maria joÃo babo & maria joÃo gago o Último banqueiro

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O ÚLTIMO BANQUEIRO MARIA JOÃO BABO & MARIA JOÃO GAGO Ascensão e queda de RICARDO SALGADO 20 anos a liderar o banco de todos os regimes

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O ÚLTIMO BANQUEIRO

MARIA JOÃO BABO & MARIA JOÃO GAGO

Ascensão e queda de RICARDO SALGADO

20 anos a liderar o banco de todos os regimes

O ÚLTIMO BANQUEIRO

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Maria da Conceição(1851-1891)

Luisa Cândidado Espírito Santo e Silva(1872-1888)

Maria Cristina Espírito Santo Silva Moniz Galvão(1900-1974)

Fernando Eduardo Espírito Santo Silva Moniz Galvão(1905-1975)

Maria Carolina Nortonde Sommer Alzina(1910)

Maria Carolina Alzina Moniz Galvão(1941-1941)

Maria do CarmoAlzina Moniz Galvão(1933)

Mafalda Moniz GalvãoEspírito Santo Silva(1955)

Mafalda Moniz GalvãoEspírito Santo Silva(1955)

Madalena Moniz GalvãoEspírito Santo Silva(1957)

Manuel Fernando Moniz Galvão Espírito Santo Silva(1958)

Manuel Ricardo Pinheiro do Espírito Santo Silva(1933-1991)

Maria Teresa Pinheiro Espírito Santo e SilvaRita Pinheiro Espírito Santo e SilvaAntónio Manuel Pinheiro Espírito Santo e SilvaBernardo Manuel Pinheiro Espírito Santo e SilvaJorge Manuel Pinheiro Espírito Santo e SilvaIsabel Teodora Pinheiro Espírito Santo e SilvaMaria Mafalda Pinheiro Espírito Santo e SilvaAna Filipa Pinheiro Espírito Santo e SilvaAssunção Pinheiro Espírito Santo e SilvaJosé Manuel Pinheiro Espírito Santo e SilvaPedro Manuel Pinheiro Espírito Santo e SilvaMaria Madalena Pinheiro Espírito Santo e SilvaMaria do Carmo Pinheiro Espírito Santo e Silva

Fernando Manuela Moniz Galvão Espírito Santo Silva(1963)

Maria Justinado Espírito Santo e Silva(1871-1939)

Custódio JoséMonis Galvão

Manuel Ricardo Pinheirodo Espírito Santo e Silva(1908-1973)

[1º casamento]

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ÁRVORE GENEALÓGICA

Ricardo Ribeirodo Espírito Santo e Silva(1900-1955)

Maria Pinto de MoraisSarmento Cohen

Maria da Conceição Espírito Santo Silva Salgado(1920)

João Carlos Roma MachadoCardoso Salgado(1916)

José Ribeirodo Espírito Santo e Silva(1895-1968)

Rita de Jesus Pinheiro(1867-1951)Rita de Jesus Pinheiro(1867-1951)

Maria Ribeirodo Espírito Santo e Silva(1893-1986)

José Maria do Espírito Santo e Silva(1850-1915)

Maria do Espírito Santo Silva SalgadoAna Maria Espírito Santo Silva Salgado António Espírito Santo Silva Salgado Rita Espírito Santo Silva Salgado João Espírito Santo Silva Salgado

Ricardo Espírito Santo Silva Salgado(1944)

Vera Maria Teresa do Menino Jesus Morais SarmentoCohen Espírito Santo(1924-1993)

António Luis Roquette Ricciardi(1919)

José Maria Espírito Santo Salgado Ricciardi(1954)

Ricardo Espírito Santo Silva RicciardiLuis Espírito Santo Silva RicciardiAntónio Filomena Espírito Santo Silva RicciardiVera do Santo António Espírito Santo Silva RicciardiFilomenta Maria Espírito Santo Silva RicciardiEduardo Espírito Santo Silva Ricciardi

Manuel Ribeirodo Espírito Santo e Silva(1908-1973)

Isabel de JesusMaria Pinheiro de Melo

[2º casamento]

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ÍNDICE

PRÓLOGO > ASCENSÃO E QUEDA 13

CAPÍTULO 1 > O REGRESSO A PORTUGAL 19

CAPÍTULO 2 > DAVID E GOLIAS 35

CAPÍTULO 3 > O FIM DO ELDORADO ANGOLANO 57

CAPÍTULO 4 > O BANCO DE TODOS OS REGIMES 75

CAPÍTULO 5 > A BOMBA RELÓGIO DAS PPP 91

CAPÍTULO 6 > O TERCEIRO BANCO 99

CAPÍTULO 7 > O APELO À TROIKA 119

CAPÍTULO 8 > O LONGO BRAÇO DA LEI 135

CAPÍTULO 9 > UM GRUPO EM REVOLUÇÃO 155

EPÍLOGO > A GUERRA DA SUCESSÃO 175

AGRADECIMENTOS 187

BIBLIOGRAFIA 189

CAPÍTULO 1

O REGRESSO A PORTUGAL

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Foi dos raros momentos em que os amigos o viram comovido. Rece-ber a Legião de Honra do Estado francês fez Ricardo Salgado ceder à emoção. A 8 de Novembro de 2005, o banqueiro convidou os ami-gos para assistirem à sua condecoração. No discurso de agradeci-mento não conseguiu esconder o olhar marejado de lágrimas.

Há mais de 36 anos que um presidente do BES não recebia tal honra. Antes de Salgado, também o seu tio-avô Manuel Espírito Santo tinha sido condecorado pelo embaixador francês, em Feve-reiro de 1969.

A cerimónia da entrega da Legião de Honra francesa ao presidente do BES decorreu na sede do banco, em Lisboa. Naquela terça-feira à tarde, depois de ter recebido a insígnia do embaixador francês Patrick Gautrat, Ricardo Salgado reviveu o momento que pôs fim ao exílio dos Espírito Santo. No 15o andar do no195 da Avenida da Liberdade, familiares e amigos mais chegados, como Manuel Pinho e Henri-que Granadeiro, foram contagiados pela comoção de Salgado.

Entre os poucos presentes estava Mário Soares. Ao referir o papel do ex-Presidente da República na reconstrução do grupo, Salgado emocionou-se. Recordou que, sem a ajuda de Soares, a família não teria regressado a Portugal e fortalecido a aliança com o parceiro que esteve ao seu lado nas duas últimas décadas.

Foi graças a Mário Soares que o clã Espírito Santo se aliou ao Crédit Agricole para ir a jogo na privatização do BES. E o apoio financeiro do grupo francês foi decisivo para a recuperação do banco que a família tinha perdido nas nacionalizações de 1975.

O regresso fez-se com a intervenção decisiva de Mário Soares. O então primeiro-ministro intercedeu junto do seu amigo François Mitterand, na altura presidente de França, para encontrar um parceiro

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estratégico que ajudasse os Espírito Santo a reafirmarem-se como a família de banqueiros em Portugal.

Ainda antes da privatização do BES, o grupo uniu-se ao Crédit Agri-cole para fundar em 1986 o Banco Internacional de Crédito, que mar-cou o regresso do clã aos negócios financeiros em Portugal. Mas o grande objectivo era recuperar o banco que ostentava o nome da família.

> > >

Com as nacionalizações de 11 de Março de 1975, o então líder do banco, Manuel Ricardo Espírito Santo, primo de Ricardo Salgado, foi preso. Juntaram-se a ele na prisão os irmãos Jorge e José Manuel Espírito Santo, além de António Ricciardi, primo por afinidade, e José Roquette, que se tinha tornado braço-direito do presidente.

Com a maior parte da cúpula do banco atrás das grades, os Espí-rito Santo viram-se obrigados a fazer o primeiro grande teste à rede de contactos do clã. Em grande parte, a agenda foi desenvolvida por Manuel Espírito Santo, pai do banqueiro que estava à frente do BES quando chegou o 25 de Abril de 1974.

O tio-avô de Ricardo Salgado, que como ele foi condecorado pelo Estado francês, cultivou relações com grandes líderes políticos e empre-sariais. Ao ponto de, em 1970, ter chegado a ser convidado pelo pre-sidente do Conselho, Marcello Caetano, para embaixador de Portugal nos Estados Unidos.

Eram visita de sua casa Richard Nixon, Calouste Gulbenkian, Gis-card d'Estaing, o príncipe Bernardo da Holanda, o então príncipe Juan Carlos, o rei Simeão da Bulgária, o rei Umberto II de Itália, os condes de Paris, Nelson e David Rockefeller, Walter Salomon e George Woods, presidente do Banco Mundial. “O meu pai dava muita importância aos estrangeiros. No mundo dos negócios, são contactos que ficam”, expli-cou José Manuel Espírito Santo, a O Independente, em 2000.

No Verão Quente, com o sucessor de Manuel Espírito Santo na prisão, foram Ricardo Salgado e Mário Mosqueira do Amaral, então dois altos responsáveis do banco, que accionaram estas ligações. “Estabelecemos

CAPÍTULO 1 > O REGRESSO A PORTUGAL

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contactos com o Giscard d’Estaing, em Paris, com o David Rockfeller, em Nova Iorque, que nos deu bastante, com o príncipe Bernardo da Holanda, para os informar que havia gente presa sem mandato. Fize-mos lobbying internacional”, recordou Mosqueira do Amaral, em entre-vista para o livro Excomungados de Abril (Publicações D. Quixote, 2003).

Ainda em Março de 1975, já depois das detenções, Bernardo da Holanda procurou fazer pressão para a libertação dos Espírito Santo junto do embaixador de Portugal em Haia. Walter Salomon, do banco britânico Rea Brothers, ajudou Salgado e Mosqueira do Amaral a contactarem o então ministro dos Negócios Estrangeiros da Alema-nha. O presidente do Manufecturers Hanover Trust, Gabriel Hauge, escreveu ao secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, mani-festando a sua preocupação pela situação dos responsáveis do então maior banco português.

Apesar das diligências feitas a nível mundial, os Espírito Santo haviam de permanecer mais de quatro meses na prisão. Só no final de Julho de 1975 foram libertados, acabando os dirigentes da família por sair do País.

Manuel Ricardo e António Ricciardi instalaram-se em Londres. Ricardo Salgado e José Roquette fixaram-se no Brasil. Mário Mosqueira do Amaral viveu entre Londres e Lausanne, na Suíça. Jorge Espírito Santo estabeleceu a sua base em Madrid. José Manuel Espírito Santo começou por ir para Londres mas acabou por se mudar para Lausanne.

Na diáspora, o clã de banqueiros voltou a usar a sua rede de contac-tos internacionais como base de apoio para a estratégia de reorgani-zação liderada por Manuel Ricardo Espírito Santo, primo de Ricardo Salgado. “Tínhamos uma coisa muito importante: um nome capaz de abrir portas no estrangeiro”, reconheceu José Manuel Espírito Santo, a O Independente, em 2000.

Em Londres, puderam continuar a trabalhar, num escritório cedido gratuitamente pelo banco de Salomon. “Houve antigos clientes do banco que vieram ter connosco a disponibilizar fundos que esta-vam no estrangeiro. O Grupo Espírito Santo investiu em Portugal e em África, paixão de Manuel Espírito Santo, e não tinha fundos no exterior. O período entre 25 de Abril de 1974 e 11 de Março de 1975

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permitiu tomar algumas medidas para sobreviver, mas que não eram suficientes para o investimento no Brasil e na Suíça”, contou Mosqueira do Amaral, na entrevista para Excomungados de Abril.

Foi na capital britânica, ainda em 1975, que o grupo decidiu reorga-nizar-se. A decisão foi tomada no final do Verão Quente em Portugal, num encontro que reuniu os representantes dos seis ramos da famí-lia Espírito Santo.

Manuel Ricardo, António Ricciardi, António Espírito Santo e Ricardo Salgado assumiram-se como promotores da reconstrução do grupo, juntamente com Mário Mosqueira do Amaral e José Roquette. Pelas ligações de décadas ao clã, estes dois altos quadros do BES passaram a representar dois ramos da chamada família Espírito Santo, apesar de não terem relações de parentesco. Deste grupo de refundadores, apenas Roquette acabou por sair, por discordar da opção de participar na privatização do BES, em 1991.

A reunião de Londres, em Setembro de 1975, foi a primeira do órgão colegial que mais tarde passaria a designar-se conselho superior da família. Cada um dos seis promotores tinha assento naquele que pas-sou a ser o coração do poder do grupo.

Ainda nesse ano o clã fundou a Espírito Santo International Holding, com sede no Luxemburgo. Foi a partir desta sociedade que a famí-lia relançou os seus negócios. E havia de ser nessa holding que, qua-tro décadas mais tarde, foram detectadas irregularidades que fariam o clã viver uma nova revolução.

A reconstrução do grupo foi financiada pelos escassos recursos próprios que os seis ramos familiares conseguiram mobilizar, além de fundos de antigos clientes e velhos aliados. Oficialmente, a base financeira inicial que permitiu reerguer o império era de 20 mil dóla-res – o que hoje corresponderia a 15 mil euros.

Suíça, França, Estados Unidos e Brasil foram os países onde o grupo se foi reerguendo. A partir dos fundos deixados à guarda dos Espí-rito Santo no escritório de Londres, a família fundou uma sociedade financeira em Lausanne, que mais tarde se transformaria em banco.

No Brasil, contaram com o apoio de vários emigrantes portugueses, muitos dos quais exilados após o 25 de Abril. A ajuda do governo de

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Brasília foi fundamental para voltarem a ter um banco. Receberam duas licenças bancárias para operar no mercado brasileiro, sem terem de pagar os dois milhões de dólares (cerca de 1,5 milhões de euros), que era necessário pagar na altura por estas duas autorizações.

Sob a liderança de Ricardo Salgado e José Roquette, os dois promo-tores que se instalaram no Brasil, a família lançou o Banco Interatlân-tico naquele país, tendo, pela primeira vez, o Crédit Agricole como parceiro. A instituição fazia apenas operações locais, mas permitiu aos banqueiros voltarem ao principal negócio dos seus antecessores.

O grupo abriu ainda um pequeno banco em Paris, que operava com as antigas colónias portuguesas, e outro em Miami, que estabelecia relações com a América Latina. Chegou até a fazer operações de linhas de crédito com empresas portuguesas para começar a perceber como é que o País estava a funcionar.

Até que, em 1984, os Espírito Santo optaram por regressar a Portugal.

RECUPERAR O BANCO DA FAMÍLIA

A decisão de voltar ao País não foi pacífica.“Nem todos os membros [da família] estavam convencidos. Havia

quem defendesse, ao mais alto nível, que enquanto as indemnizações [pelas nacionalizações] não fossem pagas não deveríamos voltar”, recor-dou Ricardo Salgado à revista Expansão, nos anos 1990.

Apesar da falta de consenso, em 1984 definiram o plano de regresso. O Presidente Ramalho Eanes e Mário Soares, então primeiro-minis-tro, estavam empenhados em fazer regressar a Portugal os empresá-rios e gestores expatriados no pós-25 de Abril. Pela sua mão, voltaram ao país não só os Espírito Santo, mas outros empresários e gestores, como Jardim Gonçalves.

A estratégia de regresso da família passou pela separação das duas áreas de negócio do grupo. Foi criada a Espírito Santo Resources, nas Bahamas, para integrar os interesses na agricultura, na hotelaria e no imobiliário. Os negócios financeiros ficaram agrupados na Espírito Santo Financial Holding, com sede no Luxemburgo.

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Em 1985, o grupo lançou o primeiro projecto no sector financeiro em Portugal com a compra de uma sociedade de investimento, que mais tarde daria origem ao BES Investimento. No ano seguinte, fun-dou o Banco Internacional de Crédito, que marcou o início da aliança com o Crédit Agricole no mercado português.

Mas o foco estava nas privatizações. Foi com o parceiro estratégico francês que em 1989 e 1990 recuperaram a companhia de seguros Tranquilidade. Em Julho do ano seguinte os dois aliados avançaram para o BES.

O líder da reconstrução do grupo já não assistiu à recuperação do banco da família. Em Março, pouco mais de três meses antes do iní-cio da privatização, Manuel Ricardo morreu. Como é tradição, a lide-rança familiar foi entregue a António Ricciardi, o decano do clã.

Mas a responsabilidade executiva de cada um dos braços do grupo passou para os mais novos. Ricardo Salgado assumiu a presidência da área financeira, concentrada na Espírito Santo Financial Holding, e António Espírito Santo os negócios não financeiros, agrupados na Espírito Santo Resources. A Espírito Santo International, a empresa--mãe, era liderada também por António Espírito Santo.

Foi já sob o comando de Ricardo Salgado que a parceria da família com o Crédit Agricole se transformou num casamento que havia de durar mais de duas décadas.

Para concorrerem à privatização do BESCL – Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa – designação que só havia de mudar para BES em 1999 –, os dois grupos criaram a Bespar, uma sociedade que até 2014 será a maior accionista do banco. Exactamente com o mesmo equilíbrio de forças.

Foi esta holding que garantiu que a família passasse a ter uma posi-ção de domínio no banco, apesar de, directa e indirectamente, ter ape-nas cerca de 5%. O Crédit Agricole foi o passaporte que assegurou aos Espírito Santo o controlo do BES.

“Há a ideia de que o Crédit é um sleeping partner e não é. Mas também não é um conquistador. Temos um papel na gestão do BES mas somos um parceiro muito discreto”, descrevia Patrick Coudéne, representante do grupo francês no BES, em Dezembro de 2002, numa entrevista

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ao Semanário Económico. Declarações raras, em mais de 30 anos de parceria. Uma aliança que já chegou ao fim.

A ESCOLHA DO NOVO LÍDER

Foi após a morte de Manuel Ricardo que o clã Espírito Santo decidiu criar formalmente o conselho superior da família. Poucas semanas depois do desaparecimento do líder e três meses antes da primeira fase de privatização do BES, o novo decano do clã, António Ricciardi, apresentou a “solução de continuidade” para a sucessão.

O pai de José Maria Ricciardi assumiu a “liderança simbólica” do grupo, que contou com o apoio da “capacidade de execução” de uma nova geração de líderes. Ricardo Salgado ficou responsável pela área financeira, enquanto António Espírito Santo presidiu ao braço não financeiro.

Apesar das alterações na estrutura de gestão, a família pretendia con-tinuar a decidir de forma colegial. “A decisão colegial no seio do núcleo duro do grupo foi uma das leis que vigorou ao longo dos últimos 15 anos e que vai prevalecer no futuro”, garantiu António Ricciardi, em conferência de imprensa realizada em Lisboa, a 10 de Abril de 1991.

O novo presidente do recém-criado conselho superior prometeu que a “unanimidade” e o “consenso” que presidiram a todas as grandes decisões tomadas até aí, continuariam a nortear o grupo. Mas, num nível mais operacional, passou a haver maior flexibilidade de gestão, com a atribuição de responsabilidades diferentes nas duas grandes áreas de actuação do universo empresarial.

Ao novo órgão familiar foi atribuída a missão de “colegialmente deci-dir superiormente em relação a qualquer actividade do grupo”, anun-ciou António Ricciardi. O decano do clã recordou: “Desde a decisão de reorganizar o grupo, tomada em Londres em Setembro de 1975, pelos seis membros então designados promotores, o grupo sempre funcio-nou por decisão colegial. Em todas as inúmeras decisões tomadas, nem uma só vez se recorreu à votação. Todas as decisões foram sem-pre tomadas por unanimidade, por amplo consenso”.

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Para facilitar esta coleagibilidade, todos os membros do conselho superior tinham o mesmo poder de voto. “Apenas por uma questão de ordem, foi estabelecida uma linha hierárquica, que correspondia exactamente às posições ou antiguidade que cada um dos membros tinha no BES antes da nacionalização”, noticiava a Lusa em Abril de 1991, a propósito da apresentação do novo órgão familiar.

Foi com o acordo unânime dos restantes membros do conselho supe-rior que Ricardo Salgado passou, em 1991, a liderar a área mais impor-tante dos negócios da família. Só não se sabe quanto tempo demorou a gerar-se consenso à volta do seu nome. Mas sabe-se que, 22 anos depois, seria naquele mesmo órgão que a sua liderança seria posta em causa pelo primo José Maria Ricciardi.

Antes da privatização do BES, a escolha do banqueiro para homem--forte da área financeira do GES foi facilitada pelo facto de, mesmo no exílio, ter continuado a trabalhar na banca. No Brasil, tinha fun-dado o primeiro banco que a família lançou após as nacionalizações em Portugal. Ter estado sempre ao lado de Manuel Ricardo durante a fase de reconstrução no acompanhamento da evolução do grupo tam-bém contribuiu para a sua eleição.

Salgado nasceu para ser banqueiro. É o primeiro neto varão de Ricardo Espírito Santo, o segundo líder do banco a seguir ao fundador, José Espírito Santo Silva, ambos filhos de José Maria Espírito Santo, que esteve na origem do grupo. Este argumento já tinha sido usado por Manuel Ricardo, em 1975, para “promover” o primo a reconstrutor do grupo. Quando alguns dos restantes quatro promotores puseram em causa a sua juventude – em Setembro de 1975, tinha apenas 31 anos – o então presidente elogiou as qualidades daquele que, 15 anos mais tarde, viria a ser o seu sucessor.

O tempo também correu a favor da solução de liderança que have-ria de perdurar mais de 20 anos no banco da família. Faltavam pouco menos de quatro meses para o início da privatização do BES quando o anterior líder, Manuel Ricardo, morreu. Havia, por isso, que tomar decisões rápidas e com lógica técnica. A escolha estava feita: Ricardo Salgado era o sexto líder do grupo financeiro do clã Espírito Santo.

CAPÍTULO 1 > O REGRESSO A PORTUGAL

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O PODER DO CONSELHO SUPERIOR

A 9 de Julho de 1991, o braço financeiro do Grupo Espírito Santo, lide-rado por Ricardo Salgado, assegurou a compra de 23% do BES. Através da Bespar, que concretizava a aliança com o Crédit Agricole e com o luxemburguês Crédit Bank, e através da Espírito Santo Financial Por-tugal, a família readquiriu mais de metade dos 16 milhões de acções do banco, ou seja, 40% do capital, que o Estado tinha posto à venda. O investimento ascendeu a mais de 30 milhões de contos, o equiva-lente a mais de 150 milhões de euros.

A posição dos Espírito Santo na Bespar era assegurada através da Espírito Santo Financial Holding, sociedade onde se concentraram as participações accionistas de antigos clientes e velhos aliados da famí-lia. O grupo Amorim, os irmãos Oliveira da têxtil Riopele, António Champalimaud, Maria Cristina Mello, o empresário Francisco Mar-ques Pinto e a Salvador Caetano foram alguns dos investidores que, no início, ajudaram o clã a recuperar o BES.

No início do ano seguinte, com a venda dos restantes 60% do capi-tal do banco ainda nas mãos do Estado, a família e os seus parceiros estabilizaram a sua participação em cerca de 35%. No total, os Espírito Santo e os seus aliados investiram cerca de 250 milhões de euros para adquirir a posição de controlo no BES – que só perderiam em 2014.

No início dos anos 1990, o banco da família tinha cerca de 8% do negócio bancário em Portugal. Estava longe da posição cimeira da banca nacional que ocupava antes das nacionalizações de 1975. A ges-tão pública tinha transformado o BES numa instituição “arcaica”. Mas para os Espírito Santo o mais importante era o facto de continuar a ter o nome da família.

Com cerca de 2,2 mil milhões de euros de crédito e 4,1 mil milhões de euros de recursos de clientes, o banco fundado por José Espírito Santo obteve no final de 1991 lucros de quase 80 milhões de euros. O resultado representava mais de 10% dos lucros do sector bancário português.

Foi este o banco que Ricardo Salgado recebeu quando, em Abril de 1992, subiu a presidente executivo do BES. Aos 47 anos, o mais jovem

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membro do conselho superior do grupo tornou-se o homem-forte do banco fundado pelo tio-avô.

O banqueiro e Mário Mosqueira do Amaral entraram para a admi-nistração do BES em Setembro de 1991, depois da primeira fase de privatização. Foram os primeiros representantes da família na equipa de gestão. Mas após a saída do Estado do capital do banco, António Ricciardi assumiu a presidência não executiva e José Manuel Espírito Santo integrou a comissão executiva.

Quando voltaram a tomar conta do piso da administração da sede do BES, no 15o andar do número 195 da Avenida da Liberdade, os Espírito Santo destruíram as paredes que separavam os gabinetes dos gesto-res do Estado. Os banqueiros queriam recuperar o open space em que estavam habituados a funcionar e que promovia o diálogo entre os membros da família. “A união familiar dá trabalho. As pessoas têm de falar”, explicou José Manuel Espírito Santo, a O Independente, em 2000.

A lógica de funcionamento em espaço aberto, destinado a promover o diálogo, é mais uma forma de a família exercer o sistema colegial de tomada de decisões, apresentado publicamente por António Ricciardi em 1991. Uma estrutura de poder que, como admitia Ricardo Salgado nesse mesmo ano, tem desvantagens, mas grandes virtudes. O ban-queiro apontou como principal defeito a demora no processo de deci-são. E como grande vantagem ser menos permeável ao erro.

“Nenhum dos partners pode comprometer o grupo por uma decisão unilateral. Esse conceito foi-se moldando e aperfeiçoando, criando uma especialização de funções. (...) O conjunto de especializações, mesmo ao nível de topo, permite um funcionamento impecável desde que não haja decisões fundamentais ao nível das funções que possam ser tomadas sem o acordo dos outros. Esta estrutura tem, como todas as soluções nesta vida, vantagens e defeitos. Tem um grande defeito: as decisões demoram mais tempo a ser tomadas. Mas tem uma quali-dade: é muito mais resistente aos erros”, afirmou em 1991, citado no livro Fortunas & Negócios (Oficina do Livro, 2003).

O banqueiro criticou ainda os modelos de liderança assentes num único presidente. “Nas hierarquias tradicionais tudo começa e termina na figura do CEO, o que faz com que as decisões dependam de uma

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figura que muitas vezes não está em condições de avaliar o impacto das suas decisões. Hoje com a facilidade de comunicação, mesmo numa organização dispersa geograficamente, permite-se uma orga-nização matricial e, por outro lado, a volatilidade dos mercados e das situações faz com que seja indispensável a necessidade de consenso. Esta possibilidade permite diminuir os erros e com as facilidades de comunicação não há grandes obstáculos”.

Para Ricardo Salgado, em 1991, o diálogo era o segredo do sucesso do grupo. “O GES continua a ter uma forma de decisão perfeitamente colegial. O grupo discute até à exaustão e só quando todos estão de acordo a decisão é tomada. Continuará a ser assim, o que faz com que ninguém seja insubstituível”.

> > >

Depois dos Espírito Santo recuperarem o BES, à medida que o banco e o seu presidente executivo se foram afirmando, dentro e fora do cír-culo familiar, Ricardo Salgado foi assumindo cada vez mais um modelo de liderança assente na figura do CEO, que em 1991 dizia desprezar.

As reuniões do conselho superior passaram a ter menos regulari-dade e o banqueiro foi centralizando em si muitas das decisões, não só relacionadas com o banco mas também relativamente ao grupo. Ao ponto de quase se assumir como insubstituível.

Em Maio de 2013, a poucas semanas de fazer 69 anos, Salgado admitia estar disponível para ser reeleito presidente do BES quando o mandato então em curso terminasse, no final de 2015. Em entre-vista ao Diário de Notícias, justificava a necessidade de prolongar a sua longevidade à frente do banco: “Esta crise é uma crise que requer experiência. Passei por vários temporais e sempre ouvi dizer que os marinheiros mais experientes são os que conduzem melhor as embar-cações quando há um temporal muito grande”.

Mas, em 2012, as alterações introduzidas no conselho superior eram os primeiros sinais de que a família começava a preparar a sucessão do sobrinho-neto do fundador do banco. Nesse ano, os cinco ramos

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da família que promoveram a reconstrução do grupo e que continua-vam a ter assento no coração do poder dos Espírito Santo, decidiram abrir o órgão a novos elementos.

O conselho superior integrava, então, António Ricciardi, líder sim-bólico do grupo desde 1991; Manuel Fernando Espírito Santo, repre-sentante do ramo liderado por Maria do Carmo Moniz Galvão Espírito Santo, maior accionista do GES; José Manuel Espírito Santo, irmão do líder da reconstrução do grupo no exílio; Ricardo Salgado, homem-forte da área financeira; e Mário Mosqueira do Amaral, o alto quadro do BES que os Espírito Santo passaram a considerar membro da família.

Em 2012, os promotores do grupo decidiram que os ramos que assim o entendessem poderiam nomear um segundo representante para integrar o conselho superior. No entanto, ficou estabelecido que estes novos elementos não teriam direito a voto.

António Ricciardi designou o filho José Maria Ricciardi, presidente do BES Investimento e administrador do BES. Manuel Fernando Espí-rito Santo escolheu o irmão Fernando Manuel. José Manuel nomeou o sobrinho Ricardo Abecassis Espírito Santo. E Mário Mosqueira do Amaral designou o filho Pedro, que acabou por substituí-lo após a sua morte em Março de 2014. Apenas Ricardo Salgado prescindiu de ter um número dois, não apontando um sucessor que poderia ser visto como a sua escolha para a liderança futura do banco.

Além de aglutinarem o poder de decisão do grupo, os ramos da família que têm assento no conselho superior são também os princi-pais accionistas da Espírito Santo Control, a holding que desde 1976 concentra as participações que os membros do clã têm no grupo. No início de 2014, Maria do Carmo Moniz Galvão Espírito Santo era a principal accionista, com mais de 19%. José Manuel Espírito Santo controlava 18,5%, António Ricciardi 17,8%, Ricardo Salgado 17% e Mosqueira do Amaral 15,6%.

Mesmo sem poder de voto, os novos membros com assento no cora-ção do poder da família vão mudar a lógica de funcionamento do con-selho superior. O sangue novo da família é mais irreverente. José Maria Ricciardi e Ricardo Abecassis Espírito Santo destacam-se por questio-narem as decisões, então muito centralizadas no presidente do BES.

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A alteração no centro de comando coincidiu com o envolvimento do nome de Ricardo Salgado e de outros responsáveis do grupo em casos polémicos. Como o processo Monte Branco, investigação sobre alegada fuga ao fisco e branqueamento de capitais. Os problemas no BES em Angola começavam também a ser conhecidos. E, em surdina, estava já a ser travada a guerra com Pedro Queiroz Pereira.

O terreno revelou-se fértil para os mais novos elementos do con-selho superior da família se afirmarem. Por um lado, as polémicas públicas em que o nome de Ricardo Salgado se viu envolvido exigiram que desse explicações no coração do poder da família. Por outro, os desafios do banco e do grupo eram crescentes. À medida que a pres-são aumentava, as reuniões da cúpula da família foram-se tornando mais frequentes.

Se até meados de 2012, havia três a quatro encontros do conselho superior por ano, a partir de finais de 2013, passou a haver duas a três reuniões por mês. O próprio homem-forte do grupo sentiu necessidade de começar a partilhar mais a tomada de decisões. A colegiabilidade que historicamente norteou o processo de decisão no grupo voltou a ser a regra na cúpula da família Espírito Santo. E era já um prenún-cio de que a sucessão de Ricardo Salgado estava à porta.