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Marçal de Souza – Foto: Arquivo Cimi ISSN 0102-0625 Ano XXXVI • N 0 360 • Brasília-DF • Novembro 2013 – R$ 5,00 MARÇAL DE SOUZA PRESENTE! 30 anos após o assassinato impune do Pequeno deus Tupã’i, os povos indígenas brasileiros continuam sujeitos à violência desmedida. Sua vida e sua morte alimentam a resistência e a luta para a conquista definitiva dos direitos e da terra, especialmente no Mato Grosso do Sul. Assembleia do Cimi reafirma luta pela terra como prioridade Páginas 4 e 5 Agricultores denunciam ações da elite ruralista no RS Página 12 Páginas 8 e 9

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Em defesa da causa indígenaAno XXXVI • N0 360 • Brasília-DF • Novembro 2013 – R$ 5,00

MARÇAL DE SOUZA

PRESENTE!30 anos após o assassinato impune do

Pequeno deus Tupã’i, os povos indígenas brasileiros continuam sujeitos à

violência desmedida. Sua vida e sua morte alimentam a resistência e a luta para a conquista definitiva dos direitos

e da terra, especialmente no Mato Grosso do Sul.

Assembleia do Cimi reafirma luta pela terra como prioridade

Páginas 4 e 5

Agricultores denunciam ações da elite ruralista no RS

Página 12

Páginas 8 e 9

2Novembro–2013

Ataques aos direitos indígenas seguem, mas não sem resistência

Porantinadas

Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada a fonte. As matérias assinadas são de responsabilidade de seus autores.

ISSN

010

2-06

25

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Publicação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo vinculado à Conferência

Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

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Na língua da nação indígena Sateré-Mawé, PORANTIM

significa remo, arma, memória.

Dom Erwin Kräutler Presidente do Cimi

Emília AltiniVice-Presidente do Cimi

Cleber César BuzattoSecretário Executivo do Cimi

REPORTAGEM:Ruy Sposati (MS) e J. Rosha (AM)

ADMINISTRAÇÃO:Marline Dassoler Buzatto

SELEÇÃO DE FOTOS:Aida Cruz

Fotos: Arquivo Cimi

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA:Licurgo S. Botelho (61) 3034-6279

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REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO:SDS - Ed. Venâncio III, sala 310 CEP 70.393-902 - Brasília-DF

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EDITORESRenato Santana – RP: 57074/SPPatrícia Bonilha – RP: 28339/SP

CONSELHO DE REDAÇÃOAntônio C. Queiroz, Benedito Prezia, Egon D. Heck, Nello Ruffaldi, Paulo Guimarães,

Paulo Suess, Marcy Picanço, Saulo Feitosa, Roberto Liebgot, Elizabeth Amarante Rondon e

Lúcia Helena Rangel

Opinião

Cleber César Buzatto, Secretário Executivo do Cimi

etores político-econômicos an-tiindígenas continuam buscando desconstruir os direitos historica-mente conquistados pelos povos

originários. Os indígenas, por sua vez, intensificaram a reação frente ao ataque sofrido e vêm construindo um processo de luta em defesa e pela efetivação de seus direitos e projetos de vida de maneira altiva, permanente e radical.

Em todas as regiões do Brasil e no chamado “centro do poder”, em Brasília, muitas têm sido as manifestações pro-tagonizadas pelos povos. Por meio de retomadas, auto demarcações, bloqueios de rodovias e ferrovias, ocupações de espaços públicos, inclusive do Plenário da Câmara Federal e do Palácio do Pla-nalto, presença assídua em gabinetes de parlamentares, órgãos públicos, visitas aos ministros do Supremo Tribunal Fe-deral (STF), dentre outras iniciativas, os indígenas chamam atenção e denunciam, às autoridades e à sociedade em geral, o ataque que estão sofrendo por forças econômicas, especialmente vinculadas ao velho latifúndio brasileiro.

Todo este movimento elevou a ques-tão indígena ao patamar de uma das pautas políticas centrais em debate no Brasil. O tema é tratado cotidianamente em diferentes instâncias dos três poderes do Estado brasileiro, além de ter alcan-çado expressiva repercussão nacional e internacional.

No entanto, os povos não afastaram os riscos de reveses e retrocessos contra seus direitos. Em relação à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/00, as chances do texto ser considerado ‘incons-titucional’ pelo STF são bem significativas. Por outro lado, aumentam as possibilida-des do ataque aos direitos indígenas ser efetivado, de forma especial, por meio da regulamentação do parágrafo 6º do Artigo 231 da Constituição. Ao menos quatro Projetos de Lei Complementar (PLP) tramitam nessa direção, sendo o PLP 227/12 um deles.

Esta iniciativa parlamentar articula interesses econômicos que vão muito além daqueles almejados estritamente

S

Direto ao ponto“A demora em demarcar defi-

nitivamente nossas terras resulta anualmente em mais mortes para meu povo. Para piorar, nos últimos anos, o governo vem negociando nossos direitos, principalmente os territoriais. Minha vida está ameaçada, assim como os povos indígenas no Brasil, porque o Es-tado brasileiro vem se mostrando incapaz no que há de mais básico numa democracia: o cumprimento de sua própria Constituição” - fala de Genito Gomes Guarani Kaiowá em audiência na Comissão Intera-mericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Ameri-canos (OEA).

Surto TFPÉ chocante como a elite ruralista

brasileira não tem pudor em defen-der suas bandeiras provincianas e anacrônicas. Panfletos e adesivos assinados por um grupo intitulado “Confisco Não!” e distribuídos no Mato Grosso do Sul neste mês de novembro parecem ter sido feitos há 50 anos. Com o slogan “Pelo direito à propriedade - O Brasil que produz reage” - que não deixa claro que seja o que for que produzam, não se trata de alimentos para a popu-lação -, conclamou “republicanos, liberais, (...), empresários, militares (...), maçons” a dar um “basta ao marxismo cultural”. Como assim, cara pálida?

Armados até os dentesE tendo como inspiração a fra-

se “Índio bom é índio morto”, os ruralistas anunciam a realização de um ato político histórico: o leilão da resistência! A partir da doação de cabeças de gado OP (de Origem Pura, galinhas e grãos, pretende-se arrecadar recursos para contratar “seguranças” e... pasmen: “defender a paz no campo”. O presidente da Associação de Criadores de Mato Grosso do Sul (Acrissul), Chico Maia, disse: “novos confrontos estão por vir e algo precisa ser feito para evitar novas mortes”. Claro, afinal, para evitar a violência, nada melhor do que comprar muitos, muitos, muitos armamentos e investir em milícia!

MARIOSAN

pela bancada ruralista, envolvendo se-tores ligados à indústria da mineração, às empreiteiras, às empresas de energia, às Forças Armadas e o próprio governo, interessado em acelerar o seu modelo de “crescimento” econômico. A regulamenta-ção da mineração em terras indígenas, por meio do PL 1610/96, ganha musculatura nessa mesma toada.

O resultado do julgamento dos Em-bargos de Declaração da Petição 3388, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que considerou válidas as 19 condicionantes para o caso julgado, a Terra Indígena Ra-posa Serra do Sol, mas que descartou a existência de “efeito vinculante” das mes-mas em relação às demais terras indígenas do país, oferece forte argumento político e jurídico para o movimento indígena exigir, do Poder Executivo, a revogação da Portaria 303/12, da Advocacia Geral da União (AGU).

Concomitante, as declarações e ini-ciativas açodadas do ministro Luiz Inácio Adams, da Advocacia Geral da União (AGU), na perspectiva de validar a portaria, impõem ao movimento indígena a urgente tarefa de promover mobilizações e lutas contra a medida. Do contrário, corre-se grande e iminente risco do Poder Executi-vo estabelecer, de fato, o efeito vinculante negado, de direito, pelo Poder Judiciário em relação às ditas condicionantes.

Este embate, ao mesmo tempo, deve dar-se na perspectiva de afastar os riscos em torno da repetidamente anunciada mudança no rito de demarcação de ter-

ras indígenas, bem como, a fim de que o Poder Executivo retome as demarcações paralisadas em âmbito nacional.

O governo federal, por meio do minis-tro da Justiça, José Eduardo Cardozo, tem apostado todas as fichas nas denominadas “mesas de negociações”, onde busca apla-car os conflitos e ganhar tempo sem tomar as decisões que lhe são cobradas pelos povos indígenas. Esta é mais uma decisão politicamente equivocada, que não resol-ve os problemas e, ao empurrá-los “com a barriga”, fortalece as possibilidades de ocorrência e agravamento dos ataques e das violências contra os povos.

Na esteira disso tudo, o governo, especialmente por meio da Secretaria Geral da Presidência da República, con-tinua atuando na perspectiva de dividir povos e lideranças indígenas a fim de facilitar a implementação das obras de infraestrutura e geração de energia de in-teresse do capital sobre terras indígenas. O caso das hidrelétricas de Belo Monte e do Complexo do Tapajós seguem sendo emblemáticos neste sentido.

O abandono na área da atenção à saú-de indígena segue vitimando inúmeros in-dígenas país afora, especialmente crianças menores de cinco anos, cujo número de óbitos mostra-se assustador e revoltante.

O contexto político no Brasil continua extremamente adverso aos povos indíge-nas. As mobilizações dos povos seguem como um imperativo na defesa de suas vidas e pela efetivação de seus direitos constitucionalmente previstos. n

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Mesmo que retirados à força de suas terras tradicionais, as raízes dos povos indígenas seguem em seus territórios. Mesmo que hoje estejam tomados por fazendas de gado e monocultivo, seus antepassados lá estão enterrados ou lá morreram assassinados resistindo ao esbulho das terras sagradas, como prova o Relatório Figueiredo

Análise

Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

afirmação pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) de que “os artigos 231 e 232 da Constituição Federal constituem

um completo estatuto jurídico da causa indígena1”, e a posição doutrinária de que “a relação dos índios com suas terras e o reconhecimento de seus direitos origi-nários sobre elas nada mais fizeram do que consagrar e consolidar o indigenato, velha e tradicional instituição jurídica luso brasileira desde os tempos da Colônia2”, acaba por frear a ânsia insolente do agro-negócio sobre os direitos das populações indígenas.

Recentemente a Corte Suprema con-cluiu o julgamento relacionado à Terra Indígena Raposa Serra do Sol, iniciado no ano de 2009, sob a relatoria do ministro Roberto Barroso. Na decisão, definiu-se pela demarcação contínua, sendo a caracterização da área como terra indí-gena, para os fins dos art. 20, XI, e 231, da Constituição, tornando insubsistente eventuais pretensões possessórias ou dominiais de particulares.

Em ponto fundamental da decisão sobre os Embargos de Declaração, o senador Augusto Affonso Botelho Neto teve seu recurso desprovido. O embar-gante suscitou que a Fazenda Guanabara deveria ser excluída da área demarcada por ser de ocupação privada desde 1918, com domínio reconhecido por sentença proferida em ação discriminatória, tran-sitada em julgado em 1983.

Contudo, a Corte não acolheu a tese e não verificou qualquer vício. Ao contrário, a decisão destacou o caráter originário do direito dos índios, preponderante sobre quaisquer outros, assim definido no voto do Ministro Relator:

“Não verifico qualquer vício quanto ao ponto, que foi expressa e claramente examinado no acórdão embargado. Já em sua ementa, o julgado destacou o caráter originário do direito dos índios, que pre-ponderaria sobre quaisquer outros. Ob-servou-se, ainda, que a ‘tradicionalidade da posse nativa [...] não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocor-reu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das ‘fazendas’ situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da ‘Raposa Serra do Sol’”.

Ao analisar a Reclamação 13769/DF de autoria do município de Amarante do Maranhão (MA), propondo a suspensão dos estudos necessários à verificação de eventual equívoco na delimitação da Terra

Indígena Governador, demarcada em 1982, o ministro Ricardo Lewandowski negou medida liminar, observando que a decisão referente à Reserva Raposa Serra do Sol não diz respeito a qualquer outra área indígena demarcada. Lewandowski seguiu decisão do ministro Carlos Ayres Britto, ao censurar o cabimento de recla-mação análoga à examinada (Rcl 8.070/MS), referente à revisão dos limites da Terra Indígena Wawi.

Os Tribunais Regionais Federais têm seguido o entendimento do STF em diver-sos julgados, consolidando jurisprudência sobre o marco temporal da ocupação. Ao analisar recurso de pretensos proprie-tários da Terra Indígena Marãiwatsédé, dos Xavante do Mato Grosso, o Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF-1)3 assim decidiu:

“Pode-se até admitir a asserção de que não havia mais índios naquelas terras por ocasião da promulgação da Constituição Federal de 1988, mas não se pode negar a verdade de que isto se deu em razão da referida expulsão, urdi-da maliciosamente pelos dirigentes da Agropecuária Suiá-Missu, na década de sessenta. Talvez não houvesse índios na-quelas terras no ano de 1988, mas decerto que ainda havia a memória de seus ante-passados, traduzida no “sentido anímico

e psíquico de continuidade etnográfica”, no dizer do ministro Carlos Ayres Britto, no julgamento da Petição 3388 - Raposa Serra do Sol (RR).

Entretanto, mesmo após o julgamen-to dos embargos de declaração da Petição 3388/RR, quando os Ministros dos STF definiram que “a decisão proferida em ação popular é desprovida de força vin-culante, em sentido técnico” e que “os fundamentos adotados não se estendem, de forma automática, a outros processos que se discuta matéria similar”, o tema continua a gerar divergências.

Ao analisar o processo de demarcação da Terra Indígena Kayabi, na divisa dos estados do Mato Grosso e Pará, o minis-tro Luiz Fux atendeu pleito do estado de Mato Grosso, e liminarmente suspendeu o registro em cartório imobiliário da área demarcada pelo Decreto Presidencial de 24 de abril de 2013. O fundamento princi-pal do estado é o de que as terras objeto da demarcação não eram tradicionalmen-te ocupadas pelos Kayabi ao tempo da promulgação da Constituição de 1988. A antecipação de tutela foi deferida na ACO 2224, a ser referendada pelo Plenário.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que atua junto aos povos indígenas do Brasil há mais de 40 anos, tem com-preensão firme de que as demarcações

das terras indígenas com a consequente posse dos índios é medida essencial para por fim aos conflitos, garante segurança jurídica e é medida de justiça para com as populações originárias, historicamente massacradas pelos interesses colonialis-tas, que se renovam e se fundem com os interesses atuais do latifúndio.

A tese do marco temporal, no con-texto indígena, deve ser analisada com parcimônia, sob pena de negar o direito originário e inviabilizar as demarcações de terras indígenas por todo o país. No Mato Grosso do Sul, estado onde o con-flito fundiário faz mais vítimas no país, os Guarani e Kaiowá foram retirados, duran-te todo o século XX, de seus territórios e lançados em oito diminutas reservas, que hoje os mantêm em confinamento, ou jogados às margens de estradas. O mesmo ocorreu no Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Bahia e Mato Grosso, entre outros. Em 1988, a sanha colonizadora tinha garantido a expulsão de centenas de comunidades dos territórios tradicionais.

Mesmo que retirados à força das terras tradicionais, as raízes destes povos seguem em seus territórios, hoje tomados por fazendas de gado e monocultivo. Os antepassados lá estão enterrados ou lá morreram assassinados resistindo ao esbulho das terras sagradas, como prova o Relatório Figueiredo. A tese do marco temporal não pode se transformar em injustiça contra as populações originárias ou significar a desconstrução de direitos constitucionais. Não somente os povos indígenas perdem com ele, mas tam-bém a sociedade brasileira e a própria democracia.

Com alteridade, os indígenas exigem a garantia do Estado e da Justiça para que possam ocupar, conforme direitos constitucionais conquistados, suas terras tradicionais e restituir as próprias vidas em toda pluralidade conferida a elas.

Brasília, 12 de novembro de 2013

Marco temporal: o direito originário à terra tradicional ameaçado

1 Petição 3388/RR, relator Min. Ayres Britto.

2 (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Consti-tucional Positivo. Editora Malheiros, 18.ª edição, 2000, p.831).

3 2007.01.00.051031-1/MT.

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“A tese do marco temporal não pode se transformar em injustiça contra as populações originárias

ou significar a desconstrução de direitos constitucionais. Não

somente os povos indígenas perdem com ele, mas também a sociedade brasileira e a própria

democracia.

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4Novembro–2013

As prioridades definidas pela

Assembleia são: terra

e território como direito fundamental;

formação política e

metodológica; urbanização e

seus impactos; movimento

indígena e alianças

com setores comprometidos

na defesa da causa indígena por um Estado

Pluriétnico

XX Assembleia do Cimi

Assessoria de Comunicação Cimi

iante de uma conjuntura profícua em desafios aos povos indígenas, que seguem lutando por seus direitos e vidas, o Conselho

Indigenista Missionário (Cimi) realizou, entre os dias 4 e 8 de novembro, a sua XX Assembleia Geral. Com a presença de 120 missionários e missionárias, além de lideranças indígenas e convidados, o en-contro teve como tema “40 anos do Cimi: desafios e perspectivas na construção do Bem Viver”.

A XX Assembleia do Cimi buscou siste-matizar as contínuas avaliações e análises iniciadas em novembro do ano passado, durante o Congresso que comemorou os 40 anos da organização.

“O encontro acontece num contexto de grande ofensiva aos direitos dos povos indígenas pelo governo federal e bancada ruralista no Congresso Nacional. Este ano tem sido de grande resistência do movimento indígena e das organizações que os apoiam. Precisamos, então, olhar para o passado, agir no presente e nos preparar para o que virá em nossa decisão intransigente de se manter ao lado dos povos indígenas”, declarou o secretário executivo do Cimi, Cleber Buzatto.

Este olhar “mais para dentro” do Cimi atende a dimensões filosóficas, políticas, operacionais e subjetivas, em interface com a atual conjuntura. Também repre-senta uma oportunidade de significar a

perspectiva homogênea da sociedade envolvente ante os desafios e pluralidade da convivência comunitária e social dos povos, como nos ataques do projeto de-senvolvimentista do governo federal e do capital contra os territórios tradicionais, não apenas habitados pelos indígenas, mas quilombolas, pescadores, ribeirinhos, camponeses.

Carinho e repúdioDuas notas foram consensuadas pela

plenária da Assembleia. A primeira, com tom bastante carinhoso, foi enviada para Dom Tomas Balduíno, que foi internado em Goiânia durante os dias da reunião, e Dom Pedro Casaldáliga: “Sentimos muito a ausência de vocês, para partilhar sonhos, desafios e esperança. Porém tenham a certeza de que o testemunho profético e sabedoria partilhada, por décadas, com os povos indígenas e missionários estão e continuarão iluminando nossas vidas. Quando as sementes brotarem do chão, quando as flores enfeitarem os caminhos da justiça, quando a liberdade for realidade e não ficção, quando do coração da terra e do céu emanar a vida em plenitude, será então um novo dia, um novo horizonte da utopia, onde juntos vamos celebrar o Deus da Vida, no Bem Viver em plenitude”.

A segunda nota foi feita em repúdio às ameaças feitas pelo delegado da Polícia Federal do Mato Grosso do Sul, Alcídio de Souza Araújo, contra a comunidade Guarani Ñandeva do tekoha Yvy Katu

Desafios e perspectivas na construção do Bem Viver

Sede alegres na esperança, pacientes na tribulação e perseverantes na oração (Rm 12,12).

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), motivado pelas palavras de São Paulo aos Romanos, reuniu-se no Cen-tro de Formação Vicente Cañas, Luziânia (GO), de 4 a 8 de novembro, em sua XX Assembleia Geral, cujo lema: ‘Desafios e perspectivas na construção do Bem Viver’ foi matriz de reflexões para os cerca de 150 missionários, missionárias, colaboradores, lideranças indígenas, convidados e assesso-res. O encontro aprofundou análises realizadas há um ano, durante o Congresso dos 40 anos do Cimi, reflexivas à ação missionária e conjuntura latente e vindoura.

No apoio incondicional ao protagonismo e autodeter-minação dos povos indígenas, denunciamos os ataques e investidas contra os direitos à terra, o esbulho de territórios, a invasão, a violência, o racismo e a morte. Denunciamos e acusamos o governo federal de ser parte integrante desta ampla ofensiva antiindígena, alimentando com bilhões de reais o setor que melhor expressa a sanha colonizadora e opressora no campo brasileiro: o latifúndio desdobrado na rede do agronegócio e na bancada ruralista encastelada no Congresso Nacional. Há séculos a perspectiva latifundiária tem sido o ‘chicote’ que mantém a escravidão, a grilagem de terras e os assassinatos encomendados e que promove a devastação de recursos naturais e a concentração fundiária.

Este governo paralisou a demarcação de terras no país em troca de negociatas pré-eleitorais e, com isso, desrespeita a Constituição Federal e acordos internacionais, como a Con-venção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A todo custo, rasga territórios com usinas hidrelétricas sem consultar as comunidades afetadas, deixa morrer centenas de indígenas por enfermidades de fácil tratamento, mesmo com milhões destinados à saúde destes povos. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) continua apostando na terceirização de serviços de saúde, modelo comprovado pelas comunidades como ineficiente e corruptível. Ao mesmo tempo, amplia o aparelhamento político do sistema e responde às críticas com articulações que promovem a divisão do movimento indígena, especialmente no que se refere ao controle social.

A Presidência da República, por sua vez, mantém órgãos como a Advocacia-Geral da União (AGU) a serviço de interesses antiindígenas. Exemplo disso foi a edição da Portaria 303/2012 que visa estender para as demais terras indígenas as condicionantes da Raposa Serra do Sol (RR). É uma afronta à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Os ministros definiram, no julgamento da Petição 3388, que elas não são vinculantes, portanto, restritas ao caso concreto da Raposa Serra do Sol.

Acusamos o Poder Legislativo, dominado pelos ruralistas, em insistir com propostas de emendas à Constituição e leis complementares, projetos de lei e pronunciamentos racistas nas tribunas da Câmara e do Senado numa cruzada antiindí-

gena pela desconstrução do direito originário à terra. A PEC 215/2000, PEC 237/2013, o PLP 227/2012, PL 1610/1996, a Portaria Interministerial 419/2011 e o Decreto 7957/2013 são hoje perigos iminentes ao futuro da vida dos povos indíge-nas. Sem ouvir as comunidades e atendendo a interesses de grupos econômicos, tais medidas precisam ser arduamente combatidas e razão para a unidade do movimento indígena, fortalecimento dos povos e diálogo intercultural com os demais grupos e coletivos, que hoje se erguem no país e mundo na perspectiva da ‘desobediência civil’.

As ações do Estado refletem a etnofagia estatal como lógica de integração da pluralidade numa única perspectiva, o caráter uninacional e monocultural do Estado-nação e a visão única do atual modelo desenvolvimentista que privile-gia pequenos grupos em detrimento de outras perspectivas de vida plena. Nota-se o aprofundamento do pensamento racista ocidental, que não reconhece os povos originários e comunidades tradicionais como plenamente capazes de pensar e produzir conhecimento. Vivemos uma democra-cia colonialista e precisamos dar o giro descolonial. Nessa perspectiva, combatemos o projeto do atual governo que promove a reterritorialização do capital rumo, sobretudo, ao Centro-Oeste e Norte do país, tal como previa o governo militar nos anos 1970.

Se fortalece, todavia, a luta no rumo da ruptura sistê-mica - a pachakuti - e na conversão pessoal em combate à sociedade do crédito, da saída individualizada; ruptura e conversão têm dimensões sociais, políticas, éticas e eco-

“Se não nos deixarem sonhar, não os deixaremos dormir”DOCUMENTO FINAL DA XX ASSEMBLEIA GERAL DO CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO (CIMI)

(MS). Segundo denúncias do Conselho da Aty Guasu, Grande Assembleia Gua-rani, disponibilizadas nas redes sociais e informadas à imprensa, “Este senhor esteve na tarde do dia 6 de novembro, em área retomada de Yvy Katu, terra in-dígena declarada desde 2005, para uma tentativa, sem a presença de Oficial de Justiça, de reintegração de posse baseada em ameaças covardes, ilegais, racistas e ofensivas contra os direitos humanos e constitucionais. Os relatos preocupam. Quem é este cidadão, com tamanho poder, que atribui a si função conferida à Presi-dência da República, como a ameaça de uso do Exército para cumprir reintegração de posse?”, questiona a nota.

O delegado Alcídio frisou aos indíge-nas que na Justiça não existe Yvy Katu, mas existem propriedades. Seguiu, de acordo com as lideranças presentes, afirmando que “índios mortos não lutam mais” e que “o sonho acabou”, além de dizer: “Vocês índios vivos podem até cobrar um milhão de reais pela morte de índio do governo, mas quem morreu já morreu”.

Diante desse lamentável episódio, a Assembleia do Cimi afirmou: “... caso haja qualquer tipo de violência contra a comu-nidade de Yvy Katu, a responsabilidade será exclusiva do ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, por não reagir diante da postura inaceitável do delegado, e da pre-sidente da República, Dilma Rousseff, por deixar a comunidade exposta às violências sem a homologação da terra tradicional”.

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5 Novembro–2013

Sementes plantadas que alimentam o espírito da lutaA Assembleia do Cimi homenageou três pessoas que contribuíram imensamente

na história da entidade e que fizeram sua passagem nos últimos dois anos:

Antônio Jacó Brand“Era com ele que os Kaiowá Guarani

podiam contar a toda hora. Com seu vastíssimo e profundo conhecimento da luta e dos direitos dos povos, suas sábias sugestões e as informações precisas”, escreveu Egon Heck sobre o indigenista e historiador Antônio Brand, um abnegado lutador e amante da causa indígena, que faleceu no dia 3 de julho de 2012, no Rio Grande do Sul.

Brand foi Secretário Executivo do Cimi no pe-ríodo de 1983 a 1991, anos decisivos para os povos indígenas por conta da Assembleia Nacional Cons-tituinte. Sem dúvida, foi a pessoa chave do Cimi na conquista dos direitos indígenas na Constituição de 1988. Por este motivo, foi alvo de criminalizações, mas nunca abandonou a luta e os seus ideais. Esteve junto dos Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul,

estado em que residiu até a sua mor-te, por cerca de 30 anos. Pela Nação Guarani desprendeu grande esforço intelectual e de militância. Foi o fun-dador do Cimi neste estado.

Ultimamente lecionava no Depar-tamento de História da Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande (MS), orientando alunos no mestrado e doutorado e atuava no Grupo de Apoio

aos Povos Indígenas (Gapi) e à frente do Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas (NEP). “O Brasil todo perdeu com a morte precoce de Antô-nio, um homem que não só amava os povos indígenas, mas que se entregou de modo sincero e empenhado às suas causas, sempre com muita competência e profundidade”, afirmou Dom Erwin Krautler, por ocasião da sua morte.

Irmãzinha Geneviève Boyé “Ir aos esquecidos, aos des-

prezados, aos que a ninguém interessa”. Ancorada na espi-ritualidade de Charles de Fou-cauld e da Irmãzinha Madalena, fundadora da Fraternidade, Irmã Genoveva, a Veva Tapirapé, quis estar e esteve por 62 anos com os povos indígenas vivendo com estes “o amor de Deus para que sejam eles mesmos”. Chegou em 1952 da França, sua terra natal, quando os Tapirapé, reduzidos a apenas 47 pessoas, pareciam es-tar fadados ao desaparecimento.

Em cada roça plantada, em cada cauim partilhado, em cada eropema (peneira) trançada, Veva, a xaryja (avó para os Tapirapé), deu - junto com as outras irmãzinhas - testemunho de uma missionariedade diferente, tornou-se ventre fértil a gerar o novo modo de missão no meio dos povos indígenas, tendo, deste modo, influenciada na própria concepção do indige-nismo praticado pelo Cimi.

Sua identidade com os Tapirapé era tamanha que não se identificava mais fora da aldeia. Com seu

jeito simples, doce e acolhedor, estava sempre atenta às necessi-dades de todos. Profundamente respeitada pelos indígenas, era bastante corajosa e dedicada à espiritualidade. Conta-se que por duas vezes topou com onça nas roças, sem que nada de mal tivesse lhe ocorrido nessas ocasiões.

Tendo sempre vivido como o seu – escolhido – povo, cozi-nhava em fogão a lenha, tomava banho no rio, dormia em rede, morava em casa de adobe, cober-

ta com palha, compartilhava a comida nas refeições coletivas e ia de bicicleta cuidar das roças mais distantes. Como seu povo, esta semente-árvore foi plantada no dia 24 de setembro de 2013, em ritual Tapirapé, no chão da casa em que morava desde a década de 1990, quando retomaram seu território tradicional Urubu Branco. O fato de a população Tapirapé ter crescido para cerca de 800 pessoas pode ser considerado um dos frutos de seu amor e dedicação a este povo.

Fábio Alves dos SantosFigura bastante carismática e revo-

lucionária, Fábio, mais conhecido como Fabião, atuou como coordenador regio-nal do Cimi Nordeste entre os anos de 1978 e 1985, período em que contribuiu bastante para a organização dos povos indígenas daquela região e acompanhou vários processos de retomadas de ter-ras e, consequentes, conflitos – razão pela qual sofreu inúmeras ameaças e perseguições.

Sua vida foi recheada de acontecimentos inte-ressantes e inusitados. Certa vez, enquanto dava seu testemunho de missionário do Cimi durante uma ce-lebração dominical na catedral da Diocese de Propriá (SE), foi cercado por pistoleiros vinculados à família de Ayres Brito, que invadiram a igreja e tentaram tirá-lo de lá à força. No entanto, os fiéis presentes na

igreja o protegeram, impedindo a ação dos pistoleiros.

No final de 1985 mudou-se para Minas Gerais e assumiu a representação do escritório do Cimi Leste em Belo Horizonte, de onde acompanhou ainda várias lutas de terras como a do povo Xakriabá. No início dos anos de 1990 foi acometido por uma grave doença que o fez perder 90% da visão. Mesmo

com essa limitação passou a atuar como professor de direito da Pontífice Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG) e a advogar para vários grupos de luta pelo solo urbano e rural, como os sem teto, os quilombolas e outras organizações populares. No dia 21 de outubro de 2013 partiu, aos 58 anos, com muita serenidade e profunda confiança em Deus para a Pátria definitiva. n

Desafios e perspectivas na construção do Bem Viver

nômicas. A cidadania, destinada pelo atual modelo a expressar-se pelo consumo, precisa refletir o pluralismo histórico e afirmar as identidades dos povos indígenas, quilombolas, das comunidades tradicionais, campesinas e de outras populações do campo.

Durante a XX Assembleia, representantes indígenas manifesta-ram profundas preocupações diante de tais investidas contra seus direitos pelo Estado brasileiro, com brutal violência, assassinatos e criminalização. Ao refletirem sobre os setores que os oprimem, dizem que “se não nos deixarem sonhar, não os deixaremos dormir”. Com convicção, afirmaram que jamais renunciarão às suas terras. Ao mesmo tempo, sentem-se encorajados por todos aqueles que deram suas vidas na luta pelos seus direitos, por avanços conquistados e pela certeza de que jamais serão vencidos. Esperam continuar com o apoio solidário do Cimi e de mais aliados e amigos.

Atendendo a este chamamento dos povos indígenas, a XX As-sembleia Geral do Cimi definiu as suas prioridades de ação: terra e território como direito fundamental; formação política e metodo-lógica de missionários e indígenas; a urbanização e seus impactos sobre os povos e territórios; movimento indígena e alianças com setores comprometidos na defesa da causa indígena por um Estado Pluriétnico.

Com os povos indígenas, originários de todo continente, Abya Yala, com os quilombolas, populações tradicionais, campesinos, com os empobrecidos e oprimidos, queremos renovar nossa profunda convicção de que mesmo que neguem a vida, decepem as árvores, é da raiz invencível que brotarão flores e frutos, mel e leite, novos pro-jetos de sociedade, do Bem Viver defendido pelos povos ameríndios.

Luziânia (GO), 8 de novembro de 2013

Foto: Paulo Suess

6Novembro–2013

As mesas “de diálogo”

paralisaram os processos de demarcação

em todo o país, desrespeitando

o que consta na própria

Constituição Federal, tendo

como resultado o aumento

da violência contra os indígenas

Luta pela Terra

MPF pede investigação e comunidade aponta envolvimento de políticoPor Renato Santana,

de Brasília (DF)

om base nas denúncias sobre o assassinato de três indígenas da Terra Indígena Tupinambá de Oli-vença, sul da Bahia, o Ministério

Público Federal (MPF) de Ilhéus (BA) requi-sitou à Polícia Federal investigação acerca das mortes. De acordo com os procurado-res da República Ovídio Augusto Amoedo Machado e Tiago Modesto Rabelo, as informações dão conta de uma emboscada premeditada contra os Tupinambá, numa região de conflitos provocados pela inde-finição da demarcação da terra indígena.

A Polícia Federal trabalha com a hipóte-se de que os assassinatos tenham ocorrido depois de uma ‘briga de bar’ envolvendo as vítimas – contradizendo as suspeitas dos procuradores da República. Porém, para os Tupinambá, algumas questões não estão

respondidas e afirmam: há a participação de político contrário à demarcação da terra indígena na articulação da emboscada.

“Teve um fazendeiro que falou para a gente que três suspeitos (brancos) de terem participado da emboscada foram protegidos por esse político e que ele te-ria ajudado eles a fugir. A polícia prendeu apenas os três índios envolvidos, sendo um deles Lindomar Araújo Nascimen-to”, declara liderança Tupinambá – não identificada por motivos de segurança. No Boletim de Ocorrência 13-02068, re-gistrado na 7ª Coorpin do município de Una (BA), Lindomar aparece como o único réu, mesmo com a informação fornecida por testemunha da existência de mais participantes na emboscada.

Inicialmente se falava em quatro indi-víduos presentes nos assassinatos, mas os relatos de uma testemunha apontam para a participação de seis indivíduos, sendo

três índios e três brancos. Por que apenas os indígenas suspeitos foram detidos?, perguntam as lideranças. “A intenção parece que é de transformar o caso numa briga entre os indígenas. Acontece que sabemos que os ‘brancos’ que participa-ram têm relação com esse político, com policiais e fazendeiros insatisfeitos com as retomadas. Os três meninos mortos sem-pre estavam nas lutas do povo”, declara a liderança. Um dos ‘brancos’ envolvidos, de acordo com relatos, é chamado de ‘Erê’ e um conhecido pistoleiro da região.

O irmão de Erê, segundo os indígenas, teria sido abordado pela Polícia Federal, em 10 de novembro, portanto um rifle. Os policiais teriam apreendido apenas a arma. A suspeita é de que o rifle possa ter sido usado na emboscada. Um dos mortos, Aurino Calazans dos Santos, de 31 anos, que além dos tiros teve a cabeça quase decepada e o corpo com marcas de

tortura, de fato teria tido uma briga com Lindomar, semanas antes. Para os indíge-nas, porém, o fato teria sido usado pelo político para organizar a emboscada, pos-to que Lindomar mantinha estreita relação com os inimigos dos Tupinambá – ligados ao campo contrário às demarcações.

“Tem um lado de vingança, mas mani-pulado por quem não nos quer nessas ter-ras. Os índios envolvidos foram cooptados. Então, precisa investigar. A comunidade encontra-se bastante traumatizada com o crime brutal. A gente sabe que os verda-deiros assassinos estão soltos e continuam rondando por aqui. Outra coisa é que há tempos que fazemos denúncias contra esses indivíduos. Eles ameaçam, andam armados”, explica a liderança Tupinambá. A comunidade aponta ainda o constante tráfego de um gol preto, com os vidros fil-mados, rondando a região do Mamão desde pouco antes da emboscada. n

Assessoria de Comunicação Cimi

rês assassinatos e invasões à área indígena coordenadas por fazendeiros, ocorridos a partir do dia 8 de novembro na Terra

Indígena Tupinambá de Olivença, sul da Bahia, contradizem os efeitos da ‘mesa de diálogo’ imposta pelo Ministério da Justiça para resolver o conflito fundiário na região, em detrimento da publicação da Portaria Declaratória. Nos últimos me-ses, cinco Tupinambá e um Pataxó foram assassinados no contexto da luta pela terra tradicional no extremo sul baiano.

Os últimos mortos deste conflito foram Aurino Santos Calazans, 28 anos, Agenor de Souza Júnior, 28 anos, e Ademilson Vieira dos Santos, 36 anos. Conforme lideranças Tupinambá, os três indígenas regressavam da comunidade Cajueiro, por volta das 18 horas do dia 8, lado sul do território tradicional, quando foram emboscados por quatro homens em duas motos. Disparos de armas de fogo foram feitos contra os indígenas e, na sequência, os assassinos praticaram violências contra os corpos.

Boatos davam conta de que na tarde do dia 9, dois dos executores do crime teriam sido presos, mas a polícia não confirmou esta informação. “Um deles é Tupinambá, mas os outros três são ‘bran-cos’. Esse índio a gente já sabia que estava envolvido com os fazendeiros e nem morava na aldeia. Já os outros andavam por aqui armados, ameaçando”, explicou o cacique Valdelino Oliveira dos Santos. Para a liderança, trata-se de uma “tragédia anunciada” para as autoridades.

“A gente já pediu para a Polícia Federal revistar os não-indígenas que transitam dentro da terra indígena, nas regiões de retomadas, mas eles só fazem revistar os índios, entrar nas aldeias para levar facões, bordunas e pilão como parte de operação de desarmamento. Enquanto eles nos deixam vulneráveis, os pistoleiros agem cada vez mais”, denunciou o cacique Val Tupinambá, como é mais conhecido. Ele afirma que os indígenas mortos não eram lideranças, mas moravam em região de retomada e cercada por fazendas.

Aurino, Agenor e Ademilson foram en-terrados na tarde do dia 10, no cemitério do Bairro Nelson Costa, em Ilhéus (BA). Os Tupinambá, durante o ritual fúnebre, realizaram um protesto contra a violência a que estão submetidos na luta pela terra tradicional. “Porque tem um índio envolvi-do, mas cooptado pelos fazendeiros, e os outros são pistoleiros que a gente sabe de onde vem. Temos documentos apontando as ameaças. Tudo isso estava previsto. Vamos encaminhar a apuração dos fatos para a Polícia Federal”, disse o cacique Val.

Serra do Padeiro e Serra das Trempes

A emboscada ocorreu numa região da Terra Indígena Tupinambá de Olivença, que fica entre a orla da praia e as Serras que compõem o território indígena. Horas antes dos assassinatos, ainda no dia 8, grupos de não-indígenas, coordenados por fazendeiros, subiram as serras do Padeiro e das Trempes para fazer a colheita do cacau.

Na Serra das Trempes, aldeia Santana, os homens enviados pelos fazendeiros conseguiram retirar o cacau colhido pelos

indígenas. Ao fim do serviço, deixaram uma placa: Retomada dos Fazendeiros. Na Serra do Padeiro, porém, a comunidade não permitiu que indivíduos enviados pe-los fazendeiros saíssem da terra indígena com o material apreendido.

Lideranças Tupinambá da Serra do Padeiro não confirmaram, todavia, a infor-mação veiculada pela imprensa de Ilhéus e Itabuna dando conta da retenção de 16 ‘trabalhadores’ pelos indígenas. Conforme as lideranças, que aqui não identificamos por motivos de segurança, os ‘brancos‘, com um caminhão, teriam invadido área retomada, a mando de fazendeiros, para a retirada de cacau e apenas foram convi-dados a sair da terra indígena.

Para o coordenador do Conselho Indi-genista Missionário (Cimi) Regional Leste, Antonio Eduardo Cerqueira de Oliveira, “a região é historicamente dominada pela elite local ainda atrelada às práticas coronelistas. Existe muito racismo e preconceito. Esperamos providências do governo federal para a regularização imediata destas terras indígenas para que mais indígenas não sofram com tais violências. Exigimos também a apuração destes crimes”.

Oliveira foi enfático ao afirmar que o governo federal, sobretudo o Ministério da Justiça e a Presidência da República,

devem rever a postura de suspender demarcações para apostar em mesas de diálogo: “Está claro que esta saída não é boa para os indígenas, sobretudo, mas também para os pequenos agricultores e o próprio governo, que espera atender in-teresses pré-eleitorais ao não demarcar”.

Portaria DeclaratóriaO processo de identificação da TI

Tupinambá de Olivença teve início em 2004. Em 2009, a Fundação Nacional do Ín-dio (Funai) aprovou o relatório circunstan-ciado que delimitou a terra em 47.200 mil hectares, estendendo-se por porções dos municípios de Buerarema, Ilhéus e Una, no sul da Bahia. No momento, aguarda-se a assinatura, pelo ministro da Justiça, da Portaria Declaratória, para que o processo se encaminhe para as etapas finais.

No segundo semestre deste ano, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, decidiu não assinar portarias declaratórias com a desculpa de querer evitar conflitos entre indígenas, pequenos agricultores e fazendeiros. No lugar, mon-taria ‘mesas de diálogo’ para negociar as demarcações. Aos Tupinambá, inclusive, chegou a dizer que os indígenas teriam de abrir mão de áreas da terra tradicional e parar as retomadas para que a demar-cação saísse em 2014. n

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Assassinatos e invasões à TI Tupinambá de Olivença desmontam ‘mesa de diálogo’

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7 Novembro–2013

As grandes obras de infraestrutura não podem ser feitas sem que uma ampla e prévia consulta seja feita aos povos que serão atingidos por elas. Brasil ratificou a Convenção 169 da OIT, agora precisa cumprí-la

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Maracás e tambores dão o tom da resistência

ndígenas dos povos Krikati, Pykobjê–Gavião, Krenyê, Tenentehar/Guajajara, Krepumkatejê, o Movimento Quilombola do Maranhão (Moquibom) e comu-

nidades quilombolas do Tocantins, Amapá, Rondônia, Pará, Mato Grosso e Minas Gerais, além de organizações parceiras, reuniram-se entre os dias 12 e 14 de novembro no I Encontro de Indígenas e Quilombolas do Maranhão, em Santa Helena (MA). “Compartilhando uma história de constante discriminação, violência, criminalização de nos-sos movimentos e genocídio de nossos povos, anunciamos a reafirmação de nossas identidades e novos tempos de resistência”, afirma o documento final do Encontro. n

Ministério Público Federal do Pará

a primeira semana de novem-bro, uma equipe do Ministério Público Federal (MPF) visitou a aldeia Restinga, nas cabeceiras

do Rio Tapajós, no oeste do Pará, para um encontro com 62 caciques do povo Munduruku. O objetivo da reunião foi debater o direito à consulta prévia, livre e informada previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Traba-lho (OIT). Além dos líderes de aldeias, estavam reunidos mais de 400 homens, mulheres e crianças na Assembleia em que os índios debateram os projetos de hidrelétricas que o governo brasileiro quer fazer em suas terras.

Na reunião, o MPF explicou aos ín-dios o que está previsto nos 44 artigos da Convenção 169, mostrando, entre outras coisas, que o direito à consulta foi instituído visando assegurar a autodeter-minação dos povos indígenas e tribais, em oposição às anteriores políticas de assimilação, que buscavam extinguir as culturas e modos de vida diversos da-queles da chamada “sociedade nacional”. “Se o governo brasileiro não cumpre a consulta, está agindo de acordo com o tempo que já passou, do assimilacionis-mo, desrespeitando o direito dos povos à própria existência”, explicou o procu-rador da República Felício Pontes Jr, que esteve na aldeia.

“Não são as pessoas que moram na cidade que podem decidir, somos nós, quem mora dentro do mato, que caça, que pesca, que tem roça”, disseram várias vezes os Munduruku durante o debate. “Os brancos falam que têm muita terra para pouco índio e que nós não produ-zimos riqueza. Nós não entendemos pra que branco quer produzir tanta soja, se no Brasil não se come soja. Nós não entendemos pra que branco quer tanto dinheiro, se não vai poder levar dinheiro quando morrer. Nós não entendemos vo-cês porque somos diferentes de branco. E queremos continuar assim”, resumiu Ademir Kaba Munduruku, que chegou a estudar na universidade e conhece bem as leis que protegem os direitos indígenas.

O assimilacionismo, doutrina que pregava a assimilação dos povos indíge-nas e tribais às sociedades envolventes e, portanto, o fim de seus modos de vida tradicionais e diversos, foi abandonado pelos organismos internacionais em 1989, com a aprovação da Convenção 169 pela OIT. A consulta prévia, livre e in-formada, nesse novo quadro de respeito à diversidade, dá aos povos o direito de decidirem sobre o próprio futuro.

Boa féPoucos, entre os mais de 13 mil índios

que vivem na região, falam português e, por isso, toda a reunião contou com tradu-tores Munduruku. A tradução de estudos e informações em língua indígena é uma das condições fundamentais para a consulta prévia, livre e informada. Outra condição presente na Convenção 169 é a boa fé e

Movimentos ocupam área explorada pela Veracel em Mascote (BA)

Cimi Regional Leste

ovimentos sociais do campo em conjunto com os povos indígenas realizaram, no dia 17 de novembro, a

ocupação da Fazenda Conjunto Santa Hele-na, com cerca de 1.300 hectares, no distrito de Teixeira do Progresso, município de Mascote (BA). A área tem sido utilizada pela empresa Veracel para o plantio extensivo de eucalipto, o que causou a destruição das nascentes e da biodiversidade na região, mortes de animais e a expulsão de famílias camponesas, além do desabastecimento de alimentos saudáveis para as cidades.

Apesar de todos estes crimes, a Ve-racel - uma das maiores financiadoras da campanha eleitoral do atual governo - conta com todo o apoio do estado, que apoia o agronegócio em detrimento da luta dos camponeses e dos povos tradicionais do sul, extremo sul e sudoeste da Bahia. Cansados da falta de ação das autoridades para reverter o atual quadro de violência e perseguição que vêm sofrendo as lideranças e o processo de judicialização das lutas, cerca de 200 famílias ocuparam a fazenda e apresentaram suas reivindicações no Manifesto “Terra para quem vive, trabalha e cuida dela!”. n

o respeito ao tempo e ao modo de ser da cultura do povo consultado.

No entendimento do MPF, da maneira como o governo brasileiro vem conduzin-do os projetos de usinas na Amazônia, não há intenção de fazer nenhuma con-sulta realmente prévia. “Só se trata de consulta prévia quando a decisão ainda não foi tomada”, diz Felício Pontes Jr. Para o MPF, os indígenas e ribeirinhos precisariam ser consultados antes da re-solução do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) que decide os locais dos barramentos.

Assassinato“A gente vem lutando desde a morte

do nosso parente e os caciques não que-rem que a gente desista, então, a gente vai continuar defendendo os nossos direitos e dos nossos filhos”, disse Maria Leuza Kaba, liderança Munduruku. Ela se refere ao assassinato de Adenilson Krixi Munduruku, ocorrido há um ano na al-deia Teles Pires, em uma truculenta ação da Polícia Federal contra a garimpagem ilegal na região. Desde então, a situação entre os Munduruku e o governo fede-ral é de extrema tensão. O crime ainda não foi esclarecido. Além da morte de Adenilson, há grande insatisfação entre os índios com a militarização da região, promovida pelo governo brasileiro.

Em resposta, os Munduruku já ocupa-ram e paralisaram duas vezes os canteiros

de obras de Belo Monte para reivindicar o respeito ao direito da consulta prévia e se posicionar contra as usinas. Eles também expulsaram de suas terras pesquisadores que trabalhavam nos Estudos de Impacto Ambiental das hidrelétricas.

A consulta prévia é uma obrigação do governo brasileiro, assumida com a ratificação da Convenção 169 em 2004, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas não cumprida até hoje em ne-nhum empreendimento que afeta terras indígenas e de populações tradicionais. No caso das usinas previstas para a bacia do Tapajós, assim como no caso de Belo Monte, não houve consulta prévia. n

PaísAfora

MPF debate o direito à consulta prévia com os Munduruku

Povo anuncia a Dau’k, sua nova instância de representação

Movimento Xingu Vivo Para Sempre

pós a realização da Assembleia Geral, os Munduruku anun-ciaram a reformulação de sua

instância representativa, a Associação Pusuru. A decisão foi tomada pelos caciques e lideranças que, juntos, totalizaram mais de 400 Munduruku reunidos na aldeia Restinga. O povo declarou de forma enfática que se-guirá combatendo a construção do Complexo Hidrelétrico do Tapajós e

das demais usinas nos rios da Ama-zônia. Em carta divulgada no dia 12 de novembro, os Munduruku afirmam que a Associação Pusuru, que havia as-sumido a interlocução com o governo federal, foi reestruturada, assim como a sua diretoria e teve o nome mudado para Dau’k. O documento também reforça a preocupação dos indígenas com a entrada de não-índios, como pesquisadores do empreendimento hidrelétrico do Tapajós, e garimpeiros, em seus territórios. n

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8Novembro–2013

Ruy Sposati, de Antônio João (MS)

ssa história aconteceu trinta anos atrás - mas poderia ter acontecido hoje.

Era uma emboscada na por-ta de sua casa, no dia 25 de novembro de 1983. Um índio

foi assassinado por pistoleiros com cinco tiros, um na boca.

Seu nome de registro: Marçal de Sou-za. O nome Guarani Ñandeva: Tupã’i, que significa Pequeno deus.

Você pode conhecer o rosto franzino e desdentado deste homem no site do youtube, em seu discurso ao Papa em 1980, ou no documentário Terra de Índios, de Zelito Viana, de 1977.

Marçal era um indígena do Mato Grosso do Sul. Nasceu em 1920 para ser expulso e confinado na reserva Te’ýikue, em Caarapó, em função dos trabalhos de colheita de erva-mate. As empresas de mate chamavam “reservas indígenas” de “acampamentos de trabalho”.

Mas o Pequeno deus, órfão, toma um rumo atípico. Ao 8 anos, vai parar em Dourados, num orfanato da Missão Caiuá. Aos 12, muda-se para Campo Grande com um casal de missionários evangélicos. Lá, conhece um oficial do Exército que o leva para Recife, onde trabalha em troca de comida, roupa e estudo. Volta a Dourados e dá aulas para crianças órfãs como ele. Também se torna intérprete de Guarani.

Em 1959, forma-se atendente de en-fermagem, profissão que exerceria até a morte, através de curso na Organização Mundial de Saúde (OMS). A partir dos anos de 1970, com a ebulição do movimento político indígena nacional, passa a des-pontar como liderança do povo Guarani, denunciando a expropriação das terras indígenas, a exploração ilegal de madeira, a escravização de índios e o tráfico de meninas indígenas.

Perseguido, é expulso de Dourados em 1978 pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e volta a morar na reserva Te’ýikue, onde havia morado dos 3 aos 8 anos. Ainda em 1978, Marçal é mais uma vez transferido pela Funai, e passa a viver

na aldeia de Mbarakaju, em Antonio João, fronteira do estado com o Paraguai.

Em 1980, é escolhido representante dos povos indígenas do Brasil para discur-sar ao papa João Paulo II durante sua pri-meira visita ao Brasil, em Manaus. Marçal fez uma fala histórica, que repercurtiu em todo o mundo: “Nossas terras são invadidas, nossas terras são tomadas, os nossos terri-tórios são invadidos. Dizem que o Brasil foi descoberto. O Brasil não foi descoberto não, o Brasil foi invadido e tomado dos indígenas do Brasil. Essa é a verdadeira história”.

No mesmo ano, Marçal se engaja jun-to de 30 famílias na luta pela demarcação da terra indígena de Pirakuá, no muni-cípio de Bela Vista, vizinho a Antônio João. Pirakuá é lembrada como a primeira de um sem-número de retomadas que os Guarani Ñandeva e Guarani Kaiowá realizariam a partir de então.

A demarcação da terra é contestada pelo fazendeiro Astúrio Monteiro de Lima e seu filho Líbero Monteiro. Naqueles dias, Marçal, com 63 anos, sabia que ia morrer. Teria dito, pouco antes de sua morte: “sou uma pessoa marcada para morrer, mas por uma causa justa a gente morre”.

Após diversas ameaças e agressões, em 1983, Tupã’i é assassinado a tiros no rancho de sua casa, na aldeia Campestre, em uma emboscada noturna.

O fazendeiro Líbero Monteiro de Souza, apontado como mandante do crime, executado por Romulo Gamarra,

foi inocentado no julgamento realizado dez anos depois pela Justiça Federal de Ponta Porã. Líbero faleceu no início dos anos 2000. No dia 2 de setembro de 2002, o Juiz Federal José Denílson Branco, da 2ª Subseção Judiciária da 1ª Vara Crimi-nal de Dourados, extinguiu o processo 2001.60.02.001890-6, o chamado Caso Marçal. Ninguém foi punido.

“Não queremos emancipação, nem integração. Queremos o nosso direito de viver. Jamais o branco compreenderá o Índio. Queremos ser um povo livre como antigamente. O índio está cercado, amordaçado por uma democracia que não funciona. Por isso nós vamos a campo”, disse Marçal certa vez.

A terra indígena Pirakuá foi homo-logada. O movimento indígena Guarani e Kaiowá se consolidou, surgindo o Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá. Dezenas de retomadas de terras foram realizadas. Depois de Marçal, mais de duas centenas de indígenas morreram na luta por terem de volta uma parte de seus territórios originários.

HomenagemNo último dia 25 de novembro, os Gua-

rani e Kaiowá realizaram uma caminhada da Aldeia Ñanderu Marangatu até a Aldeia Campestre, onde foi assassinado Tupã’i, e onde estão enterrados seus ossos.

O ato simbólico fez parte do encontro realizado entre os dias 22 e 25, marcando

os 30 anos da morte da liderança indí-gena. Com o tema “Sem Tekoha não há Teko. Sem Tekoha não há escola indígena”, o evento reuniu cerca de 300 indígenas, entre professores, educadores, rezadores e lideranças, na Aldeia Takuapery, no mu-nicípio de Coronel Sapucaia, também na fronteira com o Paraguai. Um manifesto foi redigido e entregue ao Ministério Público Federal, em Ponta Porã.

“Marçal era conhecido como o homem dos lábios de mel. Suas palavras eram sempre de sabedoria. Elas buscavam a Justiça. E a resposta dos fazendeiros a isso foi dar um tiro na boca dele”, relembrou Roberto Liebgott, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) durante a cerimônia.

“Nós vivemos em um país em que os po-deres públicos tem laços não com a Justiça, com a dignidade nem com a cidadania. Elês tem laços com o dinheiro, com o lucro, com a propriedade privada”, afirmou Roberto. “A estrutura da nossa sociedade é perversa. E vocês são areia nessa engrenagem. Pouco a pouco, com a paciência, com a sabedoria, vocês compartilham novos ensinamentos para que tenhamos uma sociedade mais justa”.

E a batalha de Marçal, cravada na luta pela vida dos povos indígenas, ecoa até hoje entre os Guarani. Concluindo o en-contro, o cacique Jorge, da aldeia Pirakuá - cuja homologação, em 1992, foi fruto da coragem do Pequeno deus -, emocionou a todos, falando em Guarani e depois em português:

Estão nascendo novos Marçals

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9 Novembro–2013

Marçal de Souza continua a inspirar gerações de indígenas em todo o Brasil que não tem seus direitos constitucionais garantidos: a semente foi plantada, as raízes são profundas e os frutos sadios

Nísio também tombouá dois anos ,também em novembro, foi assassi-nado o cacique Nísio Guarani, que com seu povo havia retornado à sua terra tradicional, Guaiviry. Seu corpo até hoje não foi localizado. Os assas-

sinos continuam solto. Seu filho Genito denunciou no final de outubro na Organização dos Estados Americanos (OEA) as violências e ameaças a que continuam submeti-dos. “A história demonstra que a efetiva demarcação de nossos territórios é o único meio eficaz de se solucionar o estado de violência. Nenhum programa de proteção do governo irá efetivamente proteger a minha vida e a de meus parentes enquanto não se reparar esta dívida histórica”. (EH)

Egon HeckSecretariado Nacional do Cimi

pesar das circunstâncias bastante ameaçadoras, os Kaiowá Guarani não se deixaram intimidar e foram celebrar e honrar a memória de

Tupã’i, Marçal de Souza, na terra indígena Nhanderu Marangatu, onde há 30 anos ele foi assassinado.

Esta vida ceifada, no entanto, não foi silenciada. Há três décadas os Gua-rani-Kaiowá da região da fronteira com o Paraguai lutam para ter suas terras de volta, se faça justiça com os matadores de índios e não prevaleça o império da impunidade. A morte brutal teve reper-cussão no país e exterior. Marçal era uma liderança destemida na luta pelos direitos de seu povo Guarani e Kaiowá, bem como pelos direitos dos povos in-dígenas do país.

O grito guerreiro, do fundo da terra, da floresta ou da raiz continuará anun-ciando um novo amanhecer. Não podem matar nosso sonho. “Somos lutadores re-sistentes de uma causa invencível, somos não apenas sobreviventes de uma guerra secular, mas portadores de sabedoria para novas sociedades”. Semelhante grito continua a ressoar mundo afora.

Lembrar a memória de um guer-reiro que tombou na luta pela terra, pelos direitos de seu povo é sempre um momento de fortalecer a resistência e convocar todas as forças e energias para a conquista definitiva dos direitos, espe-cialmente seus territórios tradicionais.

Assim como Sepé Tiaraju é um herói e mártir da resistência Guarani do século XVII, Marçal é um herói e mártir da luta, com seu povo, no século XX. Por ocasião dos 30 anos de seu assassinato, o povo Guarani e seus aliados organizaram uma série de atividades como seminários, debates e uma caminhada para dar visibi-lidade a esse assassinato e às centenas de mortes em função da disputa pela terra, além de celebrar a memória de Marçal, com o intuito de dar continuidade às suas lutas pelos direitos dos povos indígenas.

Vergonha nacionalEm carta que fizeram chegar à pre-

sidente Dilma, jovens e adolescentes Kaiowá e Guarani, que estiveram em Bra-sília no início de novembro, lembraram mais uma vez a gravíssima situação em que se encontram nos acampamentos, retomadas e confinamentos. “Precisamos das nossas terras demarcadas. Só assim poderemos recuperar plenamente nossa

autonomia e nosso teko porá, as boas práticas ensinadas pelos nossos ances-trais...”, afirmaram.

No dia 21 de novembro, outra carta foi encaminhada à presidente Dilma. Esta, por organizações indígenas, dentre as quais a Aty Guasu Kaiowá Guarani, e entidades indigenistas, demanda “uma intervenção federal imediata no Mato Grosso do Sul, de modo a evitar mais uma tragédia anunciada no Brasil”. Concluem afirmando que “O poder público pode e deve evitar esta “tragédia anunciada”, repetição sistemática do genocídio con-tra os povos indígenas. E isto precisa ser feito agora. O reconhecimento e a demar-cação das terras indígenas é a verdadeira solução para a situação que está posta no Mato Grosso do Sul”.

Os fazendeiros, por sua vez, a todo vapor, prepararam o leilão vergonhoso, que ousaram chamar de “da resistência”. Em tom ameaçador, como quem está acima da lei, propalaram a data limite para a solução do problema das terras in-dígenas, final de novembro. Não é preciso ser nenhum futurólogo para prever que o governo não resolverá essa situação até a data estipulada. E o que acontecerá então? De quem será a responsabilidade das tragédias anunciadas? n

“Marçal, Marçal,és profeta de um novo canto, de uma Terra livre e sem quebrantosque é compromisso dos que estão aquiMarçal, Marçal,tua morte só apressa o dia,em que o alto preço dessa covardia,será cobrada pelos Guarani”

(Luis A. Passos)

“Deram um tiro na boca do Marçal pra calar… Mas felizmente o Marçal já vinha fazendo lavoura. Já vinha plantando semente. E a semente, [são] essas pessoas aqui, esses alunos, sábios, construindo novas lideranças. [Estão] nascendo novos Marçals. Os novos, ele já plantou. Fez uma lavoura e plantou semente e nasceu novas lideranças pra con-tinuar lutando.

Os não-índio falaram: ‘mata o Marçal e nós vamo ter resultado, nós vamo ganhar’. Se matá resorvesse… Não adianta. Hoje, bala não adianta mais. Matando [lideranças indí-genas] não vai resorvê. Não adianta retirá o índio das terras dele; vai voltar de novo. Não adianta: a polícia faz barreira lá na estrada, mas o índio passa lá no mato. Vai rezando, vai quebrando.

Por que que hoje tá vindo vulcão?, tá vindo aquele terremoto, tá vindo água?, [por que] tá vindo aquelas pedras que tá acabando meio mundo pra lá? Quem tem poder? Quem que vai segurar isso aí? Eu tenho certeza que o juiz vai pegar a gravata dele, o terno dele, e não vai segurar, se não for o ñanderu [pajé Guarani e Kaiowá] pra segurar.

Os não-índio estão vivendo - pode ponhá na cabeça e gravar - porque existe o índio ainda.

[Alguém vai dizer assim]: ‘vamos matar tudo os índios’. Aí [nesse dia] não vai ser índio nem não-índio, não vai viver mais [nin-guém] aqui na terra. Porque o índio ainda conversa com Ñanderu Asu lá em cima. Aí eu torno a dizer que matar não resolve”. n

Trinta anos de impunidade

A

H

Foto: Arquivo Cimi

Fotos: Bruno Pacheco de Oliveira

Resistência

10Novembro–2013

N o mês em que os indígenas do Mato Grosso do Sul honram os 30 anos da morte de Marçal de Souza e os dois anos do assas-

sinato de Nísio Gomes, os recorrentes episódios de violência explicitam que a violação de direitos indígenas tem aumentado no estado, que já é reconhe-cidamente o mais violento do Brasil na relação com estes povos.

O jornalista do Cimi, Ruy Sposati, rela-ta, de Campo Grande, Nioaque e Dourados (MS), alguns destes atentados e ações an-tiindígenas, aqui resumidas, que revelam a costumeira ação de pistoleiros armados que, a mando dos fazendeiros da região, entram nas terras, acampamentos e reto-madas indígenas de modo extremamente truculento e desrespeitoso com as comu-nidades. Os ataques, disparos, ameaças, intimidações, incêndios, expulsões, atro-pelamentos e campanhas difamatórias e preconceituosas fazem parte, de modo chocante, do cotidiano das crianças, mulheres, homens e idosos indígenas. Muitas das áreas onde há conflito já foram reconhecidas como indígenas, mas seus processos de demarcação estão parados – muitas vezes há décadas.

Yvy Katu: acampamento é atacado por pistoleiros

Na noite de 2 de novembro, um grupo de homens armados invadiu e atirou contra a comunidade indígena Guarani Ñandeva acampada na fazenda São Jorge, parte da Terra Indígena Yvy Katu, localizada entre os municípios de Japorã e Iguatemi (MS), fronteira com o Paraguai. A Justiça Federal de Naviraí con-cedeu, em 31 de outubro, reintegração de posse a Luiz Carlos Tormena, proprietário da fazenda Chaparral, também ocupada pelos Guarani. Ambas as fazendas - de um total de 14 propriedades - incidem sobre Yvy Katu, declarada em 2005 mas com processo de demarcação parado.

Ainda, em 24 de outubro, em decisão favorável ao proprietário da fazenda São Jorge, a Justiça Federal determinou que a

Assembleia Terena: “a tragédia está anunciada em Mato Grosso do Sul”

Ruy Sposati, de Nioaque (MS)

erca de 300 lideranças indígenas do Mato Grosso do Sul se reuni-ram na Terra Indígena Nioaque (MS), região do Pantanal, para

participar da 4a Grande Assembleia do Povo Terena - Hánaiti Ho’Únevo Têrenoe. O encontro aconteceu na aldeia Brejão, entre os dias 13 e 16 de novembro, e contou com a participação de lideran-ças, caciques, professores, jovens e mulheres Terena, Kinikinau, Guarani, Kaiowá e Atikum de todo o estado. Este foi o primeiro encontro dos indígenas

desde o assassinato de Oziel Terena pela Polícia Federal na tentativa de reintegra-ção de posse terra indígena Buriti, em junho deste ano. A Assembleia criticou severamente a ineficácia do Estado em demarcar terras indígenas. Após a morte de Oziel, foi criada pelo governo federal uma mesa de negociações entre indíge-nas, fazendeiros e governo estadual, na tentativa de encontrar soluções para a demarcação dos territórios. No entan-to, após diversos prazos estipulados pelo próprio governo, “não há nada de concreto a ser apresentado aos povos indígenas do MS”, afirma o documento final do Assembleia. n

Em um permanente estado de violênciaPolícia Federal realizasse patrulhamento na região, a fim de “proteger os funcio-nários (ou aqueles que estiverem na pro-priedade) e o patrimônio da parte autora, bem como o direito de ir e vir dentro da propriedade” e “(re)assegurar a ordem violada e inibir posteriores invasões”.

No dia 30 de outubro, um grupo de fa-zendeiros acampou próximo à ponte que dá acesso a Yvy Katu. No local, circulavam panfletos e adesivos que conclamavam “republicanos, liberais, (...), empresários, militares (...), maçons” a dar um “basta ao marxismo cultural”, sob o slogan de “Pelo direito à propriedade: O Brasil que produz reage!”.

Delegado da PF ameaça fazer despejo com Força NacionalA Polícia Federal tentou realizar a rein-

tegração de posse da fazenda Chaparral, na Terra Indígena Yvy Katu, no dia 6. Segundo o Conselho Aty Guasu, o delegado Alcídio de Souza Araújo - responsável pela opera-ção que terminou com a morte de Oziel Terena - foi ao local, desacompanhado do Oficial de Justiça, pressionar os indígenas para que saíssem da área. Depois, confor-me lideranças, ameaçou realizar despejo com apoio da Força Nacional.

O acampamento tem sofrido sucessi-vos ataques. No dia 4, agentes da Polícia Civil e Federal, em conjunto com a Funai, realizaram revistas com a justificativa de que estavam à procura de armas de fogo que supostamente estariam em posse dos indígenas. No dia 5, um grupo armado cercou e atacou a comunidade. Na fuga, um dos pistoleiros deixou uma motoci-cleta para trás, que foi confiscada pelos indígenas e entregue à Polícia Federal.

Pillad Rebuá: Fazendeiros atiram contra Terena e expulsam comunidade

Fazendeiros expulsaram a tiros indíge-nas do povo Terena que haviam retomado a área de uma fazenda que incide sobre a área reivindicada como Terra Indígena

Pillad Rebuá, no município de Miranda (MS), no dia 12. Um trator pertencente à comunidade foi incendiado. Ninguém ficou ferido. O território recebeu seu primeiro registro de reconhecimento pelo Estado em 1904. Um processo de demarcação teve início em 1950, mas não seguiu.

Cerca de 20 famílias da aldeia Pas-sarinho - parte dos 94 hectares hoje ocupados por cerca de 2,2 mil Terena em Pillad Rebuá - ocuparam a área na manhã do dia 12. Os indígenas relatam que tentaram dialogar com os fazendei-ros que estavam na propriedade. “Nós explicamos que queríamos dialogar, que a terra era indígena, que nós estávamos pressionando para que os estudos sejam feitos”, relata um dos indígenas. “Mas ele não queria entendimento, ele partiu pra agressão”. Segundo ele, o homem tele-fonou para outros fazendeiros da região, que foram ao local, queimaram o trator e dispararam armas contra os indígenas. Entre 13 e 16 de novembro - Durante a Assembleia Terena, representantes da re-tomada relataram ameaças de morte que uma das lideranças da comunidade, Pauli-no Terena, tem sofrido: “Eles [fazendeiros] querem a cabeça dele como troféu”.

Ônibus escolar é incendiadoUm ônibus que realizava o transporte

de alunos Terena foi incendiado, na ma-drugada de 28 de novembro, em Miranda (MS). O ônibus levava diariamente cerca de 30 estudantes do ensino fundamental e médio de toda a terra indígena Cachoei-rinha. O veículo estava vazio. Ninguém ficou ferido. Dois anos atrás, em 4 de ju-nho de 2011, um ônibus que transportava cerca de 30 estudantes Terena foi atacado com pedras e coquetéis molotov. Seis pessoas, incluindo o motorista, sofreram queimaduras. Quatro foram internadas em estado grave. A estudante Lurdesvoni Pires, de 28 anos, faleceu.

Fazendeiros invadem Funai Um grupo de 150 pessoas invadiu

a sede da Fundação Nacional do Índio

(Funai) e bloqueou a saída de funcioná-rios e indígenas na manhã do dia 19 de novembro, em Campo Grande (MS). Em nome de proprietários de fazendas que incidem sobre territórios indígenas, os manifestantes se posicionaram “contra” o órgão indigenista e contra a “invasão” de terras no estado do Mato Grosso do Sul. Algumas pessoas vestiam camisetas da Federação da Agricultura e Pecuária do MS (Famasul). Um Terena foi agre-dido durante a manifestação. Entre os participantes, estavam Ricardo Bacha, ex-deputado e proprietário da fazenda onde Oziel Terena foi assassinado pela Polícia Federal, Chico Maia, presidente da Associação dos Criadores do Mato Grosso do Sul (Acrissul), e Pio Silva, dono de fazendas que incidem sobre a terra indígena Nhanderu Marangatu.

Apika’i: Segurança privada faz ameaça de morte na terra

Indígenas do tekoha Apyka’i de-nunciaram que um segurança privado armado, acompanhado de um funcionário da Usina São Fernando, invadiu o acampa-mento da comunidade Guarani Kaiowá na Fazenda Serrana, em Dourados (MS), no dia 21 de novembro. Não houve ataque a tiros nem violência física, mas os dois homens teriam deixado uma ameaça de morte, escrita na terra e mais tarde apa-gada por eles mesmos, onde lia-se algo como “nós vamos acabar com vocês”.

Em março, uma criança Kaiowá de quatro anos morreu atropelada na estra-da. Além dela, outros quatro moradores da comunidade faleceram, vítimas de atropelamentos, e uma sexta pessoa foi morta envenenada por agrotóxicos uti-lizados nas plantações que circundam o acampamento. Em agosto, ainda acampa-dos na beira da estrada, um incêndio que, segundo os indígenas, teria sido iniciado propositalmente no canavial da Usina São Fernando, alastrou-se pelo acampamento, destruindo barracas, alimentos e perten-ces dos indígenas. n

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Foto

: Ruy

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11 Novembro–2013

P R E Ç O S

Ass. anual: R$ 60,00 Ass. dois anos: R$ 100,00 *Ass. de apoio: R$ 80,00 América Latina: US$ 50,00 Outros países: US$ 70,00

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res rurais do estado, disse: “A Constituição garante que é direito do cidadão defender seu patrimônio, sua vida. Guarda, seguran-ça, custa dinheiro. Para entrarmos numa batalha precisamos de recurso. Imagine se precisamos da força de 300 homens, precisamos de recurso para mobilização”.

Em nova reunião, no dia 12, o vice--presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), Nilton Pickler, também veio a público cor-roborar a posição da Acrissul: “Estamos em uma terra sem lei, onde invadir proprieda-de não é mais crime, alguma reação precisa ser feita”, afirmou.

As entidades representativas dos produtores rurais do estado estão orga-nizando, para o dia 7 de dezembro, em Campo Grande, um leilão de animais, commodities, máquinas e produtos doa-dos pelos próprios pecuaristas do estado, para arrecadar recursos para ações contra os indígenas. Deram ao evento o nome de “Leilão da Resistência”. Declararam, no dia 19 de novembro, que já receberam 500 ca-beças de gado como doação, equivalentes a, no mínimo, 500 mil reais.

O documento final da Quarta Assem-bleia do Povo Terena, que contou com a participação de mais de 300 lideranças Indígenas de todo o estado, representando os mais de 70 mil indígenas que lá vivem, declarava: “a tragédia está anunciada em Mato Grosso do Sul (...). É pública e no-tória a ameaça concreta intentada contra os povos indígenas pelos ruralistas deste estado”. Para os indígenas, está claro: os “leilões da resistência” anunciados pelos

produtores rurais “têm por objetivo finan-ciar milícias armadas”.

Em carta, os indígenas criticaram o Estado pelo abandono das negociações, no sentido de encontrar saídas para a questão indígena. “O governo federal instalou (...) uma mesa de diálogo na tentativa de re-solver a demarcação de nossos territórios. No entanto, após vários prazos estipulados pelo próprio ministro [da Justiça], não há nada de concreto a ser apresentado aos povos indígenas”.

As comunidades Terena, Guarani-Kaio-wá, Guarani Ñandeva, Kinikinau e Kadiwéu em luta pela garantia de seus territórios tradicionais, têm relatado e denunciado à Polícia Federal, à Funai e ao MPF um sem número de casos de ataques a tiros, invasões, intimidações e ameaças de morte que os indígenas vêm sofrendo no último período. Apesar disso, até o momento, nenhuma segurança permanente está sendo oferecida a estes povos.

Os indígenas conhecem bem o trabalho da segurança privada que os fazendeiros pretendem ampliar na região. Em con-texto do conflito envolvendo indígenas e fazendeiros, em novembro de 2011, a empresa de segurança privada Gaspem, que prestava - e ainda presta - serviços a proprietários de terras que incidem sobre território tradicional indígena, foi acusada de envolvimento na morte do rezador Guarani-Kaiowá Nísio Gomes, no tekoha Guaiviry, em Aral Moreira. Na denúncia, o Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul (MPF-MS) classificou as atividades da empresa como de uma “milícia privada”,

exigindo a suspensão das atividades da companhia. Em função do caso, sete pes-soas estão presas, conforme relatou o MPF.

Jornais e televisões locais também têm associado o termo “milícias armadas” ao discurso dos ruralistas sobre o leilão e sobre as ameaças do dia 30 de novem-bro. Agências de notícias internacionais categorizaram o caso como “conflito san-grento (...) com características de guerra territorial”.

É público e notório que, no Mato Grosso do Sul, os fazendeiros estão or-ganizando força paramilitar para atentar contra a vida de coletividades e contra o Estado de direito no Brasil.

A “resistência” dos latifundiários é contra a demarcação das terras indígenas. É contra a realização de laudos e perícias pela Funai. É contra a organização política dos indígenas, que avançam na retomada de seus territórios tradicionais, frente à morosidade do Estado e da Justiça, de toda a violência que vêm sofrendo, das mãos das forças policiais estaduais e federais, e das seguranças privadas “legais” ou ilegais que atuam na região. A dita “resistência” é, a rigor, contra a vida destas pessoas.

Em função desta conjuntura, extensão de um violento processo histórico de es-poliação, confinamento e extermínio dos povos indígenas desta região, as organi-zações signatárias vem a público exigir da presidente Dilma uma intervenção federal imediata no estado do Mato Grosso do Sul. O poder público pode e deve evitar esta “tragédia anunciada”, repetição sistemática do genocídio contra os povos indígenas. E isto precisa ser feito agora. O reconheci-mento e a demarcação das terras indígenas é a verdadeira solução para a situação que está posta no Mato Grosso do Sul.

Brasília, 21 de novembro de 2013.Conselho Indigenista Missionário (Cimi) • Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) • Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (ArpinSul) • Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Mi-nas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) • Aty - Guassu Guarani Kaiowá • Conselho de Caciques Terena • Conselho Indígena de Roraima (CIR) • Instituto Kabu - Nejamrô Kayapó • Associação dos Índios Tupinambá da Serra do Padeiro (AITSP) • CCPIO AP. Galibi Marwor-no - Paulo R. Silva • Vídeo nas Aldeias – Vicent Carelli • Operação Amazônia Nativa (Opan) • Instituto de Pesquisas e Formação Indígena (Iepé) • Instituto Sócio Ambiental (ISA) • Associação Terra Indígena Xingu (Atix) • Instituto Indígena para Propriedade Intelectual (Inbrapi) • HAY – Dário Vitória Kopenawa Yanomami • HAY – Davi Kopenawa Yanomami

Intervenção Federal no Mato Grosso do Sul jáPresidenta Dilma Rousseff,

Desde a morte de Oziel Tere-na, assassinado por forças policiais durante o cumprimento de uma

reintegração de posse na Terra Indígena Buriti em maio deste ano, uma série de acontecimentos tem colocado em risco a segurança e a vida das comunidades indígenas do Mato Grosso do Sul. Em sua guerra particular contra os povos indígenas, fazendeiros têm se manifestado de forma cada vez mais agressiva no discurso e na ação contra estes povos.

Estimulado por declarações violentas e preconceituosas de fazendeiros e seus representantes no Mato Grosso do Sul, o conflito chega a um estado de recrudes-cimento que exige de nós, organizações indígenas e indigenistas, vir a público mais uma vez denunciar a situação urgente e gravíssima dos povos originários do estado e exigir uma intervenção federal imediata no Mato Grosso do Sul, de modo a evitar mais uma tragédia anunciada no Brasil.

Em Campo Grande, durante a invasão da sede da Fundação Nacional do Índio por 150 produtores rurais, no dia 19 de novembro, uma fazendeira gritou, dirigin-do-se a indígenas que estavam no local: “o dia 30 está chegando (...), e rogo uma praga a vocês: morram. Morram todos!”. Foi aplaudida pelos manifestantes.

Dia 30 de novembro foi o prazo final estabelecido pelos produtores rurais do Mato Grosso do Sul para que o governo solucione os conflitos fundiários no esta-do. No entanto, prevendo que o Estado não consiga apresentar uma proposta que efetivamente dê cabo do problema - e que favoreça o segmento do agronegócio - os fazendeiros, através de suas associações, têm pública e repetidamente dado decla-rações como esta:

“O prazo para uma solução final é 30 de novembro. Depois disso, como já é tra-gédia anunciada, os fazendeiros irão partir para o confronto legítimo para defender seu direito de propriedade. E vai haver derramamento de sangue, infelizmente”, declarou o vice-presidente da Associação dos Criadores de Mato Grosso do Sul (Acris-sul), Jonatan Pereira Barbosa, na tribuna da Comissão de Reforma Agrária do Senado Federal, no dia 1o de novembro, conforme publicado no sítio eletrônico da entidade.

O presidente da Acrissul, Francisco Maia, no dia 8, em reunião com 50 produto-

À

12Novembro–2013

Os pequenos agricultores garantiram

que o problema nunca foi

deixar a terra, mas sim que

desejavam partir com a

certeza de que os direitos às indenizações e políticas de compensação

fossem cumpridos

Gapin e Cimi Regional Sul - Equipe Iraí

ministro da Justiça, José Eduar-do Cardozo, seguido de comis-são formada pelo ministro do Desenvolvimento Agrário, Pepe

Vargas, pelo presidente do Incra, Carlos Guedes, pela presidenta da Funai, Maria Augusta Assirati, entre outros assesso-res dos governos federal e estadual, esteve na manhã do dia 18 de novembro na cidade de Passo Fundo (RS), onde se reuniu com lideranças Kaingang da Terra Indígena (TI) Passo Grande do Rio Forquilha para tratar da continuidade do processo de demarcação da área em questão.

A reunião foi marcada após a ida do Cacique Leonir Franco até Brasília para contrapor os argumentos utilizados pelo ministro ao decretar de maneira arbitrária a suspensão da demarcação da TI Passo Grande do Rio Forquilha. Na ocasião, José Cardozo prometeu que iria até a área em conflito para averiguar as informações relatadas pelo Cacique. No entanto, às vésperas do encontro, alegando preocupações com segurança pessoal e da comunidade indígena, transferiu a reunião para a cidade de Passo Fundo.

Já no início da reunião foi anunciado pelas autoridades federais presentes e pelo secretário estadual Ivar Pavan que a suspensão da Portaria Declaratória da área nunca esteve em questão e que, em decorrência dos conflitos entre in-dígenas e agricultores, a Presidência da República estaria criando um programa com fundo específico para providenciar indenizações necessárias aos agriculto-res que ocupam terras declaradas como indígenas.

Em caráter de conselho, mas em tom de ameaça, o ministro enfatizou várias vezes que a continuidade do processo de demarcação dependeria da paz entre os lados, ou seja, que cessassem imediatamente as campanhas de auto demarcação. Imediatamente os Kaingang

rebateram o argumento demonstrando ao ministro que não existe nenhum con-flito entre a comunidade indígena e os pequenos agricultores. Exemplificaram que o que existe na verdade é uma série de disputas encomendadas por ruralistas e políticos que possuem base eleitoral e interesses diretos na região. Denun-ciaram publicamente o secretário de Desenvolvimento Rural do Estado, Ivar Pavan, e o assessor do governador do RS, Milton Viário, que se faziam presentes na reunião, por práticas coercitivas e de má fé contra os indígenas e apontaram com clareza a demora no processo de demarcação como causador direto dos conflitos insinuados pelo ministro.

Ao tentar se defender das acusações, o secretário Pavan acabou ressaltando outro ponto levantado pelos indíge-nas que se refere às diferentes formas de ocupação da área pelos supostos agricultores. Segundo os indígenas, e reforçado por Pavan, enquanto alguns agricultores ocupam a terra indígena por terem sido assentados injustamente pelo Estado, através de títulos ilegalmente concedidos pelo governo do estado, existem mais de 200 hectares de terra que foram colonizadas ilegalmente por outros proprietários. Esses 200 hectares já haviam sido oferecidos aos indígenas,

sob ordem do próprio governador Tarso Genro, por Milton Viário, Ivar Pavan e Fabiano Pereira em reunião fechada, onde adicionados a uma série de direitos básicos referentes à educação, moradia e saúde, foram usados como tentativa de moeda de troca para que os indígenas abdicassem do tamanho total do terri-tório a ser demarcado.

Depois de apontadas uma série de possibilidades concretas de resolução do problema por parte da comunidade, a reunião teve um encaminhamento dúbio. Os representantes governamen-tais deixaram aberta a possibilidade de reuniões entre Incra, Funai e os pe-quenos proprietários para que, caso a caso, sejam encontradas soluções para a retirada dos colonos. Enquanto isso, os indígenas cobraram do ministro a continuidade do processo demarcatório porque, como alegaram, na sequência dos estudos, mais precisamente na etapa denominada levantamento fundiário, esse levantamento dos casos será feito e é necessário para garantir de fato a demarcação.

Por parte da Funai, o órgão afirmou na figura de seu coordenador regional, Roberto Perin, a presença histórica dos indígenas sobre esta área e a seriedade dos laudos e estudos realizados. O pró-

PaísAfora

MJ garante a demarcação da TI Passo Grande do Rio Forquilha; agricultores denunciam ações da elite ruralista

prio ministro, mais uma vez garantindo que não existem possibilidades de re-vogação da Portaria Declaratória disse ter ciência e certeza de que os estudos realizados pela Funai na área de Passo Grande do Rio forquilha não contém er-ros e são indubitavelmente verossímeis.

Após o término da reunião, enquanto José Eduardo Cardozo e Pepe Vargas partiram para Porto Alegre para en-contrar-se com o conjunto de supostos agricultores, articulados pela Farsul e Fetraf-Sul, denunciados pelos indígenas como causadores de confusão e confli-tos, os assessores do ministro da Justiça e do ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência, junto com Carlos Guedes, presidente do Incra, e a Coordenação da Funai de Passo Fundo, se dirigiram à TI Passo Grande do Rio Forquilha para ouvir a comunidade e os pequenos agricultores.

Os pequenos agricultores garantiram que o problema nunca foi deixar a terra, mas sim que desejavam partir com a certeza de que os direitos às indeniza-ções e políticas de compensação fossem cumpridos, para que não perdessem o que acumularam durante suas vidas. Eles reclamaram que a demora no processo é a causadora da incerteza de muitos agricultores. Declararam-se amigos dos indígenas e ressaltaram que os conflitos foram ocasionados por elites ruralistas locais que não os deixam participar das reuniões e não os informam sobre o que está realmente acontecendo. Por fim, houve uma demorada e esclarecedora explicação dos processos indenizatórios por parte da comitiva governamental e os agricultores reafirmaram que estariam satisfeitos com a indenização.

Quanto à questão da garantia de paz na TI Passo Grande do Rio Forquilha, os Kaingang deixaram claro seu posiciona-mento expresso em documento entregue pelos indígenas ao representante do Ministério da Justiça: não se pode culpa-bilizar as vítimas por falta de ações efeti-vas dos próprios órgãos responsáveis. A demora no procedimento demarcatório é o principal gerador de dúvidas e tensões por todos os lados. Ressaltaram ainda que o conflito não se dá entre os peque-nos, mas sim por conta de interesses de latifundiários e políticos.

O que a comunidade Kaingang vinha cobrando há muito tempo aconteceu: foram ouvidas as partes diretamente afetadas no processo e as possibilidades de soluções se apresentaram claras e concretas. Os agentes do governo não podem alegar que não sabem o que fazer, nem que providências e que caminho precisam tomar. Está nas mãos do minis-tro e do governo garantir a aplicação da Constituição Federal e o direito de todos. Só assim haverá a paz que eles cobram de indígenas e de agricultores. n

“Não aceitamos acordos políticos em troca de nossa terra tradicional”Comunidade Guarani do Araçá’i

Em nota pública, divulgada no dia 26 de novembro, os Guarani da Terra Indí-gena (TI) Araçá´í denunciaram manobras políticas que estão sendo arquitetadas por parlamentares de Santa Catarina, com o intuito de impedir o avanço da demarcação de sua terra tradicional. Eles afirmam também que há uma tentativa de convencê-los de que mudarem para uma outra área provisória é a melhor saída.

Segundo a nota: “A última ofensi-va foi um acordo assinado sem nossa

presença, na compra de uma área em Bandeirantes, no extremo oeste. Não ad-mitimos este acordo feito, coordenado pelo deputado estadual Dirceu Dresch e o secretário da Agricultura de Santa Cata-rina, João Rodrigues. Lutamos e sempre lutaremos pela nossa terra tradicional, localizada nos municípios de Saudades e Cunha Porã.

Reivindicamos nossa terra tradicional desde 1998, sofrendo situações extremas ao longo destes quinze anos: desde a retomada que fizemos e a expulsão que sofremos de nossa terra no ano 2000, até a proibição judicial de retornar ao estado

de Santa Catarina no mesmo período. Desde 2001, estamos vivendo em oito hectares da TI Toldo Chimbangue, do povo Kaingang, no município de Cha-pecó. O reduzido espaço ocupado não permite o cultivo suficiente para garantir a alimentação na aldeia... A maior respon-sabilidade por essa situação de violência é do governo federal que, além de não realizar a demarcação de nossa terra, vem assumindo abertamente e sem pudor uma política desenvolvimentista que converte o meio ambiente, as terras, as águas, as matas, as pessoas em recursos disponíveis para exploração. n

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13 Novembro–2013

De qualquer modo, vamos permanecer dentro da nossa terra até o fim do processo. Ela já está demarcada e cansamos de esperar pacificamente”, afirma o vice-cacique Salvador

O

PaísAfora

Patrícia Bonilha, de Brasília

o dia 20 de novembro, um segurança da estância turística Águas do Prado, localizado no município de Vicente Dutra

(RS), fez seis disparos com arma de fogo contra um carro com indígenas Kaingang após exigir que eles se retirassem da área onde costumam vender artesanato e jo-gar futebol. Apesar do empreendimento ter sido construído dentro da Terra Indí-gena Rio dos Índios, demarcado desde 2004 com 715 hectares como território tradicional, e os indígenas, incluindo várias crianças, estarem saindo do local de modo pacífico, o segurança tentou dar uma facada em um dos indígenas. Na sequência, fez os disparos que, feliz-mente, não acertaram ninguém.

Segundo o vice-cacique Luiz Sal-vador, o segurança, conhecido como Palmeira, age como um jagunço do empreendimento, tem várias passagens pela polícia e há cerca de quatro anos vem constantemente ameaçando os indígenas, muitas vezes, com armas em punho. “Nós estávamos sendo proibidos de buscar nossa lenha, nosso cipó, de ir e vir, dentro da nossa própria terra. Já tínhamos registrado queixas sobre isso na delegacia de polícia”, afirma Salvador.

Após este atentado, e motivados pelo cansaço de esperar pacificamente pela finalização do processo demarcató-rio de suas terras, os indígenas renderam o segurança, que foi encaminhado ao hospital com ferimentos, e ocuparam a estância térmica-turística. Segundo os indígenas, a estância dificulta a ho-mologação e desintrusão da TI Rio dos

Após atentado, Kaingang ocupam estância construída dentro da TI Rio dos Índios

Índios, já que os pequenos agricultores que ocupam a área afirmaram que acei-tam imediatamente a indenização das terras e das benfeitorias para deixarem as terras indígenas.

De acordo com Salvador, os oito hec-tares ocupados pela estância foram doa-dos pelo município ao empreendimento que os loteou e vendeu. “Foram títulos de má-fé que permitiram a construção das 118 casas de veraneio de gente rica, que não mora aqui. Eles montaram a As-sociação Águas do Prado para dificultar a garantia dos nossos direitos constitu-cionais”, explica o vice-cacique.

Em uma reunião realizada no dia 22 de novembro, em Passo Fundo, em que estavam presentes os indígenas, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Ministério Público Federal (MPF), foi feito um acordo em que os governos estadual e federal se comprometeram a fazer a in-denização de vinte agricultores até o mês de março, dando um primeiro passo no processo de desintrusão da área, onde vivem 48 famílias indígenas. n

Matias Benno Rempel, Grupo de Apoio aos Povos Indígenas (Gapin)

dia 14 de novembro nasceu diferente para grande parte dos Guarani Mbya, que há décadas estão acampados em uma pe-

quena faixa de domínio da BR-290, km 299, no território do Irapuá, localizado entre os municípios de Caçapava do Sul e Cachoeira do Sul no Estado do Rio Grande do Sul.

O som incessante da “cachoeira de carros”, que cruza dia e noite a BR-290 em uma das extremidades do acampa-mento e que impossibilita os Guarani de terem noção do que significa a palavra “silêncio”, foi substituído pelo belo ba-rulho das águas correntes do Rio Irapuá e pelos cantos e revoadas dos pássaros que partiam e chegavam de cima das árvores. Em sequência a este despertar, o som que pode se ouvir nestas novas manhãs foi o das crianças que, não mais

presos entre a rodovia e a cerca de uma propriedade privada, correram livres pelo campo e pelos vales sendo acompa-nhados e educados pelos velhos e velhas da comunidade. Segundo o cacique Sil-vino Benites, que caminha por esta área específica desde o ano de 1970, “dava até para ouvir o som de um sorriso”.

Os Guarani do Irapuá, mais uma vez cansados da esperar a decisão dos órgãos responsáveis, voltaram a erguer algumas casas improvisadas constituin-do um novo núcleo de aldeia no coração desta área que jamais deixaram de ocu-par. Desta forma decidiram reocupar em caráter permanente a sua terra, inclusi-ve demarcada pela Fundação Nacional do Índio (Funai), com mais de 30 anos de estudo e que indiscutivelmente é de ocupação imemorial. Em julho deste ano, os indígenas construíram pequenos barracos de lona em partes da terra demarcada que foram criminosamente incendiados.

Trata-se de um pequeno recorte de 222 hectares que se estende ao longo de uma faixa de mata nativa próxima do Rio Irapuá. Sobre a área não existem propriedades nem benfeitorias, e até o episódio da queima dos barracos não havia sequer lavouras ou áreas de agricultura no espaço delimitado aos indígenas. Hoje, cientes da discussão acerca de possíveis indenizações em caso de ocupação indígena, lamentavelmente os proprietários do entorno passaram a avançar com plantações sobre a já pequena área Guarani.

Neste contexto, os Guarani rece-beram o procurador Pedro Sacco, do Ministério Público Federal (MPF) de Cachoeira do Sul, em seu precário acampamento, para cobrarem empenho dele no sentido de ajudar a combater as propostas desviantes do estado do Rio Grande do Sul e das prefeituras locais e, sobretudo, a negligência da Funai e as práticas inconstitucionais do Ministério

da Justiça que vem se negando a con-cluir o procedimento de demarcação e regularização de uma área desocupada e já demarcada.

Sacco demonstrou sua preocupação com a não demarcação do território por motivos advindos do cenário político atual, e que essa realidade tende a se intensificar com a proximidade do pe-ríodo eleitoral.

Ao ser questionado sobre o resultado e ou respostas ao documento enviado por ele, no dia 4 de julho, ao Ministério da Justiça, oportunidade em que descre-veu ao ministro José Eduardo Cardozo a situação do território em questão e cobrou do mesmo a continuidade do pro-cesso demarcatório, o procurador referiu que até agora a resposta foi o silêncio. Coube aos representantes Guarani la-mentarem o fato de tudo depender de uma assinatura de Cardozo e do fato de que esta assinatura poderia dar fim a um processo de décadas de sofrimento. n

Comunidade Guarani Mbya reocupa terra tradicional

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Apesar do expressivo

aumento de recursos

para a saúde indígena, a

situação ainda é gravíssima:

falta medicamentos,

saneamento e, em muitas

regiões, aumentou a mortalidade

infantil

14Novembro–2013

Saúde Indígena

Por Renato Santana,de Brasília (DF)

em consulta às instâncias de representação ou controle social dos povos indígenas, o Ministé-rio da Saúde, por intermédio da

Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), realizou no dia 6 de novembro, em Brasília, o Chamamento Público para a seleção de entidades aos convênios de atenção à saúde indígena. O edital foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) em 21 de outubro sem que a Sesai ao menos informasse aos indígenas.

O Chamamento ocorre depois de gravação apresentada na XIX reunião do Conselho Distrital Yanomami de Saúde Indígena, realizada em Boa Vista (RR) no dia 2 de outubro. O áudio evidencia que coordenadores do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Yanomami e da Missão Caiuá estão juntos ao deputado estadual Jânio Xingu acertando detalhes sobre contratações e distribuição de cargos em um até então suposto Cha-mamento Público - confirmado com a abertura dos envelopes que foi realizada no dia 6. A denúncia foi formalizada

Xakriabá ocupam Dsei de Governador Valadares (MG)Patrícia Bonilha,

de Brasília

proximadamente 100 indíge-nas Xakriabá ocuparam a sede do Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena (Dsei) em

Governador Valadares (MG), no dia 26 de novembro – uma semana antes do início da 5a Conferência Nacional de Saúde Indígena. O objetivo do pro-testo foi denunciar a desassistência generalizada à saúde indígena e o desrespeito com a organização social dos povos, caracterizado pela falta de diálogo e por decisões autoritárias

por parte da Coordenação do órgão. O povo Xakriabá totaliza quase 10

mil indígenas no município de São João das Missões, no norte de Minas Gerais. Segundo o Cacique Domingos Nunes de Oliveira, as lideranças Xakriabá sempre foram consultadas e ouvidas pelos res-ponsáveis pelos órgãos da saúde, o que não acontece na atual gestão.

“Pelo contrário, temos sido atro-pelados por decisões que prejudicam nossas comunidades e não contribuem para a solução de problemas bastante graves, como a precariedade do sanea-mento básico e do fornecimento de água e a falta de medicamentos, exa-

mes. Sem falar que a própria saúde da população é precária. Ainda temos um índice alto de doenças como leishma-nionse e Chagas”, declara o Cacique.

Por estes motivos, os indígenas pedem a saída da atual Coordenadora, Elizabeth Stheling, que, segundo eles, teria sido indicada por um político que é contrário aos indígenas. “Não con-cordamos com decisões autoritárias que têm por objetivo atender a interes-ses pessoais e políticos, que nada so-mam para uma melhoria da qualidade de vida do nosso povo, a exemplo da nomeação de cargos e mudanças, que muito têm nos afetado e contribuído

para o acirramento de conflitos dentro do nosso povo”, afirma o documento divulgado pelo povo Xakriabá durante a ocupação.

Segundo Antônio Eduardo Cerquei-ra de Oliveira, Coordenador do Cimi Regional Leste, a situação da saúde indígena no estado tem se agravado bastante. “Aqui em Minas Gerais acon-tece o que vem ocorrendo no Brasil todo: coordenadores do Dsei têm sido definidos a partir de alianças político partidárias, o que faz com que coorde-nadores sem nenhum conhecimento de saúde indígena assumam estes cargos”, explica. n

pela Associação Hutukara Yanomami no Ministério Público Federal de Ro-raima (MPF/RR) e na Sesai no início de outubro.

“Aumentaram os recursos, mas não melhorou a saúde e a qualidade de vida. Hoje existe mais remoção do que pre-venção dentro da TI Yanomami. Chama a atenção o fato de que em 2012 foram gastos R$ 16.500,00 com o pagamento de funerária. E no período de janeiro a setembro de 2013 esse gasto aumentou para R$ 81.880,00”, informa trecho do documento de denúncia da Associação Hutukara.

As atuais entidades conveniadas, Missão Caiuá, Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) e Instituto Materno Infantil de Pernambu-co (Imip), movimentaram, entre 2011 e 2013, conforme dados da Sesai, mais de R$ 1 bilhão de verbas públicas destinadas para a saúde indígena. Porém, no Mato Grosso do Sul, conforme o Conselho Distrital de Saúde do Estado, a morte de crianças entre 1 e 4 anos aumentou 43,5% no mesmo período.

Para lideranças indígenas, a falta de consulta para este Chamamento

Público é bastante estranha. Entre 1999 e 2009, sob a criação do Subsistema de Saúde Indígena, todos os convênios do governo precisavam de autorização dos Conselhos Distritais. Mesmo com o iminente vencimento do prazo de dois anos de contrato das entidades conveniadas, os indígenas questionam porque apenas agora, e num prazo curto, a Sesai decidiu fazer o processo.

Além disso, o atual chamamento exige o Certificado de Entidade Bene-ficente da Assistência Social (Cebas), bastante questionado por entidades que prestam serviços de saúde porque só é concedido àquelas que disponham de hospital e laboratório. Esta exigência foi derrubada por força de lei, mas a Sesai segue exigindo o certificado - coinci-dentemente a Missão Caiuá, a SPDM e o Imip possuem o Cebas.

Calamidade públicaO aumento orçamentário para a

saúde indígena neste ano foi de 33,20%, o que significa um total de quase R$ 230 milhões. Em 2012, os recursos chega-ram ao montante de R$ 690,7 milhões. Em 2013 saltaram para R$ 920 milhões.

No final do ano passado, o secretário da Sesai, Antônio Alves, afirmou que o orçamento era ainda maior devido aos recursos aportados à saúde indígena por outras secretarias, caso das vaci-nações. Portanto, não falta dinheiro e sobra ingerência e óbitos.

“O que é revoltante é que este descaso acontece mesmo quando a Sesai duplicou o teto (…). A criança é acometida com uma gripe, por exem-plo e, sem a medicação básica nos postos, o quadro vai se alterando até o óbito. O médico transcreve a receita e muitas vezes o índio não tem acesso às unidades de saúde”, disse Fernan-do de Souza Terena, coordenador do Condise do Mato Grosso do Sul, em 24 de outubro deste ano, ao jornal Progresso (MS).

Em outras regiões do país a situa-ção é a mesma. Em setembro, quatro crianças Araweté foram a óbito depois de apresentarem diarreia e vômito. No Maranhão, até a metade deste ano, 12 crianças do povo Guajajara morreram com problemas também de fácil trata-mento, incluindo gripes que evoluíram para broncopneumonia. n

Sesai realiza seleção para convênios sem consulta aos indígenas e sob suspeitas de favorecimentos

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A

Foto: Fritz Tshool/Arq. CimiFoto: Egon Heck/Arq. CimiFoto: Alessio Moiola/Arq. CimiFotos: Geertje/Arq. Cimi

15 Novembro–2013

Educação Indígena

José Ribamar Bessa FreireProfessor e Jornalista

m professor Kaxinawá me contou da visita que a educadora Nietta Monte fez à sua aldeia, no Acre, há muitos anos, quando ela con-

versou durante horas com um velho sábio. Enquanto ouvia as narrativas tradicionais saborosas e cheias de vida que circulam em língua indígena, ela viu passar um jo-vem, caminhando em direção ao igarapé. Nietta, então, perguntou ao velho:

- Este menino aí conhece as histórias que o senhor me contou? Ele fala a língua Kaxinawá?

O velho respondeu:- Não, minha filha! Coitadinho! Ele não

sabe nada. É que ele frequentou a escola.A escola, para os índios, durante mui-

to tempo foi o lugar onde se desaprendia todas as coisas que sabiam sobre eles pró-prios. Se não me falha a memória, minha amiga Nietta descreveu essa experiência, com outras palavras e maior competência, em algum livro ou artigo, mas quem tam-bém me contou foi um aluno do Curso de Formação de Professores Indígenas, onde ministrei, em três ocasiões diferentes, módulos de História da Amazônia Indí-gena, convidado pela Comissão Pro-Índio do Acre (CPI/AC).

Para quem, como nós, trabalha com a escola e nela acredita, é terrível essa imagem de uma escola que des-ensina, de um lugar aonde os alunos desaprendem língua, tradição, saberes. Se não tivesse frequentado a escola, o menino domina-ria língua e conhecimentos transmitidos através da pedagogia da oralidade, que ele desaprendeu dentro da instituição. Em muitos casos - é preciso reconhecer - a escola fez com extraordinária eficiência aquilo que a senadora Kátia Abreu sonha: eliminar os índios do mapa do Brasil.

Fábrica de brancosNo Brasil durante cinco séculos, a re-

lação dos índios com a escola foi sempre tensa e conflituosa. Embora seu alcance tenha sido bem restrito, essa escola para índios, inaugurada com a catequese, atravessou o Império e a República. O es-tado neo-brasileiro herdou o modelo de escola que reprimia as línguas indígenas e excluía os conhecimentos tradicionais, as narrativas orais e os processos próprios de aprendizagem. Essa escola nunca contou com um único professor indígena.

Para os índios, a escola foi histori-camente devoradora de identidades, apagadora de memórias, exterminadora de línguas. Aliás, num mito andino, a escola é apresentada como um monstro que maltrata e engana as crianças com mentiras.

Há alguns anos, pedi a meus alunos indígenas do Programa Kuaa Mbo’e de For-mação de Professores Guarani da Região Sul que desenhassem a escola onde estudaram. Cada um dos 80 alunos fez o trabalho pedido. Um deles, Vanderson, revelou-se um grande artista do traço. Ele morava então na al-deia Pinhalzinho (PR), mas havia nascido em Laranjinha, onde ninguém mais falava guarani, porque a escola não-indígena já havia cumprido seu papel devastador de des-ensinar.

O desenho do Vanderson é uma obra prima. Trata-se de uma história em quadrinhos com muito movimento que acontece na sua escola. Ele desenhou um grande prédio, com uma chaminé, que ocupou toda a folha de papel. Escreveu na fachada, com letras grandes: FÁBRICA DE FAZER BRANCOS. Do lado esquerdo, na parte inferior, frente à porta de entra-da, uma fila de crianças indígenas com cocar e tanga. Um agenciador com um

megafone grita: - Entrem, entrem, crianças!

No quadro seguinte, as crianças que ingres-saram encontram um cesto onde está escrito: “Deixem aqui os vossos adornos”. As crianças se

despem, então, do símbolo externo estereotipado de suas

identidades. Prosseguem seu cami-nho em direção a um chuveiro, onde tomam banho de água sanitária para embranquecer. Daí, saem para outro espaço, onde lhes aguarda um laboratório. Lá, colocam na cabeça das crianças um capacete com fios para realizar uma lavagem cerebral.

Depois de mudados por dentro e por fora, as crianças passam por

Desaprendendo na escola

uma engrenagem sofisticada, com rodas dentadas, que parecem máquina de moer carne. Os coitadinhos são triturados, moí-dos, pulverizados e reformatados. Saem de lá para uma sala com guarda-roupa, onde vestem calça, camisa, sapato. No ou-tro lado da página, no canto inferior, fica a porta de saída. O agenciador observa as crianças que saem e exclama com júbilo:

- Deu certo! Eles viraram brancos!

do Brasil, algumas histórias que revelam a imagem que os índios têm da escola.

Bartomé Meliá - uma vida inteira dedicada aos Guarani - escreveu: “a in-terculturalidade é uma teoria bonita e uma proposta racional, ao se constituir também como pedagogia do diálogo e exercício de superação de diferenças sem eliminá-las, inclusive potencializando-as. A interculturalidade tem sido, no entanto, na prática, um rotundo fracasso. E preci-samos perguntar: por quê?”. Para Meliá, “a farsa” engloba uma área particular da interculturalidade que é o bilinguismo: “Sem bilinguismo, ao menos intencional, não existe interculturalidade. O fracasso de um leva ao fracasso da outra”.

Os avanços significativos não são ainda compartilhados por todas as escolas indígenas. Um controle rigoroso por parte de zelosos funcionários das Secretarias Municipais e Estaduais de Educação e um desconhecimento de muitos índios sobre seus direitos nesse campo, acabam evidenciando as limitações dessa escola.

“A escola dentro da aldeia é como se fosse uma embaixada de outro país”. Foi assim que Leonardo Werá Tupã, pro-fessor bilíngue Guarani definiu a Escola Indígena da aldeia Massiambu, Palhoça (SC), numa entrevista para a dissertação de mestrado de Helena Alpini. A imagem, de forte valor explicativo, sinaliza para o fato de que embora a escola esteja loca-lizada em território Guarani, quem tem controle sobre ela não é a comunidade local, mas o Estado nacional brasileiro, da mesma forma que a embaixada de um país estrangeiro é inviolável, conforme a Convenção de Viena.

Como escreveu o antropólogo José Augusto, o Guga, “a escola não é dos ín-dios, é do Estado que constrói prédios, dá merenda, paga salários dos professores. É uma instituição de fronteira, de diálogo entre instituições sociais, instância de comunicação, campo de disputas, de efervescência política, de luta no plano simbólico”.

A imagem e os avanços da escola indígena - esse foi um dos temas do I Congresso Internacional América Latina e Interculturalidade organizado pela Universidade Federal de Integração Lati-noamericana (Unila) nos dias 7, 8 e 9 de novembro, em Foz de Iguaçu, dentro do Parque Tecnológico de Itaipu. No campo da educação indígena, como poetou César Vallejo em Los Nueve Monstruos: “Hay, hermanos, muchísimo que hacer”. n

Embaixada estrangeiraFoi contra essa fábrica de fazer bran-

cos que, em princípio, foram criadas as escolas bilíngues interculturais garantidas pela Constituição Federal de 1988. Pela primeira vez na história do Brasil, o Esta-do nacional, pressionado pelo movimento indígena e por seus aliados, manifestou vontade política de reconhecer e valo-rizar as línguas e culturas indígenas e de sepultar a velha escola para índios, criando um novo modelo de escola de índios, bilíngue, intercultural, específica e diferenciada.

Nos últimos 25 anos se estruturou dentro do sistema nacional de educação um sub-sistema escolar indígena, do qual fazem parte, hoje, cerca de 2.700 escolas, com 11 mil professores (10 mil deles são índios) que dão aula para mais de 205.000 alunos no ensino fundamental e médio, segundo o Censo Escolar de 2008 elabo-rado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). A escola indígena é, talvez, a única coisa nova na educação brasileira. Um pouco mais de 66% das escolas indígenas no Brasil são bilíngues e interculturais, seja lá o que isso signifique.

Cabe, então, perguntar: Qual o bilin-guismo e a interculturalidade praticado? Como é que os índios veem hoje essa nova escola e qual a imagem que ficou da velha escola que legalmente deixou de existir? Registrei ao longo dos anos, nos cursos de formação de professores bilíngues que ministrei em 14 estados

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16Novembro–2013

APOIADORES

Benedito PreziaHistoriador

a cultura Tupi muitas entidades estavam associadas aos animais, tanto mamíferos (boto, veado galheiro, gato do mato), quanto aves (uirapuru, sem-fim, saci, coruja), répteis (lagarto, camaleão, sala-mandra), ofídios (sucuri) ou desdentados (tatu, tamanduá).

Ao contrário de certas entidades Tupi que são regionais, uma delas, o saci, assumiu dimensão na-cional, devido à cultura Tupi-Guarani, que se tornou uma cultura pan-brasileira, assumindo várias feições.

Na região Norte aparece com o nome de mati-taperê, pequena ave que caminha aos saltos. Esteve associada tanto ao curupira, quanto ao espírito de um pajé maléfico que podia transmitir seus feitiços às pessoas (Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore, 1988, p. 484). Com o tempo e com a diminuição de falantes da língua Tupi, essa ave foi chamada de matinta-pereira. Tem o poder de se transfor-mar em coruja ou assumir a figura de uma velha ou criança com uma perna só que anda aos pulos, buscando as pessoas para ganhar fumo (Mello, A. Estórias e lendas da Amazônia, 1962, v. 2, p. 210-213).

Já no Mato Grosso do Sul, Egon Schaden en-controu-o com outro perfil, talvez por influência paraguaia. Tinha o nome de xaxim-tarerê, sendo descrito como um menino de uns cinco anos, com duas pernas, e se manifestando por um assobio agudo, que faz arrepiar quem o ouve. Ao escutá-lo, não se deve imitá-lo ou duvidar de sua existência pois, senão, poderá aparecer com um bastão, castigando essa pessoa. Poderá domi-ná-lo quem conseguir retirar-lhe o bastão. Gosta muito de fumo e pinga e para ter sua proteção ou livrar de seus malefícios basta colocar-lhe uma porção de tabaco ou uma garrafa de cachaça no local onde parte o assobio (Aspectos fundamentais da cultura Guarani, [1954] 1974, p. 156-157).

No Sudeste manteve o nome de saci. É asso-ciado a uma ave que tem esse mesmo nome e que foi chamada também de sem-fim (Tapera naevia chochi), pois seu canto repete constantemente as palavras sem-fim. Por caminhar aos saltos, os falantes Tupi-Guarani acrescentaram-lhe o adjetivo pererê (= o que salta). Isso fez com que se transformasse numa entidade de uma perna só, recebendo assim o nome composto de saci pererê. Sua presença é notada através de um assovio agudo ou de um pio.

Entre os Guarani do oeste paulista, Schaden descobriu que era associado ao anguery ou atsyguá, espírito que trazia doença ou feitiço. Isso mostra certa semelhança com a anguera (alma penada) ou com o anhangá tupi. Assim o descreve: “ninguém o vê, ouve-se-lhe apenas o assobio que mete medo; não fala com ninguém, tem aparência humana e é provido de duas per-nas, mas [é] pequeno, pretinho (por isso também é conhecido por kambá’í); não fuma” (p. 156).

Por esse relato percebe-se que a cor negra, ao contrário do que se pensa, não vem de influência africana, mas seguramente do Paraguai.

Entretanto a representação atual, que conhece-mos no Brasil, deve-se a uma mistura de tradições e relatos, surgindo essa figura mestiça de um negrinho com uma perna só, fumando cachimbo e com gorro vermelho, divulgada na literatura infantil de Monteiro Lobato, imortalizada nos seus livros, remontando à década de 1920.

Lobato criou esse personagem a partir de uma enquete feita por ele em 1917, em São Paulo, no jornal Estadinho, edição vespertina do jornal O Estado de S. Paulo. Colheu dezenas de relatos de pessoas que diziam ter visto ou ouvido histórias sobre ele, e que foram publicadas no ano seguinte no livro O Sacy-pererê. Resultado de um inquérito.

Um dos mais significativos, e que seguramente inspirou o saci lobatiano, foi enviado por alguém do sul de Minas, identificado com as letras H. Q. Narra esse cidadão, que na sua infância ouviu muitas his-

tórias sobre esse personagem, e assim as resumiu: Elle era um negrinho muito magro, muito esperto, de

uma perna só, do tamanho de um menino de 12 annos, muito feio, benguella [sic], olhos vivos, rindo sempre um riso velhaco, carapinha grande, a saltar e a saltar e a fazer peraltagens ruins.

(...) O doido que tinha o topete de viajar em noite de sexta-feira, á meia-noite, salta-lhe á garupa o Sacy e o pun-ga [cavalo velho] lerdo virava um passarinho dos diabos.

Embaraçava a crina e a cauda dos cavallos. Emperrava as porteiras, que não rangiam mais, tanto que para es-pantá-lo, a gente furava uma cruz no mourão. E saltando sempre, sua fala era assim: “Sacy, saterê nhangu!”

Andava sòmente de noite, mas de dia se mostrava no redemoinho do vento, levantando poeira e firmando o “corropio”, diluindo-se no ar.

Também virava, quando estava triste, num passarinho muito triste também, que canta no fundo das capoeiras

escuras, com o sol quente, uma cantiga nostálgica, re-petida de cinco em cinco minutos: “Sa... cy!” ([1918], 1998, p. 27-28)

Ainda hoje o saci pererê continua presente em regiões do interior de São Paulo, sobretudo onde é mais forte a raiz indígena, como São Luís do Pa-raitinga, no Vale do Paraíba ou no Vale do Ribeira. Recentemente ouvi a história de uma pessoa dessa última região que, por sua vez, ouviu um caso em que alguém havia sido surrado pelo saci, no final da noite, deixando-o ferido e meio desacordado... Se a surra foi consequência da cachaça, não se sabe, mas o certo é que essa crença ainda continua viva em regiões do interior paulista.

Esperamos que a Associação Sosaci, Socie-dade dos Observadores do Saci, criada em São Paulo, possa recuperar essa figura da mitologia indígena e cabocla, para contrapor a essas festas alienígenas, como o Halloween, Dia da Bruxas e Dia dos Vampiros, que buscam um espaço em nossa cultura. Houve, inclusive, uma campanha para que o saci se tornasse o mascote da Copa de 2014... n

DO SACI INDÍGENA AO SACI BRASILEIRO

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