírico de documento, faz um ―dossiê‖ de
elementos significativos e ordenados. O prototexto torna-se ―algo construído […] que
não existe em nenhum lugar fora do discurso crítico que o produz.‖8 O conjunto
informal de documentos, cuja especificidade é essencialmente temporal, adquire
então um estatuto científico: a hipótese de uma ordem genética está proposta e
irásustentar uma interpretação do processo de escritura do texto. O que é uma
7Le texte et l’avant-texte, 1972, p.15.
8―Reproduzir o manuscrito, apresentar os rascunhos, estabelecer um prototexto‖, in Manuscrítica n°4,
p. 127.
―ordem genética‖? Trata-se do ordenamento cronológico dos rastros dos diferentes
estados de escritura desde o ―primeiro jorro‖ até o texto final.
O dossiê genético é o agrupamento – se não real, pelo menos virtual- de tudo
o que é possível encontrar para a constituição de um prototexto; isso compreende os
manuscritos correspondentes à obra estudada mas também, às vezes, a
correspondência ou ainda todo saber atestado, acompanhado de documentos ou
não, concernentes à gênese da obra: notas de todo tipo, planos, rastros de
planificações organizacionais ou temporais.
O prototexto provém de uma operação de ordenamento crítico cujos
elementos são visíveis. Comporta o conjunto dos documentos classificados e
elucidados. Os manuscritos são transcritos, colocados em sequência cronológica e
todos os outros saberes ou documentos são postos dentro de um conjunto
interpretável. Em outras palavras, o dossiê de gênese é a matéria prima na sua
versão bruta, o prototexto é uma produção elaborada. A primeira etapa consiste em
assumir a reconstituição de um percurso cronológico dos documentos que compõem
o prototexto (―genética textual‖), a segunda em oferecer uma representação do
processo de textualização no intuito de poder interpretar o processo de criação da
obra (o que entrará na crítica genética).
Realizar esse tipo de trabalho sobre manuscritos de linguistas – corpora
incomuns – é muito novo em genética do texto. Atualmente, me apoio num único
autor, e cabe-me, assim como a outros pesquisadores interessados, continuar o
estudo na base comparativa de um corpus multi-autores. O acervo Benveniste da
BnF, que hoje é praticamente o único, após o de Saussure, a ser explorado por
alguns linguistas, é de grande pertinência para a questão colocada.
De fato, estamos confrontados a, pelo menos, três gêneros de escritura
científica: a escritura de artigo, a escritura de comunicação científica em Congresso,
a escritura própria à preparação de aula (nesse caso aula no EPHE9 e no Collège de
France), sem contar as cadernetas de trabalho e de observação para a descrição de
línguas, das mais raras às mais conhecidas e sem contar a correspondência.
1.3. Reconstituir o habitus de escritura e o papel das diferentes etapas de elaboração.
9Escola Prática dos Altos Estudos.
Um estudo dos próprios arquivos permitiu identificar os documentos presentes
relativos aos artigos publicados no PLG.10 Não tenho tempo, aqui, de mostrar o
quadro desse trabalho mas é muito importante. Muito mais que um simples
levantamento, permitiu estabelecer os habitus de trabalho do linguista, tanto para a
escritura de um artigo quanto para a elaboração de uma aula.
De fato, a reiteração de uma mesma sequência de elementos manuscritos e
de documentos para a preparação de comunicações, ou a escritura de artigos,
permite imaginar como Benveniste escrevia. Podemos notar, sobretudo, que
Benveniste nunca dispensava ―notas‖, numerosas, sobre diversos suportes, às
vezes repetitivas ou, como já mostrei (2009a), ruminantes. A observação dessas
notas é essencial para entender a elaboração escritural e permite analisar a
passagem das notas para o rascunho que permanece um momento essencial para a
textualização teórica.
Assim, para a escritura de um artigo, conseguimos cada vez reunir
praticamente os mesmos elementos disseminados em diferentes caixas ou pastas:
notas manuscritas, 11 depois um rascunho manuscrito às vezes seguido de
passagem a limpo manuscrito com instruções de editoração, muitas vezes um
datiloscrito com cópia carbono, algumas vezes um ou vários jogos de provas.
Papeis contrastados das notas e do rascunho
Conseguimos revelar o papel das notas iniciais muito importantes para
Benveniste. Apresento um rápido percurso e os remeto ao artigo que explora essa
pista.
A nota como suporte de interrogação metodológica do linguista.
Uma nota encontrada nos papeis de Benveniste relativos ao artigo ―o
aparelho formal da enunciação‖12 é típica da interrogação colocada pelo linguista no
início de seu trabalho : ƒ° 501
10
Problemas de Linguística Geral. 11
Designo por ―nota‖ notas de trabalho, isto é, toda formulação inscrita por Emile Benveniste e entrando, de uma forma ou outra, no processo de escritura do artigo. Não se trata de notas exógenas, são notas endógenas, tomadas, ou retomadas, no movimento de trabalho que constitui a escritura científica. Essas notas de trabalho apresentam-se sob diversas formas: nota de referência, reflexão abreviada, fragmento muito redigido e sobre qualquer tipo de suporte: verso de carta, convite, pequena folha de caderneta, grande folha solta, etc. Às vezes aparecem em folha única ou em várias folhas seguidas. 12
Os papeis concernentes a esse artigo dividem-se em 4 envelopes. O dossiê genético que foi possível reconstituir a partir do acervo da BnF, apresenta-se da seguinte forma:
― le langage a été exclusivement étudié hors contexte. Mais qu‘on songe à l‘énorme profusion d‘énonciation en situation dans l‘emploi du langage. Comment décrire cela? Comment faire?‖
13
Parece que nesse caso a nota tem o papel de uma busca da problemática.
Aqui, vemos que a ênfase está na dificuldade de ―descrever‖, função maior da
escritura linguística. E, particularmente para Benveniste, para quem sabe-se que a
reflexão teórica apoia-se num conhecimento preciso de numerosas línguas
diferentes e numa rigorosa descrição do funcionamento destas.
No ―Aparelho formal da enunciação‖, ele abre uma questão teórica nova,
sobre a qual esperamos sua posição e temos realmente a impressão de que a
acentuação lírica expressa uma angústia perante a tarefa que ele se propõe. Trata-
se, nessa nota, de uma pergunta que ele faz a si-próprio, um início de reflexão
inquieto e perplexo. Essa interrogação não se encontrará no rascunho, a fortiori no
texto do artigo. Trata-se de uma tomada de consciência pessoal da tarefa a cumprir:
1) 3 cartas de Tzvetan Todorov a E. Benveniste (PAP OR boîte 53, ENV 223, ƒ°134 a &39):
comando, orientações e reflexões na origem da escritura do artigo. 2) Notas (PAP OR boîte 51, Env 198, ƒ° 478 a 521 + ƒ° 526) 3) Rascunho (PAP OR Boîte 51, Env 198, ƒ°452 a 477 + 496 a 500) 4) Datiloscrito relido (PAP OR boîte 53, Env 222, ƒ° 107 a 121) 5) Jogo completo de provas (PAP OR boîte 53, Env 223, ƒ°123 a 133)
13 ―A linguagem foi exclusivamente estudada fora de contexto. Mas pensemos à enorme profusão de
enunciação em situação no emprego da linguagem. Como descrever isso? Como fazer?‖
a identidade enunciativa do escriptor (quem escreve) da nota não tem o mesmo
estatuto que a do linguista que tomará o risco de aceitar o desafio escrevendo o
artigo.
A nota como suporte de memória
Parece evidente que a função das notas é de remeter à uma referência. É o
caso da nota do ƒ° 90 que está no dossiê correspondente ao artigo Semiologia da
língua 14 . Benveniste ilustra a necessidade de reportar-se a uma nota, o
funcionamento da nota na economia do artigo (consultar uma nota), a citação com
sua referência (―Mallarmé p.310‖, ―p.852 Ciência da linguagem‖), mas também um
comentário que explicita a sua importância: ―é a melhor definição‖.
A nota é muitas vezes um lugar onde inscreve-se a proposta demonstrativa a
seguir, o plano. Assim, a nota (ƒ°96) do artigo ―Semiologia da língua‖ em que está
notado o plano que será conservado no rascunho (ƒ°24)
14Os papeis relativos a esse artigo se dividem em três envelopes. Eis o dossiê genético que foi
possível reconstituir a partir do acervo da BnF: 1) Notas manuscritas (PAP OR 49, env. 221,ƒ°87 a 105) 2) Rascunhos manuscritos 1° parte: (PAP OR 53, env.117, ƒ° 2 a 19)
2° parte: (PAP OR 49, env. 221,ƒ° 20 a 86) 3) Datiloscritos (PAP OR 49, env.221, ƒ° 1 a 53) 4) Provas da parte II do artigo Semiótica II (PAP OR 45,env.163, ƒ°2a 9)
e que reencontramos quase inalterado no artigo publicado:
―Um sistema semiótico se caracteriza: 1° por seu modo operatório, 2° por seu campo de validade, 3° pela natureza e o número de seus signos, 4° pelo seu tipo de funcionamento.‖ (PLG 2,51-52)
A nota como espaço de teste de uma noção
- Explicitação antes apropriação de uma referência
Eis a nota do ƒ° 506 para a escritura do artigo ―O aparelho formal da enunciação‖
que não será retomada nem no rascunho nem no artigo:
―Le phatique est à inclure dans le pragmatique. _____ C‘est l‘utilisation du langage en vue d‘établir un contact <humain>hors du rapport de connaissance normal. Embarras dont on cherche à sortir par une attitude d‘exploration bienveillante.‖
15
Benveniste, após ter lido Malinowski, retoma para si-próprio a noção, e
experimenta uma definição. Esse trabalho de reformulação sobre as notas
possibilita-lhe, em seguida, na etapa do rascunho, integrar a referência a
Malinowski, assim como a citação traduzida, de forma muito mais fácil. A referência
impõe-se, enquanto que, nas notas, a noção foi descoberta e testada.
- Explicitação de uma noção em criação
Irei limitar-me a dar a ver essa nota. Para quem conhece esse famoso artigo
de Benveniste ―O aparelho formal da enunciação‖, verá, notadamente no ƒ° 486, a
extraordinária ênfase que adquire essa explicitação da noção que ele busca
formalizar.
15 “O fático é para ser incluído no pragmático. É a utilização da linguagem visando estabelecer um
contato <humano> fora da relação de conhecimento normal. Desconforto do qual se procura sair com uma atitude de exploração benevolente.‖
« Enonciation (appareil formel)
Il faut bien distinguer ce qui est nécessaire de ce qui ne l‘est pas. Ce qui est nécessaire, ce sont les instruments de l‘appropriation : pronoms personnels, index, temps du verbe. Ce qui n‘est pas nécessaire, ce sont les emplois <éléments> qu‘on pourrait trouver pareils dans les structures non énonciatives.
Du moins est-ce une première approximation. En réalité s‘il y a des degrés ou des distinctions à observer, ce sont des degrés dans l‘aperception que nous avons de l‘appareil nécessaire à l‘énonciation.
En réalité c‘est un changement, - non, pas un changement dans la matière même de la langue. Un changement <plus subtil, plus profond> du fait qu‘elle est mise en mouvement, que quelqu‘un s‘en est emparé et qu‘elle la meut, la met en action, que cet appareil qui gisait, potentiel, mais inerte, consistant en signes d‘un côté (signes lexicaux et autres), en modèles flexionnels et syntaxiques de l‘autre <s‘anime soudain, devient soudain actuel> prend soudain existence delangue se forme en discours restituant autour de lui un monde vivant. Quelque chose naît au monde alors. Un homme s‘exprime (lat. exprimere, faire sortir en pressant, faire jaillir à l‘extérieur), il fait jaillir la langue dans l‘énonciation.»
16
E preciso salientar a repetição da palavra ―de repente‖: ―se anima de repente‖,
―torna-se de repente atual‖, ―passa a existir de repente‖. A nota está, de fato,
presente para domesticar, ao explicitá-la, a ideia nova que está sendo elaborada. É
preciso desdobrar as palavras que a inscrevem para ter certeza de entendê-las bem
e aceitar todas as implicações, e saborear as implicações ideológicas: ―Então algo
nasce para o mundo. Um homem expressa-se, faz jorrar a língua na enunciação.‖ O
―vivo‖ do homem é a fala.
- Notas como suporte de reflexão abandonada
No seu artigo ―Observações sobre a função da linguagem na descoberta
freudiana‖ (PLG 1), Benveniste manifesta claramente sua apreciação positiva sobre
os trabalhos de Freud e sua descoberta do inconsciente. Sua crítica não concerne a
esse ponto essencial. De fato, ele indica que a descoberta freudiana não está em
contradição com seus próprios avanços teóricos mas que, além disso, ela faz
aparecer o efeito incontornável da fala que diz, que age, que expõe a subjetividade.
16
―Enunciação (aparelho formal) é preciso distinguir o que é necessário e o que não é. O que é necessário são os instrumentos da apropriação: pronomes pessoais, index, tempos do verbo. O que não é necessário, são os empregos <elementos> que poderíamos encontrar iguais nas estruturas não enunciativas. Pelo menos é uma primeira aproximação. Em realidade se há graus ou distinções a observar, são graus na percepção que temos do aparelho necessário à enunciação. Em realidade é uma mudança, - não, não uma mudança na própria matéria da língua. Uma mudança <mais sutil, mais profunda> pelo fato dela ser posto em movimento, de alguém tomá-la e que ela movê-la, colocá-la em ação, que esse aparelho em espera, potencial, mas inerte, consistia em signos, de um lado, (signos lexicais e outros), em modelos flexionais e sintáticos do outro <se anima de repente, torna-se de repente atual> passa a existir de repente de língua se forma em discurso restituindo a seu redor um mundo vivo. Então algo nasce para o mundo. Um homem expressa-se (lat. exprimere, fazer sair exprimindo, fazer jorrar fora), faz jorrar a língua na enunciação.‖
Ora, se olharmos a nota transcrita mais adiante17, constatamos uma mudança
considerável: entre esta nota e o texto final, Benveniste passou do que pode
aparecer como um contra-senso da teoria freudiana para uma compreensão fina do
papel da linguagem na teoria psicanalítica.
« Le rôle du langage en psychanalyse _________________ La psychanalyse aspire à se donner un statut scientifique. De thérapeutique qu‘elle est, elle
veut devenir une discipline de l‘esprit. A-t-elle ce Comment peut-elle y parvenir ? La position situation naturelle de l‘explication en psych. Notion de cause remplacée par celle de motivation. Développer La conséquence est que la psycha. se de tient tout entière dans une verbalisation Mais alors intervient quelque chose de très particulier. Ce n‘est pas le langage, mais à
travers et presque malgré le langage que le psychanalyste doit ressaisir la trame de la
motivation qu‘il s‘emploie lentement à reconstituer Le langage est ici non celui des linguistes mais celui de l‘interaction subjective moyen de
s‘exprimer et de sentir et d‘influencer l‘autre, une irradiation passionnée et menteuse une fascination intense où l‘être se dérobe autant qu‘il se manifeste.
L‘erreur de Freud est de chercher dans l‘histoire des langues — collective, norme sociale — le reflet de ces tentations individuelles. Exemple de ces erreurs, que dénonce le langage étudié par les linguistes. »
18
Nessas notas, uma fronteira estanque e opositiva é instituída entre a
psicanálise e a linguística; no texto do artigo, a fronteira entre ambas as disciplinas
é, de fato, mantida mas sem oposição, muito pelo contrário.
Todo o ―erro‖, se assim posso expressar-me, de Benveniste, inscrita nessa
nota encontra-se concentrada na expressão ―apesar da linguagem‖ que não será
conservada no artigo.
A nota como lugar de formação do pensamento teórico
17
Trata-se dos fólios 367 e 368 encadernados no volume 1 da caixa 29 do acervo da BnF. Os dois fólios são duas folhas soltas de formato pequeno. 18―O papel da linguagem na psicanálise
A psicanálise aspira a dar um estatuto científico. De terapêutica que é, quer se tornar uma disciplina do espirito. Tem-ela Como pode conseguir? A posição situação natural da explicação em psic. Noção de causa substituir pela de motivação. Desenvolver A consequência é que a psic. se co cabe inteira numa verbalização
Mas então intervém algo muito peculiar. Não é a linguagem, mas através e quase apesar da
linguagem que o psicanalista deve retomar o fio da motivação que, lentamente, ele vai reconstituir.
A linguagem, aqui, não é a dos linguistas mas a da interação subjetiva meio de expressar-se e sentir e influenciar o outro, uma irradiação apaixonada e mentirosa um fascínio intenso onde o ser escapa-se tanto quanto manifesta-se. O erro de Freud é de procurar na história das línguas – coletiva, norma social – o reflexo dessas tentações individuais. Exemplo desses erros, que denuncia a linguagem estudada pelos linguistas‖
- Ruminações enunciativas
Benveniste rumina19 nas notas: às vezes diversas ―versões‖ da mesma nota,
do conteúdo da mesma nota, depois uma escritura cursiva de um só lance, ou
quase, da teorização enunciada. Contrariamente ao que poderíamos pensar ao
olhar o ―rascunho‖ (conjunto de um só lance redacional) não se trata em absoluto de
escritura espontânea, mas de uma escritura ruminada, várias vezes enunciada nas
notas para redundar em um enunciado cursivo que faz sentido e que será ―parado‖
provisoriamente no rascunho, e depois, definitivamente, no texto publicado. Não é
raro, no conjunto dos dossiês consultados, ver o conteúdo de uma nota retomado
em vários fólios. Nesse sentido, Benveniste expõe no seu fazer, a ideia que defende
segundo a qual o pensamento não existe anteriormente à linguagem que o
expressa e mais precisamente ―que a ideia só encontra forma em um agenciamento
sintagmático.‖20
Isso é distinto também do ―primeiro jorro‖ aludido por certos escritores
literários: primeiro jorro, magma, barro a ser modelado, que muitas vezes é um
espaço de escritura em contínuo, sem espaço reflexivo onde trata-se sobretudo de
deixar vir as palavras tais quais se apresentam. O que se encontra nas notas é uma
escritura hesitante, repetitiva, pensante onde a repetição é a marca, ao mesmo
tempo, da hesitação e da insistência. Hesitação para continuar a buscar a
formulação a mais adequada. Insistente pois o pensamento está presente e constrói
seu caminho com palavras.
- Busca da formulação teórica
A organização das palavras da formulação teórica a mais adequada é em
geral muito visível quando se passa das notas para o rascunho.
- Hesitações conceituais
Ao lado das ruminações, das explicações, encontramos, nas notas de
Benveniste, hesitações marcadas entre dois ou três conceitos, mais exatamente,
talvez, entre diferentes nominações de conceitos. Essas hesitações indicam, então,
as dificuldades da invenção, as dificuldades próprias à criação teórica. Essas
19Utilizo o temo ―ruminar‖ de propósito pois designa, segundo Le Robert ―repassar algo no seu
espirito, submeter várias vezes à atenção.‖ 20―O homem na língua‖, Problemas de linguística Geral II.
hesitações são às vezes mantidas das notas para o rascunho, às vezes são pouco
aparentes, tais quais, nas notas: a configuração do discurso não é propício a fazê-
las aparecer, são visíveis no rascunho como nesta página do rascunho de ―O
aparelho formal da enunciação‖ (ƒ°456), onde a substituição de ―discurso‖ à ―fala‖
não pode passar desapercebida.
« Ici apparaît le<Le mécanisme de cette production> est un <autre> aspect majeur du même problème. L‘énonciation suppose la conversion individuelle de la langue en parole<discours>. Ici la question – très difficile et peu étudiée encore – est de voir comment le „ sens ― se forme en „ mots ―, et dans quelle mesure on peut distinguer entre les deux notions et dans quels termes leur interaction. C‘est la sémantisation de la langue qui est au centre de cette aspect de l‘énonciation, et elle conduit »
21.
Partimos de uma constatação elementar, mas muito instrutiva: Benveniste,
para quase todos os dossiês que podemos consultar na BnF, guardou suas notas.
Mesmo após a redação do artigo, as notas são conservadas. Por quê? Uma razão
prática se impõe: as reflexões, clarificações, referências registradas nas notas
podiam servir à escritura de outro artigo, essa prática pode ser atestada na
observação dos arquivos.
21 “Aqui aparece<O mecanismo dessa produção> é um <outro> aspecto maior do mesmo problema.
A enunciação supõe a conversão individual da língua em fala<discurso>. Aqui a questão – muito difícil e ainda pouco estudada – é ver como o sentido‖ se forma em palavras‖, e em qual medida pode-se distinguir entre ambas as noções e em quais termos sua interação. É a semantização da língua que está no centro desta aspecto da enunciação, e o conduz.‖
Mas não é suficiente. A escritura segura e cursiva dos rascunhos poder-nos-ia
induzir a pensar que as notas, uma vez recuperadas na escritura do rascunho, são
inúteis. Por que as guarda? Porque é o lugar onde ele pensa, reflete, organiza,
informa-se. Trata-se de um espaço estratégico onde a ideia se estabelece, toma
lugar e forma, onde o pensamento nasce porque se escreve.
A partir de um avanço de seu pensamento cumulativo ele procura, graças a
notas às vezes ruminantes, às vezes progressivas, a melhor formulação possível do
―problema‖ em questão. O rascunho é geralmente escrito de um só jorro, num
mesmo conjunto de folhas que se seguem e são numeradas no mesmo tempo por
Benveniste.
No processo de escritura do artigo, o mais interessante é a passagem entre
notas e rascunho. Como se, após as notas, ou mais exatamente na retomada
redacional das notas, tudo se escrevesse ao mesmo tempo sintética e
progressivamente. O lugar heurístico, do ponto de vista da formação das noções,
logo, do ponto de vista, da conceitualização, é o espaço da escritura das notas. O
gesto de escritura que acontece é rico de todos os componentes, de todo gesto de
escritura: o gesto físico-suporte engaja um movimento cognitivo e mental de
escritura assim como a atenção psíquica do sujeito escrevendo. Parece-me que se
acrescenta a esta misteriosa configuração habitual de todo gesto de escritura, a
insistência enunciativa, que raramente é ―estagnação‖, mas que é avanço de
reformulações, de reenunciações de fórmulas, de hesitações repetidas
(fala/discurso). Esse conjunto de formas enunciativas ao mesmo tempo
determinadas, insistentes mas ainda moduláveis, encarregam-se da circulação do
pensamento teórico, e, finalmente, irão conseguir promovê-la (isto é no texto final),
como avanço conceitual.
Nas notas, Benveniste pensa-escreve: ele cria, inova ou se documenta, abre
seu ―problema‖ para o mundo e apresenta suas observações e seus espantos. No
rascunho, ele formula, teoriza. Em outras palavras, nas notas, ele pensa e rumina
para circunscrever seu objeto e encontrar a expressão de seus conceitos; no
rascunho, ele está no objetivo direto da escritura teórica expondo seu objeto para os
outros linguistas e teóricos da linguagem. Este objeto deve fazer sua disciplina
avançar em relação a seus precursores e mestres, isto é, Saussure. Benveniste
procura então a expressão mais apropriada em função do leitor de seu artigo. No
espaço-tempo das notas ele pensa; no espaço-tempo do rascunho, ele escreve para
a leitura dos outros.
É bem possível que haja, aí, uma especificidade da escritura científica em
relação à escritura literária onde os arrependimentos os mais significativos estão
dentro dos rascunhos. Para o escritor de ficção, a nota é um lembrete ou um ensaio
de palavra, títulos, ―formulas‖: não deixar escapar o espontâneo subjetivo ou, ao
contrário, fixar uma referência, citação, etc. Para o científico, a nota é ao mesmo
tempo lugar e material de reflexão, uma etapa de criação: o espaço-tempo da
invenção do pensamento.
Se considerarmos o objetivo comunicável, a publicação do artigo e a
circulação deste no campo da comunidade linguística, trata-se de escrito que
podemos qualificar de efêmero posto que não está destinado a circular. Mas se
considerarmos o texto final – o artigo – no qual as notas são parte integrante, essas
notas são um escrito intermediário, certamente, ligando potencialidades de criação
teórica e produção de seu texto publicado, mas um escrito intermediário que não é
simples mediação. As notas de trabalho, tais quais funcionam para Benveniste
constituem o lugar de inovação científica. Não se trata de um esboço do
pensamento, mas de uma inscrição de pensamento que ao mesmo tempo em que
está sendo enunciado, se cria. O pensamento inscreve-se porque a escritura é
pensante e porque o pensamento não preexiste a sua expressão linguageira, como
diz com insistência o próprio Benveniste.
1.4 Analisar as operações de escritura e os processos enunciativos (dimensão micro)
A análise dos manuscritos passa pela observação rigorosa de tudo o que
neles acontece e pelo levantamento idealmente exaustivo de todos os rastros.
Há, de um lado, as operações gráficas: rasuras, riscos, acréscimos na
margem, acréscimos interlineares, sobrecargas que se apresentam sob todos os
tipos de formas e há, de outro lado, as operações de modificações enunciativas:
acréscimos, supressões, substituições.
Essa distinção é muito importante pois é o resultado de dois pontos de vista
diferentes: um ponto de vista semiótico: como se apresenta tal rascunho, qual a
semiósis de tal autor (seu estilo semiótico) e como se recompõe,a cada
modificação, a economia enunciativa, isto é, a linearidade textual.
Depuis que deux génies antithétiques, Peirce et Saussure, <ont>dans la pleine ignorance<en complète> ignorance l‘un de l‘autre et à peu près<environ> dans le même temps 2, conçu la possibilité d‘une science des sciences signes et retravaillé à l‘instaurer, un grand
problème a surgi dans la toujours insistant qu‘il n‘a jamais été abordé de front ni même <qu‘il n‘a pas encore été> posé clairement<qui n‘a pas encore pris< qui n‘a pas encore reçu sa forme précise, n‘ayant même pas été posé clairement, parce dans la confusion qui règne sur ce domaine>> : quelle est la place de la langue parmi les systèmes de signes ?
22
Semiósis dos grafos: vemos as diferentes formas de rasuras, acréscimos
(diferentes formas de <> marcando o lugar), os acréscimos dentro de acréscimo
anterior, as chamadas de notas, os sublinhados.
Operações de modificações enunciativas: aqui essencialmente acréscimo e,
sobretudo, substituição, algumas supressões. Não tenho tempo agora, mas podem
ver quão interessante seria olhar de perto a recomposição enunciativa: Benveniste,
ele que escreve facilmente, esbara numa dificuldade, hesita pois, a questão que
coloca e que permanece desde o primeiro jorro, é a questão que lhe permitirá
avançar depois de Saussure, é uma meta importante pare ele.
22 Desde que dois gênios antitéticos, Pierce e Saussure, <tiveram>em pleno desconhecimento<em
completo> desconhecimento um do outro e mais ou menos<quase> no mesmo tempo2, concebido a
possibilidade de uma ciência das ciências signos e retrabalhado na sua instauração, um grande problema surgiu na sempre insistindo que nunca foi abordado de frente nem mesmo <que ainda não foi>colocado de forma clara<que ainda não tomou <que ainda não recebeu sua forma precisa, nem tem sido claramente exposto, porque na confusão que reina nesse campo>>: qual o lugar da língua dentre os sistemas de signos?
II. Gênese da escritura de invenção
II.1. Gênese do discurso linguístico
Quando circula-se dentro da obra de um autor, é relativamente simples
constatar que seu discurso evolui. Foi assim que Mathieu Valette fez a gênese dos
conceitos em Gustave Guillaume. É verdade que os textos publicados informam
suficientemente para dizer pelo menos qual foi o caminho abertamente aceito pelo
autor. Mas a observação genética traz-nos muito mais: confronta-nos a coisas
deixadas de lado, a emergências abortadas, a retomadas mais ou menos distantes
de formulações, de reflexões que dizem muito sobre o processo de elaboração de
um discurso.
Assim, a noção de ―aparelho formal‖, em Benveniste, circula muito antes da
escritura de ―O aparelho formal da enunciação‖, mas permanecerá escondida nos
rascunhos. Voltarei ao assunto. O linguista deixa aparecer nos seus ―rascunhos‖
todas as solicitações metodológicas pelas quais ele passa e as prescrições, ou
mesmo, as injunções resultantes, visando a finalização de seu discurso.
Da mesma forma, sua concepção da enunciação, se é oriunda de sua própria
concepção da linguagem, tornar-se-á mais precisa à medida que outros conceitos
chave, estritamente linguísticos, serão formulados: tais os conceitos acoplados
semiótico/semântico sobre os quais vamos prosseguir.
II. 2. Tipologia de traços específicos da escritura linguística e segundo os gêneros de escritura
Tomarei o exemplo da forma de ele tratar diferentemente, em discurso, nas
suas notas e rascunhos, um mesmo conteúdo conceitual: o par semiótico/semântico
pelo qual, depois de Saussure, ele avança e sobre o qual ele apoia a enunciação,
conforme se prepara a dar uma aula no Collège de France (1968) ou a comunicar no
primeiro Simpósio de Varsóvia (1968), ou se escreve seu artigo ―Semiologia da
língua‖ (1969). Muito explícito em sua comunicação no simpósio: o expõe e enfrenta
seus pares, (o objeto e título de sua comunicação é exatamente esse conjunto), ele
se corrige muito no rascunho (após as notas) para encontrar a melhor formulação
que ficará escrita e será publicada, já no Curso, ele usa essa invenção para precisar
outra questão, a da relação entre escritura e língua, tema deste curso. Mas, ao olhar
somente as primeiras frases no quadro, vemos que a enunciação é variável em
função dos gêneros23:
Notes pour la contribution au
Symposium de Varsovie : « La
distinction entre le sémiotique et
le sémantique » (f° 113 -116)
Août 1968
Brouillon de l’article
« Sémiologie de la langue »
(f° 69-71)
1968-1969 (année pub°)
Notes pour le Cours au Collège
de France
(f° 188 et 190)
1968-1969
Le sémantique se rapporte à
l’ordre de signification qui est
engendré par le discours, par
l’effectuation de l’acte de parole
qui pose un univers, des êtres, des
rapports entre eux, qui s’applique à
une description, qui a donc une
fonction de convoyance ou mieux,
laisse voir un procès à travers lui-
même, et tout cela est dessiné,
effectué par un assemblage de
mots. Il instaure un univers du
discours.
Le sémiotique, au contraire, n’a
rien que à transmettre, à faire voir
que lui-même <de signe,
discontinu, unité, pure identité à
soi-même, pure altérité à tout
autre>. Mais il est le mématériau
de toute énonciation, la condition
<première> du sémantique.
…Le sémiotiquese rapporte au
mode de signifiance propre au
signe pris en lui-même du fait que
à lui seul <et à l’état isolé> il
évoque à l’esprit un signifié : arbre
– chanson - <tomber laver> - nerf
– froid<cirque barque> - sur (et
non : *orbre - *vanson - *raver
*laner - *derf - *birque *tur) qu’il
a valeur référentielle par rapport à
d’autres signes <voisins de forme
signification> (sabre : sobre ou
sabre : sable ou sabre : labre) ou
voisin de signifié (sabre : épée
sabre : fusil) ; il faut composer une
unité complexe : sabre d’abordage
– sabre de cavalerie.
Le dépassement des positions
saussuriennes se fait par deux voies
Dans La langue rassemble
combine deux modes distincts de
signifiance, que nous appelons le
mode sémiotique d’une part,le
mode sémantique de l’autre.
Le sémiotique désigne le mode de
signifiance qui est propre au
signe linguistiqueoù il est pris
entièrement> comme unité <à deux
faces et dissociable> indivisible,
bivalente.C’estUnité il est, unité il
reste. La seule question qu’il
susciteCeet qui en est la et qui le
constitue comme unité. On peut,
pour les besoins de l’analyse,
considérer séparément ses deux
faces, mais dans sous le rapport de
la signifiance, unité il, unité il
reste. La seule question qu’il
suscite pour se légitimer est celle
de son existence, et celle-ci se
décide par oui ou non. Avec le
sémantique, nous entrons dans le
mode <spécifique > de
signifiance qui est engendré par
le discours. Les problèmes qui se
posent ici sont fonction de la
langue comme productrice de
messages.
…
En deuxième lieu, le
sémantiqueprend nécessairement
en charge l’ensemble des référents,
qui dans<tandis que>le sémiotique
est par principe retranché et
indépendant <de toute
référence>. Le sémantique
s’identifie au monde de
l’énonciation et à l’univers du
discours.
Notre propos était d’étudier la
langue, puis son rapport avec
l’écriture, pour voir comment l’un
et l’autre signifiaient (opéraient
une signification à l’aide d’un
système de distinctions
représentatives et constantes).
Or nous voici devant cette
constatation : la langue et l’écriture
signifient exactement de la même
manière : nature de distinction,
axes sémiotiques et axes
sémantiques.
…
Les systèmes bi-sématiques
consistant en une base de signes
différentiels, combinés/ables aux
fins de l’expression de la pensée.
Ici il y a un code de la combinaison
pour qu’elle devienne signifiante à
partir des unités de bases/e qui sont
elles-mêmes sémiotiques. Cela
revient à distinguer le sémiotique
et la réalisation sémantique du
discours
23
A finalização desse trabalho é legível no artigo de Valentina Chepiga, Yoshilitsu Guchi, Irène
Fenoglio e Julie Lefèbvre “Três tipos discursivos para uma única problemática teórica – o par conceitual „semiótico/semântico‟ nos manuscritos de Emile Benveniste”, no site:http://www.shs-
conferences.org/index.php?option=com_article&access=doi&doi=10.1051/shsconf/20120100133&Itemid=129
intérieurement au langage par
l’ouverture d’une nouvelle posi
dimension,la dimension
sémantique, par rapport à laquelle
la dimension saussurienne se
définira comme sémiotique.
Il faut ici combattre l’idée –
illusoire – qu’on peut passer du
signe au discours par simple
addition. Le processus additif est
une metabasis linguistique et
logique. Il y a contradiction entre
la notion de signe, qui implique
comme on l’a vu, l’unité – et celle
de la phrase qui n’existe que par la
successivité. On ne peut pas passer
du signe au discours par une
transition continue. Entre les deux
il y a un hiatus ; on rompt avec le
signe linguistique dès qu’on passe
à l’étude des énoncés, des
productions de discours ou de
textes.
Dès lors comme nous avons
spécifié pour le signe un appareil
de définitions qui caractérisent et
résument le plan<l’ordre
du>sémiotique, de même il faudra
nécessairement, pour la phrase ou
le discours, créer un appareil
distinct et élaborer un appareil
différent de définitions : c’est ce
que nous proposons d’appeler le
sémantique.
No campo das pesquisas atuais sobre o discurso científico, há um estatuto
privilegiado para o gênero emblemático do artigo. Ora, a especificidade da genética
textual aí se encaixa: a abertura dos ‖papeis‖ permite ampliar os tipos de escritos.
Todos têm um papel, uma particularidade do ponto de vista do gênero do processo
de escritura, mas o resultado é, de qualquer forma, uma complexidade maior logo
uma riqueza maior.
II.3. Tipologia dos traços estilísticos autorais dentro dos traços específicos à escritura linguística
Quando fiz a análise do artigo ―A linguagem e a experiência humana‖, listei
sistematicamente o modo de Benveniste avançar na conceitualização do termo
natural ―experiência‖. Pude abrir três categorias, cujas fronteiras, obviamente, não
são estanques mas que me permitiram enquadrar as observações dispersas no
decorrer da análise. Essas categorias possibilitam uma tipologia dos traços
específicos da escritura linguística e dos traços específicos da escritura de
Benveniste. Para os detalhes, lhes remeto à minha comunicação no CMLF 24
(online), proponho somente a estrutura encontrada.
1- Processos escriturais (mais ou menos controlados) e redacionais
- Apontar o termo que é meta teórica (sublinhando ou com aspas ou itálico)
- Circunscrever a determinação dos termos utilizados para a construção
teórica, primeiro passo para uma definição: encontramos um léxico
apropriado à determinação: ―significar‖, ―definir‖ e o uso de particípios
marcando o acontecido.
- Buscar expressões equivalentes substitutivas da expressão discutida no
artigo: uso de paradigmas: ―experiência
vivida/própria/humana/relatada/consciente e descrita/implicada‖. Essa etapa
está listada duas vezes na nossa análise, em outros termos, está reiterada.
Está marcada ao e no mesmo tempo pela insistência e a hesitação. É o lugar
de trabalho o mais intenso, o lugar de pensamento o mais criativo.
- Definir enfim: graças à locução ―nãose trata de […]mas pelo contrário‖ e
do acréscimo de uma proposta determinativa do termo a definir ―a experiência
que constitui…‖.
2- Processos programáticos (controlados)
- Enunciar um programa de operações metodológicas para utilização de
infinitivos marcando a injunção;
- Diferenciar as tarefas, métodos, pontos de vista sobre um mesmo objeto
linguístico com um léxicoapropriado: substantivos (―tarefa‖, ―abordagem‖),
verbos (―abordar‖, ―deter-se a ‖, ―tomar‖), advérbios (―como‖);
- Desfazer-se do “hábito” ―maneira habitual‖, ―negligenciar por hábito‖;
- Hesitações metodológicas: hesitações entre uma tarefa programática (―não
se trata de descrever a experiência […] mas pelo contrário de não descrevê-la
24Congrès Mondial de Linguistique Française.
somente…‖) e a designação do objeto de observação (não se trata da
experiência consciente […] mas muito pelo contrário da experiência
implicada‖). O uso de ―se trata/não se trata‖ também se impõe aqui.
- Enunciar firmemente sua tarefa: uso de litote ―tentamos aqui esclarecer duas
categorias…” onde nota-se a presencia incontornável do adverbio aqui.
3- Posicionamento epistémico do autor
- Marcar seu lugar particular de autor a partir de uma herança comum;
- Situar-se como autor dentro de uma comunidade: uso de pronomes da primeira
pessoa do plural; nós/nosso/nossos inclusivos;
- Marcar a tarefa particular do autor, dentro da comunidade pelo uso de formas
impessoais com irrupção de um nós excludente (―nós tentamos aqui esclarecer
duas categorias…‖);
- Marcar sua opção teórica singular dentro de uma comunidade.
Podemos ver que essas categorias possibilitam uma primeira classificação
dos marcadores linguísticos de operações e encontram nosso ponto anterior sobre
os traços relativos à escritura linguística. Mas, outras identificações do mesmo tipo,
sobre outros autores, permitirão revelar os traços específicos de um autor, ou seja,
palavras, seus traços estilísticos. Assim, notamos que o quê chamamos de
―processos programáticos‖ situa-se quase exclusivamente no início da fase de
escritura, o que não é surpreendente; contudo, é interessante notar que se trata,
certamente de um traço específico do procedimento científico. Mas, o traço que
consiste em usar sistematicamente (nos rascunhos) a expressão ―não se trata de …
mas de…), nos parece ser um traço de Benveniste que define, sempre primeiro em
negativo, seu próprio caminho (não se trata de) antes de defini-lo na oposição (mas
de), assim o define duas vezes e satisfaz sua exigência de rigor mas também, antes
de indicar sua posição científica (―trata-se de‖), ele expõe a posição científica
anterior (―não se trata de‖ sempre vem primeiro) a partir da qual ele reflete e avança.
III. Gênese de noções e conceitos linguísticos
f° 55 des notes pour le Symposium de Varsovie
De là – du sémantique – procède finalement l‘unité conceptuelle appelée "signe" qui est l‘unité sémiotique.
C‘est le discours, la langue en exercice, en répétition, en récurrence, qui aboutit à la formation des signes, chargés de signifier, qui sont les corrélats linguistiques des concepts.
III.1. Gênese de conceitos autorais dentro de um escrito (noção de experiência humana) Uma noção ou um conceito é discurso e só pode ser identificado dentro de
um discurso teórico. Eis o estudo sistemático que pude fazer no dossiê do artigo
correspondente a ―A linguagem e a experiência humana‖, sobre a formação do
conceito de ―experiência‖: de palavra ―normal‖ torna-se um conceito designando a
expressão linguística do tempo e da pessoa. Não posso me deter, passo o primeiro
ponto, a organização da noção no incipit e mostro rapidamente a evolução da
palavra ―experiência‖ dentro de um discurso teórico.
1. O incipit do artigo: gênese da emergência de uma noção e do posicionamento epistémico de um autor
1.1 As notas 1.2 Os rascunhos: duas versões em B1 e uma passagem a limpo em B2 2. A noção de ―experiência‖: premissas de uma teoria da enunciação 2.1 Instalação difícil 2.2 Papel dos determinantes 2.3 Hesitações redacionais e achados
―aparelho formal‖, presente no rascunho de ―a linguagem e a experiência humana‖,
não permanecerá no texto mas voltará de forma assumida e como proposição
teórica, cinco anos depois, com o artigo fundador ―O parelho formal da enunciação‖.
É um achado como outros preciosos (hesitação entre fala e discurso ou entre língua
e linguagem). É preciso ―coletar sistematicamente esses pequenos discernimentos‖
segundo a expressão de Carlo Ginzburg que retoma de Horace Walpole o
neologismo serendipity para designar ―as descobertas imprevistas, frutos do acaso e
da inteligência‖.25
III.2. Gênese de conceitos autorais dentro de uma obra (noção de “aparelho
formal”)
25Carlos Ginzburg, Mitos, Emblemas, Sinais.
Ao trabalhar sobre o dossiê genético de ―A linguagem e a experiência
humana‖, encontrei esse achado: no rascunho 1 (ƒ° 515) aparece ligado à noção de
experiência a expressão ―aparelho formal‖:
De toutes les formes d’expérience inhérentes
au langage et que l’analyse d/les langues
révèlent <reflètent> toutes, aucune n’est
aussi riche que celle du temps ; aucune n’est
aussi difficile à reconnaître et à décrire.
C’est celle qui semble d’accès
immédiatement à l’analyse, et celle qui se
dérobe le plus malignement à
l’appréhension. On la croit directement
saisissable et <éludant toute saisie directe>
elle se cache dans un appareil formel qui la
dissimule plutôt qu’il ne la démontre.
Acreditei, por um tempo, que essa aparição no B1, não retomada no B2 e no
texto final, era a primeira aparição (1965) da expressão ―aparelho formal‖, do título
do famoso artigo (1970). Mas, de fato, há algumas ocorrências. Em 1959, já
encontramos a expressão ―aparelho formal do discurso‖ no artigo publicado ―As
relações de tempos no verbo francês‖ (PLG1) cujos rascunhos ainda não vi:
« Le plan historique de l‘énonciation se reconnaît à ce qu‘il impose une délimitation
particulière aux deux catégories verbales du temps et de la personne prises ensembles … L‘historien ne dira jamais je ni tu, ni ici, ni maintenant, parce qu‘il n‘empruntera jamais l‟appareil formel du discours, qui consiste d‘abord dans la relation de personne je :tu. On ne constatera donc dans le récit historique strictement poursuivi que des formes de « 3
e
personne »
Em 1967, dois anos depois de ―A linguagem e a experiência humana‖ e três
anos antes de ―O aparelho formal da enunciação‖, ele usa a expressão ―aparelho
formal‖ no artigo ―Fundamentos sintáticos da composição nominal‖ (PLG 2):
La langue n‘est pas un répertoire immobile que chaque locuteur n‘aurait qu‘à mobiliser aux fins de son expression propre. Elle est en elle-même le lieu d‘un travail incessant qui agit sur l‟appareil formel, transforme ses catégories et produit des classes nouvelles. »
Então, ele usa o termo ―aparelho formal‖ em artigos de ―detalhes‖, se ouso
dizer, e não em artigos de envergadura teórica, isso significa que, para ele, o termo
é bem definido e operatório.
Está claro que, a gênese dessa expressão, em Benveniste, ainda deve ser
feita e, certamente, será muito interessante.
III.3. Gênese cultural de conceitos por transmissão e recepção (noção de enunciação) Isso ainda deve ser feito? Pistas foram abertas no volume que será lançado
em breve, dirigido por Emilie Brunet e Rudolf Maher, intitulado Relire Benveniste.
Réceptionsactuellesdesproblèmesde linguistiquegénérale.
A expressão ―teoria da enunciação‖ seria de Bally. Pessoalmente, ainda não
fiz esse trabalho, mas está claro que a abertura de acervos de outras linguistas
enriquecerá, mais do que se pensa, as perspectivas; com rascunhos, certamente,
mas também com a correspondência: exemplo de Valelia Muni Toke, na
correspondência entre Pichon e Tesnières, um rascunho de carta em que uma longa
reflexão interessante não foi retomada na carta efetivamente enviada (cópia carbono
conservada).
Ela se deu conta do interesse desse rascunho somente quando lhe pedi para
apresentar-nos essa correspondência.
Conclusão
Existe, de fato, uma perspectiva tripla a partir do corpus Benveniste.
Além de estudos monográficos sobre Benveniste, que têm suas necessidades
próprias: compreender o desenvolvimento do pensamento do linguista; os resultados
obtidos devem imperativamente ser confrontados com outros estudos análogos
sobre corpora de outros autores-linguistas.
O acervo Benveniste é um polinizador que impulsiona a abertura de outros
acervos pela conjunção do linguístico, da genética e do editorial.
Isso representa uma verdadeira meta para as ciências da linguagem e para
as ciências humanas. O simples fato de abri-lo transcende a acervo próprio e
particular que representa e incita a abertura de outros acervos para uma observação
e uma análise genética e para propor outras orientações e questionamentos que
podem se apoiar sobre os resultados genéticos, mas que ultrapassam o descritivo,
tão sutil seja.
A interrogação sobre os manuscritos não é, como poderíamos pensar,
somente de ordem metodológica. Seu fundamento é teórico: a visibilidade da
elaboração conceitual por e dentro da carne da escritura (palavras, frases, discurso,
mas também, o discurso que está se fabricando, rasuras, retomadas,
deslocamentos) seria de natureza a modificar a compreensão das noções e
conceitos apresentados no discurso teórico publicado?
Emergência da questão de autoria dos autores em ciências humanas. Se ―o
escrito mantém visíveis os elementos constitutivos […] de um discurso muito além
do instante de sua enunciação‖ (Hébrard Lidil 1983, 71), pode-se acrescentar que o
―rascunho‖ mantém, para sempre, as enunciações, as não-hesitações ou pontos
certos, as confusões, as insistências que enquadram, e nutrem de dentro, a
produção de um enunciado aplainado, legível.
O manuscrito arquiva o gesto psíquico de escritura. Abrir, observar e analisar
os manuscritos em geral e os linguísticos em particular (a ferramenta de observação
é de mesma natureza que o objeto de investigação) opera um tipo de revolução
epistemológica: os rascunhos não são mais sujeiras a esconder, mas são o
arquivamento rico, a estratificação arqueológica do pensamento refletido, em ato.
Não se pode esconder as rasuras, é preciso conservá-las e analisá-las.
Isso implica também uma argumentação sustentada por provas (no sentido
jurídico e científico: materialidades tangíveis, cronologia identificável…) contra a
visada exclusivamente cognitiva que não faz hipótese, mas afirma que o
pensamentoé anterior à expressão verbal e que modela a priori a passagem desse
pensamento já presente para sua materialização em linguagem.
Encontra-se também nos manuscritos a emoção dos pesquisadores. Termino
com essa notatocante, pois revela um Benveniste lutando contra sua própria
emoção de pesquisador, com o entusiasmo da curiosidade e da descoberta,
surpreso perante a banalidade, de repente misteriosa, que o levaa fazer uma
verificação etimológica do termo latim que lhe veio em mente: ―lat. Exprimere‖,
verificação, que, obviamente, não aparece no texto finalizado.
PAP. OR. 51, Env. 198, f°486
En réalité c’est un changement, non, pas un
changement dans la matière même de la langue. Un
changement <plus subtil, plus profond> du fait qu’elle
est mise en mouvement, que quelqu’un s’en est
emparé et qu’elle la meut, la met en action, que cet
appareil qui gisait, potentiel, mais inerte, consistant en
signes d’un côté (signes lexicaux et autres), en
modèles flexionnels et syntaxiques de l’autre
<s’anime soudain devient soudain actuel> prend
soudain existence <se forme en discours restituant
autour de lui un mouvement vivant> ; de langue.
Quelque chose naît au monde alors. Un homme
s’exprime (lat. exprimere “faire sortir en pressant,
faire jaillir à l’extérieur”), il fait jaillir la langue dans
l’énonciation
É preciso notar a repetição da palavra ―de repente‖: ―anima-se de repente‖,
―torna-se de repente atual‖, ―toma de repente existência‖. A nota está de fato
presente para domesticar, explicitando-a, a ideia nova que se elabora. É preciso
desenrolar as palavras que a inscrevem para ter certeza de compreendê-la bem e
aceitar todas as suas implicações, de saborear as consequências ideológicas: ―algo
nasce para o mundo então. Um homem expressa-se, faz jorrar a língua na
enunciação‖. O ―vivo‖ do homem é a fala.
Pode-se medir, aí, ao ler essa nota, a profundidade da linguística de
Benveniste, sua dimensão antropológica: além da descrição do funcionamento da
língua, há a descoberta, a surpresa, a compreensão metafísica do que é a
linguagem para o humano.
Mas, pode-se entender, também, a energia presente no manuscrito e que
será transmitida ao texto que dele nascerá. O texto, forçosamente, irá edulcorá-la,
civilizá-la, aplainá-la, ocultá-la. No entanto, o manuscrito dá-la a ver.
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