mari a l uÍ z a g alv Ão de me de i ro s de amp l i aÇÃo
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
DIREITO
ANÁLISE JURÍDICA ACERCA DA VIABILIDADE
DE AMPLIAÇÃO DO SISTEMA LEGAL DE
ABORTO NO BRASIL
MARIA LUÍZA GALVÃO DE MEDEIROS
Natal - RN
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MARIA LUÍZA GALVÃO DE MEDEIROS
ANÁLISE JURÍDICA ACERCA DA VIABILIDADE
DE AMPLIAÇÃO DO SISTEMA DE ABORTO
LEGAL NO BRASIL
Projeto de Trabalho de Conclusão de Curso apresentado naUniversidade Federal do Rio Grande do Norte como requisitobásico para a conclusão do Curso de Direito.
Orientador (a): prof. Ivan Lira de Carvalho
Natal - RN
2021
3
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRNSistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro CiênciasSociais Aplicadas - CCSA
Medeiros, Maria Luiza Galvão de.Análise jurídica acerca da viabilidade de
ampliação do sistema de aborto legal no Brasil /Maria Luiza Galvão de Medeiros. - 2021.86f.: il.
Monografia (Graduação em Direito) - UniversidadeFederal do Rio Grande do Norte, Ciências SociaisAplicadas, Curso de Direito. Natal, RN, 2021.Orientador: Prof. Dr. Ivan Lira de Carvalho.
1. Direitos fundamentais - Monografia. 2. Sistemalegal de aborto - Monografia. 3. Modelos vigentes -Monografia. I. Carvalho, Ivan Lira de. II.Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III.Título.
RN/UF/Biblioteca CCSA CDU 342.7
Elaborado por Eliane Leal Duarte - CRB-15/355
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MARIA LUÍZA GALVÃO DE MEDEIROS
ANÁLISE JURÍDICA ACERCA DA VIABILIDADE DE AMPLIAÇÃO DOSISTEMA DE ABORTO LEGAL NO BRASIL
Trabalho de Conclusão de Cursoapresentado à Universidade Federal doRio Grande do Norte, como requisito paraa obtenção do título de bacharel emDireito.
Aprovado em: 10 de setembro de 2021.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________Prof. Dr. Ivan Lira de Carvalho
Orientador
________________________________________Profa. Dra. Karoline Lins Câmara Marinho de Souza
Examinadora
________________________________________Profa. Lidianne Araújo de Aleixo Carvalho
Examinadora
5
Dedico esse trabalho a todas as mulheres que vieram antes de
mim e lutaram por uma realidade mais equitativa. O esforço
delas é imensurável e, devido a isso, sinto o dever de continuar
levantando pautas tão relevantes dentro da vivência feminina.
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RESUMO
Esta pesquisa está direcionada para a análise da garantia constitucional do aborto,
de modo a revelar os danos causados pela criminalização da prática dentro do
território brasileiro. A partir de estudos jurídicos e dos dados coletados por órgãos de
pesquisa e estatística em parceria com o Ministério da Saúde, comprovou-se a
ineficácia na proibição dos abortamentos fora das excludentes de ilicitude, algo que
estimula a prática de abortos clandestino e influencia no número de mortes maternas
anualmente. Diante disso, a pesquisa buscou traçar um panorama geral sobre a
origem da proibição da referida prática e como a mentalidade patriarcal de controle
sob os corpos femininos permanece expresso no escopo legal brasileiro. Os direitos
fundamentais continuam sendo violados para inúmeras pessoas que desejam
interromper suas gravidezes. Neste cenário, medidas foram tomadas para tentar
mudar tal situação, como a apresentação da ADPF 442, todavia, o texto penal ainda
rege o ordenamento jurídico pátrio, impedindo transformações significativas. Isto
significa que a mudança precisa partir do legislativo, como ocorreu nos países
vizinhos Uruguai e Argentina, mediante pressão e luta social por direitos. Ambas as
nações vizinhas demonstraram que um sistema de abortamento legal está apto de
funcionar dentro de uma realidade sociocultural latinoamericana, sendo exemplos a
serem seguidos. Quando o sistema mudar, finalmente, o Estado Democrático de
Direito estará resguardado no Brasil para milhares de pessoas.
Palavras-chave: Direito; Aborto; Descriminalização; Modelos vigentes.
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ABSTRACT
This research is focus at analyzing the constitutional guarantee of abortion, in order
to reveal the damage caused by the criminalization of the practice within Brazilian
territory. Based on legal studies and data collected by research and statistical
agencies in partnership with the Ministry of Health, the ineffectiveness of the
prohibition of abortions outside the exclusions of illegality was proven, something that
encourages the practice of clandestine abortions and influences the number of
maternal deaths annually. Therefore, the research sought to define an overview of
the origin of the prohibition of this practice and how the patriarchal mentality of control
over female bodies remains expressed in the Brazilian legal scope. Fundamental
rights continue to be violated for countless people who want to terminate their
pregnancies. In this scenario, measures were taken to try to change this situation,
such as the presentation of ADPF 442, however, the penal text still governs the
Brazilian legal system, preventing significant changes. This means that change
needs to come from the legislature, as happened in neighboring countries Uruguay
and Argentina, through pressure and social militancy for rights. Both neighboring
nations demonstrated that a legal abortion system is able to function within a Latin
American sociocultural reality, being examples to be followed. When the system
finally changes, the Democratic State of Law will be protected in Brazil for thousands
of people.
Keywords: Law. Abortion; Decriminalization; Current models.
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ANÁLISE JURÍDICA ACERCA DA VIABILIDADE
DE AMPLIAÇÃO DO SISTEMA DE ABORTO
LEGAL NO BRASIL
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………..10
2. A TEMÁTICA DO ABORTO…………………………………………………...……….10
2.1. CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL DA PRÁTICA DO ABORTO………………..10
2.2. DEFINIÇÕES…………………………………………………………………………..20
2.3. TEORIAS RELATIVAS À ORIGEM DA VIDA……………………………………....222.3.1. Teoria Concepcionista………………………………………………………………242.3.2. Teoria Natalista……………………………………………………………………...262.3.3. Teoria do desenvolvimento do sistema nervoso…………………………………27
2.4 RELAÇÃO COM A SAÚDE PÚBLICA……………………………………………….28
3. O ABORTO SEGUNDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO………….34
3.1. ANÁLISE CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS QUE PERPASSAM A PRÁTICADO ABORTO…………………………………………………………………………….….34
3.1.1. Dos direitos fundamentais……………………………………………………..…..34
3.1.1.1. Direito à vida………………………………………………………………….......35
3.1.1.2. Direito à igualdade…………………………………………………………….….37
3.1.1.3. Direito à liberdade e autonomia…………………………………………………39
3.1.1.4. Dignidade da pessoa humana…………………………………………………..41
3.1.1.5. Direito à saúde…………………………………………………………………….43
3.1.1.6. Laicidade do Estado e o princípio da proporcionalidade……………………..44
3.2. DECISÕES FAVORÁVEIS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL……………..48
3.3. INVESTIGAÇÃO DA LEGISLAÇÃO PENAL ACERCA DO ABORTO………….56
9
4. MODELOS VIGENTES DE ABORTAMENTO LEGAL……………………………...64
4.1. SISTEMAS EM FUNCIONAMENTO AO REDOR DO MUNDO…………………64
4.2. MODELO URUGUAIO E ARGENTINO…………………………………………….67
4.3.ETAPAS PARA IMPLEMENTAÇÃO DO ABORTAMENTO LEGAL NOCONTEXTO BRASILEIRO………………………………………………………………...72
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS…………………………………………………………...75
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS
10
1. INTRODUÇÃO
O interesse pela temática é oriundo do sentimento pessoal de urgência em
relação à defesa dos direitos das mulheres, isto é, de compreender que os avanços
somente acontecerão se houver debate e pressão da sociedade, sendo a pesquisa
acadêmica um exemplo disto. Como também, a participação no grupo de pesquisa e
extensão do meu orientador foi um dos incentivadores, pois estudávamos o assunto
do aborto dentro do viés específico da subnotificação da prática, despertando minha
vontade em explorar mais profundamente a temática.
A descriminalização do aborto é um tópico que encontra muita resistência
para ser discutido, dificultando o avanço de suas proposições. O motivo reside,
principalmente, no significativo conservadorismo de grande parcela da sociedade
brasileira, oriunda de uma herança histórico-social cristã e da desinformação
generalizada. Os dispositivos que tipificam o aborto estão presentes no Código
Penal de 1940, ou seja, anterior ao marco constitucionalizador do ordenamento
jurídico brasileiro, consequentemente, não contemplando mais a evolução jurídica e
social ocorrida ao longo dos anos.
A presente pesquisa apresenta grande relevância social, visto que os direitos
fundamentais das mulheres continuam a ser violados sistematicamente no Brasil,
ferindo os princípios constitucionais, a dignidade da pessoa humana e a liberdade
individual para plena autonomia. Portanto, é necessário analisar as mudanças
jurisprudenciais realizadas recentemente, como a ADPF 442/16, além de elencar as
próximas pautas de reivindicação que deverão ser levantadas dentro da realidade
fática com fins de alcançar uma efetiva transformação. A investigação teórica do
presente trabalho possui o objetivo de apresentar o tema e propor mudanças.
2. A TEMÁTICA DO ABORTO
2.1 CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL DA PRÁTICA DO ABORTO
De acordo com estudos antropológicos e historiográficos realizados por
11
diversos pesquisadores ao longo dos séculos, sendo uma notória representante a
historiadora austríaca Gerda Lerner, a sexualidade feminina se tornou um dos
principais objetos de controle social desde muito cedo na história da humanidade,
motivado por uma busca essencialmente humana por poder e afirmação de força
dentro de uma necessidade latente de hierarquização social das sociedades
antigas.
Posteriormente, quando a família patriarcal já é o modelo hegemônico de
constituição de laços interpessoais, a divisão sexual com base na biologia dos
corpos humanos se aprimorou com o vislumbre da possibilidade de extensão dos
papéis de gênero pelos homens de forma a beneficiá-los dentro da esfera macro. O
corpo feminino passou a ser submetido a regras ainda mais rígidas de repressão,
acarretando o enraizamento de costumes culturais como a manutenção da
virgindade feminina antes do casamento e a troca comercial entre patriarcas de suas
filhas e os acordos derivados desse cenário.
Além disso, a herança bíblica e cultural hebraica foi fundamental para a
concretização do imaginário patriarcal nas sociedades mesopotâmicas antigas, na
medida em que toda a sua mitologia estava centrada em figuras masculinas
heroicas e na delegação às mulheres ao papel de serviência aos homens. Outra
ideia que foi aprofundada nos escritos hebraicos foi o perigo da sexualidade
feminina, a qual foi apontada como a causa principal da perda da inocência da
humanidade e sua consequente aquisição de mortalidade. Tal ponto foi crucial para
a afirmação do domínio masculino sobre os corpos femininos, pois de certa forma
não eram os homens que estavam argumentando a favor da falta de capacidade
das mulheres decidirem sobre seus próprios destinos, e sim um texto tido como
sagrado que expressava tal ideia, logo, sendo incontestável.
Desta forma, a próxima etapa era a mercantilização do corpo feminino.Isso
porque, Lerner elucida que o instituto da escravidão surgiu com base nos moldes
utilizados para a dominação das mulheres enquanto grupo, de forma que as
estratégias usadas foram muito similares, como a diferenciação de grupos e a
legitimação social, política e em alguns casos até religiosa para a opressão
daqueles tidos como diferentes. Esta categorização social foi idealizada para atingir
os mais variados objetivos, mas que todos eles orbitam em torno de poder.
Assim, a subjugação feminina pós-divisão sexual com base nas diferenças
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biológicas ganhou novos contornos quando o potencial econômico foi constatado
pelo grupo que detinha os privilégios de controle. Os homens, diante da sua
incapacidade reprodutiva, direcionaram sua desvantagem biológica para um
vantagem, de maneira que criaram narrativas variadas para manter as mulheres
resguardadas no espaço privado dos lares domésticos e utilizá-las como
mercadorias de acordos econômicos e políticos entre tribos distintas ou entre
famílias pertencentes ao mesmo coletivo.
A análise do controle sobre os corpos das mulheres se amplia para a questão
do aborto, enquanto esse ato tido como uma afronta às leis humanas e naturais da
maternidade. A pesquisadora supracitada elucida a problemática acerca do aborto
nos tempos primórdios, relatando através de detalhados estudos antropológicos a
precoce existência de leis proibitivas em relação à prática em questão e como o
conteúdo dessas leis servem para elucidar o funcionamento das dinâmicas de sexo
e classe.
Um exemplo que ilustra com eficiência esse cenário é a Lei de Hamurabi, a
qual é considerada um dos códigos mais importantes das sociedades antigas
mesopotâmicas, em seu texto se constata que as punições possuíam diferentes
intensidades de acordo com a classe da vítima, ou seja, a classe do homem, pois a
mulher era considerada como sua propriedade. Um dos exemplos que ilustram o
funcionamento desse código é que se um golpe desferido contra a filha de um
homem da alta classe causar um aborto espontâneo, a punição era de 10 “shekels”,
enquanto a filha de um burguês é de metade desse valor. Todavia, se o resultado for
a morte da mulher grávida, a punição para o primeiro caso é a morte da filha do
agressor, enquanto que se a filha do burguês vier a morrer, a punição é só uma
multa. Constata-se que a lei de talião (olho por olho, dente por dente) que impunha
essa equivalência nas punições era aplicada até para os crimes contra a vida e o
aborto espontâneo.
Por sua vez, a lei assíria conseguiu ampliar as possibilidades em relação às
condutas, agentes e punições. Para ilustrar existia nas normas do povo assírio uma
punição de equivalência para os casos em que o homem causar aborto espontâneo
em uma mulher casada, logo, sua esposa também deveria sofrer um aborto. Um
elemento interessante no código em questão era a previsão de um agravante para a
situação em que a família não tenha um filho menino, tornando a punição para o
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aborto causado por terceiro a morte do agressor. Em contrapartida, se o fruto do
ventre for uma menina e a família já tiver um filho homem, o agressor ainda assim
pagará com uma vida, apesar de não ser necessariamente a sua. Isso reflete o
domínio patriarcal do período em que os homens administram as propriedades e as
mulheres são objetos de troca, revelando o motivo da preferência.
Outrossim, ao se examinar a Lei Hebraica em sua obra “a criação do
patriarcado”,1 Lerner prossegue e constata características mistas presentes nas
diversas Leis Babilônicas, de forma que o princípio regente em todos os compilados
de leis analisados é a equivalência de punições e uma proteção implícita à
propriedade do homem, sendo necessário garantir a gestação de um herdeiro. Um
exemplo específico das normas hebraicas diz respeito ao aborto espontâneo
causado por terceiro no ato de agredir uma mulher, acarretando no estabelecimento
de uma multa pelo marido e este valor sendo imposto por juízes. No caso de
sobrevir a morte da gestante, aplica-se a lei de talião e o agressor deverá morrer.
Desse modo, é notório o caráter político nas legislações das sociedades da
Antiga Mesopotâmia, estando presente no alto grau de reprovabilidade que as
condutas relacionadas ao aborto detinham. Importante notar que o aborto constava
como crime público nesse período, de forma que o soberano deveria ser informado
sobre as principais ocorrências. Neste diapasão, as penas também possuíam uma
natureza pública, enquanto abarcadas como crimes graves, sendo algumas das
punições mais severas executadas no sistema legal médio-assírio o empalamento e
falta de enterro para os responsáveis pelo aborto.
Evidencia-se a expansão gradativa do controle sobre os corpos femininos do
âmbito privado para o público, no sentido de se tornar um assunto de regulação
estatal. Isso porque o soberano simbolizava o chefe da família dentro de um
macrossistema, que é a nação. Assim, o direito paterno de decidir sobre o rumo da
sua família, principalmente no referente às suas filhas e esposas, estava atrelado à
importância da manutenção da ordem social patriarcal.
Desta forma, a prática do aborto estava imbuída de punições bárbaras, tanto
na modalidade de ser realizado por terceiros como no autoinduzido. Este último,
inclusive, era considerado de extrema gravidade, pois seria um ato contra a
1 LERNER, Gerda. A Criação do Patriarcado: História da Opressão das Mulheres pelos Homens. 1.ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2019.
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natureza e contra o divino, pois a mulher estaria abdicando das funções atribuídas
pela divindade como sagradas para a correta trajetória feminina no plano terreno.
Além disso, a conduta era lida como uma tentativa da esposa de usurpar o direito do
homem a ter herdeiros, passando a ser equivalente, em magnitude, a traição ou
atentado ao rei.
Gerda Lerner conclui sua explanação e, em seguida, atribui ao poder público
e ao Estado em sua forma embrionária o papel de constituidores dos valores
patriarcais e religiosos, guiando-se pelo viés econômico nesse processo. Logo, o
controle da sexualidade feminina é uma pauta constante dentro do exercício do
poder estatal, estando expresso na edição de leis vigentes no período que serviram
para ratificar os papéis de gênero até então presentes na cultura e moral do período,
além de perpetuar o plano de poder ideal cuja base era a manutenção de privilégios
dos grupo socialmentes dominantes. A classe e o gênero foram dois elementos
fundamentais para a instituição do modelo de organização cívica do período em
questão.
O segundo momento da história da humanidade crucial para a regulação da
sexualidade e reprodução com viés religioso foi a Idade Média. Tal período foi
extenso em termos quantitativos e é considerado por muitos historiadores como
obscuro devido a produção limitada de conhecimento acadêmico, literário e até de
registros históricos. Esse contexto ainda se agrava ao analisar as questões
relacionadas ao feminino, pois a historiografia estava sob poder masculino, sendo as
narrativas escolhidas para serem retratadas aquelas que fortaleciam o patriarcado.
Assim, toda a complexidade das vivências femininas foram relegadas a alguns
escritos, quando não ignoradas completamente.
Dito isso, uma pesquisadora do campo das ciências sociais responsável por
abordar o contexto medieval sob uma perspectiva marxista e feminista foi Silvia
Federici2. Em suas múltiplas obras, com destaque para “calibã e a bruxa”, a
pensadora consegue apresentar a força do caráter econômico e político para as
determinações estratégicas de condutas permitidas e proibidas que passariam a
reger toda um coletivo de pessoas, formando uma passividade reforçada pelo
revestimento divino, logo, inquestionável das imposições. Convém lembrar que a
2 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva. 1. ed. São Paulo:Editora Elefante, 2017.
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Igreja Católica era um dos pilares estruturantes da administração feudal e
posteriormente estatal do território europeu, estabelecendo dogmas restritivos que
fundamentavam as dinâmicas sociais diárias, bem como a produção de
conhecimento.
Na Baixa Idade Média a economia feudal estava destruída, gerando uma
instabilidade econômica que se prolongaria por séculos e ditaria os rumos da
Europa Ocidental. Iniciou-se, consequentemente, um processo definido pelo próprio
Karl Marx, em sua obra “O capital”, de “acumulação primitiva”, em que como
resposta à crise de acumulação a classe dominante europeia tentou realizar uma
reestruturação social e econômica, colocando em prática, entre outras medidas,
uma ofensiva global de apropriação de riquezas e expansão de mão-de-obra e
mercado consumidor em diversos territórios espalhados pelo mundo, invadindo e
explorando-os.
A partir do desenvolvimento embrionário das bases de uma economia
capitalista, em que no período em questão ainda era intitulado de mercantilista, as
condições materiais estavam postas para o agravamento da exploração laboral e o
enrijecimento das condutas permitidas socialmente. A Europa desse contexto
pré-capitalista estava enfrentando as consequências da instituição de políticas
voltada à acumulação de capital, como a pauperização das classes trabalhadoras,
afetando a produção agrícola e gerando miséria e fome para grande parcela da
população. Some-se a isso o aparecimento da Peste Negra, entre os anos de 1345
a 1348, a qual gerou uma crise populacional sem precedentes.
Desta forma, Sílvia Federici aponta que é nesse momento específico de caos
generalizado relacionado ao problema da relação entre trabalho, população e
acumulação de riquezas; que o debate e as estratégias políticas acerca de
intenções de implementar uma política populacional e um regime de “biopoder”
ganham relevância no cenário macrossocial. Tal teoria encontra convergência
também com os escritos do sociólogo francês Michel Foucault, em que ele aponta a
crise populacional europeia dos séculos XVI e XVII como o fator determinante para
que a reprodução e o crescimento populacional entrassem na agenda pública como
pauta prioritária estatal. Outrossim, em sua consagrada obra "História da
sexualidade” de 1976, Foucault aponta como imprescindível para o projeto de poder
a utilização da narrativa do controle dos corpos.
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A pensadora supracitada busca expandir a análise feita por Foucault ao
apontar as mulheres como as principais vítimas dessas novas políticas. Diante
desse cenário, o pensador francês explica que o biopoder, enquanto poder exercido
de forma a limitar o exercício pleno da liberdade individual, pode ser convertido em
agenda de poder estatal transformando-se em biopolítica. A partir dessa cooptação
do controle sob o corpo para a dominação das massas, até a vida e morte deixam de
ser apenas fenômenos naturais de transcurso da vida humana para se tornarem
objetos políticos com finalidades que atendam às estruturas hegemônicas da
sociedade, como o capitalismo e patriarcado.
Em decorrência disso, as mulheres acabam se tornando ainda mais
vulneráveis com o estabelecimento do Estado e com a criação de políticas públicas
vinculantes a todos os cidadãos que estão sob a sua égide. Isso porque, o projeto
de poder dos soberanos e posteriormente das entidades estatais foi erguido sob as
bases do já consolidado patriarcado, logo, a submissão feminina era tida como
natural e aceita socialmente. Assim, a objetificação e mercantilização do corpo das
mulheres se encontravam enraizados nos comportamentos e simbologias das
sociedades ocidentais, como o casamento virgem feminino e a posterior dedicação
exclusiva das mulheres aos trabalhos domésticos e cuidados com a prole.
Neste sentido, foi no contexto em questão que ocorreu a intensificação da
“caça às bruxas” e os novos métodos disciplinares do Estado, ambos objetivando a
regulação da procriação e diminuição da autotutela feminina sobre seu próprio
corpo. Logo, a Igreja Católica aparece para fornecer os subsídios narrativos
necessários para legitimar esse controle sobre as mulheres ao demonizar a figura
da “bruxa”, que seria aquela mulher que sacrificava bebês em rituais satânicos ou
viviam isoladas em florestas sem ter filhos, para citar alguns exemplos. Constata-se
a finalidade política de atacar com o moralismo religioso qualquer forma de controle
de natalidade e de sexualidade não procriativa.
Em decorrência das estratégias apontadas, houve a necessidade de utilizar o
aparato estatal para aumento da eficácia repressiva, acarretando na edição de leis
que criminalizam diversas condutas relacionadas à procriação e exercício livre da
sexualidade, como a imposição de severas penas para à contracepção, ao aborto e
ao infanticídio. Em relação ao infanticídio, tornou-se um crime punível com pena de
morte e castigado com rigidez desproporcional, principalmente, quando se observa
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os delitos masculinos e suas penas.
Ao se tratar do aborto, novas formas de vigilância foram instituídas pelo
aparato estatal de maneira a garantir que interrupções de gravidez não fossem
realizadas. Um exemplo que ilustra essa nova tática é um édito francês de 1556 que
obrigavam as mulheres o registro de cada gravidez e em caso de morte do bebê
antes do batismo em parto clandestino a mãe seria sentenciada à pena de morte,
independente de ter dolo ou não. Além disso, o Estado também desenvolveu um
sistema de espionagem com o objetivo de fiscalizar as mães solteiras e privá-las de
qualquer apoio que pudessem levá-las a um aborto. Uma das estratégias para gerar
um temor coletivo foi ameaçar os colaboradores dessas mulheres com processos ou
incentivar uma repulsa social em torno da proximidade com as infratoras.
Nesse sentido, as mulheres tornaram-se as principais rés do sistema jurídico
europeu, entre os séculos XVI e XVII, sendo processadas em larga escala pelos
crimes mencionados, como aborto, infanticídio e bruxaria. É relevante perceber que
as acusações orbitavam em torno de proteger o feto e violações de normas
reprodutivas, como também foi nesse período que a atribuição de responsabilidade
legal às mulheres foi ampliada estrategicamente. Portanto, pela primeira vez, a
figura feminina ingressou massivamente nas cortes da Europa, em nome próprio
como legalmente adultas, sob a acusação de bruxaria e assassinato de crianças.
Outro elemento importante para a restrição da liberdade feminina sobre o seu
próprio corpo foi a marginalização das parteiras na realização majoritária dos partos.
Isso porque o Estado, amparado pela Igreja, não poderia permitir que uma função
tão direta do ato de dar vida às novas crianças pudessem ficar sob responsabilidade
de outras mulheres. Desse modo, as parteiras se tornaram grandes suspeitas de
cumplicidade com as mulheres desviantes das normas, substituindo-as por figuras
médicas masculinas, as quais realizavam o parto ou então deveriam estar presentes
na sala quando esse ocorresse. Tal medida refletia a intenção política de submeter a
procriação às instituições, reduzindo as mulheres ao papel passivo de ter a criação.
Importante ressaltar que foi nesse contexto que surgiu a prática médica de priorizar
a vida do feto em detrimento da mãe, conduta essa que perdurou durantes muitos
anos nas sociedades ocidentais.
A pesquisadora Silvia Federici observa, em seu mencionado livro “Calibã e a
bruxa”, como resultado final da adoção dessas medidas de controle de natalidade e
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repressão da sexualidade feminina a escravização de mulheres à procriação. Isso
porque, segundo seus estudos demonstraram, as mulheres medievais desfrutavam
de uma certa liberdade em fazer uso de métodos contraceptivos e poder decidir
sobre seus partos. Todavia, o útero se torna um território político ao se vislumbrar o
poder que o controle poderia proporcionar, levando ao retrocesso da autotutela
feminina semelhante ao período da Idade Antiga nas sociedades mesopotâmicas.
Portanto, o corpo feminino nesse período foi direcionado ao atendimento das
necessidades do capital (mão-de-obra e mercado consumidor) e aos planos
civilizatórios da Igreja Católica, afastando o ato de procriar do “natural” e feminino e
colocando-o como pauta pública e prioridade máxima do Estado pré-capitalista.
Em seguida, a base paternalista dos Estados Modernos possui como origem
as dinâmicas culturais e morais religiosas de cunho patriarcal, as quais foram
aprimoradas com o decorrer dos séculos acarretando estruturas complexas que
garantem privilégios e oprimem grupos específicos. Dito isso, ao se analisar o
contexto de formação das sociedades latino-americanas, tendo o Brasil como o
objeto de estudo, é notório que a regulação social da sexualidade e reprodução
permeia o imaginário coletivo em decorrência de uma ampla construção de
símbolos, comportamentos e normas que são tidos como permitidos socialmente.
Desse modo, o Estado na América Latina parte de alguns pontos essenciais
para o seu entendimento que já foram apontados como fundantes da diferenciação
de gêneros e da atribuição de seus papéis, como a distinção entre os âmbitos
público e privado, sendo os primeiros destinados aos homens e o segundo às
mulheres. Tal critério de inclusão e exclusão tornou-se um elemento institucional, de
forma que as esferas de poder, simbólico e prático, são idealizadas no masculino. As
consequências dessa ocupação majoritária é a subcidadania feminina e a extrema
hierarquização social com base em gênero, raça e classe.
Segundo a pensadora moderna, Giovanna Zincone, em sua obra “da sudditti
a cittadini”, há elementos muito importantes que podem ser extraídos da dicotomia
moderna do público/privado, em que é gerada uma natureza dual do poder, o qual se
divide em poder político e poder familiar/hierárquico. O primeiro, aponta a autora, é
caracterizado pela equivalência entre as partes, envolvendo negociação de conflitos
e interesses, além do aspecto essencial do reconhecimento recíproco das
capacidades políticas dos participantes em suas mais diversas interações. Em
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contrapartida, a segunda espécie não é dotada de equiparação, acarretando
marcações sociais diferentes para as partes envolvidas, sendo baseado em
concepções naturalistas e hierárquicas de “poder decisório”, no princípio da
autoridade e na ideia de desigualdade natural das capacidades políticas e das
vocações sociais.
Evidencia-se, assim, a força da duplicidade do poder em sua
instrumentalização para fins de organização da regulação social do corpo e sua
sexualidade e reprodução, sendo responsáveis por desenvolver instituições
norteadas por esses valores. Em decorrência do cenário apontado, as dimensões da
vida privada e coletiva foram permeadas ao longo da história por figuras que
materializam a autoridade paterna, sendo elas o pai chefe de família, o patrão, o
senhor, o sacerdote, o coronel e em última instância até o próprio Estado. Por sua
vez, o campo institucional refletia o modelo patriarcal vigente e intensificava-o
através da ocupação quase totalitária de altos cargos de poder e na criação de leis,
as quais, entre outras coisas, limitavam a liberdade feminina em relação a autotutela
de seu corpo, como na criminalização do aborto.
Um dos principais pensadores do século XX a abordar a temática do controle
da sexualidade foi o francês Michael Foucault, em sua consagrada obra "História da
sexualidade”3, na qual ele aponta como imprescindível para o projeto de poder a
utilização da narrativa do controle dos corpos. É ainda mais notório essa relação ao
se analisar o corpo feminino, pois a repressão se estende da sexualidade e alcança
também o elemento da capacidade reprodutiva, gerando, logo, uma complexa
estrutura que funciona com base na massiva submissão feminina.
Desse modo, Foucault inaugura o conceito de “biopoder”, em que ele afirma
que surgiu por volta da metade do século XVIII, objetivando complementar o poder
disciplinar do aparato estatal e conseguir abarcar novas complexidades sociais,
oriundas das transformações nos meios de produção, industrialização, urbanização,
dentre outros processos que marcaram tal período. Diante desse cenário, o
pensador francês explica que o biopoder, enquanto poder exercido de forma a limitar
o exercício pleno da liberdade individual, pode ser convertido em agenda de poder
3 Ver Foucault, Michel (1976), História da Sexualidade I: A vontade de saber. Trad. M.T. C.Albuquerque e. J. A G. Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1977b.
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estatal transformando-se em biopolítica. A partir dessa cooptação do controle sob o
corpo para a dominação das massas, até a vida e morte deixam de ser apenas
fenômenos naturais de transcurso da vida humana para se tornarem objetos
políticos com finalidades que atendam às estruturas hegemônicas da sociedade,
como o capitalismo e patriarcado.
Em decorrência disso, as mulheres acabam se tornando ainda mais
vulneráveis com o estabelecimento do Estado e com a criação de políticas públicas
vinculantes a todos os cidadãos que estão sob a sua égide. Isso porque, o projeto
de poder dos soberanos e posteriormente das entidades estatais foi erguido sob as
bases do já consolidado patriarcado, logo, a submissão feminina era tida como
natural e aceita socialmente. Assim, a objetificação e mercantilização do corpo das
mulheres se encontravam enraizados nos comportamentos e simbologias das
sociedades ocidentais, como o casamento virgem feminino e a posterior dedicação
exclusiva das mulheres aos trabalhos domésticos e cuidados com a prole.
2.2 DEFINIÇÕES
A temática acerca do aborto permite análises múltiplas dentro de áreas do
conhecimento diversas, como a perspectiva legal, médica, social, entre outras.
Diante disso, o debate torna-se complexo e abrangente, existindo grupos
heterogêneos que encontram argumentos distintos para defenderem suas teses com
objetivos políticos particulares. Segundo foi analisado no presente trabalho dentro
do segmento do contexto histórico, a questão do aborto não é uma pauta recente,
logo, as narrativas que serão apresentadas datam de séculos atrás, bem como seus
interlocutores foram apenas se atualizando, mas são movidos por interesses
constantes na história da humanidade.
Dito isso, o primeiro ponto de partida relevante utilizado como parâmetro para
a defesa ou condenação do ato de abortar é a origem da vida humana. Tal
problemática é complexa, envolvendo discussões nas áreas de ciências biológicas,
parâmetros jurídicos e espiritualidade. Assim, a primeira distinção apontada por
estudiosos da ética biológica é a diferenciação entre “ser humano” e “pessoa”, em
que o primeiro é compreendido através de uma perspectiva biológica de
pertencimento à uma determinada espécie, enquanto o segundo é uma abstração
21
moral e social da espécie inserida no contexto tido por civilizatório, sendo utilizado
como objeto de proteção institucional.
Além disso, ainda dentro da análise da bioética desenvolvido pelo Conselho
Federal de Medicina, existem quatro modalidades de abortamentos realizados
contra a figura do nascituro, ou seja, o ser concebido que se encontra no ventre
materno, sendo eles:
a) Interrupção eugência da gestação (IEG): casos de aborto ocorridos
devido a valores racistas, sexistas, étnicos etc., ou seja, devido a
práticas eugênicas, como, por exemplo, os praticados pela medicina
nazista, período em que mulheres foram obrigadas a interromper a
gravidez por serem judias, ciganas ou negras.
b) Interrupção terapêutica da gestação (ITG): casos de aborto nos quais a
gestação traz riscos de vida à gestante.
c) Interrupção seletiva da gestação (ISG): casos de aborto em que se
constatam anomalias no feto, como é o exemplo da anencefalia.
d) Interrupção voluntária da gestação (IVG): casos de aborto ocorridos
levando em consideração a vontade própria da gestante ou do casal,
que não desejam levar a gravidez adiante, seja em situação de estupro
ou não.
Outrossim, faz-se relevante apontar a definição apresentada pela
Organização Mundial de Saúde (OMS). Segundo tal órgão, o aborto consiste na
retirada do feto ou embrião, antes que ele adquira vida extrauterina, ou seja, que a
interrupção seja realizada até as 22 (vinte e duas) semanas, em média, quando o
feto pesa em torno de 500 (quinhentas) gramas.
A definição com o revestimento jurídico foi realizada por diversos juristas
renomados, ressaltando-se o fato de que nenhum código de leis brasileiro estipulou
uma conceituação explícita sobre o instituto. Dito isso, cabe selecionar o lecionado
pelo penalista Fernando Capez4:
“Aborto é a interrupção da gravidez, com a consequente destruição
4 CAPEZ, Fernando. Direito penal: parte especial. 19 .ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
22
do produto. Consiste na eliminação da vida intra-uterina. Não faz
parte do conceito de aborto a posterior expulsão do feto, pois pode
ocorrer que o embrião seja dissolvido e depois reabsorvido pelo
organismo materno em virtude de um processo de autólise; ou então
pode suceder que ele sofra processo de mumificação ou maceração,
de modo que continue no útero materno” (CAPEZ, 2019, p.119).
A partir disso, uma análise clínica5 detalhada foi desenvolvida de modo a
facilitar a compreensão das nuances presentes do ato de abortamento, instituindo
alguns critérios úteis para o pleno entendimento, sendo eles: a) a idade gestacional:
considera-se aborto precoce o ocorrido antes da 12ª semana e aborto tardio entre a
12ª e 20ª semana; b) o peso fetal: é aborto acontece quando o feto pesa menos que
500gramas, considera-se imaturo o feto que pesa entre 500 e 999 gramas, e
prematuro, o que pesa entre 1000e 2500gramas; c) forma: o aborto pode ser
espontâneo, no qual não existe condição precipitante para ensejá-lo, ou
induzido,nos casos em que a gravidez é interrompida por conduta da gestante ou de
terceiros; e d) quadro clínico: podendo o aborto ser apenas ameaça, ou considerado
inevitável, incompleto, completo ou retido/frustrado. (SALOMÃO, 1994, p. 363).
2.3 TEORIAS RELATIVAS À ORIGEM DA VIDA
É nesse cenário de análise do início da vida humana que os debates acerca
da legitimidade ou não do aborto se concentram, gerando argumentos múltiplos
empenhados na defesa da permanência do status proibitivo do aborto ou na
descriminalização do ato dentro de parâmetros específicos.
Convém ressaltar que, de acordo com matéria realizada pela jornalista Karla
Bernardo Montenegro6, o Supremo Tribunal Federal, no ano de 2005, promoveu um
amplo debate público envolvendo vinte e dois especialistas de áreas como genética,
bioquímica, neurociências e biomedicina com o objetivo de aprofundar a discussão
em torno da seguinte pergunta: “Quando se inicia a vida e a partir de que etapa do
6 Matéria intitulada: “Início da Vida” no STF. Publicada no portal Ghente, disponível em:http://www.ghente.org/entrevistas/inicio_da_vida.htm.
5 SALOMÃO, A. Abortamento espontâneo. In Obstetrícia Básica. Bussâmara Neme, 1994.
23
desenvolvimento embrionário o embrião é pessoa humana merecedora da proteção
do Estado?”. A medida em questão foi motivada pela promulgação da Lei de
Biossegurança (Lei nº 11.105/2005), a qual permite a utilização de células-tronco
embrionárias congeladas diante de circunstâncias específicas, e a posterior
resposta oriunda da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 3510, de maio de
2005) proposta pelo ex-subprocurador-geral da República, Cláudio Fonteles.
Dito isso, a partir dos estudos da embriologia humana, constata-se que a
formação do embrião ocorre após a fecundação, ocorrendo o compartilhamento de
material genético e a posterior constituição do zigoto. Este último se desloca para a
tuba uterina e se adere ao útero, começando a formar uma placenta. Na segunda
semana, a implantação do embrião no útero acontece, permitindo a produção do
hormônio base dos testes de gravidez (hCG),7 enquanto na terceira ocorre a
gastrulação, na quarta, por sua vez, inicia-se o processo de neurulação, ou seja,
formação das estruturas precursoras do sistema nervoso.
Adiantando para a décima sexta semana é que o início das sinapses8 serão
realizadas nos circuitos neurais do feto, sendo um importante feito. Ao seguir para a
vigésima oitava semana, a formação dessas sinapses terá aumentado e o
funcionamento do sistema auditivo estará em processo primitivo de
desenvolvimento. Por fim, na trigésima segunda semana, o feto terá autonomia para
controlar a respiração e temperatura corporal, estando, logo, apto para sobreviver
na vida extrauterina.
Após o resumo simplificado das etapas embrionárias pelas quais passam o
ser humano no início de sua formação dentro do corpo materno até o momento de
expulsão e posterior vida plena extrauterina, há uma viabilidade para a
apresentação das teorias relativas ao início da vida humana. Inclusive, tais debates
permeiam aspectos que extrapolam o biológico e entram em esferas espirituais e
até jurídicas, como a origem da personalidade humana, recaindo na distinção
realizada anteriormente entre ser humano e pessoa.
8 LENT, Roberto. Cem bilhões de neurônios? conceitos fundamentais de neurociência. 2. ed.São Paulo: Atheneu, 2010. p 36. No ponto de encontro dos lábios do sulco neural, quando o tuboestá prestes a se formar, algumas células se destacam e constituem duas lâminas longitudinais,conhecidas como cristas neurais. A placa e, depois, o tubo e as cristas neurais, podem serconsideradas as mais precoces estruturas precursoras do sistema nervoso.
7 MOORE, Keith L; PERSAUD, T.V.N; TORCHIA, Mark G. Embriologia básica. 8. ed. Rio deJaneiro: Elsevier, 2012. p 1. O termo conceito refere-se a todos os produtos da concepção, incluindo oembrião a partir da fecundação e suas membranas.
24
2.3.1 Teoria Concepcionista
A teoria concepcionista defende que a origem da vida humana se inicia na
primeira fase do desenvolvimento embrionário, ou seja, a partir da concepção, que é
quando o espermatozóide penetra no ovócito e ambos se fundem, acarretando na
aquisição de identidade genética individual. Em decorrência disso estaria adquirida
também a condição de pessoa e os valores atrelados a esse status.
A vertente em questão detém múltiplos defensores, atravessando o aspecto
religioso com a espiritualidade do ser e alcançando o viés jurídico com a aquisição
de personalidade civil. Quanto à primeira análise, conforme foi abordado ao longo do
presente trabalho, a constante presença da religião na tutela do corpo feminino está
presente desde os primórdios da humanidade, porém ganhou contornos expressivos
durante o período medieval com as imposições morais da Igreja Católica. Nas
sociedades contemporâneas ocidentais ainda é perceptível a força dos argumentos
religiosos acerca da temática, principalmente por estarem respaldados em
instituições poderosas que alicerçam nossas instituições. Assim, no Brasil atual, o
cristianismo norteador de várias igrejas continua realizando mobilizações em massa
sob o argumento de proteger a vida do feto tido como possuidor de uma alma,
fazendo com que seus defensores ataquem as tentativas de descriminalização do
aborto.
Por outro lado, os juristas civilistas em quantidade expressiva, tendo como
uma de suas representantes a pesquisadora Stella Maris Martínez,9 argumentam
que a partir da fecundação surge uma nova vida distinta dos progenitores em
decorrência do zigoto deter patrimônio genético próprio. Tal ponto é fortemente
atrelado ao conceito de potencialidade de desenvolvimento, ou seja, o fato do óvulo
fecundado trazer consigo a “capacidade de realizar seu destino humano”, mediante
o decorrer do seu processo em fases sucessivas posteriores.
O Código Civil brasileiro de 2002 enseja a abertura para as argumentações
apresentadas, tendo em vista que em seu artigo 2º expressa: “a personalidade civil
da pessoa começa com o nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a
concepção, os direitos do nascituro”. Desse modo, reconhece a tese da
personalidade do nascituro a partir da concepção, descartando o nascimento com
vida como o ponto inicial, diferente dos direitos patrimoniais que se pautam na9 MARTÍNEZ, Stella Maris. Manipulação genética e Direito Penal. São Paulo : IBCCrim, 1998.
25
segunda hipótese. Diante disso, juristas como a renomada civilista Maria Helena
Diniz10 ratifica o posto em lei ao afirmar:
“Entendemos que o início legal da personalidade jurídica é o momento da
penetração do espermatozóide no óvulo, mesmo fora do corpo da mulher, pois os
direitos da personalidade, como o direito à vida, à integridade física e à saúde,
independem do nascimento com vida. Apenas os direitos patrimoniais, como o de
receber doação ou herança, dependem do nascimento com vida, conforme a
segunda parte do art. 2.º do Código Civil.”
Há o posicionamento no mesmo sentido expresso pelo Pacto de São José da
Costa Rica e a Convenção dos Direitos da Criança11, o qual dispõe: “a existência
das pessoas começa a partir do momento da concepção. De acordo com esse
pensamento, a partir da união dos gametas masculindo e feminino, passa a existir
um novo ser, uma pessoa individualizada e distinta de outro indivíduo.” Em paralelo,
o jurista Fernando Capez complementa sob a perspectiva penalista ao afirmar que o
Código Penal não faz a distinção entre óvulo fecundado, embrião ou feto, logo, o
encerramento da “vida” entre a concepção e o parto fora das possibilidades legais é
crime de aborto.
No entanto, a teoria concepcionista é amplamente criticada, em especial por
argumentos dos estudiosos da embriologia e genética. Isso porque, a presença do
código genético individual não é uma exclusividade do zigoto, pois qualquer célula
humana contém patrimônio genético completo e individualizado de seu portador,
logo, tornando-a similar a todas as demais células do corpo.
Desta forma, o fato da potencialidade do novo ser está amparada no
argumento da união de gametas é algo que desconsidera a imensidade de zigotos
que estão destinados ao fracasso, além de rejeitar que o começo concepcional da
vida é sempre um início abstrato por estar sujeito à múltiplas inferências post factum.
Portanto, com base nessa lógica, seria necessário estender a tutela jurídica do
embrião recém-formado para os demais gametas e suas potencialidades, para citar
um exemplo da falha argumentativa desse discurso mencionado pela professora
11 Organização dos Estados Americanos, Convenção Americana de Direitos Humanos (“Pacto de SanJosé de Costa Rica”), 1969.1 ed. Sage Publications, Inc, 2008.
10 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 9. ed. rev., aum. e atual. de acordo com oCódigo de Ética Médica. São Paulo: Saraiva, 2014.
26
Minahim em sua obra “Direito penal e biotecnologia”. 12
2.3.2 Teoria Natalista
A teoria natalista define o nascimento com vida como condição necessária
para a aquisição de personalidade jurídica, de modo que anterior ao momento
mencionado o nascituro gozaria apenas de uma mera expectativa de direito.
Cumpre destacar que o “nascimento com vida”, para os adeptos da corrente teórica,
significa o adequado funcionamento do aparelho cardio-respiratório do recém
nascido, independente da forma humana e do tempo mínimo de sobrevida. Explica o
jurista Neves que “para os adeptos dessa teoria, a personalidade civil começa do
nascimento com vida, e isso porque só a pessoa pode ter personalidade, e o
produto da concepção não é a pessoa, é apenas uma parte do corpo da mulher”.
Neste cenário, o jurista Clóvis Beviláqua13 leciona que o Código Civil
Brasileiro adotou parcialmente a Teoria Natalista, em que o nascituro não existe
como pessoa, passando a ser um indivíduo apenas se ocorrer o nascimento com
vida. Expressa o professor: “o legislador civilista teria adotado a Teoria Natalista por
ser mais prática, mas cedeu aos encantos da Concepcionista em inúmeros pontos
do sistema que tratam do nascituro como pessoa”. Assim, se ocorrer o nascimento
sem vida, todos os direitos se extinguem, porém, se viver, mesmo que por segundos,
os direitos ficarão adquiridos e poderão ser transmitidos (posse, direito à herança,
direito à adoção, direito à curatela). Em contrapartida, o bem jurídico da vida do
nascituro é protegido no tipo penal do aborto, considerando o nascituro como pessoa
detentora de direitos.
Os defensores da presente teoria afirmam que, no momento anterior ao
nascimento daquele que ainda é considerado nascituro, o produto do corpo humano
não é entendido como indivíduo e não possui personalidade jurídica. Logo, no vago
espaço entre a concepção e o nascimento há uma expectativa de personalidade, e
com base nesse entendimento, o aborto provocado é punido pelas leis penais e a
legislação civil reserva e a cautela direitos. Percebe-se, então, uma certa
13 BEVILÁQUA, Clóvis. Comentários ao Código Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1975.
12 Ver MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito Penal e biotecnologia. São Paulo: Revista dos Tribunais,2005.
27
compatibilidade com a instauração do regime de abortamento legal. Alguns
representantes dessa escola na doutrina brasileira, dentre outros, são os autores
Sérgio Abdalla Semião, Caio Mário da Silva Pereira, Sílvio Rodrigues, e Humberto
Theodoro Júnior.
Destaca-se a diferença essencial entre a teoria natalista e a teoria da
personalidade condicional, pois ambas somente diferem no fato da primeira defende
que a personalidade civil do homem se inicia com o nascimento com vida, enquanto
a segunda pondera que a personalidade civil do homem é oriunda do nascimento
com vida, todavia, o nascituro teria direitos que estariam sob a dependência de uma
condição suspensiva que, por sua vez, consiste no fato de nascer com vida. Por fim,
é notório que diante das duas teorias aqui apontadas, a legislação brasileira adotou
a teoria natalista.
2.3.3 Teoria do desenvolvimento do sistema nervoso.
A teoria da formação do sistema nervoso encontra-se atrelada ao conceito de
morte extraído do art.3º da Lei 9.434/1997, que disciplina sobre o transplante e
tratamento de órgãos, tecidos e partes do corpo humano. Há a compreensão por
parte de seus defensores de que a inatividade cerebral determina a morte do
indivíduo, posto que a morte encefálica é o marco do período post mortem. Em vista
disso, entende-se a atividade cerebral como o início da vida humana, embora
encontre-se divergências sobre o momento em que tal atividade se estabelece no
desenvolvimento embrionário.
Diante disso, o marco do início da vida seria a partir do desenvolvimento da
organização básica do sistema nervoso central. A não formação do córtex central,
na maior parte das vezes, gera o aborto espontâneo, uma vez que o organismo
materno nega o embrião, como se não o reconhecesse, eliminando-o. Este é o
principal motivo que leva os fetos anencéfalos a não nascerem no tempo normal.
A teoria rudimentar do sistema nervoso defende que a origem da vida
humana acontece na oitava semana, diante da funcionalidade dos aparelhos
cerebrais e nervosos, identificando-se atividade cerebral. Esta atividade deve estar
relacionada à capacidade de consciência, posto que o ser humano é
28
fundamentalmente consciente, capacidade que o difere dos demais seres vivos,
segundo o principal defensor da corrente, Jacques Monod.
Durante a sexta semana, ocorrem os vestígios de meros impulsos individuais
das células neurais, de modo que na oitava semana a atividade bioelétrica dos
novos neurônios se intensifica. As células neurais se aproximam até se conectarem
umas com as outras a fim de transmitir informação-junção comunicante. Cumpre
destacar, a existência de um vertente que acredita que o abortamento deveria ser
feito até a oitava semana, pois é quando ocorre o aparecimento “das primeiras
estruturas que darão origem ao sistema nervoso central”. Na décima sexta semana,
formam-se os circuitos neurais e acontecem as primeiras sinapses, de natureza
elétrica.
No entanto, é somente na vigésima semana que se constata as ondas
cerebrais, sendo considerada pelos representantes da outra vertente da teoria em
questão como o marco inicial da vida humana. A atividade cerebral do feto permite a
tradução das informações sensoriais, cujas principais características são: o controle
da motricidade, a percepção sensorial, a participação na regulação das funções
orgânicas e dos vasos sanguíneos e a contribuição para manutenção da vigília (sem
necessidade de consciência). Complementa-se, também, ao marco de vinte
semanas o fundamento biológico referente ao “argumento da morte cerebral”,
quando completada a formação do sistema nervoso central nesse período.
Ao analisar os conhecimentos apresentados na teoria do desenvolvimento do
sistema nervoso e considerando a consciência como propriedade evolutiva e
essencial do ser humano, é possível atrelar o abortamento legal reivindicado na
ADPF 442 com a formação do sistema nervoso do feto. Portanto, os defensores da
descriminalização do aborto no Brasil solicitam em diversas ações o tempo limite de
até doze semanas para solicitação da prática do abortamento legal, levando em
consideração a intensificação das atividades neurais do feto, as quais geram uma
espécie de consciência embrionária.
2.4. RELAÇÃO COM A SAÚDE PÚBLICA
O aborto no Brasil está envolto de diversas dificuldades que envolvem a
obtenção da informação e de relatos por parte das mulheres, sendo objeto de forte
29
repercussão social. O motivo maior para a repercussão está na relação com
aspectos morais, éticos, legais e religiosos, cuja avaliação depende da singularidade
de cada pessoa. Quando o aborto é induzido por razões médicas, realizado por
profissionais capacitados e em boas condições de higiene, é um procedimento
seguro. Todavia, quando feito de maneira inadequada, geralmente resulta em graves
complicações e inclusive na morte da mulher.
Diante disso, o abortamento é representado como um grave problema de
saúde pública. Considerando apenas o território nacional, a estimativa fornecida
pelo Ministério da Saúde é de que ocorram anualmente mais de um milhão de
abortamentos induzidos, sendo uma das principais causas de morte materna no
país. O MS considera a saúde da mulher prioridade. O documento Política Nacional
de Atenção Integral à Saúde da Mulher – Princípios e diretrizes14, elaborado a partir
de diálogo com diversos setores sociais, reflete o compromisso com a
implementação de ações de saúde que contribuam para garantir os direitos
humanos das mulheres e diminuir a morbimortalidade por causas preveníveis e
evitáveis.
Outrossim, o Ministério da Saúde, em 2009, elaborou uma Cartilha chamada
de “Aborto e Saúde Pública – 20 anos”15, com uma compilação de 20 anos de
estudos a respeito do tema. Os principais objetivos do documento em questão é
destacar a importância da questão para a saúde pública no país, apesar de advertir
sobre a dificuldade de se levantar dados a respeito do aborto, pelo motivo da
dificuldade de obtenção da informação oriunda da criminalização da prática.
No território brasileiro, os dados referentes aos abortos praticados, bem como
às mortes decorrentes de procedimentos clandestinos, são possivelmente
subestimados, haja vista que tais pesquisas englobam dados oficiais e captados
junto à rede pública de saúde, que de forma geral atende pessoas de baixa renda.
Por tratar-se de um crime, torna difícil localizar clínicas clandestinas, bem como
identificar os dados a respeito de procedimentos abortivos praticados nesses locais.
Logo, expõe o Ministério da Saúde na mencionada cartilha:
15 ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Aborto esaúde pública no Brasil: 20 anos. Brasília: Ministério da Saúde, 2009. 428 p. (Série B. TextosBásicos de Saúde).
14 BRASIL. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, Ministério da Saúde,Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas– Brasília:Ministério da Saúde, 2011.
30
“O maior desafio para o cálculo da magnitude do aborto no Brasil é a
dificuldade de acesso a dados fidedignos, além do alto número de
mulheres que omitem ter induzido aborto em questionários com
perguntas diretas. Em finais dos anos 1980, foi testada a técnica de
resposta ao azar para estimar a indução do aborto em uma ampla
amostra populacional de mulheres. Por meio da abordagem direta,
encontrou-se a incidência de oito abortos a cada 1.000 mulheres, ao
passo que, com a técnica de resposta ao azar, chegou-se a 42 a
cada 1.000, ou seja, uma incidência cinco vezes superior.” (Aborto e
Saúde Pública – 20 anos. Ministério da Saúde, 2009. Fl. 16).
De acordo com a citada Cartilha, os estudos descritivos adotam como
variáveis: idade, classe social, religião, tempo gestacional, tipo de aborto,
procedimento abortivo, tempo de internação e complicações de saúde. As variáveis
médicas são mais regulares entre as pesquisas, permitindo, por sua vez, uma
melhor comparação e síntese, ao passo que as variáveis sociais, em particular
conjugalidade, educação e inserção no mundo do trabalho, apresentam diferentes
sistemas classificatórios, o que dificulta a síntese.
A Pesquisa Nacional do Aborto16, realizada em 2016, corroborou com a
afirmação de que o aborto é comum entre as mulheres brasileiros, pois das 2.002
mulheres alfabetizadas entre 18 e 39 anos entrevistadas pela PNA 2016, 13% (251)
já fez ao menos um aborto. Na faixa etária de 35 a 39 anos, aproximadamente 18%
das mulheres já abortaram. Entre as idades de 38 e 39 anos a taxa sobe a quase
19%. A predição por regressão linear das taxas de aborto pelas idades é de que a
taxa a 40 anos é de cerca de 19%. Por aproximação é possível dizer que, em 2016,
aos 40 anos de idade, quase uma em cada cinco mulheres já fez aborto (1 em cada
5,4).
Outra relevante pesquisa para a tentativa de estimar a dimensão causada
pela criminalização foi a realizada pela OMS, a qual salienta que a situação pode
ser ainda mais alarmante do que se aparenta. O número de abortos pode
16 DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Pesquisa Nacional de Aborto 2016.Ciência saúde coletiva [online]. 2017, vol.22, n.2, pg. 653-660.
31
ultrapassar 1 milhão de mulheres, segundo um estudo publicado em 2013 pelo
braço do órgão na América Latina, a Organização Pan-americana de Saúde.
Segundo o estudo de 2010, feito pela Universidade de Brasília (UnB), tido
como referência pela OMS, e comandado pelos pesquisadores Débora Diniz e
Marcelo Medeiros17, uma a cada cinco mulheres com mais de 40 anos já fizeram,
pelo menos, um aborto na vida. Hoje, no Brasil, existem 37 milhões de mulheres
nessa faixa etária — de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). Dessa forma, estima-se que 7,4 milhões de brasileiras já fizeram pelo menos
um aborto na vida.
De acordo com estudo da UnB, de 201018, o método mais comum é que a
mulher comece o aborto em casa, com medicamentos, e vá para a rede pública
fazer a curetagem:
“O aborto hoje é um problema de saúde pública e deve ser discutido
pelos três poderes. Os custos e as complicações dos abortos ilegais
são enormes. Clinicamente as mulheres podem ter infecções,
contrair doenças que incluem a Aids, ter hemorragias que podem
levar à morte e ter perdas de órgãos internos. E isso vai parar nas
mãos do Estado. As pessoas vão recorrer também ao SUS —
explica Sidnei Ferreira, presidente do Conselho Regional de
Medicina do Rio (Cremerj)”.
Desta forma, algumas poucas mulheres possuem boas condições financeiras
para recorrer a clínicas, com mais higiene e cuidado, diferente das gestantes de
condições socioeconômicas mais vulneráveis. Estas mulheres compõem a maior
parcela da população brasileira e são impelidas a buscar métodos mais perigosos,
resultando no elevado índice de agravo à saúde e alta mortalidade. As medidas para
evitar uma gravidez indesejada no Brasil são insuficientes. Como resultado, várias
mulheres se envolvem em situações de abortos inseguros, os quais, inúmeras
18 Ibid., pg. 654.
17 DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Itinerários e métodos do abortoilegal em cinco capitais brasileiras. Artigo apresentado no Cien Saude Colet, Faculdade de Direito,Universidade de Brasília, 2012.
32
vezes, resultam em complicações graves como hemorragias, infecções, perfuração
do útero, esterilidade, podendo levá-las à morte em consequência dessas práticas.
Segundo o PNA 2016, metade das mulheres aborta usando medicamentos,
sendo 48% (115) dos casos válidos. A proporção é a mesma observada em 2010
(48%). Se considerados os 4% (10) de não-resposta ao quesito, a proporção seria
ainda próxima, 46%. O principal medicamento utilizado no Brasil é o Misoprostol,
recomendado pela Organização Mundial da Saúde para a realização de abortos
seguros. Cumpre salientar que, na realidade brasileira, uma expressiva quantidade
de mulheres brasileiras não possuem acesso a tais medicamentos. Alguns desses
métodos, como o preservativo masculino e as pílulas anticoncepcionais, ainda que
distribuídos em postos de saúde, não chegam a todos os cidadãos brasileiros.
Destarte, cerca de metade das mulheres precisou ser internada para finalizar
o aborto: 48% (115) das mulheres foram internadas no último aborto. A proporção
cai para 46% se considerados os 3% (10) de não resposta. Mesmo levando-se em
conta os intervalos de confiança de 2 pontos percentuais, ocorreu uma queda nas
internações entre 2010 (55%) e 2016 (48%). Dois terços (67%, 18) das mulheres
que confirmaram ter abortado em 2015 (27) foram internadas para finalizar o aborto.
Considerando que a morte feminina representa apenas uma fração dos
problemas relacionados ao aborto, os dados referentes à hospitalização decorrentes
do abortamento confirmam sua magnitude, sendo que a curetagem pós-abortamento
representa o terceiro procedimento obstétrico mais realizado nas unidades de
internação da rede pública de serviços de saúde. A problemática acerca das
complicações pós-aborto ou da morbidade relacio-nada ao aborto desdobra-se em
vários outras questões pertinentes à esfera da saúde propriamente dita da mulher, à
possibilidade de atendimento pelos serviços de saúde e à sobrecarga hospitalar e ao
custo das internações.
Neste sentido, os gastos da rede pública de saúde com as consequências do
aborto clandestino são suportados com recursos financeiros públicos, sendo um
valor significante para a destinação da verba do Estado. Com base em dados do
estudo do estudo “Magnitude do abortamento induzido por faixa etária e grandes
33
regiões”e com dados do DataSus, calculou-se um valor médio de quanto os
governos gastam com complicações decorrentes de interrupções da gravidez, a
maioria clandestina. No ano de 2013, foram 205.855 internações decorrentes de
abortos no país — sendo 51.464 espontâneos e 154.391 induzidos (ilegais e legais).
Levando em consideração que o valor médio da diária de uma internação no SUS é
de R$ 413 e que as hospitalizadas passaram apenas um dia sob cuidados médicos,
o governo gastou R$ 63,8 milhões por conta dos abortos induzidos.
Outrossim, em 2013, foram 190.282 curetagens (método de retirada de
placenta ou de endométrio do corpo), a grande maioria de quem quis interromper a
gravidez. Isso teria custado um total de R$ 78,2 milhões, já que, pela tabela do SUS,
cada intervenção custa, em média, R$ 411. No total, chega-se a, no mínimo, R$ 142
milhões. Em entrevista para o Portal O Globo, em 2014, a diretora da Federação
Internacional para o Planejamento Familiar (IPPF), Carmem Barroso19, afirmou que:
"O custo do aborto inseguro para o sistema de saúde é altíssimo, enquanto que se
nós possibilitássemos a essas mulheres a informação de que elas necessitam e o
acesso aos serviços seguros, esses custos baixariam dramaticamente. [...] Só existe
problema de mortalidade materna causada pelo aborto inseguro nos países onde as
leis não permitem a realização dos abortos nas condições médicas adequadas."
(fonte).
Portanto, a rede pública de saúde já arca com os custos oriundos dos abortos
clandestinos, sendo que muitas das mulheres interrompem a gestação em suas
residências, por meio de medicamentos abortivos ou até mesmo métodos mais
invasivos. Tais mulheres, posteriormente, recorrem à rede pública de saúde para os
primeiros socorros em razão das consequências do procedimento realizado em casa
e sem os devidos cuidados.
Constata-se a interrupção da gravidez existe, é fato social de ampla
dimensão e vem sendo realizada, na maioria dos casos, em péssimas condições,
fato que coloca em risco a vida das mulheres. Logo, não atentar para o problema
implícito ao abortamento é continuar a reprisar tragédias vividas isoladamente por
19 CASTRO, Carolina Oliveira; TINOCO, Dandara; ARAÚJO, Vera. O Globo. Tabu nas campanhaseleitorais, aborto é feito por 850 mil mulheres a cada ano. 2014.
34
mulheres e que resultam, às vezes, na morte de milhares de mulheres pobres,
negras e jovens, muitas das quais ainda se veem ameaçadas pela denúncia e
punição judicial. Com a possibilidade de reduzir esses impactos, a legalização do
aborto tem sido temática em constante discussão entre movimentos sociais, juristas,
políticos, profissionais e outros setores da sociedade brasileira.
Impedir e criminalizar o aborto implica em vulneração das mulheres e fere os
princípios bioéticos da beneficência, não maleficência, autonomia e justiça. Se
contrapõe à bioética da proteção, pois desprotege as mulheres que praticam o
aborto clan-destino e em condições inseguras, colocando-as suscetíveis a agravos à
saúde. Adicionalmente, faz-se necessário, no contexto do SUS, que qualquer mulher
tenha seus direitos sexuais e reprodutivos assegurados, bem como que os recursos
empregados para o tratamento das vítimas de aborto clandestino sejam deslocados
para a realização dos abortamentos seguros dentro de um cenário de possível
legalização, sendo uma das principais propostas dos defensores dessa pauta.
Por fim, conforme a pesquisadora Amanda Ribeiro da Costa20, na
perspectiva da saúde pública, a legalização do aborto não pode ser dotada como
medida isolada. Precisa ser acompanhada de políticas amplas e efetivas de saúde
reprodutiva que garantam acesso ao pré-natal, parto, puerpério, assistência à
anticoncepção, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis –inclusive AIDS
– e outras necessidades de mulheres relativas a este campo da saúde.
3. O ABORTO SEGUNDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
3.1. ANÁLISE CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS QUE PERPASSAM A PRÁTICADO ABORTO
3.1.1 Dos direitos fundamentais
20 COSTA, Amanda Ribeiro da. Descriminalização do aborto. 32 fls. Monografia (Graduação).Faculdade de Direito, Ciências Administrativas e Econômicas da Universidade Vale do Rio Doce.Governador Valadares, 2011.
35
3.1.1.1 Direito à vida
A partir da análise inicial acerca das teorias que permeiam a origem da vida
humana e seus parâmetros, constata-se a necessidade de um aprofundamento no
debate através da abordagem jurídica e suas amplas nuances. Dito isso, cabe
ressaltar que a Constituição Federal de 1988 não abordou de maneira expressa em
seu texto a questão do abortamento, contudo leituras sistemáticas são feitas de
modo a interpretar seu caráter proibitivo ou permissivo a partir da observação dos
princípios constitucionais e direitos fundamentais regentes do ordenamento jurídico
em sua completude. A característica presente nessas duas modalidades de norma
mencionadas é a fundamentalidade formal, ou seja, são dispositivos com “força
jurídica própria da supremacia constitucional”, condição necessária e suficiente ao
status de direito fundamental, segundo o jurista Dimitri Dimoulis. 21
Desta forma, o direito à vida encontra-se na categoria de direitos
fundamentais e está presente no artigo 5º, caput, no capítulo dos Direitos Individuais
e Coletivos do texto constitucional. Importante elucidar que os direitos individuais
são aqueles direcionados à defesa da autonomia pessoal de forma a permitir o
desenvolvimento de suas potencialidades e viabilizar o gozo da liberdade própria
sem interferência excessiva do Estado. Por outro lado, os direitos coletivos
objetivam a proteção ampla da sociedade, possuindo um caráter transindividual,
logo, havendo múltiplos sujeitos-titulares unidos por uma relação jurídica-base.
Cumpre citar o texto referido da Carta Magna de 1988: “Art. 5º Todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.”
Desse modo, o direito à vida, entre os demais citados no trecho acima, é
considerado um dos mais fundamentais por ser um pré-requisito lógico para o
exercício dos outros direitos garantidos em seu texto, sendo objeto de uma
autônoma e específica tutela constitucional. Detém, consequentemente, um caráter
inviolável com fins de proteção da integralidade existencial, assim como o direito à
liberdade.
21 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 6. ed. SãoPaulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 53.
36
Nesse diapasão, é importante compreender que apesar de inviolável, nenhum
direito fundamental é absoluto, pois é necessário analisar sua relação com outros
direitos equiparadamente protegidos pela Constituição Federal. Dito isso, o feto é um
pessoa em potencial e, assim, não possui personalidade jurídica plena, mas
somente a expectativa de adquirir materialmente seus direitos após o nascimento
com vida. Portanto, realizar uma equiparação entre o feto em seu estágio inicial com
vidas formadas extra-uterinas é desproporcional, no sentido que as vidas
plenamente desenvolvidas já concretizaram a condição jurídica de sujeito de direitos,
logo, encontram-se legitimadas inquestionavelmente dentro do ordenamento jurídico.
Todavia, a proteção constitucional à vida intrauterina é reconhecida, sendo
tida, dentro da teoria adotada pelos defensores da descriminalização, a partir da
décima segunda semana de gestação, período no qual ocorre a intensificação das
atividades neurais do feto, conferindo-lhe a capacidade primária de pensar e sentir
os múltiplos estímulos. Adiante, na vigésima semana, a tutela estatal se intensifica,
pois surgem as ondas cerebrais, acarretando na atividade cerebral do feto
relacionada à tradução das informações sensoriais. Neste período, o nascituro
conquista o status moral de pessoa, dentro dos parâmetros da teoria em questão.
A existência de tal proteção intrauterina é comprovada, contudo, a vida
completamente formada e operante fora do útero materno deve possuir uma
proteção mais efetiva pelo ordenamento jurídico. Isso porque, de acordo com a
análise dos dados concretos coletados pelo Sistema de Informações sobre
Mortalidade (SIM),22 o aborto ainda configura uma importante causa de óbito
materno, embora com tendência de queda, de modo que, entre 2006 e 2015, foram
registrados no Brasil 770 óbitos com causa básica. Entre os 770 óbitos com causa
básica declarada como aborto, apenas 7 (0,9%) óbitos foram devidos a aborto por
razões médicas e legais (O04), 115 (14,9%) foram declarados como abortos
espontâneos (O03), 117 (15,2%) como outros tipos de aborto (O05) e 96 (12,5%)
como falha de tentativa de aborto (O07).
Portanto, apesar de existir situações de priorização da mulher em detrimento
do feto, como a permissão do aborto legal nos casos em que a gestante corre risco
22 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise deSituação em Saúde. Guia de vigilância epidemiológica do óbito materno. Brasília : Ministério daSaúde, 2009. 84 p. : il. – (Série A. Normas e Manuais Técnicos).
37
de vida, a regra geral atua em sentido oposto. Conforme foi exposto no tópico de
matéria penalista, a repressão penal permanece excessivamente rigorosa aos
abortamentos não abarcados nas hipóteses de excludente de ilicitude. Além disso,
devido não haver um sistema legal implantado em território nacional, as redes
públicas de saúde não estão preparadas para lidar adequadamente com as
mulheres que desejam abortar legalmente ou estão no processo de
pós-abortamento, gerando os números relatados acima que ferem diretamente o
pleno direito à vida dessas mulheres. Cabe destacar que os dados são relativos aos
casos registrados, pois muitos ocorrem na clandestinidade.
3.1.1.2. Direito à igualdade
Por sua vez, o direito à igualdade, disposto no caput do artigo 5º do texto
constitucional, é o responsável por garantir que todos os seres humanos sejam
tratados de maneira equitativa e justa, sem que passem por discriminações
prejudiciais ao desempenho de sua plena existência. E, segundo declarou o ministro
do STF, Luís Barroso23, a subordinação de gênero promoveu ao longo dos séculos
desigualdade social e econômica entre homens e mulheres, sendo seus resultados
percebidos até os dias atuais, como através do recebimento de salários inferiores
por mulheres que cumprem as mesmas funções que os homens ou nas constantes
discriminações que sofrem baseadas em estereótipos degradantes. Outra
pré-concepção enraizada socialmente é o desejo feminino pela maternidade.
A discriminação está materializada nos textos legislativos, como na proibição
do aborto, devido afetar desproporcionalmente a realidade de milhares de mulheres
que buscam medidas drásticas para realizarem sua vontade de interrupção da
gravidez. Além de arriscarem suas vidas ao recorrerem a meios clandestinos,
podem sofrer discriminações amplas apenas por buscarem à lei e realizarem o
abortamento legal, por exemplo. Assim, a violação da igualdade entre gêneros é
constante e enraizada no imaginário coletivo brasileiro, na medida em que as
mulheres precisam carregar o ônus por suas decisões sozinhas e posteriormente
lidar com julgamentos vexatórios independente da escolha tomada.
23 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitosfundamentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
38
Cumpre destacar que inexiste um respeito à igualdade social na mesma
proporção que à individual. Tal igualdade social refere-se ao contexto mais amplo de
análise dos diversos marcadores sociais que permeiam a vivência de um ser
humano inserido no contexto do Estado de Direito Contemporâneo, como a raça e
classe social. Esses dois elementos são responsáveis por transformar
significativamente vivências coletivas, acarretando na soma de mais preconceitos e
dificuldades de acesso aos meios seguros de abortamento e à saúde de qualidade.
Para a população negra no Brasil, as vulnerabilidades estão estruturalmente
vinculadas ao racismo, que atua na sua produção, determinando piores indicadores
sociais e de saúde, os quais refletem nos números mais dramáticos no tocante aos
abortamentos feitos por mulheres negras e pobres. De acordo com a pesquisadora
Emanuelle Góes24, as mulheres pretas em situação de abortamento interromperam
a gravidez mais tardiamente. Destarte, declararam ter enfrentado mais barreiras
institucionais, em especial o tempo de espera por uma vaga ou leito (três vezes
maior do que orelatado pelas brancas), e apresentaram proporções duas vezes
maiores de condições regulares, graves e muito graves comparativamente às
brancas.
Desta forma, a Pesquisa Nacional de Aborto de 2016 (PNA 2016) aponta que
as mulheres mais vulneráveis à interrupção de uma gravidez de modo inseguro são
negras, jovens, solteiras, com filhos, de baixa escolaridade e baixa renda. O PNA é
um inquérito domiciliar baseado em uma amostra aleatória representativa da
população total de mulheres alfabetizadas com idade entre 18 e 39 anos no Brasil.
Estudos nacionais sobre a utilização de serviços de saúde sexual e
reprodutiva evidenciam que são as mulheres negras/pardas aquelas mais expostas
a barreiras individuais e institucionais de acesso aos cuidados, desde a iniciativa de
procura pelo serviço até o momento do atendimento. Isto é perceptível no maior
percentual de relato de barreiras individuais enfrentadas na procura pelo primeiro
atendimento pelas mulheres pertencentes ao referido grupo, sendo 32% das
mulheres negras, contra 28% das pardas e 20,3% das brancas, segundo pesquisa
da GravSus-NE, estudo multicêntrico realizado em três capitais do Nordeste
24 GÓES, Emanuele. F. Racismo, aborto e atenção à saúde: uma perspectivainterseccional. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Programa de Pós-Graduação em SaúdeColetiva, Universidade Federal da Bahia, Bahia, 2018.
39
brasileiro: Salvador (Bahia), Recife (Pernambuco) e São Luís (Maranhão). O projeto
foi aprovado pelos Comitês de Ética das três universidades e pela Comissão
Nacional de Ética em Pesquisa.
Portanto, a proibição do aborto viola duplamente o direito à igualdade: gênero
e raça atrelada ao fator classe social. A igualdade de gênero somente será
garantida se a mulher tiver a liberdade de realizar a manutenção da gravidez
segundo seus parâmetros individuais. E haverá igualdade social caso as mulheres,
independente da raça ou condição socioeconômica, tenham oportunidades
concretas e respaldo institucional adequado para realizar a interrupção voluntária da
gestação de forma segura e gratuita.
3.1.1.3. Direito à liberdade e autonomia
O direito à liberdade está presente no artigo 5º, juntamente com o direito à
vida e à igualdade, sendo da mesma forma inviolável e fundamental para o exercício
da completude humana com dignidade. Cumpre apontar as duas facetas
interpretativas do conceito de liberdade: subjetiva e objetiva. A primeira refere-se ao
poder de escolha, também conhecido como livre-arbítrio, o qual é desempenhado
através da manifestação da vontade individual frente os múltiplos cenários
cotidianos. Por sua vez, a liberdade negativa é compreendida como a ausência de
obstáculos e imposições externas à pessoa para o exercício livre do ser,
constituindo a liberdade de fazer.
Em relação ao direito em questão, o jurista constitucionalista Dimitri Dimoulis,
em sua obra teoria geral dos direitos fundamentais25, o direito à liberdade está
vinculado à autodeterminação do indivíduo: “[...] é poder de atuação sem deixar de
ser resistência à opressão; não se dirige contra, mas em busca, em perseguição de
alguma coisa, que é a felicidade pessoal, que é subjetiva e circunstancial, pondo a
liberdade, pelo seu fim, em harmonia com a consciência de cada um, com o
interesse do agente. Tudo que impede aquela possibilidade de coordenação dos
meios é contrário à liberdade. E aqui, aquele sentido histórico da liberdade se insere
na sua acepção jurídico-política.”
25 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 6. ed. SãoPaulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 233.
40
O ministro Luís Roberto Barroso coaduna com o entendimento da autonomia
enquanto expressão mais pura do exercício da liberdade, manifestando que aquela
“expressa a vontade livre, a capacidade do indivíduo de se autodeterminar, em
conformidade com a representação de certas leis”. Portanto, é a definição individual
das normas internas regente da vida de cada um, de forma que o Estado e demais
agentes públicos e privados devem respeitar seu status negativo, ou seja, devem se
abster de intervenções indevidas e permitir a consolidação da autotutela.
Constata-se a invasiva ação estatal na regulação sobre o corpo feminino através da
tipificação do aborto, privando a mulher de autogerir sua vida e exercer sua
liberdade de escolha.
Em relação à autonomia, apontada como segundo elemento essencial, em
consonância com o discorrido anteriormente, é a capacidade de autodeterminação
individual, a qual permite que julgamentos pessoais sejam realizados e decisões
tomadas livremente. A conduta de proibir o abortamento fora das hipóteses legais
constitui um desrespeito direto aos significantes que permeiam a compreensão da
autotutela ao relegar a mulher ao papel passivo de aceitação da sua condição, como
uma espécie de sub-cidadã não dotada de direitos.
Desse modo, é necessário que o Estado brasileiro garanta a autonomia
feminina em relação ao seu próprio corpo, abarcando, consequentemente, a decisão
de seguir ou não adiante com uma gravidez. A maternidade compulsória é um fato
social dotado de uma crueldade significante para as mulheres ao redor do mundo,
impondo-as à obediência do papel de mãe para que sua existência seja legitimada
perante a coletividade. Os agentes públicos e as instituições desconsideram as
subjetividades de cada uma dessas pessoas, bem como suas complexidades,
regendo-as através de tradições relativas à moralismos religiosos e às normas
jurídicas rígidas com o objetivo de atender interesses políticos, como o controle do
corpo feminino e sua subjugação.
Neste sentido, deve ser assegurado à mulher o poder de escolha, enquanto
exercício da sua liberdade e autonomia, de forma que a maternidade seja resultado
de desejo, e não de obrigação perante o poder público. Conforme o art. 95 da
Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher,26 os
26 VIOTTI, Maria Luíza Ribeiro. Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência MundialSobre a Mulher. ONU Mulheres: Pequim, 1995. p. 178.
41
indivíduos têm o direito de “decidir livre e responsavelmente o número, a frequência
e o momento para terem seus filhos e de possuir as informações e os meios para
isso, bem como do [...] direito de adotar decisões relativas à reprodução livres de
discriminação, coerção e violência”.
3.1.1.4. Dignidade da pessoa humana
Os direitos fundamentais dispostos anteriormente adquirem força formal e
material na medida em que estão atrelados à compreensão do princípio maior
regente de todo o ordenamento jurídico brasileiro: a dignidade da pessoa humana.
Este fundamento da República Federativa do Brasil está contido no artigo 1º, inciso
III, da Constituição Federal. Dada sua relevância para a efetivação dos demais
direitos, a dignidade encontra-se vinculada à atuação dos poderes estatais e do
conjunto normativo em sua completude. Assim, a aplicação em casos concretos é
essencial, principalmente em contextos em que se verificam desrespeitos à vida, à
integridade física e psíquica, ausência de condições mínimas de existência digna,
limitação da liberdade ou provocação de desigualdade ou em casos de flagrante
desrespeito a direitos fundamentais.
O doutrinador constitucionalista Ingo Wolfgang Sarlet, em seu manual de
Direito Constitucional27, expressa a dificuldade de concretização da dignidade
humana, dado que seu significado é abrangente e permite múltiplas interpretações
abstratas, podendo fragilizar seu âmbito de proteção como norma jurídica
fundamental. Expõe o autor:
“Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade
intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e
da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos
e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e
qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe
garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável,
além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável
nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os
27 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana. Revista Brasileira deDireito Constitucional – RBDC N.09 – Jan/Jun. 2008, p. 377.
42
demais seres humanos (SARLET, 2008, p. 63)”.
Dito isso, Luís Roberto Barroso completa defendendo que o princípio da
dignidade deve ser compreendido em conjunto com três elementos essenciais: valor
intrínseco, autonomia e valor social da pessoa humana. Ao tratar da questão
específica do aborto, os dois primeiros adquirem uma maior força, pois
correspondem à dignidade relacionada à natureza do ser, de maneira que cada ser
humano é único e o fim de si mesmo. Assim, as mulheres precisam ser respeitadas
como seres humanos completos e não um meio para atender interesses políticos
emanados das instituições regentes do país. Tais valores estabelecidos socialmente
possuem o condão de revelar o quanto a maternidade compulsória é uma afronta à
dignidade.
Outrossim, há relação entre o valor intrínseco da pessoa humana e o direito
fundamental à igualdade, no sentido do valor equitativo que deve existir entre todos
os seres humanos, além de direito à integridade física, moral ou psíquica relativa à
integridade do ser. Da mesma forma, o direito à integridade é lesado com a
criminalização do aborto, visto que a mulher é coagida a passar por todas as
transformações corporais ocasionadas pelo período gestacional contra sua vontade,
afetando seus princípios e seu psciológico de maneira irreversível.
Por fim, o valor social da pessoa humana também é prejudicado, pois as
mulheres que abortam ficam estigmatizadas socialmente, acarretando no processo
de marginalização. Isto ocorre mais intensificadamente com mulheres pertencentes
a grupos vulneráveis, como as mulheres negras/pardas, pobres e sem
escolarização. Cabe destacar, que o estigma existe por decisão política do Estado
em manter a criminalização e o tabu acerca de uma prática tão comum na realidade
de milhares de mulheres. Este projeto estatal é diametralmente oposto à proteção da
dignidade humana dessas mulheres, havendo um desrespeito constante à norma
regente do ordenamento jurídico brasileiro.
3.1.1.5. Direito à saúde
43
O jurista Daniel Sarmento,28 em seus escritos acerca da proteção
constitucional às mulheres, aponta a questão do direito à saúde da gestante,
enquanto um dos direitos fundamentais mais importantes por propiciar a
manutenção de bens jurídicos primordiais, como a integridade física e psíquica da
coletividade, e, especialmente das principais vítimas (arts. 6º e 196, CF).
A Organização Mundial de Saúde (OMS) detém o entendimento de que a
definição de saúde não está limitada à ausência de doenças ou enfermidades,
contemplando a integralidade do bem-estar físico, mental e social do indivíduo.
Desta forma, estabelece como condições mínimas a serem asseguradas pelo
Estado a disponibilidade financeira, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade do
serviço de saúde pública de um país.
No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) é o principal agente garantidor da
universalidade do direito à saúde. Tal sistema atua em sintonia com o Ministério da
Saúde, de modo que Estados e Municípios compõem a sua estrutura com a
finalidade de promoção da saúde. O SUS tornou-se um dos maiores do mundo ao
integrar ações de promoção da saúde, da prevenção de doenças, do tratamento e a
reabilitação à todas as pessoas, sem qualquer discriminação, universalizando o
acesso e investindo na redução da desigualdade.
No entanto, apesar do seu status de direito constitucional, a efetividade
prática do direito à saúde em relação à mulher que deseja abortar ou aquela que
realiza o abortamento é quase nula. Isso porque, há diversos obstáculos que
inviabilizam o acesso dessas mulheres aos serviços do Sistema Único de Saúde
(SUS), até mesmo para realizar os abortos previstos em lei. A negativa descrita de
profissionais da saúde em realizar os procedimentos, sejam dos abortamentos
legais ou a finalização após o aborto inseguro, é um cenário ainda comum no
território nacional. É chamada de “objeção de consciência”, o que representa um
direito do médico, mas não pode ser um artifício de omissão estatal no quesito de
disponibilização dos profissionais para a realização de algo que é direito garantido
às mulheres.
Constata-se a ausência efetiva do direito à saúde, em especial para a mulher
28 SARMENTO, Daniel. Legalização do aborto e constituição. In: __ CAVALCANTE,Alcilene; XAVIER, Dulce (Orgs.). Em defesa da vida: aborto e direitos humanos. São Paulo:Católicas pelo Direito de Decidir - CDD, 2006, p.111-168.
44
que aborta. A consequência desse cenário é o sofrimento das vítimas e a maior
fragilização de sua saúde física e psíquica, levando diversas mulheres a procurarem
procedimentos clandestinos, se automutilarem e sofrerem discriminações
generalizadas. É necessário que haja uma reformulação no sistema de saúde para
que a população não tenha seus direitos e garantias consagrados em leis e na
Constituição Federal lesados.
Portanto, a descriminalização do aborto deve estar acompanhada da
disponibilização dos procedimentos adequados para a efetivação dos abortos pelo
Estado, de forma as mulheres tenham acesso aos meios adequados e com
profissionais capacitados, respeitando seus direitos fundamentais à vida e à saúde.
O aperfeiçoamento do SUS é essencial nesse processo. É importante destacar que
os vultosos gastos atuais, cerca de R$ 486 milhões (segundo pesquisa feita
jornalistas Cláudia Collucci e Flávia Faria, da Folha de SP29), realizados pelo
Governo Federal em processos de curetagens e internações pós-provocações de
aborto por meios clandestinos podem ser deslocados para as propostas de
melhoramento do sistema para o abortamento legal, além de um possível
aparelhamento futuro para os casos que seriam contemplados posteriormente à
descriminalização.
3.1.1.6. Laicidade do Estado e o princípio da proporcionalidade
Um dos pilares estruturantes do Estado Democrático de Direito é a sua laicidade, a
qual se encontra disposta no artigo 19, inciso I, da Constituição Federal:
“Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aosMunicípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los,embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seusrepresentantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, naforma da lei, a colaboração de interesse público;”
29 COLLUCCI, Cláudia; FARIA, Flávia. Folha de São Paulo. SUS gasta R$ 500 milhões comcomplicações por aborto em uma década: de 2008 a 2017, SUS gastou R$ 486 mi cominternações para esses tratamentos. 2018.
45
Há um entendimento geral consolidado de que as decisões estatais
relacionadas especialmente ao público serão baseadas em critérios racionais,
desconsiderando dogmas de fé e concepções morais subjacentes oriundos de
qualquer religião existente no território nacional. Contudo, tal princípio da laicidade
precisa ser reforçado constantemente devido o Brasil ser um país de raízes
religiosas cristãs muito expressivas.
Desta forma, signos e significantes propagados pelas mencionadas religiões
possuem uma elevada penetração nas instituições que compõem o Estado,
enquanto reflexo do conjunto cultural majoritário da sociedade brasileira. Roseli
Fischmann em sua obra “Estado Laico, Educação, Tolerância e Cidadania ou
simplesmente não crer”30, expressa sobre o Estado Laico e a sua importância:
“Assim, o caráter laico do Estado, que lhe permite separar-se e
distinguir-se das religiões, oferece à esfera pública e à ordem social
a possibilidade de convivência da diversidade e da pluralidade
humana. Permite, também, a cada um dos seus, individualmente, a
perspectiva da escolha de ser ou não crente, de associar-se ou não
a uma ou outra instituição religiosa. E, decidindo por crer, ou tendo o
apelo para tal, é a laicidade do Estado que garante, a cada um, a
própria possibilidade da liberdade de escolher em que e como crer,
enquanto é plenamente cidadão, em busca e no esforço de
construção da igualdade”.
O conteúdo presente na explanação da pensadora refere-se à liberdade de
crença dos cidadãos (art. 5º, VI, CF), enquanto direito interdependente da laicidade
estatal. É notório o caráter formal laico do Estado Brasileiro, o qual determina a
separação da religião e seus valores sobre os atos governamentais. O fundamento
principal para o composição teórica desse princípio é o próprio respeito à
democracia e seu status de espaço permeado por pluralidade de valores e aberto à
expressão das individualidades sem represálias sociais. Assim, o ente estatal deve
almejar agir com o máximo de respeito a esses ideais que o constituem,
expressando-se de maneira mais neutra e equitativa possíveis em relação às mais
diversas pautas e seus representantes, como forma de respeitar os direitos
30 FISCHMANN, Roseli, “Estado Laico, Educação, Tolerância e Cidadania ou simplesmente não crer”.São Paulo: Factash Editora, 2012, pg 16.
46
individuais e coletivos declarados pela Carta Magna.
No entanto, em relação à materialidade na aplicação do princípio da laicidade
estatal em determinados casos concretos, há uma discrepância com seu conteúdo
por diversos motivos, sendo a força cultural da religiosidade cristã a principal. É
notório que existe um respeito à liberdade de culto individual, todavia, há símbolos e
discursos religiosos impregnados em grande parte dos espaços públicos estatais.
A questão da criminalização aborto, especificamente, também é um reflexo
do conservadorismo enraizado socialmente, regido por dogmas propagados
massivamente pelas instituições poderosas cristãs. Estas que possuem infiltração
em todas as esferas sociais, não sendo diferente na política, na qual parlamentares
religiosos formulam e/ou impedem, embasados em seu próprio moralismo, o
avanços de pautas urgentes para a sociedade, como o aborto.
Além do esvaziamento da concretude relativa à laicidade, existe um
equiparado desrespeito generalizado ao princípio da proporcionalidade. Este que é
um dos princípios regentes do ordenamento jurídico pátrio, porém que detém
contornos especiais quando aplicado à esfera penal, devido ao rigor das
penalidades dispostas em seu Código. O ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís
Roberto Barroso, expõe o dever constitucional pertencente à função legislativa, de
modo que a ponderação dos direitos fundamentais deve sempre ocorrer no ato de
tipificação do crime, objetivando garantir a proteção geral dos cidadãos e seus
direitos.
Portanto, o adequado processo de tipificação penal necessita estar em
consonância com os três sub-princípios basilares da proporcionalidade: a)
adequação; b) necessidade; c) proporcionalidade em sentido estrito. A adequação
refere-se à satisfação em atingir o fim desejado na criação da norma, que no caso
do aborto seria proteger a vida do bem jurídico que se pretende tutelar: o feto.
Contudo, constata-se, através da análise de pesquisas realizadas no território
nacional e dos dados empíricos recolhidos, que o aborto continua a ser praticado em
larga escala, sendo a criminalização apenas um instrumento de estigmatização das
vítimas e estímulo à clandestinidade.
Por sua vez, a necessidade corresponde ao critério da imprescindibilidade da
medida adotada, isto é, da existência de possíveis meios alternativos mais eficazes
47
e seguros para concretizar o fim almejado. Ao tratar do aborto existem múltiplas
medidas alternativas que poderiam ser aplicadas no lugar da criminalização, como
políticas públicas relativas ao fornecimento de aparatos médicos para a adequada
execução do abortamento e suas precauções anteriores e posteriores com uma
equipe multidisciplinar, bem como intensificar a discussão e operar campanhas
acerca do planejamento familiar e educação sexual.
Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito está relacionada aos danos
causados em virtude da tipificação da conduta. Evidencia-se o significativo impacto
que a criminalização gera aos direitos fundamentais das mulheres, além de acarretar
custos sociais e econômicos para o Estado, restando comprovada a sua ineficácia
social ao ser tratada de maneira tão severa e punitivista pelo ordenamento jurídico.
Dito isso, tratando-se da criminalização do aborto pelo ordenamento jurídico
brasileiro, a proporcionalidade e seus sub-princípios são desrespeitados
continuadamente pelo Estado brasileiro. Isso porque, a tipificação do aborto não
harmoniza com a proteção conferida pela Constituição Federal aos múltiplos direitos
fundamentais pertencentes à mulher nessa situação, como à dignidade humana, à
liberdade e à autonomia, para citar alguns. Desse modo, o aborto ser criminalizado
de forma generalizada através de duras penas, com exceção dos míseros três casos
de exclusão de ilicitude, é um atentado à cidadania das mulheres. A partir do
controle estatal sobre seus corpos, a autotutela feminina se esvazia, levando
consigo a garantia de exercer seus direitos fundamentais sem intervenções
invasivas e desumanizadoras do poder público.
O cenário apresentado não é exclusividade da problemática do aborto, pois
medidas intervencionalistas estão no cerne do Estado Brasileiro com forte teor
paternalista vigente até os dias atuais. A consequência da discricionariedade
apontada é o reflexo dos ocupantes dos poderes públicos em recorrer à esfera
penal para lidar com questões delicadas à sociedade brasileira, sendo uma prática
corriqueira do Legislativo e até mesmo do Judiciário.
Portanto, dentro da sua linha de pensamento, uma decisão adquiriria um
caráter racionalmente aceitável e seguiria as diretrizes da proporcionalidade através
da utilização de argumentos que suportem a atribuição de valores aos parâmetros
de intervenção, assim como daria certeza às premissas fáticas (lei do sopesamento).
Algo não obedecido na decisão de tipificar o aborto sob quase todas as
48
circunstâncias.
3.2 DECISÕES FAVORÁVEIS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A partir da análise do texto constitucional, o Judiciário detém a importante
função de materializar seu conteúdo formal através do enfrentamento dos casos
concretos que lhe são apresentados corriqueiramente. Neste sentido, o Supremo
Tribunal Federal, enquanto o mais alto órgão do Poder Judiciário, é apontado por
inúmeros juristas como o guardião da Constituição Federal. Isso porque, segundo
dispõe o artigo 102 da mencionada Carta Magna, a competência do STF abarca o
julgamento de causas como instância única e de matéria recursal, como os diversos
remédios constitucionais.
Existe um amplo debate envolvendo os limites da competência do Supremo
Tribunal Federal, tendo ganhado novos contornos nos últimos anos a partir da
intervenção do Poder Judiciário em questões delicadas para a sociedade brasileira
de modo geral, como a autorização das uniões homoafetivas ou a ratificação sobre
as decisões de prisão após o trânsito em julgado da sentença condenatória.
O protagonismo constatado pelo referido Tribunal, apesar das controvérsias,
encontra-se respaldado na autorização constitucional de proteção da estrutura
normativa do ordenamento jurídico, assegurando o respeito concreto aos direitos
consolidados no texto maior. Assim, diante de qualquer negligência dos demais
poderes que possa acarretar consequências danosas para o povo brasileiro, o
Supremo possui a responsabilidade jurídica de intervir e garantir a satisfação das
expectativas constitucionais.
Desse modo, conforme mencionado, o Supremo Tribunal Federal assumiu
determinado controle sobre a operacionalização de políticas públicas ao lidar com
temáticas controversas, porém urgentes por respostas efetivas das autoridades
políticas, como foi o caso do aborto. Esta questão permeia os debates no salão
ministerial, pois foi abordada em diversas ocasiões, obtendo algumas respostas
satisfatórias por parte dos ministros ocupantes do órgão federal.
No entanto, as discussões não progrediram nos espaços legislativos
49
principalmente por ações coordenadas de grupos religiosos e seus parlamentares
eleitos que impedem a discussão e posterior resolução das pautas trazidas pela
sociedade civil. A omissão do Poder Legislativo e Executivo permanece como regra,
assim como os números alarmantes de vítimas mulheres no território brasileiro.
Logo, as ações perpetradas pelo STF se tornaram imprescindíveis para assegurar
minimamente a concretude da dignidade humana e dos direitos fundamentais das
mulheres no Brasil, cabendo analisar alguns desses avanços a seguir.
Contudo, cabe analisar o caso responsável por evocar a discussão acerca do
aborto de feto anencéfalo: o habeas corpus nº 84025/2003. Este foi impetrado em
defesa da gestante Gabriela Oliveira Cordeiro, que em seu quarto mês de gestação
constatou, por meio de exames, que o feto apresentava uma grave anomalia
cerebral - anencefalia. A anencefalia, segundo médicos especialistas, é a má
formação do cérebro durante o período embrionário, entre o 16º e 26º dia
gestacional, acarretando na ausência total ou parcial do encéfalo e da caixa craniana
do feto. Assim, os médicos atestaram a debilidade no estado emocional da gestante
e prescreveram cuidados especiais.
Com o transcorrer dos meses e mediante múltiplas análises e resistências em
relação ao caso, o nascimento ocorreu em 18 de fevereiro, tendo a criança
sobrevivido apenas sete minutos fora do útero materno. Tal fato foi fundamental para
o julgamento do referido habeas corpus pelo STF, o qual, por decisão unânime,
julgou prejudicada a ação, devido à ocorrência de fato superveniente que a tornou
sem objeto. Todavia, o caso foi de extrema relevância para a discussão mais
profunda da possibilidade de abortamento dos fetos anencéfalos, podendo ser
extraída alguns posicionamentos interessantes pelos ministros no julgamento do
habeas corpus, como foi voto proferido pelo relator do caso, Sr. Ministro Joaquim
Barbosa.
O Ministro Joaquim Barbosa apontou para a situação problemática da
influência passional, moral e religiosa sob a condução das ações pelo Judiciário, o
qual dialogou muito estreitamente com as posturas radicais de grupos
fundamentalistas. Ao analisar os fundamentos jurídicos, o senhor ministro
reconheceu que a discussão ficou centrada nos direitos do nascituro e na aplicação
objetiva da lei penal, negligenciando a complexidade que permeia as garantias
constitucionais dos direitos da mulher e a existência do intrínseco vínculo entre o
50
nascituro e a gestante.
Por fim, revelou o constrangimento experienciado pela vítima por ter que
responder criminalmente pela decisão de vedação imposta pelo Superior Tribunal de
Justiça, em virtude de eventual intervenção cirúrgica necessária ao controle da
situação de risco à própria vida da gestante. Convém ressaltar que o próprio tipo
penal do aborto protege o bem tutelado da vida em potencial, algo que
comprovadamente não existirá, sendo contraditório. O caso, ao final, era apenas
uma tentativa política de controle da autodeterminação feminina e imposição da
maternidade, desconsiderando a mulher como detentora de plenos direitos. O
resultado de todas essas discussões foi importante para a consolidação da
conquista seguinte.
Um outro caso concreto marcante foi a Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF Nº 54, Distrito Federal). Tal ação ocorreu no período
concomitante ao habeas corpus analisado no tópico anterior, em que o Supremo
Tribunal Federal colocava em plenário da Corte, no dia 11 de abril de 2012, a
matéria sobre o abortamento de fetos anencéfalos. O ministro Marco Aurélio, em seu
voto, definiu a pauta como uma das mais relevantes para o Tribunal, pois o Brasil é
o quarto país no mundo em casos de fetos anencéfalos, ficando atrás apenas do
Chile, México e Paraguai. A incidência verificada durante o período foi de
aproximadamente um a cada mil nascimentos.
Importante destacar que anterior ao julgamento pelo Supremo, a trajetória foi
extensa, tendo sido iniciada no ano de 2004, com a propositura pela Confederação
Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) da ação declaração de
inconstitucionalidade em relação aos arts. 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código
Penal. Tal ação estava direcionada especificamente para os casos de antecipação
terapêutica do parto na hipótese de gravidez de feto anencéfalo, previamente
diagnosticada por exame médico, de forma a não ser considerada como aborto,
assim, não enquadrada no tipo penal.
Mediante a autorização da ADPF em questão, as gestantes não precisariam
de autorização judicial ou qualquer permissão específica do Estado, logo,
assegurando com mais eficácia os preceitos de dignidade da pessoa humana, do
direito à saúde e dos princípios da legalidade, liberdade e autonomia da vontade.
Convém ressaltar que o habeas corpus nº 84.025-6/RJ foi citado, enquanto ação já
51
transitada em julgado, ressaltando a ausência de instrumento adequado para esse
fim.
Desta forma, após intensos debates, a matéria foi julgada em 2012 pelo
Supremo Tribunal de Federal, o qual julgou procedente a ADPF 54 por maioria de
votos e nos termos do relator, vencidos os ministros Cezar Peluso e Ricardo
Lewandowski. Assim, foi declarada a inconstitucionalidade da interrupção de
gestação de feto anencéfalo como conduta tipificada nos arts. 124, 126 e 128,
incisos I e II, do Código Penal. Um dos fundamentos expostos pelo ministros foi
alegar que o Estado Democrático brasileiro está estabelecido sob a égide do
princípio da laicidade (art. 19, I, CF), consequentemente, seria premissa essencial
para a análise da controvérsia não permitir as influências de orientações morais e
religiosas.
Ademais, a condição da anencefalia é caracterizada pela malformação do
tubo neural, de maneira que há uma ausência parcial do encéfalo e do crânio. Neste
sentido, o feto anencéfalo seria um morto cerebral, com batimento cardíaco e
respiração. Portanto, o tipo penal do aborto não resta constituído, pois inexiste o
bem jurídico tutelado que é a vida em potencial do feto, de acordo com os
estudiosos da matéria. Além disso, o ponto central da discussão é a tutela dos
direitos fundamentais da mulher, sendo desproporcional evocar a potencialidade da
vida do feto com tal condição específica em detrimento da vida plena e formada da
gestante.
Portanto, a partir da decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal acerca da
permissão da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, instaurou-se um novo
marco jurídico importante para o avanço da temática da descriminalização do aborto.
O acolhimento da ADPF 54 expandiu as discussões sobre os limites do abortamento
e, principalmente, sobre o poder de escolha da mulher, bem como a priorização da
sua saúde, algo importante visto que a mortalidade materna ainda é alta no território
brasileiro. Assim, a possibilidade de excludente de ilicitude foi ampliada, estando
anexada ao Código Penal.
Por outro lado, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI Nº 3.510 – Distrito
Federal) foi responsável por suscitar a discussão sobre biossegurança no
ordenamento jurídico brasileiro através da promulgação da Lei nº 11.105/2005 (Lei
de Biossegurança). Isso porque, o seu artigo 5º gerou um intenso debate por
52
permitir, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias,
obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no
respectivo procedimento.
Os tópicos trouxeram questionamentos sobre a origem da vida e seus
diferentes marcos cronológicos, além do uso do termo “pré-embrião” e a
possibilidade da inexistência de marco inicial, sendo a vida um processo contínuo.
Desta forma, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, julgou improcedente
a ação sob argumento de que a Constituição Federal, tratando-se de direitos e
garantias individuais, protege o indivíduo, enquanto pessoa humana, de modo que a
inviolabilidade do direito à vida é exclusiva de um ser personalizado, nascido com
vida.
Destarte, apontou-se que a Lei 9.434/1997 (Lei dos Transplantes de Órgãos)
dispõe que não há mais vida a partir da morte cerebral, logo, se a atividade cerebral
é pressuposto da vida, o embrião, que não tem cérebro formado, não pode ser
considerado vida humana. Por fim, defendeu-se o direito constitucional do casal de
decidir ter filhos por meios de fertilização in vitro e a falta de dever de utilizar todos
os embriões. Estes que poderão ser extremamente úteis para pesquisas e possíveis
tratamentos futuros.
É notória a decisão do Supremo acerca da matéria da utilização das
células-tronco, pois era uma pauta que precisava ser destrinchada em alguns
aspectos, além da ADI 3510 ter servido para impulsionar o debate sobre os
embriões e a origem da vida, além de trazer novos argumentos favoráveis a
descriminalização do aborto, no quesito de fortalecer as teorias que atrelam vida ao
funcionamento mais completo do organismo do feto, como a teoria das primeiras
atividades cerebrais.
Por fim, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF Nº
442 –Distrito Federal) foi a ação mais diretamente associada à ampliação de um
sistema de abortamento legal no Brasil. Trata-se de arguição de descumprimento de
preceito fundamental, com pedido de medida cautelar, proposta pelo Partido
Socialismo e Liberdade – PSOL, visando à não recepção parcial dos arts. 124 e 126
do Código Penal (Decreto-Lei 2.848/1940). De acordo com o requerente foram
violados diversos preceitos fundamentais, como os princípios da dignidade da
pessoa humana, da cidadania e da não discriminação, bem como os direitos
53
fundamentais à inviolabilidade davida, à liberdade, à igualdade, à proibição de
tortura ou tratamento desumano ou degradante, à saúde e ao planejamento familiar,
previstos nos arts. 1º, I e II, 3º, IV, 5º, caput e I e III, 6º, caput, 196 e 226, § 7º, da
Constituição Federal.
O arguente complementa afirmando, que as razões jurídicas
fundamentadoras da criminalização do aborto pelo Código Penal, em 1940, não
mais se sustentariam diante dos preceitos fundamentais previstos nos mencionados
artigos do texto constitucional. Outrossim, o extenso período de permanência do
aborto como tipo penal no Brasil é circunstância que indica uso do poder coercitivo
do Estado para impedir o pluralismo razoável. Uma consequência evidente do
apontado é a elevação da gravidez à condição de dever, ocasionando prejuízos aos
projetos de vida das mulheres.
A Pesquisa Nacional do Aborto 2016 revelou que, somente no ano de 2015,
503.000 (quinhentas e três mil) mulheres interromperam voluntariamente a gravidez
no Brasil, concluindo que “o aborto é, portanto, um fato da vida reprodutiva das
mulheres brasileiras”. Além disso, afeta “desproporcionalmente mulheres negras e
indígenas, pobres, de baixa escolaridade e que vivem distante de centros urbanos,
onde os métodos para a realização de um aborto são mais inseguros do que
aqueles utilizados por mulheres com maior acesso à informação e poder
econômico”, o que resultaria em ofensa ao princípio da não discriminação.
Ao discorrer sobre como a criminalização generalizada do aborto voluntário
violaria os preceitos fundamentais utilizados como parâmetros de controle, o
requerente alega que “afirmar o valor intrínseco do humano no embrião ou feto não
é o mesmo que afirmar o estatuto de pessoa constitucional”. Conclui, logo, que, da
leitura conjunta da Constituição Federal e das decisões dessa Suprema Corte, “o
estatuto de pessoa constitucional inicia-se no nascimento com potência de
sobrevida, mesmo com auxílio de complexas tecnologias biomédicas.” (fl. 35 da
petição inicial).
Portanto, na ponderação entre a dignidade como valor intrínseco pertencente
ao embrião e a dignidade como autonomia consistente na cidadania das mulheres,
deveria prevalecer esta última, não havendo “conflito entre direitos fundamentais,
dada a impossibilidade de se imputar direitos fundamentais ao embrião ou feto.”(fl.
45 da petição inicial).
54
Neste sentido, o autor solicita a concessão de medida cautelar “para
suspender prisões em flagrante, inquéritos policiais e andamento de processos ou
efeitos de decisões judiciais que pretendam aplicar ou tenham aplicado os artigos
124 e 126 do Código Penal ora questionados a casos de interrupção da gestação
induzida e voluntária realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez. E que se
reconheça o direito constitucional das mulheres de interromper a gestação, e dos
profissionais de saúde de realizar o procedimento.”(fl. 60 da petição inicial).
No tocante ao mérito, pleiteia que essa Suprema Corte “declare a não
recepção parcial dos art. 124 e 126 do Código Penal, para excluir do seu âmbito de
incidência a interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras
12 semanas(...), de modo a garantir às mulheres o direito constitucional de
interromper a gestação, de acordo com a autonomia delas, sem necessidade de
qualquer forma de permissão específica do Estado, bem como garantir aos
profissionais de saúde o direito de realizar o procedimento.”(fl. 61 da petição inicial).
O processo foi despachado pela Ministra Relatora Rosa Weber, que, nos
termos do artigo 5º, § 2º, da Lei nº 9.882, de 03 de dezembro de 1999, solicitou
informações prévias ao Presidente da República, ao Senado Federal e à Câmara
dos Deputados, bem como a oitiva da Advogada-Geral da União e do
Procurador-Geral da República.
Diante da solicitação feita, o Presidente da República defendeu a
constitucionalidade das disposições atacadas, afirmando a existência de um
desacordo moral razoável quando ao aborto, por conseguinte, a decisão sobre sua
descriminalização caberia ao Poder Legislativo, na condição de representante da
coletividade. O Senado Federal, em suma, ressaltou que a legislação
infraconstitucional protegeria os direitos do feto viável (em especial, o artigo 2º da
Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil).
A Câmara dos Deputados, por sua vez, sustentou que as normas
impugnadas encontram-se em vigor há quase oito décadas, o que descaracterizaria
o periculum in mora necessário à concessão da medida cautelar pleiteada. Por fim,
argumentou que a eventual atuação desse Supremo Tribunal Federal no sentido de
descriminalizar a conduta de aborto violaria os princípios da separação de Poderes
e da soberania popular, considerando que “a vontade do legislador deve ser
observada, haja vista que representa a vontade do povo.” (fl. 04 das informações
55
prestadas).
A ministra Rosa Weber, após ouvir as opiniões acima relatadas e convocar
uma audiência pública (realizada nos dias 3 e 6 de agosto de 2018), chegou à
seguinte conclusão de que a matéria não pertence ao exercício da jurisdição
constitucional que lhe foi atribuída pela Carta Magna, sendo de incumbência do
Poder Legislativo. No entanto, há uma defesa no meio acadêmico acerca da
legitimidade democrática do STF para decidir sobre a problemática da
descriminalização do aborto, baseada, principalmente, em sua função primordial de
guardião máximo da Constituição Federal. Para isso, é de fundamental importância
analisar as lições de Ronald Dworkin. Para o autor, a noção de democracia
albergada por Constituições como a brasileira não é puramente estatística,
procedimental, mas substancial.
Desta forma, na situação de haver possíveis ameaças a tais princípios,
estaria autorizada a competência e legitimidade democrática dos julgadores para
afirmar tais direitos contra a "vontade majoritária". Ao aplicar tais posições
jusfundamentais contra a maioria, a Corte não viola a democracia, antes reafirma-a.
A decisão judicial deve, assim, ter sempre um poder explicativo geral sobre a
estrutura e história constitucional e a prática jurídica da comunidade, mantendo uma
visão singular e coerente de justiça e equidade.
No quesito sobre a decisão judicial sobre descriminalização do aborto,
constata-se a existência de diversos precedentes da Suprema Corte acerca do tema
(HC 84.0257; ADI 3.5108; ADPF 549; HC 124.30610). Das decisões mencionadas é
notório que, de forma coordenada e harmônica, o "povo" enuncia e dá especial
ênfase ao princípio da autodeterminação da mulher em detrimento da vida do feto.
Exige-se, assim, que siga neste caminho, caso, é claro, adotada a integridade
hermenêutica, constrição à atitude interpretativa aventada por Dworkin.
Portanto, a criminalização do aborto ofende o princípio da independência e
integralidade do sistema jurídico, representando uma inconsistência hermenêutica
do ordenamento jurídico pátrio ao impor às mulheres uma concepção moral coletiva
cujos efeitos deletérios são suportados integralmente por elas, e principalmente
pelas menos abastadas economicamente. Decisões com temáticas parecidas foram
erigidas no sentido de defender os direitos fundamentais das mulheres. E várias das
ações mencionadas foram julgadas por existir uma omissão do Poder Legislativo em
56
tutelar as garantias constitucionais, fazendo com que as violações diárias continuem
acontecendo na realidade fática brasileira.
Dito isso, diante das premissas adotadas, o direito ao aborto seguro e gratuito
erige-se, como indicam os precedentes do STF, em condição para uma democracia
genuína, para a afirmação da mulher enquanto um ser igual e livre membro da
comunidade democrática. Por essa razão, antes de atentar contra a democracia, a
Suprema Corte, caso decida pela não recepção do tipo penal em questão, estará
afirmando-a.
A função de peso e contrapeso atribuída aos três poderes precisa estar em
pleno funcionamento para corrigir possíveis anomalias criadas pelo próprio modelo
do Estado Democrático de Direito. Logo, decisões sobre matérias relevantes devem
acontecer pela instância judicial máxima, tanto para atenuar problemáticas urgentes
violadoras de preceitos fundamentais no país, como para incentivar a ação do poder
primariamente responsável por determinada temática.
3.3 INVESTIGAÇÃO DA LEGISLAÇÃO PENAL ACERCA DO ABORTO
Ao analisar a linha do tempo das legislações penais acerca do aborto,
percebe-se um aumento da rigidez de punição. O jurista Cezar Roberto Bitencourt31
aponta que o Código Criminal do Império de 1830 não criminalizava o aborto
praticado pela própria gestante (autoaborto), punindo apenas o ato realizado por
terceiro, com ou sem o consentimento da grávida. O Código Penal de 1890, por sua
vez, passou a criminalizar o autoaborto, além de distinguir o crime de aborto caso
houvesse ou não a expulsão do feto, agravando-se com o resultado superveniente
da morte da gestante. E o Código Penal de 1940 ampliou o rol de crimes
relacionado ao aborto e previu algumas poucas excludentes de ilicitude.
Desse modo, o Código Penal de 1940 foi publicado de acordo com a cultura,
costumes e hábitos dominantes na década de 30, ou seja, mais de sessenta anos
atrás. Neste ínterim, não foram apenas os valores da sociedade que se
modificaram, mas principalmente os avanços científicos e tecnológicos, os quais
produziram verdadeira revolução na ciência médica, revelando a dissonância legal
31 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. 18. ed. São Paulo:Saraiva, 2018. v.2. p. 389-392.
57
com a realidade fática atual. O jurista penalista Fernando Capez32 define o aborto
como sendo:
“a interrupção da gravidez, com a consequente destruição do produto
da concepção. Consiste na eliminação da vida intrauterina, a qual se
dá no início da gravidez. Seguindo o parâmetro delimitado pela
Medicina, o início da gravidez se dá com a fecundação do óvulo pelo
espermatozóide, momento no qual se dá o desenvolvimento do ser
gerado no útero materno até culminar no seu nascimento. Este é o
entendimento que predomina na doutrina, ou seja, a proteção penal
do aborto inicia-se com a fecundação. (CAPEZ, 2018, p. 207).”
Neste sentido, o aborto na legislação penal brasileira foi enquadrado na
classificação de crimes contra a vida, de modo que o bem jurídico tutelado é a vida
do feto e o direito ao nascimento com vida. Logo, é um crime de dano, que necessita
da sua consumação, isto é, a interrupção da gravidez com a expulsão do feto do
útero para sua configuração, sendo criminalizada a forma tentada. O penalista
Bitencourt ressalta que é não propriamente um crime contra a pessoa, pois o
produto da concepção (feto ou embrião) não é uma pessoa, embora tampouco seja
mera esperança de vida ou simples parte do organismo materno, pois tem vida
própria e recebe tratamento autônomo da ordem jurídica.
Diferente dos outros ramos das ciências, o Código Penal não faz distinção
entre óvulo fecundado (3 primeiras semanas de gestação), embrião (3 primeiros
meses) ou feto (a partir de 3 meses). Capez esclarece que o motivo para o exposto
é a vontade do legislador em inserir qualquer fase da gravidez dentro da
classificação do delito de aborto, isto é, entre a concepção e o início do parto, pois
após o início do parto poderemos estar diante do delito de infanticídio ou homicídio.
Cumpre apontar a situação interessante do embrião conservado fora do útero
materno, em laboratório, a qual não se encaixa em ambas as hipóteses e ensejou
um debate mais complexo acerca do bem jurídico da vida humana.
O crime do aborto, no Código Penal Atual, está previsto no Título I, Capítulo I,
dos Crimes Contra a Vida, nos artigos 124, 125, 127 e 128 que configuram os
crimes, respectivamente, do autoaborto, aborto provocado por terceiro sem
32 CAPEZ, Fernando. Direito penal: parte especial. 19 .ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p.207.
58
consentimento da gestante, aborto provocado por terceiro com consentimento da
gestante, forma qualificada do aborto e aborto necessário (consideradas exceções à
criminalização do aborto).
O autoaborto e aborto consentido estão previsto no art. 124, caput, in verbis:
“Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque.
Pena - detenção, de um a três anos.” Desse modo, verifica-se a existência de duas
modalidades no mesmo tipo penal, sendo elas: o aborto praticado pela própria
gestante (autoaborto) e aborto consentido para que um teceiro lhe provoque.
A primeira figura é a do autoaborto, tipo penal caracterizado por sua conduta
típica implicar na execução da ação material do crime pela própria gestante,
empregando meios abortivos em si mesma. Devido ser um crime de mão própria, ou
seja, somente a gestante pode ser o sujeito ativo, o tipo em questão admite apenas
a participação, como atividade acessória, quando o partícipe se limita a instigar,
induzir ou auxiliar a gestante tanto a praticar o autoaborto como a consentir que
terceiro lhe provoque. Como por exemplo, quando o indivíduo fornece os meios
abortivos para que o aborto seja realizado. Nessa hipótese, responderá pelo delito
do art. 124 do CP a título de partícipe.
Todavia, tal posicionamento não é unânime, existindo jurisprudência no
sentido de que o terceiro, ainda que atue como partícipe, teria a sua conduta
enquadrada no art. 126 do Código Penal (Aborto provocado por terceiro, com o
consentimento da gestante). Por fim, destaca-se a impossibilidade de ocorrer o
concurso de pessoas na modalidade coautoria por ser um crime de mão própria.
A segunda figura é o crime do aborto consentido, em que a mulher apenas
consente na prática abortiva, mas a execução material do crime é realizada por
terceira pessoa. Tal tipo, assim como a modalidade anterior, é um crime de mão
própria, assim, o ato permissivo é personalíssimo e só cabe à mulher, não podendo
haver jamais a coautoria. Dito isso, o tipo penal objeto de análise exige basicamente
dois elementos como parte da conduta típica: consentimento da gestante e a
execução do aborto por terceiro. Este último será enquadrado na modalidade
especial de crime que é para aquele que provoca o aborto com o consentimento da
gestante (CP, art. 126), logo, existindo a previsão de dois crimes na ocorrência do
aborto consentido.
59
A doutrina especializada evidencia a situação exposta como sendo uma
exceção à teoria monística adotada pelo Código Penal em seu art. 29, de forma que
o diploma penal dispensou o tratamento penal diverso àquele que executa
materialmente a ação provocadora do aborto, cuja sanção penal é mais gravosa
(reclusão, de 1 a 4 anos). Enquanto ao indivíduo que consente que terceiro lhe
provoque, a pena cominada é idêntica ao delito de autoaborto, ou seja, menos grave
(detenção, de 1 a 3 anos). Por fim, constata-se a possibilidade de haver o concurso
de pessoas na modalidade de participação, quando, por exemplo, alguém induz a
gestante a consentir que terceiro lhe provoque o aborto, sendo este último julgado
pelo crime previsto no artigo 126, CP, que é o aborto com o consentimento da
gestante.
O aborto provocado por terceiro, sem o consentimento da gestante
encontra-se previsto no artigo 125 do Código Penal, in verbis: “Art. 125 - Provocar
aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de três a dez anos”.
Bitencourt destaca que a ausência de consentimento da vítima no emprego dos
meios ou manobras abortivas por terceiro como a elementar negativa do tipo penal
acarretou no agravamento da punição pelo ordenamento.
Diante disso, pode assumir duas formas: sem consentimento real ou
ausência de consentimento presumido (não maior de 14 anos, alienada ou débil
mental ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência
- parágrafo único do art. 126, CP). Cabe ressaltar que não há necessidade de que
haja o dissenso expresso da gestante, basta o emprego de meios abortivos por
terceiro sem o seu conhecimento; por exemplo: ministrar doses de substância
abortiva em sua sopa.
Desta forma, Fernando Capez33 classifica o dissentimento em duas categorias
para fins didáticos de compreensão da abrangência relativa à ação expressa no tipo
penal, sendo elas: dissentimento real e presumido. A primeira espécie ocorre
quando o sujeito emprega contra a gestante (cf. 2ª parte do parágrafo único do
art.126): “a) fraude: é o emprego de ardil capaz de induzir a gestante em erro; por
exemplo: médico que, a pretexto de realizar exames de rotina na gestante, realiza
manobras abortivas; b) grave ameaça contra a gestante: é a promessa de um
malgrave, inevitável ou irresistível; por exemplo: marido desempregado que ameaça
33 CAPEZ, Fernando. Direito penal: parte especial. 19 .ed. São Paulo: Saraiva, 2019.p. 138.
60
se matar se a mulher não abortar a criança; c) violência: é o emprego de força física;
por exemplo: homicídio de mulher grávida com conhecimento da gravidez pelo
homicida.
O dissentimento presumido, por outro lado, ocorre de forma não livre e
espontânea, sendo a concordância (se houver) da gestante considerada inválida.
Não é necessário que a obtenção do consentimento seja mediante violência, fraude
ou grave ameaça, bastando haver simulação, ardil ou qualquer outra forma de burlar
a atenção da gestante. Essas são formas de ausência de consentimento real, que
também pode ser presumida, quando estiverem presentes aquelas condições
elencadas no art. 224. Outrossim, a presunção contempla os casos em que a vítima
não é maior de 14 anos, alienada ou débil mental. Há possibilidade de erro por parte
do terceiro quanto ao imaginado consentimento da vítima, dando ensejo ao erro de
tipo e o deslocamento da subsunção penal do terceiro para a norma do art. 126.
O aborto provocado por terceiro, com o consentimento da gestante está
previsto no art. 126, do Código Penal, estabelecendo pena de reclusão, de um a
quatro anos, com a ressalva no parágrafo único sobre a aplicação da pena do artigo
anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental,
ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. Neste
sentido, o fato contempla a incidência de duas figuras típicas, segundo Capez,34
uma para a consenciente (CP, art.124, 2ª parte) e outra para o provocador (CP, art.
126). No tipo em questão admite-se o concurso de pessoas, na hipótese em que há
o auxílio à conduta do terceiro que provoca o aborto; por exemplo, uma enfermeira
que auxilia o médico em uma clínica de aborto.
O elemento essencial do tipo penal objeto de análise é o consentimento, o
qual precisa ser válido, ou seja, que ela tenha capacidade para consentir. Isto não
significa capacidade civil, e sim a capacidade de expressar a real vontade livre e
desimpedida da gestante durante todo o procedimento. Em contrapartida, o
consentimento inválido corresponde nas hipóteses previstas no parágrafo único, de
modo que o aborto praticado contra a gestante que emitiu consentimento inválido
caracterizará a figura típica do art. 125 do CP (aborto sem o consentimento da
gestante).
O mencionado jurista destaca que a gravidez da vítima menor de 14 anos,
34 CAPEZ, Fernando. Direito penal: parte especial. 19 .ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 138.
61
portadora de enfermidade ou deficiência mental, que não tenha o necessário
discernimento para a prática do ato, ou, que, por qualquer outra causa, não possa
oferecer resistência, será enquadrada no crime de estupro de vulnerável (CP, art.
217-A). Neste cenário, se o aborto é precedido do consentimento de seu
representante legal, o médico estará realizando o aborto legal (art. 128, II),
acobertado por causa excludente da ilicitude35.
O art. 127 do CP prevê as formas majoradas do crime de aborto, quais sejam:
a) ocorrendo lesão grave, a pena é aumentada em um terço; b) ocorrendo morte, a
pena é duplicada. Bitencourt evidencia a imprecisão técnica da “forma qualificada”
do referido tipo penal,36 em que “as qualificadoras constituem verdadeiros tipos
penais — tipos derivados — com novos limites, mínimo e máximo, enquanto as
majorantes, como simples causas modificadoras da pena, somente estabelecem a
sua variação”. As majorantes e minorantes funcionam como modificadoras na
terceira fase do cálculo da pena, algo que não ocorre com as qualificadoras. Assim,
é notório que o legislador equivocou-se ao denominar “forma qualificada” quando na
realidade é majorada.
Este artigo só é aplicado às formas tipificadas nos arts. 125 e 126, ficando
excluídos o autoaborto e o abortoconsentido (art. 124 do CP), na medida em que o
nosso ordenamento jurídico não pune a autolesão nem o ato de matar-se. Destarte,
há a controvérsia doutrinária acerca do enquadramento legal da conduta do
partícipe no crime de autoaborto do qual resultou lesão corporal ou morte da
gestante. Fernando Capez entende que o sujeito deve responder por homicídio
culposo ou lesão corporal culposa, a partir da análise do caso concreto, na
qualidade de autor mediato. Isso porque, a gestante funcionou como instrumento
(longa manus) de sua atuação imprudente, além de responder por participação em
autoaborto em concurso formal.
As majorantes no tipo penal do artigo 127 são exclusivamente preterdolosas,
pois existe umcrime doloso (aborto) ligado ao resultado não objetivado (lesão
corporal de natureza grave ou morte), nem mesmo eventualmente, porém imputável
ao agente a título de culpa (se eram consequências previsíveis do aborto que sequis
36 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. 18. ed. São Paulo:Saraiva, 2018. v.2. p. 410-412.
35 Ibid., p. 139 e 140.
62
realizar e, por conseguinte, evitáveis).
Por fim, cumpre destacar que os legisladores consideraram apenas as lesões
graves como pré-requisito para majorar a pena, de modo que os juristas Nélson
Hungria37 e E. Magalhães Noronha38, entendem que nos casos em que as lesões,
apesar de graves, possam ser consideradas “inerentes” ou “necessárias” para
acausação do aborto, não incidiria esse dispositivo, pois estariam elasabsorvidas
pelo aborto. Logo, a lei visaria as lesões graves extraordinárias, ou seja, não
necessárias à causação do aborto, como, por exemplo, infecções; do contrário, o
crime de aborto seria sempre qualificado.
O aborto legal com sua causas de exclusão de ilicitude estão presentes no
art. 128 do CP, in verbis: “Não se pune o aborto praticado por médico: I — se não há
outro meio de salvar a vida da gestante; II — se a gravidez resulta de estupro e o
aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu
representante legal”. O próprio Código atribui os nomen juris de “aborto necessário”,
ao primeiro, e “aborto no caso de gravidez resultante de estupro”, que doutrina e
jurisprudência encarregaram-se de definir como sentimental, humanitário. Dito isso,
a primeira modalidade prevista no primeiro inciso do art. 128 é o aborto necessário
ou terapêutico, que é aquele realizado quando a gestante estiver correndo perigo de
vida e inexistir outro meio parasalvá-la, constituindo um verdadeiro estado de
necessidade, porém sem a exigência de que o perigo de vida seja atual.
Desta forma, há dois bens jurídicos (a vida do feto e da genitora) postos em
perigo, em que o legislador optou pela preservação de um (vida da genitora) em
detrimento do outro (vida do feto). Para tanto, o médico deverá intervir após o
parecer de dois outros colegas, devendo ser lavrada ata em três vias, sendo uma
enviada ao Conselho Regional de Medicina e outra ao diretor clínico do nosocômio
onde o aborto foi praticado. É dispensável a concordância da gestante ou do
representante legal. Destaca-se a limitada abrangência da excludente, a qual não
abarca outros profissionais da saúde, somente o médico responsável pelo
abortamento.
O aborto sentimental, humanitário ou ético (CP, art. 128, II), por sua vez,
38 NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 21. ed. São Paulo,Saraiva, 1992.
37 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro, Forense, 1942. v. 2.
63
corresponde ao reconhecimento estatal da agressividade de se impor à vítima de
estupro uma gravidez indesejada com o fruto de um coito vagínico violento, dados
os danos maiores, em especial psicológicos, que isso lhe pode acarreta. A
excludente em exame estende-se ao crime praticado com violência implícita (art.
217-A), pois uma interpretação restritiva, no caso, implicaria criminalizar uma
conduta autorizada, uma espécie de interpretação extensiva contra legem, ou seja,
in malam partem. Cabe apontar que a Lei n. 12.015/2009 passou a considerar como
estupro a prática não só da conjunção carnal, mas também de qualquer outro ato
libidinoso diverso.
A lei não exige autorização judicial, processo judicial ou sentença
condenatória contra o autor do crime de estupro para a prática doaborto sentimental.
Para isso, é suficiente prova idônea do atentado sexual (boletim de ocorrência,
testemunhos colhidos perante autoridade policial, atestado médico relativo às lesões
defensivas sofridas pela mulher e às lesões próprias da submissão forçada à
conjunção carnal).
Tratando-se da situação de gravidez decorrente de estupro de vulnerável,
basta a prova da realização da conjunção carnal. Caso não tenha havido estupro e o
médico induzido em erro realiza o aborto, há erro de tipo, excluindo o dolo, além da
tipicidade da conduta. Se a autora for enfermeira, esta responderá pelo delito, pois a
lei faz referência expressa à qualidade do sujeito que deve ser favorecido: médico.
Todavia, se ela auxilia o médico na realização do aborto humanitário, não há crime,
uma vez que a conduta daquele não constitui fato típico e ilícito.
Além dos exemplos tipificados no Código Penal, existem outras espécies de
aborto, como o natural, acidental, social e eugênico. O natural é a simples
interrupção espontânea da gravidez, enquanto o acidental é aquele que decorre de
traumatismo ou outro acidente. Ambos não constituem crime. O aborto social,
também conhecido como econômico, acontece movido pela futura crise financeira e
social que geraria no seio de uma determinada família, logo, sendo crime.
Por fim, o aborto eugênico é aquele realizado para impedir que a criança
nasça com deformidade ou enfermidade incurável. Não é permitido pela legislação
brasileira e, por isso, configura o crime de aborto. Contudo, mediante prova
irrefutável de que o feto não dispõe de qualquer condição de sobrevida,
consubstanciada em laudos subscritos por juntas médicas, deve ser autorizada a
64
sua prática. É a situação permitida judicialmente do aborto dos fetos anencéfalos,
decidida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, pelo STF,
no ano de 2012.
Cumpre salientar a existência do projeto de Lei 882/201539 proposto pelo
PSOL, o qual visa permitir que as mulheres recorram a clínicas e hospitais do SUS
para interrupção da gravidez de forma autônoma, até a 12ª semana de gestação. O
projeto também prevê que equipes multidisciplinares formadas por médicos,
psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais devam acompanhar essas mulheres,
com o objetivo de dar a elas dignidade. Todavia, o projeto encontra-se parado no
Congresso Nacional, sem perspectivas de ser discutido e votado no período atual
em que se encontra o Brasil, isto é, no contexto de uma pandemia global e
governado por um presidente e aliados que adotam uma pauta política
essencialmente conservadora de caráter fundamentalista religiosa.
4. MODELOS VIGENTES DE ABORTAMENTO LEGAL
4.1. SISTEMAS EM FUNCIONAMENTO AO REDOR DO MUNDO
No Brasil, apesar de existirem os direitos constitucionalmente reconhecidos
como o direito ao planejamento familiar e à autonomia individual, os artigos penais
que lidam com a temática continuam em vigência no ordenamento jurídico, tratando
este procedimento médico como crime, com poucas exceções. Punível com
detenção de um a três anos para a mulher, e de um a quatro anos para a pessoa
que realizar o procedimento, a legislação brasileira mostra-se retrógrada, sendo
similar a de países como o Afeganistão.
Por outro lado, diversos países, como Estados Unidos, França, África do Sul
e Uruguai, optaram por legalizar do aborto, especialmente nas últimas décadas. Na
Suécia o aborto legal, seguro e gratuito existe desde 1975, demonstrando uma
avanço pioneiro da mentalidade dos direitos das mulheres e o enfrentamento
adequado, enquanto problema de saúde pública. Assim, nos referidos países que
39 SÃO PAULO. Assembleia Legislativa. Projeto de Lei Complementar PLC 882/2015. Altera oDecreto-lei nº 2.848, 07 de dezembro de 1940, que institui o Código Penal no Brasil.
65
legalizaram o aborto com assistência médica e condições de higiene adequadas, o
principal resultado deste movimento foi a redução da mortalidade materna.
O número de países onde o aborto é considerado uma prática legalizada e as
mulheres que desejam interromper sua gravidez voluntariamente não são presas
por isso são de 66 países. De acordo com a organização não-governamental Centro
pelos Direitos Reprodutivos40 (Center for Reproductive Rights41, em inglês), são mais
de 590 milhões de mulheres em idade reprodutiva que vivem em países que
possuem legislação que permite o aborto perante a solicitação da mulher. A partir
desses dados foi possível classificar em quatro categorias no espectro que vai da
proibição total à legalização.
A primeira espécie é a da proibição total, a qual não existem nenhuma
exceção à prática do aborto. A legislação de 26 países do mundo como o Egito,
Iraque, Nicarágua, Filipinas, Senegal e Cisjordânia, proíbe o aborto sob quaisquer
que sejam as circunstâncias. Segundo a citada pesquisa, o número de mulheres em
idade reprodutiva que vivem em locais onde a interrupção da gravidez é totalmente
proibida por lei, até mesmo quando a vida ou a saúde delas está em risco, é de 90
milhões.
A segunda categoria é aquela a qual pertence o Brasil, que é o aborto
permitido para salvar a vida da mulher. A pesquisa revela o número de 39 países
(com o Brasil) que adotam uma legislação nesse sentido, existindo, logo, uma
estimativa de 359 milhões de mulheres em idade reprodutiva vivendo em locais onde
as leis permitem o aborto apenas quando a vida da mulher está em risco. Medidas
restritivas como essas são adotadas em países do Oriente Médio como o Irã, Líbano
e a Síria. Da Ásia como o Afeganistão e a Indonésia e da África como a Nigéria,
Somália, Sudão e Uganda.
Há uma categoria específica e com pouca adesão que é o aborto relacionado
aos motivos sociais ou econômicos da gestante. Tal espécie está regulamentada em
14 países, como na Finlândia e na Etiópia, e as leis são interpretadas para
permitirem o aborto sob amplas circunstâncias, após uma análise detalhada de
fatores externos. Assim, a legislação costuma levar em consideração motivos sociais
41 Center for Reproductive Rights. The World's Abortion Laws. website: ONG, 2021.
40 RICCI, Larissa; MAC, Aissa; PEREIRA, Maria Irenilda. Portal Estado de Minas Gerais. Conheça asleis sobre o aborto no mundo. Em 67 países, a decisão é da mulher. 2021.
66
e econômicos, considerando o impacto potencial da gravidez na atual situação da
mulher e também em uma situação futura.
Adiante, a categoria do aborto permitido com o objetivo de preserva a saúde
da mulher está presente na legislação de 56 países. Segundo a Organização
Mundial da Saúde (OMS), os países que permitem o aborto por esse motivo
deveriam interpretar "saúde" como “um estado de completo bem-estar físico, mental
e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”. Contudo, ocorre que
nem sempre os países interpretam da maneira abrangente com que a OMS instituiu
a diretriz, considerando que a interrupção da gravidez é prevista apenas quando a
saúde física da grávida está em risco, como é o caso de Mônaco e do Zimbábue.
Por último, a classificação tida como o ideal a ser alcançado, que é o
abortamento diante da solicitação da mulher. Este motivo norteia a legislação de 67
países, sendo que a grande maioria deles permite a interrupção da gravidez com até
12 semanas de gestação, como é o caso da Dinamarca, Irlanda, Noruega e Rússia.
Já em países como o Estados Unidos e a Austrália, a legislação que regula a
interrupção da gravidez é definida pelos Estados.
Além dos países mencionados, na França também representa uma pioneira
na pauta da legalização do aborto, pois a conduta em questão deixou de ser crime
no ano de 1975. Dito isso, o abortamento pode ser realizado até a 12ª semana de
gestação, por pedido da mulher, caso a mesma alegue não ter condições sociais ou
econômicas para ser mãe. Além disso, possui as mesmas exceções pátrias, que
são em relação aos casos de risco de morte da mãe ou má formação do feto
(nesses casos, dois médicos precisam certificar a situação). As mulheres que
entram com o pedido são encaminhadas para aconselhamento e precisam passar
por um período de ponderação obrigatório de no mínimo oito dias. Menores de 18
anos, só com autorização dos pais.
Dentro da realidade latino-americana, há o caso do México, que em 1931 foi
o primeiro país a legalizar o aborto em caso de estupro. Assim como nos Estados
Unidos, a legislação é feita de forma regional e varia de estado para estado. Na
Cidade do México, desde 2008, por exemplo, a prática é totalmente legalizada,
sendo a única limitação ser realizada até no máximo a 12ª semana de gestação.
Apesar disso, em 2009, outros estados mexicanos proibiram de forma universal o
aborto.
67
Segundo a advogada Juliana Alvim, coordenadora da Clínica de Direitos
Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)42, há uma discrepância
entre a legislação vigente no Brasil, se comparado a outros países. Ela aponta que
mesmo em lugares onde a legislação é mais restrita, o aborto é permitido para
proteger a saúde em geral da mulher, e não apenas a vida da gestante.
Desse modo, constata-se um alinhamento brasileiro com países menos
progressistas, de modo que até mesmo várias nações latinas vizinhas, como
Uruguai e Argentina, avançaram significativamente na temática, enquanto o Brasil
permanece parado na década de 40. Apesar de existir o movimento antiaborto
liderado principalmente por grupos religiosos, novas projetos de lei são, a todo
momento, apresentados na Câmara e levantados em centros de discussões
acadêmicos, com medidas visando criar novas perspectivas, alterar a legislação e,
consequentemente, facilitar o acesso das mulheres à interrupção da gravidez
seguro.
4.2. MODELO URUGUAIO E ARGENTINO
É necessário analisar o contexto hitórico uruguaio para entender como o país
se tornou o primeiro território da América do Sul a descriminalizar o aborto,
juntando-se a Cuba e mais dois países na América Latina. A história do Uruguai é
marcada tradicionalmente por uma ativa participação popular, de modo que sua
sociedade sempre se posicionou como protagonista nas decisões políticas do país,
lutando pelas suas reivindicações e participando ativamente em sua democracia.
Em outubro de 2004 passa a ser escrita uma nova história na política
uruguaia com a inédita eleição da Frente Ampla43, a coalizão tinha como tarefa
adotar uma política fiel ao que discursou ao longo de todos os anos enquanto
partido de oposição. O objetivo principal do presidente era retomar o Estado de
Bem-estar, priorizando as reformas na educação, saúde e seguridade social.
A partir da reeleição da Frente Ampla nas eleições de 2009, o novo
43 DUARTE, Rafael. Ascensão e consolidação da frente ampla uruguai: da clandestinidadeàs vias democráticas, da esquerda tradicional ao progressismo. Universidade Federal de SantaCatarina, Florianópolis, 2011.
42 RICCI, Larissa; MAC, Aissa; PEREIRA, Maria Irenilda. Portal Estado de Minas Gerais. Conheça asleis sobre o aborto no mundo. Em 67 países, a decisão é da mulher. 2021.
68
presidente José “Pepe” Mujica (ao lado de Danilo Astori como seu vice) não
encontrou as dificuldades que seu antecessor teve que enfrentar. No ano de 2008, a
maioria da população uruguaia era a favor da descriminalização do aborto, estando
o dado respaldado na pesquisa pela legalização do aborto de âmbito nacional para
saber a opinião dos uruguaios. De acordo com José Torres44:
“Em 2008, a legalização do aborto no Uruguai foi aprovada pelos
senadores e deputados, fortalecidos pela opinião de pelo menos
63% dos uruguaios, que se manifestaram em pesquisas pela
legalização. Tal processo foi realizado pelo programa Iniciativas
Sanitárias, que implementou no país um programa público de
assistência médica para o aborto. Houve o apoio das centrais
sindicais, um espaço tradicionalmente masculino, porém, o projeto foi
vetado pelo presidente Tabaré Vazquez”. (TORRES, 2011, p. 10).
O legado de Mujica repousa nos diversos avanços nos indicadores sociais,
investimentos em educação e no empenho em concretizar um Estado de bem-estar
social de fato, logo, melhorando a qualidade de vida da população. Logo, a criação
de leis sociais e uma política norteada pelos direitos humanos foi de extrema
relevância para que seu governo alcançasse tais resultados. Entre as medidas
mencionadas está a descriminalização do aborto, em 2012, conhecida como Lei de
Interrupção da Gravidez (Lei 18.987/12).
Tal Lei nº 18.987/12 foi responsável por permitir a realização do procedimento
até a 12ª semana, quando a mulher, então, passará por uma consulta
multidisciplinar no Sistema de Saúde Pública, informando os motivos cabíveis para
tal decisão. Caso opte pela interrupção da gravidez, o fará através dos
medicamentos Misoprostol e Mefiprestona, sendo que ao 10º dia da interrupção,
deverá haver uma consulta com o ginecologista. O Decreto nº 243/2016 corroborou
com a supracitada Lei, e reforçou a autonomia absoluta da paciente nos casos de
aborto, de forma que passou a não ser permitida a interferência por motivos
subjetivos do pessoal da saúde na decisão da mulher.
44 TORRES, José Henrique Rodrigues. Aborto: Legislação Comparada. Vol.2, nº2. RevistaEPOS: Rio de Janeiro, 2011. p. 10.
69
De acordo com o Ministério de Saúde Pública, após o primeiro ano da
implementação da lei (entre dezembro de 2012 e novembro de 2013) foram
realizados 6.676 abortos no país, uma taxa de 9 abortos a cada 1000 mulheres
(entre 15 e 44 anos). 6% das mulheres desistiram de interromper a gravidez no
período de reflexão obrigatório após a primeira consulta. Segundo relatório da MSU
(2014), a taxa de mortalidade materna por aborto inseguro caiu drasticamente entre
os anos 2000 e 2013.
O Sistema Nacional de Informação Pública (SINAdI) do Ministério da Saúde
Pública (MSP)45 no Uruguai forneceu dados sobre o número de interrupções e
outros dados importantes:
“No ano de 2014, houve 8.500 abortos voluntários, 20% a mais que o
ano de 2013, quando a legislação existente foi aplicada. Estamos
falando de um índice 12/1000 de mulheres entre 15 e 45 anos de
idade, com taxas inferiores às do nível internacional, como nos
países nórdicos. 18% correspondem a crianças com menos de 20
anos de idade. 9% decidiram continuar a gravidez após a consulta
com a equipe interdisciplinar de sua instituição, 30% a mais do que
no primeiro ano de implementação. Os registros mostram que não
existem diferenças substantivas entre afiliados nos sub-setores
público e privado. Enquanto isso, 60% correspondem a Montevidéu e
40% às mulheres do interior do país. Durante esses períodos, não
houve óbitos maternos devido ao aborto no Uruguai”. (MSP, 2015)
No início do século se registrou uma taxa de 29% de mortes maternas
provenientes do aborto inseguro, e, em 2013, esse número caiu para 9%, segundo o
MSU do ano de 2014. Conforme o Ministério de Saúde Pública (2015), no ano de
2014 foram realizados 8500 abortos voluntários, cerca de 20% a mais dos
procedimentos realizados em 2013. Destarte, a relação de abortos/1000 mulheres
ainda continua mais baixa do que a maioria dos países que legalizaram o aborto no
mundo: 12/1000 mulheres. (MSP, 2015)
É notório que a Lei nº 18.987 foi eficiente em sua principal razão de ser
aprovada: diminuir o número de mortes de mulheres pela prática do aborto inseguro.
45 MINISTÉRIO DE SALUD. Interrupción voluntaria de embarazo. Montevidéu, 28 mar. 2015.
70
Contudo, problemas existem e estão relacionados principalmente a objeção de
consciência concedida aos médicos para realizar o abortamento, algo que dificulta
substancialmente o acesso ao serviço, principalmente no interior do país. Além
disso, especialistas apontam que ainda existe uma forte herança de preconceito
acerca do tema na sociedade, bem como uma falta de interesse governamental em,
no mínimo, atenuar o conservadorismo na opinião pública.
Neste cenário, para a militante da ONG “Mujer y Salud en Uruguay"
(MYSU),46 Azul Cordo (2015), o número de etapas que as mulheres devem “vencer”
para conseguirem realizar o procedimento colocam em xeque o poder e direito de
decisão das mulheres. Todavia, é possível perceber que o aumento no número de
aborto foi inferior à taxa de outros países em que aborto já é legalizado, e menor
ainda do que países que ainda punem severamente a prática. Assim, o Uruguai
segue sendo um exemplo de modelo bem-sucedido dentro da América do Sul,
podendo servir de exemplo para o Brasil devido às similaridades socioeconômicas e
culturais.
No tocante ao contexto da Argentina, esta aprovou no Senado Federal a Lei
nº 27.610, no dia 30 de dezembro de 2020, a qual prevê a legalização do aborto até
14ª semana de gestação, tendo sido a votação de 39 votos a favor, 29 contra e uma
abstenção, de forma que o texto tinha passado duas semanas antes pela Câmara
dos Deputados. Desse modo, a nova legislação encerrou o texto que estava em
vigor desde 1921, que considerava a prática crime, exceto em caso de estupro ou
risco de vida da mãe. A partir dessa nova lei, a Argentina coloca-se na vanguarda
dos direitos sociais na América Latina47, seguindo o exemplo de outros países dessa
região, como Uruguai, Cuba, Guiana e Guiana Francesa (e regiões como a Cidade
do México).
A transformação ocorrida no território argentino somente foi possível
pelo histórico de mobilização social do país, o qual reivindicou por anos, através dos
movimentos sociais e feministas, que mulheres pudessem escolher interromper uma
gravidez com segurança e sem penalizações criminais. Por meio de movimentos
como os Encontros Nacionais de Mulheres, realizados anualmente desde 1986,
47 CENTENERA, Mar; MOLINA, Federico Rivas. El País. Argentina legaliza o aborto e se põe navanguarda dos direitos sociais na América Latina. 2021.
46 Observatorio nacional en género y salud sexual y reproductiva. Mujer y Salud en Uruguay(MSYU). 2015. Disponível em: http://www.mysu.org.uy/que-hacemos/observatorio/.
71
surgiu a ideia da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e
Gratuito, lançada oficialmente em 2005. Desde o começo, a campanha reúne
associações profissionais, acadêmicas e ativistas para pautar o tema a nível
nacional. Tal união possui mais de 700 organizações, sendo uma das protagonistas
do debate nos últimos 15 anos.
A primeira iniciativa da Campanha Nacional foi elaborar e protocolar, em
2006, um projeto pedindo a legalização do aborto no Congresso Nacional. Contudo,
o texto somente foi apreciado e votado pela Câmara dos Deputados no ano de
2018, durante o governo de Mauricio Macri. Apesar de contrário à legalização, o
presidente preferiu não interferir diretamente no debate, já que o país vivia uma crise
econômica e discutir aborto desviava a atenção dos temas da economia. A pressão
se intensificou com o movimento do lenço verde, o qual virou um símbolo do
movimento da luta pelo aborto legal. Tal mobilização é uma homenagem aos lenços
brancos usados pelas Mães da Praça de Maio, que buscam até hoje filhos e netos
desaparecidos durante a Ditadura Militar.
Neste cenário, em 2020, o contexto social da Argentina parecia finalmente
favorável, pois presidente (Alberto Fernandez) apoiava a legalização do aborto,
houve uma renovação no Congresso, alta participação de mulheres na política e nas
ruas, resultando em uma maior aceitação por parte da sociedade. Assim, o texto foi
aprovado.
De acordo com a legislação argentina, o abortamento está legalmente
consagrado como direito das mulheres, meninas e pessoas com capacidade de
gestação, devendo ser realizado até a 14ª semana de gestação, exceto em caso de
estupro ou se a gestante estiver em perigo. O procedimento só pode ser realizado
em menores de 13 anos caso haja consentimento informado (forma escrita) e com a
presença de um dos pais ou responsável legal. O pedido deve ser atendido no prazo
de dez dias corridos depois da solicitação.
Apesar da recusa dos profissionais de saúde estar prevista no
ordenamento, é obrigação do profissional que encaminhe imediatamente a pessoa
solicitante da interrupção para outro profissional ou centro de saúde que realize o
procedimento. Todavia, a recusa não está autorizada para a gravidez acima de 14
semanas em que a vida e a saúde da gestante estão em risco, devido seu caráter
de urgência. Hospitais privados ou de previdência social que não possuem médicos
72
ou estrutura para a realização do procedimento devem encaminhar a gestante para
outra unidade em que o atendimento seja realizado. Os planos de saúde privados e
públicos devem garantir a cobertura do procedimento de interrupção de gravidez de
forma gratuita; além de diagnóstico, medicamentos e terapia de suporte.
Importante destacar que além da Lei nº 27.610/20, que institui o abortamento
legal, houve a implementação da Lei nº 26.150 de Educação Sexual Integral, que
estabelece políticas públicas e educacionais para fortalecer e garantir a saúde
sexual e reprodutiva dos cidadãos. Destarte, o Código Penal foi alterado, passando
a proibir a a realização do aborto em gestantes que não autorizaram o procedimento
(art. 85), o que pode causar de três a dez anos de prisão, com agravante de até 15
anos caso a gestante venha a óbito durante o procedimento. Como também, é crime
a realização do aborto em pessoas com mais de 14 semanas de gestação com pena
de três meses a um ano, a menos que a vida da gestante esteja em risco. Por fim,
será acrescentado ao artigo 86 que o aborto realizado com consentimento da
gestante até a 14ª semana não é crime.
4.3. ETAPAS PARA IMPLEMENTAÇÃO DO ABORTAMENTO LEGAL NA
REALIDADE BRASILEIRA
Há, atualmente, diversos projetos que visam adequar a legislação brasileira
ao atual contexto social, sob o argumento de que a legislação é antiga e sua
aplicação, deficiente. O aborto, ou mais precisamente, a interrupção voluntária da
gravidez, não é permitido no Brasil, somente em casos excepcionais, como por
exemplo quando necessário para salvar a vida da gestante, ou então quando a
gravidez for resultante de estupro, conforme foi intensamente explanado ao longo do
trabalho.
Desse modo, apesar de estar instituído um sistema de abortamento legal
para situações específicas, na prática os números não revelam um adequado
funcionamento do processo legal. A Pesquisa Nacional de Aborto (2016)48 mapeou
48 Diniz D, Medeiros M. Itinerários e métodos do aborto ilegal em cinco capitais brasileiras.Cien Saude Colet, 2012.
73
os serviços de aborto legal no país e identificou, no período 2013-2015, apenas 37
serviços ativos dos 68 registrados no Ministério da Saúde, assim distribuídos pelas
regiões: 5 no Norte, 11 no Nordeste, 3 no Centro-oeste, 12 no Sudeste e 6 no Sul,
concentrados em capitais e em grandes centros. Todos tinham equipe
multiprofissional, mas não específica para esse atendimento. Documentos como
laudo pericial e alvará judicial foram solicitados por 8 a 14% dos serviços. Os
métodos disponíveis na grande maioria dos serviços eram: medicamentos,
curetagem e aspiração manual intrauterina. De 5.075 demandas, 2.442 abortos
legais foram realizados no país, de 1994-2015.
Além disso, o estudo revelou um obstáculo significativo para a realização
desses abortamentos: a objeção de consciência. O estudo de Diniz et al. mostrou
que 43,5% dos médicos entrevistados não realizariam o aborto por estupro, apenas
10% por motivos religiosos, e os demais sem uma justificativa explícita. O estudo do
pesquisador Wesley Braga de Rocha49, juntamente com outros estudiosos da
Universidade de Brasília, mesclou médicos e outros profissionais de saúde, de
forma que a objeção foi invocada sem base argumentativa por mais da metade dos
participantes, e 16% alegaram motivos religiosos. Nesse mesmo estudo, um terço
dos participantes afirmou que a objeção é um direito do profissional e pode ser
invocada em qualquer ocasião, enquanto outro terço não soube definir o conceito.
Como agravante do contexto apresentado, a Portaria nº 2.282/20 do
Ministério da Saúde, publicada no “Diário Oficial da União”, altera o procedimento
padrão a ser adotado por médicos e profissionais de saúde ao atender mulheres
que queiram abortar após engravidarem de um estupro. A portaria traz novas
exigências, incluindo a oferta para que a gestante veja imagens do feto, em
ultrassonografia, e a submissão da vítima a um extenso questionário sobre o
estupro. Outrossim, nesses casos, também fica "obrigatória a notificação à
autoridade policial pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo
estabelecimento de saúde que acolheram a paciente sobre os indícios ou
confirmação do crime de estupro."
Portanto, constata-se que na realidade brasileira persiste a manutenção de
uma oferta insuficiente de serviços de aborto legal, como as barreiras descritas
49 ROCHA, W. B. et al. Percepção de profissionais da saúde sobre abortamento legal.Universidade de Brasília: Rev Bioét, 2015.
74
realização de abortos previstos em lei, a qual já bastante restritiva, com exigência de
documentação desnecessária em casos de gravidez resultante de estupro. O
número de abortos realizados é inferior à demanda das mulheres. É inadiável a
expansão e consolidação dos serviços de aborto legal no país, principalmente nos
estados que ainda não dispõem destes serviços, e a redução das barreiras de
acesso ao procedimento ao menos por mulheres que se enquadram em condições
previstas em lei.
Diante disso, a aprovação de uma legislação nova dentro dos parâmetros que
já foram testados em países com uma realidade socioeconômica similar à brasileira
e que forneceram resultados interessantes deve ser realizada. É uma questão de
saúde pública urgente ao Estado brasileiro. Este que precisa, também, fortalecer o
sistema de abortamento legal existente, capacitando melhor seus profissionais para
lidar com as pessoas que desejam interromper a gestação, além de equipar seus
hospitais com os materiais necessários. A aspiração uterina deve ser oferecida
como método de esvaziamento uterino em substituição à curetagem, quando
pertinente. Estágios em serviços de aborto legal devem integrar a formação de
profissionais de saúde.
O déficit de registros sobre o abortamento legal revela o estigma que ainda
existe em relação a uma prática considerada permitida pelo ordenamento brasileiro,
bem como revela o quanto os profissionais de saúde primam em manter suas
crenças e opiniões em primeiro plano, desconsiderando a ética médica. É inadiável
a expansão e consolidação dos serviços de aborto legal no país, principalmente nos
estados que ainda não dispõem destes serviços, e a redução das barreiras de
acesso ao procedimento ao menos por mulheres que se enquadram em condições
previstas em lei. Como também, ampliar o debate sobre os direitos sexuais e
reprodutivos das mulheres e sobre as boas práticas na atenção ao aborto.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho analisou o direito ao aborto dentro de múltiplas perspectivas,
em que o primeiro passo foi realizar uma abordagem histórica-social da prática do
aborto, seguido adiante por um estudo jurídico detalhado, de modo a defender a
75
constitucionalidade do abortamento e proteção dos direitos fundamentais, e, por fim,
houve uma apresentação dos modelos que podem ser adotados no território
brasileiro através de exemplos próximos ao Brasil.
Neste sentido, diversos estudos foram utilizados para embasar os tópicos
levantados na presente monografia, com enfoque em pesquisas redigidas por
estudiosos da área, bem como dados legítimos de órgãos oficiais. Com o objetivo de
ponderar argumentos em defesa à descriminalização do aborto, houve a análise das
particularidades do nascituro, verificando que até a 14ª semana de gestação o feto
não possui o córtex cerebral plenamente desenvolvido, órgão responsável por o
conferir sentimentos e racionalidade. Assim, até este momento da gestação o
abortamento não traria dor ou prejuízo ao concepto, sendo essa a teoria
concepcionista mais adequada ao contexto social de proteção das gestantes e dos
nascituros.
Portanto, constatou-se a ineficácia da política estatal de criminalização, de
forma que o Estado é negligente em relação ao tema, pois proíbe a prática do
abortamento, ao mesmo tempo que não age para a prevenção das gravidezes e não
presta apoio a quem decide levar a gestação adiante sem possuir mínimas
condições de subsistência. Além disso, há uma ampla recusa dos profissionais de
saúde em realizar os abortos legais presvistos no diploma penal vigente. Outrossim,
o sistema de saúde despende uma significativa quantia de dinheiro com o
tratamento do pós-abortamento clandestino que diversas mulheres realizam,
comprovando, assim, a gravidade desse problema de saúde e seus efeitos na
economia estatal. O direcionamento dos referidos recursos poderia ser empregado
dentro do novo sistema.
A conclusão é que a instituição de um sistema de abortamento legal é uma
medida de saúde e proteção para milhares de pessoas que desejam interromper
suas gravidezes, bem como é um meio necessário de assegurar o pleno exercício
dos direitos constitucionalmente garantidos. A legislação Penal de 1941 não está
mais adequada à realidade social do Brasil do século XXI, devendo ser reformulada
após discussões com a sociedade civil e a oitiva de especialistas da área, seguindo
o exemplo dos movimentos sociais argentinos e uruguaios. Ambos os países
vizinhos servem de exemplo para a viabilidade de transformação brasileira, cabendo
apenas intensificar as lutas e despertar a vontade política por mudança.
76
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