maria abrao, arriscando a palavra vieira, dos sermoes

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455 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 46, n. 130, p. 455-474, Set./Dez. 2014 PERSPECTIVA TEOLóGIA ADERE A UMA LICENçA NãO COMERCIAL 3.0 CREATIVE COMMONS Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 46, n. 130, p. 455-474, Set./Dez. 2014 ARRISCANDO A PALAVRA: VIEIRA, DOS SERMõES à HISTóRIA DO FUTURO Risking the Word: Vieira, from the Sermons to the History of the Future Maria A. R. Abrão * RESUMO: Arriscar a palavra no púlpito, na própria vida, na obra de uma vida. Em Vieira, dos Sermões à História do Futuro, a palavra faz um caminho. Para além de artifícios da retórica, para além de conveniências político-religiosas, ele coloca as bases da ação como resposta à palavra de Deus e em fidelidade a ela adotando como paradigma a história de Israel. História reveladora da iniciativa de Deus, sempre primeira. Reveladora também dos caminhos e descaminhos da livre resposta humana, da responsabilidade histórica que tal resposta comporta. Ao propor uma leitura do modo de agir de Deus, da sua aliança com a humanidade, Vieira alinha-se perigosamente na fileira dos que incomodam. Lembra a impossibi- lidade de proteger-se sob o conceito de eleição. A purificação desse conceito, bem como o de ‘ser cristão’ é inadiável. No entanto, a postura de Vieira não é isenta de problemas teológicos. O risco de sua palavra, que abre a esse debate, indica igualmente ao homem os motivos para esperar, para crer na promessa, chave da leitura do futuro. PALAVRAS-CHAVE: História, Esperança, Promessa, Fé, Reino. ABSTRACT: Risking the word in the pulpit, in one’s life, in the work of an entire life. According to Vieira, from the Sermons to the History of the Future, the word makes a way for itself. Besides of the rhetoric artifices and the politico-religious conveniences, Vieira establishes the action bases as response to the God’s word, and in fidelity to the same by adopting as paradigm the History of Israel, a reve- aling, and always the first one, History of the God’s initiative. A History that also Maria A. R. Abrão é professora no Departamento de Teologia da Universidade Católica de Pernambuco. Artigo submetido a avaliação em 03.09.2014 e aprovado para publicação em 22.10.2014. Documento:7529 Perspectiva 130 Set Dez 2014.pdf;Página:103;Data:18 de 12 de 2014 15:44:38;conferido LUTADOR

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  • 455Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 46, n. 130, p. 455-474, Set./Dez. 2014

    PersPectiva teolgia adere a uma licenano comercial 3.0 creative commons

    Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 46, n. 130, p. 455-474, Set./Dez. 2014

    arriscando a palavra: vieira, dos sermes histria do futuro

    Risking the Word: Vieira, from the Sermons to the History of the Future

    Maria A. R. Abro *

    RESUMO: Arriscar a palavra no plpito, na prpria vida, na obra de uma vida.Em Vieira, dos Sermes Histria do Futuro, a palavra faz um caminho. Paraalm de artifcios da retrica, para alm de convenincias poltico-religiosas, elecoloca as bases da ao como resposta palavra de Deus e em fidelidade a elaadotando como paradigma a histria de Israel. Histria reveladora da iniciativade Deus, sempre primeira. Reveladora tambm dos caminhos e descaminhos dalivre resposta humana, da responsabilidade histrica que tal resposta comporta. Aopropor uma leitura do modo de agir de Deus, da sua aliana com a humanidade,Vieira alinha-se perigosamente na fileira dos que incomodam. Lembra a impossibi-lidade de proteger-se sob o conceito de eleio. A purificao desse conceito, bemcomo o de ser cristo inadivel. No entanto, a postura de Vieira no isentade problemas teolgicos. O risco de sua palavra, que abre a esse debate, indicaigualmente ao homem os motivos para esperar, para crer na promessa, chave daleitura do futuro.

    PALAvRAS-ChAvE: Histria, Esperana, Promessa, F, Reino.

    ABSTRACT: Risking the word in the pulpit, in ones life, in the work of an entirelife. According to Vieira, from the Sermons to the History of the Future, the wordmakes a way for itself. Besides of the rhetoric artifices and the politico-religiousconveniences, Vieira establishes the action bases as response to the Gods word,and in fidelity to the same by adopting as paradigm the History of Israel, a reve-aling, and always the first one, History of the Gods initiative. A History that also

    Maria A. R. Abro professora no Departamento de Teologia da Universidade Catlica dePernambuco. Artigo submetido a avaliao em 03.09.2014 e aprovado para publicao em22.10.2014.

    Documento:7529 Perspectiva 130 Set Dez 2014.pdf;Pgina:103;Data:18 de 12 de 2014 15:44:38;conferido LUTADOR

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    Introduo

    Duas consideraes nos levam a discorrer sobre este tema. A primeira que a palavra est estreitamente relacionada com a pessoa de Vieira.No uma qualquer. Mas a palavra que funda todas as outras. Um amorreverencial palavra da Escritura inspira e atravessa toda a sua obra. Asegunda a convico da fecundidade da palavra em si mesma, para almdo gnio que a traz consigo.

    Tanto nos Sermes como na Histria do Futuro, observamos que Vieiratem grande domnio dos textos bblicos e familiaridade com os mesmos,o que lhe d desenvoltura mpar na argumentao e na aplicao deexemplos aos diversos temas. Ao fazer do texto bblico o eixo para o seupensamento, ele nos revela por tal escolha o lugar que atribui mesmapalavra. Acompanh-lo no movimento que constri o seu discurso aproposta das reflexes que ora empreendemos.

    Evocaremos para isso num primeiro momento alguns trechos de seusSermes, na impossibilidade de tom-los na ntegra. Esses extratos tmaqui por objetivo nos introduzir no modo singular da relao de Vieiracom a palavra de Deus. A seguir, num segundo tempo, analisaremos comoo trabalho dessa palavra, tal como Vieira a percebe, engaja a sua prpriavida e o coloca em situaes de sofrimentos e de risco, at o desprezo dasua reputao. No entanto, tais situaes no so suficientes para afast--lo do projeto que o habita: produzir uma obra que confirme o seu povo,o povo portugus, na certeza de que Deus o Emanuel. Num terceiromomento e ltimo veremos como, dentro de um estilo bastante diferentedos Sermes, ele estabelece a relao com a palavra na sua obra Histriado Futuro. Ao trmino do itinerrio estaremos aptos, assim o esperamos,a avaliar a que contribuies suas opes teolgico-crists conduzem e aque riscos o expem.

    reveals the right paths and the wrong paths of the human response, of the historicresponsibility that such a response holds. When Vieira proposes the reading ofthe way God works, of the alliance of God with the humankind, Vieira dange-rously aligns himself with the row of those who make trouble. Vieira reminds theimpossibility of sheltering oneself under the concept of election. The purificationof this concept, as well as the concept of being Christian is unpostponable. Ne-vertheless, the Vieiras position is not free from theological issues. The risk of hisword that opens this debate equally indicates to the man the reasons for hopingand believing in the promise, the key for reading the future.

    KEywORDS: History, Hope, Promise, Faith, Kingdom.

    Documento:7529 Perspectiva 130 Set Dez 2014.pdf;Pgina:104;Data:18 de 12 de 2014 15:44:38;conferido LUTADOR

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    1 A palavra de Deus em excertos dos Sermes

    Dentro do assunto que nos ocupa no primeiro momento, nada mais propciopara entrar neste vasto mundo do que o texto clssico que o prprio Vieiradesignou o Prlogo de seus Sermes (NORONHA, 1998): O Sermo daSexagsima, crtica incisiva retrica da poca (BOSI, 2001)1:

    E se quisesse Deus que este to illustre e to numeroso auditorio sahisse hojeto desenganado da prgao, como vem enganado com o prgador! Ouamoso Evangelho, e ouamo-lo todo, que todo do caso que me levou e trouxe deto longe. (VIEIRA, 1951, v. 1, p.1)

    O semeador saiu a semear... Prlogo de uma vida.

    1.1 Ineficcia da palavra

    Estamos em 1655, na Capela Real. Vieira verifica o contraste entre aabundncia de meios para anunciar a palavra e a escassez de resultados:

    Nunca na igreja de Deus houve tantas prgaes, nem tantos pregadores comohoje. Pois se tanto se semeia a palavra de Deus, como to pouco o fructo?No ha um homem que entre em si e se resolva, no ha um moo que se arre-penda, no ha um velho que se desengane, que isto? Assim como Deus no hoje menos Omnipotente, assim a sua palavra no hoje menos poderosa,do que dantes era. Pois se a palavra de Deus to poderosa; se a palavra deDeus tem hoje tantos pregadores, por que no vemos hoje nenhum fructo dapalavra de Deus? Esta to grande e to importante duvida, ser a matria dosermo. (VIEIRA, 1951, v. 1, p. 7).

    Qual poderia ser a causa de tal ineficcia se ela no est na diminuiodo poder de Deus? Com seus ouvintes, ele buscar a resposta a essa ques-to. Examina se o pouco fruto da palavra de Deus no mundo procede dopregador, do ouvinte ou do prprio Deus. E verifica o que necessriopara a converso por meio do sermo em que concorrem o pregador, oouvinte e Deus respectivamente com a doutrina, com o entendimento,com a graa. A trade persuaso, percepo e luz divina invocadaem vista de discernir o ponto deficiente do processo.

    Convicto da fidelidade de Deus que no cessa de enviar o sol e a chuvasobre os maus e os bons, Vieira lembra a prontido de Deus para alumiar,regar, esquentar. Rpido, na sua argumentao, conclui que a falta de fru-tos no pode vir de Deus. Duas razes o fazem chegar a esta concluso:

    1 O fato de, por esta crtica, ter visado a um dos dominicanos no ser esquecido mais tardequando de seu processo, como assinala A. BOSI: Havia ainda outros motivos que explicariama animosidade do Santo Ofcio: a antipatia que os dominicanos nutriam pela Companhia de Jesuse, last but not least, a vaidade literria de um de seus pregadores, Frei Domingos de Santo Toms,ferida pelas setas do nosso orador, que traara a sua caricatura no Sermo da Sexagsima.

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    a palavra da Escritura indicando que o co no falta (a chuva e osol so enviados semente) e a palavra da Igreja. Primeiramente porparte de Deus no falta, nem pode faltar. Esta proposio de f, definidano Conclio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos.

    O prximo passo toca a anlise dos ouvintes. Vieira reconhece que ospregadores inculpam os ouvintes. Traduzindo o desencanto do oradornuma verso moderna poder-se-ia dizer: Fazemos homilias, mas nonos escutam... Cansamos de falar ao povo, mas eles no praticam...Exortamos sem cessar mas... Contudo, ser que a ineficcia dessa palavravem dos ouvintes? Vieira constata: a fora da palavra divina tanta quepode, no mnimo, nascer entre pedras e espinhos. Apostando na fora dapalavra divina e isentando tanto Deus quanto os ouvintes, ele interrogauma vez mais e reflete que mesmo entre pedras e espinhos os pioresouvintes da palavra esta chega a nascer. Mas o fato de nem chegar agerminar instiga nosso pregador a prosseguir:

    ... supposto que o fructo e effeitos da palavra de Deus, no fica, nem porparte de Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se por consequncia claraque fica por parte do prgador. E assim . Sabeis, christos, por que no fazfructo a palavra de Deus? Por culpa dos prgadores. Sabeis, prgadores, porqueno faz fructo a palavra de Deus? Por culpa nossa. (VIEIRA, 1951, v. 1, p. 11)

    E sua anlise vai passar em revista a pessoa do pregador, o seu estilo, amatria que utiliza, a cincia que possui, a voz com que fala.

    Mesmo que as consideraes que precedem a concluso no sejam acausa principal procurada por Vieira, elas nos deixam entrever algumascrticas no que concerne vida do pregador, limpidez ou clareza doestilo que utiliza, definio de um s assunto, cincia ou voz dopregador. Curiosas aproximaes com os nossos tempos... Permitimo-noscitar algumas...

    Quanto pessoa do pregador, Vieira afirma a insuficincia de condies:

    Ter nome de pregador, ou ser pregador de nome, no importa nada; as ac-es, a vida, o exemplo, as obras, so as que convertem o mundo. O melhorconceito que o pregador leva ao plpito, qual cuidaes que ? o conceito quede sua vida tm os ouvintes. Antigamente convertia-se o mundo, hoje por quese no converte ningum? Porque hoje prgam-se palavras e pensamentos,antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obras so tiros sembala. (VIEIRA, 1951, v. 1, p. 12)

    Quanto ao estilo: O plpito, lugar cultual da pregao, converte-se emespao que anuncia a eloquncia da vida, lida nas entrelinhas do dis-curso. Ao mesmo tempo, isso no dispensar a objetividade do estilo:Como ho-de ser as palavras? Como as estrellas. As estrellas so muitodistinctas e muito claras. Assim h-de ser o estylo da pregao (VIEIRA,1951, v. 1, p. 17).

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    Quanto matria: Concentrar-se num s assunto: assim h-de ser o ser-mo: h-de ter razes fortes e solidas, porque h-de ter um s assumptoe tratar uma s matria (VIEIRA,1951, v. 1, p. 20).

    De certa forma Vieira trai a classe denunciando-a. Como querer que apalavra anunciada produza frutos quando a vida de quem a anuncia uma apologia contra a doutrina?... se os ouvintes escutam uma coisa eveem outra, como podem converter-se? (VIEIRA, 1951, v. 1 p. 15). Negaodas palavras pelas obras: obstculo para a metanoia. Sua argumentaopara um cristianismo verdadeiro no se funda apenas nos descompassosentre a palavra e a ao, mas na oposio entre as duas.

    No entanto a sua concluso responde pergunta: Por que se faz, hoje,to pouco fructo com tantas pregaes? porque as palavras dos prega-dores so palavras, mas no so palavras de Deus (...). Prgam palavrasde Deus, mas no pregam a palavra de Deus (...) (VIEIRA, 1951, v. 1, p.27). Utilizar as palavras de Deus para faz-las dizer o que quer o pregadorvisando aprovao dos auditores continuar com os critrios do mundo.

    1.2 A relao pregador-ouvinte

    Ao fazer a leitura deste Sermo observamos que se opera um desloca-mento progressivo. Vieira procede primeiramente a um descentramentoda pessoa do orador. Comea relativizando aquele que prega. E prosseguepara chegar a dizer que a resposta questo central de seu discurso exigeum deslocamento da palavra. O pregador deve passar de sua palavra palavra de Deus: movimento talvez decepcionante para os ouvintes queesperam a beleza da palavra. Ao relativizar aquele que prega, Vieira rejeita paradoxo de um retrico por excelncia o que se encontra na fora daretrica: a capacidade de seduo unicamente pela palavra humana , sepodemos assim dizer. Nessa perspectiva, a vaidade se sobrepe palavrae, como aquela que caiu entre os espinhos, sufocada pelos cuidados domundo, que aqui poderiam se caracterizar pelo cuidado de si mesmo,atravs da busca dos aplausos dos homens. Por isso no produz fruto. EVieira acrescenta:

    Prgavam em Coimbra dois famosos prgadores (). Altercou-se entre algunsdoutores da Universidade, qual dos dois fsse maior prgador, e como noha juzo sem inclinao, uns dizem este; outros, aquelle. Mas um lente, queentre os mais tinha maior auctoridade concluiu desta maneira : entre doissujeitos to grandes no me atrevo a interpor juzo ; s direi uma differena,que sempre experimento. Quando oio um, saio do sermo muito contentedo prgador ; quando oio o outro, saio muito descontente de mim. Com istotenho acabado (VIEIRA, 1951, v. 1, p. 34).

    Por sua vez, nosso jesuta recusa-se a dar prioridade ao que os ouvintesdele esperam, pois est em jogo no o prazer, nem o descontentamento

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    dos que o escutam, mas a verdade da palavra: Por outra parte subirao pulpito e no dizer a verdade, contra o officio, contra a conscincia;principalmente em mim, que tenho dito tantas verdades, e com tantaliberdade, e a to grandes ouvidos. (VIEIRA, 1951, v. 3, p. 13)

    2. Encarnao da palavra: exigncias

    Dizer tantas verdades, com tanta liberdade e a to grandes ouvidos. Entra-mos aqui no segundo momento. No seria de se estranhar se pensssemosque, como Herodes diante do Batista, seus auditores experimentavam ummisto de magia e de incmodo respectivamente pela beleza e pelo carterradical da palavra que lhes era dirigida. O clebre Sermo de santo Antonioaos peixes (1654), audaciosa crtica sociedade dos colonos do Maranho,testemunha o seu pensar sobre a situao. Com a convico de que paraa festa dos santos vale mais pregar com eles que sobre eles , Vieira sedirige aos peixes, a exemplo do santo do dia santo Antonio. Partindodo texto do Evangelho: Vs sois o sal da terra , ele usa a matria deseu sermo para denunciar a corrupo e pedir que os homens cessem dese devorar mutuamente. Sua leitura tica da situao o leva a descrevero contexto social em termos de antropofagia.

    2.1 Prtica da justia

    Um dos aspectos desse contexto e um dos pilares da estratgia da colo-nizao do Brasil por Portugal, com o qual ele no se resignava, era aescravido. Com veemncia exorta os cristos a escutarem o que Deuslhes pede nesta situao precisa:

    Sabeis, christos, sabeis nobreza e povo do Maranho, qual o jejum quequer Deus de vs esta Quaresma? Que solteis as ataduras da injustia, e quedeixeis ir livres os que tendes captivos e opprimidos. Estes so os peccadosdo Maranho: estes so os que Deus me manda que vos anuncie: Annuntiapopulo meo scelera eorum. Christos, Deus me manda desenganar-vos e euvos desengano da parte de Deus. Todos estaes em peccado mortal (VIEIRA,1951, v. 3, p. 14).

    Assim, no se contenta em denunciar nobreza e ao povo a injustia co-metida, mas se posiciona como portador da palavra e, enquanto enviado deDeus, situa-se no somente no plano tico ao denunciar as transgresses,mas tambm no teolgico ao anunciar as consequncias soteriolgicas dasdecises humanas.

    Era na contracorrente que prosseguia sua luta. A fora destrutiva das injus-tias continuar a se manifestar. Os colonos no vo poupar de sua friaVieira e os Padres da Companhia de Jesus. Lembremos que em 1661, os

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    habitantes do Maranho e do Par se voltam contra os jesutas, e AntnioVieira parte para Lisboa contra sua vontade.

    Aperseguio ser uma constante neste combate. Ele se dirigir ao prpriorei em uma carta datada de 8 de dezembro de 1655 na qual exprime seuespanto de ser perseguido, no pelos pagos , mas por aqueles que seapresentam como cristos. (VIEIRA, 1925, p. 452-455)

    Tais afrontamentos e contrariedades o levam a reconhecer que o trabalhojunto aos portugueses to necessrio quanto importante. Este trabalhoconsiste na evangelizao dos cristos de todas as condies sociais.

    Entre os atores, convoca e exorta o rei em pessoa, chamando-o respon-sabilidade no apenas diante da sociedade, mas diante de Deus. Definiti-vamente, diante de Deus que tudo se passa e este no indiferente sinjustias engendradas pelos homens (VIEIRA, 1925, p. 464-468).

    Em sua carta de 20 de maio de 1653, Vieira faz ao rei Dom Joo IV umrelatrio da situao e da condio de vida nas quais se encontram osportugueses e sobretudo os ndios no Brasil. Descreve a grande necessi-dade espiritual de uns e de outros, denuncia os maus-tratos dispensadosaos ndios que, segundo ele, sofrem mais que os escravos negros (VIEIRA,1925, p. 306-315).

    Plenamente convencido da injustia que pesa sobre os ndios, ousa lembrarque a autoridade do rei no absoluta. o Rei Eterno que est acima dotemporal. A autoridade deste submissa do prprio Deus:

    Se el-rei permitir que eu jure falso, deixar o juramento de ser peccado? Seel-rei permitir que eu furte, deixar o furto de ser peccado? O mesmo passanos ndios. El-rei poder mandar que os captivos sejam livres; mas que oslivres sejam captivos, no chega l sua jurisdio (VIEIRA, 1951, v. III, p. 23).

    Em sua carta de 22 de maio de 1653 ao provincial do Brasil, expressaseu esforo para lutar contra tamanha escravido. Aproveita-se do ser-mo dominical cujo tema era o das tentaes de Jesus. Diante do relatoevanglico, ele o analisa identificando nestas tentaes uma oferta, umconselho, um pedido. na terceira tentao que identifica um pedido, oqual desenvolver em seu discurso. Para justificar seu posicionamento,afirma que a terceira tentao a mais universal e a mais poderosa. Tudose passar segundo o preo que Cristo pagou para resgatar cada alma eo preo que o homem paga para vender a sua. Quais so as sedues dodemnio no Estado do Maranho? Como ele prope esta troca? Como ohomem do Maranho se situa frente ao aprisionamento injusto?

    Preguei na seguinte dominga, que era a das Tentaes, e, tomando por funda-mento o Haec omnia tibi dabo, que era a terceira, mostrei primeiramente, coma maior eficcia que pude, como uma alma vale mais do que todos os reinosdo mundo e depois de bem assentado este ponto, passei a desenganar coma maior clareza os homens do Maranho, mostrando-lhes com a mesma que

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    todos estavam geralmente em estado de condenao, pelos cativeiros injustosdos ndios; e que, enquanto ste habitual pecado se no remediasse, todas asalmas dos portugueses deste Estado iam e haviam de ir para o inferno. Propusfinalmente o remdio, que veio a ser em substncia as mesmas resolues danossa resposta, mais declaradas e mais persuadidas, facilitando a execuo eencarecendo a convenincia delas; e acabei prometendo grandes bnos deDeus e felicidades, ainda temporais, aos que, por servio do mesmo Senhor epor salvar a alma, lhe sacrificassem esses interesses (VIEIRA, 1925, v. 1, p. 338).

    Atravs do evangelho sobre as Tentaes, a exortao de Vieira a renun-ciar aos interesses desmesurados abre a questo sobre o lugar social ea visibilidade dos papis na sociedade: Quem nos ha-de ir buscar umpote de agua, ou um feixe de lenha? Quem nos ha-de de fazer duas covasde mandioca? Ho-de ir nossas mulheres? Ho-de ir nossos filhos?()(VIEIRA, 1925, v. 1, p. 18).

    2.2 Reconhecimento da dignidade humana

    Incluir a questo social na teolgica no , para Vieira, um acrscimoque enriqueceria ou ilustraria a palavra pronunciada. A relao de poderarrasta e conduz reflexo sobre o amor de si mesmo primando sobrea vida e a liberdade do outro. Ele sustentar nesse mesmo Sermo, quevale mais ganhar a vida com o prprio suor do que com o sangue dosoutros. O mesmo tema retomado em uma de suas Cartas em que eleremete a este sermo para reafirmar que uma alma vale mais do quetodos os reinos do mundo (VIEIRA, 1925, v. 1, p. 338). Convida assim opovo do Maranho a um reconhecimento e os convoca a uma converso.Converso esta que passa pela humanizao de suas relaes e reconheceos ndios como filhos de Deus.

    Quase um ano depois, em outra carta ao provincial do Brasil, Vieira deixatransparecer uma vez mais seu sofrimento interior frente distncia queexiste entre o que sente ser o dever dos Padres para com os ndios, e omodo como efetivamente os tratam.

    Confesso a Vossa Rev.a que fra um exerccio de grande consolao andarcorrendo e visitando estas pobres choupanas, se juntamente se no ouviram aslstimas e queixas dos ndios, que como eles no tm outrem que se condade seus trabalhos, e acuda de alguma maneira por les, seno os padres daCompanhia, em ns descarregam todas suas lstimas, e um grande gnerode tormento ouvi-las e conhec-las, e alcanar ainda melhor que les a muitarazo que tm, e lhes no podermos ser bons (VIEIRA, 1925, v. 1, p. 389-390).

    Nessa confisso, a expresso de no poder ser bons para eles testemunhasua a conscincia aguda da duplicidade existente nas relaes com a popu-lao indgena, sem todavia expressar melhor as causas desta impotncia.

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    Quase indiferente aos seus opositores, Vieira continua seu caminho. Conhecepor dentro Portugal e o Brasil. Este conhecimento lhe traz muito sofrimento.Sobretudo no que diz respeito situao da escravido. Percebe melhoras injustias que esto na base da poltica de colonizao. E as denunciadiante do rei, dos governadores, administradores locais, ndios, escravos.Mesmo diante da Igreja, pois tambm ela responsvel por esta situao.Era preciso enviar mais missionrios que aliassem boa doutrina e santidadede vida. Vieira est dolorosamente consciente de que h um descompassoentre palavra e ao. Em suas cartas este tema voltar quando reclama daqualidade dos missionrios enviados Colnia.

    2.3 Fidelidade ao evangelho

    Neste cenrio, quem Vieira para o Novo Mundo? Paiau. Pai Grande.Assim os ndios estavam acostumados a cham-lo (CIDADE, 1959, p. 428).

    Ressaltamos por enquanto, para alm de todo aparato retrico, seu entu-siasmo por uma encarnao da palavra de Deus. A tal ponto que todasas realidades so convocadas a uma transfigurao luz desta mesmapalavra. Eis por que, seguindo o ritmo do tempo litrgico, tudo se tornaassunto a ser tratado em ctedra. E ele dirige suas palavras, como jdissemos, ora aos reis e nobres (VIEIRA, 1951, v. 1, p. 1-36), ora aos quetm de tomar decises polticas e econmicas e que as fazem pesar sobreo povo (VIEIRA, 1951, v. 7, p. 157-161), ora aos escravos negros (VIEIRA,1951, v. 11, p. 296) ou para defender os escravos indgenas (NORONHA,1950, p. 124-151), ora s autoridades eclesiais (VIEIRA, 1951, v. 1, p. 48-50).

    Reafirmamos nosso objetivo de no proceder aqui a uma anlise dos Ser-mes. Tomando alguns de seus excertos, queremos sublinhar que Vieirano se subtrai Palavra a ele confiada. Esta uma preocupao contnuade nosso autor. De algum modo seria tambm por isso que Vieira resistiatanto em trabalhar na publicao de seus Sermes? Suas obras chamadasprofticas s quais ele atribua grande importncia, despojadas do estilodos Sermes, seriam mais transparentes eficcia e fora da palavra deDeus? Sem a beleza da retrica dos Sermes dariam o verdadeiro sentidodesta palavra? Seja como for, sua deciso fundamental agradar a Deuse no aos homens marcar sua trajetria de modo quase dramtico.Correr o risco, mas correr o mesmo risco que a palavra.

    De fato. Acusado de heresia, Antnio Vieira comear um longo debatecom a Inquisio portuguesa. Tentar demonstrar que sua f profunda-mente enraizada na f da Igreja de seu tempo. Malgrado seus esforos,no fim do processo, preso durante dois anos.

    Em que sua convico e sua f em um Deus que trabalha sempre, incan-savelmente implicado nas coisas humanas, podem causar problema? Paraquem seriam elas uma ameaa? Ele tem pressa e sede do dia em que Deus

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    se manifestar. Sua vinda tudo transformar e outra ordem temporal serinstaurada.

    Est convicto de que a obra de Deus concerne humanidade. Cada realidadetraduz para ele o caminho de sua promessa e indica as vias de seu cumpri-mento. Ela se encarna na carne dos homens. por isso que ele a confrontacom a palavra das Escrituras. Tudo o que atinge o homem, atinge Deus.

    Sua releitura do compromisso entre Deus e o homem no est isenta deproblemas. Os conflitos de interpretao associados a um procedimentono muito transparente por parte da Inquisio vo se agravar sensivel-mente a partir de 1663. Vieira ser ento intimado a comparecer diantedo Tribunal e a prestar contas das acusaes feitas contra ele.

    No face a face com o Tribunal, tentar provar sua obedincia f da Igreja.Assaltado de um lado pela doena, de outro pelas exigncias dos inqui-sidores, sofrer o processo que se estender at 1667, quando finalmente pronunciada uma sentena que condena as ideias que ele supostamentepropagaria.

    Um livro que ser um compndio de sua posio sobre todas essas matriasest sendo preparado. Ele o intitula Histria do Futuro. Por meio delefar-se- escutar nas respostas e questes que o habitam?

    As adversidades no o confundiram. Depois de tudo, e tambm graas aoperdo que lhe fora concedido em 1668, volta ao campo de seus combates.

    3. Expor a existncia ao risco da palavra

    No conjunto da Histria do Futuro, e aqui comeamos o nosso terceiromomento Vieira arrisca-se numa leitura em que as Sagradas Escriturase a realidade que o homem vive se iluminem reciprocamente, permitindo--lhe sempre um novo olhar hermenutico. Deus est presente no coraodos mais concretos acontecimentos. A perda e a conquista da soberaniade Portugal no so circunstncias insignificantes. Tanto na submisso Espanha quanto na restaurao do Reino, o plano de Deus continua a serealizar. Se os caminhos so diversos, o plano consentido por Deus atravsde seus occultos juizos (VIEIRA, 1976, p. 131) o mesmo. Sua leiturae sua ao entreveem como um elemento de unificao a esperana davinda do Reino de Cristo.

    Vieira tem a aguda conscincia de que algo mais alm dos Sermes deveser dito. Est em busca de um cristianismo que seja eco e resposta pa-lavra e onde a identidade do homem no seja simplesmente reduzida sua ascendncia, mas esteja intrinsecamente ligada qualidade da unidadeentre discurso e ao.

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    Seria o conjunto das obras profticas de Vieira, despojado do estilo dosSermes, mais transparente fora da palavra da qual Vieira se acreditavaservidor?

    3.1 Pensar a relao entre histria e palavra

    O status da palavra nos Sermes parece distinto daquele que possui naHistria do Futuro. Da alguns elementos comuns em discursos pronun-ciados em contextos to diversos: a palavra pronunciada no ato litrgicofaz da liturgia provocao a um ato; a palavra pronunciada na Histriado Futuro quer fazer uma teologia da histria.

    A referncia histria de Israel que atravessa toda a Histria do Futuro necessria para Vieira, porque paradigmtica. Evocar essa histria e tentarcompreend-la e interpret-la no para ele apenas um exerccio de exegese. a leitura de uma nica histria: a da ao de Deus e a da humanidade.

    Nela o homem provocado f. Poderamos dizer que a primeira recom-pensa da f a f. Vieira mostra-se bastante rigoroso quando se trata daingratido ou da falta de f do homem em relao a Deus (VIEIRA, 1976,p. 96). Busca seu argumento em santo Agostinho. Como duvidar daqueleque j cumpriu uma parte das promessas? Como no confiar nele para opleno cumprimento de sua palavra? A incredulidade , pois, no fundada,indesculpvel.

    Deus se deu a conhecer, assim como a sua vontade, pelas Escrituras, pelasvises das profecias (VIEIRA, 1992, p. 267). Vieira toma o tempo de vercomo Deus se revelou pelos Profetas. Estes sero para ele um lugar teol-gico decisivo de reconhecimento da ao histrica de Deus. a experinciasingular da palavra que se manifesta numa vivncia, com tal fora quepropulsa o profeta a ser intrprete de Deus. O profeta olha na histria aprofunda infidelidade a Deus e aliana, os atos coletivos de idolatria, ainiquidade das autoridades, os pactos com os pases estrangeiros. Interpelaa prtica do povo, das autoridades, dos juzes, dos maus pastores, dosfalsos profetas. por isso que lembrar o povo e seus dirigentes que Deus o Emanuel, o libertador, aquele que defende o direito dos oprimidos,um Deus ciumento que exige fidelidade absoluta: ele Deus e no Baal.A converso assim o eixo de seu discurso. O questionamento da infi-delidade reaviva a f em Deus, afirma o fato de que Deus se revela nae pela histria, garantindo a aliana que fez com o seu povo. Mas no apenas a dimenso pessoal do apelo converso que a visada. rea-firmado tambm o aspecto tico da relao entre Israel e seu Deus, poisa f de Israel chamada a ir alm do culto. Sob este aspecto Vieira serparticularmente atento ao longo de sua obra.

    Como todo ser humano, o cristo no est apto a dominar todas as con-tingncias que a ele se apresentam. Mas traz em si a promessa de Deus. E

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    esta, sem suprimir os verdadeiros riscos histricos, assinala que, no coraode todo combate humano, Deus sem deixar de estar ao lado do homem, oprecede. Aquele que cr o sabe: no futuro, Deus quem o espera. O futurotorna-se assim lugar da f, da esperana e ao mesmo tempo da certeza darealizao das promessas, pois Deus no falta com a sua palavra. Deus a promessa. No estranho que Vieira evoque o xodo como modelo dahistria de seu povo, ou Daniel para mostrar a sucesso das monarquias.De certo modo, o universalismo da salvao, a realidade escatolgicaque faz com que ele desmistifique o futuro. Este no pertence a nenhumaespeculao das cincias ocultas, mas lugar e espao da histria deDeus com seu povo. Na Histria do Futuro, possvel ler sua tentativa dediscernir o porvir humano na histria sagrada, segundo a qual o futuro dohomem est definitivamente ligado ao futuro do Cristo. Da se segue queo Reino do Cristo igualmente o Reino do Cristo e dos cristos.

    Se o futuro do homem est associado histria sagrada, ele se associaigualmente aliana e, portanto, interpelado a acolher e perscrutar apalavra dos profetas. Apegados aliana mais do que ningum, os profe-tas falam em nome daquele que teve a iniciativa de se ligar ao seu povo.A palavra dos profetas se insere ento em um movimento de refernciacontnua a esta aliana que no poupa os homens das provaes. Aocontrrio. A palavra que nela anunciada o expor ainda mais, pormtraz em si a promessa que no decepciona. Ao qualificar a aliana comouma instituio surpreendente, P. Beauchamp observa que feita paraa estabilidade, ela se apoia no movimento (BEAUCHAMP, 1976, p. 82).Nos movimentos da histria, o profeta tambm aquele que a discerne,sempre em busca da palavra que o possui, mas que no propriedadede ningum. , ento, constitutivo do ministrio proftico, o ato de fazermemria da palavra que Deus deu a seu povo, de anunci-la como irrevo-gvel, de denunciar os desvios de toda e qualquer ordem, de estar vigilantecontra a infidelidade e a profanao do nome do Senhor, de consolar nasprovaes, de interceder, de romper qualquer forma de mutismo.

    Se o nico compromisso do profeta a relao com aquele que o enviou de onde vem sua autonomia mesmo frente aos poderosos deste mundo, possvel que o profeta deixe s vezes a impresso de uma obra oupalavra inacabada, pois no executa um projeto por ele concebido e calcu-lado com antecedncia, mas segue a palavra que o colocou em movimento.Esta desconcertante e surpreendente para seus auditores, mas tambmpara o prprio enviado.

    Nele, esta palavra traz em si uma fora que convoca o auditor a passarao papel de ator:

    O ato proftico no est no que enunciado, mas no choque do fato de enun-ciar que chama a uns e rejeita outros: a palavra um julgamento entre profetae profeta, entre ouvinte e ouvinte. O profeta de algum modo obriga os que

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    o escutam a profetizar por conta prpria, e s vezes na noite (BEAUCHAMP,1976, p. 100).

    Ao remeter o homem a si mesmo, no sentido de que a palavra do profetaquase que obriga a uma sada da indiferena e provoca o encontro decada um com aquele que o enviou, o que se manifesta a dimenso e afora do julgamento assim como a qualidade da escuta daquele a quemesta palavra dirigida.

    O itinerrio da pregao evanglica atravessado pelo anncio da realizaoda palavra pelos profetas. um testemunho que, pelo prprio mistrio doque anuncia, abre o homem ao encontro que, logo aps, far tambm deleuma testemunha. Da uma tenso sempre latente entre presente e futuro,promessa e cumprimento, reino de Deus e realidade humana.

    A relao com as Escrituras mostrou-se essencial para Vieira, por serem aprincipal fonte (VIEIRA, 1976, p. 155), a parte maior do terreno sobre o qualconstruiu seu projeto. Dessa maneira, a contnua referncia s Escrituras, afidelidade e o apego palavra de Deus a manifestados, supem no ape-nas um leitor familiarizado com estes textos, mas tambm a cumplicidadeda f. Sem isso, o leitor permanece fora do universo teolgico de Vieira.

    Vieira faz uma justa avaliao ao reconhecer que a palavra proftica um dom que s Deus pode dar a quem ele quer, conforme o mistrio desua vontade, de tal modo que outros possam disso se beneficiar (VIEIRA,1976, p. 154). dom pessoal, mas enriquece e amplia a compreenso dacomunidade humana. Entretanto, um trabalho requerido para que aprofecia seja identificada, reconhecida, realizada. Para ele, a profecia para ser conjugada com tudo o que a razo pode conhecer. Assim, elase faz ajudar pela luz da razo. A escuta que ele tem da Escritura no ,pois, desprovida de instncia crtica.

    A recapitulao da histria de Deus com seu povo, principalmente aevocao do xodo, faz ressaltar no apenas uma histria de libertao,mas a atualidade da promessa. Todos so envolvidos neste movimentode promessa e cumprimento. A promessa d a chave do futuro, no emtermos de adivinhao e magia (VIEIRA, 1976, p. 69), mas de orientaodo olhar para o que o cumprimento de toda a existncia. Est claropara Vieira que nenhum acordo com os grandes deste mundo possvelquando est em jogo a fidelidade palavra recebida.

    Ele valoriza o que a Bblia apresenta fundamentalmente: o Deus da alian-a, o Deus da promessa. A experincia desse Deus est ligada criaode um povo livre que se reconhece como povo de Deus. Parece bastanteprximo da tradio bblica em que Deus no o grande ausente, maspresente em tudo o que vivem os homens. O Reino , na sua obra, umarealidade em movimento e que coloca em movimento.

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    Quaisquer que sejam as circunstncias, Deus cumprir todas as esperanasque nutrira com suas promessas. Quanto mais a experincia contrrias expectativas, tanto mais a esperana na promessa parece ser avivada.Como explicar que Vieira no se decepcione diante da no realizao desuas esperanas s vezes to concretamente esperadas? Talvez um elementode resposta fosse precisamente o fato de acentuar o sujeito da promessa:Deus. Isso poderia explicar, ao menos em parte, sua esperana inabalvel.H da parte de Deus o castigo pelas infidelidades do povo, mas h tambma mudana do castigo em bno.

    3.2 A teologia da histria: convices e dificuldades dopensamento de Vieira

    O percurso do cristo adquire tons particulares: ele chamado a conheceras promessas interiormente, a escutar as profecias, a levar uma vida emconsequncia com a palavra escutada. Mas no se trata de transpor oude aplicar modelos bblicos como uma repetio. O cristo chamado aousar o novo nas situaes que so tambm novas. Passo a passo, umelemento aps outro pode encontrar sua significao e seu lugar na leiturade Vieira. Mas pelo simples fato de mudar de interlocutores e de fazervaler a profecia ou o relato em seu hoje, provoca o auditor a encontrar,orientado pelo Esprito, uma nova sada. Como afirmar ento a audciado novo? No seu entendimento, ela imperativa nas respostas criativasque as realidades pedem ao homem.

    A Histria do Futuro no um projeto conformista, mas um manifestoproclamando a fora da promessa de Deus. Esta faz a histria e instnciacrtica da histria e de toda a realidade. tambm aquela que afiana aexperincia dos que creem (MOLTMANN, 1978, p. 176-177).

    Permitindo fazer a experincia do Deus vivo, a f para Vieira o princpiounificador de tudo e, ao mesmo tempo, a raiz do desassossego de seu ser.A propsito, vale ressaltar que:

    a f, por todo lado onde se estenda em esperana, no traz o repouso, masa inquietao; no torna paciente, mas impaciente (). Quem espera em Cristono pode mais se acomodar com uma dada realidade, mas comea a sofrerpor causa dela, a contradiz-la (MOLTMANN, 1978, p. 18).

    Com efeito, para Vieira, a f no possui nenhuma semelhana com umaideia abstrata, mas inscreve-se na convico de que Deus a Vida, afonte de toda vida. A f sempre um processo: escatolgica, na medidaem que completamente orientada para o ltimo. Crer j o incio davida eterna. A f desde agora aquela que indica a realidade definitiva.

    Eis um trao essencial do projeto de Vieira: na dinmica crist, a f no algo adquirido, mesmo em um mundo que se pretende cristo. Eladeve tambm se afirmar como esperana, renunciando a toda ditadura

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    do presente. Ele rompe com uma relao passiva com o futuro. A f orientada para a ao, tendo como eixo Deus e sua promessa. Deus queno est atrs do homem, mas ao seu lado e diante dele. O futuro dohomem e do mundo no dado pelo prprio mundo, mas por Deus.A este reservada a ltima palavra ou a palavra do fim da histria(XHAUFFLAIRE, 1972, p. 35).

    Como estar seguro do cumprimento das promessas de Deus? Comentan-do Paulo, Moltmann sustenta que esta afirmao possvel porque Deusressuscitou o Cristo de entre os mortos. Est a o eixo e a manifestaoda fidelidade de Deus. Uma fidelidade que subsiste prova do tempo.

    Subjacente ao desenrolar do discurso de Vieira, a lgica da eleio estbem presente. Ele tinha a convico da eleio de Portugal por Deus. Ahistria de Portugal indissocivel da promessa de Deus. Seu pas seria oinstrumento escolhido para que a instaurao do Reino de Cristo sobre aterra se tornasse realidade. Mas esta eleio no apenas tomada em seuaspecto passivo, o de uma escolha. considerada em sua dimenso ativa,isto , a da resposta dos seres livres escolhidos. importante lembrar oque j tivemos ocasio de perceber em seu projeto: a eleio est estrei-tamente ligada converso e comporta exigncias espirituais e ticas quederivam da adeso consciente e livre ao projeto divino. Atravessada porsuas exigncias, a eleio despojada de conotaes mgicas e convida auma resposta renovada, assim como a uma constante vigilncia.

    Entretanto, a insistncia sobre a escolha de Portugal faz entrever algunsproblemas teolgicos. bem uma pessoa e uma nao que Vieira v comoos agentes maiores nesse caminho para a instaurao do Reino do Cristo.Reino de Cristo que para ele se identifica com o Imprio de Cristo e doscristos constituindo o chamado Quinto Imprio, uma das convices de seuprojeto: a Portugal que cabe, na terra, a misso de torn-lo concreto. Essainstaurao implica uma dimenso ao mesmo tempo individual e coletiva.

    A ideia de eleio tal como aparece no projeto pode comportar, de umlado uma falsa segurana, e de outro a ideia de uma excluso.

    No decorrer da Histria do Futuro, Portugal era invocado, a exemplo deIsrael, como o povo eleito. Uma eleio que no diminui em nada as exi-gncias de uma ao em conformidade com a f. No entanto, a Portugalque cabe, na terra, a misso de torn-lo concreto. No plano teolgico, oque levou Vieira convico da instaurao do Quinto Imprio?

    Se substituir Israel por Portugal pode causar espanto e sugerir uma vezmais a superioridade de um povo sobre outro, vale a pena avaliar o alcanceteolgico dessa opo. Desde o AT, Deus o agente da eleio, da qual sereserva toda iniciativa. A interpretao cristolgica da eleio nos escritospaulinos situa-se numa dimenso protolgica. Em virtude desta dimenso,a escolha contrasta com a ideia de excluso na medida em que a eleio

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    tem sua gnese na criao. Como articular desgnio de salvao univer-sal e a parcialidade manifestada numa escolha? Qual a finalidade daeleio seno a de tornar visvel a salvao de Deus para a humanidade?

    Analisando esta marcada preferncia de Deus por Portugal, que Vieirainsiste em sublinhar, podemos encontrar um vestgio do que desde oAT, os profetas no cessam de anunciar. preciso partir do fato de quea noo bblica de justia pode parecer desencorajadora. Deus no temnada em comum com Themis. Para o homem bblico, Deus no neutroe indiferente, mas decididamente toma o partido das pessoas sem apoio esem recurso. Podemos emitir a hiptese de que Vieira se serve sem hesitardeste argumento colocando Deus ao lado daquele que vai resgatar Portugalde tudo o que constituiu sua impotncia e sua vergonha entre os povos.

    A lgica do crer elemento indispensvel de sua teologia da histria. Semo pressuposto da f, a Histria do Futuro, tal como a conhecemos, noexistiria. Uma f que no simplesmente assentimento intelectual a umaverdade, mas interpelao para que a vida seja ordenada em coerncia comela. A vida e a experincia humana em sua dimenso pessoal, mas tambmsocial e poltica, so para Vieira estruturadas e regidas pela vontade deDeus. Sua vontade no outra seno a de salvar a humanidade, submet--la ao Reino do Cristo e instaurar a paz definitiva sobre a terra. Mas sea salvao j fora definitivamente acabada por Cristo, Senhor Universal,o que espera Vieira? Seu projeto nos leva a ver o desejo de poder viverdos frutos dessa salvao. Os frutos no seriam esperados apenas paraum alm. ainda em vida que o homem convidado a entrar no gozodesses bens. Para Vieira, a inteligibilidade da histria s possvel luzdo discernimento dessa vontade.

    Diante de tal abordagem, como no notar a escassez do termo pecado?Embora praticamente no se encontre em sua Histria, nem por isso a suarealidade est ausente. Ao contrrio, aparece com toda a sua fora, mesmoque ele no desenvolva o tema de modo sistemtico e direto, mas o tratesob a forma de idolatria, de infidelidade, de recusa em dar a Deus a glriaque a ele pertence. Vieira questiona esta falta de lucidez do homem emno reconhecer que no respondera ao amor de Deus. O homem em sualiberdade, pode assim interromper mais ou menos abruptamente o dilogocom a graa. O pecado, fruto do poder capaz de entravar a liberdade, assim abordado em sua dimenso pessoal, e igualmente em sua dimensosocial e comunitria. Este tratamento do tema revela bem a opo feitadesde o incio: ser um leitor atento dos profetas. Ele ressalta a essnciaantropolgica do pecado, isto , a autoafirmao do poder do homem quese estimula a utilizar seu poder para se levantar contra Deus e oprimir ohomem. O pecado o verme destruidor da comunidade dos que creem eda vida social, na medida em que alimenta incansavelmente a dominaodos povos por uma falsa lgica de superioridade.

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    Na mesma linha, a esperana se define num campo mais vasto. No estritamente compreendida como reservada para outra vida. A esperana,que desde agora quer habitar os coraes dos que creem, quer esperaragora. Pois se apoia e repousa sobre a promessa.

    Vieira passa rapidamente da promessa de Deus a um cumprimento quecr iminente e que ocorreria ainda no decorrer do sculo XVII. Uma im-pacincia que parece precipitar a justia e o domnio visvel e palpvel doCristo sobre toda a realidade. Sempre esperando este futuro, Vieira no sesepara da histria que est se desenrolando. Esta articulao fundamentalpara compreender a proposta de sua histria. Nela, o desenvolvimentocristolgico fortemente impregnado pelo conceito de reino. Ao lado desteconceito e ligado a ele, vemos tambm o desenvolvimento da soberaniae do domnio de Cristo.

    Na teologia da histria de Vieira, essa noo fundamental. Antes de tudo,Jesus Cristo Rei. O batismo de Jesus j fazia ressaltar a uno proftica ereal. Mas como conceber sua realeza? Sua vida se encarregar de mostr-lo.No anncio da proximidade do reino, feito por Jesus, importante conside-rar a revelao que ele faz de Deus como seu Pai, um Pai que se preocupacom os mnimos detalhes cotidianos da vida de seus filhos (KASPER, 1976,p. 113). Esta relao determinante no entendimento dessa noo.

    Manifestando que no ignora a uno proftica e real do Cristo, pois faladisso, Vieira tratar de pensar esta uno no sentido de uma vitria triunfalsobre o mal no mundo. Como j o sublinhamos, caractersticas do exercciodo reino esto a presentes. Como herdeiros com o Cristo, os cristos deletomaro parte. A soberania absoluta do Cristo sobre toda criatura rea-firmada e um conceito chave para entender a instaurao de seu reino.

    Tal instaurao no pensada somente no sentido espiritual. Sendo aomesmo tempo espiritual e temporal, este reino ganha contornos que tmtambm a marca humana. No ponto de partida de nossa reflexo no difcil localizar a teologia da encarnao.

    Ento, no haveria mais distino clara entre as diferentes esferas? Pode-sedeclarar a fuso das realidades e uma divinizao total? Ser que, nestascircunstncias, existiria ainda o humano? Uma intuio profundamenteimportante est subjacente no debate sobre o espiritual e o temporal. Aocriar, sustentar e resgatar a humanidade, Deus entra em relao verdadeirae consequente com o homem, levando a srio a realidade da carne. Porsua vez, estaria o homem pronto a tomar as medidas deste compromisso?Deixar-se-ia atingir pelos condicionamentos inerentes sua condio?Deveria abstrair-se de sua carne?

    A noo de justia est em estreita relao com a do reino. A justia repre-senta um papel fundamental na elaborao da teologia da histria de Vieira.

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    A ausncia de um rei plenamente justo projeta esta realizao para o tempoda instaurao do reinado de Cristo sobre a terra. A espera deve ser umaespera ativa, provocadora, realizando j a forma concreta que assumir.

    A compreenso e o consentimento da f marcam tambm a concepo dotempo. um privilgio viver neste tempo. De elemento que pode marcar oesquecimento, o distanciamento, ele se torna o tempo da graa. Malgrado arecusa do homem a Deus, no seio do tempo do pecado que se manifestae se d a revelao da vida eterna (BALTHASAR, 1970, p. 51). Ao escolheruma presena ininterrupta junto do homem, Deus quis tornar-se seu contem-porneo. H uma histria do futuro que abre o homem graa que est ase realizar. Doravante o distanciamento cronolgico no mais uma escusapara o cristo que quer se eximir de sua responsabilidade ou de sua faltade apego s promessas. Deus arranca assim o homem da tentao de viveralhures. Nessa perspectiva, o tempo recebe toda a sua densidade teolgica.

    O reconhecimento do Senhorio de Deus sobre a histria um dos eixosmaiores da teologia da histria construda por Vieira.

    Concluso

    Ao final dos trs momentos evocados, podemos reconhecer que todo oedifcio de Vieira se constri sobre a palavra que ora encanta por sua be-leza, ora surpreende por seu carter radical desconcertantemente aplicado realidade.

    Nas pegadas de Deus que arrisca a palavra nos diversos terrenos que soos coraes dos homens, Vieira, o imperador da lngua portuguesa para falar com Fernando Pessoa faz-se o humilde sdito de uma palavraque a um tempo ultrapassa, precede, qualifica, purifica, guia a sua prpriapalavra. Se a obra e a personalidade desse jesuta marcam o seu tempo,a sua palavra o distingue para muito alm do seu tempo. Alcanado pelapalavra de Deus, o orador de qualidade excepcional se torna seu cmplice.Curiosamente o mestre da palavra se perde na palavra de Deus de modoa no poder mais expressar o sentido na ausncia dessa mesma palavra.Ela , em ltima instncia, a responsvel pela audcia das ideias e pelatenacidade do combate desse homem pragmtico que foi Vieira.

    Na Histria do Futuro ele se refere com frequncia tanto ao xodo comoao exlio. Se o xodo foi fundante na histria do povo, o Exlio foi deci-sivo para perceber Deus como o Deus-conosco, o Deus que, para alm damemria, o futuro dos seus.

    O Deus do ato litrgico deve se tornar o Deus da histria. O Deus daBblia deve se tornar o nosso Deus; caso contrrio correremos o risco deo relegar ao passado e viver o presente indiferentes ao futuro.

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    Vieira estima que indispensvel manter o olhar na promessa de Deus,mesmo quando esta parece estar em ntida contradio com a realidadeque ele experimenta. A esperana na promessa no permite que o homemdesespere nem de Deus, nem da histria, mas o abre para o futuro e decerta maneira fora a histria a sair de tudo o que pode estreit-la.

    Sua maneira de tecer os laos entre suas concepes f, promessa, tem-po, esperana, reino, histria expressa que a ltima palavra sobre todoo universo a palavra de Deus. Esta espcie de sntese escatolgica, emVieira, longe de fechar o dilogo, abre-o sobre uma base nova.

    Haurindo sua argumentao vrias vezes nas fontes bblicas, Vieira esfora--se por fazer dialogar a f na palavra com a luz da razo e, na medida emque o faz, ele se distancia de uma leitura fundamentalista das Escrituras.

    Voltar sobre a questo de um Reino temporal do Cristo no quer de modoalgum indicar aqui uma volta s relaes antigas e controvertidas entre aIgreja e o Estado. O que importa considerar, para alm dos condiciona-mentos socioculturais de Vieira, a real convico teolgica de sua esperana.

    Pesar a utopia do Reino e da histria com todas as suas mediaes, osolhos fixos sobre o ltimo, , na construo de Vieira, o caminho neces-srio para compreender que ele quer mostrar a imbricao entre ambos,reservando a Deus o domnio de tudo.

    Vieira resiste tese segundo a qual o poder de Cristo se limita ao domnioespiritual. No hesitou em marcar uma ruptura com todo pensamentoque pudesse diminuir o interesse de Cristo pelo temporal. Essa rupturainstaura no a declarao que tudo divino, mas que tudo est penetra-do pelo mistrio da Encarnao. Para ele Cristo se mostrou o Senhor, emtodos os sentidos da palavra. Ele o expressa pelo conceito de soberania,sem por isso suprimir o temporal.

    A reflexo, a posio e a ao poltica de Vieira possivelmente no souma ingerncia indesejvel nos negcios temporais, mas uma consequncianatural de sua opo crist.

    A trajetria da Histria do Futuro converge para isto: Deus o futurodo homem. E este futuro no tira o homem de seu mundo, mas o faznele imergir com o sentido aguado que neste mesmo mundo acontece oltimo. A relativizao operada por Vieira diante deste ltimo expressa,certamente, o corao da esperana, mas tambm uma crtica rigorosa detoda tentativa de eternizao do provisrio.

    O projeto de Vieira busca dar as razes de sua esperana e comporta umateologia que no est isenta de ambiguidades.

    Tendo somente em Deus seu fundamento ltimo, o homem se afirma comoum ser de esperana. Esperana que, pela fora do Esprito, faz novastodas as coisas, trabalha o homem e o prepara, por sua vez, a dar conta

    Documento:7529 Perspectiva 130 Set Dez 2014.pdf;Pgina:121;Data:18 de 12 de 2014 15:44:40;conferido LUTADOR

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    Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 46, n. 130, p. 455-474, Set./Dez. 2014

    de sua esperana. Dar conta da prpria esperana em um mundo cadavez mais pensado na imanncia e na imediatidade tambm semear. Osemeador saiu a semear...

    A concordncia entre a obra humana, o pensamento e a palavra destejesuta (BUESCU, 1992, p. 199) poder ser inspiradora.

    Referncias bilbiogrficasBALTHASAR, Hans Urs von. De lintgration: Aspects dune thologie de lhistoire. Bruges:Descle de Brouwer, 1970.

    BEAUCHAMP, Paul. Lun et lautre Testament: essai de lecture, Paris: Seuil, 1976, t. I.BOSI, Alfredo. De Profecia e Inquisio, 2. ed., Braslia: Senado Federal, Coleo Brasil500 anos, 2001, p. XII.

    BUESCU, Maria Leonor C. Literatura Portuguesa Clssica. Lisboa: Universidade Aberta, 1992.CIDADE, Hernani. Lies de cultura e literatura portuguesa: Sculos XV, XVI, XVII. Coimbra:Coimbra Editora, 1959, v. I.

    KASPER, Walter. Jsus, le Christ. Paris: Cerf, 1976. Cogitatio Fidei, n. 88.MOLTMANN, Jurgen. Thologie de lEsprance. 3. ed. Paris: Cerf-Mame, 1978. CogitatioFidei, n 88 .

    NORONHA, Jos de. Para uma leitura de Santo Antnio aos Peixes, do Padre Antnio Vieira.Lisboa: Presena, 1998, (Textos de apoio n. 80).

    VIEIRA, Antnio. Histria do Futuro (Livro Anteprimeiro), Edio crtica prefaciada ecomentada por Jos Van den Besselaar, Mnster: Aschendorff, 1976, v. 1.

    VIEIRA, Antnio. Histria do Futuro, introduo, actualizao do texto e notas por MariaLeonor Carvalho Buescu. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2. ed., 1992.

    VIEIRA, Antnio. Sermes, prefaciado e revisto pelo Rev. Pe. Gonalo Alves, Porto,Lello&Irmo Editores, 1951, v. 1, 3, 7, 11.

    VIEIRA Antnio. As cartas do Padre Antnio Vieira, (coordenao e notas de J. L Azeve-do), (Biblioteca de Escritores Portugueses, srie C), Coimbra, Imprensa da Universidade,1925, v. 1.

    XHAUFFLAIRE, Marcel. La thologie politique, Paris: Cerf. Cogitatio Fidei. n. 88.

    Maria A. R. Abro Irm de Santo Andr. Professora de Teologia na Universidade Catlicade Pernambuco. graduada em Teologia pela Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia,FAJE, Belo Horizonte. Mestre em Teologia pela Faculdade Jesuta de Filosofia e Teologia,FAJE, Belo Horizonte, com a dissertao: Teologia e Experincia espiritual no pensamento deHans Urs von Balthasar. As relaes entre Teologia e espiritualidade na perspectiva de So amor digno de f. Doutora em Teologia pelo Centre Svres, Facults Jsuites de Paris,Frana, com a tese Mystique et politique chez Antnio Vieira. Publicou em 2012 pelas ed.Loyola: Lembra-te do futuro: a Teologia de Antnio Vieira luz da Histria do FuturoEndereo: Rua do Prncipe, 526

    Boa Vista50050-900 Recife PE

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