marshall, francisco - epistemologias historic as do colecionismo

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    EPISTEMOLOGIAS HISTRICAS DO COLECIONISMO

    Francisco Marshall*

    RESUMO

    A etimologia profunda de colecionar (collectio) encontra-se no proto-

    indoeuropeu, universo semntico quadrimilenar em que se formou a raiz

    leg. Nesta formao, assinala-se o vnculo originrio entre coletar e

    falar, assim como os traos genticos e efeitos civilizatrios do colecionar.

    Aps examinar as circunstncias histricas que instauram o colecionismo,

    em sua natureza civilizacional, este ensaio apresenta pequena coleo de

    imagens de comportamentos colecionistas, ensejando a percepo das

    diferentes psicologias e epistemologias relacionadas ao colecionismo.

    Palavras-chave: colecionismo; etimologia; proto-indoeuropeu; tipologiacolecionista.

    HISTORIC EPISTEMOLOGIES OF THE COLLECTIONISM

    The deep etymology of collection (collectio) can be placed in the, the

    multimillennial semantic realm where the root legwas formed. In the contextof this formation, the bonds between collect and speak are clear, and

    so are the genetic traces and the civilizational effects of the collectional

    behavior. After analyzing the historical circumstances that open field to

    the collectionism, this essay presents a little collection of images of

    collectionist behaviors, inducing the perception of different psychologies

    and epistemologies related to the.

    Key words: collectionism; etymology; proto-indoeuropean; collectionismpattern.

    * Francisco Marshall, professor adjunto do Departamento de Histria e pesquisador do Programa

    de Ps-Graduao em Histria do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da UFRGS e do

    Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais do Instituto de Artes daUFRGS, Coordenador

    do Ncleo de Histria Antiga do IFCH da UFRGS.E-mail: [email protected]

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    Considerado em sua dimenso ordenadora, o colecionismo despontacomo um dos fundamentos culturais de mais profundo enraizamento e de maisamplas conseqncias em toda a trajetria humana. Coletando e, logo,colecionando, nossos ancestrais aprenderam a discernir recursos naturais e aselecionar possibilidades vitais no mundo; desde a pr-histria e a cada novagerao, conseguimos organizar sons e sinais sob a forma de discurso. Comestes dois dons, coletar e falar, abrem-se diante de ns as condies essenciaisda vida comunitria: sustentabilidade e comunicao. Sobre a plataforma deum mundo culturalizado, ocupado por famlias, cls, cidades e Estados, umcomplexo tecido classificatrio progressivamente ordenou o espao, tendo como

    protagonistas reis, guerreiros e sacerdotes; desde palcios e templos, centrosde riqueza e privilgios na cidade antiga, esses grupos apropriaram-se do bemsocial lastreados por saberes eminentemente colecionistas: a escrita e arquivos,armas da planificao do Estado, no Egito e na Mesopotmia. Tambm emoutros bairros da cidade, fora do eixo palcio-templo, j na mais altaAntigidade, desde o 3 milnio a.C., os sumrios inventores da escrita eseus sucessores acadianos adoravam anotar cada detalhe de sua vida, mantendoarquivos privados domsticos, repletos de tabletes de argila, os quaisrivalizavam em valor e volume com os grandes arquivos reais e eclesisticos(Pozzer, 1996). Cozidos e preservados, esses tabletes formam, hoje, algumasdas colees mais notveis dos grandes museus do mundo. Colecionveiscolecionados, desde sempre colecionantes.

    A relevncia trans-histrica do procedimento colecionista faz com queesse assuma diferentes formas em cada momento histrico, compondo umcomplexo sistema de funes e finalidades, com implicaes cognitivas eculturais que jamais deixaram de acrescentar qualidades espcie, em seudesenvolvimento cultural. O colecionismo do caador-coletor pr-histricoimplica uma grande proficincia sensorial, certa argcia taxonmica, enormesentido do espao e uma relao intensa entre desejo e necessidade, mediados

    pelo conhecimento. Do contrrio, o urso devora, a planta mata, o abismo engoleou o corpo falece. Os limites entre o caador-coletor e certas espcies animaisso, todavia, muito tnues, o que vem sendo demonstrado paulatinamente pelazoologia comportamental. Talvez possamos considerar essas fronteiras

    comportamentais de alguns animais como um proto-colecionismo, e tambm,inversamente, remontar alguns comportamentos colecionistas quelacircunstncia instintiva prpria dos animais. Colecionamos para sobreviver esobrevivemos porque colecionamos.

    A vida urbana o segundo estgio civilizatrio colecionista, precedidoem milhares de anos pelas revolues culturais advindas da tcnica da coleta eda comunicao. Revolues paulatinas, de longo curso, cuja dimenso

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    monumental s chegamos a perceber por seus resultados na longa durao, asmarcas com que se constituiu a identidade cultural humana. Agreguemos o

    polegar opositor, o fogo e algumas ferramentas e com os dedos de uma s moenumeramos todos os fundamentos da revoluo cultural paleoltica. Adomesticao de sementes e animais, a cermica, a vida em cidades e ametalurgia trunfos do neoltico so j resultados tcnicos elaborados, frutosde culturas codificadas, de sistemas de transmisso da memria e de instituiessociais para a aprendizagem de ofcios especializados.

    A passagem entre as primeiras cidades, na Cisjordnia (Jeric, ~7.800a.C.) e na sia Menor (atal Hyuk, na Anatlia, ~6.500 a.C.) e os primeirosEstados organizados (Mesopotmia, ~3.100 a.C., e Egito, ~3.000 a.C.), marcada pela transio entre uma agricultura de semente domesticada(conjugada com muito pastoreio e coleta) e um sistema de estocagem edistribuio. Em cidades-estado e em um Estado organizado, como o Egito,despontam as primeiras elites urbanas, colecionadoras: escribas-sacerdotes ereis-guerreiros contratadores de burocratas. As transformaes decisivas deste

    perodo significaram especialmente maior capacidade de acmulo (deconhecimentos e riquezas), de aperfeioamento da linguagem e dodesenvolvimento de sistemas de codificao, transformaes cujo apogeu foio surgimento da escrita, na Sumria de ~3.150 a.C.

    Coletar e comunicar: pode-se perceber este nexo semntico civilizatriocom o amparo da filologia clssica e do indo-europeu, que nos remetem a

    experincias da linguagem reveladoras do espectro de prticas sociais dessaspalavras, em seus sentidos originrios. Colecionar, do latim collectio, possuiem seu ncleo semntico a raiz *leg, de alta relevncia em todos os falaresindo-europeus e mesmo antes, pois esta raiz est entre as poucas queconhecemos do proto-indo-europeu, h mais de 4 mil anos atrs, com sentidosordenadores. No grego clssico, em seu grau o, produz o morfema log,avizinhado, em seu grau e, de leg, ambos repletos de derivados. Nesta famlialingstica, aparece o ncleo semntico e significativo do colecionismo: umarelao entre pr em ordem raciocinar (logen) e discursar (legen), onde osentido de falar derivado do de coletar: a razo se faz como discurso. Odiscurso, morada da razo. Ordenar, colecionar, narrar. Nesta complementa-

    ridade semntica, podemos ver um trao clarssimo da semiologia originria: afala coleo. Coleo de qu, cumpre inquirir? De sinais sonoros? De gestose expresses? De palavras e de sentenas? De frmulas e smbolos? Dememrias e de poderes mgicos? De nmeros e espcimes?

    A reverberao cultural destas etimologias espantosa. Podemos prem tela algumas palavras derivadas desta matriz semntica, presentes na lngua

    portuguesa, e, com pequenas variantes, em quase todos os falares europeus

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    contemporneos1: colega, colgio, coleta, coleo, colheita, leitura, leitor,legenda, legvel, legio, lio, eleger, preleo, florilgio, inteligncia,diligncia, negligncia, sacrilgio, seleo quase todas palavras tributriasdo latim legere: reunir, escolher, colher, ler. Do grego legein (reunir e falar; h,neste mesmo campo semntico, tambm o grau o: log, de logos: encontro oufala), vm as palavras lxico, alexia, dislexia, dialeto, catlogo, dilogo, ecltico,cloga e prolegmeno. Do grau o, procedem ainda as palavras (tambmaplicadas em prefixos e sufixos) anlogo, lgico, logstica, logo-, logos, -logia,aplogo, apologia, prlogo, eplogo, declogo, homlogo, logaritmo,

    paralogismo e silogismo. possvel relacionar ainda as formas legal, legalidade, legislao,

    legislativo e privilgio, com o sentido de coleo de leis (itens redigidos,arrolados em contratos), embora seja mais provvel que, nestes casos, se trateda raiz proto-indo-europia *lei, distinta de *leg, com o sentido de jazer (o queest posto e repousa), presente, e.g., no ingls law e lay, assim como no

    portugus lei. H, todavia, discusso quanto verdadeira etimologia de legal/legalidade.

    Com algumas variantes menores, estes lxicos sobrevivem em variadosidiomas modernos, como o ingls, o francs, o castelhano, o italiano, o alemo,o romeno, o grego, o albans, o russo, o tcheco, o persa, o snscrito, etc. Emqualquer um desses idiomas, e mesmo nos falares semitas, hamticos, autctonesou orientais (por emprstimo), ao pronunciarmos as palavras colecionistas,

    estamos reverberando um acervo de sons e sentidos que remontam mais altaAntigidade, estendendo uma coleo de sinais sonoros e de smbolos por umarco temporal de mais de 4.000 anos, na mesma linhagem, at hoje muito

    poderosa: coleo de lgicas, legado longnquo de colegas colecionistas,coligado em um lxico longo e de atual loquacidade.

    ***

    Teofrasto (~371/~287 a.C.), um dos melhores discpulos de Aristteles(384-322 a.C), escreveu um belo tratado literrio, Os Caracteres. Dandocontinuidade ao projeto de uma teoria pr-criativa da literatura, iniciado com

    seu mestre naPotica, Teofrasto caracteriza (e caricatura) tipos comportamen-tais, descrevendo-lhes os cacoetes e expresses. Esses tipos se oferecem comoum repertrio de personagens disposio dos arte-criadores (dramaturgos

    1 Fonte: The American Heritage - Dictionary of the English Language, Fourth Edition. The

    Houghton Mifflin Company, 2000.

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    em particular). Todavia, expressam tambm uma tipologia psicolgica esensvel, de conotao tica e moral. Uma coleo antropolgica, de finalidadeliterria.

    Aqui, moda de Teofrasto, enumerarei alguns tipos e circunstnciascolecionistas, todos eles representativos de distintas epistemologias emotivaes associadas ao ato de colecionar. Como mimese verossmil, essestipos colecionados prestam-se a ilustrar a percepo histrica do colecionar ede colecionadores, em meio a aforismas e anedotas colecionistas.

    1. Em uma casa muito humilde em Porto Alegre, atravs da porta sev, bem cuidada e exposta em quadros na parede, uma coleo dechaveiros e, na parede ao lado, uma coleo de bons, comcuradoria impecvel, rigorosamente alinhados. Rua AntonioDivan, n 178, Bairro Terespolis, porta sempre aberta.

    2. Que dizer tambm destes pobres papeleiros e papeleiras que searrastam pela cidade com dezenas de sacolas, de valor pecunirioe prtico nulo? Seria o colecionar um lenitivo reconfortante,assegurador de um grau mnimo de civilidade, sucedneo damorada que j no existe mais?

    3. Nesse sentido, a coleta seletiva de lixo, operada por indigentesnas ruas da cidade, com emergncia vital e intenso ardorclassificatrio, seria a apoteose cientfica dos colecionistas sem-teto, o elo entre caadores e coletores e o sculo XXI.

    4. Ao morrer meu av, Guilherme Schell Marshall, encontrei emseus armrios um saco repleto de tampas de garrafas trmicas,outro de barbantes, outro de atilhos, um quarto saco cheio dearames de atar e um sem nmero de outros objetos dessa ordem,que sempre faltam em certos momentos. Quem guarda o queno precisa sempre tem o que precisa, dizia um outro tio av(Aleixo Dischinger). Vivo tentando explicar essa prudncia simples

    para minha esposa,Rovena, sem grande sucesso. O galpozinhonos fundos a reserva tcnica das moradas antigas, que falta shabitaes atuais, repositrio de um colecionismo mido e

    precavido.

    5. Eu conheo vrias pessoas que colecionam rtulos de vinhos.Retiram o rtulo com cuidado, submergindo a garrafa por longashoras, depois deixam secar e passam a ferro os papis, antes deirem para catlogos ou pastas. Outros colecionam rolhas. ummaterial muito importante para a memria social, cientfica eeconmica das comunidades. Para alguns, o vestgio materialde momentos etreos, de alegria e satisfao enoflica.

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    6. O colecionista define um critrio. Fui exigir do gerente de minhaconta uma caneta do banco, que eu cobiava, muito bonita. Ele

    prontamente me atendeu, e confessou ser ele prprio umcolecionador de canetas mas somente canetas promocionais,com alguma marca corporativa. J o eng. Marcos Abreu colecionarelgios Omega e canetas da marca Parker 51 (fabricadas em 1947,ano de comemorao dos 51 anos desta marca). Sua coleo decanetas est quase completa, pois ele possui todas, exceto o modeloEmpire State e uma variante vermelha, fabricada na Inglaterra, eno so mais produzidas ou comercializadas. Colecionadores decanetas pagam facilmente dezenas de milhares de dlares porexemplares preciosos, em um dos grandes mercados mundiais decolecionveis, sempre presente em leiles.

    7. A coleo de Marcos Abreu comeou quando seu pai lhe doou aprimeira caneta. Aps as primeiras aquisies e pesquisas, ele jtinha um objeto permanente de busca, e tambm uma nova pautaturstica nas cidades que visita. Hoje, possui documentaoexaustiva desses itens (publicaes, catlogos, manuais,fotografias, jaquetas, bons, chaveiros, etc.). Assim como no casodas canetas, os relgios rememoram tradio familiar, vinda deseus avs e de seu pai. Ao ver as horas, percebe tambm umaoutra dimenso do tempo e do vnculo familiar, e uma homenagem

    sensvel aos seus ancestrais. No lhe seduz a facilidade: Aessncia da coisa no est nos 40 relgios e sim no fato de queno se consegue comprar estes relgios em lugar nenhum comfacilidade, tem que procurar, cavar, esperar, ter pacincia e calma

    para comprar, restaurar, procurar peas, afirma Marcos Abreu.Definitivamente, as sries colecionveis vendidas em bancas de

    jornal no se destinam a este colecionador sofisticado.8. No filme Sacrifcio, deAndrej Tarkovsky (Sacrificatio, 1986), h

    um personagem importante, o carteiro Otto, que se apresenta comocolecionador de histrias sobrenaturais. Ele ocupa no filme umafuno entre o hermtico (mensageiro) e o sacerdotal (colecionador

    de histrias impressionantes: o sagrado narrado, espantoso). Eled o exemplo muito impressionante de uma fotografia de um rapazque foi batida antes dele ir para a guerra. O filme foi reveladomuitos anos depois, e na foto revelada aparecia este mesmo rapaz,

    porm envelhecido, tal como se os anos lhe houvessem passadono registro fotogrfico. O sagrado, coleo de histrias espantosas.

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    9. Ser que o serial killer possui algum complexo colecionista? Seriaa seqncia de crimes uma linguagem dramtica?

    10. A investigao, todavia, est certamente no ramo colecionista:juntar evidncias e dar-lhes a coerncia de uma narrativa.

    11. Investigar, indiciar, narrar, assim nasceu a histria entre os gregos.dipo, o grande detetive, coleciona indcios, histricos esobrenaturais, que se ordenam em uma trgica narrativa, eterminam por espetacularizar a lgica terrvel de sua pattica vida.

    12. O museu como gabinete de curiosidades, usualmenteidentificado como instituio basilar da museologia moderna, na verdade um fenmeno bem mais complexo do que um mero

    passatempo nobilirquico ou burgus. As primeiras colees, comoa do mdico ingls Hans Sloane (que gerou oBritishMuseum,em Londres) ou a deAthanasius Kircher (em Roma) expressavamsobretudo um propsito cientfico, de finalidade documental eanaltica. So os predecessores do moderno museu cientfico, a

    ponte entre Alexandria e as Universidades modernas (do sculoXIX ao atual).

    13. H, todavia, a coleo imperial, que explica na matriz o que sepassa l longe, naquela terra e povo conquistados. Entra-se noBritish Museum e logo se v, mais do que maravilhas da culturauniversal, sobretudo o que foi o Imprio Britnico, e seu af

    colecionista. Este museu uma imagem de glria. Convertido emcone nacional, disputa prestgio com os grandes museus de outrasnaes ricas: o MET, o Louvre, o Prado, o Hermitage, o Deutsches,museus-cones de identidades nacionais. Junto com moeda,bandeira, fronteira e hino, os grandes museus so tambm

    poderosas ferramentas do nacionalismo moderno, o que os habilitatambm a refletir, em suas colees, a histria social de naes edo mundo.

    14. Ele quer ter tudo, e demonstrar-se o mais poderoso pela opulnciade sua coleo. O Rei, o Prncipe, o Duque e o prelado abastado(especialmente o Papa e sua corte) no vem fronteiras na ambio

    acumuladora de espcimes. Colecionar poder. Cada colecionadorexulta sobre seus domnios, simbolizados em cada artefatocolecionado, polido, ordenado e preservado.

    15. Um dos casos mais patticos de colecionismo: colecionadores quealimentam o mercado negro, adquirindo quadros roubados e outrosmateriais contrabandeados. Que esttica maligna ser esta,

    privativa, oculta, mrbida, temerria? Quem pode se ufanar de

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    ostentar um Munch roubado na sala de casa? O satnico Dr. No eseus confrades? Colecionistas?

    16. No rastro destas colees, alimentando nova onda de usurpaopatrimonial, assistimos no momento intensa e irreversvelespoliao do patrimnio arqueolgico iraquiano, patrimnio dos

    primrdios da humanidade. A memria mesopotmica tinhaespecial relevncia ao tirano deposto, que investiu em restauraese museus, fazendo do Iraque um dos pases de atuao patrimonialmais relevante no Oriente Mdio, atrs apenas de Israel, onde aquesto patrimonial tambm prioridade estratgica nacional.Com a invaso das tropas norte-americanas e seus aliados, sabe-se que este dano tornou-se monumental, arrasando-se museus,colees e stios arqueolgicos, premiando a ao de contraban-distas e abrindo lacunas irrecuperveis na memria histrica. Aimensa maioria destes artefatos se dirige a colees privadas norte-americanas, que, por sua vez, alimentam tambm os grandesmuseus. O ciclo da pirataria inesgotvel, obsesso mrbida. E oneo-imperialismo tem seus caminhos. As patologias docolecionismo.

    17. Os Museus de Histria Natural, de ambos os lados do Atlntico,tambm testemunham este af de domnio: domesticar a naturezaselvagem e explic-la nos dioramas e vitrines do Museu, no centro

    da cidade. O saber triunfou, conhecemos e controlamos a natureza,no Velho e no Novo Mundo! Tanto quanto o grande museunacional expe a histria do nacionalismo e do imperialismo, omuseu de histria natural preserva a histria social das epistemo-logias cientficas.

    18. Histria infantil colecionista, por excelncia: Joo e Maria, e adiferena trgica entre acervo permanente e voltil.

    19. Pergunta aos estudiosos da formao cognitiva, piagetanos emparticular: a paixo infantil por colees de pedras, tampinhas eoutros que tais apresentaria paralelos com a formao dalinguagem e a aquisio de outras competncias narrativas? Piaget

    considerou que o processo de seleo anterior ao de ordenao,mas isto ele no aplicou especificamente aos casos de aquisioda linguagem ou da identidade cognitiva, mas mais precisamenteao pensamento matemtico. Nestes casos, cumpre lembrar tambmno apenas a racionalidade e narrativa, mas tambm a afetividadee demais componentes do sujeito.

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    20. Ser que a aposta lotrica freqente uma coleo de esperanas,recorrente e obsessiva?

    21. Ao longo de suas campanhas, Alexandre Magno mandou a seumestre Aristteles, na Grcia, muitos exemplares coletados noOriente, entre eles o pavo e a cana de acar, que chegaram Europa neste momento (entre 334 e 323 a.C.). Fruto desta pocade expanso imperial colecionista, surge o primeiro museu-biblioteca da histria: a biblioteca de Alexandria, cultivada e

    preservada pelos Ptolomeus. A perda desta coleo, sntese dacincia de vrios milnios, sob o furor obscurantista dos cristostardo-antigos, fez a humanidade recuar 15 casas.

    22. O prprio Aristteles para escrever seu tratado A Polticacolecionou cerca de 158 constituies de cidades. O resultado de aplicao purificadora: a busca do modelo em sua aplicao

    prtica. Todavia, como quase toda a obra de Aristteles, este livro-lio pode ser lido como uma resposta a Plato, neste caso,encontrando o sentido da poltica na cidade, colecionada eexaminada, e no mais em um princpio nico, celestial, no mundodas idias. Coleo e anlise versus idealismo e autoridade.

    23. Aristteles provavelmente o primeiro colecionador sistemticoda Histria. Coletava exemplares e os estudava exausto.Assurbanipal (sc. VII a.C.) formou uma biblioteca formidvel,

    na cidade de Nnive, na Assria. Dela nos chegaram algumas obrasacadianas, como o poema pico Gilgamesh (em fragmentos).Todavia, em que pese a sua relevncia e primazia, a Biblioteca de

    Nnive no se perpetuou em tradies similares no Mundo Antigo,no Oriente ou no Ocidente. J Aristteles, deve ser consideradocomo patrono de todos os colecionistas.

    24. Ser possvel uma coleo sem um comportamento obsessivo,um desejo e ansiedade por encontrar a avis rara, a espera zelosa eativa pelo encontro com aquele artefato perfeito, procurado portudo?

    25. Quando voc tem amigo(a) que coleciona bibels ou lembranas

    de outros pases, vamos para uma fronteira tica do colecionismo. possvel trazer-lhe lembranas? Tem algum valor o souveniraportado em coleo por terceiros?

    26. Para otimizar a visita aos grandes museus europeus e norte-americanos, neles eu s registro em foto algumas temticascentrais: dionisismo, orbis terrarum assinatura gestual de artistae iconologias exticas. O resultado aparece em bancos de imagens

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    temticos, colees que modulam a viso de outras colees, umolhar ao mesmo tempo linear e transversal.

    CONCLUSO

    A relao entre coleo, razo e linguagem no pode ser desprezada,pois encontra-se nas razes culturais de boa parte da humanidade e dela decorremas demais especializaes histricas que hoje conhecemos. A condio moderna tambm a soma de todos os potenciais histricos construdos ex illo tempore.A dimenso profunda de nossa identidade cultural inclui densas camadas dememria cultural, fatores dominantes ou recessivos de nosso cdigo gentico,

    prontos a eclodir de seu estado de latncia, em expresses e cruzamentos quenem sempre chegamos a perceber ou controlar. Seria uma reduo absurda doshorizontes identitrios circunscrevermos a condio moderna durao doEstado moderno, desprezando o imenso lastro de experincias e memriasacumulado por nossa espcie. Em uma poca de neo-barbrie, importa,sobretudo, compreender por quais processos ingressamos em ou abandonamosestados civilizacionais superiores. Com escusas ao ps-moderno, o sentido desuperior aqui muito claro: condizente com nossas melhores finalidades e

    possibilidades culturais.

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