massaud moisés - a criação literária - prosa (rtf)

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A Criao LiterriaPROSA - I

Do AutorObras Escolhidas de Machado de Assis, 9 vols., S. Paulo, Cultrix, 1960-1961. (Organizao, introduo geral, cotejo e texto, prefcios e notas) A Literatura Portuguesa, S. Paulo, Cultrix, 1960; 31' ed., 2001. Romantismo-Realismo e Modernismo, vols.1I e III da Presena da Literatura Portuguesa, S. Paulo, Difuso Europia do Livro, 1961; 2' ed., vol. III, 1967,voI.V, 1971;4'ed.,vol. 111,1974. Cames, Lrica, S. Paulo, Cultrix, 1963; 14' ed., 2001. (Seleo, prefcio e notas) A Criao Literria, S. Paulo, Melhoramentos, 1967; 13' ed., Poesia, S. Paulo, Cultrix, 2001; 15' ed., Prosa-I, S. Paulo, Cultrix, 2001; 18' ed. Prosa-li, S. Paulo, Cultrix, 2001; 17' ed. Pequeno Dicionrio de Literatura Brasileira, S. Paulo, Cultrix, 1967; 6' ed., 2000. (Co-organizao, co-direo e colaborao) A Literatura Portuguesa Atravs dos Textos, S. Paulo, Cultrix, 1968; 28' ed., 2001. A Literatura Brasileira Atravs dos Textos, S. Paulo, Cultrix, 1971; 23' ed., 2001. A Anlise Literria, S. Paulo, Cultrix, 1969; 13'ed., 2002. Dicionrio de Termos Literrios, S. Paulo, Cultrix, 1974; 11'ed.,2002. O Conto Portugus, S. Paulo, Cultrix/EDUSP, 1975; 5' ed., 1999. (Seleo, introduo e notas) Literatura: Mundo e Forma, S. Paulo, Cultrix/EDUSP, 1982. Histria da Literatura Brasileira, 5 vols., S. Paulo, Cultrix/EDUSp, 1983-1989; 3 vols., S. Paulo, Cultrix, 2001, vol. 1- Das Origens ao Romantismo, l' ed., 2001; vol.II- Realismo, Simbolismo, l' ed., 2001; vol.lIl- Modernismo; 1'ed., 2001. O Guardador de Rebanhos e Outros Poemas, de Fernando Pessoa, S. Paulo, Cultrix/EDUSP, 1988,6' ed., 2001. (Seleo e introduo) Fernando Pessoa: O Espelho e a Esfinge, S. Paulo, Cultrix/EDUSP, 1988; 2'ed., 1998. A Literatura Portuguesa em Perspectiva, 4 vols., S. Paulo, Atlas, 1992-1994. (Organizao e direo)I

As Estticas Literrias em Portugal. vol. I - Sculos XIV a XVIII, Lisboa, Caminho, 1997; vol.ll- Sculos XVIII e XIX, 2000. Machado de Assis: Fico e Utopia, S. Paulo, Cultrix, 2001, 1'ed., 2001. P-1961. Iferatura vol.III,

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MASSAUD MO/SS

I

A Criao Literria

PROSA - I FRMAS EM PROSA. O CONTO. A NOVELA . O ROMANCE

~""

EDITORA CULTRIX So Paulo18' edio de ordem 9' edio Cultrix

(Q Massaud Moiss, 1967o primeiro nmero esquerda indica a edio, ou "edio, desta obra. A p.imeim dezena di"ita indica o ano em que esta edio, ou "edio, foi publicada.

Ano Edio 18-19-20-21-22-23-24-25-26 01-02-03-04-05-06-07-08-09

Direitos reservados EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA. Rua Df. Mrio Vicente, 368 - 04270-000 - So Paulo, SP Fone: 272-1399 - Fax: 2724770 E-mail: [email protected] http://www.pensamento-cultrix.com.br

Impresso em nossas oficinas grficas,10

-08-09

Para meus filhos, Ana Cndida Beatriz Cludia Mauricio Rodrigo

~,,.,.-

SumrioPREFCIO da 1 EDIAo ................................................................. PREFCIO da 9 EDIAo ................................................................. NOTA PRVIA I. FRMAS EM PROSA ........................................................................... II. O CONTO .............................................................................................. 1. A Palavra "Conto", 29/2. Histrico do Conto, 32/3. Conceito e Estrutura, 37 / As Unidades do Conto, 40 / Personagens, 50 / Estrutura, 52 / Linguagem, 53 / Trama, 65 / Ponto de Vista, 66 / Tipos de Conto, 73/ Comeo e Eplogo no Conto, 81/ Conto, Poesia e Teatro, 85/4. Conto e Cosmoviso, 88 / 5. "A Cartomante", 90 / 6. "Questo de Famlia", 95/7. "No Jardim", 99/8. Grfico do Conto, 101 III. A NOVELA........................................................................................ ......103 1. A Palavra "Novela", 103/ 2. Histrico da Novela, 104/ 3. Conceito e Estrutura, 112/ Ao, 113/ Tempo, 115/ Espao, 117/ Estrutura, 118 / Linguagem, 120 / Personagens, 125 / Trama, 126 / Comeo e Eplogo na Novela, 128/ Ponto de Vista, 133/ Tipos de Novela, 134/ Novela, Epopia e Histria, 142/4. Novela e Cosmoviso, 146/5. O Tempo e o Vento, 150/ 6. Grfico da Novela, 154 IV. O ROMANCE............................................................................ ..............157 1. A Palavra "Romance", 157 / 2. Histrico do Romance, 158 / 3. Conceito e Estrutura, 165 / Ao, 172 / Espao, 176/ Tempo, 180/ Tempo-Espao, 185/ O Romance de Tempo Histrico, 187/ O Romance de Tempo Psicolgico, 202 / Personagens, 226 / Linguagem, 239 / Trama, 264/ Composio, 272/ Planos Narrativo$. 279/ Ponto de Vista, 282 / Comeo e Eplogo no Romance, 293 / Tipos de Romance, 297 / 4. O Romance e as Demais Formas de Conhecimento, 304/ Romance e 7

Poesia, 305/ Romance e Epopia, 313/ Romance e Cinema, Romance e Teatro, 323/5. Romance e Cosmoviso, 336/6. Grfico do Romance, 341 BIOGRAFIA............................................................................................ 342 NDICE DE NOMES........................................................................... ....346 NDICE DE ASSUNTOS.................................................. ......................353 8

PREFCIO da jg EDIOTODO LIVRO tem sua histria. A deste, comea praticamente quando, em maro de 1952, iniciei minha atividade docente nas Faculdades de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo e da Universidade Mackenzie. Ao longo dos anos que medeiam entre aquela data e hoje, as questes mais candentes da problemtica literria foram objeto de exame no dilogo metdico com os alunos, alguns dos quais atualmente empenhados na docncia universitria. A eles foram expostas, dentro e fora das aulas, as idias que eu ia sedimentando. Naturalmente, alguns deles transpiraram minhas reflexes, antes que eu as reduzisse a termo... Mas em 1958, redigi um breve estudo, espcie de balo de ensaio, acerca das distines qualitativas entre Conto, Novela e Romance, e publiquei-o no Anurio da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras, "Sedes Sapientiae" da Pontificia Universidade Catlica de So Paulo, correspondente a 1958/1959. da mesma forma procedi no tocante a um estudo relativo poesia lrica e pica, sob o ttulo de Variaes em torno do pico e do Lrico, estampado na revista "Anhembi" de julho de 1961. Mais adiante, refundi-o e republiquei-o, j agora com o ttulo mudado para Do pico e do Lrico, na revista "AIfa ", da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Marlia, n!! 1, 1962. Nesse nterim, j planejara e escrevera grande parte dos captulos constantes neste livro. Um deles, amplamente retocado e atualizado, apareceu na "Revista de Letras" da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Assis, n!! 5, 1964, sob o ttulo de Conceito e Estrutura do Conto, o qual, para integrar a presente obra, sofreu ainda outras alteraes. Depois de complet-la

9

com os captulos relativos novela, ao romance e crtica, reescrevi ou retoquei todos os captulos anteriormente redigidos. E dei por finda a tarefa. Que dizer do que a fica? De entre as vrias observaes que me acodem lembrana, relaciono as mais objetivas e diretamente ligadas com o livro em si. Primeiro: no sei ao certo como classific-lo. Somente reconheo que no se trata duma teoria literria, pois meu propsito era outro, e mais modesto. Qual? Simplesmente isto: um reexame das questes sempre abertas para quantos j se abeiraram da crtica e da historiografia literria. Ou por outra: repensar algumas das bases conceituais e termino lgicas em que se fundamentam os estudos literrios. Da nasce o segundo ponto: que ttulo atribuir a semelhante obra? De princpio, chamei-a despretensiosamente Iniciao Literatura, e com essa denominao cheguei a anunci-la. Entretanto, um amigo alertou-me para o fato de esse ttulo dar margem a equvocos, pois na verdade meu intuito no era iniciar o leitor na Literatura, isto , na leitura das obras, mas, sim, nos estudos acerca da Literatura, ou seja, nos problemas de crtica literria. Diante disso, acabei optando pelo nome de Introduo Problemtica da Literatura, o qual, em que pese ao carter pedantesco do vocbulo "problemtica", parece meridianamente claro. Inclusive, o rtulo presta-se ainda para esclarecer a inteno principal que me orientou o esprito: oferecer ao leitor no-especializado, portanto aos estudantes e ao pblico em geral, uma iniciao, uma introduo ao exame de alguns problemas fundamentais de teoria e filosofia da Literatura. Esclarecer e orientar, eis o escopo duplo deste livro. Em matria de estudos literrios, o progresso do saber se realiza por acmulo e justaposio de informaes: sob pena de incorrer em falhas interpretativas, ou repisar idias j firmadas, o estudioso deve conhecer o saldo positivo da pesquisa relacionada com os assuntos do seu interesse. E a esse quantum acrescentar, semelhana dos que o precederam, os resultados da sua prpria investigao. Foi exatamente o que almejei neste livro: sem fazer tbua rasa do conhecimento literrio alcanado at os nossos dias, pretendi oferecer a minha proposta pessoal, que enfeixa reflexes no geral vinculadas experincia docente. De onde esta obra constituir-se num ensaio, ou se quiserem, num ensaio didtico, voltado especialmente para a atividade literria em vernculo. Escusava lembrar que o livro no trata de todos os assuntos, mas de alguns apenas, os considerados fundamentais e prementes. Outros, cujo exame se torna necessrio, deixaram por ora de ser discutidos visto escaparem dos limites em que deliberadamente situei este livro. No caso, esto a periodologia literria, a linguagem literria, as relaes entre Literatura e Sociedade, Literatura e Histria, etc. Em contrapartida,

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j)

]

certos tpicos, certamente merecedores de tratamento autnomo, foram estudados dentro de captulos mais vastos, o que,

de algum modo, lhes supre a ausncia, como, por exemplo, as questes relativas ao tempo na Literatura, os vnculos entre o romance e a poesia, o romance e o teatro, etc. Bem por isso, o captulo referente ao romance se estendeu talvez um tanto demasiadamente. Para facilitar a consulta desses tpicos internos, ser til recorrer ao ndice de assuntos ao final do volume. E, agora, cumpro o dever do agradecimento. Esta obra no teria chegado ao fim caso me faltasse o vrio auxlio de determinadas pessoas. A Jos Paulo Paes, que leu grande parte dos originais em primeira redao, pelas judiciosas e oportunas observaes, e ainda pelo emprstimo de livros. A Segismundo Spina, Alexandrino Eusbio Severino, Ulpiano Bezerra de Meneses, Ursula Rapp e Maria de Lourdes Rodrigues, Cadeira de Francs da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo, Biblioteca da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Marlia, pelo emprstimo de livros. A Elenir Casaca Aguilera, Eveline Ghingold, Spencer Custdio Filho, Rodolfo llari, Wilson Antnio Vieira, Carlos Felipe Moiss, meus alunos, a Mercedes de Oliveira e Jorge Fidelino Galvo de Figueiredo, que escrupulosamente datilografaram os originais. A todos, minha mais viva gratido. MASSAUD MOISS Universidade de So Paulo 26 de agosto de 1965 11 ".

.r

PREFCIO da 9_EDIODecorridos dez anos de seu trmino e de sua entrega ao Editor, torna este livro circulao pela nova vez. Por ocasio de seu aparecimento, a critica militante se manifestou de vrio modo, consoante a orientao ideolgica e as expectativas de cada um, desde o aplauso incondicional at as divergncias de toda natureza. Ora a critica assinalava que algumas de minhas generalizaes no podiam ser aceitas porque' 'sem referncias", como se eu tivesse escamoteado- os autores estrangeiros em que me houvesse abeberado, - mas ela no declarava quais generalizaes nem quais autores. na verdade, porventura aderindo pertinncia de algumas de minhas postulaes, a crtica no escondia que lhe custava admiti-las como sendo de um brasileiro, e de um brasileiro que a partir da prpria experincia e das prprias reflexes pudesse chegar a inferncias plausveis, defensveis e, qui, originais. Ora afirmava tratar-se de um manual para estudantes, ora que a obra uma compilao do que se tem escrito na matria, - o que denunciava uma leitura no s epidrmica e fragmentria como apressada, pois tomava ao p da letra certas expresses do prlogo que apenas denotam intuitos de objetividade. Ora advertia que me situo numa perspectiva epistemolgica ou gnoseolgica, o que, pretendendo ser uma restrio, to-somente apontava uma evidncia. Alm disso, o reparo dava e d margem a uma interrogao: perante o progresso da cincia literria dos ltimos anos, continuaria em vigor a discordncia ?

Como tantos outros em qualquer tempo, o presente livro nasceu da atividade docente. Natural, pois, que reflita seduo por certo enfoque 13didtico: ao declar-lo no prefcio da primeira edio, eu no escondia que tinha plena conscincia do fato. Sucede, no entanto, que uma obra no desmerece por ter sido elaborada nos quadrantes universitrios: o que conta, so as idias, a novidade da especulao, o arranjo novo do saber antigo, a reviso das idias-feitas, etc. Negar validade a uma obra apenas porque decorrente da atividade universitria recusar no poucos ttulos hoje definitivamente incorporados bibliografia dos estudos literrios. Como, alis, esto de acordo todos quantos lidam, honesta e lucidamente, com tais assuntos. Escrito a partir das reflexes expostas a estudantes e colegas, dentro e fora das aulas, o presente livro se foi montando precipuamente sobre os textos analisados e interpretados. A teoria da poesia pica, depreendi-a do exame de poemas antigos e modernos centrados numa viso herica e cosmognica do ser humano. A teoria da novela, ergui-a com base nas novelas de cavalaria francesas, espanholas e vernculas, e nas novelas sentimentais e picarescas, em cotejo com similares romnticos e modernos. A teoria do conto veio da reflexo em torno de autores que cultivaram a frma, sobretudo a partir do sculo XIX. A teoria do romance, aprendi-a na leitura de ficcionistas que a essa modalidade narrativa se dedicaram desde a segunda metade do sculo XVIII. As prprias distines entre poesia e prosa tiveram anloga origem, assim como a idia das ''foras-motrizes' '. A prova que eram teorizaes pessoais reside no fato de algumas (como, por exemplo, a do conto e a da novela) ainda suscitarem reaes polmicas ou a discrepncia opinitica: proviessem de autores aliengenas, estariam aceitas e denunciada sua origem estrangeira. Nem uma coisa nem outra: a leitura de obras tericas to-somente alargou e ratificou concepes que se iam definindo desde os fins da dcada de 40. Basta lembrar que os esquemas grficos do conto, novela e romance, que se incluram no ensaio publicado em 1958 e se reproduzem"neste livro desde a primeira edio, apenas estilizam um grfico de forma amebide (semelhante ao que representa a clula humana) empregado por mim j em 1951.

No fique sem registro que muitas das postulaes aparentemente "heterodoxas", camufladas sob a roupagem didtica para poderem singrar, vm sendo corroboradas pela crtica mais recente, ainda que situada em ptica diversa da minha e objetivando, no exame da obra literria, outros horizontes e valores. Ao longo do livro se mencionam algumas dessas confirmaes, com o exclusivo propsito de prevenir o leitor contra a idia de que em nosso espao cultural impossvel erigir teorizaes vlidas para alm de seus limites naturais. \ 14 A presente edio sofreu nova reviso e atualizao. Refundido e acrescido em vrios pontos, o texto igualmente se dilatou com um captulo a respeito do fenmeno potico (publicado autonomamente, em 1977, sob o ttulo da Criao Potica, e que agora integra o conjunto da obra no lugar devido), e outros acerca das expresses hl'bridas da criao literria, destinados a preencher uma lacuna. Outros assuntos, j referidos no prefcio da primeira edio, ainda permanecem margem ou porque transbordem das fronteiras desta obra ou porque demandem tratamento extensivo, digno de um livro. A despeito das modificaes introduzidas nesta e nas anteriores tiragens, esta obra se conserva, nos seus fundamentos e. na sua linha metodolgica, a mesma da edio original: as mudanas e acrscimos visam a torn-la cada vez mais definida em suas propostas, - no a modific-la para que se adapte, afoita e distor cidamente, s teorias do momento. Por motivos tcnicos, a matria dispe-se agora em dois volumes que, embora autnomos, guardam o mesmo vnculo de mtua dependncia que os seus captulos estabeleciam entre si at a edio precedente.

M.M.\ ,

iJUniversidade de So Paulo julho de 1975/janeiro de 1978

II

J) I15 ".

".

NOTA PRVIA

Ij

Para a nova edio deste volume, que engloba a parte referente Prosa da Criao Literria, o texto foi integralmente revisto e atualizado. Em decorrncia, vrios acrscimos foram introduzidos, sem alterar-lhe, no entanto, a fisionomia original. E por motivos tcnicos, a matria se distribui agora em dois tornos, a saber: A Criao Literria. Prosa - I, que enfeixa os seguintes captulos: I. Frmas em Prosa, II. O Conto, III. A Novela, IV. O Romance; e A Criao Literria. Prosa - II, que encerra os seguintes captulos: I. A Prosa Potica, II. O Ensaio, III. A Crnica, IV. O Teatro, V. Outras Expresses Hbridas, VI. A Crtica Literria. Embora autnomos, os dois tomos guardam o mesmo vnculo de mtua dependncia que os captulos estabeleciam entre si at a edio precedente. E com vistas melhor informao do leitor, reproduzem-se os prefcios 1 e 9 ed. desta obra.

17.xxx

I Frmas em Prosa

Muito mais complexo que o problema das frmas poticas o das formas em prosa. Primeiro, porque no se trata apenas de descrev-las, como fizemos com as primeiras, mas de diferen-las. Segundo, porque constitui problema ainda aberto e de notria atualidade. A caracterizao e o histrico das frmas poticas pertencem retrica tradicional, enquanto a distino e a anlise das formas em prosa constituem questes da moderna teoria literria. Antes do sculo XVIII, quase to-somente a poesia que interessava aos tericos da Literatura, que entendiam por poesia a lrica, a pica e o drama. A tal ponto as formas em prosa ostentavam menos cotao que os poucos estudos acerca do romance anteriores quela centria via de regra tinham por

objetivo subestim-lo, consider-lo inferior epopia, e mesmo tragdia e historiografia, ou satiriz-lo: Langlois (dit Francan), Le Tombeau des Romans ou il est discouru. I: Contre les Romans; II: Pour les Romans (1626), Charles Sorel, Antiroman ou I'Histoire du Berger Lysis (1631) e De Ia Cormaissance des Bons Livres, ou Examen des Plusieurs Auteurs (1672), Cirano, Lettre contre un Liseur de Romans (1663), Boileau, Dialogue sur les Hros de Roman (1665), Pierre-Daniel Huet, Trait de l'Origine des Romans (1670), A. Furetiere, Le Roman Bourgeois (1704),1 annimo, Roman Nouveau (1683), Len1 lvaro Uns, Jornal de Letras, 7" srie, Rio de Janeiro, O Cruzeiro [1963], pp. 312-313; Arend Kok, Introduo, notas e edio crtica do Trait de l'Origine des Romans, de Pierre-Daniel Huet, Amsterdam, N. V. Swets e Zeitlinger, 1942, pp. 51 e ss. 19

glet-Dufresnoy, De l'Usage des Romans (1734).2 Por outro lado, tais doutrinadores se referiam mais novela que ao romance. Com o Romantismo e a conseqente criao do romance no sentido moderno do termo, as teorias a seu respeito entraram a destronar a velha preocupao pela poesia pica e pelo teatro.3 De tal modo o romance ganhou prestgio entre os estudiosos de teoria literria que um erudito de nome A.-I. Delcro no teve dvidas em compilar um Dictiormaire Universel Littraire et Critique des Romans... (1826).4 No entanto, como ainda fosse muito arraigado o conceito que distinguia a poesia pica e a dramtica com foros de nobreza artstica, os comentaristas do romance ora tendiam a consider-lo uma "enciclopdia potica", ora uma "pseudo-pica", Seja como for, graas ao xito alcanado pelo romance, simultaneamente com o ensaio jornalstico, a pea dramtica de tom srio e final feliz, etc.", as doutrinas clssicas entraram em crise. Menos bafejados foram o conto e a novela, o primeiro, porque tratado como romance curto (sob o designativo de novelia, termo emprestado do Italiano), num embaralhamento que ainda hoje provoca confuses, e o segundo, porque confundido com o romance, A Friedrich Schlegel se devem as primeiras teorizaes acerca do conto ou novela, tendo por base II Decamerone, de Boccaccio, reunidas em trabalho publicado em 1801.7 At fins do sculo XIX, os estudos acerca da prosa da fico eram parciais, breves ou ainda miados a antigos e superados conceitos. Todavia, as preceptivas literrias ento aparecidas, de carter anormativo, ao contrrio do que postulava a tradio, j comeavam a abrigar doutrinas a respeito do conto e do romance e mesmo da novela, geralmente com o equvoco apontado, No setor do conto, destacam-se as idias de Poe, pioneiras e ainda atuais. Em fins do sculo XIX que entram a surgir os primeiros grandes teorizadores, contemporaneamente ao desenvolvimento atingido pelo conto nas literaturas ocidentais. E ao longo deste sculo, o nmero de estudiosos do assunto cresceu2 KIaus Friedrich, "Einc Thooric dcs "Roman Nouvcau" , in Romanistisches Jahrbuch, Romanisches Seminar, Hamburg, XIV Band, 1963, p. 105. 3 Rcn Wcllck, Hisroria de la Critica Moderna (1750-1950), tr. espanhola, 4 voIs. Madrid, Gredos, 1959, vol. lI, p. 28. 4 KIaus Friedrich, ibidem. 5 Rcn Wcllck, op. fit., vol. I, p. 280; vol lI, p. 123. 6 Idem, ibidem, vl. I, p. 32. 7 Idem, ibidem, vbl. lI, p. 35. 20

a olhos vistos: Brander Mathews, Carl H. Grabo, G. R. Chester, Elisabeth Bowen, Sean O'Faolain, V. Propp, e tantos outros, especialnente de lngua inglesa. .. ] Em vernculo, a mais remota tentativa de estabelecer os limites do conto se encontra em Corte na Aldeia (1619), de Francisco Rodrigues Lobo. Em dois dilogos, os de n X e XI, procurou marcar as diferenas entre os "contos", identificados com as narrativas folclricas, e as "histrias", com as novelle boccaccianas. Chegou, inclusive, a frisar que os contos' 'no querem tanto de retrica", ou seja, pedem a brevidade. A relevncia das distines feitas pelo escritor portugus do Barroco no escapou a um estudioso do porte de Menndez Pelayo, para quem ele' 'tentou antes de qualquer outro reduzir a regras e preceitos a arte infantil dos contadores, dando-nos de passagem uma teoria do gnero e uma indicao de seus principais temas". 8 Somente em nossos dias a teoria do conto voltou a merecer ateno em Portugal, desta vez com um trabalho exaustivo e sistemtico, Biologia do Conto (1987), de Armando Moreno. Entre ns, tirante observaes esparsas de Machado de Assis, a primeira teoria do conto que se conhece, da autoria de Araripe Jr., no "Retrospecto do Ano de 1893", publicado na Semana de 1894 e mais tarde enfeixado em Literatura Brasileira. Movimento de 1893. O Crepsculo dos Povos (1896). Um vasto hiato se fez da por diante at que o assunto voltasse a ocupar a crtica, inicialmente graas a Herman Lima e as Variaes sobre o Conto (1952). Quanto teoria do romance, um dos primeiros estudos de conjunto data de 1883: Beitrage zur Theorie und Technik des Romans, de F. Spielhagen. Depois dele, a quantidade de teorizadores vem aumentando

progressivamente at os nossos dias, numa verdadeira pletora de doutrinas e interpretaes: Henry James, Albert Thibaudet, Percy Lubbock, E. Wharton, E. Muir, E. M. Forster, R. Koskimies, Roger Caillois, Robert Liddel, G. Lukcs, Wayne C. Booth, Lucien Goldman, F. K. Stanzel e tantos outros.98 Menndez Pelayo, Orgenes de la Novela, 4 vols., Santander, Consejo Superior de Investigaciones Cientficas, 1943, vol. III, p. 150. A c::ssc respeito, ver Walter Pabst, LA Novela Corra en La Teoria y en La Creacin Literaria, Ir. espanhola, Madrid, Gredos, 1972, pp. 187 e ss., - para quem mais do que evidente a influncia de li Libro del Cortegiano (1528), de Castiglione, e de I Diporti (1550), de Girolamo Parabosco, sobre Francisco Rodrigues Lobo. 9 Ver o captulo dedicado ao estudo do romance, mais adiante, e a bibliografia infine.

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Nem por causa da avalancha de estudos referentes prosa de fico se pode dizer que o problema est resolvido. Os fatores que determinam o carter aberto e complexo dessa questo podem ser arrolados do seguinte modo: em se tratando de novela e de romance, alto o dbito para com a poesia narrativa (canes de gesta, epopias). Historicamente, ambos se prendem poesia pica, ao menos na generalidade dos casos: por certo que seria lcito objetar com narrativas clssicas (como Dfnis e Cli, por exemplo) que no parecem dever nada poesia pica, mas constituem excees regra. Ou, por outra, podem ser consideradas manifestaes proto-histricas da novela, que veio a despontar na Idade Mdia, pelo processo de prosificao das canes de gesta. Outra determinante que perturba a clareza desejvel nesse terreno: cada pas, ou rea de cultura, ou poca histrico-literria, ou tendncia crtica, defende idias prprias acerca das frmas em prosa. A essas contingncias deve-se acrescentar que o vocabulrio da crtica literria, apesar do esforo de alguns e do desejo duma maioria consciente, ainda est longe de alcanar preciso e univocidade. Outras causas podem ser aduzidas para explicar a dificuldade em se chegar a uma forma de consenso nessa matria. Em primeiro lugar, as relaes entre atividade literria e as outras artes e modos de conhecimento: alm de se moverem nas duas direes, desenrolam-se praticamente dentro do mesmo contexto histrico. Essa contemporaneidade e interao apontam para o fato de que a prtica literria, enquadrada que est na sociedade que lhe d origem e razo de ser, destina-se a servir, em qualquer dos sentidos do vocbulo "servir". 10 Em segundo lugar, a histria das frmas literrias mostra-nos um dinamismo que afasta a hiptese das solues definitivas. Tomando como exemplo o romance, observa-se que entre suas primitivas modalidades, datadas do sculo XVIII, e as atuais, operou-se visvel metamorfose. Tanto assim que permitiu a alguns crticos apregoar o desaparecimento do romance como expresso de cultura, ou a sua transformao em uma estrutura nova. na verdade, entre Pamela (1740), de Samuel Richardson, tido como o primeiro exemplar no gnero, e as criaes do "nouveau roman", nos anos 60, passando por Balzac, Stendhal, Dostoievski, Tolstoi, Proust, Joyce e outros, parece escancarar-se um abismo.10 A esse propsito, ver Etierme Souriau, La Correspondence des Arts, Paris, FIanunarion, 1947, e Alfonso Reyes, EI Deslinde, Mxico, E1 Colgio de Mxico, 1944.

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certo que deve haver um resduo, um lugar-comum do ponto de vista da estrutura bsica, para que as obras desses prosadores continuem a merecer a designao de "romance". Mas tambm est fora de dvida que exibem mudanas de toda ordem, numa espcie de corrida de saltos para atingir o melhor resultado na viso da realidade. Um crtico que adotasse a concepo setecentista de romance para julgar a obra, por exemplo, de um James Joyce, provocaria equvocos e perplexidades no leitor, entre os quais eventualmente o de recusar-se a classificar Ulysses de romance. Idntico raciocnio aplica-se ao conto: entre as Mil e Uma Noites e suas configuraes modernas notam-se diferenas que vo desde a tcnica at o significado, ou desde o estilo at o contedo. Um terceiro fator interfere no bom entendimento nesse particular: alguns crticos tm encarado apressadamente o problema das frmas em prosa. Orientados por conceitos duvidosos, ou polmicos, por vezes adotando esquemas mecnicos, pseudocientficos, ou guiados por m conscincia, apressam-se em subestimar a complexidade do problema. E acabam por aderir a conceitos fundados na "forma externa" das obras, pondo em segundo plano a "forma interna" e ignorando que existe, para alm desta, uma camada semntica que no pode ser descartada sem comprometer a funo analtica e interpretativa e judicativa que desempenham. Em decorrncia, o critrio que adotam para discernir as diferenas entre o conto, a novela e o romance quantitativo: a seu ver, a distino residiria no volume de pginas. Preconizam que conto sinnimo de narrativa curta, e vice-versa, toda narrativa curta se classifica no setor do conto. Chegam ao requinte de firmar uma distino numrica entre o que chamam de "conto curto" ("short-short story") e "conto longo" ("long-short story"): aquele teria cerca de 500 palavras, o segundo, entre 500 e 15.000 a 20.000 palavras.11 W. F. Thrall, A. Hibbard e C. H. Hohrum, A Handbook 10 Li1era1ure, 5& 00., New York, Odyssey, 1962, p. 458. Outros autores ponderam que o conto short story") "oscila entre o conto curto ('short-short story') de menos de 2.000 palavras e a 'novclette', com mais de 15.000" (Northrop Frye, Sheridan

Bakcr, Gcorge Perkins, The Harper Handbook 10 Li1eralUre, New York, Harpcr & Row, 1985, p. 430). E h quem considere outro nmero: tendo menos de 10.000 vocbulos, trata-se de conto (Harry Shaw, Dictionary of Li1erary Terms, New York, McGraw-Hill Book Co., 1972, p. 343). E um outro estudioso, decerto alertado para o gratuito de tais nmeros, defme-se em "termos atlticos: se tomarmos a novella como um livro de 'distncia mdia' ('middlcdistance'), o conto se enquadraria na classe dos 100/200 metros" (J. A. Cuddon, A Dic1ionary of Li1erary Terms, reviscd 00., New 23

Quanto novela, que os ingleses chamam novelette e os franceses, nouvelle, mais longa que o conto e menos que o romance, de 100 a 200 pginas, aproximadamente. E romance seria toda narrativa com mais de 200 pginas. Na verdade, o critrio quantitativo no de todo falso nem desprezvel. Contudo, deve ser empregado apenas como auxiliar do critrio qualitativo, e a posteriori, porquanto a simples contagem das pginas impossibilita afirmar com preciso o tipo de narrativa em causa. O aspecto numrico pode confundir o observador que relegar a segundo plano o contedo e a estrutura das obras. Se verdade que o conto encerra breve dimenso, tambm certo que isso decorre de fatores intrinsecos: os contos no so contos porque tm poucas pginas, mas, ao contrrio, tm poucas pginas porque so contos. Tomemos, guisa de ilustrao, o caso de O Alienista: uma das obras-primas do conto machadiano, tem cerca de 100 pginas nas edies vulgares, quase o tanto de Iracema, o romance de Jos de Alencar. A ser usado o esquema quantitativo, de imediato se concluiria que as duas narrativas pertencem categoria do conto, ou do romance. Nada mais enganoso. Por certo que se trata dum caso sui-generis, j que nem todos os contos possuem a extenso de O Alienista, e no comum um romance de proporo igual de Iracema.12 na maioria dos casos, o critrio quantitativo pode ser empregado, mas deve ser confirmado pelo qualitativo, que impede chamarmos de conto a embries ou captulos de romance, a poemas em prosa, a aplogos, a fbulas, a crnicas, etc., todos marcados pelo signo da brevidade. Idntica confuso existente entre O 11 lta ljYork, Doubleday & Co., 1976, p. 623). A esse respeito, ver lan Reid, The Shon Story, London, Melhuen and Co., Lld., 1977, p. 10. Outros autores h que propem uma distino baseada na qualidade, no na extenso, como Brander Matthews ("The Phi1osophy of lhe Short-Stoty", in Pen and Ink, New Y ork, Charles Scribner's Sons, 1902 pp. 75-106) e J. Berg Esenwein (Writing the Short-Story: a Practical Handbook on the Rise, Structure, Writing, and Sale of the Modern Short-Story, New York, Hinds, Noble and Elredge, 1909, pp. 17 e ss.). 12 Anlogo exemplo pode ser colhido em Davam grandes passeios aos domingos... (1941), de Jos Regio: a despeito de alguns crticos, fundados nas suas 115 pginas, a classificarem de novela, a obra apresenta estrutura de conto. Decerto apercebendo-se disso, o autor incluiu-a na terceira edio de Histrias de Mulheres (1968), volume de contos cuja primeira edio apareceu em 1946. E sagazmente classificou-as de "conto e novela", mas o rocurso antes mostra que esconde a conscincia de haver semelhana de estrutura entro as narrativas, mal encoberta pela 'l'aga designao posta em subttulo. \

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Alienista e Iracema haveria entre certas obras de mais de 200 pginas. D. Quixote e Madame Bovary servem de exemplo. Quem, refletidamente, poderia enfaix-los sob um mesmo rtulo, novela ou romance? A rigor, aquele novela, e esse: romance. E, como sabemos, o primeiro mais volumoso que o segundo. Assim, se o critrio fosse o nmero de palavras, ambos teriam de ser romances. Estaria correta a classificao? A resposta s pode ser dada pelo critrio intrnseco, e esse responderia que o D. Quixote novela, e Madame Bovary, romance. Infere-se, assim, que o critrio mais conveniente para se erguer uma distino rigorosa entre o conto, a novela e o romance, o qualitativo, que consiste em procurar ver a obra de dentro para fora, analisar-lhe e julgar-lhe os componentes, de forma, e de contedo. Somente depois de bem sopes-los que estaremos aptos a uma classificao vlida e precisa. Nesse ponto, convoca-se o critrio quantitativo a fim de corroborar ou negar o resultado da anlise. No raro, confirma. Mas, que ingredientes so esses? Enfileirados como se segue, serviro de base para os captulos dedicados a cada uma das frmas em prosa: a ao, as personagens, o tempo, o espao, a trama, a estrutura, o drama, a linguagem, o leitor, a sociedade, os planos narrativos, etc. Porque comuns ao romance, novela e ao conto, podem levar ao equvoco de supor improcedentes todas as tentativas de estabelecer fronteiras entre as trs frmas. O fato de o conto abranger ingredientes do romance no invalida a distino entre as duas frmas, uma vez que se movem no mesmo territrio - a prosa de fico. O que resta firmar a sua diferena, calcada na densidade, intensidade e arranjo dos componentes: a

ttulo de exemplo, as personagens do conto discrepam das que protagonizam o romance e a novela por sua densidade, intensidade e estrutura. A simples exibio de personagens no distingue o conto das frmas vizinhas, mas, sim, a circunstncia de serem, via de regra, personagens planas, surpreendidas no momento privilegiado de sua evoluo. Por fim, considerar falaciosa a discriminao entre as frmas da prosa em razo de os elementos expressivos do romance poderem estar presentes no conto ou na novela, pressupe saber, de antemo, o que caracteriza cada frma de per si. Autntico crculo vicioso. E assim retomamos ao ponto de partida: a distino h de ser fundada mais na funo dos ingredientes que na sua mera presena ou no volume de pginas. 25 E se por funo entendermos traos caractersticos, haveremos de convir que determinados traos implicam determinada forma, e esta, reciprocamente, pressupe aqueles. Por outros termos, cada forma tem certas implicaes, de modo que onde essas se encontrem, estaremos em presena daquela: nesse caso, implicaes e formas se equivalem. Vinculadas por elos de necessidade, onde houver umas haver outras, a ponto de todas as divergncias em torno de qualquer texto literrio promanarem de controvrsias acerca dos traos que identificam as frmas (as espcies e os gneros, visto que o raciocnio pode ser estendido aos outros graus da escala genolgica).13 Assim a tarefa classificatria dos textos dentro do universo dos gneros no , como ainda podem pensar estudiosos menos informados ou menos atentos, o objetivo final da critica. , com efeito, o ponto de partida, no o de chegada. E se insistimos nesse pormenor para evitar que se distoram os fatos. Se no soubermos em que categoria ordenar a narrativa que acabamos de ler, seja ela qual for, principiamos por no saber como julg-la, visto que, bom repeti-lo mais uma vez, no se pode submeter "A Cartomante" e D. Casmurro aos mesmos padres analticos e interpretativos. Se ningum duvida que ostentam caractersticas peculiares s respectivas frmas, nem por isso se diria que no procede levantar o problema da classificao ou reconhecerlhe a presena atuante no prprio ato de ler. Essa questo extrapola, na verdade, os limites dos gneros, sem perda de pertinncia. Onde situar Os Sertes? na Sociologia? na fico? na Histria? No ensaio? Ser indiferente localizar a obra num ou noutro desses nichos, ou simultaneamente em mais de um? Para finalizar estas preliminares ao exame das frmas em prosa, assinalemos que a distino entre o conto, a novela e o romance e sua caracterizao, que ocuparo os captulos subseqentes, devem ser entendidas e avaliadas em seu propsito esclarecedor. Trata-se de uma proposta de sistematizao de conceitos numa rea ainda sujeita a controvrsias. Por outro lado, voltaremos nossa ateno para as caractersticas persistentes no decurso da histria das formas em prosa: o que faz que tanto as obras de Margarida de13 E. D. HiIsc!J, Validily in Interpretation, Ncw HavenjLondon, Yalc Univcrsity Press, 1967, pp. 89 \e ss.

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Navarra quanto as de Tchecov ou Maupassant ou Dalton Trevisan ou Julio Cortzar sejam rotuladas de "contos" decorre de empregarem a mesma estrutura narrativa, apesar de todas as mudanas temticas, estilsticas ou culturais. Idntico raciocnio se aplica a Madame Bovary, Ulysses, Contraponto, Apario, Avalovana; ou a Amadis de Gaula, D. Quixote, O Tempo e o Vento, A Barca dos Sete Lemes, Grande Serto: Veredas. que, ao longo das variaes temporais, observa-se a permanncia de um ncleo formal, posto que igualmente sensvel ao do tempo, e tal ncleo que interessa acompanhar e descrever. Em suma, uma perspectiva centrada no substantivo - a estrutura das frmas em prosa -, no no adjetivo - suas modulaes extrnsecas. Tal estrutura bsica no decorre de um modelo ideal, que se armasse em abstrato e se pusesse em confronto com os textos, a ver se eram congruentes entre si. A lgica interna das narrativas que determina a idia de que, por sobre as diferenas particulares, obedecem a um arcabouo primordial, comum a todas. essa estrutura irredutvel, ou a que se reduzem as narrativas, que se representa no esquema grfico que fecha o estudo das trs principais modalidades em prosa. Desse modo, as excees ou as experincias de vanguarda (no raro de incerta classificao, ou determinantes de um remanejamento na rvore dos gneros) somente sero consideradas quando teis compreenso da unidade intrnseca do conto, da novela e do romance. Destaca-se, nesse quadro, o chamado "conto moderno", etiqueta duvidosa por induzir a pensar numa estrutura prpria, diversa da que se encontra no "conto tradicional". na verdade,

essas denominaes revestem categorias histricas, e a primeira assinala apenas o emprego de tcnicas novas para engendrar a velha estrutura. 14 Tratando-se de conto, no importa se escrito em nossos dias, ou nos sculos anteriores, sempre exibir as mesmas caractersticas fundamentais. Ainda que o conflito no seja aparente, ou que o mtodo utilizado pelo contista seja o indireto, por meio de14 A propsito do "conto moderno", ver A. L. Bader, "The Structure of the Modern Short Story", College English, 7 (November 1945), pp. 86-92, in Charles E. May (00.), Shorr Srory Theories, Ohio University Pn=, Ohio, 1976, pp. 107-115.

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implicaes, a narrativa continua sendo conto. Quando no se estrutura ao redor de uma trama, visvel ou implcita, em razo de o autor visar a um texto sem ncleo dramtico, "em que nada acontece", o resultado o poema em prosa, captulo ou embrio de novela ou romance, ou crnica. 1515 A esse respeito, valia a pena registrar o testemunho de um crtico insuspeito: "Pelo menos, isso que o pblico ou a imensa maioria do pblico espera de um romancista. Mas sabido que no pensa assim certa vanguarda literria. A catstrofe comeou sem necessidade alguma, no terreno do conto: baseados numa interpretao totalmente errada da arte de Tchecov, inventaram o 'conto sem enredo', o 'conto atmosfrico', que na verdade no passa de uma 'crnica' em estilo artstico" (Olto Maria Carpeaux, "rico Verissimo e o Pblico", in Flvio Loureiro Chaves (org.), O Contador de Histrias: 40 Anos de Vula Literria de rico Verssimo, Porto Algre, Globo, 1972, p. 37).

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xxx II - O Conto

1. A PALAVRA "CONTO"A palavra "conto" possui, em vernculo, as seguintes acepes: 1) nmero, cmputo, quantidade: "Um conto de ris"; "Um sem conto de soldados"; 2) histria, narrativa, historieta, fbula, "caso"; embuste, engodo, mentira ("conto-do-vigrio"); 3) extremidade inferior da lana, ou do basto: "E, dando uma pancada penetrante, I Co conto do basto, no slio puro" (Os Lusadas, I, 37). Em Portugal, alm de vrio emprego no sentido de medida, o vocbulo ainda designa a "rede de pesca em forma de saco, cuja boca cosida a um crculo de ferro, que se amarra segundo um dimetro a uma vara". na terceira acepo, o vocbulo "conto" deriva do gr. kntos, pelo lat. contu, com anlogo sentido. Para as duas primeiras acepes, tem-se como forma originria o lato com putu ("clculo", "conta"). Para a acepo literria, a de nmero 2, aventa-se ainda outra hiptese, menos provvel: a origem remontaria ao lato commentu ("inveno", "fico"). Admite-se tambm que o vocbulo "conto1 Antnio de Morais Silva, Grande Dicionrio da Lngua Portuguesa, 10& 00., rev., cor., muito aumentada e atualizada, 12 vols., Liboa, Confluncia, 1951, s.v. Ver ainda Caldas Aulete, Dicionrio Contemporneo da Lngua Portuguesa, 2 vols., 3& 00., atualizada, Lisboa, Parceria Antnio Maria Pereira, 1948; Antenor Nascentes, Dicionrio Etimolgico da Lngua Portuguesa, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1932; Aurlio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Dicionrio da Lngua Portuguesa, 1& 00., 2& impresso, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, s.d.

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seria deverbal de contar, derivado do lato computare. na Idade Mdia, significou inicialmente" enumerao de objetos", passando com o tempo a "resenha ou descrio de acontecimentos", "relato", "relato de coisas verdadeiras", "enumerao de acontecimentos", "narrativa".2 na Demanda do Santo Graal, corriqueiro o uso da expresso" ora diz o conto que...", para estabelecer nexo entre episdios ou "aventuras" da novela. Por outro lado, as histrias e lendas conservadas no terceiro e no quarto Livros de Linhagens so contos, embora de estrutura tosca e de o vocbulo "conto" ainda no se empregar para nome-las. No sculo XVI, a palavra assumiu sentido prprio, contemporaneamente ao surgimento do primeiro contista do Idioma na acepo moderna: Gonalo Fernandes Trancoso, autor dos Contos e Histrias de Proveito e Exemplo (1575), onde sensvel a influncia de D. Juan Manuel, Boccaccio, Bandello e outros. Pouco depois, delineia-se a mais antiga teoria do conto em vernculo, em Corte na Aldeia (1619), de Francisco Rodrigues Lobo. Da por diante, apesar da incmoda presena do termo "novela", o vocbulo" conto" no mais perderia sua denotao literria. Mas no sculo XVIII, alm de confundir-se com' 'novela" e "romance", "em decorrncia das ambigidades devidas polissemia, o sentido do lexema 'conto', ainda quando se tratasse de conto literrio, guarda colorao pejorativa". 3 Algo dessa colorao pode tambm ser detectada no emprego, at meados do sculo XIX, do termo" conto" na acepo medieval ou tradicional, como, por exemplo, na pena de Camilo Castelo Branco: "De propsito as fao para te dar azo a inspirares flego novo, visto que j te afadiga o conto. (...) - Novidade

terceira! acudi eu, quase suspeitoso da lograo do conto". "E vamos ao conto".4 E mesmo neste sculo pode ser encontrado o vocbulo" conto" no sentido genrico de narrativa: "Contemos contos umas s outras... Eu no sei contos nenhuns, mais isso no faz mal... "52 Mariano Baquero Goyanes, El Cuento &pafiol en el Siglo XIX, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Cientficas, 1949, pp. 31 e SS.; MicMle Simonsen, O Conto Popular, Ir. bras., S. Paulo, Martins Fontes, 1987, p. 1. 3 Nicole Guenier, "Pour une dfinition du conte", in Roman et Lumieres au XVII/' Siecle, Paris, Editions Sociales, 1970, p. 424. 4 Camilo Castelo Branco, Amor de Salvao, 8& 00., Porto, Chardron, s.d., pp. 139, 141; Amor de Perdio, Por1'b, Domingos Barreira, 1945, p. 47. 5. Fernando Pessoa, O Marinheiro", in Poemas Dramticos, Lisboa, tica, 1952, p. 41.

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Ao longo do movimento romntico, empregava-se o vocbulo "conto" no sentido de narrativa popular, fantstica, inverossmil. Os autores preferiam classificar de "novela'; ou "romance" suas narrativas, ou recorrer a outros termos, como' 'lendas", "histrias", "baladas", "tradies", "episdios", etc.6 Alexandre Herculano enfeixou sob o ttulo de Lendas e Narrativas (1851) os contos inspirados na Idade Mdia portuguesa, Joaquim Norberto de Sousa e Silva, um dos pioneiros do conto brasileiro, preferiu o rtulo de Romances e Novelas (1852) para suas histrias, duas das quais apresentam estrutura de conto. Poe, um dos mestres do conto moderno, publicou Tales of the Grotesque and Arabesque (2 vols., 1840). Por outro lado, Alfred de Musset intitulou Contes d'Espag ne et d'ltalie (1830) sua estria potica. A palavra ainda no se havia firmado como designativo de um tipo definido de prosa de fico. Nas ltimas dcadas do sculo XIX, com o advento do Realismo, o conto literrio entrou a ser cultivado amplamente, iniciando um processo de requintamento formal que no cessou at os nossos dias. E o vocbulo "conto" passou a ser genericamente utilizado. No obstante, Machado de Assis procurou evit-lo na maioria de suas coletneas no gnero: Histrias da Meia-Noite (1873), Papis Avulsos (1882), Vrias Histrias (1896), Pginas Recolhidas (1899), A palavra "conto" corresponde ao francs conte e ao espanhol cuento. Em ingls, concorrem short story, para as narrativas de carter literrio, e tale, para os contos populares ou folclricos, Em alemo, tem-se Novelle e Erziihlung, no sentido de short story, e M'rchen, de tale. Em italiano: novelle e racconto,76 Mariano Baquero Goyanes, op. cit., pp. 48 e ss. Ver ainda lan Reid, The Short Story, London, Methucn and Co., Ltd., 1977, pp. 10-14. 7 O mesmo estudioso, procurando sistematizar as variantes dos vocbulos "conto", "novela" e "romance" nas lnguas europias mais conhecidas, prope o seguinte quadro sintico(o~ cil,p.59): Romance Novela curta ou Conto, conto literrio Ingls Francs Italiano Alemo Espanhol Romance ou Novel Roman Romanzo Roman Novela Short story Nouvelle Novelle Novelle ou Erzhlung Novela Corta Conto popular Tale Conte Racconto Mrchen Cuento

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2. HISTRICO DO CONTO 8A histria do conto mergulha num remoto passado, difcil de precisar, suscitando, por isso, toda sorte de especulaes. To antiga sua prtica que nos autoriza imagin-lo, em seu bero de origem, contemporneo, ou mesmo precursor, das primeiras manifestaes literrias, ao menos as de carter narrativo. Algumas teorias tm sido aventadas para explicar a gnese do conto, como a indo-europia ou mitica, de autoria dos irmos Wilhelm e Jacob Grimm, mais tarde retomada pelo lingista Max Mller. Segundo ela, a origem do conto remontaria aos mitos arianos, em circulao na pr-histria da ndia, tida como o nascedouro do povo indo-europeu. Ao ver de Theodor Benfey, em 1859, o mais certo seria simplesmente considerar a ndia, de onde os contos maravilhosos teriam emigrado para o Ocidente j no sculo X d.e., ainda que em pequeno nmero. Por seu turno, a teoria etnogrfica, defendida por Andrew Lang, na Inglaterra, propunha que o conto, alm de ser uma forma anterior aos mitos, nisso opondo-se a Max MIler, teria brotado ao mesmo tempo em vrias culturas, geograficamente afastadas. A teoria ritualista, apresentada por Paul Saintyves, postulava que as personagens dos contos so "a lembrana de personagens cerimoniais" de ritos populares cados no esquecimento. Por fim, a teoria marxista, devida a Vladimir Propp, autor das Razes Histricas dos Contos Maravilhosos (1946), afirma que o conto maravilhoso uma superestrutura, de modo que sua anlise permite reconhecer sinais dos modos de produo e dos regimes

polticos (sistema de cls) que assistiram ao seu imemorial aparecimento. Relativas, incompletas, insatisfatrias, tais teorias vm sendo substitudas por uma viso mais flexvel, segundo a qual "as razes histricas dos contos so de fato uma abundncia de radculas, e (...) o universo do conto se espalha em uma multido de tradies heterogneas". 98 Para a histria do conto pr-medieval, ver Herman Lima, O Conto, Publs. da Universidade da Bahia, 1958, pp. 11 ti SS., baseado em investigaes e informaes de H. E. Bates, The Modem Short Story. A Critical Survey, London, T. Nelson, 1941, e Barrett H. Clark e Maxim Lieber, Great Short Stori"es of the World, London, William Heinemarm, 1926. Ver ainda Menndez Pelayo, Orgenes de la Novela, 4 vols., Santander, Consejo Superior de Investigaciones Cientficas, 1943, vol. I, pp. 28 e ss. 9 Claude Brem'}1ld e Jean Verrier, "Afanassiev et Propp", Littrature, n2 45, fev. 1982, apud Michle-Simonsen, op. cit., p. 40, de que foram extradas as informaes acerca das origens do conto (pp. 35-40).

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Nesse longo lapso de tempo, que durou, segundo uns, at o advento da imprensa, ou segundo outros, at o sculo XVII, o conto se enquadraria no mbito do que Ande umJolles chamou de "formas simples", em contraposio a "formas artsticas". Enquanto essas se caracterizam" como linguagem prpria de um indivduo bafejado pelo dom excelente de poder alcanar, numa obra, definitivamente fechada, a coeso suprema", nas outras "a linguagem permanece fluida, aberta, dotada de mobilidade e de capacidade de renovao constante", em suma, "no so apreendidas nem pela estilstica, nem pela retrica, nem pela potica, nem mesmo pela 'escrita', talvez; (u.) no se tornam verdadeiramente obras de arte, embora faam parte da arte; (.u) no constituem poemas, embora sejam poesia", exprimem" gestos verbais elementares" e uma "disposio mental" especfica.; recebem "comumente os nomes de Legenda, Saga, Mito, Adivinha, Ditado, Caso, Memorvel, Conto ou Chiste". 10 Como "forma simples", o conto entranharia no folclore, aproximando-se da fbula e do aplogo, ou no universo das "histrias de proveito e exemplo", do mundo de fadas, da carochinha, e continuaria a ser cultivado mesmo depois do sculo XVI, pela mo de La Fontaine, Irmos Grimm, etc. E como' 'forma artstica", o conto seria o literrio propriamente dito, por apresentar autor prprio, desligado da tradio folclrica ou mtica para colher na atualidade os temas e as formas de narrar. Sublinhe-se que o conto, seja como "forma simples", seja como "forma artstica", gravita ao redor do mesmo ncleo estrutural. Alguns estudiosos acreditam que o aparecimento do conto teria ocorrido alguns milhares de anos antes de Cristo. Apontam o conflito de Caim e Abel como um exemplar no gnero. na Bblia, ainda consideram como tal os episdios de Salom, Rute, Judite, Susana, do Rabi-Akiva, a parbola do filho prdigo, a ressurreio de Lzaro, a histria da Me Judia. No antigo Egito, Os Dois Irmos e Setna e o Livro Mgico, de autor desconhecido, do sculo 14 a.C., mover-se-iam na rea do conto. Ainda estariam no caso o episdio entre Afrodite e Mercrio, na Odissia, os amores de Orfeu e Eurdice, nas Metamorfoses, de Ovdio, A Matrona de leso, de Petrnio, A Casa Mal-Assombrada, de Plnio, o Moo, O Sonho, de Apuleio, as fbulas de Esopo10 Andr Jolles, Formas Simples, tr. bras., S. PauJo, Cultrix, 1976, pp. 20, 195, 220.

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e Fedro. Do Oriente vm exemplares dotados de caractersticas que o tempo s acentuar ou desenvolver: Mil e Uma Noites; Aladim e a Lmpada Maravilhosa; Simbad, o Marujo; Ali-Bab e os Quarenta Ladres; Mercador de Bagd, etc. da ndia antiga restaram as seguintes obras, de autor desconhecido: Panchatantra (ou "cinco livros") e Jataka, duas colees de fbulas e histrias, Hitopadexa, um manual de fbulas e histrias baseadas nas da Panchatantra. Dos fabulistas e contistas hindus, ficou a notcia de um deles, Somadeva, do sculo X a.C., autor de Oceano de Histrias. Durante a Idade Mdia, o conto conhece uma poca urea, com o aparecimento de Boccaccio, com Decameron, Margarida de Navarra, com Heptmeron, e Chaucer, com Canterbury Tales. Nos sculos XVI e XVII, graas ao influxo de Boccaccio, o conto largamente cultivado, sobretudo na Itlia. Matteo Bandello (Le Novelle), Celio Malespini (Duecento Novelle), Francesco Doni (I Marmz), entre outros, testificam um perodo de florescimento do conto. na Espanha, a moda ganha adeptos, como Cervantes (Novelas Ejemmplares), Quevedo (La Hora de Todos) e outros. A Frana no fica margem do movimento: d'Ouville (Contes), PelTault (Contes), Mme. d' Aulnoy (Contes de fes), La Fontaine (Contes). Apesar de tudo, essas duas centrias tm menos importncia, qualitativamente falando, que a Idade Mdia, em razo da artificiosidade reinante. Tal estado de coisas persiste no sculo XVIII, refletindo um ambiente em que s a poesia e a prosa doutrinria puderam desenvolver-se. A fico em prosa manteve-se arredia. Apesar de tudo, na Frana surgem Piron, Marmontel e Hamilton, liderados por um dos mestres do conto: Voltaire. Algumas de suas histrias de cunho filosfico e satrico, como Zadig; Cndido, o Ingnuo; Micrmegas, A Princesa da Babilnia, conferiram narrativa breve a vitalidade antes somente conseguida pelos escritores medievais. Entrado o sculo XIX, o conto vive uma poca de esplendor. Alm de se tornar "forma artstica", ao

lado das demais at ento consideradas, sobretudo as poticas, passa a ser vastamente cultivado: abandona o estgio de "forma simples", paredes-meias com o folclore e o mito, para ingressar numa fase em que se torna produto estritamente literrio. Mais ainda: ganha estrutura e andamento caractersticos, compatveis com sua essncia e seu desenvolvimento histrico, e transforma-se em pedra de toque para no poucos ficcionistas. A publicao de obras no gnero cresce consideravelmente na segunda metade do sculo XIX: instala-se o reinado do 34 conto, a dividir a praa com o romance. E se at o sculo XVIII \

tnhamos de procurar autores que merecessem referncia, o panorama muda agora: impe-se escolher com rigor aqueles que possam figurar na galeria de contistas que contribuem para evoluo e o amadurecimento dessa frma narrativa. ". Na Frana, onde o conto se aclimata como em parte alguma, grandes contistas avultam nessa quadra: Balzac, que o cultivou excepcionalmente (Contes Drlatiques), abre a lista, seguido de Flaubert (Trais Contes) e Maupassant. Este emprestou-lhe uma fisionomia que passou a ser aceita por geraes de imitadores. Mestre, iniciador de uma linhagem e de um tipo de conto (" Maupassant"), deixou obrasprimas, modelares, reunidas em Boule de Suif, La Maison, Tellier, Contes du Jour et de ia Nuit, etc. Alm de Maupassant, outros se dedicaram ao conto, embora sem o mesmo brilho: Alphonse Daudet, Charles Nodier, Thophile Gautier, Stendhal, Prosper Mrime e tantos outros. Fora da Literatura Francesa, ainda se destacaram no sculo XIX os seguintes contistas: Edgard ALan Poe (Tales ai the Grotesque and Arabesque, The Murders in the Rue Morgue, etc.), criador das histrias de crimes e de detetives; Nicolai Gogol, considerado, juntamente com Poe, o introdutor do conto moderno; Anton Tchecov, tido como o paradigma dos contistas russos, conferiu notas de mistrio e misticismo, prprios da alma eslava; escreveu duzentas e quarenta e duas histrias; Hoffinarm, que se notabilizou com seus Contos Fantsticos, muito lidos durante aquele sculo. No espao do vernculo, nessa mesma poca surgem contistas de superior gabarito: em primeiro lugar, Machado de Assis, autor duma grande quantidade de contos, alguns dos quais de fina estrutura e densidade psicolgica, como "Missa do Galo", "O Alienista", "Uns Braos", "A Cartomante", etc. Alm dele, merecem especial relevo Fialho de Almeida e Ea de Queirs, seguidos de Alexandre Herculano, Trindade Coelho, Coelho Neto, Afonso Arinos, Simes Lopes Neto e outros. No sculo XX, a voga do conto no esmoreceu; ao contrrio, mais do que em fins do sculo XIX, atinge em nossos dias o apogeu como frma "erudita" ou literria. Entretanto, apresentar as vrias tendncias e fases atravessadas pelo conto moderno, incluindo as veleidades experimentalistas que o tm impelido na11 Para o histrico do conto na parte relativa aos sculos XIX e XX, ver: Herman Lima, Variaes sobre o Como, Rio de Janeiro, MES, 1952, pp. 38 e 55., e H. E. Bates, op. cito

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direo da crnica ou do poema em prosa, escapa dos limites deste livro. Uns poucos nomes sero suficientes para dar uma idia da problemtica diversidade: Anatole France, o. Henry, Virgnia Woolf, Katherine Mansfield, Kafka, James Joyce, E. Hemingway, Mximo Grki, e tantos outros. Em Portugal e no Brasil, o panorama apresenta-se rico e variado, em parte como reflexo da voga alcanada pela narrativa curta nos Estados Unidos e na Europa: Monteiro Lobato, Am'bal Machado, Alcntara Machado, Mrio de Andrade, Guimares Rosa, Dalton Trevisan, Osman Uns, Joo Alphonsus, Moacir Scliar, Jos Rodrigues Miguis, Maria Judite de Carvalho, rene Lisboa, Branquinho da Fonseca, Jos Rgio, Miguel Torga, Manuel da Fonseca e tantos outros. Entrevisto em sua longa histria, o conto , provavelmente, a mais flexvel das formas literrias. Entretanto, em que pese s contnuas metamorfoses, no raro espelhando mudanas de ordem cultural, ele se manteve estruturalmente uno, essencialmente idntico, seja como "forma simples", seja como "forma artstica". Doutro modo, nem se poderia falar em conto, se estamos dispostos a atribuir ao vocbulo um sentido prprio e, tanto quanto possvel, consistente. Eis porque no causa espcie a ningum que se mencione o conto na Antiguidade, na Idade Mdia e nos tempos modernos e contemporneos: a matriz do conto permaneceu constante, para alm das transformaes operadas, uma vez que se processaram nas suas camadas epidrmicas. Por mais diferenas ~.....e possam ser apontadas entre as histrias de Boccaccio e as de Jorge Luis Borges, tratar-se- sempre de narrativas com

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caractersticas estruturais comuns, que permitem rotul-las de contos. Se no, parece bvio que a prpria comparao no teria razo de ser. Assim, podemos concentrar-nos nessa estrutura que, se no imutvel, nem por isso pode ser considerada sem fronteiras, ainda que instveis. evidente que a determinao desses limites flutuantes pressupe a abstrao das mudanas perifricas, visto no comprometer o ncleo da estrutura do conto. Localiz-los no significa, pois, restrio da faculdade criadora nem da liberdade crtica: nem os autores nem os crticos devero sentir-se coagidos diante da teoria do conto que se pode extrair do confronto entre as narrativas de vrias pocas, tendncias, etc. No estamos ante um cdigo estrito, implacvel, a partir do qual se julgassem todas as narrativas do gnero, mas da verificao de um estado de coisas que vem durando o suficiente para autorizar um pouco mais do que simples 36 dvidas, ou afirmaes gratuitas, a seu respeito. I

3. CONCEITO E ESTRUTURAO conto , do prisma de sua histria e de sua essncia, a matriz da novela e do romance, mais isso no significa que deva poder, necessariamente, transformar-se neles. Como a novela e o romance, irreversvel: jamais deixa de ser conto a narrativa que como tal se engendra, e a ele no pode ser reduzido nenhum romance ou novela. O conto "Boule de Suif", de Maupassant, de modo algum se deixaria converter num romance ou novela: a histria que a se conta completa, fechada como um ovo. Por outro lado, o romance Irmos Karamazov em hiptese nenhuma poderia ser abreviado nas propores materiais e intrnsecas dum conto. Num caso e noutro, qualquer alterao modificaria radicalmente o carter da obra, despersonalizando-a e rebaixando-a ao nvel da glosa ou do pastich012. Da decorre que a narrativa passvel de ampliar-se ou adaptarse a esquema diverso daquele em que foi concebida, no pode ser classificada de conto, ainda que o seu autor a considere, impropriamente, como tal. Para ilustrar este caso, podemos recorrer a Alusio Azevedo. No seu livro Demnios, h umas poucas peas que funcionam a rigor como exerccio de cenas que o escritor acabou transferindo para seus romances: assim, "Pelo Caminho", onde focaliza uma jovem noiva tuberculosa que encontra seu noivo em plena manh, vindo de grossa pndega, vai constituir o captulo XXXIII, intitulado "Pela Estrada da Tijuca", da Condessa Vsper. Por outro lado, "Inveja" a sntese da Mortalha de Alzira: basta o ter podido transmutar-se no romance para nos dizer de sua condio de mero exerccio. O caso inverso representado pelo conto Civilizao, que Eaconverteu na Cidade e as Serras. Como se tratasse dum conto12 Neste ponto, caoo registrar a coincidncia entre a idia bsica que fundamenta minha proposta de um conceito e estrutura do conto e as observaes de V. Propp, que apenas me chegaram ao conhecimento atravs da 2" edio da traduo norte-americana de Morphology 01 the Folktale (Austin, University of Texas, 1970). Segundo aquele formalista russo, "a seqncia de acontecimentos tem suas prprias leis. O conto (short story) tambm apresenta leis anlogas, semelhana das formaes orgnicas. O ladro no pode roubar antes de forar a porta. O mesmo acontece em relao ao conto popular (rale): sujeita-se a leis prprias, especficas e inteiramente particulares" (p. 22). Doutra perspectiva - a estilistica -, mantm-se a comprovao de que o conto possui estrutura prpria e inconfundvel, pois " um gnero que comporta um cdigo de enunciao bastante preciso" (Daniel Delas, prefcio a estilstica estrutural, de Michael Riffaterre, tr. bras., So Paulo, Cultrix, 1973, p. 18). 37

- e portanto irreversvel - ao pretender desdo

br-lo num romance, Ea escreveu uma obra que continua a ser essencialnente um conto, embora os vrios enxertos e a lentido narrativa sugiram o contrrio. Um confronto entre os dois textos, que desse conta de seu carter especfico, reclamaria um longo estudo. No sendo possvel faz-lo no espao deste livro, contentemonos com algumas indicaes. "Civilizao" gravita ao redor de uma idia central: Jacinto, supercivilizado e rico, precocemente envelhecido, bocejava de tdio infinito em seu palcio seiscentista, at que um dia resolve passar algum tempo em sua quinta de Torges, e l, em meio natureza, recupera seu gosto de viver. Ecoando a tese de Rousseau e os romances campesinos de Jlio Dinis, o conto se distende entre as pginas 79 e 118 da edio compulsada (Contos, Porto, Lello, 1946). Escassas 40 pginas, que poderiam reduzir-se, com proveito, metade, seno menos, se o narrador se ativesse ao cerne da situao e no se desviasse por atalhos e mincias redundantes. Aceitemos, porm, o texto como se apresenta e vejamos como se comporta em face da Cidade e as Serras, que tem, na edio de 1944, da mesma casa editora, 369 pginas. Para desdobrar quatro dezenas de pginas, j de si abundantes, em quase quatro centenas, somente fazendo interpolaes, agregando observaes, dando asas fantasia, demorando-se nas passagens doutrinais, enfin, encompridando o texto artificial e desnecessariamente. Alguns exemplos bastaro para dar uma idia do descompasso aritmtico, que no altera, na sua estrutura, o conto original: eliminem-se os excessos e logo se perceber que o ncleo dramtico de "Civilizao" o mesmo da Cidade e as Serras. Dois momentos ntidos se distinguem numa e noutra narrativa, demarcados pela ida do fidalgo Jacinto a Torges, em "Civilizao", e a Tormes, na Cidade e as Serras. Enquanto naquele a viagem ocorre pgina

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93, na Cidade e as Serras d-se pgina 164. Como Ea multiplicou 14 pginas em 164? Simplesmente inflando o texto: em "Civilizao", o narrador surpreende Jacinto aos 30 anos, portanto beira de viver seu momento de transformao ou momento de crise, como de hbito no universo do conto13; na Cidade e as Serras, no s o imagina nascido em Paris (o que evidencia a artificiosidade um tanto hiperblica que preside o novo -'13 A esse propsito, ver Mary Louise Pratt, "The Short Story: the Long and the Short of it", Poetics, Amsterdam, vol. 10, n 2/3, j1IDho 1981, pp. 182-184. 38

traado narrativo, como se detm no av, no pai e na infncia de Jacinto. que, nas palavras de um romancista atento especificidade do seu ofcio, "uma personagem de romance jamais pode ser confinada nos limites estreitos do conto, assim como a personagem do conto jamais pode ser alargada at as dimenses do romance sem qualquer alterao em sua natureza". 14 E da para a frente, toca de esmiuar tudo, a comear pela Idia que esse "Prncipe da Gr-Ventura" concebera, seguida de estirados dilogos em torno de questes intelectuais e mundanas, neutras do ponto de vista dramtico; enfim, a exaustiva pormenorizao do dia-a-dia de Jacinto e Z Fernandes (agora sabemos o nome do narrador e amigo do heri) se espicha at um pouco menos da metade do volume. Se tais ingredientes, certo que adicionados com brilho e o inimitvel estilo queirosiano, encerrassem carga dramtica, constituindo episdios ou captulos de um complexo processo de interao social, estaramos ante algo diferente do conto. Mas no o que sucede: as interpolaes e excursos no constituem plos dramticos, mas enchimento verbal que apenas adia o instante dramaticamente significativo, quando o heri abandona o palcio, - situado na provncia portuguesa, no conto, e. no 202 de Champs Elyses, em Paris, naCidade e as Serras - pelo campo.

Removidas as excrescncias, resta um invariante, o plot que sustenta os dois textos: 1) um homem abastado, superiormente culto, enfastia-se de tudo, em meio aos produtos requintados da civilizao do sculo XIX, iguarias finas, aparelhos modernos de comunicao e de simplificao da vida domstica, e uma riqussima biblioteca; 2) no auge do tdio, d-se a fuga para a serra, de que resulta a modificao do heri em homem simples, mas feliz; 3) o casamento e tudo o mais que se segue sua transformao carece de vigor dramtico: so conseqncias naturais da metamorfose operada no contato com o remanso buclico; a, sim, o fulcro de "Civilizao" e A Cidade e as Serras. E mesmo o nascimento dos filhos de Jacinto e a instalao de conforto civilizado em Tormes, na Cidade e as Serras, apenas materializam, sem acrescentar novidade, a mudana transcorrida na alma e no temperamento14 Alberto Moravia, "The Short Story and the Novel", de Man as End: A Defense of Humanism, Ir. norte-americana, New York, Farrar, Straus & Giroux, Ine., 1969, in OIarles E. May (00.), Short Story Theories, Ohio University Press, Ohio, 1976, p. 150.

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do protagonista. Atingira a individuao, diria Jung, aps a qual no resta seno alargar os domnios do "eu" e da existncia. E tal mudana que constitui o alicerce das duas narrativas: ambas so, do ngulo da estrutura mnima e fundamental, contos, no importa que A Cidade e as Serras se espraie por centenas de pginas. 5. As Unidades do Conto16 o conto , do ngulo dramtico, unvoco, univalente. Abramos parnteses para esclarecer o sentido dos vocbulos" drama", "dramtico" e cognatos. Etimologicamente preso linguagem teatral, "drama" significava "ao". E com o tempo passou a designar toda pea destinada representao. na poca romntica, dado o princpio da fuso de gneros, entendia-se por drama o misto de tragdia e comdia. Transferido para a prosa de fico, o termo "drama" entrou a significar "conflito", "atrito". Nesse caso, "ao" e "conflito" se tornaram equivalentes, uma vez que toda ao pressupe conflito, e este, promove a ao, ou por meio dela se manifesta; em suma, ambos se implicam mutuamente. O conto , pois, uma narrativa unvoca, univalente: constitui uma unidade dramtica, uma clula dramtica, visto gravitar ao redor de um s conflito, um s drama, uma s ao. Caracteriza-se, assim, por conter unidade de ao, tomada esta como a seqncia de atos praticados pelos protagonistas, ou de acontecimentos de que participam. A ao pode ser externa, quando as personagens se deslocam no espao e no tempo, e interna, quando o conflito se localiza em sua mente.15 Comparando o conto popular "O Pescador e sua Mulher" e o romance O Arenque (1977), de GIlter Grass, Alain Moniandon chegou a idntico resultado (cf. Franois Marolin (org.), Frontieres du Conte, Paris, Ed. du Centro de ia Recherche Scientifique, 1982, p. 147). V. tanloom na mesma obra, pp. 69 e ss., o estudo de Roger Gardes, "Le Conte des Yeux Rouges et Gaspard des Montagnes d'Henri Pourrat". Acerca da impossibilidade de o conto transformar-se em romance, ver ainda Brander Mathews, "The Philosophy of the Short-Story" , in Pen and lnk, New York, CharJes Scribner's Sons, 1902, pp. 75-106, lranscrito na obra referida na nota 6; e Mariano Baquero Goyanes, Qu es el Cuento 7, Buenos Aires, Columba, 1967, pp. 46, 47. 16 Para o exame analtico e estilstico das categorias narrativas estudadas neste tpico (ao, tempo, espao, personagem, enredo), e dos recursos expressivos, ou retricos, levado a efeito no tpico referente linguagem (dilogo, descrio, narrao, dissertao), ver Helmut Bonheim, The Narrative Modes. Techniques ofihe Short Story, D. S. Brewer, Great Britain. 1982.

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Para bem compreender a unidade dramtica que identifica o conto, preciso levar em conta que os seus ingredientes convergem para o mesmo ponto. A existncia de uma nica ao, ou conflito, ou ainda de uma nica "histria" ou "enredo", est intimamente relacionada com a concentrao de efeitos e de pormenores: o conto aborrece as digresses, as divagaes, os excessos. Ao contrrio: cada palavra ou frase h de ter sua razo de ser na economia global a narrativa, a ponto de, em tese, no se poder substitu-la ou alter-la sem afetar o conjunto. Para tanto, os ingredientes narrativos galvanizam-se numa nica direo, ou seja, em torno de um nico drama, ou ao. Evidentemente, a observao de incontveis narrativas no gnero que induz a pensar que a univalncia dramtica do conto significa haver um nico objeto comandando a escrita e os componentes narrativos. Tomemos um exemplo: "Missa do Galo", de Pginas Recolhidas (1899), de Machado de Assis, composto por um nico episdio, o dilogo repassado de sensualidade, entre o narrador, Nogueira, ento com dezessete anos, e sua hospedeira, D. Conceio, uma balzaquiana, casada, com 30 anos. Enquanto dormiam a sogra e as duas escravas, e como o marido, o escrivo Meneses, sasse de mansinho para uma de suas noites de teatro, eufemismo que lhe encobria os "amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana", Conceio esgueira-se do leito conjugal e vai para a sala, onde Nogueira lia Os Trs Mosqueteiros, fazendo hora para ir ver "a missa do Galo na Corte". Sozinhos naquele sero natalino, que ficaria indelevelmente gravado na lembrana do narrador, arma-se uma situao dramtica nica, e por certo a mais importante, na trajetria existencial do perplexo adolescente. A narrativa desse encontro memorvel um conto por encerrar unidade dramtica, com princpio, meio e fim. Corresponde ao pice na vida provinciana do Nogueira. Como o sabemos? Pela simples verificao de que o jovem, alm de no protagonizar outra histria qualquer, passaria seus dias na rememorao obsessiva daquele episdio marcante. Record-lo para sempre, como Ssifo, eis o seu suplcio e sua delcia. Mas naquela noite ele vivera seu momento privilegiado, nico instante em que sua vida escapou da cinzentice do cotidiano para a luz efmera da ribalta. Experimentara os quinze momentos de glria a que todo mortal tem direito. Pouco importa, a ele e a ns, leitores, tudo quanto precedeu a hora de subentendidos e meias 41 palavras escaldantes de promessas, e tudo quanto se lhe seguiu: o passado e o futuro carecem de significao dramtica, no possuem conflito, ao, digna de um conto. Quando muito, o contista apresentaria um sumrio do passado, ou do futuro, que possa lanar alguma luz sobre a situao em foco: a chamada sntese dramtica. 17 A esse expediente recorre o narrador no eplogo da narrativa; "Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em maro, o escrivo tinha morrido de apoplexia. Conceio morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido". Do ponto de vista dramtico, porm, tudo se encerrara naquela noite de frustre seduo amorosa. irrelevante o que possa acontecer depois ao nosso heri, seja porque anunciado nos pormenores do conto, seja porque ele esgotara no conflito central todas as suas potencialidades e reservas emocionais. Regra geral, assim se passam as coisas no universo do conto. Se no, podemos desconfiar que se trata, mais propriamente, de um trecho ou embrio de romance ou novela. O conto constitui o recorte da frao decisiva e a mais importante, do prisma dramtico, de uma continuidade vital em que o passado e o futuro guardam significado inferior ou nulo. Os protagonistas abandonam o anonimato no momento privilegiado, de modo que o tempo anterior funciona, quando muito, como germe ou preparativo daquele instante em que o destino joga uma grande cartada. O tempo subseqente se tinge de equivalente colorao: o futuro previsvel ou fcil de vaticinar, seja porque definido pela morte ou soluo correspondente, seja porque os atos a praticar e os gestos a descrever foram determinados por aquele hiato dramtico, seja porque os figurantes, depois disso, regressaram primitiva obscuridade, no apresentando suas vidas nada digno de registro. Elimina-se, assim, a hiptese de continuarem no palco dos acontecimentos. De onde o conto ser, a essa luz, obra fechada, dramaticamente circunscrita. Quando o ficcionista resolve ultrapassar essa barreira "natural", prolongando o convvio com os seres que criou, duas17 Norman Friedman, um dos mais abalizados tericos do "ponto de vista", prefere chamar de "narrativa sumria" ("Point of View in Fiction: The Dcvclopmcnt of a Critica! Concept", in Philip Stevick (00.), 1he 1heory 01 the Novel, New York, The Frre Prcss, 1967, pp. 119-120). Wayn~ C. Booth (1he Rhetoric 01 Fiction, Chicago, The University of Chicago Prcss, 1963, p.1154) sugere o vocbulo "sumrio".

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sadas se lhe oferecem: a primeira pode ser ilustrada pelo caso de Dalton Trevisan e Guerra Conjugal (1975), vGllume de contos que giram ao redor de duas personagens, Joo e- Maria. Que que se observa nessa obra, engenhosamente arquitetada para vencer a referida limitao? Se a primeira narrativa vivida por Joo e Maria, a segunda -o por Joo! e Maria!, a terceira por Jo02 e Maria2, e assim consecutivamente: Joo e Maria do segundo

conto em diante no so os mesmos do primeiro, mas outras personagens batizadas com idntico antropnimo, envolvidas em situaes especficas, precisamente como na vida, em que os Joes e Marias de todo o mundo, apesar da identidade do apelativo, protagonizam sempre histrias particulares. A segunda variao tcnica se exemplifica em Bandeira Preta (1956), de Branquinho da Fonseca: transitando de uma narrativa para outra e vivendo a mesma situao dramtica ao longo delas, as personagens (pedro, Chinca e outros) induzem o leitor a crer que o ficcionista estaria projetando, inconscientemente, um romance ou uma novela, e no uma srie de histrias curtas. Se a primeira soluo vale como exerccio superior de um contista nato a repudiar o conforto das estereotipias, a segunda compromete, pela monotonia dramtica e a inconsistncia estrutural, o talento dum ficcionista de primeira gua. A unidade de ao condiciona as demais caractersticas do conto. Comeando pela noo de espao, verificamos que o lugar onde as personagens circulam, sempre de mbito restrito. No geral, uma rua, uma casa, e, mesmo, um quarto de dormir ou uma sala de estar basta para que o enredo se organize. Raramente os protagonistas se movimentam para outros lugares. E quando isso ocorre, de duas uma: ou a narrativa tenta abandonar sua condio de conto, ou o deslocamento advm de uma necessidade imposta pelo conflito que lhe serve de base, constituindo a preparao da cena, busca de pormenores enriquecedores da ao, etc. Nessa alternativa, o espao ocupado pelas personagens antes do lugar onde se desenrola a cena principal dramaticamente neutro ou vazio, espao-sem-drama, ao passo que o outro espao-com drama. Em Civilizao ", o espao dramtico situa-se em Torges; a estada no palcio mero preparativo para a viagem ao local onde o heri, vivendo seu momento privilegiado, sofreria a decisiva mudana de carter. Em "Questes de Famlia", de Dalton Trevisan, adiante transcrito, observa-se que a casa do protagonista secundria do prisma dramtico, enquanto a do sogro se apresenta to cheia de conflitos latentes que acaba sendo palco da morte do heri. 43 Em "Missa do Galo", tudo se passa na "sala da frente" daquela" casa assobradada da Rua do Senado". Ali o drama comea e termina. Seus antecedentes, alm de secundrios, em poucas palavras se narram: "vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatrios". Mesmo que o narrador se detivesse a relatar-nos sua vida pregressa, teria de faz-lo como sntese dramtica. Com isso, a unidade de espao continuaria a ser observada. Da o dinamismo do lugar fsico em que a ao decorre: o contista, como se manejasse uma cmara cinematogrfica, apenas se demora no cenrio diretamente relacionado com o drama. Verse-, mais adiante, quando se tratar da descrio, de que modo funciona esse mecanismo de enfoque geogrfico. A unidade de ao corresponde, assim, a unidade de espao, e esta decorre da circunstncia de apenas determinado ambiente encerrar importncia dramtica. da mesma forma que uma nica ao, por veicular conflito, sustenta a narrativa, um nico espao serve-lhe de teatro. Pode-se dizer, conseqentemente, que no conto se processa a determinao do espao (e tambm do tempo como se ver), na medida em que os demais lugares (e momentos) so vazios de dramaticidade. Do contrrio, pela criao de vrios plos dramticos, haveria desequilbrio interno, e o conto perderia o seu carter prprio para tornar-se esboo da novela ou romance. Por outras palavras, da mesma forma que h espao-sem-drama e espao-com-drama, no conto distinguem-se acontecimentos-sem-drama e acontecimentos-com-drama: estes que constituem a ao central da narrativa, enquanto os outros funcionam como satlites. A noo de espao segue-se imediatamente a de tempo. E aqui tambm se observa unidade. Com efeito, os acontecimentos narrados no conto podem dar-se em curto lapso de tempo: j que no interessam o passado e o futuro, o conflito se passa em horas, ou dias. Se levam anos, de duas uma: 1) ou trata-se dum embrio de

romance ou novela, 2) ou o longo tempo referido aparece na forma de sntese dramtica, que envolve, habitualmente, o passado da personagem. Em "Missa do Galo", os antecedentes temporais esto postos de parte: apenas sabemos a idade dos protagonistas; sabemos que tudo ocorre mais ou menos entre vinte e trs horas e meia-noite: "ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso". Tampouco interessam os acontecimentos posteriores ao episdio: umas poucas referncias, que vo sublinhadas, no alteram a unidade de tempo do conto, mesmo porque vagas, secundrias e destitudas de fora dramtica: "Pelo AnoBom fui para 44 Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em maro, o escrivo tinha morrido de apoplexia. Conceio morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido". O conto, voltado que est para o centro nevrlgico da situao dramtica, abstrai tudo quanto, na esfera do tempo, encerra importncia menor. Assim se explica que lhe seja estranha, ou escassamente compatvel, a "durao" bergsoniana, ou a complexa interseco de planos temporais, engendrada pela memria associativa, ou por outro expediente anlogo. De onde a "objetividade" do conto: desprezando os desvios e atalhos narrativos, concentra-se no mago da questo em foco. Tal "objetividade", presente ainda em outros aspectos, mais adiante examinados, salta aos olhos com as trs unidades, de ao, tempo e lugar. Assinale-se que fazem lembrar o teatro, notadamente o clssico, numa relao que ser circunstanciada num tpico especfico. s unidades referidas acrescente-se a de tom: os componentes da narrativa obedecem a uma estruturao harmoniosa, com o mesmo e nico escopo, o de provocar no leitor uma s impresso, seja de pavor, piedade, dio, simpatia, ternura, indiferena, etc., seja o seu contrrio. Corresponde "unidade de efeito ou de impresso" , proposta por Poe na famosa resenha a Twice-Told Tales, de Nathaniel Hawthorne, publicada em 1842, na Graham 's Magazine. No obstante posta em dvida por vrios crticos, empenhados em ressaltarlhe a limitao, uma vez que no recobre todos os contos, 18 (a unidade de tom) continua indispensvel para a melhor compreenso da estrutura do conto. que, como apontamos nas preliminares ao estudo das frmas em prosa, no se pode esperar que a teoria do conto englobe todos os espcimes no gnero. Raciocinar com as excees no invalida a teoria, salvo se o nmero delas prevalecer sobre o das narrativas que serviram para que a teoria se erguesse. Mas, nesse caso, deixariam de ser excees... Ainda que se trate de uma obviedade lgica, crticos h que no atentam para ela. Compreende-se com mais segurana e nitidez que no conto tudo h de convergir para a impresso nica, quando nos lembramos de que ele opera com a ao e no com os caracteres. Estes, entendidos como personagens redondas no grau mximo de complexidade18 v., por exemplo, lan Reid, op. cit., p. 55.

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(ver o tpico referente s personagens, no captulo destinado ao romance), situam-se fora da narrativa curta, embora seus protagonistas usuais no se confundam com meros bonecos de 'mola nas mos do ficcionista. Tendo em vista a unidade de impresso, ou respeitando-a espontaneamente, medida que urde sua trama, o narrador dispe de um espao e de um tempo circunscritos para movimentar-se. Sua meta no consiste em criar seres vivos nossa imagem e semelhana, complexos e qui mltiplos, como pretende o romance, mas situaes de conflito em que todos os leitores se espelhem. Somos todos eventuais personagens de conto, poucos de ns protagonizariam romances. O esforo inventivo do contista se dirige para a formulao de um drama em torno de um sentimento, nico e forte, a ponto de gerar uma impresso equivalente no leitor. A unidade de tom se evidencia pela "tenso interna da trama narrativa" , 19 ou seja, pela funcionalidade de cada palavra no arranjo textual, de modo que nenhuma se possa retirar sem comprometer a obra em sua totalidade, ou acrescentar sem trazer-lhe desequilbrio estrutura. Toda excrescncia ou amplificao tornase, assim, indesejvel. Entretanto, impe-se distinguir: 1) a digresso que provm dum alargamento narrativo ou do intuito de, fixando os olhos em ingredientes acessrios, distrair o leitor e adiar o clmax dramtico; e 2) a digresso resultante do empenho estilstico do narrador, ao dilatar o texto pelo acrscimo de notaes plsticas, descritivas, a fim de propiciar ao leitor a contemplao de um momento de beleza verbal, no raro vibrante de estesia potica. Por paradoxal que se afigure, o primeiro tipo no se justifica, pois escancara uma porta dramtica que o narrador no pode invadir, sob pena de principiar uma histria paralela e, com isso, dar origem a uma estrutura imprpria do conto, ou mesmo anmala, posto que obediente a algumas de suas matrizes bsicas. Somente o segundo tipo, por no derivar para situaes tangenciais, tem razo de ser no universo do conto. Um exemplo da primeira alternativa pode ser colhido no conto "O Filho", de Fialho de Almeida, histria duma pobre camponesa que vai estao de trem esperar o filho que regressaria do Brasil. Logo aps

introduzir-nos a protagonista, o narrador se entretm por um instante na descrio de outras pessoas que tambm aguardam:19 Jlio Cortzar, _.Jtimo Round, 2" ed., Mxico, Siglo XXI Ed., 1970, p. 38.

46 Na sala de espera da terceira classe, entre bagagens e cobertores de l, dormem aos montes, rabuzanos que vo trabalhar para o Alentejo, os varapaus de castanho atravessados, os tamancos ao lad~, os ps descalos, e um cheiro a lobo que se evola das suas saragoas m09tanhesas. Nostalgicamente, alguns tasquinham um po de milho horrvel, com sardinhas assadas entre as pedras.20

E a descrio segue nesse diapaso por mais um longo pargrafo: a nica justificativa para a digresso reside no fato de aqueles figurantes servirem de pano de fundo, paisagem social, no qual se estabelece o drama da campnia. Mas trata-se dum pano de fundo inoperante do ngulo dramtico, uma vez que no colabora para adensar o clima de tragdia que se avizinha. Ao contrrio, faz supor outros conflitos, que o narrador, obviamente, no pode revolver sem ameaar o equilbrio do conto. Na verdade, permite admitir que, por momentos, o narrador se alheia do caso da velha, delineado com realismo, como pedia o declogo em moda no tempo, para se entregar, subjetivamente, pintura dum quadro melanclico:E os mais novos, quinze anos, dezesseis, dezoito anos, todos alegres daquela primeira migrao s sementeiras de l baixo, esses no param examinando tudo pelos cantos, espantados, deslumbrados, fulvos e bonitos como bezerrinhos de mama; e ei-los estacam diante dos relgios, dos aparelhos do telgrafo, a sala do restaurante cheia de flores, os chals de hospedagem, e os pequenos jardins dos empregados da estao... Dois ou trs arranham nas bandurras fados chorosos, melodias locais duma tristeza penetrante, em cujos balanos, gemidos, estribilhos, se acorda o murmrio dolente das azenhas, vozes da serra, risotas da romagem, balidos do pulvilhal que entra no ovil, todas as indefinidas virgindades dessa sagrada terra da Beira, ncleo de fora, e ainda agora a mais impoluta ara da famlia portuguesa.21

o excurso provoca quebra da tenso narrativa, determinando um recomeo que pode ser prejudicial conforme seja a freqncia e volume das inseres: o conto extenso corre sempre o risco, mais do que o breve, de alongar desnecessariamente o mbito da ao. Por outro lado, qualquer conto malogra quando destitudo de tenso: formul-la e sustent-la, num andamento senide, constitui o desafio enfrentado por todo contista. Ora, o narrador no esconde que conhece a situao aflitiva daqueles migrantes em busca de trabalho, suscetvel, por isso, de20 e 21 Fialho de Almeida, O Pais dns Uvas, Lisboa, Clssica, 1946, p.70.

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gerar outras narrativas, diferentes da que nos' apresenta em "O Filho". A digresso ainda pode funcionar como autntica paisagem social quando dramaticamente neutra ou inacessvel ao olhar do narrador, como no seguinte passo, do conto "Jos Matias", de Ea de Queirs:o sujeito de culos de ouro, dentro do coup?.. No conheo, meu amigo. Talvez um parente rico, desses que aparecem nos enterros, com o parentesco corretamente coberto de fumo, quando o defunto j no importuna, nem compromete. O homem obeso de caro amarelo, dentro da vitria, o Alves "Capo", que tem um jornal onde desgraadamente a filosofia no abunda, e que se chama a "Piada". Que relao o prendia ao Matias?.. No sei. Talvez se embebedassem nas mesmas tascas; talvez o Jos Matias ultimamente colaborasse na "Piada"; talvez debaixo daquela gordura e daquela literatura, ambas to srdidas, se abrigue uma alma compassiva.22

em que o desconhecimento do nalTador, ou o seu conhecimento relativo mas fechado, sela em definitivo o caso daqueles figurantes ocasionais, convocados, como "extras" cinematogrficos, para uma "tomada" em que a sua presena se confundisse com o prprio cenrio. A segunda alternativa pode ser ilustrada com o seguinte pargrafo, do conto' 'Os Olhos de Cada Um", de Branquinho da Fonseca:Ao sair desembrulhou a carta e comeou a ler enquanto caminhava pelo corredor abaixo. E parou. E voltou para trs. Foi para o quarto de dormir, fechou a porta chave, e comeou, serenamente, a ler tudo desde o princpio. Pela janela entrava uma noite muito calma, com estrelas e luar. Ouviam-se as rs a coaxar e a gua a cair no tanque do jardim. Pedro, imvel, sentado diante daqueles papis amarelos, com o olhar parado, lia.23

onde o trecho desde "Pela janela" at "jardim" constitui pausa para contemplar paisagem, indispensvel como sugesto de atmosfera, adiamento do desenlace, e admissivel porque neutro do ponto de vista dramtico (mera descrio potica de ambiente). O conto monta-se, portanto, volta de uma s idia ou imagem da vida, desprezando os acessrios e, via de regra, considerando as personagens apenas como instrumentos da ao. Uma narrativa bem resolvida obedece espontaneamente a esse requisito22 Ea de Queirs, Contos, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., p. 200. 23 Branquinho da ...Fonseca, Caminhos Magnticos, 2" ed., Lisboa, Guimares Ed., 1959, p. 65.

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fundamental: quando no, resulta em malogro enquanto conto, embora contenha imanente um romance. Serve

de modelo, mais uma vez, Machado de Assis com o seu "Missa do Galo": terminada a \ narrativa, fica-nos a impresso (que varia ".em grau conforme o leitor) de que a todos ns acontece, pelo menos uma vez na vida, um dilogo de subentendidos, onde se jogou uma partida decisiva em nossos destinos, e de que s tomamos conscincia anos depois. Todas as demais impresses possveis ausentam-se em favor daquela que o contista escolheu para transmitir: e sabemos, depois de lido o conto, que a escolha foi a melhor, graas impresso experimentada. Em sntese: o ncleo do conto representado por uma situao dramaticamente carregada; tudo o mais volta funciona como satlite, elemento de contraste, sem fora dramtica. Por outras palavras, o conto se organiza precisamente como uma clula, com o ncleo e o tecido ao redor; o ncleo possui densidade dramtica, enquanto a massa circundante existe em funo dele, para que sua energia se expanda e sua tarefa se cumpra. O xito ou o insucesso do conto se evidencia na articulao ou desarticulao entre o ncleo dramtico e o seu envoltrio no-dramtico. Um e outro podem formar-se dos mesmos materiais narrativos (personagens, ao, espao, tempo, etc.), mas os componentes do ncleo ostentam sentido dramtico, ou seja, empenham-se num conflito, ao passo que os ingredientes perifricos no exibem conotaes dramticas. Assim sendo, o que importa num conto aquela(s) personagem(ns) em conflito, no a(s) dependente(s); o espao onde o drama se desenrola, no os lugares por onde transita a personagem, e assim por diante. Embora os exemplos analisados mais adiante procurem dar conta dessa faceta da teoria do conto, vejamos desde j um caso ilustrativo. Em "O Bfalo", de Laos de Famlia (1960), Clarice Lispector imagina a protagonista em visita ao zoolgico. Durante o trajeto, a sucesso de bichos interr